Syncretic Blending. Actos, Eventos e Actores - Correntes de Significado

Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Syncretic Blending Actos, Eventos e Actores - Correntes de Significado

2014/2015

Roberto Rúben Domingues Mortágua 2009117948 Cultura e Sociedade: Temas Contemporâneos em Antropologia Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Coimbra

RESUMO

Ao longo da dissertação que se segue, discorrer-se-á sobre algumas questões centrais para uma contemporânea compreensão dos agrupamentos humanos e respectivas representações que, desde as reflexões pioneiras de Durkheim, temos estática e inquestionavelmente denominado ‘sociedades’. Partindo de ideias pioneiras de Fredrik Barth para uma reconstrução urgente do conceito de sociedade, alheias ao modelo Durkheimiano, que apelida de ‘ilusório e produto fantasioso de uma Europa dividida em unidades delimitadas Estados-Nação’ e da reflecção de Adam Kuper dessas mesmas ideias, é intenção deste trabalho: em primeira instância expor as falhas e os paradoxos das actuais concepções de sociedade no que toca à sua incapacidade conceptual e experimental de compreender e representar o mundo moderno pós-colonial; e em segunda instância, através de um caso etnográfico in loco da autoria do antropólogo Norman C. Stolzoff (que passou cerca de quinze anos a trabalhar questões de cultura popular na Jamaica pós-colonial), reflectir sobre como essas mesmas concepções se revelam inúteis e inaptas na compreensão e representação das tumultuosas e híbridas redes humanas resultantes da queda ‘aparente’ do colonialismo imperial.

Palavras-chave: Colonialismo.

Sociedade;

Dancehall;

Rede;

Acto;

Evento,

Actor,

‘Above all, I see a need to recognize that what we have called societies are disordered systems, further characterized by an absence of closure.’ Fredrik Barth

I. Introdução

No decorrer das próximas palavras irão tecer-se algumas considerações sobre como os modelos reminiscentes da sociologia Durkheimiana parecem não mais ser capazes de abarcar as questões do mundo plural que temos ‘hoje em mãos’. Um mundo completamente distinto digase, do de Durkheim, e mesmo do de seu grande e reformulador ‘discípulo intelectual’ Marcel Mauss. Um mundo que viu nascer das cinzas coloniais um infindável número de ‘EstadosNação’ em nada passíveis a paralelismos com os tradicionais e modeladores Estados-Nação ocidentais, os mesmos a que Barth conferiu a ilusão de Durkheim na sua concepção ‘fantasiosa’ de um modelo sociológico configurado na premissa de uma humanidade perfeitamente dividida e colectivamente individualizada, construída por unidades próprias e estáveis, fossem a linguagem, a ‘cultura’, a constituição política, ou outras; egoisticamente guardadas e protegidas por uma fronteira murada inultrapassável. Barth apela ao preciso oposto do atrás referido. Enfatiza o carácter volátil e desordenado das ‘sociedades’, o multiculturalismo, o cepticismo perante os valores morais e a contínua adaptação a novos terrenos e circunstâncias como a verdadeira e derradeira norma (Barth, 1992). No seguimento do seu pensamento, revela-nos algo ainda mais problemático, nomeadamente no que concerne ao papel da antropologia na estabilização conceptual do conceito de ‘sociedade’. Barth questiona de forma clara e sóbria a forma como os antropólogos se têm apropriado deste conceito axiomático para legitimar todo e qualquer objecto de estudo, isto é, como se já não fosse conveniente o suficiente aos antropólogos e etnólogos usar o chavão ‘sociedade’ nas suas constantes e infindáveis dissertações comparativistas, englobam também nele o espectro imutável onde todo e qualquer objecto passível de estudo se constrói, manifesta e desenlaça. A ‘sociedade’, neste sentido, constitui um conceito que para além de se justificar a si próprio, justifica também tudo o que nele for, estiver, ou seja encarnado. Forma assim uma assunção holística passível de ser aplicada conforme conveniências “they [infelicitous habits of language and conception] create the justification for a simplistic separation of endogenous and exogenous processes, and they subtly insinuate the nation-state as the implicit model for all organized human sociability.” (Barth, 1992, pg.18). Mas a desconstrução de Barth não fica por aqui. De forma muito clara e eloquente, propõe-nos no seu Towards Greater Naturalism in Conceptualizing Societies uma série de apreciações e enunciações que ressoam demasiado óbvias para serem, ainda hoje, apenas e 1

meramente consideradas. Uma dessas apreciações prende-se com a forma como as nossas relações interpessoais são encaradas e categorizadas por uma miríade de actores e agências com quem não contactamos mas que modelam o nosso comportamento, entre as quais se encontram os altos quadros políticos, os sistemas e órgãos de justiça ou os empregados das instituições públicas. Nas suas palavras “The foci of my attention and interests, and thus my activities, are further shaped by untraceable chains of intellectuals and public speakers around the world; and the options and premises for my opinions, decisions, and forging of social relations are delivered by unknown technologies and industrial concerns, buffered by the results of collective bargaining and market forces, and manipulated by mass communications.” (Barth, 1992, pg.19). Quer isto dizer que, se nós fossemos parte integrante de uma das tão célebres ‘sociedades tradicionais’, centrais e privilegiadas pelos antropólogos na sua obsessão pelo ‘outro’ no desenrolar da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, não mais seríamos, ou poderíamos ser, que aquilo que as estruturas pilares dessa mesma ‘sociedade’ nos permitissem ser. Mais uma vez se realça o carácter holístico em que tudo é justificável ‘por’, ou produto ‘de’. Não obstante a preocupação lógica da sociologia clássica em expressar as diferenças entre a ‘sociedade tradicional’ e a ‘sociedade moderna’. Em suma, este conceito de ‘sociedade’ como agregado de relações, não pode, nem na mais optimística das leituras, ser representativo ou responsável pela complexa rede de significados e conexões acima implícitos. Da mesma forma, considerar ‘sociedade’ como o cumular esquemático de um todo constituído por partes, prova-se erróneo a vários níveis. Tantos quanto os que encontraríamos na complexa rede de interligações que um indivíduo pode construir ao longo do seu percurso vital. Há uma experiência matemática muito simples, que em parte, ajuda a compreender e sustentar esta ideia de que a constituição e soma das partes, não constrói necessariamente um todo unificado. O Tangram, em teoria, representa a divisão de um quadrado perfeito em diferentes peças geométricas que unidas da forma correcta, constituem o todo. Se um quadrado do qual se fizer um Tangram tivesse as dimensões de 10cm por 10cm, a sua área total seria, matemática efectuada, 100cm2. Mas se somássemos as áreas das diferentes peças que constituem o Tangram, e portanto o quadrado perfeito, que área total iríamos obter? Parece simples a resposta, quase imediata e inata, mas na prática (e na teoria), a área das somas obtidas seria inferior a 100cm2. Porquê? Porque quando dividimos um quadrado em partes, eliminamos com a linha de corte partes infinitesimais da porção total. Ou seja, nenhuma divisão, por mais meticulosa que seja, deixa de eliminar pequenos fragmentos, tão pequenos que são invisíveis e dessa forma, impedem a área de um todo corresponder à área da soma das partes que o constituem. Posto isto, ao pensarmos ‘sociedade’ como um cumular somatório de elementos, ignoramos os espaços que necessariamente se diluem com a fragmentação. Nas palavras de Barth “Indeed, 'society' cannot defensibly be represented by any schema which depicts it as a whole composed of parts. Probably no such hierarchy of nesting parts within wholes will

2

exhaust the social organization of any population (…) If individuals are taken to form the elementary parts, they regularly will prove to hold memberships in groups of a diversity of levels and scales and in groups which transect the boundaries of any designated region (...) The complexities of social organization can neither be bounded in delimited wholes nor ordered in the unitary part-whole hierarchies which the schematism of our terminology invites us to construct.” (Barth, 1992, pg.19). Por último, mas não menos importante, dentro do esquema elaborado por Barth na desconstrução meticulosa do conceito de ‘sociedade’, há que reflectir na homogeneização que tal termo impõe. Da mesma forma que ‘cultura’ ou ‘identidade’ são já abundantemente questionadas pelo carácter quase perverso da homogeneização que impõe e implicam, ‘sociedade’ começa a padecer da mesma ‘anemia’ conceptual. É um termo demasiado restrito e fechado para poder compreender as questões de um mundo que em nada se assemelha ao de Durkheim ou ao de Malinowski. O mundo pós-colonial que colocou em choque tudo o que até então se pretendia e mantinha separado, um mundo sem ‘campo’. Um mundo sem fronteiras concretas (mas muitas invisíveis), onde do caos deixado pelo imperialismo colonial ficaram as incertezas políticas e identitárias, as miscigenações religiosas, os confrontos étnicos e os seres híbridos obrigados a conviver longe das suas ancestralidades, mas muito perto das ainda calcadas amarras coloniais. Um mundo que não mais pode compreender intelectualismos forjados em metais que se esvaneceram que nem combustíveis fósseis. O conceito de ‘sociedade’ já não permite pensar a multitude e a complexidade das relações e conecções humanas e, apropriando-me de Barth, dois professores, ainda que ambos pertencentes a uma categoria - nesta concepção estável e ordenada - de uma rede mais ampla, dificilmente partilhariam as mesmas opiniões, os mesmos espaços, ou os mesmos hobbies. Delineado o mapa sobre o qual a segunda parte desta exploração se dissertará, ficam a cargo de Adam Kuper as palavras sumárias “There are no bounded societies any longer. Few people can still enjoy the comfort of a single, unified and coherent view of life.” (Kuper, 1992, pg.6). ‘People who don’t suffer like us can’t perform that sound – it’s a sufferer’s sound. No middleclass Jamaicans can play the music we play; it’s a ghetto sound that we play out of instruments, real suffering ghetto sound. It sound happy, yes, for it’s relief!’ Rico Rodriguez

II. Wake The Town and Tell The People

Com a reflexão introdutória em mente, partimos nesta segunda secção do trabalho para uma exploração empírica que, de formas muito práticas e exemplificativas, nos permite 3

compreender alguns dos aspectos representativos da falácia intelectual que o conceito Durkheimiano de ‘sociedade’ induz nas leituras contemporâneas de questões, precisamente, contemporâneas, como o é o caso enunciado - delimitado em termos territoriais na ilha da Jamaica, na América Central. Uma ilha banhada por águas translúcidas caribenhas, berço de artistas e atletas hoje venerados local e globalmente e, actualmente, um emaranhado humano caótico (reminiscente da era colonial britânica) que se manifesta em elites políticas negromestiças corruptas, corporações económicas hegemónicas, níveis de crime e prostituição nas classes jovens sem igual na história do país, repressão rácica, segregação feminina e homossexual, guetização das minorias, entre outras, numa lista infindável de problemas e questões num país que, na alvorada das independências coloniais, parecia possuir todas as condições para um outro desfecho - nomeadamente pela sua profunda e riquíssima expressão musical (ainda hoje um dos mais importantes sectores económicos da Jamaica). A expressão musical Jamaicana, reforçando a ideia anterior, foi e é, uma das mais prolíferas, inventivas e miscigenadas de todo o globo terrestre, sem comparação par na sua multitude ao longo dos séculos XIX e XX. Produto de uma aglomeração ímpar de comunidades humanas tão díspares quanto: colonizadores britânicos, escravos negros oriundos das mais diversas localizações e etnias africanas, nativos indígenas das ilhas caribenhas, exploradores e aventureiros ludibriados pelo clima e imagens naturais paradisíacas, ‘armadas’ missionárias evangelizadoras, comerciantes e mercadores europeus e asiáticos de origens várias; Kingston, capital jamaicana, desde o período áureo do colonialismo britânico, manifesta-se como um dos mais importantes e circulados portos comerciais de todo o Caribe e portanto, centro único nos encontros e relações possibilitados pela hibridez humana lá presente, como acima se refere. Como adianta Stolzoff, introduzindo os espaços de produção, manifestação e recriação musical, conhecidos na Jamaica por ‘Dancehalls’ - “Jamaican masses have been creating the 'cultural spaces' known as dancehalls for more than two centuries (Erlmann 1991: 18). For instance, it was in the dancehalls of the slavery era that Jamaica's first popular music, known as mento, was created. Mento, like other dancehall creations, was a product of the syncretic blending of African and European cultural forms. As such, mento is a model of the dancehall's potential for generating culture, not only for the black lower class in particular, but for the nation as a whole (…) from slavery until the present, although in different capacities in different eras, dancehall has been as important medium for the black masses to create an alternative social universe of performance, production, and politics.” (Stolzoff, 2000). Partindo da citação acima referida de Stolzoff, é-nos possível deduzir, com a leveza de uma mera citação e enfase na expressão ‘black lower class’, a ideia de que a Jamaica constitui um lugar de desigualdades ainda hoje relacionadas com os estigmas e corpos de conhecimento deixados pelo colonialismo britânico e apropriados pelas elites negro-mestiças que comandam politico-economicamente o país. Nesta dissertação, será enfatizado o papel dos ‘dancehalls’ na 4

construção de lugares e redes de conhecimento das massas jamaicanas para a construção, afirmação e reivindicação de uma identidade moldada em directa confrontação com a das elites europeizadas que, nas palavras de Stolzoff “is not just a response to hegemonic power; it also produces and mediates relations of power. Dancehall is what Pierre Bourdieu (1993) calls a 'field of cultural production'. As such, it is a space where the symbolic distinctions that uphold relations of power in a social hierarchy are made, undone, and reinforced. Because dancehall is a primary idiom through which the black lower class has constructed counterideologies, conteridentities, and counterpractices, it has had a transformative, counterhegemonic potential. Because of this creative power, Bourdieu contends, the 'most disputed frontier of all is the one which separates the field of cultural production and the field of power' (1993: 43).” (Stolzoff, 2000, pg.228). Neste sentido, ir-se-á pensar o ‘dancehall’ jamaicano numa linha metodológica sugerida por Barth no seguimento da sua solene crítica ao estagno conceito de ‘sociedade’. Barth, em alternativa à estabilidade conceptual holística do modelo de ‘sociedade’ nas linhas Durkheimianas, sugere um outro vocabulário, inovador e mais capaz de compreender, processar e representar os dramas relacionais observados, particularmente, em lugares de cariz póscolonial como a Jamaica. Fala-nos de ‘eventos’ e de ‘actos’, referindo-se ao primeiro como uma manifestação morfológica de comportamentos, objectiva na sua apreensão e mensurável analiticamente; e ao segundo como a revelação consciencializada e significada das interpretações pessoais de tal ‘evento’, que se prendem logicamente com os contextos individuais e colectivos de cada pessoa/intérprete (Barth, 1992). Tal vocabulário parece adequar-se ao contexto jamaicano enunciado por Stolzoff na sua exaustiva etnografia, na medida em que, sendo o ‘dancehall’ um “espaço de construção cultural” característico das classes segregadas jamaicanas, as respectivas interpretações e construções de significado inerentes aos produtos ali construídos e inventados vão, naturalmente, flutuar conforme as posições ideológicas, políticas, económicas e de status hierárquico dos intérpretes em questão. Ou seja, para um mesmo evento, construído por actos conscientes e intencionais de propósito (seja de que categoria for), haverá sempre uma multitude de compreensões interpretativas não estáveis, pelo contrário, voláteis, fluídas e em constante reconstrução que ultrapassam a rigidez conceptual homogeneizadora das categorias ditas ‘sociais’. Porque, como adianta Stolzoff “Jamaicans themselves tend to group the range of ideological views about dancehall into two groups: the 'uptown' critics and 'downtown' defenders. While no one denies the significance of this primary opposition, closer observation reveals that these supposedly homogenous social blocs (i.e., uptown [high classes] and downtown [lower classes]) are themselves divided in their orientation toward dancehall. Nevertheless, Jamaicans generally ignore this complexity and talk about the social structure in terms of the binary division between uptown and downtown.” (Stolzoff, 2000, pg.230-231). Esta separação hierárquica entre ‘uptown’ e ‘downtown’ poderia, em termos prantos, ser diferenciada da seguinte forma: ‘uptown’ como representação de todo o 5

espectro humano associado aos símbolos do poder estabelecido, do governo político, do nacionalismo oficial, do cosmopolitismo euro-americano, do cristianismo conservador, e à crença na educação e trabalho árduo, respeito pelas gerações mais velhas e a um desprezo geral pelas classes populacionais inferiores (juntamente com tudo o que delas é inerente); e ‘downtown’, no lado antagónico, como representação metafórica geográfico-territorial das partes pobres e problemáticas das urbes, mas também, por contágio, do interior rural onde o gradiente de cor se aproxima mais do negro ‘carvão’ e a principal actividade económica se manifesta na agricultura industrial e de subsistência. ‘Downtown’ é, portanto, uma categoria associada às massas reprimidas da ‘selva urbana’, aos nacionalismos negros, às culturas afrojamaicanas e Rastafari, às economias informais, à criminalidade, ao respeito pelas gerações mais jovens e ao desprezo generalizado pelas classes políticas e elites ‘culturais’ (Stolzoff, 2000). Um exemplo crasso e revelador de como estas estruturas rígidas não representam, nem podem representar, ideologias homogéneas, prende-se com as academias. As elites académicas, estando neste sistema Weberiano englobadas na categoria ‘uptown’, na práctica manifestam-se pela fractura e imprevisibilidade ideológica. Isto é, grande parte dos esforços de compreensão e elucidação destas problemáticas são postas em acção por universitários académicos que tanto se colocam no espectro consolidador das ideologias reguladoras e estabelecidas, como no espectro oposto, de cariz desconstrutivo e denunciador das injustiças e repressões a que as massas populares estão sujeitas “The dominant classes also resent the efforts of middle-class intellectuals at the university who are defending dancehall on 'academic' grounds rather than condemning it for the danger it presents as a contagion to the society as a whole.” (Stolzoff, 2000, pg.230). E para além desta fractura, há ainda que conjecturar a importante e não olvidável questão de género. É nas universidades jamaicanas (à parte do dancehall, onde o exercício libertador é práctica e expressão corporal) que a mulher constrói, denuncia e reinventa intelectualmente o seu próprio papel na actualidade como exemplificado num excerto que se passa a citar, da académica Carolyn Cooper, investigadora e professora na University of the West Indies “Dancehall is the stage on which women and men act out rituals which release them from historical roles of oppression. Working-class women, released from traditional gender roles, are invited by the dancehall DJ to 'jump about' because their potential can be fulfilled. The evolution of the dancehall sector of the economy in Jamaica provides a model of 'development' which clearly takes into account indigenous cultural norms inspired by African history and tradition and its transformation under slavery.” (Stolzoff, 2000, pg.232). Da mesma forma, pode-se colocar neste patamar ambíguo o papel da imprensa jornalística, que imprime, conforme adventos e ideologias, visões extremamente distintas e variadas dos conflitos políticos e da produção e expressão musical das massas pobres populares “The dominant classes’ perception of lower-class music and dance has remained strikingly consistent from slavery era to the present. Recent journalistic interpretations of dancehall such as 'vulgar', 'raw and brutal', 6

'hideously ugly blast of noise', and 'obscene' echoes Eurocentric interpretations of the slave dance.” (Stolzoff, 2000, pg.229).

For years, the women have quietly digested numerous servings of the most abuse lyrics, like they have done in soca-popular countries without even a squeal. Now, a woman, Lady Saw, emerges putting her own spin on all this sexual amusement and everybody wants to crucify her. Balford Henry

III. Conclusão

Infelizmente, a brevidade desta dissertação não nos permite explorar de uma forma mais completa e expressiva, as dinâmicas e conecções manifestadas no ‘dancehall’ jamaicano para uma mais ampla e completa compreensão das redes relacionais do mundo pós-colonial e, em algumas instâncias, pós-moderno. Como já vimos, o conceito ‘clássico’ de ‘sociedade’ parece não mais fazer jus às realidades prácticas das relações, conecções, redes e agrupamentos humanos e, nesse sentido, não mais parece ser um conceito aberto o suficiente e passível de formular e construir representações fidedignas dessas mesmas realidades. Fredrik Barth, não obstante a sua crítica demolidora, mostra-se, ao contrário da corrente comum nas academias, disponível a formular e inventar novos modelos de pensamento e acção, modelos que nos permitam mais realisticamente perceber o ‘Novo Mundo’ que temos ‘em mãos’ e, modelos pensados, em grande instância, fora dos circuitos binários de construção e desconstrução, que mais não se limitam, nas palavras de Jacques Derrida, a aprisionarem-se neles próprios mantendo vivo o princípio activo comum e circular, o pensamento etnocêntrico. Barth introduznos o ‘actor’ como agente central do ‘acto’ e respectivo ‘evento’. Dissolve a inflexibilidade das classes sociais em redes dinâmicas cuja premissa base assenta na desordem e na instabilidade, na fluidez e na constante alteração de estados interpretativos. Considera o ser humano como o agente de caos e desordem que efectivamente é (com milhares de anos de história para o comprovar), interpolando nesse sentido e nessa instabilidade também as suas crenças, ideologias, interpretações e gestos. O ‘evento-como-acto’ como gerador do célebre ‘Efeito Borboleta’, que por mais ínfimo e insignificante que possa parecer, pode ainda assim causar terramotos ou tempestades em instâncias não directamente conectadas mas apesar de tudo, relacionadas. Assim não fosse e, cria-se exemplo, um homem condenado por corrupção, para sempre e finda a sua pena, será corrupto. A possibilidade de reconstrução, reeducação, transformação, assim negada e impedida. Como refere Robert Proctor num texto de Londa Schiebinger “Ignorance is often not merely the absence of knowledge but the project of 7

protracted cultural struggles. Bodies of ignorance, in turn, can mold the very flesh and blood of real bodies.” (Schiebinger, 1998, pg. 140). Em conclusão, enuncia-se uma breve história do universo musical jamaicano, que elucida claramente a importância em seguir de forma esférica os ‘actores’, pensar os ‘actos’ e reflectir os ‘eventos’ (suas interpretações, consequências, extrapolações, etc.), para uma mais prolífera e fértil concepção do que constitui hoje a vida ‘social’. O caso remete-nos para Lady Saw, figura feminina proeminente no ‘dancehall’ jamaicano, que após uma performance no maior festival de música do país (Sunsplash), em 1994 (e por sinal, a mais aclamada da noite pelos cerca de 10000 espectadores presentes), originou um debate explosivo em torno do seu eterno banimento da região de Montego Bay (no extremo este da ilha) pela práctica pública de actos lascivos altamente sexualizados e por isso condenáveis, que em nada reflectiriam o comum bom senso, pelo contrário, despoletariam enorme desordem, sobre que é ‘ser mulher’ e qual o seu papel. Em contrapartida, tais prácticas são ‘norma comum’ quase generalizada e muito apreciada - quer dentro do espectro Weberiano ‘uptown’, como no ‘downtown’ - das performances musicais de artistas masculinos, onde a mulher representa quase genericamente um objecto de desejo sexual. Relembra-se que tal controvérsia foi gerada pela junta política elitizada que rege a região, que no seu discurso legitimador, basicamente, se apropriou de meia dúzia de queixas formais para justificar um todo claro e muito coerente. O processo desencadeou uma enorme tensão, debates públicos diários na imprensa televisiva, escrita e radiofónica do país, com as diferentes esferas das hierarquias colectivas jamaicanas a evidenciarem nos seus argumentos, os seus maiores receios e desejos. Por um lado, a queda do estabelecido, por outro, o fim do estabelecido. Termina-se esta exploração com uma citação do trabalho de Stolzoff, que coloca lado a lado a figura de Lady Saw e Carlene Smith - a última também personagem integrante no ‘dancehall’, mas cujo comportamento artístico reflecte a representação ‘tipo’ que as elites jamaicanas toleram para a mulher e ‘dela’ esperam. “Perhaps the difference in the way the two female dancehall stars have been treated has to do with deep-seated gender stereotypes. While Carlene challenges many of the societal norms associated with public nudity and the open display of female eroticism, she upholds the cultural pattern that celebrates the objectification of female beauty, the sexualized female body with no voice of her own. Though she is an energetic performer known for her sexually suggestive dance moves, Carlene is essentially a tantalizing object for the male gaze. On the other hand, Lady Saw, whose beauty is a significant part of the way she is marketed to the dancehall audience, in not a passive object of male desire. Rather, she is an active subject who gives voice to her own sexual desire and who thereby threatens gender norms in the society at large.” (Stolzoff, 2000, pg.243).

8

IV. Bibliografia - Barth, Fredrik, 1992, “Towards greater naturalism in conceptualizing societies”, in Kuper, Adam, (ed.) 1992, Conceptualizing Society, Londres, Routledge, pp: 17-33 - Kuper, Adam, 1992, “Introduction”, in Kuper, Adam, (ed.) 1992, Conceptualizing Society, Londres, Routledge, pp: 1-14 - Schiebinguer, Londa, 1998, “Lost Knowledge, Bodies of Ignorance, and the Poverty of Taxonomy as Illustrated by the Curious Fate of Flos Pavonis, an Abortifacient” in Jones, Caroline A. e Galison, Peter (Ed.), Picturing Science, Producing Art, Nova York, Routledge, pp: 125-144. - Stolzoff, Norman (2000), Wake The Town And Tell The People, Dancehall Culture in Jamaica, Durham and London: Duke University Press.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.