Tábua de Cebes: Tábua ou Quadro da Vida Humana

July 14, 2017 | Autor: Manuel J. Gandra | Categoria: Iconologia, Tabula Cebetis, Emblemata
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Cebes Tebano

TÁBUA ou QUADRO DA VIDA HUMANA (tradução de António Teixeira de Magalhães, introdução e notas de Manuel J. Gandra)

Cebes Tebano

TÁBUA ou QUADRO DA VIDA HUMANA (tradução de António Teixeira de Magalhães, introdução e notas de Manuel J. Gandra)

Centro ERNESTO SOARES de Iconografia e Simbólica

O conteúdo deste folheto não pode ser transcrito ou reproduzido, sem a prévia autorização por escrito do autor. © Manuel J. Gandra Mafra, Abril de 2012

www.cesdies.net E-mail: [email protected] Tel.: 963075514

A Tábua de Cebes é um diálogo ético-filosófico, à semelhança dos do fundador da Academia ateniense, entre Cebes e Gerôndio, tendo por cenário o pronaos do templo de Cronos (Saturno), em Atenas ou Éfeso. Os interlocutores ocupam-se do significado de um painel alegórico, o emblema, ou imagem mnemotécnica, mais complexo de todos os tempos, justamente aquele que figura a Vida Humana, enquanto Monte escarpado e labiríntico, cujo cume, dificilmente acessível e situado para além das nuvens, é a meta derradeira que todos os Bem-Aventurados visam alcançar1. Um sábio ancião expõe o sentido deste autêntico Teatro da Memória, desenvolvendo, como pictor philosophus, a doutrina platónica da metempsicose e dissertando sobre a verdadeira educação, enquanto formadora do carácter por oposição ao mero cultivo da erudição. Em virtude do carácter emblemático do argumento, cada uma das personagens que habita esta ekphrasis transforma-se numa alegoria. A Tábua de Cebes sintetiza todos os elementos simbólicos, característicos de uma peregrinação, como bem recorda Sagrario Lopez Poza: “o homem como estrangeiro e perdido, o caminho ou a eleição dos caminhos, as dificuldades e contínuos assaltos à virtude, a difícil ascensão na escala espiritual, simbolizada por distintas muralhas concêntricas, franqueadas por portas bem guardadas, os castigos, dores, desespero no caminho, a penitência e Pilar Pedraza, La Tabla de Cebes: un juguete filosófico, in Boletín del Museo e Instituto Camón Aznar, v. 14 (1983), p. 93-110. 1

purificação e, finalmente, a montanha sagrada na qual se acha a suma virtude, recompensa da sabedoria e da tenacidade que o peregrino vá demonstrando durante a árdua ascensão, elegendo correctamente os caminhos mais árduos […]” 2. O cenário em apreço é constituído por três muros, ou cercas, concêntricas, rodeando uma montanha. Na porta da primeira cerca, a multidão de infantes que deseja entrar na vida, é encaminhada por um ancião barbado em traje monacal, o Génio, encarnação da Sabedoria. Todos, sem excepção, se detêm junto da Impostura, ou Mau Conselho, uma figura feminina sedente, ricamente vestida, com um felino no regaço, que dá de beber o erro, ou a ignorância, aos meninos por um aquamanil. O ancião adverte-os contra a Fortuna, que não hão-de ter por adquirida, insistindo que não lhes convém caminhar apressadamente, nem deixar-se ludibriar pelas Opiniões. Aconselha-os a não se deterem até chegarem à Falsa Erudição, junto da qual podem obter o que entendam que possa aproveitar-lhes no caminho: Letras ou Artes, incapazes de, por si sós, tornarem alguém virtuoso, porém, susceptíveis de auxiliar a sê-lo. Uma vez transposto o primeiro umbral, os caminheiros encontram um grupo de meretrizes que são as Opiniões, a Concupiscência e as Delícias que os assaltam, seduzindo-os e afastando-os do caminho que levavam. A uns salvam-nos, a outros matam-nos com o embuste. Os caminheiros atordoados, não logram atinar com o caminho verdadeiro, errando perdidos, às voltas. Equilibrada sobre uma esfera em pedra, surge-lhes, então, uma mulher cega, surda e louca, a caprichosa Fortuna, a qual favorece com riquezas, fama, poder e descendência os que não merecem, retirando aos demais aquilo que possuem. Logo deparam com quatro mulheres vestidas como prostitutas: a 2 Cf. Expressiones alegóricas del hombre como peregrino en la tierra, in De Oca a Oca… polo Camino de Santiago, Santiago de Compostela, 2004, p. 58.

Gula, a Luxúria, a Avareza e a Lisonja. Aqueles que receberam bens da Fortuna, ficam à mercê destas que os enganam com promessas de Delícias. Quando se derem conta, os caminhantes terão exaurido a sua fortuna, vendo-se compelidos a cometer furtos, sacrilégios, falsos juramentos, traições, etc. Quando nada mais lhes restar, serão conduzidos a um lugar onde os submetem a penosos castigos. Acedem a esse lugar escuro e apertado por uma pequena porta. No interior encontram duas mulheres impuras, a Pena, com um azorrague, e a Tristeza, que apoia cabeça nos joelhos. Acham-se aí, igualmente, a Dor, arrepelando os cabelos, o Pranto, fraco e desnudo, e a Desesperação. Todos atormentam o peregrino miserável antes de o trasladar a outro lugar, onde viverá em suma desventura, a não ser que lhe acuda a Contrição, a única capaz de o pôr a salvo destes males e conduzi-lo à Verdadeira ou Falsa Erudição, onde lhe será concedida uma nova oportunidade. A Falsa Erudição, que a maioria dos homens considera a Verdadeira Erudição e bom governo da vida, acha-se junto ao pórtico pelo qual se acede ao segundo recinto. Muitos (poetas, oradores, músicos, astrólogos, geómetras, filósofos, etc.) seguem-na cegamente ao encontro das Opiniões, as quais tudo farão para que aqueles que beberam a bebida do engano persistam no erro. Assim será, até que enveredem pelo caminho da Verdadeira Erudição e bebam a poção virtuosa mercê da qual serão purgados dos vícios que os desfeiam e expulsarão de si as opiniões e a ignorância. A senda que leva à Verdadeira Erudição é escarpada e estreita, com precipícios, todavia, os peregrinos que, em virtude do auxílio da Continência e da Tolerância, logrem superar as dificuldades, atingirão um locus amoenus onde reina a serenidade, a partir do qual poderão aceder a uma porta que comunica com a morada dos Bem-Aventurados. Ali residem todas as virtudes. À porta, uma mulher de meia-idade, vestida de forma singela, em equilíbrio não sobre uma esfera (como a Fortuna), mas sobre um cubo, encarna a Verdadeira Erudição. Ladeiam-

na a Verdade e a Persuasão, duas das suas filhas. Dela os peregrinos recebem confiança e ânimo livre de todo o temor. Acha-se no exterior do recinto para dar a beber, aos que ali vão chegando, uma medicina purgativa da ignorância e do erro que a Impostura lhes serviu. Precisam ainda de expulsar a Arrogância, a Gula, a Arrogância, a Ira e a Avareza. Uma vez purificado, o viandante é convidado a entrar e a conviver com as Virtudes (as irmãs Fortaleza, Justiça, Bondade, Temperança, Modéstia, Liberdade, Continência e Clemência), as quais o conduzem ante a Felicidade ou BemAventurança, que ele encontra no cume, sentada num trono. Aquele que alcança esse lugar, tornando-se senhor de si mesmo e nada temendo, será coroado como vencedor, permanecendo próspero e bem-aventurado, podendo ir onde bem entender. *** Durante séculos foi quase consensual a atribuição do Pinax (designação do original grego), ou Tabula Cebetis (título consagrado pelas traduções latinas), a Cebes de Tebas (séc. V a. C.), que se supunha discípulo de Sócrates e de Filolau e interlocutor no diálogo Fédon de Platão 3. Creram outros, contudo, poder creditá-la ao estóico Cebes de Cyzicus, filósofo contemporâneo de Marco Aurélio, mencionado no Athenaeus (IV, 156D) 4. Porém, a obra é helenística, remontando, provavelmente, ao século II d. C., ou, quando muito, à centúria anterior. É inquestionável que foi concebida e difundida durante a Antiguidade tardia (final da época imperial romana É apontado por Suídas e por Diógenes Laércio como autor de três diálogos, dos quais apenas o Pinax remanesce (consideram-se perdidos o Septima, intitulado Simmia, na opinião de outros, e o Phrynicus). Cf. Vida, Doutrinas e Sentenças dos Filósofos Ilustres. Alguns críticos recusam-lhe a autoria da Tábua, em virtude de alegados anacronismos materiais e filológicos. 4 Esta circunstância não abona a favor de tal creditação, porquanto a Tábua já era conhecida no tempo de Luciano, devendo, portanto, ser-lhe anterior. 3

5),

tendo-se tornado muito popular no final de quatrocentos, quando começou a circular impressa 6, atingindo a sua mais ampla difusão durante os séculos XVII e XVIII. De resto, a Tábua de Cebes e o Enchiridion de Epicteto (50-138 d. C.) tornaram-se os textos mais estimados pelos moralistas do Renascimento e do Barroco, ou não fosse a alegoria da Vida Humana o tema favorito e mais recorrente nas letras e nas artes desses períodos 7, fazendo jus, de resto, às opções doutrinais quer reformistas, quer da Contra-Reforma 8. Lugar de múltiplas confluências, o interesse filosófico (não excluindo o estético, nem o literário) desta obrinha, que se inscreve no âmbito da denominada literatura de imagens, objecto dos tão justamente celebrados estudos de E. H. Gombrich, é indissociável do interesse prático inerente ao seu propósito didáctico e pedagógico 9. O carácter sucinto e singelo da Tabula Cebetis, propício à aprendizagem do grego pelos jovens, favorecendo a memorização, e incutindo-lhes, concomitantemente, o conhecimento dos preceitos axiomáticos do comportamento virtuoso, foram motivos mais que suficientes para a respectiva inclusão na Ratio Studiorum (1599) dos Colégios jesuíticos 10. Ver C. S. Jerram, Cebetis Tabula, Oxford, 1878, p. IX-XIII e XXXVII e Robert Joly, Le Tableau de Cebes et la Philosophie religieuse, in Collection Latomus, v. 61 (1963), p. 89. 6 A primeira edição impressa foi realizada em Florença, no ano de 1496, achando-se rasto dela no Hypnerotomachia Poliphili (Veneza, 1499). 7 Milton, por exemplo, no seu Ensaio sobre a Educação, coloca a Tábua de Cebes no lote “dos livros fáceis e agradáveis para a educação”. Ver M. David, Leibniz et le Tableau de Cebes ou le Problème du langage par images, in Revue Philosophique, 1961, p. 39-50. 8 Assim se explica a inclusão de ambos em apêndice ao Theatro Moral de la Vida Humana (Bruxelas, Francisco Foppens, 1672) de Otto Vaenius. Cf. Eurico Gama, O “Theatro Moral da Vida Humana”, em gravuras de Oto Vénio, Separata do Boletim da Academia Portuguesa de Ex-Libris, a. 12, n. 39-41, Braga, 1967. 9 Cf. Jesús M. Ruiz Gito, La Tabla de Cebes – Historia de un texto griego en el Humanismo y la Educación europea, Madrid, 1997. 10 No segundo semestre da Classe Intermédia de Gramática, depois de estudadas as Cartas Ad Familiares de Cicero e os poemas mais simples de Ovídio, objecto da primeira parte do curso. Cf. Ratio Studiorum, cap. XIX, H29. Ver Eusebio Gil (ed.), El sistema educativo de la Compañía de Jesus, La “Ratio Studiorum”, edición bilingue, estúdio histórico-pedagógico, bibliografia, Madrid, 1992. 5

De facto, este diálogo didáctico-moral, aliando as supracitadas qualidades à vantagem adicional de acomodar plenamente a fórmula horaciana prodesse et delectare (Picta Philosophia), havia de transformar-se num dos mais traduzidos e impressos monumentos da tradição literária greco-latina, podendo ser elencadas, até ao termo de setecentos, mais de uma centena de edições bilingues, ou em línguas vernáculas 11, significativo número das quais ilustradas 12. No que concerne às edições em português, seria necessário esperar até 1787, ano em que saiu dos prelos de um impressor radicado no Porto, uma tradução directa da língua grega por António Teixeira de Magalhães, professor régio da mesma língua na cidade de Braga 13. Poderá concluir-se do afirmado que a Tábua de Cebes não circulou em Portugal? De modo nenhum. Na realidade, a falta de uma tradução em língua portuguesa, foi suprida por alguma das disponíveis, que iam sendo recebidas em Portugal 14. 11

Ver Sandra Dider, Cebes’ Tablet Facsimiles of the Greek Text, and Selected Latin, French, English, Spanish, Italian, German, Dutch and Polish Translations, Nova Iorque, 1979. 12 O primeiro exemplo registado é uma xilogravura usada como portada na edição que reproduz a tradução latina de Aesticampianus, impressa em Francoforte, em 1507. Sobre a recepção da obra e da abundante iconografia conexa, cf. Reinhart Schleier, Tabula Cebetis: Studien zur Rezeption einer antiken Bildbeschreibung im 16 und 17 Jahrhundert, Berlim, 1974; Cora E. Lutz, PS Cebes, in Catalogus Translationum and Commentaries, v. 6, Washington, 1986, p. 1-14 e Sandra Sider, Addendum to Ps Cebes, idem, v. 7, Washington, 1990, p. 85s. 13 Quadro da Vida Humana ou Tábua de Cebes, filósofo platónico, em a qual se nos ensina o verdadeiro modo de nos conduzirmos nesta vida, sábia e prudentemente. O opúsculo seria reimpresso pela Tipografia Rolandiana, em Lisboa, no ano de 1819. É desta edição a tradução que se reproduz neste opúsculo. 14 A título meramente exemplificativo, referirei que a Biblioteca Nacional possui no seu acervo exemplares dos incunábulos de 1496 (Florença, Francisco de Alopa [BN: Inc 1305]), pertença da Cartuxa Scala Coeli (Évora), e de 1497 (Bolonha, Benedetto Faelli [BN: Inc 85]), bem como a tradução castelhana de Juan de Jávara, editada em apêndice à obra de Erasmo, intitulada Libro de las vidas y dichos graciosos, agudos y sentenciosos de muchos notables varones griegos y romanos (Antuérpia, 1549) 14, volume que pertenceu à Botica da Enfermaria de um convento não identificado [BN: Res 5445 P], ou ainda as edições de Pierre Lagnier (Colónia, 1609 [BN: Res 6622 P]), de Otto Vaenius (Bruxelas, 1672 [BN: SA 4464 A]), etc.

Da sua efectiva recepção são testemunhas João de Barros 15 e Francisco de Holanda 16, entre inúmeros outros.

Cf. Década III, Prólogo e Diálogo com Dous Filhos sobre Preceitos Moraes em modo de Jogo. 16 Cf. Diálogos de Roma, diálogo 2. 15

* * * Não é minha intenção proceder nesta ocasião ao desvelamento sistemático do roteiro ritual (iniciático) da Quinta da Regaleira. Porém, em virtude do quadro esboçado na Tábua de Cebes, creio susceptível de contribuir para uma leitura contextualizada dele, o seguinte plano cartográfico, em doze passos, que reputo de guião consentâneo com uma visitação sustentável, quer iconográfica, quer iconologicamente (leia-se iniciaticamente) 17: 1. Moradia – Escadaria de acesso e Sala de Jantar Preparação do candidato, mediante seu confronto com legendas emblemáticas (desaparecidas) e imagens alusivas à demanda interior (Dama Beatriz), de molde a suscitar nele o reconhecimento da via de acesso e a adesão ao propósito: transmutação do caçador em monteiro. A Íbis (Hermes) assistirá e acompanhará o candidato durante todo o seu itinerário iniciático. 2. Capela da Santíssima Trindade O candidato faz a velada de armas que antecede toda a autêntica demanda, sob os auspícios do Templo (mosaico, D. Fuas Roupinho, monteiro e templário), Santo António (despojamento franciscano) e Santa Teresa (a visão do Castelo da Alma). 3. Demeter - Gruta de Leda É proposto ao candidato que estabeleça um nexo semântico entre o Maravilhoso Cristão e o Maravilhoso Pagão,

Note-se que qualquer outro percurso distinto deste, nomeadamente o que advoga a subida do Poço iniciático, gera uma incongruência inultrapassável: o cenário está montado para quem sobe a colina e não para quem a desce, o que a acontecer, daria proeminência aos bastidores (retaguarda da cena) em detrimento do cenário voltado para a plateia… 17

apontado à Unidade Transcendental de todas as formas de Religião. 4. Torre da Regaleira - Portal denominado dos Guardiães [do Umbral] Limiar entre dois mundos. Pela primeira vez, o candidato é confrontado com uma inevitabilidade iniciática: morrer para o Mundo, para renascer para a Vida, em outro plano (carácter anfíbio dos répteis, búzio dentro do búzio, sob a abóbada celeste luni-solar dos delfins e das conchas), ou optar por conservar e amplificar o seu estatuto mundano, tornando-o ostensivo (Torre). 5. Poço iniciático – Cova Coriscia No cume do Monte Parnaso, o candidato acede por uma porta secreta, virada a Norte (sol espiritual), a um poço. Aí, no ponto mais elevado do seu itinerário iniciático (onde a Máquina do Mundo lhe é revelada), nova prova de desapego lhe é exigida: a definitiva renúncia à máscara do Eu (si-mesmo), mediante a queda no seu Ser mais profundo e autêntico (si-próprio = Dama Beatriz). De acordo com o preterido projecto primitivo do arquitecto Henri Lusseau (1895), este local seria ocupado por um pavilhão para retiro de gamos. 6. Fundo do Poço Iniciático – Rosa-dos-ventos Alcançado o fundo do Poço iniciático, cuja altura e número de degraus são múltiplos de nove (nada = o Vazio absoluto), o candidato perdeu a noção de tempo e de espaço, achando-se inexoravelmente desorientado (sem Oriente = sol físico), ou desnorteado (sem Norte = sol espiritual). A rosa-dosventos figurada no revestimento marmóreo do fundo do Poço iniciático reconduz o candidato ao seu itinerário. 7. Mundo Inferior A etapa seguinte, em busca da Luz, é percorrida na mais tenebrosa das escuridões. Uma claridade que surge no fundo de

um túnel pode ser entendida como uma miragem da autêntica Luz que é mister buscar com discernimento. Se a lucidez interior prevalecer a Luz autêntica revelar-se-á (antes oclusa por uma cascata, hoje desactivada). 8. Caminho das poldras O candidato superou a prova crucial do seu itinerário iniciático, tendo adquirido um domínio absoluto sobre as leis que regem o mundo físico. Para testemunhá-lo, caminhará miraculosamente sobre as águas. 9. Fonte da Regaleira – Trono para o Augusto e BemAventurado O Bem-Aventurado pode, finalmente, dessedentar-se. Um ágape será servido em sua honra. 10. Fonte do Balneário - Casa de fresco A protecção da Íbis (Hermes) termina aqui. A ave levanta voo, partindo. 11. Quatro elementos Integração definitiva dos quatro elementos (tartaruga, rã, caracol e salamandra) no Quinto Elemento, o próprio Iniciado (o Leão que sai do Bosque 18). 12. Patamar dos Deuses – Olimpo O Iniciado, transcendida a “Lei da Morte”, convive com os Deuses, no Olimpo.

Cf. Manuel J. Gandra, A Quinta da Regaleira, legado Sebástico-Templarista de António Augusto Carvalho Monteiro, Mafra, 2012. 18

Quadro da Vida Humana ou Tábua de Cebes Tebano

Legenda da Tábua de Cebes 1. A porta da Cerca da Vida 2. O Génio 3. A Impostura 4. As Opiniões, a Concupiscência e as Delícias 5. A Fortuna 6. Os néscios 7. A Gula, a Luxúria, a Avareza e a Lisonja 8. A Pena 9. A Tristeza 10. O Pranto 11. O Sentimento, ou Dor 12. A Raiva, ou Desesperação 13. A casa da desdita 14. A Contrição 15. A verdadeira Erudição 16. A falsa Erudição 17. A falsa doutrina 18. Os Poetas, Oradores, Geómetras, etc. 19. A Gula, a Luxúria e a Opinião 20. O caminho da Verdadeira Doutrina 21. A Continência e a Tolerância 22. A Verdadeira Doutrina 23. A Verdade e a Persuasão 24. A Ciência e as Virtudes 25. A Felicidade 26. O primeiro prazer do Sábio 27. Os frouxos e desanimados

Passeando nós por acaso em o Templo de Saturno 19, entre muitos e vários donativos 20 que aí se achavam pendentes, vimos também no seu frontispício uma Tábua, cuja peregrina e estranha pintura parecia ter uma particular inteligência, a qual nem ainda por conjecturas podíamos alcançar. Não era alguma cidade, ou arraial, o que ela nos representava, mas o que se via era uma grande Cerca, a qual encerrava mais duas, uma maior que a outra. Na primeira Cerca havia uma porta, pela qual parecia querer entrar uma grande multidão de gente, que ali estava junta; e da parte de dentro se viam estar muitas mulheres. À entrada da primeira Cerca estava, de pé, um velho, fazendo acção de quem queria recomendar alguma coisa à multidão que entrava.

É provável, que o lugar deste templo [de Saturno] fosse Atenas no mesmo domicílio das Musas: ainda que alguns pretendam, que fosse Tebas, Cidade da Beócia, donde o Autor era oriundo. 20 A que nós chamamos milagres [ou ex-votos]. 19

Admirados nós disto muito tempo e duvidosos da sua significação, chegou então um velho 21, e disse-nos: — Não se deve estranhar a vossa ignorância, ó estrangeiros, a respeito desta pintura, porquanto muitos daqui mesmo naturais não a podem interpretar. E com razão, porque não é este donativo obra de algum deles, mas sim de um estrangeiro, o qual, homem de capacidade e erudição admirável, mostrando nos seus ditos e ajustadas acções ser sectário de Pitágoras e Parménides, costumava em outro tempo aqui vir algumas vezes e consagrou a Saturno, assim este Templo, como a pintura. Por acaso lhe disse eu: — Floresceu no teu tempo, e tens dele conhecimento? — Tenho sim — disse — e eu me admirava muito de ele, sendo ainda rapaz, propor muitas questões honestas e virtuosas. E a ele mesmo ouvi muitas vezes explicar a moral contida em a Tábua. — Com o maior encarecimento te peço — lhe disse eu —, se agora te não impossibilita algum embaraço, nos queiras contar a interpretação que ele deu, porque com ânsia a desejamos saber. — Não duvido — disse ele — ó estrangeiro, de satisfazer a vossa curiosidade, mas adverti, que a narração vos é perigosa. — Qual é o motivo? — Disse eu. — Se me escutardes com atenção e perceberdes o que eu vos disser, disse ele, vivereis uma vida prudente e feliz. Aliás, entregues à ignorância, como os insensatos, tereis sem dúvida a vida cheia de misérias e trabalhos, sem alívio e sem ventura, porque a explicação é comparável ao enigma que a Esfinge propunha em Tebas aos caminhantes, ficando salvo aquele que o dissolvia, mas o que o não decifrava em continente era despedaçado por ela e o engolia 22. O Este velho era Hércules Socrático, homem o mais abalizado em virtudes, como se descobre na sua explicação com expressões tão moralizadas. Este pelo discurso da Tábua se subentende debaixo das palavras... disse ele... e Cebes, a quem ele explicou o Enigma, que a pintura representava, se compreende em as palavras... disse eu... 22 [A Esfinge] como descreve Ausono (Sphinx volucris pennis, pedibus fera, fronte puella) era um monstro Tebano com cabeça, e mãos de donzela, corpo de ave, e pés de leão, o qual sentado em o monte Phyceo propunha aos caminhantes este enigma: qual é aquele animal, que de manhã anda em quatro pés, ao meio dia em dois, e à tarde em três? Quem não dissolvia este Enigma, era logo devorado. Porém, Édipo declarou, que era o homem, o qual na infância anda com quatro pés de gatinhas, na mocidade levantado em dois, e na velhice em três, porque se serve de um bordão para se apegar. Então de repente a Esfinge se precipitou no mar, porque tinha por fado morrer, explicado, que fosse o Enigma. 21

mesmo sucede a respeito desta explicação, porquanto a ignorância em os homens vela o mesmo que a Esfinge, em cujo monstro se simboliza. Esta explicação, ainda que obscuramente, nos dá a conhecer, que coisa nesta vida haja boa, que má e que coisa nem boa, nem má, as quais coisas, o que não as conhece, é morto pela mesma. E não por uma vez, como o que era devorado pela Esfinge, mas por todo o espaço da vida se consumirá, como aqueles que, encarcerados, estão expostos e oferecidos a perpétuos castigos. Pelo contrário, o que houver conhecido o bem para o abraçar e o mal para o fugir, morta a ignorância, alcança a salvação e anda ditoso e bem aventurado por todo o decurso de sua vida. Por esta razão deveis vós estar atentos, guardando um profundo silêncio. — Ó Deuses, muito grande é o desejo de sabermos, se estas coisas são efectivamente assim. — São sem dúvida. — Diz ele. — Pois se assim são, quiseramos não te demorasses em no-las declarar, estando nós já dispostos a fazer a mais séria reflexão. Já que nelas se funda totalmente o nosso, prémio, ou castigo. Pegando então em um bordão, o dirigiu à pintura e nos disse: — Vedes esta Cerca? — Vemos. — Sabei pois, que este lugar se chama Vida e a grande caterva de gente que está junto à porta, são os que hão-de entrar nela. E aquele velho, que está de cima em pé, com uma mão e com a outra, como quem está mostrando qualquer coisa, chama-se-lhe Génio 23. Ele ordena, àqueles que já tiverem entrado em a Vida, o que devem nela praticar. — E que Vida — disse eu — lhes inculca ele, para haverem de regular bem a sua vida e conseguirem a salvação? — Vês — disse ele — junto à porta por onde entra essa multidão, um trono, em o qual está sentada uma mulher com um copo na mão, mostrando-se-nos agradável com aparências fingidas? — Vejo. E ela quem é? — O seu nome é Impostura, porquanto tem de costume enganar todos os homens. — De que modo os engana ela? Anjo ou Génio agnigendo. Era-lhe consagrado o primeiro dia do nascimento de qualquer criatura, a qual tomava à sua conta e tinha dela cuidado. 23

— Entrando eles em a Vida, esta os brinda por sua própria potência. — E que género de bebida é essa, com que os brinda? — É o erro e a ignorância. — Diz ele. — E então quê? — Tanto que a bebem entram em a Vida. — Pois, porventura, todos bebem o erro, ou não? — Todos o bebem — disse — porém uns mais, que outros. Além disto, não vês dentro da porta muitas mulheres aliadas, vestidas de várias formas? — Vejo. — Estas se chamam Opiniões, Concupiscências e Delícias, as quais, tanto que a multidão entra, saltam de contentamento e, abraçando a cada um, se vão com eles. — E para onde é que os conduzem? — Umas os levam à salvação, outras à perdição, por causa da Impostura. — Ah! meu grande amigo, quanto arriscada e perigosa é a bebida, em que me falas! — E na verdade prometem de os encaminhar para a honestidade, segurando-lhes uma vida ditosa, na qual possam ser-lhes úteis. Porém eles, que da Impostura beberam o erro e a ignorância, não acham o verdadeiro caminho e, por isso, andam errados e perdidos, como estás vendo. Vês também aos que primeiro entraram, transportarem-se para aqueles lugares, que lhes mostram? — Vejo. Mas quem é aquela mulher, que está com o pé sobre um seixo redondo e me parece ser cega, e louca? — Essa — diz ele — é a Fortuna, a qual não só é cega e enfurecida, mas também é surda. — E qual é a sua ocupação? — Anda girando por todas as partes, roubando a uns as possessões e liberalizando-as a outros. E, tornando-lhas a tirar de repente, as vai dar a outros, temerária e inconstantemente. O sinal claramente manifesta a sua natureza. — Que sinal? — Lhe disse eu. — O estar sobre a bola. — E que significa? — Que as suas dádivas nada são seguras; mas antes que se alguém se confia dela vem a sentir umas grandes e graves perdas.

— E a muita gente, que a rodeia, que pretende e quem são? — Temerários se chamam, e cada um lhe está pedindo o que ela espalha.

— Qual é a razão, porque não têm eles o rosto semelhante, mas uns o têm risonho e outros triste e melancólico, com as mãos estendidas para ela. — Aqueles que vivem contentes são os a quem ela favoreceu e lhe chamam boa Fortuna. Porém, estes, que se lastimam e estendem as mãos, são os a quem o Fortuna tirou as possessões, que antes lhe havia dado. E, por isto, lhe chamam má Fortuna. — Quais são pois essas coisas, que tanto fazem alegrar aos que as recebem e entristecer e chorar aos que as perdem? — São as que vulgarmente se reputam como boas.

— Diz-nos quais são elas? — A riqueza, por exemplo, a glória, a nobreza, a produção de filhos, os impérios, os reinos e outras muitas coisas deste género. — Como não são boas todas estas coisas? — Em outra ocasião te darei razão disto. Agora cuidemos somente em a declaração deste Painel. — Assim parece justo e conveniente. — Passada esta primeira porta, não vês logo outra Cerca mais levantada e, pela parte de fora, umas mulheres vestidas como as Meretrizes? — Vejo sem dúvida. — Chamam-se a Gula, a Luxúria, a Avareza e a Lisonja. — E que estão elas aí fazendo de pé? — Estão observando aos que recebem alguma coisa da Fortuna.

— E se recebem, que fazem? — Saltam de prazer e abraçando-os e lisonjeando-os lhes rogam que fiquem com elas. E prometem-lhes uma vida gostosa, tranquila e livre de qualquer moléstia. E se algum condescende com a vontade

delas, para que passe uma vida deliciosa, este se engana, porque só lhe dura por algum tempo, mas ao depois que cai em si, conhece que só era feliz enquanto o titilava e que, depois, se achava devorado por ela e afrontosamente maltratado, de maneira que, havendo dissipado e consumido tudo o que a Fortuna lhe tinha dado, se vê obrigado a ser escravo dessas mulheres e a sujeitar-se a todo o género de infâmias e a fazer por seu respeito, muitas coisas torpes e prejudiciais, como são furtos, sacrilégios, juramentos falsos, traições, saltear estradas e outras coisas semelhantes a estas. E se em alguns destes delitos é compreendido, logo o prendem e o metem no cárcere.

— E onde está ele? — Vês por detrás destas mulheres um lugar estreito e escuro, com uma portinha, e a umas mulheres feias, imundas e esfarrapadas? — Vejo sim.

— Pois essa que tem na mão o azorrague, chama-se Pena; a que tem a cabeça entre os joelhos é a Tristeza; e a que arrepela os cabelos é a Aflição. — Aquele que está junto a elas, também feio, magro e nú e a outra, semelhante a ser disforme e magra, quem são? — É o Pranto e a Desesperação, ambos irmãos. Eis aqui a quem entregam o delinquente e nestes tormentos vive castigado. Depois o levam para a casa da Infelicidade, onde passa o resto da vida em todo o género de misérias, se acaso lhe não acode a Contrição. — E se acudir, que tem? — Fica livre dos tormentos e lhe infunde outra opinião e desejo, que o há-de constituir na verdadeira ou falsa Erudição. — E depois que sucede? — Se tiver a opinião, que o conduza à verdadeira Erudição, purificado por esta, viverá ditoso e bem aventurado por toda a sua vida. Aliás, fica enganado pela falsa Erudição. Oh! Deuses! Quão grande e terrível é este outro perigo! — Qual é a falsa Erudição? — Disse eu. — Não vês aquela outra Cerca? — Sim vejo. Lhe disse eu.

— Junto à entrada não vês uma mulher muito composta, e modesta? — Não há dúvida. — O vulgo e o resto dos homens pouco discretos, chamam a esta Erudição, porém, enganam-se, porque não é; é sim a falsa Erudição. E os que se quiserem salvar e chegar à verdadeira Erudição, primeiro passam por ela. — Pois não há outro caminho que nos conduza para lá? — Há. — Disse ele. — Mas quem são estes homens, que andam por dentro da Cerca? — São os que amando a falsa Erudição, enganados dela, pensam que seguem a verdadeira. — Qual é o nome deles? — Uns são Poetas, outros Retóricos, outros Lógicos, outros Músicos, Aritméticos, Geómetras, Astrólogos, Voluptuários 24, Peripatéticos 25, Críticos 26 e outros semelhantes. — E quem são aquelas mulheres, que se parecem com as primeiras, entre as quais dizias estava a Gula e as outras. E todas andam correndo de uma parte para a outra? — São essas mesmas. — Me disse. — Pois então elas também entram nesta Cerca? — Entram sim, mas não tantas vezes, como na primeira. — E as opiniões fazem o mesmo? — Sim, porque ainda nelas dura a bebida, que a Impostura lhes deu, a ignorância e a loucura. E nem a opinião, nem os demais vícios deixarão a estas, sem que primeiro, abandonando a falsa Erudição e entrando no verdadeiro caminho, bebam o antídoto de tal bebida, para com este se expulsarem fora todos os males, que as oprimiam, como são as opiniões, a ignorância e todas as demais maldades, e desta sorte ficarem salvos. Mas enquanto existem com a falsa Erudição, não serão Voluptuários, em grego Edoyikos são os Epicuristas, tomando este nome de Epicuro, inventor da sua seita. Estes punham toda a sua bem-aventurança nos deleites desta vida. 25 Peripatéticos, Passeadores (apo toy peripatein), são os sequazes de Aristóteles, o qual por debilidade, que padecia no estômago, tinha necessidade de contínuo exercício, e por isso ensinava, não sentado, mas sim passeando. 26 [Críticos, Julgadores] são aqueles, que nos Escritos, que se propõem examinar, mostram os seus sentimentos na censura. Tal foi Aristóteles na correcção da Ilíada de Homero, para benefício de Alexandre Magno seu discípulo; Aristarco, gramático, e outros. 24

jamais aliviadas, nem eximidas de algum mal com o subsídio das tais doutrinas. — Então — disse eu — qual é o caminho que dirige à verdadeira Erudição? — Vês — disse ele — pela parte de cima aquele lugar alto, o qual está destituído de habitadores? — Vejo. — E também uma portinha 27 e um caminho muito estreito, que não é seguido de gente, por parecer de uma subida áspera e despenhada?

— Eu bem o diviso. — Não vês também um outeiro muito alto e muito dificultoso de se subir, rodeado de profundos e horríveis precipícios? — Bem vejo. — Este — diz ele — é o tal caminho, que conduz à Erudição verdadeira. — Na verdade é bem dificultoso de se ver. O caminho, que nos conduz à Virtude, e Bem-Aventurança. É estreito, e pouco trilhado: Arsta via est, quae ducit ad vitem. 27

— Divisas também no alto do outeiro um grande rochedo escarpado por todas as partes? — Diviso, não há dúvida. — E também duas mulheres gordas e robustas, postas sobre o rochedo, estendendo as mãos com alegria? — Bem vejo. E como se chamam? — Uma Continência 28 e outra Tolerância 29. E ambas são irmãs. — Para que fim estendem as mãos tão contentes? — Admoestam aos que caminham para este lugar, que tomem ânimo e não desesperem, dizendo-lhes que, depois de vencidas as dificuldades por pouco tempo, hão-de vir para um caminho ameno e delicioso. — Por que parte sobem para aquele rochedo? Eu não vejo caminho algum que os conduza lá. — Elas mesmo descem para o precipício a recebê-los e os levam para cima. Depois os fazem descansar e lhes dão esforço e ânimo, prometendo-lhes de os encaminharem à verdadeira Erudição. E lhes fazem um desenho do quanto aquele caminho é ameno, plano, expedito e livre de males, como estás vendo. — Assim parece. — Vês também — diz ele —diante daquele bosque um lugar aprazível, semelhante a um prado cheio de luzes e, no meio dele, outra Cerca e outra Porta? — Isso está bem patente. E como chamam a este lugar? — Domicílio dos Bem-Aventurados — disse ele — porque ali vivem as Virtudes todas e a Bem-Aventurança. — Sem dúvida que esse lugar é bem ameno e formoso. — Disse eu. — Vês — disse ele — junto à porta estar uma Dama formosa, robusta, no meio da sua idade, porém já declinando para a velhice, vestida singelamente, sem ornato e sem algum atractivo, a qual está sobre uma pedra quadrada e imóvel e com ela outras duas, que parecem ser suas filhas? — Vejo, do que não há dúvida.

Por meio desta [Continência] desprezamos as paixões da sensualidade. [A Tolerância] nos ensina a sofrer os trabalhos com grande ânimo. Epicteto, este grande Filósofo Estóico, fazia consistir nestes dois preceitos... Sustine, & Abstine... toda a eficácia de um virtuoso. 28 29

— Pois dessas a que está no meio, é a verdadeira Erudição e as que estão aos lados são a Verdade e a Persuasão.

— E o que significa estar posta sobre uma pedra quadrada? — Dá a entender a firmeza e a segurança do caminho para os que a procuram e que os seus donativos são permanentes àqueles que os recebem. — E quais são? — São o valor e a intrepidez. — Disse ele. — E de que lhes servem, ou que virtude têm? — De lhes dar uma certeza de que jamais lhes haja de suceder alguma calamidade em a vida. — Oh Deuses! Quão excelentes são estes dons! — E que está ela fazendo da parte de fora da Cerca, posta sobre a pedra? — Está a fim — diz ele — de curar aos que se chegam, dando-lhes a beber uma medicina que tem virtude purgativa e, depois que ficam purgados, os entrega às Virtudes. — Como é isso? Porque não posso compreender. — Eu o vou a declarar. Assim como um doente, oprimido com uma grave enfermidade, manda chamar o médico e este com remédios purgativos lhe lança fora todas as causas da doença, recomendandolhe guardar dieta na convalescença, para o restituir à saúde antiga. E se o doente não obedecesse ao médico, este o desampararia com razão

e assim morreria da doença. Da mesma sorte, se algum se chega à Erudição, esta o cura e com sua própria virtude lhe faz expulsar todos os males que consigo havia trazido. — E que males são estes? — São a ignorância e o erro, que bebeu da Impostura, a arrogância, a cobiça, a gula, a ira, a avareza e todos os mais de que se encheu na primeira Cerca. — E depois de purificado, para onde o manda? — Para dentro para a Ciência e para as mais virtudes. — Onde estão elas? — Não vês — disse ele — dentro da porta uma companhia de mulheres todas formosas, modestas e honestamente vestidas, as quais não se fingem com enfeites, assim como as outras? — Vejo. Que nomes têm? — A principal chama-se Ciência; as outras, as quais são suas irmãs, são Fortaleza, Justiça, Bondade, Temperança, Modéstia, Liberdade, Continência e Clemência. — Oh formosíssima companhia! Quão grande é a esperança que nós temos! — Disse eu. — Com a condição de que entendais o que ouvis e vos acostumeis a praticá-lo. — Disse ele. — Nós nos desvelaremos em averiguar a sua inteligência e em observá-la. — Disse eu. — Se assim o fizerdes, seguramente vos salvareis. — E quando estas Virtudes o recebem, que lhe fazem? — Levam-no à sua Mãe, que é a Bem-Aventurança. — Onde está ela? — Vês aquele caminho, que vai ter àquele lugar alto, o qual é o cume de todas as Cercas, e à entrada uma Dama modesta, e bem parecida, sobre um alto trono, vestida com gravidade, sem luxo, ornada com uma coroa toda muito florescente? — Vejo. — Pois aí tens a Bem-Aventurança. — E aos que a chegam a gozar, que lhes faz? — Ela e as demais Virtudes o coroam, como se faz àqueles que são vitoriosos de umas muito grandes contendas. — Pois que conquistas fez ele? — Disse eu. — Conquistou — diz ele — as mais terríveis feras, as quais antes o devoravam, atormentavam e o faziam escravo. Mas agora este venceu

a todas e lançando-as fora de si, tem sobre elas um grande domínio, fazendo-as servir em tudo, assim como estas lhe faziam antes a ele. — Quem são essas feras, porquanto tenho um excessivo desejo de o saber. — As principais são a ignorância e o erro. Não te parecem ser feras? — E abomináveis, que elas são! — Lhe disse eu. — Depois a dor, a lamentação, a avareza, a gula e todos os mais vícios, em todos tem ele um supremo império, e já não lhes obedece como dantes. — Oh, que ilustres façanhas, e que preclara vitória! Disse eu. Porém, diz-me que virtude tem a coroa com que ela o orna? — É, ó mancebo, beatificante, porque o que chega a ser coroado se faz ditoso e bem-aventurado e não estabelece as esperanças da sua felicidade em outrém, senão em si mesmo. — Que ditoso triunfo! E depois de coroado, que faz, ou para onde vai? — As Virtudes o levam àquele lugar, donde tinha vindo, e lhe mostram como passam mal e miseravelmente os que ali vivem naufragando, errados e vencidos, como por inimigos, uns pela gula, outros pela arrogância, outros pela avareza, outros pela vanglória e por outros diferentes males, dos quais eles presos se não podem eximir e livrar para se poderem salvar e chegarem à BemAventurança. Mas andam por toda a vida aflitos e perturbados, o que lhes sucede por não acertarem com o caminho que os conduza a ela. E isto porque se esqueceram da recomendação que o Génio lhes havia feito. — Tens nisto muita razão. Mas eu quero nos digas qual é o motivo de lhes mostrarem as Virtudes o lugar donde tinha vindo? — É porque ele ignorava e não sabia ainda perfeitamente o que nela se fazia, mas vivia duvidoso. E por conta da ignorância e erro, que bebera, julgava serem boas as coisas que o não eram e más as que eram boas. E, por isso, vivia desgraçado como todos os mais que ali residem. Porém, agora, que tem conseguido a Ciência e conhecimento das coisas conducentes, vive feliz, contemplando as misérias dos mais. — E depois de as contemplar que faz, ou para onde vai? — Vai para onde quer — diz ele — porque em toda a parte vive seguro, como se morasse em a Cova Coriscia 30. E para qualquer parte Cebes faz menção da Cova Coryscia, comparando a alegria, e contentamento dos virtuosos, com o gosto, que tinham, os que sabiam desta cova. Esta cova é na Sicília, 30

que vá vive honestamente, livre de todo o perigo, recebendo a todos alegremente, bem como os doentes ao médico. — E então já não receia algum mal mais daquelas mulheres, às quais tu chamavas feras? — Não, ele não é mais vexado, nem pela dor, ou tristeza, nem pela gula, ou avareza, pobreza, ou outro mal algum. Porque a todos venceu e subjugou, que antes o atormentavam, como os mordidos de víbora. As feras, que têm por costume mortificar a todos os mais até os matarem, só a estes o não fazem, por terem um antídoto contra o seu veneno. — Tens-me dito maravilhas, porém, declara-me ainda mais isto: quem são aqueles que acolá vêm descendo do outeiro, uns com coroas muito contentes, outros sem elas desesperados, com as cabeças e pernas quebradas, conduzidos por umas mulheres? — Os que trazem coroas — disse ele — são os que se chegaram à verdadeira Erudição sãos e salvos e por a possuírem saltam de prazer. Os outros porém, que estão sem coroas, uns se ausentam aflitos e tristes pela Erudição os não receber. Outros cheios de cobardia e temor, depois de terem subido até ao rochedo aonde está a Tolerância e demorando-se pouco tempo com ela, voltam para traz e andam errados, sem saberem por onde hão-de caminhar. — E as mulheres, que vão com eles, quem são? — As Tristezas — disse ele — as Aflições, as Desesperações, as Infâmias e as Ignomínias. — Todos estes males os acompanham? — Sim, acompanham. — Disse ele. — E assim que chegam à primeira Cerca, onde reina a deleitação e a incontinência, não arguem aos que lá moram, mas sim repreendem e maldizem não só a Erudição, mas também os que entraram neste caminho. Porque, abandonando a conduta da vida que os mesmos seguem, vivem desgraçados e miseráveis, sem gozarem dos bens que há entre eles. — Que bens dizem ser esses? Província da Ásia menor junto a uma Cidade marítima, chamada Corysco, e em uma montanha do mesmo nome. Mela no Cap. 13, e Estrabão no livro 14, fazem dela uma bela descrição. É muita amena em razão dos arvoredos sempre verdes, que a cercam. Os que nela entram, admiram-na tanto pela sua aprazibilidade e belo cheiro de açafrão, que ali se cria em abundância, que nunca se fartam de a ver.

— Para o dizer de uma vez, são o luxo e a gula. Porquanto imaginam que em satisfazendo a gula e ao apetite, como fazem os animais, gozam de toda a maior felicidade. — E aquelas outras mulheres, que vêm de acolá risonhas e alegres, como se chamam? — São as Opiniões — disse ele — as quais conduzindo à Erudição aqueles que entraram em as virtudes, os entregam e voltam a buscar outros, anunciando-lhes a felicidade de que estão gozando os que já conduziram. — Pois como? Porventura estas também se familiarizam com as Virtudes? — Não. — Disse ele. — Porque não é justo que a Opinião entre na ciência. Mas só os entregam à Erudição e, depois que esta os recebe, elas se ausentam a buscar outros. Assim como fazem as naus mercantis, as quais, descarregadas de uns fretes, vão depois buscar outros. — Ora, certamente que estou satisfeito da tua explicação. Porém, ainda me não declaraste em que consiste a recomendação que o Génio faz aos que entram na Vida? — Que tomem ânimo. E o mesmo deveis vós fazer, porquanto estou pronto a esmiuçar-vos bem esta explicação, se quiserdes, sem preterir coisa alguma. — Tens dito optimamente. — Lhe disse eu. E então ele, estendendo outra vez a mão, nos disse: — Vedes aquela mulher cega, posta sobre o globo, a qual há pouco vos disse, era a Fortuna? — Vemos. — Pois o Génio nos aconselha — disse ele — que nos não fiemos dela, nem reputemos por firmes, nem seguras, as coisas que ela nos liberalizar, nem delas nos utilizemos como nossas próprias, pois que facilmente as tira outra vez e as dá a outro (o que costuma fazer muitas vezes). E por esta razão nos adverte que não nos levemos das suas dádivas, nem nos alegremos, quando no-las der, nem nos indignemos quando no-las tirar; nem lhe demos louvor, ou vitupério, porque ela nada obra com juízo, mas tudo quanto faz é temerariamente e sem consideração, assim como já antes vos disse. Por esta causa nos admoesta o Génio que nos não admiremos do que ela fizer, nem queiramos imitar esses maus cambistas, os quais, quando recebem dinheiro que alguém lhes dá a guardar, se alegram,

como que se fora seu. Porém, quando se lhe pede, se indignam e cuidam se lhes faz alguma injúria, não se lembrando que o receberam como um depósito que deviam restituir logo que seu dono lho pedisse, sem mais dúvida nem embaraço algum. — Desta sorte quer o Génio, que nos portemos com as dádivas da Fortuna e nos lembremos tem esta por natureza o costume de tirar as que deu e, logo de repente, dá-las a outro multiplicadas e a este tornálas a tirar estas mesmas e, às vezes, até as que dantes possuía? — Por isso nos diz que aceitemos as coisas que ela nos der, mas que com a maior brevidade nos vamos com elas para a dádiva mais firme e segura. — Qual é ela? — É a que receberem da Erudição, se a esta chegarem sãos e salvos. — Dize, qual é? — É a verdadeira ciência e conhecimento das coisas úteis, dom seguro, firme e perdurável, devendo fugir para esta a toda a pressa. E tanto que se se encontrarem com aquelas mulheres, das quais antes falei, chamadas Deleitação e Gula, fujam logo e se não fiem nada delas, até chegarem à falsa Erudição, com a qual os manda demorar um pouco. E recebam dela o que quiserem para ajuda do seu caminho e que logo desta se passem para a verdadeira Erudição. Estas são as coisas que o Génio determina. E quem lhe não obedece acaba a sua vida miseravelmente. E eis aqui, ó Estrangeiros, o conteúdo da Tábua. Se a respeito da sua interpretação tendes mais que perguntar, aqui me tendes pronto a dizer tudo, o que for necessário para satisfazer a vossa curiosidade. — Fico-te agradecido. — Lhe disse eu. — E que coisas são as que o Génio manda receber da falsa Erudição? — São as que parecem ser úteis, como são geralmente as letras, e das outras disciplinas as que Platão 31 recomenda à gente moça para que o estudo destas lhes sirva de freio para se não distraírem com outras coisas. — Pois quem quiser chegar à verdadeira Erudição, há-de estudar as tais disciplinas, ou não?

31

No sétimo livro das Leis.

— Não é necessário que as estudem, ainda que proveitosas para aumento da virtude, porque para se conseguir esta se podem dispensar. — Quê? Dizer que as ciências nada contribuem para nos fazermos melhores? — Digo, por certo, porque sem estas o podemos ser, se bem que, contudo, não deixam de ser úteis. Porquanto, assim como por via de interprete, vimos no conhecimento da língua que nos interpretam, assim também nada nos embaraça que, sem as ciências, possuamos o conhecimento de muitas coisas. — Porventura estes Matemáticos excedem na virtude ao resto dos mais homens? — Como lhes hão-de eles levar vantagem, se é bem notório que a respeito do bem e do mal têm os mesmos sentimentos que os mais homens e vemos neles entrar também todo o género de malícia? — E por isso nada impede que algum saiba línguas e possua todas as ciências e, ao mesmo tempo, seja demasiadamente afeiçoado ao vinho, dissoluto, avarento, injusto, caluniador e, enfim, demente. — Por certo que há muitos dessa categoria. — Logo, como podem estes — disse ele — só pela ciência fazeremse superiores aos mais em virtude? — Assim se colige desse teu raciocínio, mas tomara eu saber qual é a razão? — É porque habitam em a segunda Cerca vizinhos da verdadeira Erudição. De que lhes aproveita estarem vizinhos, se muitas vezes vemos a alguns virem da primeira Cerca, isto é, da dissolução e de outros vícios, para a terceira Cerca, onde está a verdadeira Erudição e passam além dos sábios. Pelo que, que vantagem têm estes mais que os outros, só em não serem mais dados à preguiça e menos dóceis? — Como é isto? — Disse eu. — É porque os da segunda Cerca são presumidos de saberem aquilo que ignoram. E enquanto vivem com esta opinião, necessariamente, hão-de ser vagarosos em apetecerem a verdadeira Erudição. Além disto, não reparas que as Opiniões da primeira Cerca também vêm procurar a estes? De sorte que por esta razão, em nada são melhores que os outros, excepto quando se arrependem e ficam persuadidos de que não viviam com a verdadeira Erudição, mas sim com a falsa, com a qual andavam enganados e, jamais, neste estado, se

poderiam salvar. Vós pois, ó Estrangeiros, disse ele, se não fizerdes e observardes à risca por muito tempo estas coisas que vos expliquei, até que delas adquirais hábito (porquanto deveis muitas vezes meditar nelas sem interpolação e reputar as outras coisas como escusadas), então não tirareis fruto algum do que me ouvistes. — Assim o faremos. Mas declara-nos, por que motivo não são boas aquelas coisas que se recebem da Fortuna, como por exemplo o viver, ter saúde, ser rico, ter boa nota, ter filhos, vencer e outras coisas semelhantes? Ou pelo contrário como não são más as coisas opostas a estas já referidas? Porquanto, como dizem, nos parecem absurdas e incríveis! — Eia pois — disse ele — esforça-te a responderes com desempenho às perguntas que eu te fizer, mostrando-me o teu parecer. — Assim o farei. — Lhe disse eu. — Ora pois, atende. É bom porventura o viver àquele que vive mal? — Não, por certo, mas antes é mau. — Pois como —diz ele — é bom o viver, se a este é mau? — Porque aos que vivem mal é mau, mas é bom para os que vivem bem. — Logo, por consequência, dizes que o viver é bom e é mau. Não é isto? — É, sem dúvida. — Toma sentido. Não digas algum absurdo, pois que é impossível que uma coisa seja boa e má juntamente, assim como não pode ser apetecida e abominada ao mesmo tempo uma coisa sempre útil e nociva, porquanto seria isto um absurdo. — Mas de que modo sendo o viver uma coisa má para aquele que vive mal, é má a mesma vida em si? Certamente que há distinção entre o viver, e viver mal. Não te parece? — Na verdade, que me não parece ser o mesmo. — Logo o viver não é coisa má. Porque se o fosse, para os que vivem bem também seria mau o viver. Não és desta opinião? — Sou sim. Pensas nobremente. — Pois então porque o viver acontece a ambos, assim aos que vivem mal, não será a vida nem boa, nem má, da mesma sorte que nos enfermos o cortar, ou cauterizar, é saudável ou nocivo. E senão repara: qual quererias tu mais, viver mal, ou morrer glorioso e como homem esforçado?

— O morrer glorioso. — Logo o morrer não é coisa má, porquanto muitas vezes se prefere a morte à vida. — Assim é, não há dúvida. — O mesmo se discorre a respeito da saúde e da enfermidade, porque às vezes, conforme as ocasiões o permitem, é melhor estar doente do que são. — Tens dito optimamente. — A mesma razão milita a respeito das riquezas, porque considerando em alguns que as têm, estes vivem em uma extrema miséria. — Na verdade, que muitos há dessa casta. — Logo, segue-se que as riquezas a estes tais nada contribuem para viverem bem. — Eu não o infiro, porque esses são maus e vis. — Por consequência, não são as riquezas que fazem aos homens bons, mas é a erudição. — É provável que sim. — Atendida pois a razão como são as riquezas boas, se estas não fazem melhores aos que as possuem, do que aos que as não têm? — Parece que não. — Logo, então sendo assim, de que aproveitam as riquezas àquelas pessoas que se não sabem utilizar delas? — Sigo a tua opinião. — Como pois pode qualquer julgar uma coisa como boa, a qual muitas vezes nada importa que o seja? — De nenhuma sorte o julgará. — Quem pois souber utilizar-se bem das riquezas com economia, este, se assim o fizer, viverá feliz e, se assim o não fizer, será desgraçado. — Justíssima razão te acho nestas coisas que dizes. — Em uma palavra: digo que o que mais geralmente perturba e prejudica aos homens é o estimar estas coisas como boas e desprezálas como más, imaginando que só com elas se engrandecem e se felicitam. E por causa das mesmas fazem coisas muito injustas, sucedendo-lhes todo o mal, porque ignoram em que consiste o bem.

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