Sydney Shoemaker, \"A Introspecção e o Eu\" (Tradução - Draft)

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A Introspecção e o Eu Sydney Shoemaker [“Introspection and the Self”. Midwest Studies in Philosophy, X (1986), pp. 101-120. Reimpresso em Shoemaker, The first-person perspective and other essays (Cambridge University Press, 1996). Tradução em andamento (versão de 09 de dezembro de 2015) de Renato Duarte Fonseca. Não circular ou citar.] Poucas passagens na filosofia são tão conhecidas quanto a negativa de David Hume de que haja consciência introspectiva de um eu [self] ou sujeito mental: “De minha parte, quando adentro o mais intimamente no que chamo eu mesmo [myself], sempre me deparo com uma ou outra percepção particular, de calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer. Nunca posso apanhar a mim mesmo [myself], em momento algum, sem uma percepção, e nunca posso observar o que quer que seja senão a percepção.” 1 A negativa de Hume foi repetida por filósofos tão diferentes quanto Kant e Wittgenstein, e comandou o assentimento da maioria dos filósofos posteriores que se ocuparam do tema. E ela tem sido amplamente vista como tendo implicações importantes acerca da natureza do eu [self] e da natureza do autoconhecimento e da autorreferência. Alguns seguiram Hume na conclusão de que um eu [self] é “nada mais do que um feixe ou coleção de diferentes percepções”, ou, em versões mais recentes da visão, de que ele é uma “construção lógica” a partir de experiências ou outros particulares mentais. Alguns tomaram a negativa de Hume como apoio à visão lichtenbergiana, que contou com o endosso de Wittgenstein e mais recentemente de Elizabeth Anscombe, de que a palavra ‘eu’ [‘I’] não tem referência. E muitos a tomaram como solapando o dualismo cartesiano. Uma expressão recente desta última apreciação é a observação de Saul Kripke em Naming and Necessity de que “a noção de Descartes parece-me ter sido posta em dúvida desde a crítica de Hume a um eu [self] cartesiano”2. Em um trabalho mais recente, Kripke argumentou que a negativa de Hume é uma das coisas que subjazem à rejeição, por Wittgenstein, da ideia de que imaginamos as sensações dos outros tendo por modelo nossas próprias.3 Mas apesar do apelo intuitivo da negativa de Hume, está longe de ser claro qual sua base, o que ela exatamente significa ou quais suas implicações filosóficas. À primeira vista, a base é empírica; Hume procura interiormente por um eu [self] e encontra apenas percepções particulares. Mas a negativa de Hume de que ele seja consciente de um eu dificilmente pode ter a mesma base que minha atual e bem fundada negativa de que vejo uma chaleira. A última negativa é bem fundada apenas sobre o pressuposto de que eu tenha alguma ideia de como seria ver uma chaleira. Hume, por outro lado, é bem enfático em assinalar que não tem qualquer ideia de um “eu” [“self”] (qua sujeito de experiências) e assim, presumivelmente, nenhuma ideia de como seria ter a introspecção de um. E embora muitos dos que dão crédito à negativa de Hume não concordariam com sua alegação de que não temos qualquer ideia de um “eu” [“self”], penso que a maioria, assim como ele, não admitiria uma concepção de como seria confrontar um eu [self] como um objeto de introspecção. A despeito do que pareça de início, a base da negativa de Hume dificilmente pode ser empírica. Se a base da negativa de Hume é menos do que clara, assim também é seu significado. Por vezes ela é interpretada como dizendo que não estamos “em contato” [acquainted] 1

David Hume, Treatise of Human Nature, edited by L. A. Selby-Bigge (Oxford, 1888), p. 252. [Ambas as ocorrências de ‘myself’ na passagem encontram-se em itálico no original.] 2 3

com um eu [self] ou que não somos, na introspecção, apresentados a um eu [self] “como um objeto”. Mas o que é estar em contato com algo no sentido requerido? Adaptando a resposta uma vez sugerida por Paul Grice, poderíamos dizer que ‘estou em contato com X’, onde X é um particular, significa ‘(a) tenho conhecimento direto (não-inferencial) de alguns fatos sobre X, e (b) X não é uma construção lógica’.4 Penso que isso captura um significado que seria razoável dar a quando se fala sobre contato com, ou consciência de, objetos. Mas dificilmente pode ser este o significado que comumente possui na negativa humeana de que haja consciência do ou contato introspectivo com o eu [self]. Tal como Grice interpreta a negativa de que haja contato com o eu [self], essa negativa pressupõe que o eu [self] é uma construção lógica, vale dizer, que algo como a teoria do feixe proposta por Hume é verdadeira – ela o pressupõe na base da suposição razoável (com a qual estão comprometidos os que empreendem essa negativa) de que realmente temos algum conhecimento direto de fatos sobre nós mesmos. E nesse caso, como Grice chama a atenção, a negativa não pode ser oferecida como fundamento da visão de que o eu é uma construção lógica. Mas uma das razões para a negativa humeana ter sido filosoficamente interessante e perturbadora é que ela parecia fornecer fundamentos prima-facie para essa visão. Mais ainda, muitos filósofos que aceitaram a negativa de Hume, ou de algum modo a acharam plausível, acreditaram simultaneamente que pessoas realmente têm conhecimento direto de fatos sobre si mesmas e que pessoas (eus) não são construções lógicas. E a menos que tais filósofos estivessem deveras confusos, não podem ter entendido a negativa de Hume nos termos da interpretação de Grice – pois à luz dessa interpretação eles estão comprometidos com a sua rejeição. Uma sugestão natural é que o que Hume e outros pretenderam negar é que temos na introspecção qualquer coisa como uma consciência perceptual de um eu; que percebemos um eu por meio de um “sentido interno”. A percepção é, em primeira instância, uma relação com objetos não-factuais; percebemos fatos ao perceber os objetos sobre os quais eles são fatos – por exemplo, percebemos que o galho está curvado ao perceber o galho.5 A negativa humeana, à luz dessa sugestão, é de que ao ter conhecimento introspectivo alguém se encontra em uma relação perceptual ou quaseperceptual com um eu. Isso me parece correto, mas levanta a questão do que seja encontrar-se em uma relação perceptual com algo; ou, mais diretamente ao ponto, levanta a questão de como aqueles que aceitaram a negativa de Hume, ou a levaram a sério, conceberam a relação perceptual. É inicialmente tentador dar algo como o seguinte tratamento para o eu seja perceber uma coisa: S percebe O apenas no caso de S se encontrar com O em uma relação R tal que, para quaisquer x e y, x se encontrar em R com y é algo apto à produção em x de conhecimento (direto) de y. Exemplos da relação R seriam a relação em que uma pessoa se encontra com uma árvore quando está consciente, sob boa iluminação e tem olhos em bom funcionamento abertos e voltados em direção a uma árvore, e a relação que uma pessoa tem com um gato quando o está afagando. Mas ninguém que aceite a negativa humeana, ou pense que ela seja mesmo possivelmente verdadeira, pode aceitar essa definição. Pois nessa definição está para além de disputa que na introspecção nós realmente percebemos um eu [self]; aqui R pode ser a relação que x tem com y apenas caso x seja um sujeito consciente e idêntico a y. Assim, essa definição de percepção compartilha com a definição griceana de contato (com a qual se assemelha) o defeito de que não permite que a negativa humeana levante 4

“Não-factual” não é usada para conotar “falso” ou “errôneo”; por objetos não-factuais entendo simplesmente objetos, dos quais cadeiras e mesas são exemplos, que não são eles próprios fatos ou entidades similares a fatos. 5

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voo. Por outro lado, não queremos trivializar a negativa humeana dando um tratamento do que seja perceber feito sob medida para ajustar-se aos cinco sentidos e a nada mais. Embora possa parecer óbvio, a negativa humeana é uma alegação espantoso e (no primeiro encontro) surpreendente, e certamente não é o truísmo de que a consciência introspectiva não se dá por meio da visão, do tato, da audição, do olfato ou do paladar. A negativa humeana requer uma concepção da percepção que se encontre em algum lugar entre a concepção estreita que a trivializaria e a concepção ampla que trivializaria sua rejeição. Um filósofo que parece aceitar algo como a recém-considerada concepção ampla de percepção é David Armstrong; e Armstrong é um firme defensor da visão de que a introspecção é “sentido interno”, isto é, deve ser concebida segundo o modelo da percepção. Ele escreve: À parte casos excêntricos, a percepção, considerada como um evento mental, é a aquisição de boa ou má informação [information ou misinformation] sobre nosso ambiente. Ela não é um “contato” com objetos, ou um “holofote” que faz contato com eles, mas é simplesmente a obtenção de crenças. Exatamente o mesmo deve ser dito da introspecção. Ela é a obtenção de informação ou desinformação sobre o estado corrente de nossa mente.6

Dada essa visão, seria de se esperar que Armstrong sustentasse que na introspecção se percebe um eu (ou mente, ou sujeito mental). Mas Armstrong aparentemente pensa a si mesmo como aceitando a negativa humeana. Ele diz que: devemos […] conceder a Hume que a existência da mente não é algo que seja dado à introspecção desassistida. Tudo o que o “sentido interno” revela é a ocorrência de acontecimentos mentais individuais […]. Sugiro que a solução é que a noção de “uma mente” é um conceito teórico: algo que é postulado para ligar entre si todos os acontecimentos individuais dos quais a introspecção nos faz conscientes. Ao falar de mentes, talvez mesmo ao usar a palavra ‘eu’ [‘I’] no curso de relatos introspectivos, ultrapassamos o que é observado introspectivamente. A linguagem ordinária incorpora aqui certa teoria.7

Parece aqui que Armstrong está endossando a visão, a ser considerada depois, que aceita um modelo perceptual da introspecção mas nega que o eu [self] esteja entre os objetos percebidos por esse “sentido interno”. É claro, o que Armstrong explicitamente nega aqui não é que o eu seja percebido, mas que sua existência seja “dada à introspecção desassistida”. Talvez ele pudesse sustentar que se percebe o que de fato é um eu [self], mas que o fato de que isso seja um eu [self] – na verdade, de que haja coisas tais como eus [selves] – não é algo “dado”, mas antes algo que se vem a acreditar como resultado da aceitação de uma teoria (assim como alguém pode ver o que de fato é uma supernova e apenas posteriormente, depois de aprender alguma astronomia, dar-se conta de que há tais coisas). Mas se ele realmente pretendeu negar que alguém percebe um eu [self], essa negativa está pelo menos em um conflito prima-facie com sua aparente aceitação da concepção ampla de percepção. Pode parecer que a tarefa de interpretar e avaliar a negativa humeana é essencialmente a de dar um tratamento satisfatório da percepção – que nos permita ver se a percepção, ou 6 7

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algo fortemente análogo a ela, está envolvido em nossa consciência introspectiva de nossos estados mentais. Mas penso que o importante aqui não é tanto qual seja a verdadeira natureza da percepção (supondo, é verdade, que haja algo comum a todas essas coisas que são consideradas modos de percepção) quanto o que está envolvido na concepção da mesma subjacente ao pensamento dos filósofos que aceitaram a negativa humeana, ou ficaram tentados ou perturbados por ela. Uma boa aposta, parece, é que haja uma concepção que não seja forçada e torne verdadeira a negativa humeana; e parece provável que possamos apreender algo importante sobre a natureza do autoconhecimento (e não apenas sobre as concepções dos filósofos sobre ele) tentando ver que concepção seja essa. Quero começar, então, considerando as fontes da negativa humeana. Iniciarei com uma consideração que, penso, deve ter influenciado o próprio Hume e, estou convicto, foi uma influência sobre outros também. Devo talvez inserir um alerta, aqui, de que esse ensaio não é primariamente um exercício de exegese humeana; quaisquer fontes da negativa humeana que sejam peculiarmente humeanas e não seja plausível supor ativas no pensamento de muitos filósofos que a secundaram não me interessam aqui. Hume escreveu antes no Tratado: “Odiar, amar, pensar, sentir, ver; tudo isso nada mais é do que perceber.”8 Nessa passagem não há sinal de que Hume pense que não há qualquer sujeito que realize o perceber. E o que é sugerido por essa passagem, e consoante a muito mais do que diz Hume, é que todos os estados mentais são relacionais – que ter um estado mental consiste sempre em ter certa relação, a saber, perceber, com uma percepção (impressão ou ideia) de um tipo ou outro. Essa não pode ter sido, ao fim e ao cabo, a posição oficial de Hume, dada sua negativa de que haja qualquer coisa que possa ser o sujeito de tais estados relacionais. Mas penso que podemos dizer que Hume tomou por assente que, se houvesse um sujeito mental, um eu [self] distinto de percepções particulares, todas as suas propriedades mentais deveriam ser propriedades relacionais do tipo. Dado que estados mentais são os únicos estados dos quais se pode ter consciência introspectiva e que, de acordo com essa concepção, todos os estados mentais de eus [selves] deveriam ser relacionais ao invés de intrínsecos, seguir-se-ia que um eu [self] não poderia ter quaisquer estados intrínsecos que pudessem ser acessíveis à consciência introspectiva. Mas certamente não faz sentido falar em ser consciente de algo, mediante certo tipo de percepção, se a coisa não tem quaisquer propriedades intrínsecas passíveis de serem percebidas como tais mediante esse tipo de percepção. Sugiro, então, que Hume tinha uma concepção do que deveria ser um sujeito mental – a saber, algo cujos estados mentais são todos relacionais – que implica que tal coisa não poderia ser percebida introspectivamente.9 Sem dúvida, é também o caso que Hume era bastante dualista para tomar como assente que um sujeito mental não poderia ter quaisquer propriedades intrínsecas que não fossem mentais – por exemplo, que não se poderia relacionar, entre as propriedades intrínsecas de um eu [self], o que ordinariamente pensaríamos como propriedades corpóreas de uma pessoa. Com base nisso e na concepção recém-mencionada, seguir-seia não apenas que sujeitos mentais carecem de propriedades intrínsecas introspectáveis, mas de quaisquer propriedades intrínsecas. E com base nisso seria natural concluir que tal coisa não poderia existir. Por outro lado, alguém que pense que eus [selves] têm algumas propriedades intrínsecas físicas, mas concorda com a ideia de que todos os estados mentais são relacionais, poderia sustentar que um eu [self] poderia ser percebido 8 9

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em virtude de suas propriedades físicas e, inclusive, que poderia ser percebido por si próprio de tal maneira – como quando alguém se vê em um espelho ou de esguelha. Mas ainda assim se excluiria que o eu [self] pudesse ser um objeto de percepção introspectiva. Um importante ingrediente nessa linha de pensamento é o que por vezes se denomina a “concepção ato-objeto” de sensações e outros estados mentais. Toma-se sentir dor, por exemplo, como consistindo em estar em certa relação com um particular mental de certo tipo, a saber, uma dor; e toma-se visualizar uma árvore como consistindo em estar em certa relação com um particular mental de outro tipo, a saber, uma imagem de uma árvore. E se perguntarmos o que seja a relação, a resposta será “perceber”, “apreender”, “estar em contato com”, ou algo assemelhado. Como já indiquei, não se pode dizer que a posição oficial de Hume incorpora a concepção ato-objeto, se se toma o ato como requerendo um ator, um sujeito mental. Mas penso ser correto dizer que é dessa concepção que ele parte. Percepções humeanas são precisamente as espécies de entidades que a concepção ato-objeto demanda no tocante ao objeto. A concepção ato-objeto de estados mentais é naturalmente acompanhada por, e pode-se dizer que ela incorpora, aquilo que denominei o modelo perceptual da introspecção – a ideia de que nosso acesso às nossas próprias mentes deve ser concebido segundo o modelo da percepção sensível, diferindo de outros tipos de percepção apenas por ser, em uma terminologia kantiana, “sentido interno” ao invés de “sentido externo”. Se as percepções humeanas são, como disse, apenas a espécie de entidades que a concepção ato-objeto demanda no tocante ao objeto, elas também são precisamente a espécie de entidades que o modelo perceptual da introspecção demanda, se deve haver particulares mentais que não o eu [self] para servir de objetos de consciência introspectiva. O que acabamos de ver é que a própria concepção de fatos mentais que nos fornece um estoque de particulares mentais para servirem de objetos de consciência introspectiva tende a fazer parecer que o eu [self], ou sujeito mental, não pode ser ele próprio um objeto de consciência introspectiva. Quanto mais amplamente se aplica a concepção atoobjeto, maior é o número de estados mentais que são interpretados como relacionais – e se todos são concebidos como relacionais, falar em perceber um eu [self] introspectivamente não fará mais sentido do que falar em ver ou sentir um ponto no espaço vazio. A atitude dos filósofos contemporâneos com respeito à concepção ato-objeto parece-me algo equívoca. Quando encaram o tema diretamente, penso eu, a maioria deles rejeita a concepção como errônea. J. J. C. Smart notou há algum tempo que, para sustentar que a experiência de uma imagem residual [afterimage] arredondada e alaranjada é idêntica a um estado do cérebro, ele deveria rejeitar a ideia de que ter esse estado é uma questão de encontrar-se em certa relação com um particular arredondado e alaranjado.10 Embora seja possível ser um materialista sem aceitar o tipo de teoria da identidade de Smart, não parece que alguma versão do materialismo possa plausivelmente permitir que o que se chama ter uma imagem residual arredondada e alaranjada envolva estar relacionado com algo realmente arredondado e alaranjado. Materialismo à parte, ademais, as razões dadas pelos filósofos para rejeitar a teoria da percepção segundo o modelo do sensedatum são precisamente as bases para rejeitar a concepção ato-objeto tal como aplicada a experiências sensíveis. Penso ser amplamente aceito que a concepção ato-objeto deve também ser rejeitada em sua aplicação a sensações como a dor. Todavia, quando não estamos tratando desse tema específico, a maioria de nós tende a recair nessa concepção 10

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em nosso pensamento sobre o mental. Nada é mais natural do que falar de dores que sentimos e imagens que vemos, e pensar na sensação e na visão como nosso acesso perceptual a particulares mentais. Penso que em parte é por isso que a negativa humeana é tão espantoso. Se não tomássemos como assente que realmente percebemos algo mediante a introspecção, e que essa percepção introspectiva é a fonte de nosso conhecimento introspectivo, seria menos provável que nos espantasse como significativo e perturbador o fato não percebermos introspectivamente qualquer eu [self] ou sujeito mental.11 Suponha que a concepção ato-objeto seja rejeitada para todos os atos mentais; haverá, então, quaisquer particulares mentais propícios para serem os objetos da consciência introspectiva, concebida como uma espécie de percepção? Bem, mesmo se nos negarmos a aceitar que haja coisas como imagens residuais alaranjadas, aceitaremos que há coisas como experiências de imagens residuais alaranjadas ou (em outra maneira de falar) estados em que algo aparece laranja-amareladamente [states of being appeared yellowy orange to]; e certamente estes serão particulares mentais de certo tipo. Mas uma experiência é algo cuja existência é “adjetiva sobre” um sujeito de experiência. O estatuto ontológico de uma experiência, ou de um episódio em que algo aparece [of being appeared to], é similar ao de uma vergadura de um galho ou de um nascer do sol. Alguém percebe um nascer do sol observando o sol nascer; aqui, o objeto não-factual primário da percepção é o sol. Da mesma maneira, alguém percebe a vergadura de um galho observando um galho vergando; e aqui o objeto não-factual primário da percepção é um galho. Dificilmente faz sentido supor que poderia haver um modo de percepção que teria por objetos vergaduras de galhos e nascimentos do Sol, mas nunca galhos ou o Sol. E faz igualmente pouco sentido supor que poderia haver um modo de percepção que tivesse por objetos experiências, mas nunca quem experiencia – nunca sujeitos de experiências. Experiências e similares parecem tão pouco propícios quanto nascimentos do Sol e vergaduras de galhos para serem os objetos não-factuais primários de um modo de percepção.12 Estou, é claro, tomando como uma verdade conceitual óbvia que uma experiência é necessariamente uma experiência por um sujeito de experiência, e envolve esse sujeito tão intimamente quanto uma vergadura de galho envolve um galho. Onde isso nos deixa? Desde o tempo de Hume, tem sido amplamente sustentado que realmente temos percepção introspectiva de muitos tipos de particulares mentais, mas nunca de um eu [self] ou sujeito mental. Mas o que acabamos de inferir da rejeição da concepção ato-objeto é que, se temos percepção introspectiva do que quer que seja, temos do eu [self], e que apenas o eu [self] poderia ser o objeto não-factual primário da percepção introspectiva, se tal modo de percepção existe. Esbocei anteriormente uma linha de argumento contra a possibilidade da percepção introspectiva do eu [self] que estava baseada na concepção ato-objeto e, assim, na visão de que há uma multidão de objetos não-factuais possíveis para a percepção introspectiva. Era o argumento de que, se a concepção ato-objeto é aplicada universalmente, todos os estados mentais seriam relacionais e o eu [self] careceria dos tipos de propriedades intrínsecas que deveria ter para ser um objeto de percepção introspectiva. Vejamos, agora, que razões pode haver para rejeitar a percepção introspectiva do eu [self] se assumimos que a concepção atoobjeto é errônea, ou ao menos não deve ser aplicada universalmente. Note que, se o que disse é correto, tais razões, se combinadas com as razões para rejeitar a concepção atoobjeto, seriam fundamentos para sustentar que não há coisa alguma como a percepção

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introspectiva – isto é, seriam fundamentos para rejeitar inteiramente o modelo perceptual do autoconhecimento introspectivo. Modos ordinários de percepção admitem que nosso perceber tenha, sucessiva ou simultaneamente, uma multiplicidade de diferentes objetos, todos os quais estão no mesmo nível como objetos não-factuais de percepção. Há tal coisa como discriminar um objeto dentre uma multiplicidade de objetos percebidos, distinguindo-o dos outros (que podem ser da mesma espécie que ele) mediante suas propriedades percebidas e sua posição em um espaço de objetos percebidos. Objetos percebidos são candidatos a diversos tipos identificação de base perceptual. Pode-se identificar um deles, ou equivocar-se na sua identificação, como sendo desta ou daquela classe [sort] – chame-se isso de identificação classificatória [sortal]. E pode-se identificar um deles, ou equivocar-se na sua identificação, como sendo certa coisa particular – chame-se isso de identificação particular. Sendo o objeto identificado um objeto que persevera [a continuant], ele será também um candidato ao que Strawson denominou “reidentificação”, a identificação de algo observado em um momento com algo percebido em outro momento. Isso se dará com base em semelhanças e outras relações entre as propriedades observadas manifestas em diferentes momentos; e, no caso mais favorável, onde houve a observação contínua de uma coisa no curso de um período de tempo, ela será fundada em um tipo de ‘rastreamento’ perceptual que apresenta ao observador uma continuidade observada de propriedades de um tipo que constitui a evidência mais direta de identidade, para coisas daquela classe, que a percepção pode fornecer. Agora bem, nada disso parece aplicar-se ao caso da consciência introspectiva que alguém tem de si mesmo. Se esta é um modo de percepção, então, ou há para cada pessoa exatamente um objeto (não-adjetivo), a saber, ela mesma, que é percebido desse modo por essa pessoa (será esse o caso se a concepção ato-objeto for completamente errônea e eus [selves] forem os únicos objetos básicos de percepção introspectiva); ou, pelo menos, há exatamente um eu [self] que a pessoa pode perceber desse modo. No último caso, não pode haver algo como destacar um eu [self] e distingui-lo de outros eus [selves] por meio de suas propriedades percebidas introspectivamente; e, no primeiro caso, não pode haver algo como destacar um eu [self] e distingui-lo de outras coisas percebidas, sejam de que classe forem, por meio de suas propriedades percebidas. Outrossim, pareceria que não estaria em questão alguém identificar este eu [self] como sendo ele mesmo por meio de suas propriedades percebidas, ou de alguém tendo de identificar eus [selves] percebidos em diferentes momentos como um e o mesmo. Ademais, parece que, se tal identificação fosse possível, deveria ser possível para alguém identificar equivocamente um eu [self] introspectado como sendo ele mesmo, ou identificar equivocamente um eu [self] introspectado como o mesmo que se introspectou anteriormente. Na verdade, porém, não parece existir tal possibilidade de identificação equívoca. De maneira similar, se a identificação de um eu [self] introspectado fosse possível, pareceria que a identificação classificatória equívoca deveria ser possível, de um modo análogo ao caso em que alguém identifica uma toupeira equivocamente como um rato. E, uma vez mais, parece que na verdade não existe tal possibilidade de identificação equívoca – não há tal coisa como a identificação equívoca de não-eus [nonselves] com eus [selves].13 Defrontado com essas alegações, o proponente do modelo perceptual da introspecção deve, ou negar que essas diferenças realmente existem, ou negar que elas importam. Se 13

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ele seguir o último caminho, pode-se esperar que ele diga que estava claro desde o começo que há algumas diferenças entre a consciência introspectiva e as classes-padrão de percepção. Ninguém supõe, por exemplo, que haja um órgão de introspecção – ainda assim, a maioria dos filósofos não considerou um obstáculo insuperável conceber a introspecção segundo o modelo da percepção sensível. O que descobrimos agora, ele diria, é que há uma diferença adicional, que poderíamos resumir dizendo que a percepção introspectiva não tem o papel de nos fornecer ‘informação identificadora’ sobre os objetos percebidos, a saber, nós mesmos. No entanto, a menos que possamos mostrar que esse papel é essencial à percepção, isso deixa sua visão intocada. Em vez de tentar enfrentar imediatamente essa resposta, quero dirigir-me a outro ponto, que acabarei por ligar com o ponto de que o eu [self] não é apresentado na introspecção como um candidato para identificação e que a introspecção não tem o papel de fornecer informação identificadora. Espero que esse ponto ajudará a tornar plausível a alegação de que esse papel é essencial à percepção (ou pelo menos a uma concepção central desta última). Presumivelmente, será despropositado, na melhor das hipóteses, supor que há percepção introspectiva de um eu [self] a menos que essa percepção exerça algum papel na explicação de nosso autoconhecimento introspectivo – nosso conhecimento de nossos próprios estados mentais. O tratamento mais direto seria este: sei que tenho tal e tal estado mental – que estou com raiva, com dor, ou sedento por um drinque – porque me observo introspectivamente o tendo.14 Obviamente, contudo, a observação introspectiva de um eu [self] estando com raiva não produzirá o conhecimento de que eu estou com raiva, a menos que eu saiba que aquele eu [self] é eu mesmo [myself]. Como se supõe que eu soubesse isso? Se a resposta é que eu o identifico comigo mesmo por meio de suas propriedades percebidas, temos de assinalar que isso requer que eu já saiba que tenho essas propriedades. De fato, requer que eu saiba que sou o único possuidor desse conjunto de propriedades, pois, do contrário, a observação de que o eu [self] percebido as tem não seria suficiente para identificá-lo comigo. Assim, teria de já possuir algum autoconhecimento, a saber, o conhecimento de que tenho certas propriedades identificadoras, a fim de adquirir autoconhecimento por auto-observação. Se se supõe que esse autoconhecimento é por sua vez adquirido por meio de auto-observação, então se requer ainda outro autoconhecimento: a saber, o conhecimento de que se possui sejam quais tenham sido as propriedades identificadoras usadas para identificar-se como o eu [self] que se observou possuir o primeiro conjunto de propriedades identificadoras. E assim por diante. Sob pena de regresso ao infinito, deve-se conceder que, em algum ponto, eu tenha algum autoconhecimento que não seja adquirido observando que algo é verdadeiro sobre mim mesmo. Pode-se objetar que estou ignorando o ponto de que apenas um único eu [only one self] poderia ser objeto de minha percepção introspectiva; não há necessidade de identificar o eu [self] observado comigo mesmo por meio de suas propriedades percebidas, visto que, dado que eu o percebo introspectivamente, não há outro eu [self] que ele poderia ser. Mas isso equivale a dizer que eu identifico infalivelmente comigo mesmo o eu [self] observado, pelo fato de que ele é observado introspectivamente por mim. Isso requer que eu saiba que o observo introspectivamente. E este é um autoconhecimento que eu não poderia adquirir por meio de observação introspectiva; pois a menos que eu já saiba que esse eu [self] é eu mesmo [myself], observar que ele percebe a si mesmo não irá dizer-me que o observo. Assim, permanece verdadeiro que, para adquirir 14

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autoconhecimento por percepção introspectiva, tenho de possuir algum autoconhecimento que não obtive por percepção introspectiva. Mas se para explicar o autoconhecimento introspectivo tenho de postular algum autoconhecimento que não seja observacional, no sentido de que não seja obtido pela percepção de um item que sei ser eu mesmo e pela observação do que é verdadeiro com respeito a esse item, por que não deveríamos supor que todo nosso autoconhecimento introspectivo tem um caráter não-observacional? No melhor dos casos, a hipótese de que há autopercepção introspectiva parece não explicar nada que não possa igualmente ser explicado sem ela.15 Penso que a única maneira de um proponente da autopercepção introspectiva escapar disso é sustentar que ‘eu’ é sinônimo de ‘este eu’, onde ‘este’ funciona como um nome logicamente próprio no sentido de Russell.16 Obviamente, ‘este’ não poderia ser aqui o pronome demonstrativo ordinário, pois o último pode ser usado para fazer referência a eus (pessoas) que não o falante. Mas se penso nele como um tipo especial de pronome demonstrativo que pode ser usado para fazer referência apenas a objeto de percepção introspectiva, então a proposta lida engenhosamente com o problema de como alguém pode identificar um eu observado consigo mesmo. Estávamos, com efeito, imaginando nosso percipiente introspectivo perguntando-se ‘Sou este eu?’ e tentando respondê-lo com base em fatos que observa acerca deste último a par de fatos que observa acerca de si mesmo. Mas na presente proposta a questão ‘Sou este eu?’ é equivalente a ‘Este eu é este eu?’ – a qual responde a si mesma. Mesmo que essa sugestão pareça bizarra e artificiosa, há algo de apropriado nela, dada a visão de que temos percepção introspectiva de um e que esta é a fonte de nosso autoconhecimento. Percepção e referência demonstrativa estão intimamente relacionadas; perceber algo é, entre outras coisas, estar em posição de fazer referência a esta coisa demonstrativamente, e é uma condição necessária do tipo primário de referência demonstrativa que o falante perceba (ou lembre ter percebido recentemente) o objeto a que se faz referência. É assaz natural que uma visão que interprete o

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Esse argumento foi dado em Shoemaker 1968, p. 563. Poder-se-ia objetar (e o foi por William Alston) que o argumento prova demais. O mesmo raciocínio não levaria à conclusão falsa de que todo o meu conhecimento de sua casa poderia ser não-observacional? Ele provará (e isto é verdadeiro, não falso) que, se eu for identificar a sua casa por meio de suas características observadas, tenho de ter um conhecimento que não é observacional no sentido (chame isto de sentido estrito) de que ele seja adquirido observando sua casa e observando que algo é verdadeiro a seu respeito. Aqui, é claro, eu deveria adquirir conhecimento das características identificadoras observando outras coisas – por exemplo, ouvindo-o descrever sua casa. Estaria, então, fiando-me em conhecimento do passado e conhecimento de fundo [background knowledge] de vários tipos (por exemplo, sobre a tendência das casas para reter certos tipos de características), cuja aquisição foi, em um sentido amplo, observacional. Mas todos concordam que relatos de experiência imediata contendo ‘eu’ [‘I’] são minimamente dependentes de conhecimento de fundo e conhecimento do passado; a amnésia total presumivelmente prejudicaria meu conhecimento para identificar a casa de alguém perceptualmente, mas não prejudicaria minha habilidade para realizar enunciados com ‘eu’ [‘I’]. O filósofo que é alvo de meu argumento é alguém que pensa que enunciados com ‘eu’ [‘I’] são simplesmente “extraídos” dos conteúdos da experiência imediata, e tal filósofo não permitiria que nada comparável ao que me habilitaria a conhecer as características identificadoras da casa de alguém pudesse explicar minha habilidade de identificar um eu [self] percebido introspectivamente como meu eu [my self]. Tão logo tal filósofo veja que meu conhecimento das características identificadoras de mim mesmo não poderia ser observacional no sentido estrito, penso que ele não tem outro recurso senão conceder que ele não é observacional em nenhuma medida. E então, penso eu, ele não tem um modo razoável de justificar o requisito de que outro autoconhecimento introspectivo seja fundado observacionalmente (ou perceptualmente). 16

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autoconhecimento como algo baseado em autopercepção tente assimilar a autoreferência à referência demonstrativa. Mas pode tal assimilação ser correta? Se focarmos apenas em juízos de tempo presente, a assimilação de juízos de primeira pessoa a juízos demonstrativos pode parecer promissora. É característico de ambos os tipos de juízos que eles são ‘isentos de identificação’ e ‘imunes a erro por identificação equívoca’.17 Não é o caso que eu diga ‘estou com raiva’ porque descubro que alguém está com raiva e identifico essa pessoa comigo mesmo; e normalmente não é o caso que eu diga ‘isto é vermelho’ porque descubro que algo é vermelho e identifico essa coisa como ‘isto’. Mas quando nos voltamos a versões em tempo pretérito desses juízos, a situação parece diferente. Em poucas palavras, e omitindo as qualificações necessárias, a imunidade ao erro por identificação equívoca dos juízos de primeira pessoa é preservada na memória, enquanto a de juízos demonstrativos não é. Se digo, apontando, ‘Isto era vermelho então’, pretendendo expressar o conhecimento que previamente expressara com ‘Isto é vermelho’, então meu juízo envolve uma identificação que poderia ser errônea; poderia ser que a coisa que vejo agora não seja a coisa que lembro ter visto anteriormente. Em contraste, e ainda omitindo as qualificações, se digo ‘Eu estava com raiva então’, pretendo expressar o conhecimento que previamente expressara dizendo ‘Eu estou com raiva’, então um erro de identificação é impossível. A par disso, tem-se que o juízo demonstrativo em tempo pretérito repousa sobre uma reidentificação da coisa a que se faz referência com ‘isto’, enquanto o juízo de primeira pessoa em tempo pretérito não repousa sobre uma reidentificação observacional da pessoa a que se faz referência com ‘eu’. ‘Isso era vermelho’ pode basear-se em parte sobre uma similaridade observada entre a coisa que vejo agora e a coisa que lembro ter visto ser vermelha no passado, ou poderia basear-se em parte em uma série de fenômenos que observei ao rastrear perceptualmente um objeto no curso do tempo. ‘Eu estava com raiva’, se dito com base na memória da maneira ordinária, não se basearia nem em uma semelhança observada introspectivamente entre um eu pretérito e um eu presente, nem em um rastreamento introspectivo de um eu no curso do tempo. Esse é o ponto, tornado familiar em discussões da identidade pessoal, de que juízos mnemônicos de primeira pessoa não estão baseados em critérios de identidade pessoal.18 A qualificação que mencionei tem a ver com a possibilidade, que discuti em outro lugar, que alguém ‘quase-relembre’ [quasi-remember] experiências ou ações passadas que não sejam suas.19 Por exemplo, isso poderia acontecer se fosse possível que alguém sofresse ‘fissão’ e se dividisse em duas pessoas, ambas as quais relembram (ou quaserelembram) ‘por dentro’ as ações e experiências da pessoa original. Conceder que isso seja possível é conceder que em certo sentido juízos mnemônicos em primeira pessoa estão sujeitos a erro por identificação equívoca. Mas isso não afeta realmente meu ponto. Permanece sendo verdadeiro que juízos mnemônicos em primeira pessoa não envolvem identificações de si mesmo que sejam baseadas em similaridades observadas entre eus observados em diferentes momentos, ou sobre um rastreamento perceptual de um eu no curso do tempo. Assumindo que a quase-lembrança das experiências e ações de pessoas distintas de si mesmo seja uma possibilidade lógica, o que nos credencia a pensar que ela não ocorreu em nosso próprio caso não é que os conteúdos de nossas memórias nos fornecem evidência direta de que uma e a mesma pessoa estava envolvida nas várias ações e experiências que lembramos ‘por dentro’ (pois em geral elas não nos 17 18 19

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fornecem tal evidência), mas antes no fato de que nosso conhecimento geral do mundo dá sustentação à suposição de que a ‘fissão’ e que tais não ocorrem de fato. Dada a verdade dessa suposição, minha consciência de que lembro (ou quase-relembro) por dentro uma ação passada é uma evidência decisiva de que realizei essa ação – mas não é o tipo de evidência que fundamenta identificações observacionais. Há uma razão adicional para recusar a assimilação da auto-referência à referência demonstrativa, e trata-se de que tal assimilação torna inexplicável uma das facetas constitutivas da auto-referência. Como notaram autores recentes, uma das facetas distintivas da crença em primeira pessoa é o papel que ela exerce na explicação do comportamento. Ter uma genuína crença em primeira pessoa, do tipo que se expressa dizendo ‘eu’, não é meramente uma questão de crer em algo acerca do que de fato sou eu. Para usar o exemplo de David Kaplan, se meramente creio, acerca da pessoa que de fato sou, que suas calças estão pegando fogo (vejo alguém em um espelho com as calças pegando fogo, mas não me dou conta que sou eu), isso não influenciará meu comportamento como a crença que expressaria dizendo ‘Minhas calças estão pegando fogo!’.20 Parece razoável sustentar que parte do torna uma crença uma crença sobre a pessoa que a tem (da maneira como crenças expressas por sentenças em primeira pessoa são sobre o falante) é o fato de que ela exerce esse papel distintivo na determinação da ação. É uma consequência disso, creio eu, que a referência de ‘eu’ no idioleto de um falante particular é determinada de forma muito diferente do que a referência de outras expressões, incluindo demonstrativos. Grosso modo, enquanto a referência de outras expressões é determinada por fatos acerca da etiologia causal de seu uso, a referência da palavra ‘eu’, quando usada como pronome de primeira pessoa, é determinada pelo papel causal das crenças em cuja expressão ela é usada. Supor que ‘eu’ é apenas um tipo especial de pronome demonstrativo, usado para fazer referência a eus percebidos introspectivamente, e que essa referência é determinada da forma como a dos demonstrativos em geral é determinada, deixa totalmente inexplicado o papel de crenças de primeira pessoa [‘I’-beliefs] na determinação do comportamento. Por que a crença de que as calças deste eu estão pegando fogo, junto com o desejo de não ser queimado, haveria de mobilizar-me para o comportamento de abafar o fogo? Ela irá, é claro, se eu sei que este eu é eu mesmo; mas dado o que depende disso, sabê-lo não pode ser apenas uma questão de saber que este eu é este eu. O modo como uma crença é sobre mim mesmo é completamente diferente do modo como uma crença é sobre um objeto percebido qua objeto percebido. Vimos, penso eu, que o conhecimento introspectivo de nós mesmos não pode legitimamente ser assimilado a nenhum destes dois paradigmas do conhecimento perceptual de um objeto – aquele em que o conhecimento envolve uma identificação observacional do objeto, e aquele em que o objeto é designado demonstrativamente. Isso me parece fornecer uma forte razão para rejeitar que a consciência introspectiva deva ser concebida segundo o modelo da percepção sensível. Mas isso naturalmente se liga ao meu ponto anterior de que na introspecção não somos apresentados, e não precisamos ser apresentados, com ‘informação identificadora’ sobre nós mesmos: o tipo de informação que precisaríamos ter para identificar um eu como sendo eu mesmo, para reidentificar um eu, ou para ‘rastrear’ um eu perceptualmente durante um intervalo de tempo. Pois a assimilação a qualquer desses paradigmas requereria que a introspecção fosse uma fonte de informação identificadora de uma maneira que fato não é.

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Vale perguntar, ligado a isso, por que tem sido tão comodamente suposto que, se fossemos conscientes de eu na introspecção, o eu teria de ser algo não-corpóreo. Supõese como óbvio, é claro, que de fato não somos apresentados a nos mesmos na introspecção como entidades corpóreas. Mas por que se supõe que, se o eu fosse alo corpóreo, e fosse percebido introspectivamente, teria de ser percebido como algo corpóreo? O que subjaz a essa suposição, suspeito, é a ideia de que um modo de perceber uma coisa de certo tipo deve ser uma fonte de informação identificadora sobre coisas desse tipo, tendo assim de revelar os tipos de propriedades pelos quais coisas desse tipo são individuadas. Entidades corpóreas são individuadas em parte por suas propriedades corpóreas e suas relações espaciais com outras coisas, e por essa razão a percepção delas deve fornecer informação sobre tais propriedades e relações. Dado que a introspecção não fornece tal informação, ou ela não é percepção de modo algum, ou é percepção de algo não-corpóreo. Wittgenstein diz no Livro Azul: ‘Sentimos … que nos casos em que “eu” é usado como sujeito, não o usamos porque reconhecemos uma pessoa por suas características corpóreas; e isso cria a ilusão de que usamos essa palavra para fazer referência a algo incorpóreo, o qual, contudo, tem seu sítio em nosso corpo. De fato, este parece ser o ego real, aquele do qual foi dito “Cogito, ergo sum”.’21 A suposição tácita subjacente a esse diagnóstico das atrações do dualismo é que supomos que a percepção introspectiva deve nos fornecer fatos identificadores sobre nós mesmos; e, portanto, que, visto que não são somos apresentados com fatos identificadores do tipo apropriado a entidades corpóreas, não somos entidades corpóreas. Argumentei que não somos apresentados com fatos identificadores de nenhum tipo e, portanto, que a conclusão própria é que a introspecção não é um modo de percepção (uma conclusão com a qual Wittgenstein teria concordado). Vale aqui citar a observação de Kant que ‘naquilo que intitulamos “alma” tudo está em um fluxo contínuo e não há nada fixo exceto (se assim devemos nos expressar) o “eu”, que é simples apenas porque sua representação não tem conteúdo e, portanto, nenhum múltiplo [de intuições], e por essa razão parece representar, ou (para usar uma palavra mais correta) denotar, um objeto simples’.22 Patricia Kitcher o glosa dizendo ‘Os Psicólogos Racionais perdem o rumo porque esperam encontrar uma intuição do eu e, assim, tomam erroneamente a ausência de qualquer intuição pela intuição de algo com propriedades notáveis.’23 Sugiro que a falta de conteúdo, ou de um múltiplo de intuição, é basicamente a falta de informação identificatória fornecida introspectivamente; e que isso é grande parte do que está por trás da negativa de haja percepção introspectiva de um eu. Quero fazer agora o que à primeira vista parece uma objeção muito diferente à ideia de que há percepção introspectiva de um eu. Esta será, na verdade, uma objeção à ideia de que há percepção introspectiva do que quer que seja. Mas penso que a objeção acabará por ser intimamente relacionada à objeção recém feita, que repousa sobre a alegação de que a percepção deve ser uma fonte de informação identificatória sobre os objetos de percepção e que a introspecção não é uma fonte de semelhante informação sobre o eu. É característico da percepção sensível, em todas as suas espécies familiares, que perceber algo envolve sua aparição [appearing] de certo modo a alguém, um modo que pode ou não corresponder à efetiva natureza da coisa percebida. A aparição de um objeto de certo modo a alguém envolve que a pessoa esteja em um estado subjetivo, chame-o uma impressão sensível, que tem certo caráter fenomênico [phenomenal 21 22 23

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character]; e como o objeto apareça será função do caráter fenomênico da impressão sensível. Há (na expressão tornada corrente por Thomas Nagel) ‘algo como’ [something it is like] perceber algo, e podemos equiparar esse algo como em dada ocasião com o caráter fenomênico da impressão sensível. Ter uma impressão sensível com certo caráter fenomênico não é apenas uma questão de ter certas crenças, ou certas inclinações para crer, acerca das propriedades dos objetos de percepção. {For one thing}, a pessoa tem de por vezes aprender a interpretar o caráter fenomênico de suas impressões sensíveis; e antes que aprenda isso, as facetas fenomênicas das impressões sensíveis não serão associadas a facetas dos objetos percebidos. Agora bem, alguns dos estados de que somos conscientes na introspecção são eles próprios estados sensórios que têm um caráter fenomênico. E no caso destes, é natural dizer que há ‘algo como’ ser consciente deles. Mas parece óbvio que esse ‘algo como’ é justamente o caráter fenomênico dos próprios estados, e não o caráter fenomênico de ainda outros estados que sejam impressões sensíveis deles. Há algo como estar com dor. E porque estar com dor e sentir dor são uma e a mesma coisa, há algo como sentir dor. Se alguém sustenta a concepção ato-objeto da sensação, pode ser tentado a equiparar a consciência introspectiva da dor com o sentimento da dor: adotando o modelo perceptual da introspecção, alguém pensa no ‘sentimento’ como o modo de percepção por meio do qual se tem consciência introspectiva da dor. Mas isso tem de ser um erro, quer se adote ou não a concepção ato-objeto. Sentir dor e estar com dor são, repita-se, a mesma coisa; e o conhecimento introspectivo de que estou com dor é ao mesmo tempo o conhecimento introspectivo de que sinto dor. E certamente não é o caso que eu sinta meu eu sentindo dor; não há um sentimento do sentimento que seja algo pairando sobre o sentimento de dor. Há algo como estar com dor, mas não por adição algo como estar consciente da dor, ou de sentir dor; e o mesmo vale para outros estados sensórios. E assim não há tal coisa como uma impressão sensível de um estado sensório, que tenha seu próprio caráter fenomênico. Se ser consciente de estar com dor não envolve ter algo análogo uma impressão sensível da dor, tampouco pode envolver ter uma impressão sensível (ou impressão quasesensível) do eu. Se alguém percebe de algum modo o eu na introspecção, o percebe como tendo vários estados, como estar com dor; assim, não se poderia ter impressões sensíveis dele sem ter impressões sensíveis de seus vários estados, o que acabo de rejeitar que tenhamos. E penso que não há a menor plausibilidade na ideia de que na introspecção temos estados quase-sensórios que reportamos ao eu assim como nossas impressões sensíveis de uma árvore relacionam-se com a árvore. O eu não aparece a si mesmo de nenhum modo na introspecção. Realmente temos, é claro, crenças sobre nós mesmos na introspecção. E sem dúvida é possível que algumas dessas crenças estejam erradas. Mas não se pode dizer que ter uma crença introspectiva errada consiste em que o eu aparece a si mesmo de modo distinto do que é; pois, como disse anteriormente, algo aparecer (perceptualmente) de certo modo a alguém não é simplesmente uma questão de se crer, ou estar inclinado a crer, certas coisas acerca dele. Mas qual é o estatuto dessa negativa de que o eu apareça de certo modo a si mesmo na introspecção? É ela própria um resultado da introspecção? Se fosse isso, ou apenas isso, então o uso dessa negativa como base para a negativa de que há autopercepção introspectiva não seria um grande avanço sobre a alegação de Hume que ao olhar para dentro de si mesmo ele não encontra um eu que paire sobre suas percepções particulares. Mas creio que podemos encontrar outra base para essa negativa ao refletir sobre a função do caráter fenomênico das impressões sensíveis na percepção sensível ordinária. O que sugiro é que o conteúdo informacional de uma impressão sensível está 13

incorporado em seu conteúdo fenomênico e que uma parte crucial desse conteúdo informacional consiste no que tenho chamado de informação identificatória. Enquanto caminho em torno da mesa, sua aparência muda sem que haja qualquer mudança correspondente em minhas crenças sobre suas propriedades intrínsecas. O que de fato muda são minhas crenças sobre suas relações espaciais comigo mesmo; e fatos sobre essas relações espaciais são uma parte importante da informação identificatória que me é fornecida pela percepção sensível ordinária. Se houvesse impressões sensíveis introspectivas do eu, elas não poderiam exercer qualquer papel semelhante, de nos fornecer informação identificatória sobre o eu, dado que a introspecção não fornece informação alguma desse tipo. O único outro papel que elas poderiam exercer é o de fornecer informação sobre facetas intrínsecas do eu, tal como ele estar com dor. Mas haver impressões (quase-)sensíveis que fizessem isso seria haver impressões sensíveis de estados como a dor – e parece assaz óbvio que não há tais coisas. A conclusão parece ser que não nada tal coisa como uma impressão sensível introspectiva do eu, assim como não há tal coisa como uma impressão sensível de uma dor ou de outro estado mental e (supondo que as impressões sensíveis são essenciais à percepção) que não há tal coisa como uma percepção introspectiva do eu, nem realmente de qualquer outra coisa. Minha expectativa é que o que acabo de dizer irá encontrar alguma resistência. De fato, isso se dá mesmo comigo. É natural objetar que há tal coisa como selecionar uma imagem residual entre outras, e também tal coisa como rastrear introspectivamente uma imagem residual no curso do tempo. Se é assim, nossa consciência introspectiva de imagens residuais realmente envolve o fornecimento de informação identificatória. Mas deve ser lembrado que nesta parte de minha discussão estou assumindo que a concepção ato-objeto da sensação é falsa. Rejeitar a concepção ato-objeto é sustentar que, embora haja tal coisa como experienciar-uma-imagem residual, não há tal coisa como uma imagem residual qua fragmento colorido pairando diante de alguém quando fecha os olhos depois de olhar uma luz brilhante. Experienciar uma imagem residual é apenas parecer ver tal fragmento colorido. E assim como a visão de imagens residuais é apenas parecer-que-se-está-vendo, a seleção de imagens residuais é apenas parecer-que-se-estáselecionando e o rastreamento de imagens residuais é apenas parecer-que-se-estárastreando. De fato é verdade que quando uma pessoa experiencia uma imagem residual é como se informação identificatória sobre objetos percebidos lhe estivesse sendo fornecida; é por isso, em parte, que em tal experiência é como se ela estivesse vendo algo. Mas ser como se algo se desse, do ponto de vista do sujeito, não é a mesma coisa que realmente se dar. Não é este o lugar para uma tentativa de refutar a concepção ato-objeto. Só registrarei minha convicção de que, se estou enganado em pensar que essa concepção é errônea quando aplicada a experiência de imagens residuais e que tais, então a totalidade do establishment filosófico esteve enganada na sua rejeição da teoria da percepção segundo o modelo do sense-datum. Pois há este tanto de verdade no ‘argumento da ilusão’: se é correto fornecer uma análise em termos de ato-objeto para fenômenos como ‘ver imagens residuais’, ‘enxergar duplo’, etc., por conseguinte postular sense data (imagens) que são vistos em tais casos, não há justificação para negar-se a fornecer tal análise para experiências sensórias que ocorrem na percepção normal – i.e. não há justificação para negar-se a aceitar a alegação de que em toda percepção, seja ‘verídica’ ou ‘ilusória’, percebemos diretamente sense data. Àqueles que desejam rejeitar a teoria do sense-datum, como penso ser o caso de quase todos os filósofos hoje em dia, é bom

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aconselhar que neguem o antecedente desse condicional, em vez de negar o próprio condicional. Deixem-me agora retornar brevemente à visão de David Armstrong, segundo a qual o que é ‘dado’ na introspecção é ‘a ocorrência de acontecimentos mentais individuais’, e segundo a qual a mente ou o eu é algo postulado para ‘ligar entre si todos os acontecimentos individuais dos quais a introspecção nos torna conscientes’, a postulação envolvendo uma teoria que é incorporada na linguagem ordinária.24 De acordo com a leitura mais natural de Armstrong, temos percepção introspectiva de acontecimentos mentais individuais, mas não de uma mente ou de um eu. Isso não será defensável à luz da concepção de percepção recém esboçada, porque segundo essa concepção não temos percepção introspectiva sequer de acontecimentos mentais particulares (e sugeri anteriormente que, se rejeitamos a concepção ato-objeto, o que um materialista como Armstrong parece comprometido em fazer, então não podemos ter percepção introspectiva de particulares mentais sem ter percepção introspectiva de um eu, ou sujeito mental, sobre o qual eles são ‘adjetivos’). É a visão defensável, talvez, à luz da concepção ampla de percepção? Disse que segundo essa concepção é obviamente verdadeiro que temos percepção introspectiva do eu; mas isso sob o pressuposto de que na introspecção temos conhecimento ‘direto’ de fatos sobre nós mesmos, e Armstrong pode estar rejeitando esse pressuposto ao alegar que o eu (ele diz ‘a mente’) é algo ‘postulado’ de acordo com uma teoria. Mas é difícil ver por que Armstrong deveria pensar que a noção de mente é em alguma medida mais teórica do que noções de acontecimentos mentais particulares como pensamentos ou dores (especialmente dado que as últimas possuem definições causais assaz complexas).25 E se ele pensa que as crenças em primeira pessoa são os resultados de inferências mediadas teoricamente, a partir de crenças mais primitivas em que não figura a noção de um eu ou mente, ele nos deve uma explicação de como tais crenças poderiam ser formuladas (obviamente elas não podem fazer referência a dores, desejos e crenças qua estados, visto que noção de um estado é correlata da noção de um sujeito de estados) e como a inferência procederia (em particular, de como o ‘eu’ faria sua aparição). De qualquer maneira, tal visão é totalmente implausível à luz da abordagem naturalista da epistemologia, da qual o próprio Armstrong tem sido um defensor. Se fossemos estruturados pela evolução (ou, a propósito, por Deus) de sorte que estarmos em estados mentais variados diretamente produzisse em nós crenças acerca deles, então tudo estaria arruinado a menos que as crenças assim produzidas fossem crenças de que nós mesmos estaríamos nesses estados – e apenas uma imagem filosófica (provavelmente uma que envolvesse a concepção atoobjeto) poderia tornar plausível a suposição de que seriam alguma outra coisa. Parece-me, então, que, quer interpretemos ‘perceber’ no sentido amplo ou no sentido restrito, a visão de que temos percepções introspectivas de acontecimentos mentais individuais, mas não de um eu, é indefensável. Se o interpretarmos no sentido amplo, temos percepção introspectiva de ambos; se o interpretarmos no sentido restrito, não temos percepção introspectiva de nenhum. No último sentido, de fato, a consciência introspectiva não envolve a percepção de coisa alguma. E penso que isso coloca a negativa de Hume sob interessante nova luz. Pois solapa completamente a visão, a qual motiva as teorias do eu em termos de ‘feixe’, ‘construção lógica’ e ‘ausência de sujeito’, de que de um ponto de vista empirista o estatuto do eu (o sujeito de experiência) é suspeito se comparado ao de coisas tais como sensações, sentimentos, imagens e que tais. O que dizer do vínculo da negativa humeana com o dualismo cartesiano? Embora 24 25

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eu pense que há muitas boas razões para rejeitar o dualismo cartesiano, não penso que a verdade da negativa humeana seja uma delas. Pois não vejo razão para pensar que o dualismo cartesiano está comprometido com a existência de autopercepção no sentido restrito, em oposição ao amplo. O que parece verdade, contudo, é a sugestão, implícita nas passagens anteriormente citadas de Kant e Wittgenstein, de que a negativa humeana abala um dos argumentos a favor do dualismo cartesiano, a saber, o argumento baseado no fato de que na introspecção não percebemos o eu como dotado de propriedades corpóreas; pois esse argumento avança apenas sob o pressuposto de que na introspecção realmente percebemos o eu no sentido restrito.

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