“Tá bonito pra chover” Agricultores Experimentadores no Semiárido da Paraíba

May 26, 2017 | Autor: Gabriel Holliver | Categoria: Ontologia, Antropología Rural, Regime De Chuvas, Convivência Com O Semiárido
Share Embed


Descrição do Produto

Gabriel Holliver Souza Costa

“Tá bonito pra chover” Agricultores Experimentadores no Semiárido da Paraíba

Monografia

Monografia apresentada à Banca examinadora de Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio

Orientador: Felipe Sussekind Co-orientadora: Deborah Danowski

Rio de Janeiro Dezembro de 2016

Agradecimentos Talvez este seja o momento de ser estruturalista ortodoxo, se cá estou eu agora apresentando minha monografia creio que isso se deve mais a todo o conjunto de relações que eu estou inscrito do que à mim próprio. Minha família, meus professores, meus amigos daqui e do semiárido são todos responsáveis por uma obra que é mais de autoria coletiva que individual.

Agradeço primeiramente, à minha família, se não fosse toda a estrutura que ela me reservou durante todo este tempo, enchendo minha vida de amor e alegria, conferindo a mim o privilégio de poder dedicar-me exclusivamente as rotinas universitárias, fazendo todo esforço necessário para garantir minha permanência, minha mãe Claudia, meu pai Anael, meu padrasto João, minha madrasta Gilcimar, minha sogra Nalva, meu tio Edson, meus padrinhos Paula e Túlio, e a Gabrielle, meu porto seguro e companheira de caminhada.

Foram cinco anos nesta Universidade que me abrigou desde o momento em que fui aprovado pelo Prouni. A PUC sempre me foi um lugar distante, estudar aqui não passava pela minha cabeça antes de ingressar. Depois de iniciados os estudou continuou longe geograficamente, atravessar a cidade todos os dias para ir as aulas não foi fácil, lembro-me dos choques que sofri no começo, não sabia como portar com meu corpo, de que maneira deveria me expressar (e isso as vezes me causa embaraços até hoje), era um novo mundo que se abria para mim e eu ia descobrindo. No coração da Zona Sul, a universidade da elite carioca nunca foi um ambiente acolhedor para um suburbano, mas felizmente eu estava no Departamento de Ciências Sociais, ali estavam também boa parte daquela gente diferente que não se enquadrava no estereótipo “filho da PUC”.

Agradeço a todos os funcionários da PUC-Rio, e faço aqui um agradecimento especial a todos os funcionários do bandejão, que durante todo esse tempo foram responsáveis por prepararem minha comida com tanto amor. Ao FESP (Fundo Emergencial de Solidariedade PUC-Rio) que durante todo esse tempo financiou minha passagem e minha alimentação nesta universidade, sem o qual eu não teria condições de arcar com essas despesas.

1

Minha turma era maravilhosa, nos corredores nossos veteranos nos chamavam de “os felizes”, todos jovens, cheios de energia, andávamos juntos desbravando as xerox em busca dos textos introdutórios, e os bares atrás de cerveja. Agradeço à Kaua Vasconcelos, Luana Fonseca, Tatiana Araújo, Pedro Braga, Milena Trindade, Everton Sampaio, Natália Guindani, os amigos que me acompanharam no inicio dessa jornada. Hoje, termino com dezenas de grandes amigos que construí ao longo desse tempo e creio, ficarão para todo o resto da vida, agradeço imensamente a todos pelas trocas e ensinamentos. Idjahure Kadiweu, Heitor Zaguetto, Bruno Teixeira, Caio Muniz, Yeza Lojo, Andrezza Pereira, Julia Sá, Guilia Luz, Leandro Marinho, Mariana Lopes, Antonio Pedro de Barros, Alyne Costa, Clara Vale, Daniel Mota, Danielle Ferreira, Igor Valemiel, Joana Willemsens, Juliana Moreira, Sarah Laurindo, Lucas de Deus, Caique Bellato, Dani Vidal, Luis Paulo, Yago Reis, Tabáta Lisboa e Bruno Costa.

Ao Departamento de Ciências Sociais, devo dizer que o mesmo me abrigou como um verdadeiro lar, as secretárias Monica Gomes, Eveline Medeiros e Ana Roxo sempre cheias de amor e solicitas me forneceram toda a estrutura em todas as vezes que precisei, sempre prontas também para puxar a orelha diante de algum desmantelo meu, exerceram para minha formação uma função educadora.

Quando eu aqui cheguei eu pouco sabia, na verdade eu não sabia nada mesmo. E se não fosse a generosidade e paciência de todo o corpo docente com a minha ignorância, talvez eu não tivesse nem terminado a graduação, creio meus professores acreditaram mais em mim do que eu próprio. A proximidade permitiu que de educadores se tornassem amigos. Agradeço a todos os professores do Departamento de Ciências Sociais, em especial à Luiza Leite, Paulo Jorge, Luiz Fernando, Maria Alice, Werneck Vianna Valter Sinder, Tatiana Bacal, Felipe Sussekind, Marcelo Burgos, Marcelo Sorrentino, Maria Isabel, Robert Wegner, e a todos os encontros do Laboratório de Teoria da Cultura.

Agradeço também ao Departamento de Filosofia que foi para mim uma segunda casa, lá que me defrontei com a questão ambiental, e pude realizar graças à Deborah Danowski a pesquisa de Iniciação Científica que deu origem a esta monografia. A ela eu tenho uma extensa dívida pela sua sempre generosidade, atenção com temas de pesquisa que me angustiavam e confiança depositada em mim. Se hoje termino a graduação tendo realizado três meses de trabalho de campo, é ela a principal responsável. Felipe Sussekind sempre ao 2

meu lado tem sido mais que um orientador, junto a Deborah Danowski com todo empenho e dedicação tem me ajudado na construção de um conhecimento necessário para a elaboração do trabalho monográfico. Orlando Calheiros tem sido uma inspiração para continuar no campo acadêmico, suas revisões e críticas durante o processo de escrita da monografia o torna também co-orientador deste trabalho.

Rondinelly é também uma figura marcante nesse processo, depois de eu me encantar com sua palestra no Colóquio Os Mil Nomes de Gaia e desejar conhecer de perto aquelas práticas, sua receptividade com nosso projeto foi enorme, depois quando me recebeu em sua casa junto a sua família, Nalva, Chico, Carpegiany e Rodrigo foi para mim um grande irmão. Durante o campo, Rondinelly foi meu principal interlocutor, eu testava as minhas observações com ele, sempre pronto a ouvir minhas reflexões rudimentares seguidas de longas conversas esclarecedoras.

Todo apoio prestado pela equipe do PROPAC (Ação Social Diocesana de Patos) foi fundamental também para que este trabalho acontecesse, Rosivania Jeronimo foi quem me levou até os agricultores. Quando cheguei ao campo estava se iniciando o projeto Multiplicando saberes com camponeses e camponesas e foi com ela que fiz minhas primeiras expedições. Nesse contexto interdisciplinar pude aprender muito, além de Rosivania, Lielma Xavier, José Vicente, Irenaldo Pereira me ofereceram muitas oportunidades de troca de saberes. José Marcio, Aurino, Ariano, e Allyson Gabriel merecem também um agradecimento especial, grandes amizades que se constituíram durante o campo.

Os agricultores tem sido meus professores desde o momento que os conheci, a forma com que receberam esse cabra do sul são difíceis de descrever, Seu Inácio, Dona Maria, Iranildo, Netinha, Dona Jardas, Seu Mário, Luzia, Cabeludo, Seu Heleno, Dona Branca, Evanilson, Zé, Marizete, Tales, Cabeludo, Fabrício, Seu Judivan, Dona Ivonete, Paulo de Ornilo, Andresa, Dória, Erivan, Seu Levi, Dona Francisca, Jéssica, Mikaelly, só tenho a agradecer por toda a generosidade que tiveram por mim. O que eu tentei realizar aqui foi falar um pouco dessa filosofia presente entre eles, consciente de que suas vidas transcendem em muito essas poucas páginas que escrevi, espero conseguir retribuir toda a generosidade e hospitalidade em que recebi, e ser digno com esses encontros. Este trabalho é sobretudo para vocês. 3

Resumo Holliver. Gabriel. “Tá bonito pra chover” Agricultores Experimentadores no Semiárido da Paraíba. Rio de Janeiro, 2016. 59 p. Monografia – Departamento de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A possibilidade de habitar o semiárido brasileiro e enfrentar os períodos de seca sempre pareceu um desafio colossal ao projeto civilizador. A característica peculiar do bioma da caatinga tem servido muitas vezes como arma para a difusão do mito da escassez que constitui a ideia do combate à seca. Mas seca não se combate, se convive com ela. Em meio a um cenário de desertificação em processo de entropia a partir principalmente do corte de lenha para cerâmica e da pecuária extensiva e o cultivo do algodão no passado agricultores experimentadores resistem aos modelos hegemônicos capitalistas criando, testando e aplicando tecnologias sociais próprias. Com somente três meses de chuva por ano, captam e estocam água suficiente para uso doméstico e agrícola por todo ano. Diante dessa sazonalidade rigorosa, a chuva dita os movimentos e ritmos de todos os agentes locais, os habitantes dali desenvolveram tanto uma ontologia particular conferindo um valor especial a chuva, quanto um conhecimento meteorológico tradicional sobre a mesma, aliado a uma economia política da natureza singular, voltada para os recursos hídricos.

Palavras-Chave Agricultores Experimentadores; Chuva; Convivência com Semiárido; Ontologia

4

Abstract Holliver. Gabriel. "It's good to rain" Experimental Farmers in the Paraíba Semi-Arid. Rio de Janeiro, 2016. 59 p. Monograph - Department of Social Sciences, Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro. The possibility of inhabiting the Brazilian semi-arid and facing periods of drought always seemed a colossal challenge to the civilizing project. The peculiar feature of the caatinga biome has often served as a weapon for spreading the myth of the scarcity that constitutes the idea of combating drought. But dry does not fight, if you live with it. In the midst of a desertification scenario in the process of entropy, mainly from the logging of logs and from the extensive livestock farming and cotton cultivation in the past, experimental farmers resist the hegemonic capitalist models by creating, testing and applying their own social technologies. With only three months of rain per year, they collect and store enough water for domestic and agricultural use every year. In the face of this rigorous seasonality, the rain dictates the movements and rhythms of all local agents, the inhabitants of which developed a particular ontology giving a special value to the rain, as well as a traditional meteorological knowledge about it, allied to a political economy of the singular nature , Focused on water resources.

Keyword: Farmers Experimenters; Rain; Living with Semiarid; Ontology

5

Sumário Resumo................................................4 Introdução............................................7 O Estigma...........................................14 O Mundo em desmantelo....................16 A Cerâmica.........................................17 A Plantation........................................19 O Espectro Eólico..............................24 Os Agricultores..................................28 A Chuva.............................................32 Ecotécnicas do Sertão........................42 O Gado..............................................50 A Vida Brotando...............................53 Bibliografia........................................56

6

Introdução A presente crise ambiental contemporânea pode ser caracterizada por dois conceitos que têm assumido um lugar de destaque nos últimos anos: Antropoceno e Gaia.

O primeiro conceito foi recentemente proposto por cientistas para se referir à nova era geológica, no próximo ano segundo tudo indica, ele deve ser oficializado pela União Internacional de Ciências Geológicas. O grupo de trabalho encarregado de apresentar as evidências das novas marcas na terra defende que ela teria começado mais provavelmente no inicio da década de 1950, período caracterizado pela chamada “Grande Aceleração”. Esse período marca o inicio de uma mudança abrupta seguindo um aumento constante de temperatura global. Elementos radioativos, microplásticos, e alto dióxido de carbono encontrados nas geleiras estão sendo utilizados como prova da influência antrópica preponderante neste processo.

Em 1750, quando foi iniciado o uso do carvão na primeira máquina a vapor industrial, a quantidade de carbono na atmosfera era de 280 partes por milhão. Hoje o carbono na atmosfera já passa de 400 partes por milhão. Em 2009 um grupo de cientistas liderados por Johan Rockstrom desenvolveu um modelo em que estipula nove limites seguros que a natureza nos impõe, e que não podem ser ultrapassados de forma que em caso de rompimento à essas fronteiras, corremos o risco de por fim a atual estabilidade do sistema capaz de comportar as formas de vida que conhecemos. São eles as mudanças climáticas, perda de integridade da biosfera (perda de biodiversidade e extinção de espécies), perda do ozônio estratosférico, acidificação dos oceanos, alteração dos fluxos geoquímicos (nitrogênio e fósforo), mudança no sistema terrestre, água doce para consumo, carga atmosférica de aerossóis, e introdução de novas entidades (como microplásticos e objetos radioativos e nanomateriais).

Em 2015 esse mesmo grupo realizou a atualização deste estudo, constatando que quatro limites já haviam sido excedidos, as mudanças climáticas, a perda de integridade da biosfera, mudança no sistema terrestre e alteração dos ciclos biogeoqúmicos. Os efeitos 7

dessas perdas por sua vez são difíceis de calcular, pois estando o sistema todo conectado, cada alteração retroalimenta e reorganiza todo o sistema, gerando o que se convencionou chamar de feedbacks positivos, o que torna difícil inclusive a projeção das expectativas, já que os ecossistemas sempre reagem de maneira não linear (Rockstrom 2009). Em menos de 300 anos, a humanidade alcançou uma potência mortífera de um asteróide da magnitude do responsável pela extinção dos dinossauros no período cretáceo. Em termos de história profunda do planeta, constata-se que ele já acabou cinco vezes através de uma perda ostensiva de biodiversidade, observando a velocidade e a quantidade de espécies extintas nos últimos anos, cientistas afirmam estarmos vivenciando o sexto acontecimento de fim de mundo (Kolbert 2014).

A submissão de uma enorme quantidade de culturas à ordem do desenvolvimento capitalista industrial, que leva em conta prioritariamente o caráter econômico imediatista, levou a uma exploração desenfreada de recursos naturais, acompanhada da proliferação incessante de tecnologias cada vez mais complexas, em sua maioria à base de combustíveis fósseis. O Ocidente com sua ontologia totalitária não soube respeitar os limites que a natureza nos impõe, sob o plano cartesiano se imaginou uma natureza morta sem agência. E a consequência do naturalismo que estamos todos testemunhando é uma ampla e profunda crise ecológica, acirrada sobretudo pelas mudanças climáticas, de modo que o caminho triunfal seguido pela humanidade parece ser antes um processo de entropia, levando-nos todos a um futuro de escassos recursos naturais e culturais, e portanto a uma diminuição progressiva das diferentes possibilidade de vida. O processo de degradação segue em eventos dispersos, locais em uma “violência lenta”, mas em constante aceleração, onde novos recordes de temperaturas extremas são quebrados frequentemente. Secas, pragas, extinções, guerras se retroalimentam de forma que o futuro designado por Stengers (2015) acerca da “barbárie por vir” se apresenta já empiricamente no presente. (Danowski e Viveiros de Castro, 2014)

O segundo termo, Gaia, inspirado sobretudo na Hipótese ou Teoria de Gaia criada pelos cientistas James Lovelock e Lynn Margulis, tem servido como uma proposta filosófica de antídoto ao primeiro, a partir principalmente das obras de Bruno Latour e Isabelle Stengers sobre o tema. Pensar o planeta a partir de Gaia significa pensar a possibilidade de estabelecer outras formas de relação a partir de uma visão ecocêntrica, com fluxos de energia intensos, na qual cada actante planetário é origem e destino de relações e reações não lineares que se conjugam com as nossas próprias ações numa dinâmica atmosférica frágil. Propõe-se assim 8

uma composição cosmopolítica do humano com os outros seres habitantes do planeta, que permita a emergência de novas formas de interação entre os humanos e o chamado “meio ambiente”, capaz talvez de resistir à extrema simplificação cultural e natural que ameaça desestabilizar Gaia e os viventes e não viventes que a compõem.

Diferente do paradigma do século XX, segundo o qual Lovelock afirmou ser caracterizado pela sua demasia cartesiana, o que pesquisas recentes tem apresentado é uma ciência interessada sobretudo na interação da espécie e no habitar de cada ser, rompendo com o paradigma interior/exterior. Jacob Von Uexkull, aquele ecólogo perdido no passado volta à cena, a partir de autores como Tim Ingold e Bruno Latour que fazem reviver sua teoria sobre a noção de “Umwelt”, segundo cada animal possuí um mundo próprio com suas formas singulares de percepções. Parece cada vez mais indiscernível fazer um corte entre a espécie e o seu meio, pois cada ser para habitar o mundo modifica o ambiente da mesma forma em que ele é modificado para habita-lo em uma dialética onde nenhuma das partes sai incólume à relação. Sendo impossível reduzir a vida à ela própria, só existindo enquanto em relação ao mundo à sua volta. Como lembra Bruno Latour, “o esquisito não é as pessoas ainda crendo no animismo, mas em um tempo de mudanças drásticas ainda há gente pensando em um mundo inanimado” (Latour, 2013) Será necessário reavivar nossa diplomacia cosmológica, reanimando o mundo, e para isso especularemos mundos possíveis com agricultores do semiárido. O Antropoceno aponta para uma nova ferida narcísica na sociedade, esta nova era geológica designa o fim de um espírito de Época em que será necessário reconfigurar a programação e as formas de agir das maquinas e os humanos. Se as ciências naturais realizaram o trabalho de cartografar a conjuntura, descrever, e constatar os efeitos devastadores que a vida humana predominante nos últimos três séculos realizou, colocando em risco a própria espécie, cabe as ciências humanas expandir nossa latitude de novos mundos possíveis, nos devolvendo outra figura de nós mesmos. Um virtual para nós, que já é real para outrem, e por estar no concreto, em uma metafisica da práxis pode ser também real para nós. (Danowski e Viveiros de Castro, 2014).

Buscando compreender experiências que contribuam para essas novas formas de existência possíveis no Antropoceno, e de resistência à radical simplificação que ameaça transformar profundamente nosso mundo,

procuramos analisar as “sociotécnicas” 9

desenvolvidas por agricultores experimentadores da região do semiárido brasileiro da Paraíba e compreender o caráter simbiótico de sua relação com o clima, suas narrativas, sua filosofia e visão de mundo.

A relação de interlocução contemporânea entre saberes científicos e saberes tradicionais vem rompendo com o paradigma clássico da ciência moderna, que pressupunha um distanciamento em relação às praticas tradicionais de conhecimento. Esta relação desfaz também com paradigmas do próprio campo interno de algumas disciplinas, como por exemplo a farmacologia.

Os resultados alcançados pela etnofarmacologia a partir dos

conhecimentos tradicionais tem se mostrado por vezes tão proveitosos quanto aqueles praticados em laboratório, sob a lógica de teste e resultado de diferentes combinações (Carneiro da Cunha 2007).

Ora, esta é uma dimensão fundamental na antropologia. A célebre formulação da ciência do concreto feita por Lévi-Strauss afirma uma simetria entre os saberes científicos e tradicionais, ambos fundados sob uma intelectualidade prática de ordenação do mundo, diferindo somente em suas lógicas epistêmicas. De um lado uma lógica conceitual de distanciamento, do outro uma lógica perceptual, do sensível. A mesma operação de simetria repercute no perspectivismo ameríndio formulado por Eduardo Viveiros de Castro e Tania S. Lima, agora no campo da própria filosofia, os autores propõem um contraponto entre o pensamento ameríndio e as categorias cognitivas euro-americanas.

A antropologia, portanto, esteve na vanguarda deste movimento científico de dialogo valorização de outras formas de conhecimento e pensamento, incluindo aí pesquisas sobre ecologias rigorosas e percepções aguçadas do meio ambiente por parte de populações tradicionais. Apenas como exemplo do que tem sido feito nessa disciplina, podemos citar os recentes estudos de Mauro Almeida (2013) no Alto Juruá, que mostram como, na ecologia da caça ribeirinha regida pelo pensamento mítico, existe um caráter tão “ecológico e sustentável” quanto o proposto pelo estado da arte da produção sustentável guiada pelo conhecimento científico. Outro exemplo é o trabalho de Renzo Taddei (2006) no sertão brasileiro acerca do desenvolvimento de sofisticadas técnicas locais de previsão climática pelos chamados “profetas da chuva”. Fazendo uso das mais diversas tecnologias, geralmente associadas à observação da natureza (o ciclo reprodutivo de animais) e do espaço (onde as investigações voltam-se para os astros), esses atores locais ocupam um importante papel no planejamento da 10

população, visto que a chuva tem uma centralidade importante no calendário agrícola e a produtividade depende essencialmente dela.

Por fim, acreditamos que a relevância deste estudo não passa tanto pela preservação de um certo tesouro que estaria desde sempre guardado no coração do Brasil, mas antes pela consideração simétrica de saberes e práticas cosmopolíticas em constante atualização, permitindo-nos encontrar uma linha transversal de conhecimento nos saberes tradicionais, que se constituem como vias de descolonização do pensamento em alternativa às categorias euroamericanas de pensamento.

Se o momento de crise gera, a necessidade de novas formas de relação com a natureza, a antropologia pode enriquecer as discussões sobre as necessidades conjunturais presentes, recolocando o problema sob outros termos, a partir do encontro com outras categorias de pensamento, compreendendo formas reais de existência bem sucedidas em caráter ecológico simbiótico com o clima pode então especular novos mundos possíveis para fugir à barbárie.

11

No Vale do Sabugi A ameaça da desertificação Por causa da devastação Gerou negatividade Devido a humanidade Os campos ter desmatado Deixando desanimado O agricultor do Sertão

O agricultor do Sertão

O agricultor tem muita disposição Trabalha com algo pesado Sem precisar ter estudado As vezes doi no coração Por provocar a desertificação Estou falando do machado Deixando desanimado

Quando planta o milho no chão

O agricultor do Sertão

E falta o molhado O terreno fica encascorado Devido a sequidão Murchando a plantação Por não ser aguado Deixando desanimado O agricultor do Sertão

Em resposta a desertificação tem Luzia, Iranildo e Seu Heleno Que a natureza estão protegendo Fazendo a recuperação De toda vegetação Que tinha se acabado Isso não deixa desanimado

Devido a grande extração

O agricultor do Sertão

Por meio desordenado Do mato explorado Para plantar algodão Pondo em crise a região Devido o trabalho inadequado

No Vale das Espinharas No Sertão Nordestino Onde Curral é feito com varas Nasceu o agricultor José Marcelino

Deixando desanimado O agricultor do Sertão

Quando menino viveu um tempo na cidade Só que depois de alguns anos no sítio foi

Toda a população Precisa ser por fruto alimentado Desde o agricultor até o advogado

morar Mesmo passando por muita dificuldade Hoje é dono do seu próprio lar

Embora essa alimentação Gera preocupação Devido alguns alimentos, está envenenado Deixando desanimado

Também nas Espinharas Tem Seu José Benício do Sítio Trincheiras Que planta frutíferas 12

E cria vacas leiteiras

E sim de negação

Com a silagem alimenta sua garroteira

Porém tem seu Cleoberto

Exemplificando a superação

Que é um ser consciente

Mostrando que sua vida guerreira

Trabalhando de modo certo

Só pode ser de “cabra” do Sertão

Preservando o meio ambiente

Embora seu rio seja vitima da poluição

Em vez de usar veneno

A agroecologia é por ele vivenciada

Utiliza cobertura morta

Tentando por fim nessa má ação

Isto é, a sobra do feno

Que pelos outros é provocada

Que serve para adubar a horta

Seu Levi também é vítima das ameaças das irrigações Por ser de formas desordenadas Em vez de ser por encanações E por valetas rebocadas

E não posso esquecer nesses versos, o apicultor Paulo de Ornilo Que também é agricultor E ainda domina poesia com muito estilo

Também tem Judivan e Ivonete que são dois seres adaptados Onde os defensivos naturais Por eles são sempre usados Para proteger suas plantas medicinais Ainda tem os agricultores Luiz, Joaquim e Damiana Que não trabalham com modos perversos Se preocupando com a saúde humana E assim finalizo esses versos

No Vale do Piancó O uso de agrotóxico e a desmatação Não é um modelo franco

Ygo dos Santos Monteiro

13

O ESTIGMA

A possibilidade de habitar o semiárido brasileiro e enfrentar os períodos de seca sempre pareceu um desafio colossal ao projeto civilizador. Sabemos disso desde os relatos de Euclides da Cunha, ao mesmo tempo espantado e encantado com a capacidade de resiliência do sertanejo de sobreviver naquela região “inóspita”, seja pelo seu bioma, seja pela suas histórias de resistência aos modelos de ocupação determinadas pela colonização. A característica peculiar do bioma da caatinga tem servido muitas vezes como arma para a difusão do mito da escassez, como se esta região fosse condenada a viver na miséria a menos que ali chegasse o “desenvolvimento”. Segundo Medeiros (2016), a seca seria, do ponto de vista da colonização, uma desobediência natural que deve ser extinguida. E não faltam exemplos de programas desenvolvimentistas implementados pelo Estado nacional brasileiro e o capitalismo industrial ao longo da história da região, guiados por uma visão tecnicista, tais como a imposição do cultivo de espécies exógenas voltadas à exportação, através do regime conhecido como plantation, as barragens no leito do Rio São Francisco para captação de energia, ou o plano de transposição do mesmo para irrigação de monoculturas, ou ainda a construção de estradas como a Transnordestina, acrescidos sempre de loteamentos de terras às margens das rodovias ou mesmo a ocupação do espaço rural para a produção de energia eólica arrendando territórios férteis e impedindo o cultivo nestes espaços. Esse processo se dá continuamente ao longo da história por meio de grandes intervenções, sob o modo da violência intensiva aplicada à ecologia local, e de alteração significativa da paisagem. Nessas intervenções, em geral mal sucedidas, são investidas grandes somas de recursos, concentrados na forma de projetos extraordinários que supostamente irão resolver a questão da seca, solução esta que falha a todo momento, não conseguindo sanar o que as autoridades chamam de “problema da região” (Silva, 2003; Malvezzi, 2007). Esta articulação constitui a ideia do combate à seca, verdadeira máquina semiótica que agencia por vez sua própria indústria, produzindo falsos remédios para um falso “problema” inexorável que é a estiagem climática da região, deixando de lado a endêmica questão da concentração de terras, de forma que é mantida a estrutura desigual da região e a manutenção

14

do poder local. Mas não se combate à seca, se convive com ela.2

Durante meu trabalho de campo, quando conheci dezenas de agricultores espalhados pelo médio sertão paraibano, pude observar a presença da máquina semiótica colonizadora, expressa, entre outras coisas, no “senso comum” de que o pequeno agricultor é figura do passado. A flecha do tempo incide sobre as gerações jovens incentivando-as a deixar o sertão e ir ganhar a vida na cidade moderna; os jovens filhos de agricultores das gerações mais novas em diversos casos parecem não ter uma identificação com aquele espaço da sociedade, e muitas vezes preferem trabalhar como serventes nas roças de um latifundiário a cultivarem sua própria safra e serem agricultores autônomos, ou ainda em muitos casos são levados a buscar um meio de vida fora do campo, o que gera como consequência o êxodo rural. No entanto, há famílias resistentes ao modelo hegemônico, jovens agricultores que seguem reafirmando sua identidade de camponeses, sucedendo a seus pais, aprendendo com as invenções e o conhecimento acumulado de gerações passadas, e bem sucedidos no desenvolvimento de novos conhecimentos e técnicas agroecológicas. Os próprios agricultores atribuem o aumento do preço dos alimentos ao êxodo rural, confirmando a máxima do conhecido jargão que diz que, se cada vez há menos agricultores no campo plantando, não há comida para a cidade se alimentar. E aqueles que migram e vão tentar ganhar a vida na cidade quase sempre têm como destino as favelas. Em uma conversa com um dos agricultores com quem convivi, seu Mario, este me explicou como ocorre esse processo: “todo mundo tem esse sonho de ir para a cidade: Rio de Janeiro, São Paulo, João Pessoa; as pessoas vão para a cidade achando que vão ficar ricas; assim, só roubando! Meu filho foi há dezesseis anos para lá, e só conseguiu comprar uma moto esse ano.” Renzo Taddei (2006) chama a atenção para o modo como os conceitos de modernidade e progresso são usados como máquinas semióticas políticas pelos investidores locais para implementação de projetos, sob o pretexto de se oporem ao atraso e subdesenvolvimento que caracterizariam a agricultura familiar local. Fato é que o semiárido sempre foi habitado3, e ali sempre se conviveu com os períodos alternados de seca e chuva. O ambiente do sertão desafia as formas de existência colonizadoras, e deixa claro que a possibilidade de sobrevivência humana de modo ecologicamente sustentável no semi-árido só 2

Para uma genealogia do debate entre os paradigmas de combate a seca e convívio com o semiárido ver Silva (2003). 3 O próprio nome semiárido é de origem na língua indígena tupi, que significa caa=mata, tinga=branca. (Silva, 2003) 15

é possível através de uma simbiose muito característica e específica com aquele meio ambiente particular (Medeiros 2014). Mas consideremos que esses pequenos agricultores não são figuras do passado, como sugere o paradigma de combate à seca, cujo modelo de ação é o controle e a manipulação de uma natureza passiva em prol unicamente das vontades humanas; mas antes pré-figurações do futuro no Antropoceno, tendo em vista as mudanças climáticas globais, que têm acirrado a aridez de diversos biomas e aumentado as incertezas climáticas que avançam por outras regiões do planeta. Fazer do solo brotar comida será fundamental para a sobrevivência humana, tarefa que se tornará mais árdua com a entropia que se expande e desertifica parte do mundo. Os agricultores do semiárido, mesmo com a irregularidade hídrica de sua região, em simbiose com a vida que habitam, praticam a arte de produzir alimentos em um ambiente difícil.

O MUNDO EM DESMANTELO

O Vale do Sabugi está localizado dentro do núcleo de desertificação do Seridó, a região em estágio mais avançado de desertificação da Paraíba, como consequência das intervenções antrópicas na região, que geraram um processo de entropia, a partir principalmente do corte de lenha para cerâmica e da pecuária extensiva e o cultivo do algodão no passado (Costa, et al 2009). Os agricultores relatam uma série de espécies que vêm se perdendo de geração em geração. Nesse contexto, cada nova criança que chega ao mundo encontra uma biodiversidade menor, com uma paisagem mais simples. Todo filho ouvirá do pais relatos de espécies que ele não terá a oportunidade de conhecer e por sua vez falará a seus filhos sobre aquelas espécies que viu e já não existem mais ali. O jacú (Penelope Jacucaca4), pelo que me foi relatado, foi o primeiro animal a ser extinto da região, uma ave

4 Em virtude da própria ausência de indivíduos dessas espécies, não temos precisão na definição das mesmas. Por isso, por precaução, empregamos aqui a nomenclatura cientifica para nos referir às espécies endêmicas 16

grande e de lenta locomoção, facilmente caçada como alimento. O mesmo aconteceu com o tatu-bola (Tolypeutes tricinctus) e com a onça-parda, conhecida também por suçuarana ou gato-do-mato (Puma Concolor), esta última também caçada impiedosamente devido ao medo que despertava, e o prestigio da exibição de sua pele como signo de coragem. Há no presente várias espécies em vias de extinção, com exemplares que aparecem ali com raridade, como é o caso do papa-capim (Sporophila nigricollis) e do mocó (Kerodon rupestris).

A CERÂMICA

O trabalho na cerâmica5 e na mineração são umas das poucas fontes de emprego na região. Além de remunerarem muito mal seus empregados, entretanto, são também atividades que contribuem à desertificação do ambiente. Trabalhar nestes empregos parece ser uma das "alternativas infernais" (Stengers, 2015) com as quais se deparam os moradores desta zona rural, já que neste contexto os próprios moradores são obrigados a compactuar com a destruição do seu habitat para garantir sua sobrevivência pragmática. Pois é preciso trabalhar para sobreviver, e já que os campos de algodão que no passado era a principal alternativa econômica da região não existem mais, hoje não há muitas outras fontes de renda e empregos disponíveis, só restando a cerâmica e o minério, o tipo de “serviço pesado”, como eles dizem, aquele em que é exigido o máximo de vigor do corpo, sem tempo para descansar, o trabalho mais duro, que enfada o homem. A palavra "enfadar" é empregada por esses agricultores sobretudo com respeito às atividades de serviço pesado, o que pode ser considerado uma forma de construir um corpo forte para se adaptar à rotina exigida. O enfadamento foi, por exemplo, um processo pelo qual meu próprio corpo passou na medida em que estive convivendo e me habituando na rotina do roçado, sentia uma forte dor na musculatura no fim de um dia cansativo, meu corpo ficava moído, segundo a expressão local. Mas trata-se sobretudo de um processo a ser neutralizado com o tempo, ou seja, a expectativa é que a pessoa passe a não mais enfadar e que aguente a sequência em rotina do serviço pesado. Agricultores mais velhos acostumados com o 5

da região da caatinga que estão catalogadas como espécies em extinção. A cerâmica a que me refiro aqui se dedica especialmente à indústria de produção de tijolos e telhas. 17

cotidiano de práticas do campo diziam não ficarem mais enfadados, e contavam sucessivos tipos de serviços pesados que já realizaram no passado para justificar o vigor no presente. O trabalho na cerâmica, na mineração quebrando pedras, ou nos campos de algodão e pastoreio de bois de latifundiários eram sempre evocados como argumento de autoridade incontestáveis no assunto.

O processo produtivo da cerâmica funciona na região de maneira semi-industrial com forno a lenha, no qual a algaroba (Prosopis juliflora) é a principal fonte de energia e a única legalmente extraída, já que a mesma é considerada exótica na região, embora isso não impeça que sejam queimadas juntas outras madeiras nativas. O maquinário transforma a matéria prima em telha, mas é necessária a mão de obra do trabalhador manual para inserir e retirá-la do forno. Heleno certa vez me disse que “na cerâmica o homem imita a máquina”. A introdução da argila e a retirada da telha devem acompanhar o ritmo veloz imposto pela indústria, É preciso ter agilidade já que a forma monta rápido o produto, o que faz com que neste tipo de serviço tudo seja corrido; segundo contam, não há tempo para conversar, e até para beber água é preciso correr, já que a produção não pode parar. O homem que ali trabalha carrega um enfadamento constante; todos sabem que na cerâmica não existe serviço maneiro. Como ouvi certa vez em uma conversa informal de um vizinho de Heleno, “o cabra passa o dia inteiro no pesado para ganhar R$800,00”. Ainda mais cruel neste serviço é a função de introdução da lenha no fogo para a fabricação, um processo em que os braços são as ferramentas do operário, e no qual o risco de queimaduras é eminente já que as chamas tomam conta do forno e não há proteção alguma para o trabalhador. Claudinho, de apenas 20 anos, já trabalhou com esses dois tipos de serviços pesados. No caso da mineração, o trabalho de servente se resumia em quebrar pedras, e sua ferramenta de trabalho era a marreta. Permaneceu quase um ano empregado, mas foi dispensado quando a mina em que trabalhava foi descoberta pelas autoridades e fechada, já que era ilegal. Tratava-se de uma mina de calcita, empregada principalmente na fabricação de cal para argamassa, e albita, utilizada como matéria-prima de louças, porcelanas, e vidro. A mineração ilegal é uma prática constante na região. Minas são constantemente abertas e fechadas quando descobertas pelas autoridades, embora haja também algumas mineradoras legalizadas.

18

A PLANTATION

Toda a região do médio sertão paraibano foi durante muito tempo celeiro da produção de algodão, o chamado “ouro branco”, principal fonte de renda da região, que alcançou nos anos de 1960 e 1970 o auge de sua produção através do regime de monocultura conhecido como plantation. Com competitividade internacional, a atividade envolvia toda a população (homens, mulheres e crianças) e garantia o emprego e o sustento das famílias. O regime de posse da terra era dominado pelos latifúndios, em que poucas pessoas detinham quase a totalidade das terras disponíveis e agricultáveis, sendo a situação mais comum o chamado regime de meia, em que o dono permitia que famílias ocupassem um pedaço de sua propriedade com a condição que dessem metade de sua produção ao latifundiário. Além de sua pequena produção, estes ocupantes trabalhavam colhendo algodão na imensidão das grandes lavouras dos patrões. Neste caso, ambos estavam atrelados por uma dependência mútua, o latifundiário precisando dos empregados para que trabalhassem em sua propriedade, e os meeiros necessitando de trabalho e de terra. Este sistema agrícola teve origem na expansão europeia possibilitada pelas grandes navegações, pois foram nas colônias do Novo Mundo que ele foi inicialmente aplicado, sendo o sucesso desta técnica crucial para a difusão do processo de conquista das colônias e acumulação primitiva do capital. A plantation propiciou a produção em larga escala, aliando monocultura, trabalho escravo e semeadura de espécies exóticas, possibilitando o comércio intercontinental e a industrialização. Com origem no período escravocrata, o regime da plantation teve que se modificar conforme as exigências da história. A escravidão no Brasil teve fim oficialmente em 1888, e com isso os latifundiários tiveram que reorganizar o trabalho e o valor da mão de obra, mas esta transição foi realizada sem abolir a situação degradante do trabalhado, sempre em péssimas condições. A mesma lógica fundamental da Plantation permanece inalterada no agronegócio contemporâneo, com o uso de mão de obra terceirizada de baixo custo e produção direcionada à exportação. (Tsing, 2015)

Esta relação nos campos de algodão era cercada de conflitos referentes à safra, já que os principais responsáveis pela produção eram quem menos recebia. Enquanto os donos de terra adulteravam as balanças de forma que o peso apontado por ela fosse menor do que o 19

peso real da colheita, os empregados por sua vez misturavam pedras aos sacos de algodão para aumentar o peso da saca na hora da pesagem de forma a compensar o déficit da balança. Embora, pelo tamanho das sacas e pelo peso sentido sobre seus ombros, os catadores de algodão tivessem uma percepção aproximada de quantos quilos haviam colhido e soubessem que estavam sendo roubados, não podiam se desvincular efetivamente do latifúndio, já que suas próprias terras por vezes estavam instaladas dentro das grandes propriedades, o que lhes deixava uma escassa possibilidade de mobilidade, alem do fato de não existirem outras opções de emprego disponíveis na época. Esse tipo de atividade encontra ecos no que diz James Scott (2002) acerca das formas de resistências camponesas, as quais, segundo o autor, embora não busquem ameaçar ou confrontar a estrutura da desigualdade, renegociam as relações assimétricas buscando equalizá-las na esfera cotidiana, sempre de forma anônima e pouco organizada. Segundo Scott: “[A] “beleza” de muitas expressões da resistência camponesa é o fato de frequentemente conferir vantagens imediatas e concretas e, ao mesmo tempo, negar recursos às classes apropriadoras, sem requerer pouca ou nenhuma organização explicita. (Scott, 2002:27) O agrotóxico utilizado nas lavouras de algodão era o folidol, produto químico reconhecidamente “muito forte”, cuja aplicação era realizada sem proteção alguma, sequer luva, bota, máscara, ou qualquer equipamento capaz de mitigar os danos à saúde. Conta Heleno que, quando o folidol era aplicado em um determinado ponto, 3 metros adiante já havia bichos morrendo. Não faltam histórias de vítimas que foram a óbito devido ao uso de produtos químicos na agricultura: o próprio agricultor Levi, que ainda vive, recupera-se de uma doença que o colocou entre a vida e a morte, e afirma ainda hoje não estar recuperado completamente (coisa que talvez nunca aconteça). Heleno contou-me um fato que ocorreu em sua terra e que pode exemplificar a dimensão letal do veneno: existia em seu terreno uma garrafa guardada há mais de dez anos, que por um acidente quebrou-se e acabou entrando em contato com um novilho que se lambuzou no local. Não foi possível salvá-lo nem com remédios e o animal acabou morrendo. Para se desfazer do corpo resolveram enterrá-lo. Uma galinha que ciscou onde foi quebrada a garrafa foi ainda menos resistente, tendo morrido antes mesmo do novilho. A tragédia infelizmente não terminou somente assim: um terceiro animal, desta vez um cachorro, cavou a 20

cova do novilho na tentativa de se alimentar dele, e por fim faleceu também infectado. O fim do ciclo do algodão se deu graças a um besouro conhecido como Bicudo (Anthonomus grandis). A praga, de origem na América Central, devastou plantações em todo o Nordeste brasileiro a partir de meados da década de 1980, pois se tornou resistente aos defensivos químicos utilizados. Enquanto o folidol modificou a relação do Bicudo com o algodão, o próprio bicudo se modificou a fim de se adaptar a esta nova realidade, atacando as flores do algodão, depositando ali suas larvas de forma a causar a desnutrição e a consequente destruição das plantas. Com a chegada do besouro, nunca antes visto na região, a produção do “ouro branco” despencou, o que obrigou os agricultores locais a buscarem outras formas de sustento econômico. Houve ainda por parte da Embrapa tentativas de combater o Bicudo: seja modificando a época de floração da espécie de algodão de forma que não coincidisse com o período de reprodução do inseto, ou na tentativa de desenvolver outro tipo de algodão “colorido”, mais resistente à praga. Mas estes projetos fracassaram, o bicudo descolonizou o Plantation, a agricultura científica que por um tempo se pensou ser capaz de domesticar a natureza terminou domesticada pelo Bicudo. Foi uma ingenuidade pensar que excepcionalmente os humanos detinham o poder de transformação da paisagem. O bicudo em meio às plantações de algodão desarticulou a máquina da agricultura controlada e demonstrou o fracasso dos projetos de dominação da natureza. Este não é um fato isolado. A monocultura como modelo de produção de alimentos tem gerado pragas hiper-resistentes, como foi o caso da vassoura de bruxa (Moniliophtora perniciosa), que assolou as plantações de cacau na Bahia na década de 90. Parafraseando Marx, “os homens fazem a sua história, mas não a fazem como querem”, e não o fazem porque a história dos homens é a história das relações multiespécies, que como um pesadelo nos projetos modernos estão sempre a surpreender e sabotar o antropocentrismo daqueles que acreditavam poder manipular uma natureza morta e inerte A plantation se consolidou como modelo hegemônico no século XIX no momento em que a agricultura se desenvolvia como ciência. Em um contexto de modernização a agricultura padronizada realizada em um espaço ordenado, cuja finalidade era a própria domesticação da natureza, se adequava perfeitamente ao “padrão moderno” da época, atendendo também ao desejo padronizador que o comércio exigia. O capitalismo e a plantation caminharam juntos: colonização, domesticação e dominação, territórios, humanos 21

e natureza. Mas como lembra Tsing: “Sem chances de desenvolver variedades resistentes, uma lavoura atacada pode morrer toda de uma só vez. [...] essas lavouras também sucumbiram a todo tipo de doenças” (Tsing, 2015:188) Este sistema já havia se mostrado suscetível às pragas. A história mencionada por Tsing (2015) sobre as batatas da Irlanda demonstra como a monocultura ocidental criava um ambiente mais propício aos fungos, que ganhavam um verdadeiro banquete e um convite a se reproduzir, diferentemente dos roçados das populações tradicionais sul americanas onde o investimento se fazia na agrobiodiversidade, que apresentavam maior resistência a espécies invasoras, o que por sua vez dificultava o surto demográfico de culturas não desejadas6. (Tsing, 2015) Acompanhando a tendência daquilo que ficou conhecido como Revolução Verde, a introdução de pesticidas no Vale do Sabugi seguiu a ordem da mecanização com intuito progressivo de extrair do solo o máximo de produção com o mínimo de perdas, impedindo que quaisquer outras espécies pudessem interferir na safra. A introdução de defensivos químicos tem relação com o processo de especialização da técnica de plantation, otimizando, ordenando e controlando as espécies daninhas da produção. As próprias espécies, no entanto, realizam suas adaptações às adversidades para sobreviver; elas próprias se adaptam às modificações em seu meio com intuito de perseverar. E foi assim que, demonstrando sua resiliência diante dos defensivos químicos, o Bicudo se tornou imune a eles, podendo desfrutar de extensas plantações de algodão.

A história que contam a maioria dos agricultores a respeito do declínio do algodão diz respeito à força econômica no mercado internacional que o produto brasileiro havia alcançado. Com competitividade global, o algodão produzido nacionalmente estaria desbancando o mercado sintético americano, o que teria levado os EUA a produzirem artificialmente uma praga hiper-resistente com a finalidade de eliminar o algodão nacional da disputa comercial. Em meio à disputa pelo comércio global, o método norte-americano utilizado teria sido a sabotagem como forma de competição para que seu produto saísse vitorioso. Mas a narrativa endossada pela maioria dos cientistas da região diz respeito ao uso 6 Tsing chama atenção para o contraste entre a diversidade das roças com mais de 100 tipos de batatas diferentes das populações nativas Sul americanas e as consequências da busca europeia pela espécie de batata que melhor atendesse a seus interesses. 22

excessivo de agrotóxicos na monocultura. Ou seja, graças à presença constante dos defensivos, e à falta de rotatividade das culturas, o Bicudo teria se adaptado e desenvolvido uma resistência especial a estes. Apesar de exemplos de experiências mal sucedidas como a do algodão, há no interior do Nordeste brasileiro toda uma semiótica ligada ao estigma da falta, do subdesenvolvimento, e da seca, dentro da qual o pequeno agricultor familiar deve ter como referência o modo de produção do latifundiário, devendo cultivar e criar os animais da mesma forma que o grande proprietário de terras. Este imaginário contribui em grande medida para a perda de fé na agricultura por grande parcela das comunidades tradicionais que, ao repetirem em seus pequenos sítios o modelo de agricultura e criação de animais das grandes propriedades, não obtêm o sucesso esperado. Essa semiótica é parte do processo colonizador que continua avançando na região, relacionado ao desejo de aumento da renda e do poder de compra proporcionado pela entrada da lógica monetária capitalista na região. Isso por sua vez gera o anseio pelo dinheiro, estimulado pela entrada no mercado de trabalho, e por conseguinte a busca por melhores oportunidades supostamente existentes nas grandes cidades. Processo esse que continua a sustentar o fenômeno da migração em massa rumo às grandes cidades. Duas grandes histórias unem essas famílias espalhadas por todo o semiárido: uma é ligada à monocultura e ao uso de defensivos químicos em algum momento de seu passado; a outra à migração rumo às cidades em busca de oportunidades. Não conheci sequer uma família da qual não houvesse alguém que saiu do campo atrás de oportunidades nas grandes metrópoles, em especial São Paulo e Rio de Janeiro. Essa migração em massa de nordestinos para as metrópoles penso ter também contribuído para a relação de afeto que se criou no encontro entre eu e os agricultores. Afinal, estava realizando um movimento inverso ao esperado, pois na maioria das vezes o nordestino migra ou gostaria de migrar rumo ao Sul na tentativa de ganhar a vida na cidade grande, na busca pelo ritmo de vida do desenvolvimento, ao passo que ali estava um jovem universitário do Rio de Janeiro, um "cabra" do Sul, no meio do sertão paraibano, com o intuito de aprender com os agricultores sobre sua história, suas práticas agrícolas e sua filosofia de vida. Além de toda a curiosidade por mim e pela minha cultura, minha presença ali parecia despertar um sentimento de prestígio local por conta desse sentido inverso ao movimento de migração.

23

Lévi-Strauss já havia apontado como o exercício da antropologia envolve, mais que a efetivação do encontro com o outro, uma fuga de sí próprio a partir do diálogo que o trabalho de campo permite experimentar. Fato é que o mesmo ocorre com os coletivos antropologizados que não permanecem inócuos à presença do etnógrafo: a partir do encontro com o antropólogo (o outro dos nativos), esses grupos também criam uma forma de elaboração acerca de suas próprias práticas de sentido – um campo frutífero para repensar os estigmas estabelecidos, e a emergência das potências latentes entre eles escondidas sob a semiótica do mito da seca. O efeito da minha presença sobre os agricultores pode despertar uma valorização de suas práticas, pois se tratando de um grupo estigmatizado, minha chegada os levou a refletir sobre a diferenciação do que eles próprios fazem, uma vez que suas experiências chamavam atenção de alguém de longe, que vinha de onde eles queriam estar, mas preferia estar ali, e gostaria de realizar um estudo com eles de forma dialógica, aprendendo com eles, expondo a própria ignorância ao "pegar no pesado", deixando evidente toda minha incapacidade frente àquela forma de viver. É possível inclusive que eu tenha despertado no grupo de jovens do projeto uma pequena quebra dos preconceitos estabelecidos em relação à sua identidade camponesa, animando-os a mexer no roçado novamente, atividade da qual muitos haviam se distanciado. Afinal, eu era da mesma faixa etária que eles mas estava interessado em vivenciar a vida que eles vivem e não valorizam, o que, creio, não deixava de funcionar como um novo espelho para a ideia que eles possuem acerca da de sua própria cultura.7

O ESPECTRO EÓLICO

Mais recentemente, uma nova investida modernizadora coloca mais uma vez em curso o projeto de colonizar o semiárido. Agora sob a ótica “verde” e “ecológica”, a energia eólica promete enfim levar o desenvolvimento ao sertão. Estão em curso o processo de 7

Não desejo aqui exercitar o narcisismo dos efeitos do antropólogo sobre os nativos com os quais aprendeu; mas neste caso se trata especialmente de uma reflexão sugerida por Rosivania Jeronimo que na ocasião coordenava o projeto, após ler alguns rascunhos de meu trabalho ainda em execução, me fez essa sugestão com base em sua experiência de contato junto a eles, especialmente como coordenadora do projeto. 24

arrendamento e testes acerca da viabilidade da produção de energia a partir de usinas eólicas, aproveitando os fortes ventos que sopram na região. Para conseguir convencer os agricultores a serem arrendatários a empresa que se instala decidiu contratar o presidente da Associação dos Agricultores de São José do Sabugi, pessoa com conhecimento, influência na zona rural, como negociador.8 Esta forma de captura impediu qualquer possibilidade de articulação de resistência em larga escala, deixando a maioria dos agricultores passivos neste contexto. Certa tarde, estando eu na casa de meus amigos, chegou um homem numa moto com um cheque no valor de R$160,00. Era a anuidade que meu amigo arrendatário havia recebido. Ele achou pouco o valor, evidentemente, mas não reclamou. Nem sabia me explicar o que exatamente tinha recebido, nem quais as condições do contrato (nem aliás onde exatamente este se encontrava), ou o que a empresa poderia fazer em seu sítio. As tentativas de colonização e dominação do espaço por parte dos projetos de desenvolvimento não param de incidir sobre a região, seja pelas técnicas agrícolas, pelo agrotóxico ou por essa sua mais nova face, a energia eólica. Mas, apesar dessas e outras investidas da frente de modernização, os coletivos ali existentes jamais se tornaram completamente modernos, os chefes de família em sua maioria são ágrafos, os acordos são tradicionalmente firmados em torno da palavra, não em torno da tinta da caneta pintada no papel. Apenas a forma Estado como mediador das relações econômicas lhes impõe esta forma específica de transação. Com efeito, o modelo do contrato não faz parte de sua forma de existência, não obstante sejam obrigados a entrar neste regime, e firmar negócios em folhas e assinaturas. Quando lhes perguntei sobre quais as intervenções que eles imaginavam que seriam realizadas na paisagem, eles não conseguiam responder-me. Parecia algo fora de seu campo de pensamento imaginar torres eólicas de aproximadamente 100 metros se erguendo, centenas ou milhares de trabalhadores chegando para a construção de um campo de produção de energia, sendo necessário para isso a abertura de novas estradas para viabilizar a chegada desse material, pois as que existem hoje não têm capacidade de absorção de caminhões com este porte de carga. Dona Jardas certa vez me contava sobre um de seus medos com a chegada dos campos eólicos e o descompasso entre o ritmo presente e este nova modalidade a se estabelecer ali: “Se não puder mais tirar uma lenha para o fogão, acabou-se o mundo”. Sempre que a conversa sobre a implantação dos campos de energia eólica retornava, 8 Este cidadão acaba de se eleger para o próximo mandato como vereador da cidade. 25

havia aqueles otimistas que imaginam poder ganhar algum dinheiro com isso, e outros, talvez mais pessimistas, que se negavam a arrendar suas terras, como é o caso de Heleno, que conseguiu criar uma pequena resistência ao arrendamento junto a seus vizinhos. Em uma discussão certa vez na associação de moradores, ficou claro que não se sabia nem se o arrendante poderia realizar o Cadastro Ambiental Rural, o que por conseguinte gerava novas dúvidas em relação à utilização pelos arrendatários do seguro safra, um subsídio destinado aos agricultores para sobreviverem em caso de infortúnios na plantação, e a futura aposentadoria pelo trabalho agrícola. Pois se o agricultor arrenda sua terra a terceiros, além da própria experiência da agricultura que corre perigo, toda a rede de seguridade social na qual ele se insere através da categoria “agricultor” pode ser perdida. Não consegui ver os contratos a partir dos agricultores, mas a partir de outras fontes pude ter acesso a um documento modelo da empresa Renova Energia S.A.. Alguns pontos merecem destaque, por nos darem um panorama do que está em jogo neste processo obscuro e pouco inteligível para os agricultores9: O arrendamento por parte da empresa garante a ela o uso da superfície, solo, subsolo e espaço aéreo da propriedade para fazer o cabeamento subterrâneo e aéreo, bem como para viabilizar as vias de acesso. De início, os contratos são firmados para que seja possível a realização de uma fase de estudo de viabilidade durante 10 anos, podendo o arrendatário renovar o contrato mediante notificação. Durante este período, o arrendante recebe R$12,00 por hectare no primeiro ano, R$18,00 no segundo ano e R$24,00 a partir do terceiro ano de contrato, sendo prometida a indenização em caso de perdas na produção rural, embora não estejam descritas as formas de calcular tais danos. Depois dos aerogeradores instalados, aquelas propriedades que os receberão ganharão o valor de R$6.996 anualmente por torre eólica instalada, o que equivale a R$583,00 mensais por torre eólica. Os contratos, por sua vez, possuem vigência de quarenta anos, podendo ser renovados automaticamente, e a rescisão podendo ocorrer em caso de inviabilidade do projeto, falta de licenças ou decreto de falência da empresa, não estando à disposição do arrendante a decisão da mesma – o que demonstra uma assimetria no que diz respeito aos direitos e conflitos de interesses envolvidos no processo. Por fim o contrato impõe uma confidencialidade entre as partes, e, em caso de descumprimento de qualquer cláusula, uma multa de R$20.000.000,00 (vinte milhões de reais) ao infrator. Ao que tudo indica, tal cláusula beneficia somente um dos lados: não parece ser vantajoso para a empresa tornar públicos os termos em que foram 9 Não desejo realizar uma antropologia do direito ou do contrato, mas apenas acrescentar mais uma camada, a dos papéis, nesta controvérsia. 26

firmados os contratos, já que é ela própria a autora do acordo redigido de maneira unilateral. Deixemos claro que, ao fazer essas afirmações, não estamos nos opondo às fontes de energias renováveis, até porque a utilização de energia eólica no semiárido já é hoje uma realidade, porém em outra escala. Iranildo, a partir de um cata-vento, bombeia toda a água da barragem para sua casa a partir desta mesma matriz energética – não sem custos, pois nas proximidades da mesma já é possível ouvir o barulho emitido pela sua válvula de bombeamento. Mas o que está em questão aqui é a própria extensão, a escala do uso dessa tecnologia. A que já vigora nos sítios é efetiva e atende aos interesses locais. Mas uma torre cinco vezes maior geraria um ruído proporcionalmente mais forte, interferindo tanto na vida humana quanto em todo o resto da vida que habita ali, obrigando todos os habitantes, humanos e extra-humanos, a conviver com este som, ou a fugir do mesmo. Ainda que fosse com as melhores das intenções, de atender o máximo possível as demandas de energia em crescente escala, a lógica de grandes complexos geradores é impossível sem o custo, sacrifício e o fim de todo um conjunto de ecossistemas de determinado local. Se a tecnologia atual atende satisfatoriamente às necessidades conjunturais presentes, e ainda é capaz de compor com todo meio ambiente, não há por que se aceitar como necessária essa mudança de ritmo. O processo de modernização e globalização não pode impor sua velocidade como um paradigma. O que a crise ecológica tem demonstrado é, pelo contrário, a necessidade de uma desaceleração geral, e, ao contrário das técnicas de grande escala, a possibilidade de uma fuga da crise parece se dar antes por via das sociotécnicas (Danowski e Viveiros de Castro, 2014), ou ecotécnicas como as chamou Almeida (2007), ou seja, a articulação dos conhecimentos tradicionais e suas formas de usos dos recursos naturais. No caso dos agricultores experimentadores temos como exemplos o cuidado com a chuva (como é o caso das cisternas de captação de água), os fundos rotativos solidários e os roçados trabalhados pelas mãos de um agricultor, à semelhança de um artesão em simbiose com as outras formas de vida que o ajudam a tecer a roça. Uma outra cosmopolítica já existente, propagada de forma fluida através da reciprocidade, mas sempre ameaçada pela simplificação cultural e biológicas gerada pelos grandes projetos.

27

OS AGRICULTORES

Em meio ao cenário de devastação que descrevemos mais acima, agricultores resistem aos modelos hegemônicos capitalistas criando, testando e aplicando tecnologias sociais próprias, garantindo em feiras populares a suficiência econômica para os produtores, fazendo uso de técnicas de manejo agroecológicas, que funcionam sob uma ótica de coabitação dos humanos com o meio ambiente, respeitando e aprendendo com os períodos de seca e chuva, sem impor ao solo culturas para as quais o mesmo não está preparado, provendo alimentos de qualidade, livres de agrotóxicos, aos moradores da região (Medeiros 2014). Em paralelo há ainda um movimento de intercâmbio das tecnologias inventadas pelos agricultores e aplicadas em seus sítios. Estas servem de exemplos a outros agricultores, os quais por sua vez as reproduzem com pequenas variações, adaptando-as de acordo com suas próprias necessidades e capacidades. Em meu trabalho de campo convivi com agricultores tradicionais no Médio Sertão da Paraíba, morando sucessivamente com três famílias da região do Vale do Sabugi, localizado no município de São José do Sabugi, especificamente nas zonas rurais das localidades de Riacho da Serra, Penedo e Lagoa do Brejinho. Além disso, pude conhecer dezenas de agricultores espalhados pelo médio sertão paraibano em outras cinco regiões: Vale do Piancó, Vale das Espinharas, Serra do Cariri, Serra do Teixeira e Serra de Princesa. Este vasto espaço geográfico coincide com uma grande diversidade de técnicas e especialidades de formas de convívio com o bioma semi-árido, no campo da captação, armazenamento, e utilização dos recursos hídricos. Esta região do Nordeste é marcada por uma forte sazonalidade climática, com apenas cerca de três meses de chuva em regime irregular com baixa pluviosidade média por ano. Os agricultores do Vale do Sabugi se auto-definem como “agricultores experimentadores”; eles possuem técnicas e especialidades que variam entre si conforme a particularidade de cada território, o tamanho de cada terreno, as qualidades nutricionais de cada solo, o relevo, o clima e a quantidade de água disponível que consegue armazenar – todos são aspectos que importam na seleção da tecnologia mais adequada a cada sítio. Cito 28

como exemplos as experiências das famílias de Zé e Marizete, com sua produção de hortaliças; de Cabeludo, com foco na agropecuária conciliando agrofloresta e criação de animais; de Judivan e Ivonete, que, em uma terra pequena, possuem uma alta biodiversidade produtiva e experimentam as mais variadas possibilidades de combinações de plantas em conjunto com a agricultura, os chamados "consócios"; de Paulo de Orlino, com produção de mel; de Dóia e Erivan, que plantam arroz, e finalmente de Levi e Francisca, que superam os efeitos da violência dos agrotóxicos no corpo, e, por meio dos intercâmbios de experiências com outros agricultores, reinventam sua maneira de plantar, transformando a paisagem de seu sítio. O sistema agroflorestal de Iranildo, por exemplo, é referência na região por suas diferentes formas de captação de água e de irrigação. Coadunado com a criação de animais num sistema simbiótico, o campo de plantio fornece alimento para o gado e as ovelhas, enquanto estes fornecem adubação de excelente qualidade por meio do esterco produzido. Com uma notável capacidade de invenção e criatividade para lidar com as adversidades da terra e do clima singular, Iranildo já praticava a agroecologia em ato antes mesmo de ter contato com este conceito que aprendeu nas interações com as organizações não governamentais que atuam na região, e soube com perspicácia fazer a interseção entre os conhecimentos tradicionais - a respeito dos quais seu pai foi seu principal professor - e o discurso moderno da ecologia e agroecologia. Já em Lagoa do Brejinho, Heleno se tornou um especialista em recuperação de solos, por ter que lidar com um terreno de acentuado relevo e com alto nível de desertificação, acrescido por um passado de monocultura extenuante com uso de agrotóxicos. Nesse sítio, o agricultor realizou uma série de barramentos com pedras para a contenção de terra e nutrientes, sem o que dificilmente ali a agricultura seria possível, já que o terreno íngreme acarreta a perda da matéria orgânica escoada junto à chuva, rachando o solo. As pedras eram material disponível em abundância no terreno, e Heleno utilizou-as como matéria-prima para a construção das pequenas barragens. De outro modo, se permanecessem dispersas pelo campo, essas mesmas pedras dificultariam o enraizamento das árvores. Desse modo, além de proporcionar a contenção de nutrientes, a tecnologia inventada por Heleno faz a limpeza do solo pedregoso, tornando-o propício para o plantio.

29

A família de Luzia em Riacho da Serra foi beneficiada recentemente (no inicio de 2015) pela construção de uma "cisterna calçadão" através do Programa P1+210 (Programa Uma Terra e Duas Águas) implantado pela ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro) em parceria com a Ação Social Diocesana de Patos. Em um terreno onde eram cultivados apenas umbuzeiros já com certa idade e algumas fruteiras no quintal de casa, além dos tradicionais milho e feijão, agora se espalham também dezenas de mudas de árvores frutíferas, como cajueiro, pinha e acerola. Com a quantidade de água agora disponível para o plantio, juntamente com o conhecimento aprendido no contato com outros agricultores sobre técnicas agroflorestais, a família de Luzia transforma a paisagem de seu sítio.

Todos

esses

agricultores

fizeram

parte

de

um

projeto

de

intercâmbio

denominado“Multiplicando saberes com camponeses e camponesas”11, realizado pelo Centro Semear com apoio da Ação Social Diocesana de Patos (PROPAC), ambas instituições que já atuam há anos com os agricultores da região. O projeto teve como objetivo dinamizar as atividades agroecológicas através do intercâmbio de experiências e tecnologias, sistematizado-as em boletins, banners e documentários em vídeo produzidos pelas próprias famílias envolvidas. Diferentemente da prática mais comum, em que um técnico agrícola informa e ensina seu saber ao pequeno agricultor, a ideia do projeto era proporcionar a interação entre as experiências dos próprios agricultores de forma horizontal, com cada um avaliando os sistemas de seus colegas e identificando as potencialidades e os desafios de cada sítio para assim otimizar e replicar as novas tecnologias. Além das práticas de intercâmbios e experimentações agrícolas aprendidas e disseminadas cotidianamente pelos agricultores em seus próprios sítios, os mesmos estão em interação constante com cientistas e técnicos agrícolas, através de visitas e assessoramento agrícola, seja por entidades governamentais como a EMATER/PB ou as organizações não governamentais, especialmente as ligadas à ASA. Nestas relações, eles não deixam suas práticas serem submetidas aos saberes dos técnicos agrônomos, nem se deixam subordinar à autoridade epistemológica dos acadêmicos. Esse encontro, por vezes conflituoso, é cercado de tensões e controvérsias entre os diferentes tipos de saberes, sendo que muitas vezes são os 10 Este programa, proporcionado pela ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro) em parceria com outras organizações locais, neste caso o PROPAC, oferece uma segunda cisterna com capacidade para armazenar 52 mil litros, com finalidade de irrigação na agricultura. 11 O projeto resultou ainda na realização de um vídeo-documentário produzido pelos jovens e que está disponível online. https://www.youtube.com/watch?v=87SxPoNF1w8 Para saber mais: http://www.projetomultiplicandosaberes.org/ 30

próprios técnicos ou cientistas que aprendem com os agricultores as tecnologias experimentadas previamente dentro dos sítios. José Vicente, engenheiro agrônomo que atua no PROPAC e com quem mantive contato, certa vez me disse ter compreendido que, quando um agricultor, diante de uma determinada solução por ele proposta, responde que “não dá para fazer”, é porque realmente essa solução não é possível, e a técnica proposta não teria a efetividade esperada. Rosivania Jeronimo, engenheira florestal também daquela instituição, corrobora o mesmo discurso, tendo aprendido, segundo ela, muito mais em campo, junto aos agricultores, do que na universidade. Em outra ocasião, em uma oficina de defensivos naturais promovida pela EMATER/PB, pude acompanhar a embaraçosa e cômica situação dos técnicos que, enquanto professores, tinham nojo de manipular o esterco com as mãos. Atitude que provocará além de muitas risadas, uma dúvida acerca da legitimidade daquele saber. Lielma Xavier, bióloga, também do PROPAC, ao me explicar sobre como funcionava a epistemologia de conhecimento dos agricultores, dizia que para eles é preciso “ver para crer”. A difusão do conhecimento não se dá através de planos abstratos e teóricos, mas a partir da própria experiência concreta como forma de conhecimento. Se o sujeito não tem capacidade de manipular bem a substância, ou não consegue provar empiricamente o sistema produtivo, a simples teoria não lhes basta.

31

A CHUVA

O médio sertão paraibano se apresenta numa paisagem em quase tudo oposta à cena pintada pelo pensamento hegemônico e amplamente difundida sobre o semiárido brasileiro: uma região de solo rachado e castigado, esqueletos de vacas mortas pela seca e apodrecendo expostas ao sol, lugar pobre em biodiversidade12, dominado pela miséria. A máquina semiótica de produção do sertão como lugar da seca tem sido bem sucedida em seu empreendimento de marginalização da região. Os agricultores, embora reconheçam esse estigma difundido no “sul”, não se identificam com ele. Em nossas conversas, a todo momento me questionavam e me cobravam, no sentido de que eu não endossasse este sensocomum de uma relação indissociável entre semiárido e falta ou seca. Perguntas como “o que você imaginava ver aqui, e o que você viu?” proliferavam em meio às nossas conversas. Eles pareciam querer, e mesmo exigir, que eu contasse uma história não convencional, uma história "menor" do sertão; desejavam que eu falasse sobre as narrativas alternativas que estavam encobertas pelo grande mito da seca, de miséria, do “subdesenvolvido” fadado ao atraso. Contar uma outra história, evidenciando os agentes minoritários ocultados pela narrativa hegemônica, implica ressignificar e dar novas cores à fantasia de pobreza historicamente formulada sobre a região. Diferentemente da divisão climática convencional do ano marcada em quatro estações pelo saber meteorológico, no sertão, como em algumas outras regiões do Brasil, os agricultores marcam a sazonalidade do tempo em apenas duas estações, verão e inverno, ou, em outras palavras, seca e chuva. Ou seja, eles associam o inverno ao período de chuvas, sempre incerto e mutante, que costuma ocorrer entre janeiro e maio. Excetuando-se as flutuações climáticas ao longo dos diferentes anos, em geral, segundo dizem, são apenas três meses de chuva na região, que podem se estiver até cinco meses de chuva em um ano de inverno bom. A média anual pluviométrica na região do Vale do Sabugi gira em torno de 569 milímetros (Costa, et al, 2013), distribuídos especialmente neste período de chuvas intensas 13. O resto do ano é verão, seca. Diante dessa sazonalidade rigorosa, a chuva dita os movimentos 12 Não obstante, tem se constatado o fato da caatinga brasileira ser a região semiárida mais biodiversa do planeta, como afirma o biólogo João Arthur Seyffarth. 13 Além disso, devido à proximidade da linha do equador, a posição perpendicular dos raios solares faz com que a evapotranspiração seja maior que a quantidade de precipitação. 32

e ritmos de todos os agentes locais, que se movem de acordo com o curso das águas vindas do céu. Conviver com a seca exige uma desaceleração em relação à velocidade que o mundo moderno exige. A reprodução dos animais, bem como a floração das plantas, os ciclos de roçado, e os rituais a eles relacionados, além da economia e as disputas políticas, estão todos em consonância com a força gravitacional exercida pelos lentos fluxos rítmicos do acontecimento da chuva nesta região. Diante do céu nublado com perspectiva de chuva, no sertão se diz: “Tá bonito pra chover!” Diferentemente das expressões mais comuns no sudeste, como “o tempo fechou”, ou “o céu está feio”, fazendo alusão a momentos de tensão ou a uma situação de conflito, no sertão a chuva é um evento aguardado com muita esperança. No tempo da chuva é ela o principal assunto; quando chega é recebida com alegria, espera-se um volume grande para ir festejar debaixo da água caindo do céu. As biqueiras dos telhados por onde escorre a água da chuva se transformam em cachoeiras, as crianças brincam de pular sobre as poças d'água que se formam no chão e os barreiros se transformam em piscinas. Bráulio Bessa, poeta do sertão, consegue exprimir esse sentimento em um poema de apenas um verso: “Aqui no sertão, quando o céu chora, a gente acha é graça”14. Essa expectativa diante da chuva não deve ser vista com estranheza; afinal, é preciso que chova para que a vida se mantenha e prospere. Quanto aos tempos secos e às dificuldades de sobreviver sem chuva, o sertão conhece bem essa dura realidade15, e portanto os habitantes dali desenvolveram tanto uma ontologia particular conferindo um valor especial a chuva, quanto um conhecimento meteorológico tradicional sobre a mesma, aliado a uma economia política da natureza singular, voltada para os recursos hídricos. A desatenção do sudeste brasileiro à escassez de água, em razão talvez do índice de pluviosidade elevado característico desta última região, associada à própria lógica moderna que engendra um pensamento desenvolvimentista, acaba se traduzindo em má administração e irresponsabilidade quanto ao uso dos recursos hídricos, situação que ficou muito evidente recentemente por ocasião de uma seca inusitadamente prolongada (devida provavelmente às 14 Tive a ideia de incluir aqui este verso ao ler um post de minha amiga Andresa Pereira no Facebook, em que comentou com esta frase uma foto da chuva caindo no sitio onde ela reside. Agradeço a Andresa pela inspiração. 15 Há uma vasta literatura da seca debruçada sobre este tema, que não tivemos tempo de explorar aqui. A saber, Raquel de Queiroz em O Quinze, Euclides da Cunha, em Os Sertões, Guimarães Rosa, com Grande Sertão: Veredas, Vidas Secas de Graciliano Ramos, entre outros. Além da presença na arte como nas poesias de Patativa do Assaré e nas músicas de Luiz Gonzaga. 33

mudanças climáticas) que atingiu algumas das principais metrópoles brasileiras nos anos de 2014 e 2015. Quanto a isso, há que se admitir que é no semiárido que estão os especialistas neste assunto. Com somente três meses de chuva por ano, os agricultores ali aprendem a captar e a estocar água suficiente para uso doméstico e agrícola por todo o ano, até que um novo período de chuvas possa reabastecer seus estoques. Isso só é possível por um imaginário bem diverso daquele do sudeste, que dá sentido à experiência cotidiana, e fundamenta práticas de captação e utilização dos recursos hídricos no sertão. Aqui nos inspiramos especialmente no tratamento que Mauro Almeida (2013) confere ao conceito de ontologia e seus efeitos sobre a textura do mundo. “Ontologias e encontros pragmáticos não são, contudo, separáveis. Pode-se ver isso já a partir da seguinte consideração: pressupostos ontológicos dão sentido, ou permitem interpretar, encontros pragmáticos, mas vão além de qualquer encontro particular, seja qual for seu número.” (Almeida, 2013:9)

Em julho de 2015, o período em que estive pela primeira vez na região, aconteceu algo inusitado. Embora estivéssemos no verão, chegou uma chuva inesperada que, ainda que em forma de chuvisco, durou alguns dias. Eu fiquei surpreso, pois havia sido avisado que do céu não cairia sequer uma gota neste período, e essa chuva gerou também uma perplexidade geral entre os agricultores,. Quando perguntados sobre o porquê daquele evento, uma resposta muito recorrente entre os meus amigos, com pequenas variações, foi: “Deus disse que quando o homem quiser saber mais que Ele, Ele vai mudar os tempos.” “Ninguém mais entende o tempo, ele está desmantelado”, dizia Heleno. “Essa mudança do clima se dá devido a uma culpa nossa, nós estamos provocando o que está acontecendo”, completava Dóia. No período de chuvas já não chove mais como o esperado, e no período de seca vem a chuva sob forma de fina garoa. A chuva é responsável por organizar a vida. Quando ela mesma se desorganiza, isso gera um desalinhamento completo para todos os agentes acostumados com uma certa ordem de eventos. Os agricultores percebem essas mudanças através das espécies cultivadas que safrejam fora do tempo habitual, como também através da migração de animais terrestres e 34

pássaros que aparecem ou desaparecem fora do período previsto. As previsões climáticas baseadas na observação dos ciclos naturais e floração de plantas têm sido afetadas por aquilo a que os agricultores se referem como a “mudança dos tempos”. A percepção local é análoga àquela da ciência climática, que cada vez menos consegue antecipar os eventos pontuais do clima devido ao que progressivamente vem se reconhecendo como efeitos do Antropoceno16. Referindo-se a este conceito, Bruno Latour recentemente afirmou, de maneira muito próxima aos agricultores do semiárido: “as coisas têm mudado tão rápido que se tornou difícil de acompanhá-las” (Latour 2013). Entre diversas pesquisas publicadas no Brasil acerca da importância, para as comunidades tradicionais, de observações meteorológicas, os trabalhos de Renzo Taddei sobre os “profetas da chuvas” no sertão do Ceará (Taddei 2006, 2007, 2010, 2014) e Suzane Vieira (2015) no alto sertão da Bahia, tiveram bastante influência em minha pesquisa pela sua proximidade etnográfica com a região onde fiz meu trabalho de campo. Sendo a escassez de chuva um acontecimento central em toda essa região do Brasil, os conhecimentos meteorológicos de previsão climática extraídos da observação dos seres da natureza a partir dos indicativos de resiliência das plantas e das atividades dos animais são difundidos em vários locais do semiárido. Os agricultores da região do Vale do Sabugi com quem convivi têm uma tradição semelhante aos profetas da chuva analisados por Taddei, porém com algumas transformações e diferenças. Ali eles se guiam pelo que chamam de "experiências". As experiências são indicativos climáticos baseados em observações do comportamento passado dos agentes da natureza, que por sua vez coincidem com determinados períodos de seca ou chuva que sucederão. Essas técnicas de observação e previsão são transmitidas entre as gerações principalmente por parentesco, os filhos aprendendo com os pais, mas também entre os próprios agricultores, que compartilham suas experiências. Quando, no mês de dezembro, uma árvore seca e cheia de cupins se quebra, isso é um sinal de que a chuva está chegando. Uma aroeira17 que resistiu e chegou até esse mês 16 A constatação de que os humanos se tornaram o principal ator responsável pelas alterações nos processos biofísicos do Sistema Terra (Danowski e Viveiros de Castro 2014), passando assim de meros agentes biológicos a agentes geológicos (Chakrabarty 2013), longe de representar a realização do ideal modernista de triunfo do humano sobre a natureza, constituiu uma verdadeira utopia invertida, com a simplificação inexorável do mundo cultural e biológico planetário. 17 Todos estes indicativos referidos foram recolhidos através de conversas em momentos informais. O pouco 35

carregada de folhas indica o mesmo. As aves também são consideradas adivinhadoras do tempo. Quando o bacurau canta no fim do dia, isso é um indicativo de que o inverno ainda não terminou, ainda há chuva por vir neste período. Já o canto dos “gavião de rapina” significa seca. O ponto de vista das aves sobre a seca tem ressonância também nas artes produzidas no nordeste. A música “Acauã”, sucesso na voz de Luis Gonzaga, de autoria de Zé Dantas, fala do canto solitário da ave durante o tempo da seca, segundo conta o verso: “Acauã vive cantando / Durante o tempo do verão No silêncio das tardes agourando Chamando a seca pro sertão [...] Teu canto é penoso e faz medo Te cala acauã, [...] Mas na tristeza da seca Só se ouve acauã”

Outra técnica bem conhecida é a observação da vida social das formigas, em particular da altitude do terreno onde elas fazem seus ninhos: quanto mais alto o monte de terra onde está a entrada, maior será a quantidade de chuvas prevista, pois as formigas não querem correr o risco de ver suas casas inundadas. A quantidade de bagaço que as mesmas formigas retiram de suas casas para fazer uma nova armazenagem sugere também fortes indicativos: uma grande quantidade demonstra que as formigas estão em processo de limpeza de seus ninhos, pois precisarão de muito espaço para estocar o novo capim do inverno. Da mesma forma, as formigas tanajura avistadas circulando pelo solo são indício de estiagem. Dona Jardas, ao ver em seu quintal a circulação dessas formigas carregando folhas para os ninhos, perdia sua alegria contagiante e esbraveja com a constatação de que “lá vêm três dias de verão.”18 Inácio me disse certa vez, acerca dessas experiências, que “a natureza é um negócio bem feito”. Mas para além de indicar e permitir a previsão de como será o próximo período de chuvas, o que essas técnicas exprimem é também um conhecimento meteorológico por parte dos outros seres da natureza. Com efeito, a meteorologia praticada pelos agricultores se

tempo de campo impossibilitou o recolhimento e o registro cientifico das espécies, o que portanto restringe nossa identificação ao conhecimento tradicional formulado pelos próprios nativos. 18 Para além da marcação de estações meteorológicas, o dualismo das expressões “verão”/”inverno” concerne a própria descrição da paisagem do céu, bem como o tempo dado no sentido do presente, um tempo chuvoso é descrito como “inverno”, enquanto o céu azul, de sol à pino é um dia de “verão” . 36

fundamenta na meteorologia que outros agentes praticam. É observando como os animais e as plantas se preparam para o inverno que os agricultores assim o fazem, de modo que os ritmos humanos acompanham os extra-humanos.19 Através da articulação entre os indicativos e os acontecimentos, repetidas por gerações, uma cadeia de sentidos inesgotável se multiplica, na qual torna-se impossível definir um corte preciso onde terminariam essas “experiências”. Nelas, o ponto de vista de todos os agentes importa, na medida em que todos os agentes têm um ponto de vista próprio acerca da chuva para perseverar no ambiente (Vieira 2013). Entretanto, estas relações parecem ter se complexificado e gerado algumas controvérsias nos últimos anos, em virtude do “tempo desmantelado”. Heleno me disse diversas vezes, nesse sentido, que as previsões baseadas nos indicativos da natureza já não batem mais com as chuvas. A ordem das coisas parece ter desandado, e nem mesmo os animais estão conseguindo prever com igual precisão o inverno por vir. Um exemplo disso era o caso de espécies que normalmente apareceriam somente no final das chuvas, como é o caso da lagarta de fogo que atinge o umbuzeiro, as quais já estavam começando a “dar com força”20 em fevereiro. No cotidiano desses agricultores, frases que fora daquele contexto aparentemente não têm sentido algum guardam conexões para mim até então insuspeitas. A frase “O trovão é o pai da coalhada” me soou muito estranha na primeira vez que a ouvi21. Que relação pode haver entre o trovão, um ruído provocado por uma descarga elétrica sob a atmosfera, e a coalhada, alimento feito a partir do leite, muito consumido e apreciado na região? Entre o trovão que cai e a coalhada que aqueles sertanejos comem há uma série de acontecimentos que se sucedem e se encadeiam em um ritmo particular. A chuva que cai forte provoca o trovão; a grama cresce vigorosa a partir da umidade criada no solo pelas gotas d'água vindas do céu e se transforma em alimento farto e nutritivo para o gado; a produção de leite aumenta; a fartura de alimento chega finalmente à mesa do agricultor, que, com o excedente de leite, 19 Nossa preferência pelo conceito de “extra humanos” em detrimento do conceito de “não humanos” tem fundamento análogo à preferência de Viveiros de Castro pelo conceito de “extramodernos” (2016) uma vez que o prefixo “não” parece caracterizar uma certa ideia evolucionista de falta, da qual gostaríamos de nos distanciar. 20 A expressão local “dar com força” é usada como um intensificador de determinado evento. Por exemplo: “O feijão está dando com força” significa que a safra está vindo em grande quantidade. 21 Esta simples afirmação revela, para além do conhecimento local, a equivocidade que pode existir entre duas culturas que, apesar de falarem a mesma “língua nacional”, possuem um abismo colossal entre suas categorias constitutivas de pensar. Aprender o português do médio sertão foi aprender uma nova língua dentro do próprio país, com novas modulações de palavras, expressões, e um dialeto próprio. As palavras transcendem a fortaleza da língua, e onde quer que estejamos podemos encontrar a dissolução da unidade nacional expressa através dos pequenos dialetos que proliferam. (Bagno, 1999) 37

pode desfrutar do prazer de uma coalhada. A continuidade e os efeitos de todos esses atores revelam a complexa trama23 de alianças não hierárquicas com os extra humanos em que os agricultores estão entrelaçados. Outra afirmação muito difundida entre os agricultores-experimentadores que se conecta a este arcabouço de pensamento é que: “Onde se tira e não se bota, um dia se acaba”. Era comum eu ouvir de um agricultor um lamento semelhante sempre que víamos passar um caminhão carregado de madeira. Muitas vezes, seus próprios vizinhos, alguns dos quais latifundiários, são responsáveis pela desertificação do bioma local, pela extração de matéria-prima em busca de uma maximização das fontes de energia, em sua maioria para a fabricação de cerâmica, tornando o espaço cada vez mais árido, com a retirada de madeira, pedras e barro, num processo francamente entrópico. A todo momento parece existir um confronto ontológico de mundos nesses sucessivos encontros pragmáticos24, de um lado a dialética colonizadora antrópica e "Modernista", e do outro a resistência "Terrana" do sertão, de composição com a Terra25. A posição incerta do território em relação às ameaças do capitalismo desterritorializador é algo que parece angustiar todas as famílias com as quais tive contato, seja diante dos latifúndios que dominam a região e tentam se expandir progressivamente, seja diante da produção de cerâmica e da extração de minério, que, junto com o desmatamento, ao mesmo tempo desertificam as paisagens e impõem aos trabalhadores um regime degradante; ou ainda diante da (mais recente) introdução de centrais de energia eólica, que, com o arrendamento de sítios agrícolas perante uma irrisória compensação monetária e a promessa de levar a modernidade à região, ameaçam por fim a esta forma particular de existência. Duas paisagens se revezam e contrastam entre os períodos de seca e de chuva, em uma sazonalidade rigorosa. Durante a estiagem, a paisagem marrom/cinza dorme sob o sol forte, 23 Aqui nos inspiramos especialmente no conceito de malha de Tim Ingold (2012), quando o autor se refere aos feixes de linhas emaranhadas de movimento e crescimento que se entrelaçam nas diversas relações das diferentes formas de vidas. Segundo o autor, são essas trajetórias que constituem a textura do mundo. 24 Almeida, Mauro, "Caipora e outros conflitos ontológicos". Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.7-28, 2013. 25 Tomo os dois conceitos, "Modernistas" e "Terranos", de Bruno Latour, que, transformando uma ideia presente já em seu clássico Jamais Fomos Modernos (1994), propõe, no contexto da crise ecológica global e do Antropoceno, que reconheçamos a existência hoje de uma guerra de mundos, uma divisão entre o povos dos Humanos (ou Modernos, ou ainda Modernistas) e o povo dos Terranos. Os primeiros acreditam que ainda vivem no Holoceno, pretendendo submeter a Natureza à sua Cultura, sem levar em conta os limites que a própria Terra impõe ao desenvolvimento e ao modo de vida da sociedade industrial capitalista. Enquanto os Terranos, conscientes de estarem vivendo a nova época geológica do Antropoceno, entendem que precisam compor seu mundo com os outros seres viventes, de forma a não subsumi-los aos seus próprios interesses. 38

hiberna, esperando as primeiras gotas d'água para acordar e florir. A chuva acorda a vegetação que a estiagem fez adormecer, e o verde então pode ressurgir na caatinga que perdera suas folhas para resistir à seca. A capacidade de resiliência vegetativa da região impressiona: em menos de quinze dias de chuva a transformação do marrom e do cinza ao verde é radical, a coloração de folhas novas faz a paisagem brilhar; o juazeiro, uma das poucas árvores que resistem à perda de folhas na seca, fica com um verde ainda mais intenso. Essa mesma resiliência encontramos nos agricultores, que precisam conviver com o clima semiárido. Ali não se pode intervir na paisagem sem pensar na disponibilidade de recursos e nos limites que a própria natureza impõe; os humanos não podem acelerar o ritmo lento da natureza, é preciso acompanhar seu movimento. Plantar perseverando, dizem os experimentadores, é o que faz o verdadeiro agricultor, aquele que nem se importa com o que vai gastar para plantar. Não se sabe o futuro do que se está semeando, se no inverno choverá o suficiente até que as plantas safrejem ou se alguma praga virá atrapalhar seu sucesso. Conheci agricultores que há 5 anos semeavam e não conseguiam colher nada na safra de feijão com milho, situação que não fez com que eles esmorecessem e desistissem de semear mais uma vez na esperança de colher alguma coisa. Como bem me explicou Heleno “tem pessoas que parecem agricultores, se parecem com o agricultor em todos os aspectos, se você olhar dirá que ele é um agricultor; mas se planta com o fim do trabalho, de colher para ganhar dinheiro, ele é um micro-agronegócio. A terra dele não é um espaço de sobrevivência, é um espaço comercial. O agricultor velho de verdade planta por prazer”.

Evanilson, filho de Heleno, já havia perdido duas vezes no mesmo ano o roçado de milho e feijão, um consórcio de plantio feito tradicionalmente no inverno que depende da regularidade de chuvas para safrejar. Neste caso, não basta apenas que a chuva caia em bastante quantidade, mas é preciso que ela venha em determinada frequência, de preferência com potência mais fraca, para “aguar” regularmente as plantas e não agredir o solo provocando erosões. Devido à extensão do roçado e à própria escassez de água disponível, a atividade humana de regar se torna inviável: é preciso que o céu mande chuva para sustentar o solo úmido por todo período de cultivo até o período de reprodução, quando se pode recolher as favas de feijão e as espigas de milho.

39

Além disso, todo o regime agrícola regional é pautado pelo calendário religioso. O São João, por exemplo, que é reconhecidamente a festa mais famosa do nordeste (e que hoje faz um sucesso estrondoso com a realização de megaeventos produzidos pelas prefeituras de diversas cidades), é tradicionalmente a festa da colheita. Os festejos de São João, no final de junho, sucedem o período intenso de chuvas, e coincidem principalmente com a safra de feijão e milho. O dia 19 de março, dia de São José, padroeiro dos agricultores, é também aguardado com muita expectativa e celebrado com entusiasmo. Dizem os agricultores que chover nesta data é um sinal de que haverá um bom "inverno", já que se espera que o santo traga a chuva do céu. O Dia de São José marca justamente a entrada no período mais proveitoso do ano para o agricultor, pois se supõe o início do período em que as chuvas ocorrem com mais frequência. É sempre também nas proximidades desta data26 que, de acordo com o saber da ciência meteorológica, ocorre a transição das estações do verão para o outono, sendo o outono a estação caracterizada pelo maior índice de pluviosidade do ano na região do Semi-árido, acompanhada de uma regularidade de chuva. É importante neste caso compreender o ritual situado dentro de um ciclo temporal, no qual as datas religiosas fornecem uma noção concreta do movimento do clima, marcando os eventos e hábitos de processos extra humanos e expressando um saber próprio difundido pelo ritual como forma de conhecimento (Morin de Lima, 2016). Enquanto os agricultores marcam a precipitação do maior período chuvoso através de seu calendário religioso tradicional e são capazes de prever as chuvas com base no movimento dos animais e plantas, a ciência meteorológica interpreta o mesmo fenômeno de alta pluviosidade através da precipitação de massas de ar na atmosfera observadas a partir de imagens de satélite. O saber meteorológico dos agricultores, assim como as experiências e todo o regime cosmopolítico associado à chuva, permite interpretar o mundo segundo uma ontologia própria. O acontecimento ritual de São José, seguido do período de chuvas interpretado via uma religiosidade própria, não é o mesmo acontecimento que a meteorologia denomina de outono. O que está em jogo são duas realidades diferentes em competição, segundo o princípio metodológico de simetria; não se pode privilegiar nenhum dos regimes, embora seja possível neste caso o estabelecimento de algum tipo de acordo pragmático para

26 No ano de 2016 o outono se iniciou oficialmente dia 20 de março na região. 40

se especular um diálogo possível entre eles, já que em muitos aspectos há uma convergência entre ambos (Almeida, 2013).

41

ECOTECNICAS DO SERTÃO

Em recente ensaio sobre imaginações do “fim do mundo”, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro propõem uma espécie de torção no conceito latouriano de tecnologia. Assim como o próprio Bruno Latour rejeita o conceito modernista de uma Ciência única, e propõe em seu lugar uma antropologia das ciências ou práticas científicas diversas, os autores afirmam que a mesma operação deveria ser efetuada no modo de existência que Latour chama, em seu livro Investigación sobre los modos de existencia, de Técnica [TEC]. Diante das ameaças trazidas pelo Antropoceno, aqueles que apostam todas as suas fichas nas “soluções tecnológicas” (technofixes) costumam pensar a Técnica segundo o modelo daquelas inovações apoiadas em uma Ciência centralizada e centralizadora, dependente de enormes incentivos financeiros, estatais ou privados, e servindo à estrutura de poder que se confunde com a que sempre esteve na origem das tecnologias causadoras do aquecimento global e da devastação ambiental (e que hoje se reproduzem nos perigosos projetos de geoengenharia). A essas Técnicas (ou Tecnologias) Modernas, entretanto, opõe-se o que os autores chamam de “tecnologias terranas”, uma espécie de devir minoritário da Técnica, que se agencia antes com o que Isabelle Stengers chamou de slow science do que com a Big Science. Não poderemos viver no Antropoceno com as Técnicas do Holoceno. “Pois há técnicas terranas como há técnicas humanas, diferença que não se reduz, pensamos, à mera questão do comprimento de suas redes. A guerra entre Terranos e Humanos vai se travar essencialmente neste plano, sobretudo quando incluímos na categoria alargada e pluralizada das técnicas toda uma gama de agenciamentos sociotécnicos e de invenções institucionais, alguns muito antigos, outros muito recentes, que vão dos sistemas de parentesco e dos mapas totêmicos dos aborígenes australianos à organização horizontal e à tática defensiva “black Bloc” dos movimentos de protesto altermundialistas, das novas formas de produção, circulação, mobilização e comunicação criadas pela internet (Wark 2004), às organizações de guarda e troca de sementes e cultivares tradicionais em várias zonas de resistência camponesa pelo mundo afora, aos eficientes sistemas de transferência financeira extra42

bancárias do tipo hawala, à arboricultura diferencial dos indígenas amazônicos,

à

experimentadores”

navegação do

estelar

semiárido

polinésia,

brasileiro,

aos a

“agricultores

inovações

hiper-

contemporâneas como o movimento das ecovilas, a psicopolítica do tecnoxamanismo ou as economias descentralizadas das moedas comunitárias do bitcoin e do crowdfunding”. (Danowski e Viveiros de Castro 2014: 148)

Pois

bem,

acreditamos

que

podemos

ver

nas

práticas

dos

agricultores

experimentadores do semiárido nordestino exemplos dessas tecnologias terranas. Trata-se de invenções locais, adaptadas e modificadas de acordo com as possibilidades particulares de cada território, sendo cada agricultor ao mesmo tempo inventor local, agente propagador e aprendiz constante numa rede intensa de associações e trocas.

Uma tecnologia difundida por toda a área rural do sertão da Paraíba são as cisternas de armazenamento de água, inventadas por um agricultor sergipano que trabalhou por anos em São Paulo fazendo piscinas a partir de placas de cimento pré-moldadas. Ao retornar à sua terra natal, teve a ideia de fazer uma piscina a partir das placas, porém tampada de forma que fosse possível captar água de chuva sem que o calor evaporasse o líquido armazenado. Essa invenção simples, a partir de uma gambiarra, garantiu uma qualidade de vida sem igual no campo. As “cisternas de placa” ganharam alguns aprimoramentos desde sua invenção, e passaram a fazer parte da agenda de política pública. O programa “Um milhão de cisternas”, do governo federal em parceria com a Articulação do Semiárido (ASA), já instalou quase 600.000 cisternas de 16 mil litros, e planeja instalar essas cisternas em todas as residências rurais da região com o objetivo de garantir água de qualidade para beber e cozinhar durante o ano todo para todas as famílias. Com baixo custo e sem grandes intervenções no meio ambiente, fugindo da lógica de soluções únicas, e de mega construções que sempre tendem a causar impactos socioambientais, as cisternas de placa, construídas em sistema de mutirão em cerca de apenas uma semana, conseguem acumular, somadas, um volume de água extraordinário, terminando com a dependência de uma fonte única, sem grandes intervenções na paisagem, e garantindo às famílias a autossuficiência hídrica. A cada cisterna instalada um novo mundo se abre para o agricultor. 43

Desde sua implantação, as mulheres não precisam mais andar quilômetros atrás de água para cozinhar. Além disto, a qualidade da água para uso tornou-se muito superior, havendo uma forte diminuição na incidência de infecções bacterianas causadas por água de baixa qualidade, o que era muito comum quando a fonte para cozinhar e beber se limitava aos açudes e barreiros onde os reservatórios estavam expostos a céu aberto e a contaminação de animais e outros dejetos que pudessem ali se alojar.

No quesito armazenamento de água, essa sem dúvida é a tecnologia mais presente nas residências, mas não a única. Os agricultores possuem diversas formas de armazenamento e irrigação, cada qual de acordo com a sua necessidade e com a especificidade de cada terreno. Iranildo, por exemplo, construiu uma barragem subterrânea a partir de uma extensa lona plástica atravessada no subsolo formando uma parede dentro da terra, que impede a dispersão das águas pelos lençóis freáticos. A água ali retida cria uma vazante artificial que mantém a umidade no solo e lhe permite plantar até meados de agosto sem regar. Criou também um sistema de irrigação de agrofloresta que utiliza canos de PVC como condutores e tampas de garrafas pet como gotejadores, nutridos por uma pequena barragem que armazena água para uso tanto na agricultura como na residência nas atividades de higiene doméstica. Já no terreno de Mario Virginio, ao lado do qual sua filha Luzia possui uma casa, são utilizadas duas cisternas de captação de chuva que foram construídas em seu terreno, além da recente "cisterna calçadão" de 52 mil litros para utilização na agricultura. Heleno inventou uma técnica sofisticada de irrigação por meio de potes confeccionados com barro e esterco, o que deixa-o poroso e vazando lentamente, alimentando por cerca de uma semana as plantas, de maneira que não há desperdício por evaporação e há uma economia do trabalho, não sendo necessário aguar sempre. Cinco cisternas diferentes acumulam água em sua terra, totalizando um armazenamento de mais de 100 mil litros de água, incluindo a cisterna tradicional de 16 mil litros e a cisterna calçadão, além ainda de uma cisterna de 32 mil litros feita com as próprias mãos utilizando a forma pré-moldada prevista no programa "Um milhão de cisternas", mas dobrando seu tamanho e sua capacidade de armazenamento, além de um tanque de pedra adaptado no lageiro, uma formação rochosa comum não região e existente em seu sítio, na qual foi necessário somente construir os muros para barrar a água. Quando uma cisterna sangra, Heleno direciona um cano rumo a outra cisterna.

Embora os agricultores possuam todo este leque de experiências e formas de observação da vida contida na paisagem para interpretar o clima, eles não hesitam em marcar 44

a intensidade das chuvas em seus sítios com precisão através dos aparelhos simples que a ciência meteorológica lhes fornece. Quase todas as residências possuem pluviômetro instalado no quintal para medir a precipitação da água em seus sítios. À chuva sempre segue uma rede de compartilhamento de informações entre os vizinhos através de encontros espontâneos, nos quais cada habitante informa ao outro sobre a quantidade de milímetros que caiu em sua área. Dada a extensão do espaço geográfico, há sempre variações pluviométricas de acordo com os territórios, o que não exclui o valor das informações acerca dos índices pluviométricos fornecidos pelo locutor de rádio, mas demonstra a incompletude desses dados, já que estes fornecem apenas a marcação da precipitação em um ponto específico. Essa rede de compartilhamento de informações sobre a chuva fornece um mapa completo de sua incidência nas diferentes regiões.

Há também um outro programa do governo com atuação do exército, que fornece água potável para as residências que assim o desejarem27. Entretanto, a qualidade para consumo humano dessa água é contestada pelos próprios agricultores, devido a seu cheiro forte e coloração. Os agricultores reclamam também dos requisitos para enquadramento no programa, os quais incluem a exclusividade do uso desta cisterna como condição para o recebimento da água fornecida pelas forças armadas, ou seja, proíbe o armazenamento das cisternas com água da chuva, o que impossibilita sua emancipação (mesmo que temporária) e os torna dependentes de assistência. Mas os agricultores também sabem criar formas de burlar as adversidades impostas sem deixar sua vida ser precarizada. Algumas famílias recebem água do caminhão-pipa distribuída pelo exército e a utilizam para diversos fins; a água do exercito é usada no banho, na agricultura, para dar de beber aos animais, enchendo suas cisternas calçadão, exceto para beber. Para uso humano recolhem água das cisternas de seus parentes que moram muito próximos e captam a água da chuva. Não há uma rejeição ao recurso oferecido, mas de forma silenciosa se nega a proposta, conferindo novos fins ao benefício oferecido (ver Medeiros, 2016).

A água para beber necessita de um cuidado especial para manter sua qualidade, Luzia possuí uma técnica de purificação, na qual ela exibe uma garrafa d’água da cisterna cheia ao sol, sob uma lona preta, de maneira que o calor dos raios que incidem sobre a mesma matam

27 As verbas para este programa destinadas ao exército foram cortadas recentemente pelo governo de Michel Temer como forma de contenção de gastos. 45

as microbactérias que podem ser danosas ao corpo humano, sem extinguir completamente os nutrientes benéficos à saúde.

Há ainda as tecnologias sociais. O Fundo Rotativo Solidário foi criado quando o programa de cisternas ainda não havia sido implementado como política pública. Os agricultores de determinada região se reuniam e contribuíam com uma pequena taxa. Com o dinheiro acumulado, a cada mês uma cisterna era construída em sistema de mutirão na casa de um agricultor selecionado mediante sorteio. Entretanto, uma vez o programa tendo sido implantado, o fundo rotativo se transformou e começou a ser realizado com outras finalidades. Tal foi o caso da Associação de Agricultores de Penedo, que realizam o Fundo Rotativo Solidário para a criação de ovelhas, com os participantes circulando animais entre eles a partir de uma ordem definida também por sorteio. O agricultor recebe cinco ovelhas para dar cria, e depois da reprodução repassa a mesma quantidade de filhotes ao próximo agricultor da fila, o qual dará continuidade ao processo repassando novilhos a um terceiro agricultor após as ovelhas recebidas darem suas proles.

Nos arredores das casas, sempre há uma diversidade de plantas, ornamentais alimentícias, de utilização principalmente em temperos, além de pequenas árvores frutíferas que são abastecidas pela reutilização das águas de casa na agricultura. Principalmente as águas da cozinha nunca são dispersadas, são quase sempre conectadas aos jardins através de diferentes técnicas, formando pequenos quintais produtivos. Um exemplo é a distribuição dessas águas através de fileiras de pneus, de forma a dar um segundo uso à água da cozinha, conectando os canos da pia rumo a uma sequência de pneus enfileirados, na distância de aproximadamente dez metros da casa, onde a água é escoada lentamente pelas frestas criadas pelos micro-espaçamentos dos pneus, de modo a gerar uma umidade permanente na terra.28 É comum também a reutilização na irrigação, através do armazenamento em baldes e toneis conectados diretamente a esses canos, para que em seguida essa água seja utilizada na irrigação manual. Desta forma, embora se tenha mais trabalho, por outro lado é possível definir o espaço que se deseja abastecer de nutrientes. Assim se garante a vivacidade das plantas do quintal por todo o ano, beneficiando inclusive 28 Esta técnica foi utilizada primeiramente por Iranildo, mas tem se espalhado entre outros agricultores através das trocas de experiências entre eles. Levi me contou que a água de sua pia escoava a céu aberto no jardim, mas que, logo após escutar de Iranildo sobre os benefícios e a facilidade de implementação daquela tecnologia, ele a reproduziu em seu sitio. 46

árvores de médio porte e mantendo o arredor de casa verde. Mario Virginio e Heleno receberam em 2015, de um programa do governo, uma nova cisterna calçadão cujo objetivo é armazenar uma segunda água para uso agrícola através da captação da chuva, dinamizando os quintais produtivos nos arredores de casa. Ambos estão ampliando suas culturas de subsistência graças à água captada nessas cisternas.

Vemos assim que, frente à natureza indomesticável, os agricultores experimentadores não plantam a quantidade que desejam a partir de um imperativo abstrato e desconectado do lugar onde vivem, nem cultivam as culturas que bem entendem, submetendo a terra à sua vontade. É a quantidade de chuva que cai em determinado período, acrescida da capacidade de armazenamento da mesma, que definirá o tamanho do plantio e as espécies cultivadas. Se os regimes de estiagem são incertos e prolongados, selecionam-se as espécies arbóreas mais resistentes aos longos períodos de baixa pluviosidade. Perder uma árvore ou um animal para a seca é um acontecimento desgraçado, um desmantelo grande, segundo eles dizem, e portanto a escolha de espécies nativas supera a de exógenas, que só são introduzidas quando bem adaptadas ao clima. Iranildo já desistiu de plantar bananas, pois, segundo diz, está cansado de perder espécies pouco resistentes nos períodos de estiagem.

Com efeito, o agricultor só semeia se existir água suficiente para o plantio até o período da colheita. Desta forma, para fazer o roçado é necessário fazer um planejamento levando em conta as chuvas que caíram, a água disponível nos reservatórios de água e o consumo de que essas plantas necessitarão até que safrejem29. Assim, logo após as chuvas, é o período em que a horta está mais cheia de sementes e plantas. À medida que vai se aproximando o mês de dezembro e a água vai chegando ao fim, o tamanho da horta vai esmiuçando, colhe-se o que safrejou, mas se tem a paciência de esperar um novo “inverno” para se plantar de novo. Os roçados dependem dos ritmos da chuva, e se movimentam a partir dela. Cabe ao agricultor ter cuidado com a terra, para escolher com minúcia o que plantou, pois cada gota d'água é valorizada. Assim como o cuidado, a paciência de esperar a chuva e se movimentar segundo suas coordenadas, ambos atributos presentes nessa região que pesquisei, poderão em

29 As decisões e os planejamentos dos agricultores nada têm a ver com cálculos matemáticos complicados, mas sim com sua percepção, baseada na experiência passada da quantidade de volume d'água disponível e do que é possível semear com ele. 47

breve se mostrar imprescindíveis – e não só alí – como formas de resistência ao Antropoceno, por implicarem toda uma outra relação com o tempo e os ritmos da natureza, que vai na contracorrente da temporalidade unidirecional pressuposta pela ideia de progresso e de aceleração do crescimento, característica do pensamento moderno.

Nos arredores de casa, os quintais produtivos dão uma diversidade de frutas, alimentos e temperos utilizados diariamente na cozinha. Embora os agricultores não cheguem à subsistência total, parte das refeições são preparadas com alimentos vindos de sua própria terra; o coentro, por exemplo, ingrediente essencial na culinária local, é também planta sempre presente nos quintais. Além disso, em seus roçados, os agricultores realizam uma série experimentos de cultivo lado a lado de espécies variadas, maximizando o espaço e os nutrientes do solo e realizando uma espécie de simbiose, ou o que chamaríamos convencionalmente, no campo da agronomia, de consócios, juntando duas ou mais espécies diferentes que se combinam em alianças não hierárquicas, sem estabelecer competição entre si. Segundo eles dizem, “uma planta segura a outra”. O exemplo mais conhecido é a técnica de plantar milho junto ao feijão, podendo ainda se inserir no mesmo roçado o jerimum (abóbora), a melancia, e eventualmente até a palma. A primeira finalidade da agricultura para o “agricultor velho”, como já dissemos, é a subsistência. O que sobra eventualmente é comercializado, em geral na própria comunidade, seja diretamente para os próprios vizinhos, ou em feiras populares existentes na região. Na divisão do trabalho local cabe às mulheres cuidar da casa e seus arredores, além da criação de galinhas; aos homens, o trabalho no roçado e a criação de gado. Enquanto estive na casa de Iranildo, por duas vezes assisti o telefone tocar à procura de sua mãe, dona Maria. Ora era o padre da região, interessado em saber se ela tinha para vender galinhas para a realização da festa de São José, ora era a funcionária da farmácia interessada em comprar os ovos de suas galinhas. Já seu filho, Iranildo, recebia as encomendas de polpas de frutas de seus vizinhos diretamente das redes sociais pelo celular, quando não eram direcionadas por ligações.

Na maioria dos casos observados, aliás, a agricultura não é a principal fonte de renda familiar, devido tanto ao tamanho da produção e sua sazonalidade, quanto ao próprio valor financeiro dos alimentos, o que por sua vez reforça a ideia de que a atividade não está relacionada a aspectos econômicos, mas sim a uma certa concepção de cuidado com a terra. Luzia trabalha na casa da prefeita Nelis, e também é merendeira noturna em Riacho da Serra; 48

e tanto Iranildo quanto Heleno trabalham como agentes de saúde em suas respectivas regiões. Embora a agricultura tenha deixado de representar uma estabilidade econômica, o que tem levado a uma proletarização dos trabalhadores rurais, obrigando-os a ingressar no mercado de trabalho, isso não fez com que deixassem de semear e cuidar de seu roçados e fazer do solo a vida brotar.

Quando argumento que o processo de agenciamento é sintrópico, isso quer dizer que nada se perde, ou ao menos que se tenta perder o mínimo; reaproveita-se tudo que é possível, num continuo de vida, de forma a sempre buscar maximizar, não a produção, mas as fontes vivas de energia. Certo dia, quando o capim colhido estava verde demais e a forrageira não conseguia moer por completo, sobraram alguns tocos de capim que os animais não foram capazes de digerir. No dia seguinte lá estavam os tocos de capim reaproveitados, plantados em forma de mudas no sistema agroflorestal (SAF). O esterco da vaca é um potente adubo, e isso já é bem conhecido. Mas neste processo de produção de adubo quem realiza um papel importante são as galinhas, que, ciscando nas fezes, as espalham, acelerando o processo de fermentação e transformando em adubo o que antes era esterco. Assim como produzem o adubo natural, os agricultores experimentadores preferem utilizar soluções que chamam de defensivos naturais em oposição à via dos agrotóxicos. Produzidos com materiais disponíveis nos próprios sítios, esses remédios, que visam combater as pragas, não causam danos nem aos humanos que os aplicam ou que comem depois o alimento, nem ao ecossistema em que são utilizados. Pimenta, cebola, alho, fumo e sabão de coco são alguns dos ingredientes utilizados numa variedade de soluções com diferentes aplicações e objetivos. A homeopatia da natureza combate as pragas sem causar danos e sem custos econômicos aos produtores. Sua finalidade não é o extermínio das espécies invasoras ou em número excessivo, mas apenas espantá-las.

Não que estes agricultores nunca tenham utilizado defensivos químicos. Como já dissemos, isso já aconteceu no passado, e eventualmente pode até ser que diante de uma praga incontornável eles recorram novamente aos agrotóxicos. Fato é que acabaram vítimas daquilo que imaginavam ser remédio. Levi chegou por esse motivo a ficar internado, envenenado entre a vida e a morte; mas, como me contou, graças ao bom Deus se recuperou, embora não completamente. Outros não tiveram a mesma sorte. Vítimas fatais dos agrotóxicos, hoje ao menos suas mortes servem de exemplo aos agricultores experimentadores. 49

Os agricultores experimentadores têm aliás realizado uma verdadeira “transformação molecular”, no sentido que Felix Guattari (1981) confere ao conceito, que se dá a partir de uma relação entre diferentes de uma forma que não é nem horizontal, nem hierárquica, mas transversal. Há em curso uma transformação na linguagem e nos nomes que os camponeses dão às coisas a partir do contato com as organização e o léxico discursivo moderno da agroecologia, sem que isso interfira em suas categorias constitutivas tradicional. O que é comum se ser chamado de cova, por exemplo, buraco onde se cava para enterrar a semente a germinar, ganha agora o nome de “berço”. Dizem que cova é para enterrar defunto, mas nesse buraco (ao contrário) se coloca uma vida que vai germinar e crescer e, portanto isso deve ser chamado de “berço”.

O GADO

Em outra ocasião, o mesmo Levi me disse que “quem tem gado é escravo dele”. De fato, quando estive vivendo junto à família Garcia, pude observar que as tarefas mais extenuantes, mais pesadas e que mais consumiam o tempo da família não diziam respeito ao cuidado com a agricultura. É sobretudo na criação do gado que está presente o tipo de serviço mais pesado, aquele que enfada o homem. Embora este serviço pesado seja ainda muito diferente daquele da cerâmica que já descrevemos, pois ele se dá em eventos esporádicos, alternados por uma série de serviços maneros que implicam na obrigação diária da qual não é possível se ausentar, de desmamar a vaca e alimentá-la. Mas seria equivocado interpretar isso como perda de liberdade individual para dedicar-se aos animais. Como Iranildo me explicou, o gado está a todo momento em nossas vidas, e por isso todos somos escravos do gado, ao menos à mesa. Seja no leite do café da manhã, na manteiga, no queijo, na própria carne consumida por quase todos ali e alhures. É difícil para um vegetariano urbano como eu compreender, mas o sertanejo consegue amar o gado e comê-lo. A diferença é que na cidade o cidadão nem sequer pensa ou compreende o esforço que foi despendido até que o alimento chegasse à sua mesa, ao passo que o gado ocupa uma função central na vida do sertanejo; o criador cuida do gado com amor até que chegue o momento de alimentar-se dele. 50

Em uma rotina típica de serviço manero, o dia na roça começa às 5 da manhã com a ordenha, atividade na qual confesso ter sido um fracasso completo. Tirar leite definitivamente não é uma atividade fácil, exige ao mesmo tempo uma força especifica dos dedos e uma sincronia no movimento. Basta que um dedo esteja posicionado de forma errada, ou que o movimento não seja articulado de maneira correta, para que o leite não seja expelido do corpo da vaca. No sertão são os homens que realizam esse trabalho, e a ordenha é realizada somente uma vez ao dia, pela manhã. Primeiro uma corda é lançada amarrando as patas traseiras da vaca, e seu bezerro livre bebe um pouco de leite; depois ele é retirado das tetas mãe e tem sua cabeça amarrada nas patas dianteiras da vaca leiteira. Sentado em um pequeno banco, com um balde de metal entre as pernas, retiram-se em média 2 a 4 litros, podendo chegar até a 5 litros, de leite de cada vaca em período de aleitamento; depois o bezerro é solto, as pernas da vaca desamarradas e o novilho retorna às suas tetas para continuar a mamar. É necessário ter cuidado para não extenuar a vaca, e também dividir o leite com o novilho, para que ele se alimente bem e cresça forte. Todas as vacas recebem um nome e seus donos conseguem distinguir cada uma de acordo com sua personalidade, se é mais dócil ou mais braba, também através de suas tonalidades de cor e manchas próprias. Esta relação de proximidade com o animal é cultivada através de gerações, sendo comum um pai presentear seu filho ainda bebê com um novilho que crescerá junto com a criança.

Na parte da manhã é preciso ainda colher alimento para as vacas, que, assim como nós, precisam de uma refeição diversificada, saborosa e saudável. Por isso, sempre que possível se conjuga o corte de capim elefante e o sorgo. Na parte da tarde ainda há o trabalho de os moer na forrageira, atividade que consiste em otimizar todo o alimento e garantir que haja um máximo aproveitamento por parte do gado, sem desperdício.

No que tange ao serviço pesado, as atividades que mais enfadam são os eventos esporádicos de armazenamento, como a silagem, a produção de capim, o plantio de capim na barragem. Enquanto a água ainda está na altura da cintura na barragem, espalha-se ali capim retirado de outro terreno ainda em crescimento para que, conforme a área alagada se torne vazante, ele enraíze, e depois de cerca de três meses, quando a barragem já estiver seca , ele esteja grande e vigoroso, pronto para alimentar os animais no tempo da seca. O esforço contido nessas ações aparentemente simples é imenso, ocupando um dia inteiro de trabalho enfadante, além de apresentar vários perigos contidos na própria atividade. Eu mesmo cheguei 51

a sofrer um ataque de formigas conhecidas por alemãs, quando carregava um molho de capim cheio delas; meu braço chegou a inchar por alguns dias devido à suas picadas.. Para entrar com o capim na água é utilizada a técnica da paviola, em que duas madeiras resistentes são enfileiradas de forma paralela, atravessando o capim horizontalmente, e dois homens devem carregá-la barragem adentro até o ponto onde ela será dispersada e ficará boiando na água. A paviola ainda exige um cuidado particular, uma vez que não se pode deixar molhar as toras, o que faria seu peso aumentar significativamente.

Outra técnica utilizada em muitos locais é a silagem. Dóia, um agricultor da região do Vale do Piancó, quando me descrevia a técnica dizia que nem mesmo o técnico da Emater local a conhecia, embora ela seja difundida entre os próprios agricultores como forma de estocagem de alimento. Ela consiste em armazenar toneladas de capim verde e saudável para que, no período de seca, quando todo capim para o gado pastar já tenha se extinguido, ainda se tenha fonte de alimento fresco e de qualidade para que o gado possa se alimentar e se manter saudável até que chegue novamente o período de chuvas e o capim volte a crescer. Este armazenamento só pode ser feito em forma de mutirão, envolvendo cerca de pelo menos cinco pessoas, geralmente durante um dia inteiro de atividade, em que o capim elefante é triturado na forrageira, acumulado, e prensado num monte junto com sal para garantir que o sabor não se perca.. Em seguida se cobre o monte com uma lona, com cuidado para não deixar ar solto entrar na grama forrada e o plástico evitando a perda de nutrientes. Segue-se depois uma cobertura de terra para que não exale o aroma, que é um atrativo para animais, e por último realiza-se o cercamento da estrutura com arame farpado, de maneira a garantir que nenhum animal fuce e estrague a engenharia. Uma vez feita, a silagem garante a frescura do capim por até um ano, e são estocadas uma média de 8 a 16 toneladas, dependendo da quantidade de gado e capim que o agricultor tenha disponível.

Tanto a silagem como o plantio de capim na barragem nos fornecem indicações para compreender a necessidade do trabalho coletivo como única forma de perseverar no roçado. Nos tipos de serviço pesado, situações em que só é possível trabalhar através de mutirão, homens e mulheres participam, pois um corpo só não dá conta da coordenação e da força física exigidas. Em uma divisão sexual do trabalho visivelmente marcada, cabe aos homens o feitio da silagem propriamente dita e às mulheres a produção de alimentos e café para o mutirão. Fica evidente a necessidade de coesão e alianças nos processos de armazenamento de nutrientes para o verão, Esse tipo de relação é também presente no serviço manero, no 52

cotidiano do cuidado com a roça, quando a força enérgica do trabalho em conjunto faz com que os seres individuais potencializem suas forças e não esmoreçam. Seu Heleno lamentava que sua rotina era solitária no roçado quando seu filho Evanilson estava ocupado com algum outro tipo de trabalho e dizia: “se o cabra trabalha sozinho esmorece”. No trabalho em conjunto, a companhia e o humor das piadas contadas na rotina no campo, a chamada “manguação”, fazem o serviço e o tempo passar mais rápido.

A VIDA BROTANDO

Pronto, neste contexto de intensivas experimentações e trocas de conhecimento, os próprios agricultores se definem experimentadores, pelo fato de estarem a todo momento testando novas tecnologias. Seu Inácio comentava que, embora seja analfabeto, ele e seu filho de vez em quando têm uma ideia na cabeça e logo a põem em prática a partir dos materiais disponíveis, numa invenção que possa dar conta da situação de que necessitam naquele caso particular. Eles têm a ideia, pegam as coisas, e inventam na hora. Não a partir de um modelo pronto descrito numa planta, mas através de invenções criativas úteis em situações pragmáticas, que eles nomeiam por “gambiarras”. Um exemplo seria o motor de geladeira quebrado, que, após algumas adaptações inusitadas e improvisadas, se transforma numa bomba de ar de encher pneus. Ou a reciclagem de geladeiras sem uso, que, após uma vedação com Durepox, se converte em uma pequena caixa d'água a ser colocada no roçado, passando a ser uma fonte de água disponível para regar as mudas no campo agrícola.

Mas a potência criativa dos meus amigos do sertão é forte mesmo no sentido de fazer a vida brotar, recuperar o solo infértil e inventar formas de driblar as investidas colonizadoras de destruição da paisagem sem se deixarem ser capturados pela semiótica desenvolvimentista e colonizadora. É verdade que eles eventualmente cedem a essa lógica dada a pressão que elas exercem a todo momento nas subjetividades, e praticam atividades que poderíamos supor serem pouco ecológicas. Não é raro encontrar passarinhos presos em gaiolas. Tampouco são

53

raras as histórias de caçadas virtuosas em que são mortas centenas de arribaçãs. Mas isso não é tudo.

Quando conheci o jovem Talis na comunidade de Cacimba de Areia, espantei-me com um concriz que estava preso numa gaiola em frente à horta. Perguntei a Talis por que aquele pássaro estava preso, e ele me contou que o pássaro não estava conseguindo voar e quase foi pego por um gato que estava a caçá-lo. Colocou-o então na gaiola para que pudesse criar asas e em seguida soltá-lo. Ainda enquanto estávamos visitando sua casa, Talis o soltou e pudemos vê-lo voando livremente. Neste mesmo dia ele ainda me mostrou um preá que havia aparecido em sua casa. Contou-me que já experimentou carne de preá, mas como aquela espécie estava sendo pouco avistada no local, quando os encontrava, ele preferia capturá-los até que produzissem cria, e em seguida soltava toda a família no mato.

Numa outra ocasião, agora na casa de Iranildo Garcia no Vale do Sabugi, enquanto trabalhávamos no viveiro de mudas nos deparamos com alguns escorpiões. Iranildo fez questão de apenas afastá-los de modo que não nos oferecessem perigo. Mas não tardou uma outra ameaça ainda maior à nossa frente no viveiro. Era uma cobra-coral30 que se escondia entre as mudas. Iranildo foi com calma retirando muda a muda, até conseguir espantar a cobra que ali estava. Quando contávamos aos outros de nosso encontro na mata, quase sempre nos perguntavam se nós tínhamos matado a cobra, e, ao ouvirem a resposta negativa, quase sempre os vizinhos de Iranildo diziam que ele deveria ter dado fim a ela. Mas Iranildo ficava irredutível em sua posição de preservação da cobra. Dizia que ela tinha seu papel naquele espaço.

Esses agricultores preservam o meio ambiente por meio de uma percepção local e particular, não por uma generosidade geral e abstrata em relação a seres menores. Compreendem a importância desses agentes ecológicos extra humanos no ecossistema e na dinamização dos processos de vida exercido por eles no ambiente local. Iranildo, com quem tive a oportunidade de aprender e de fato é um grande intelectual local, volta e meia me mostrava orgulhoso uma nova espécie de muda nascendo no chão e dizia: “essa planta aqui não fui eu que plantei; se você cuida da natureza, ela te dá de volta”. É através dessas interações existentes que os agricultores aproveitam a oportunidade de composição com a 30 Não identificamos com certeza se se tratava de uma coral verdadeira, venenosa, pois existe também a chamada coral falsa, muito parecida com aquela, mas que não possui veneno. 54

terra. É produzindo condições e recebendo os benificios do habitar compartilhado com os não humanos que eles constituem uma relação intensa de reciprocidade.

As ecotécnicas do semiárido fazem a vida brotar lentamente, acompanhando o ritmo das chuvas e trazendo de volta tudo aquilo que foi expulso pelas máquinas no antigo regime de plantation da monocultura de algodão. Encontramos nessas práticas moleculares formas de operar uma resistência à ontologia tecnocientífica moderna, que criam e reinventam a sua própria existência a partir de seus próprios regimes de conhecimento e verdade, com seus testes de validação próprios. Em muitos casos essas experiências nos podem ensinar se estivermos dispostos a ouvir, e assim aprender a coexistir com mundos que estão em vias de desaparecer diante da crise ecológica contemporânea.

55

Bibliografia ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. “Caipora e outros conflitos ontológicos” In: Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.7-28, 2013. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Relações e dissenções entre saberes tradicionais e saber científico.” Revista USP, 75 (2007): 76-84. CHAKRABARTY, Dispesh. “The climate of history: four theses”. Critical Inquiry, 35: 97222, 2009. CLASTRES, Pierre. “A Sociedade contra o Estado”. A sociedade Contra o Estado – pesquisas de antropologia política (2003): 201-231 COSTA, Thomaz C. et al. “Análise da degradação da caatinga no núcleo de desertificação do Seridó (RN/PB).” (2009) COSTA, E. B.G. ; SILVA., V. S. ; ALVES., J. J. A. “Um estudo da distribuição pluviométrica da microrregião do Seridó paraibano. “I Workshop Internacional Sobre Água no Semiárido Brasileiro Campina Grande - PB”, 2013. DA CUNHA, Euclides . Os sertões (1984). DANOWSKI, Déborah e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie e Instituto Socioambiental, 2014. DURKHEIM,

Émile,

and

Marcel

Mauss.

"Algumas

formas

primitivas

de

classificação." Durkheim: Sociologia. São Paulo: Ática (1981): 183-203. GRAEBER, David. Fragmentos de uma antropologia anarquista; Tradução Coletivo Protopia S.A. Porto Alegre: Deriva, 2011. INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes antropológicos, v. 18, n. 37, p. 25-44, 2012. KOLBERT, Elizabeth. A sexta extinção: Uma história não natural. Editora Intrinseca, 2015. LATOUR, Bruno. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, v. 57, n.1 p. 11-31, 2014. LATOUR, Bruno. "Facing Gaia." Six lectures on the political theology of nature', Gifford Lectures on Natural Religion (2013): 18-28. LATOUR, Bruno. Investigation sobre los modos de existencia/ Bruno Latour; adaptado por Alcida Bixio -1a ed – Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Paidos, 2013

56

LATOUR, Bruno. “Waiting for Gaia: composing the common world through arts and politics”. Palestra no French Institute, Londres, para inauguração do SPEAP (the Sciences Po program in arts & politics), 2011. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. LÉVI-STRAUSS, Claude. "A ciência do concreto." O pensamento selvagem (1976). MALVEZZI, Roberto. Semiárido, uma visão holística. Brasllia: Confrea, 2007. MEDEIROS, Rondinelly Gomes de. “Um mundo quase árido”. Inédito, texto apresentado no Colóquio Internacional Os mil nomes de Gaia , 2014, Rio de Janeiro. MEDEIROS, Rondinelly Gomes de. “ "Comunidades camponesas no semiárido brasileiro: caminhos de resistência criativa no Antropoceno”. Inédito, texto apresentado no Departamento de Filosofia PUC-Rio, 2016, Rio de Janeiro. MORIM DE LIMA, A.G.

“Agrobiodiversidade, gênero e ritual entre os Krahô”. Apresentação

oral: Povos Indigenas e Comunidades Locais nos Diagnósticos do Painel da Biodiversidade, (2016) SCOTT, James C. “Formas cotidianas da resistência camponesa” Revista Raízes 21.1 (2002): 10-31. SILVA, Roberto Marinho Alves da. “Entre dois paradigmas: combate à seca e convivência com o semi-árido.” Sociedade e Estado: 18.1-2 (2003): 361-385. STEBGERS, Isabelle. “No tempo das catástrofes – resistir à barbárie que se aproxima” Editora Cosac Naify, 2015 TADDEI, Renzo. “Oráculos da chuva em tempos modernos, mídia desenvolvimento econômico e as transformações na identidade social dos profetas do sertão”. In: Karla Martins, org. Profetas da chuva. Fortaleza: Tempo D'Imagem, 2006. TADDEI, Renzo; PFAF, Alex; Broad, Kenneth. Notas sobre a vida social da previsão climática ? Um estudo de caso do Ceará. Plisades, NY/Fortaleza, CE: Internacional Research Institute for Climate and Society/ Fundação Cearense de Meteorologia e Rec Hid, 2007. (Relatório de pesquisa) TADDEI, Renzo; Gamboggi, Ana Laura (org.) Depois que a chuva não veio. Respostas sociais às secas no Nordeste, na Amazônia e no Sul do Brasil. 1ª. ed. Fortaleza: FUNCEME/CIFAS, 2010, v.1 262p. TADDEI, Renzo. "Ser-estar no sertão: capítulos da vida como filosofia viceral". Interface (Botucatu. Online), v. 18, p. 597-607, 2014. 57

TSING, Anna. "Margens Indomáveis: cogumelos como espécies companheiras." Ilha Revista de Antropologia 17.1 (2015): 177-201. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010. VIEIRA, Suzane de Alencar. “O Astro do Tempo e o fim da Era: a crise ecológica e a arte de assuntar entre os quilombolas do Alto Sertão da Bahia”. Interface (Climacom. Online), 2015. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Sobre os modos de existência dos coletivos extramodernos” Projeto de pesquisa (2016) : disponívem em academia.edu

58

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.