(TCC) PORNOGRAFIA NA CULTURA CONTEMPORÂNEA: Estratégias do poder no mainstream

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CURSO DE PSICOLOGIA

PORNOGRAFIA NA CULTURA CONTEMPORÂNEA: Estratégias do poder no mainstream

Elaborado por

Raísa Fernandes Ferreira

Rio de Janeiro Junho de 2013

Raísa Fernandes Ferreira

PORNOGRAFIA NA CULTURA CONTEMPORÂNEA: Estratégias do poder no mainstream

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência da disciplina TCC do Curso de Psicologia do Centro Universitário Celso Lisboa, orientado pelo Prof. Mestre Thiago Melicio.

Rio de Janeiro Junho de 2013

FOLHA DE APROVAÇÃO CENTRO UNIVERSITÁRIO CELSO LISBOA CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Elaborado por RAÍSA FERNANDES FERREIRA

PORNOGRAFIA NA CULTURA CONTEMPORÂNEA: ESTRATÉGIAS DO PODER NO MAINSTREAM Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência da disciplina TCC do Curso de Psicologia do Centro Universitário Celso Lisboa. TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APROVADO EM 21/06/2013

BANCA EXAMINADORA

__________________________________ Prof. Orientador Mestre Thiago Melicio

__________________________________ Prof. Doutora Cristal Moniz de Aragão

Rio de Janeiro Junho de 2013

AGRADECIMENTOS À minha mãe, Ana, pelo exemplo de vida, que me inspira e me move a perseguir meus objetivos. Ao Lucas, grande companheiro e amigo, que acreditou nas minhas potencialidades e me faz acreditar também, cuja presença e auxílio foram fundamentais na execução deste trabalho e na minha formação. Ao professor e orientador Thiago, pela atenção, cuidado detalhista e palavras motivadoras que me fizeram acreditar na qualidade deste trabalho. E a todos os professores que, com seus exemplos de profissionalismo, ética, dedicação ao ofício, ajudaram a construir a psicóloga que me tornei.

FERREIRA, Raísa Fernandes. Pornografia na cultura contemporânea: Estratégias do poder no mainstream. Trabalho de graduação do Curso de Psicologia do Centro Universitário Celso Lisboa, Rio de Janeiro, junho de 2013. RESUMO O presente artigo apresenta a sexualidade através da perspectiva foucaultiana, entendo-a como uma produção discursiva, situada em um contexto sócio-histórico, político e econômico. Articula-se o conceito de sexualidade ao de pornografia, sendo esta última também uma produção contextualizada, surgindo com a invenção da tecnologia da impressão. O objetivo deste trabalho é apresentar as alterações da pornografia como categoria cultural e, como elementos antes pornográficos, transgressores, obscenos foram sendo paulatinamente inseridos na cultura mainstream, através dos mecanismos polimorfos do poder, segundo o conceito foucaultiano. Tal mudança cultural, que possui múltiplos atravessamentos, produz efeitos nos corpos, desejos e modos de subjetivação dos indivíduos. Entende-se que a pornografia surgiu de uma oportunidade mercadológica, com objetivo de questionar a ordem vigente, as autoridades políticas e religiosas. Entretanto, elementos pornográficos que antes serviram para se opor ao status quo, foram assimilados pela cultura de massa, que para além dos interesses no lucro, visa também a produção e o controle de subjetividades, modos de ser, desejos, comportamentos e para isso utiliza-se das mais sutis estratégias de poder. Apontase então para a importância das práticas de liberdade, que Foucault acredita ser o modo como o indivíduo pode efetuar uma auto-elaboração e assim fazer uso da ética como uma liberdade refletida, um modo de se produzir como sujeito e elaborar a própria vivência da sexualidade.

Palavras chave: Pornografia; Sexualidade; Discurso; Estratégias de poder.

ABSTRACT

The present article shows sexuality in the foucauldian perspective, understanding it as a discursive production located in a socio-historic, political and economic context. The concept of sexuality operate with the notion of pornography as a contextualized production, emerging with the invention of the printing technology. The objective of this work is to demonstrate the alteration in the pornography as cultural category, and how elements that were considered pornographic, offenders, obscene, started to being inserted, slowly, in the mainstream culture, by polymorphic mechanism of power, as conceptualized by Foucault. Such cultural changes, that has multiples crossings, affects bodies, desires and modes of subjectivation of the individuals. Understands that pornography appears from a marketing opportunity, aiming to question the order, political or religious authority. However, pornographic elements that were used against the status quo, started to be use by the mass culture that, beyond the pursuit for profit, is aiming for the production and control of the subjectivities, modes of being, desires, behaviors and, for that, resort for the most subtle strategies of power. Points out, then, for the importance of the practices of freedom, that Foucault believes to be the way that individuals can auto-elaborate themselves and, then, use the ethics as a reflective freedom, a way of production the subject and live oneself's sexuality.

Keywords: Pornography; Sexuality; Discourse; Power strategies.

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................7 2. DESENVOLVIMENTO.............................................................................................9 2.1 DISCUSSÃO........................................................................................................10 2.2 SEXUALIDADE: PRODUÇÃO E INCITAÇÃO AO DISCURSO............................11 2.3 DA PORNOGRAFIA À PORNOGRAFICAÇÃO DA CULTURA............................12 2.4 CORPO, DESEJO E SUBJETIVIDADE...............................................................14 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................18 REFERÊNCIAS..........................................................................................................20

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1. INTRODUÇÃO

O estudo da pornografia possibilita um maior entendimento das manifestações contemporâneas e ocidentais da sexualidade. Ambos conceitos, sexualidade e pornografia, não se constituem como naturais e não possuem caráter universal, sendo construídos culturamente em relação: “Por essa razão, a perspectiva histórica é crucial para a compreensão da pornografia na cultura contemporânea” (HUNT, 1999, p. 11). O surgimento e desenvolvimento da pornografia acompanhou a emergência da modernidade no Ocidente (op. cit., p. 10) e em seu decorrer, se estabeleceu como categoria cultural, sofrendo progressivas transformações. Em “A invenção da pornografia: Obscenidade e as origens da modernidade, 1500-1800”, Hunt investiga e situa o fenômeno: Na Europa, entre 1500 e 1800, era mais frequentemente um veículo que usava o sexo para chocar e criticar as autoridades políticas e religiosas. Porém, emergiu lentamente como categoria distinta nos séculos entre o Renascimento e a Revolução Francesa, por causa, em grande parte, da difusão da própria cultura impressa. O desenvolvimento da pornografia ocorreu a partir dos avanços e retrocessos da atividade desordenada de escritores, pintores e gravadores, empenhados em pôr à prova os limites do ''decente'' e a censura da autoridade eclesiástica e secular […] Em seu sentido moderno, o termo só foi definido e difundido no século XIX (HUNT, 1999, p. 10).

Nota-se que a pornografia, como categoria cultural, assumiu em seu surgimento um caráter político, transgressor e obsceno. Político em uma tentativa de criticar e atacar autoridades; transgressor por tentar subverter a ordem vigente e obsceno por difundir imagens e palavras que feriam o pudor e representavam o sexo de maneira explícita (MORAES, 2003). As obras pornográficas conseguiram grande distribuição e alcance, tendo a tecnologia da impressão como facilitadora deste processo (HUNT, 1999). Atualmente, pode-se considerar a mídia (televisão, internet, etc.) um dos principais veiculadores da pornografia, ou melhor, de elementos antes pornográficos e transgressores que hoje estão articulados a outros elementos culturais, como a literatura, o cinema e a música – indo além da existência do mercado pornográfico em si. Considerando os elementos apontados, cabe o questionamento: de que modo se deu a mudança nas formas da pornografia? Qual mudança nos contextos social,

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econômico, político, permitiu que a pornografia, já estabelecida como categoria cultural, migrasse seus elementos, considerados obscenos, para outros aspectos da cultura? Como e por que elementos antes considerados pornográficos, atualmente fazem parte da cultura mainstream? Logo, faz-se necessário pensar a sexualidade contemporânea como construção constante, assim como a pornografia e seus elementos já banalizados e, a partir deste ponto analisar possíveis efeitos nos modos de subjetivação e produção dos sujeitos, assim como no engendramento dos desejos e seus desdobramentos no corpo.

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2. DESENVOLVIMENTO

Este trabalho utiliza a concepção foucaultiana de que a sexualidade é inventada, produzida e por isso, deve ser concebida não com um dado da natureza, mas sim como um dispositivo histórico. Seria uma grande rede da superfície em que: A estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder (FOUCAULT, 1999b, p. 100).

O autor supõe que em toda a sociedade, a produção do discurso seja simultaneamente “controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 1999a, p. 9). Também aponta para o perigo dos indivíduos falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente. É através do discurso que se interdita: não se pode falar de tudo e em qualquer circunstância. Foucault afirma que, embora o discurso não aparente ter muita importância, muito valor, as interdições a ele direcionadas revelam a ligação do discurso com o desejo e com o poder. O discurso é então, não aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder que lhe é intrínseco (FOUCAULT, 1999a). Há para isso, uma rede de instituições que engendram e administram os discursos, por exemplo, quando um psiquiatra, psicólogo ou psicanalista é permitido através de sua escuta profissional, acessar a “loucura” do outro, a categorizar, diagnosticar, seu ato contextualiza-se em uma trama discursiva, produzida socio-histórico e politicamente. E para Foucault, “[...] é sempre na manutenção da cesura que a escuta se exerce.” (op. cit., p. 13). E é nessa trama discursiva que engendram-se “verdades”, supostos discursos verdadeiros pertencentes as estratégias do poder, criados e disseminados para controlar uma proliferação discursiva maior. Há uma vontade de verdade que se apóia em um suporte institucional, neste caso, em saberes científicos instituídos. A vontade de verdade, apoiada pelo suporte institucional, tende a exercer um poder de coerção sobre outros discursos. Foucault afirma que atualmente, é na região da sexualidade que a complexa

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trama discursiva é mais cerrada e buracos negros se multiplicam (FOUCAULT, 1999a).

2.1 DISCUSSÃO

Segundo Foucault (1999b, p. 120) “[…] a sexualidade é o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por um certo dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa [...]”. Por poder, entende-se um jogo de forças, onde “o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (op. cit., p. 89). Para Foucault, devemos abandonar a hipótese de repressão do sexo e assumir uma outra – afirmativa de que há uma incitação para colocação do sexo em discurso. Sendo assim, o poder não assumiu caráter repressivo, nem se caracterizou como a instância que interdita. Foi em meados do século XVIII que nasceu uma incitação política, econômica e técnica, para falar-se do sexo, logo, o poder assumiu uma forma ardilosa e camuflada, difícil de ser detectada, percebida e combatida. O autor defende que, a partir do século XVIII, a confissão como prática (e tática) religiosa produziu uma rede discursiva sobre o sexo e no século seguinte, tal prática deixou de ser apenas religiosa e se estabeleceu em outros campos, como na medicina, pedagogia e justiça; fazendo parte de diversas relações: alunos-pedagogos, criançaspais, doentes-psiquiatras, delinquentes-peritos. Onde se tornava necessário saber (do que se fazia, o que se pensava), para então normatizar (prazeres, condutas, etc.). Mas o discurso não é apenas instrumento e efeito do poder, podendo ser, simultaneamente, também um ponto de resistência – dando espaço a uma estratégia oposta à estratégia do poder. Isto ocorre porque o discurso, ao mesmo tempo que pode ser efeito do poder, o expõe. Um discurso não é totalmente oposto ao poder, como também não é totalmente submetido a seus mecanismos (FOUCAULT, 1999b). Como afirma Fernández: “o sexo ocupa o lugar central no eixo articulador do dispositivo de poder produtor de sujeitos e regulador de populações que Foucault denomina biopoder” (2000, p. 132, tradução nossa). Conclui-se que podem haver discursos diferentes em uma mesma estratégia, ou discursos iguais que fazem parte de estratégias opostas (FOUCAULT, 1999b).

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2.2 SEXUALIDADE: PRODUÇÃO E INCITAÇÃO AO DISCURSO

Por que se falou da sexualidade, e o que se disse? Quais os efeitos de poder induzidos pelo que se dizia? Quais as relações entre esses discursos, esses efeitos de poder e os prazeres nos quais se investiam? Que saber se formava a partir daí? Em suma, trata-se de determinar, em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime de poder- saber- prazer que sustenta, entre nós, o discurso sobre a sexualidade humana (FOUCAULT, 1999b, p. 16).

Para Foucault, ao analisar o que se diz sobre o sexo é essencial considerar quem fala, os lugares e os pontos de vista de que se fala, as instituições que incitam a fazê-lo, o que armazenam e difundem do que dele se diz, em suma, o “fato discursivo” global, a “colocação do sexo em discurso” (FOUCAULT, 1999b, p. 16). Segundo o autor, a partir do século XVIII, ao contrário do que se acredita, não houve uma repressão, mas sim a incitação política, econômica e técnica para que se falasse do sexo, o que deu origem a um discurso científico sobre o assunto. Havia uma necessidade de regular o sexo, e isso não ocorria pelo rigor de proibições, e sim por meio de discursos públicos. “Prazer e poder não se anulam; não se voltam um contra o outro [...] Encadeiam-se através de mecanismos complexos e positivos, de excitação e incitação” (op. cit., p. 48). Além de defender a hipótese da incitação do discurso sobre o sexo, Foucault criou o conceito de dispositivo de sexualidade, para denominar um dispositivo criado pelas sociedades modernas ocidentais, a partir do século XVIII e que teria como objetivo: “proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global”, concluindo que a sexualidade está ligada a dispositivos recentes de poder (FOUCAULT, 1999b, p. 101). O autor também contrapõe dois conceitos relacionados a sexualidade: a ars erotica e a scientia sexualis, onde a primeira faria referência à arte erótica em países como Japão, China, Índia, Roma e nações árabes-muçulmanas, onde o prazer está relacionado a si mesmo, a sua qualidade, intensidade, duração e reverberação no corpo e na alma. Segundo a tradição, a ars erotica seria um saber a ser mantido em segredo, sob pena de perder sua eficácia e virtude, privilegiando quem a dominasse: gozo excepcional, domínio do corpo, esquecimento do tempo, seriam alguns dos benefícios. A segunda, a scientia sexualis, se refere ao saber- poder que regula a sexualidade da nossa sociedade,

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definindo verdades sobre o sexo (FOUCAULT, 1999b). Os processos mencionados apontam para a estratégia do poder de colocar o sexo em discurso, através de um mecanismo polimorfo – medicina, justiça, pedagogia, religião o constituem – que constrói a verdade sobre o sexo. A estratégia que teve início com a confissão religiosa, atualmente assume formas variadas, nos mais diversos meios da complexa sociedade contemporânea. A ciência, os meios de comunicação, a tecnologia e o capitalismo são, atualmente, normatizadores de sexualidades e identidades, que encontraram modos refinados de penetração e controle dos prazeres cotidianos (FOUCAULT, 1999b), gerando efeitos nos indivíduos – assim como a pornografia – que hoje já é considerada uma categoria independente da cultura midiática (PINTO; NOGUEIRA; OLIVEIRA, 2010). Para Foucault (1999b), o discurso sobre a repressão moderna do sexo se sustenta porque é fácil de ser dominado. Pode-se dizer o mesmo do discurso atual sobre a marginalidade e os outros “[...] atributos hegemonicamente associados à pornografia [...]” (op. cit., 2010, p. 375), como seu caráter transgressor, obsceno; sua oposição à moralidade. Para além da facilidade de dominação do discurso da repressão do sexo, uma outra explicação possível, segundo Foucault (1999b), para a noção de sexualidade reprimida é o benefício do locutor. Ora, se o sexo é reprimido, fadado a proibição, apenas o fato de falar dele e de sua repressão se constitui como transgressão e quem o faz antecipa uma certa liberdade, escapa do controle do poder. Logo: Falar contra os poderes, dizer a verdade e prometer o gozo; vincular a iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; empregar um discurso onde confluem o ardor do saber, a vontade de mudar a lei e o esperado jardim das delícias – eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a obstinação em falar do sexo em termos de repressão; eis, também, o que explica, talvez, o valor mercantil que se atribui não somente a tudo o que dela se diz como, também, ao simples fato de dar atenção àqueles que querem suprimir seus efeitos (FOUCAULT, 1999b, p. 12 - 13).

2.3 DA PORNOGRAFIA À PORNOGRAFICAÇÃO DA CULTURA

Atualmente, há uma articulação entre novas tecnologias e pornografia, onde ambas se retroalimentam. Observa-se também o crescimento do mercado pornográfico, sua

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especialização e diversificação (BERNSTEIN, 2008), onde o “erótico se dissolve no econômico” (PISCITELLI; GREGORI; CARRARA, 2004, p. 14). Além do crescimento da pornografia e do seu mercado, há um outro evento, onde seus elementos migram cada vez mais para outros aspectos da cultura. Pornograficação do mainstream (MCNAIR, 1996 apud PINTO; NOGUEIRA; OLIVEIRA, 2010) é um conceito criado para se referir ao processo de assimilação de elementos pornográficos pela cultura de massa – mainstream – que possui um grande alcance e chega a maior parte da população. “As fronteiras que separam a pornografia de outras representações da sexualidade parecem-nos hoje cada vez menos claras, sendo os seus conteúdos e suas implícitas relações ou formas de consumo insuficientes para as distinguir” (PINTO; NOGUEIRA; OLIVEIRA, 2010, p. 376). A pornografia faz parte do mecanismo polimorfo do poder (FOUCAULT, 1999b), que coloca o sexo em discurso e, depois, o que se fala dele, é alvo de normatização, de mercantilização. Fato que exemplifica isso é a utilização de um “corpo conceitual-prático”, pela indústria do entretenimento. Na indústria de televisão e publicidade, atuam pesquisadores de mercado, “[...] como mediadores na relação estratégica entre produtores e consumidores, de imagens e demais mercadorias” (HAMBURGER; ALMEIDA, 2004, p. 118). A atividade desses profissionais consiste em produzir perfis típicos de audiências, à luz do saber sociológico, em uma ação disciplinadora, de acordo com a perspectiva de Foucault. E “[...] representações da sexualidade ocupam lugar estratégico, embora não explícito, nas formulações desses tipos ideais de consumidores” (HAMBURGER; ALMEIDA, 2004, p. 118). Como o trabalho “Sociologia, pesquisa de mercado e sexualidade na mídia: audiências X imagens” assinala, representações da sexualidade estão ganhando espaço na televisão e na publicidade, afirmando que “a presença de referências à sexualidade nas imagens e no saber técnico que monitora “audiências” sugere questionamentos conceituais relevantes” (HAMBURGER; ALMEIDA, 2004, p. 118), pois, é a partir do saber científico associado a perfis de audiências, criados por profissionais da mídia, que se produzem conteúdos específicos. É nesse contexto que profissionais se utilizam de saberes como sociologia e psicologia para classificar a massa formada por telespectadores/ consumidores, reduzidos a segmentos de mercado, com objetivos de produção e lucro. Eles descrevem o que seriam desejos e expectativas dos tais segmentos (grupos sociais), a partir de uma lógica

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de mercado (HAMBURGER; ALMEIDA, 2004). Fica clara a exposição de corpos, a veiculação de imagens que fazem referência à sexualidade, enfim, a colocação do sexo em discurso, por parte da mídia, que se utiliza até um “corpo científico” para dominar um outro, um “corpo real” – e outros corpos – seja o social, ou o subjetivo. Logo, a mídia pode tanto construir quanto reforçar significados, como os de gênero, identidade sexual, entre outros.

2.4 CORPO, DESEJO E SUBJETIVIDADE

A noção de corpo é dada aos indivíduos em um processo de atribuição de significados aos seus corpos. Tratando-se das sociedades industriais desenvolvidas, atribui-se um corpo ao outro, produz-se um corpo, “[…] um corpo capaz de se desenvolver num espaço social, num espaço produtivo, pelo qual somos responsáveis” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 278). Pode-se dizer que, no capitalismo, há uma noção de corpo criada e dada aos indivíduos, onde esse mesmo corpo deve se inscrever em uma economia social, e possuir um certo tipo de funcionamento dentro da mesma. Logo, o corpo, o modo de se comportar, são meios de se inserir em uma subjetividade dominante, onde corpo e subjetividade devem se enquadrar, em uma adaptação normalizadora (GUATTARI; ROLNIK, 1996). Se a normatização da sexualidade existe, a atenção deve se voltar então para “como ela é utilizada, incorporada, na constituição da força coletiva de trabalho, na produção de consumidores, no conjunto de sistemas de produção inerentes ao capitalismo” (op. cit., p. 280). Os dois autores, Guatarri e Rolnik, falam de uma “serialização subjetiva”, para fazer referência à subjetividade dominante, em que os indivíduos se veem cada vez mais solicitados a investir na “poderosa fábrica de subjetividade serializada”, abrindo mão de seus próprios desejos. Assim, subjetividades e sexualidades vão sendo moldadas. Sobre o capitalismo, ou melhor, modos de produção capitalísticos, como prefere Guattari: O que caracteriza os modos de produção capitalísticos é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que são da ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de

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financiamento. Eles funcionam também através de um modo de controle da subjetivação […] Desse ponto de vista o capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o capital ocupase da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva. E quando falo em sujeição subjetiva não me refiro apenas à publicidade para a produção e o consumo de bens. É a própria essência do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está também na tomada de poder da subjetividade (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 15- 16).

Produtos e também subjetividades são criados no modelo de produção e consumo. A cultura de massa, ou mainstream, produz indivíduos normatizados e as subjetividades produzidas não são somente as individuais, produz-se também subjetividade social: “[...] uma produção da subjetividade que se pode encontrar em todos os níveis da produção e do consumo. E mais ainda: uma produção da subjetividade inconsciente” (op. cit., p. 16). Contudo, como elucida Foucault (1999b), se o poder é um jogo de forças e normatiza a sexualidade, ele também expõe suas táticas. Logo, uma resistência é possível e pode se dar através dos modos de subjetivação singulares, nos processos de singularização, onde a singularização coincide com o desejo do sujeito e este pode criar seus próprios meios de relação com o outro, produzindo uma subjetividade singular (GUATTARI; ROLNIK, 1996). Sobre a hipótese de que o capitalismo reprime o sexo, com a premissa de que desta forma é garantido um armazenamento ou poupança de energia, que deve ser canalizada para o trabalho, Foucault afirma que, no século XVIII, com a ascensão da burguesia, o que ocorreu foi uma auto-afirmação dessa classe e não a sujeição do restante da população. Com o aumento das cidades e com as questões a ela relacionadas se complexificando, houve a intensificação do corpo e a problematização da saúde, que explica-se através da crescente preocupação com doenças que poderiam surgir no ambiente urbano. “Ao invés de uma repressão do sexo das classes a serem exploradas, tratou-se, primeiro, do corpo, do vigor, da longevidade, da progenitura e da descência das classes que “dominavam” ” (FOUCAULT, 1999b, p. 116). Era uma tentativa burguesa de criar e valorizar seu corpo, com objetivo de estabelecer um valor diferencial, e não de reprimir o sexo da sua força de trabalho. A burguesia tratou de colocar o sexo em discurso, para diferenciar a sua sexualidade da sexualidade do proletariado – colocação do sexo em discurso que já não ocorria através da confissão religiosa e sim através dos saberes que emergiam, como a

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medicina e a pedagogia. Porém, em um dado momento, se viu obrigada a dar ao restante da população o mesmo caráter de sexualidade que possuía, pois questões como moradia, epidemias, se constituíram um problema a ser solucionado. A colocação do sexo em discurso já ocorreu através da religião, da ciência e atualmente, através da pornografia/ pornograficação da cultura e de uma questionável “liberação sexual”. Como afirma Foucault (1999b), para conhecer e entender as estratégias do poder, faz-se necessário questionar quem fala do sexo e o que se fala, ou seja, conhecer a posição que o locutor assume na trama discursiva. Através desta perspectiva, a pornografia e a crescente pornograficação da cultura podem ser analisadas. Criar representações alternativas da sexualidade, feitas a partir de olhares divergentes do olhar normativo (PRECIADO, 2007 apud PINTO; NOGUEIRA; OLIVEIRA, 2010), se constituí como necessidade dentro do jogo de forças do poder – dá aos indivíduos a oportunidade de se constituírem como sujeitos, produtores de sua própria subjetividade singular e do modo como desejam estar no mundo. Há, atualmente, discursos permeados por uma certa democratização dos corpos e dos modos de ser, mas que encobrem estratégias do poder, sugerindo que hoje, mais do que nunca, vive-se o sexo livre e fala-se dele abertamente. No entanto, alguns grupos são marginalizados exatamente por seu modo de ser e de viver o sexo – em um retrato de uma normatização, de um sistema que ainda possui padrões de comportamento desejáveis, mesmo que suas formas de controle não sejam a repressão e a punição – mostrando que por trás da atual falácia da liberação sexual, as redes de poder têm capturado todas as produções de modos de ser e estar no mundo diferentes do modo dominante e as infantilizando, patologizando e segregando. Dessa maneira, uma parte da pornografia ainda se coloca como uma forma de resistência, um forma de ligar o corpo ao desejo, uma forma de dar passagem aos afetos, que não àquelas capturadas pelo mainstream. Se, como afirma Findlen, a história da pornografia “Relaciona-se com a persistência da cultura manuscrita, o impacto da atividade de impressão, a natureza da autoria, a difusão da alfabetização e o processo de circulação das palavras e das imagens” (HUNT, 1999, p. 55), ou seja, a pornografia surgiu e se estabeleceu por consequência de uma oportunidade mercadológica e, como esclarece Frappier-Mazur (1999), a palavra obscena não apenas representa o objeto a que se refere, mas torna-se o próprio objeto.

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Pode-se concluir que a pornografia não apenas representa o objeto, mas se constitui como tal, onde há uma possibilidade do desejo de quem consome pornografia não se relacione apenas com o objeto por ela representado, mas por um objeto real. Pensando a pornografia já disseminada nos diversos aspectos da nossa cultura, sem seu caráter primeiro – transgressor – faz-se necessário pensar como o desejo e o processo de subjetivação do indivíduo-consumidor é afetado. Se a pornografia não apenas representa mas se torna o próprio objeto, essa questão se acentua quando se trata de toda a cultura estar permeada por elementos pornográficos. Em “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”, Foucault alerta para a problemática da liberação, afirmando que, ao utilizar este tema: […] corre-se o risco de remeter à idéia de que existe uma natureza ou uma essência humana que, após um certo número de processos históricos, econômicos e sociais, foi mascarada, alienada ou aprisionada em mecanismos, e por mecanismos de repressão. Segundo essa hipótese, basta romper esses ferrolhos repressivos para que o homem se reconcilie consigo mesmo, reencontre sua natureza ou retome contato com sua origem e restaure uma relação plena e positiva consigo mesmo (2004, p. 265).

Referindo-se à sexualidade, o autor aponta que, mais do que defender a liberação do desejo e do sexo, deve-se pensar as práticas de liberdade, pois através delas, será possível “[...] definir o prazer sexual, as relações eróticas, amorosas e passionais com os outros” (FOUCAULT, 2004, p. 266). Pois, “a liberação abre um campo para novas relações de poder, que devem ser controladas por práticas de liberdade” (op. cit., p. 267). Articulando a teoria foucaultiana ao momento atual, o da pornograficação da cultura, da sexualização da cultura, pode-se dizer que a liberação sexual, a luta contra uma certa repressão deve dar espaço a outro tipo de pensamentos e atitudes: questionamento sobre quem produz, veicula, fala, reproduz discursos sobre a sexualidade, em suas mais variadas nuances. O objetivo da liberação da sexualidade deve dar lugar a prática da liberdade, porém uma prática refletida da liberdade, que podese denominar ética, onde cada indivíduo a faz de forma singular, em um exercício ético (refletindo seu modo de ser, elaborando-se) de se produzir enquanto sujeito. Deste modo, no cuidado de si, no exercício ético da liberdade, pode-se conhecer o poder, suas estratégias e assim, um meio de limitá-las (FOUCAULT, 2004) e se aproximar dos modos de subjetivação, mais do que dos processos de objetivação, permitindo que o indivíduo se constitua como sujeito.

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pornografia surgiu de uma oportunidade mercadológica, com o advento da impressão, porém, tinha como objetivos questionar a ordem social vigente, suas autoridades. Após se estabelecer como categoria cultural, ganhou novos espaços através do desenvolvimento de novas tecnologias. Formas de consumo do sistema econômico favoreceram o crescimento do mercado pornográfico, assim como a assimilação de seus elementos por outros aspectos da cultura. A análise deste fenômeno conduz a conclusão de que a pornografia surgiu como uma resistência às estratégias de poder, e que, ao longo do tempo, se tornou parte das estratégias que tentou subverter. Elementos pornográficos agora fazem parte de produtos audiovisuais, como a programação televisiva, onde emissoras se utilizam de saberes científicos para analisar o público consumidor e criar seu conteúdo, sua programação. Assim, subjetividades e sexualidades são produzidas, a partir de certos parâmetros culturais, que são construídos com auxílio da ciência. O poder, através de técnicas polimorfas e de estratégias sutis, constrói a idéia da necessidade de liberação sexual, que deve ser questionada, e ceder espaço as práticas da liberdade, da elaboração individual, indo ao encontro não apenas da liberação, mas de uma liberdade que é a do sujeito, enquanto produtor de si, de seu modo de ser e de se relacionar com o outro. A auto-elaboração, o exercício de si sobre si mesmo, para atingir um certo modo de ser, estão relacionados as práticas de liberdade. Foucault propõe então que se defenda as práticas de liberdade, mais do que os processos de liberação, já que fazer referência à mecanismos de repressão poderia conduzir a uma crença ilusória de que há necessidade de uma liberação sexual, de que existe uma sexualidade natural e universal que precisa ser liberada, hipótese refutada pelo autor, que aponta para o caráter histórico e cultural da construção da sexualidade. Há uma rede de instituições que engendram e administram os discursos e, sabendo-se que o poder é imanente a este último, supostas verdades são criadas, perpetuadas e validadas pelos saberes científicos. Tal produção de discursos pertence as estratégias do poder, possuindo como objetivo: controlar a proliferação discursiva dos indivíduos, bem como engendrar sujeitos e controlar populações. Assim sendo, o lugar do psicólogo nesta trama discursiva deve ser percebido e constantemente refletido. A reflexão não deve se dar apenas a partir do arcabouço teórico

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que orienta a profissão, mas deve ocorrer também a partir de suas práticas, que são sócio-histórico e politicamente contextualizadas e construídas em diálogo com a teoria. O psicólogo, em sua práxis, deve estar atento e favorecer os modos de subjetivação singulares, e assim, realizar um ponto de resistência às estratégias do poder. Deste modo, pode-se assegurar os direitos e a proteção de minorias sexuais, e o afastamento de práticas profissionais estigmatizantes e excludentes.

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