TEATRALIDADE EM JEAN-PAUL SARTRE: O DRAMA DA EXISTÊNCIA “EM JOGO”

June 24, 2017 | Autor: Fernanda Alt | Categoria: Clinical Psychology, Theatre Studies, Existential Psychology, Jean Paul Sartre, Existentialism
Share Embed


Descrição do Produto

TEATRALIDADE EM JEAN-PAUL SARTRE: O DRAMA DA EXISTÊNCIA “EM JOGO”1 Fernanda Alt

Este trabalho busca refletir sobre a teatralidade como uma característica importante que se mostra presente em diferentes expressões do pensamento de JeanPaul Sartre. Acredito que através das reflexões sobre o componente teatral em Sartre, torna-se possível abordar alguns temas que nos auxiliam a compreender de uma forma original nosso modo de ser e de ser relacionar com os outros. Tal escolha pela ideia de teatralidade se deu assim por acreditar que ela acentua um aspecto essencial da nossa existência: o quanto buscamos nas relações com os outros uma identidade que se equivale à relação de um ator com seu personagem, como aquele que deve realizar constantemente seu papel. Isto é, através das considerações sobre o aspecto teatral nas diferentes formas de expressão do pensamento sartriano, podemos alcançar uma via compreensiva na descrição das características fundamentais de nosso modo de ser e suas implicações nas relações intersubjetivas. Diante disso, além da descrição da teatralidade como "o teatro sem o texto", tal como definia Roland Barthes, podemos pensar: de que modo este tema permeia as relações humanas no sentido de evidenciar uma representação coletiva que se dá pela exigência de certos papéis ou personagens sociais? E ainda: qual a relação possível entre nosso modo de ser e esta espécie de busca por um personagem que aponta, na verdade, para o desejo de um legítimo “lugar ao sol” em meio a uma "arrumação" coletiva? Esta necessidade de pertencimento a um lugar legitimado através do personagem só faz sentido, com efeito, se partirmos da premissa sartriana de que o homem não é definido de antemão por uma essência apriori, mas, justamente, se compreendermos que seu modo de ser é liberdade, o que implica necessariamente uma existência que não pode ser justificada, ou "resolvida", por nenhuma natureza, se revelando assim na condição gratuita da contingência absoluta. Dizer que existir é equivalente a ser liberdade, significa dizer que existir é estar sempre em questão para si, 1

Trabalho apresentado no IV Congresso Latino Americano de Psicoterapia Existencial e enfoques afins Rio de Janeiro - 2011.

ou, como prefiro acentuar nesta apresentação, existir é estar sempre em jogo para si. Mas, além disso, pelo fato de co-existirmos, aquele que está “em jogo” para si, está necessariamente, desde sempre, “em jogo” para o Outro. Na trama dos papéis sociais, o que ocorre então é uma constante exigência para que o homem se escolha, visto que é liberdade, mesmo na condição “vacilante” de existir duplamente "em jogo". Diante desta condição, Sartre parece dramatizar nosso modo de ser, se nos ativermos à ideia clássica de drama apontada por Jean-François Louette como um "suspense da decisão, e depois decisão” (2005, p.224)2. É exatamente este modo de existência que Sartre nos apresenta em seu teatro, o qual, por sua vez, se mostra como lugar privilegiado da deflagração do mundo como palco social. A ideia de um teatro de situações, tal como é denominado o teatro sartriano, indica uma oposição ao chamado teatro de caráteres, composto por personagens que são identidades definidas de antemão, cujo desenvolvimento teatral só visa a uma expressão máxima dessa individualidade (Liudvik, 2007). Em contraposição, o teatro tal como Sartre o realiza pretende lançar em cena seus personagens como liberdades “em vias de se fazer”, imersos em uma determinada situação que deve ser tensionada ao seu limite para que se caracterize como terreno propício para que venha à tona tudo aquilo que a vida rotineira e naturalizante tende a mascarar, uma vez que as situações-limites, e por isso um teatro de situações, são aquelas que instigam justamente a perda de aderência das máscaras habituais. Na interpretação de Noudelmann (1993), Sartre coloca em cena o “ato nu”, despojado de seus motivos, onde não há por trás dos personagens, nenhum “ego escondido” que os espectadores possam em vão tentar encontrar. Ora, na filosofia sartriana, o próprio ego é descrito como uma “ficção tranqüilizadora” (2012, p.77), exterior à consciência e constituído por ela. A permanência que buscamos em “ser si mesmo” não é garantida por uma identidade pronta, pois ser liberdade significa a impossibilidade, dada pela própria insuficiência de ser, da identidade a si. Tal modo de ser é descrito por Sartre em O ser e o nada como para-si, como aquele que existe de maneira a estar perpetuamente “em questão para si”. Ser para-si e não si, indica uma distância a si insuprimível que veda-nos qualquer 2

Todas as traduções do francês são minhas.

tentativa de consolidação em uma identidade. Assim, já nessa condição existencial de nosso modo de ser, encontramos a teatralidade como fazendo parte do horizonte de possibilidades do para-si que, em oposição à “legitimidade” das coisas que são o que são, vive o “drama” de não ser plenamente o que é. Existir como para-si significa assim, nesta perspectiva, a possibilidade, pela “quebra” da unidade, de apenas “brincar de ser”, o que desvela sua insuficiência de ser em contraposição com a “seriedade” das coisas prontas. Neste contexto, agimos para ser; buscamos uma plenitude que aplacaria a angústia da condição de ser faltante. Quando ousamos mascarar essa condição, nos encontramos naquilo que Sartre descreve como uma conduta de má-fé, isto é, agimos de modo a dissimular a liberdade visando a uma constituição de si à maneira das coisas, a maneira do ser em-si. É através do fenômeno da má-fé que podemos compreender então a possibilidade da representação e da encenação para uma existência que pode apenas “brincar de ser”. O homem é agente e ator, ele se faz através dos seus atos quando age, e se faz de má-fé quando atua através não mais através de atos, mas de gestos. Justamente por não sermos plenamente o que somos que temos a permanente possibilidade da máfé e nesta nos refugiamos toda vez em que pela angústia necessitamos escapar da condenação da liberdade. Encenando, podemos forjar um papel a ser assegurado pela “plateia” como uma identidade que nos justifica, podemos existir de modo a ter “direitos”, como diz Sartre:

Esta é a razão pela qual o homem tenta frequentemente se identificar à sua função e procura ver em si mesmo nada mais que “o presidente do tribunal de apelação”; “o pagador geral do tesouro”, etc. Cada uma dessas funções tem sua existência justificada por seu fim, com efeito. Ser identificado a uma delas é tomar sua própria existência como a salvo da contingência. (Sartre, 2012a, p.530)

Assim, através do papel social, somos reassegurados pelo Outro em uma identidade justificada, por meio de uma tentativa de suprimir a condição de “estar em jogo para si”. As relações sociais ensaiadas, na sua permanência e repetição, constroem

cenários prontos e modelos de condutas que permitem uma ilusão de segurança preferível ao nauseante cenário revelado pela liberdade. Na verdade, nossa sensação de permanência, diz Sartre, provém do nosso lugar e dos nossos arredores; dos juízos alheios a nosso respeito; e do nosso passado, os quais, em conjunto, “figuram uma imagem degradada de nossa perseverança” (2012a, p.596). Para que algo do tipo “permanecer o mesmo” possa ser possível, nossas escolhas de nós mesmos devem ser constantemente reassumidas livremente. É nesse sentido que Sartre corrobora com a frase de Alain de que um “caráter é sempre um juramento”. No entanto, através das relações repetitivas com os outros, como que permeadas por um script social, buscamos, através de nossos personagens, essa identidade impossível. É o que podemos observar em Jean Genet, escritor francês cuja vida é analisada por Sartre, quando assume ser o ladrão que os outros sempre determinaram que ele era. Diz Sartre em Saint Genet, ator e mártir: “A cada vez a criança se mata para ressuscitar o ladrão diante de testemunhas imaginárias. Ele roubava porque “era” ladrão; agora, é para ser ladrão que ele rouba [...] é por isso que ele nomeará mais tarde o roubo um ato poético” (SARTRE, 2011, p.85). A poesia de Genet para ele mesmo se dá nesta realização de “sua natureza” diante de suas testemunhas imaginárias. Portanto, é necessário que mesmo em sua solidão esses olhares estejam presentes para constituir seu ser-ladrão, e o roubo se transforma na cena principal da cerimônia necessária de sua vida. Genet está em jogo para si no jogo maior de suas relações “teatrais” com Outro pelas quais ele atua para ser. A proximidade entre o viver e o encenar, o agir e atuar, levou Sartre a retomar a idéia de André Gide sobre a dificuldade de saber em que medida se sente ou se representa um sentimento, o que denuncia a ambigüidade própria do modo de não ser plenamente si mesmo. A mesma ideia pode ser observada em O ser e o nada: O sofrimento que sinto, […] nunca é sofrimento o bastante [...] Jamais posso ser surpreendido por ele, porque o sofrimento só é na medida exata em que eu o sinto [...] para realizar sofrimento que sou, [devo] representar sem tréguas a comédia de sofrer [...] Cada lamento, cada fisionomia de quem sofre busca esculpir uma estátua em si do sofrimento. Mas esta estátua existirá somente pelos outros, para os outros (SARTRE, 2012, p.128).

O sofrimento sofre por não sofrer o bastante, por não ser plenitude de sofrimento. Somente para o Outro aquilo que é vivido adquire objetividade, logo, a diferença entre sofrer e “representar uma comédia” do sofrimento não é assim tão clara. Por isso Genet, mesmo sozinho, necessita de uma “plateia” imaginária para encenar seu ato principal, seu roubo poético e, deste modo, Sartre estabelece desde já um terreno dramático constitutivo das relações intersubjetivas. Ser ator, afirma Gerd Bornheim (2000), pertence à condição humana e representar um papel significa compartilhar uma espécie de “segunda natureza” significativa, sem a qual o mundo é vivido “nu e cru” em um desvelamento de sentidos nauseante. Deste modo, ser e atuar se encontram em uma linha de afinidade tênue, própria da condição humana, que se embaraça constantemente. É neste sentido que o ator aparece como tema não somente nas análises sartrianas sobre o teatro em si, mas também em suas análises filosóficas sobre a condição humana em geral. Esta estreiteza de relações está presente nos próprios personagens sartrianos, que transmitem um traço metateatral, isto é, um tipo de conscientização quanto ao teor de ficcionalidade que há neles próprios e nas histórias em que vivem, além de uma auto-reflexividade que faz com que se auto-dramatizem (Liudvik, 2007) 3. Alguns desses personagens de fato personificam os temas fundamentais do pensamento sartriano. Encontramos a presença de “chefes”, ou “homens de bem”, “Honestos”, “Justos”, que são criados pelo autor de forma irônica e crítica como símbolo da “solidez”, portanto, da existência legítima, para contrastar com os chamados “bastardos” e “traidores”, personagens que denunciam a teatralidade constitutiva das relações com o Outro. Para Caio Liudvik (2007), o bastardo, anti-herói existencialista, tal como foi descrito por Francis Jeanson, é a figura que mais expressa o tema do ator social, isto é, ele aponta para a rede dos scripts sociais através de seu distanciamento crítico. Este mesmo movimento, se seguirmos a linha de pensamento de Jeanson (1987), é uma espécie de “traição”, por denunciar a comédia do mundo. Assim nos diz, por exemplo, Goetz, personagem de O diabo e o bom Deus que mais representa estas noções:

3 Um traço que podemos observar em cenas como esta de As mãos sujas: “Hugo: Você quer dar uma de

mulher do interior? Jessica: E você encena bem o revolucionário” (SARTRE, 2005b, p.270)

Todos os filhos legítimos podem gozar da terra sem pagar. Não tu. Não eu. Desde a minha infância, olho o mundo pelo buraco da fechadura: é um belo ovinho muito cheio, onde cada um ocupa o lugar que lhe foi assinalado. Posso afirmar, porém que nós não estamos lá dentro. Ficamos de fora. (SARTRE, 1975, p.62).

Deste modo, Sartre traz para “palco” heróis bastardos e traidores que “sobram” no mundo, e por isso mesmo se revelam como uma espécie de espelho crítico de uma “coreografia coletiva” que comporta um “ficar de fora”. Neste contexto, a comédia aparece como o gênero que aponta para uma quebra nas relações sociais naturalizadas que, a partir de então, passam a ser vistas como uma arrumação onde cabe a cada indivíduo um lugar e um papel a representar. Diante disso, o tema do ator se destaca como o que parece indicar os movimentos que os próprios personagens fazem no sentido de representar a teatralidade das relações. O ator é aquele que irrealiza a si mesmo para fazer nascer o personagem, tornando-se assim impregnado pelo imaginário. Segundo Igor Alves (2006), Sartre se utiliza dessa caracterização do ator para descrever tipos de condutas concretas marcadas por certa teatralidade, isto é, determinadas condutas humanas cotidianas que apontam para uma relação com o olhar paralela àquela que encontramos no evento teatral. Esse tipo de conduta se caracteriza por uma exagerada necessidade que o sujeito tem de ser visto, onde a relação com o outro se torna cena, os atos são exageradamente grandiosos, porque precisam ser vistos. O auge do mito do ator na obra sartriana está na adaptação de Kean, peça de Alexandre Dumas (pai). Michel Contat (2005), principal organizador e comentador da obra de Sartre, entende que o homem é ator no sentido de estar desde sempre impregnado pelo teor imaginário que constitui suas relações com os outros e é este o tema de Kean:

O paradoxo do comediante4 sartriano é o de se sacrificar como homem para nos fazer sentir que todos nós encenamos a comédia [...] Kean é o comediante, como todos somos a um grau ou outro, sem saber qual texto nós interpretamos, quem escreveu nosso papel e porque nós o encenamos - por nós ou pelos outros? Se nós somos todos comediantes, alguns exageram; é o caso de Kean que revela nossa impostura ontológica (CONTAT, 2005, p.XXXV, tradução nossa). A peça de Dumas sobre a vida de Kean seduziu Sartre por colocar em cena o tema do ator levado ao extremo, como aquele que “não para de viver seu próprio personagem” e que não sabe mais distinguir quando encena de quando não. Considerada por Louette (2005) como o apogeu do teatro sartriano, Kean será a expressão mais clara da consciência como jogo, no sentido de uma perpétua relação consigo mesma e também da comédia. Kean demonstra ainda, segundo Liudvik (2007) a condição existencial do ator de “desidentidade permanente”, o que nos remete a pensá-lo como a figura do comediante que denuncia a proximidade do encenar com o jogo intersubjetivo, e vale ressaltar que encenar ou atuar e jogar são, em francês, idéias que podem ser expressas pela mesma palavra: jouer. O comediante e o ator se confundem nas diversas descrições de Sartre sobre o tema, assim como o bastardo que aparece, segundo John Ireland, como aquele que “aprofunda a lucidez do comediante” (CONTAT et al., 2005, p.1450). Para Michel Contat (2005), Kean ilustra perfeitamente esta “galeria de espelhos” (galerie de glaces) que é o comediante, um infinito reflexo do reflexo do reflexo. Acrescentamos a partir dessa imagem que, por denunciar a ausência de identidade, o comediante revela a eterna remissão espectral que dissimula a tentativa de coesão, e indica assim existência como perpétuo jogo de reflexos. Como ressalta Ireland (CONTAT et al., 2005), após haver discutido por via da reflexão estética o paradoxo do comediante em O imaginário, Sartre o situa em O ser e o nada pela via do para-si, como o jogo da não coincidência consigo mesmo. Desde que o para-si se situa no plano de “não ser o que é e ser o que 4 2 O paradoxo do comediante é um questionamento formulado por Diderot que Sartre retoma nas suas

discussões a respeito do ator como aquele que vive e ao mesmo tempo representa sua própria vida. Em O idiota da família, sua última obra, ele afirma: “Diderot tem razão: o ator não experimenta realmente os sentimentos de seu personagem; mas será um erro supor que ele os exprime de sangue frio: a verdade é que ele os experimenta irrealmente” (SARTRE, 1988, p.662-663).

não é”, a realidade humana encontra-se sob a tarefa de “jogar com seu ser” de modo a modificar fundamentalmente o dilema de Hamlet: “não mais ser ou não ser, mas ser e não ser”5. Por fim, em Questões de método, Sartre (1985) afirma que é em nossa própria infância que temos as indicações de nosso papel, através da apreensão obscura nossa classe e de nosso condicionamento social através do grupo familiar. É nessa situação infantil que se encontram, conclui Sartre, os gestos aprendidos e os papéis contraditórios que nos “comprimem e nos dilaceram”. Para concluir, faz parte de nosso modo de ser, por estar em jogo e ter de ser fazer constantemente, o representar da comédia. Comediantes ou sérios, encenamos em conjunto nosso teatro coletivo construindo cenários de sentidos que nos orientam e nos situam. Romanceamos nossas histórias, escolhemos os protagonistas, procuramos no futuro um grande ato, trágico ou heróico e até a morte, em si mesma contingente e absurda, ganha através de seus espectadores o sentido de um grand finale!! Se podemos nos dar conta de nossa própria representação, talvez seja através do espelho, isto é, ao olhar para o que próprio personagem tem a nos dizer. Gostaria de finalizar com um conto de Machado de Assis, que considero um exemplo interessante do momento em que o homem-ator se transforma em seu próprio personagem.

Um exemplo: “O espelho” de Machado de Assis (1994)

No conto de Machado de Assis, sugestivamente intitulado de “o espelho”, o personagem Jacobina, descrito pelo autor como “provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução e, ao que parece, astuto e caustico”, relata um episódio de seus vinte e cinco anos para explicar sua teoria sobre a alma humana. Em sua tese sobre o que seria a alma exterior e interior, como “uma que olha para dentro” e “outra que olha para fora”, Jacobina relata a transformação que viveu quando foi nomeado “alferes da guarda nacional”. O relato nos informa o quanto suas relações significativas se reorganizaram 5

Baseado na ideia de Denis Hollier mencionada por John Ireland In: Contat, Michel (ed.). Sartre: théâtre complet. Paris: Gallimard, 2005. p.1448

em torno do novo posto solene. Sua mãe estava “orgulhosa e contente”, passou a chamá-lo de “meu alferes”; alguns rapazes da vila o “olhavam de revés”, os amigos ficaram satisfeitos e por fim, Jacobina foi convidado por sua tia para passar um tempo em seu sítio. Lá, ocorria que sua tia também se referia a ele como “meu alferes” ou “senhor alferes”; na mesa ele tinha o melhor lugar e era o primeiro a ser servido, o grande espelho da sala foi parar em seu quarto.... O personagem relata essa mudança da seguinte maneira: “O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou [...] o alferes eliminou o homem”. Vemos aqui que a própria rede de relações de Jacobina o cobriu por seu novo personagem e que, aos poucos, ele foi se dando conta de sua metamorfose diante do olhar do Outro. O momento principal, por fim, se dá quando todos os habitantes do sítio se ausentam por conta da morte de um parente. Até mesmo os escravos aproveitam a situação para fugir e Jacobina vê-se completamente só. Com o tempo, passa a sentir “uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere”, passa a existir como um “defunto andando; um sonâmbulo, um boneco mecânico”, sente que “nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com obstinação mais cansativa”. Jacobina restituía as pessoas pelo imaginário através de seus sonhos, nos quais elas o chamavam de alferes para aplacar sua solidão. O relógio parecia dizer “nerver, for ever, for ever, never...” “como um diálogo do abismo um cochilo do nada.”. Na cena final, ele resolve se aproximar do espelho que desde que ficara só não ousara encarar. Ao olhar para sua imagem difusa, Jacobina teve uma ideia que foi sua salvação: vestir a farda de alferes diante do espelho. Sua última fala nos retrata de forma brilhante o momento em que o homem-ator, se transforma afinal em seu próprio personagem:

[...] como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha a menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai

um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira e ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para o outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com esse regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir...”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALVES, Igor Silva. O teatro de situações de Jean-Paul Sartre. 2006. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: . Acesso em: 2015-08-08. ASSIS, Machado de. O espelho_ In: Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1994. v. II. BORNHEIM, Gerd. Sartre. São Paulo: Perspectiva, 2000. CONTAT, Michel (ed.). Sartre: théâtre complet. Paris: Gallimard, 2005. JEANSON, Francis. Sartre. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987
 LIUDVIK, Caio. Sartre e o pensamento mítico: revelação arquetípica da liberdade em As moscas. São Paulo: Loyola, 2007. LOUETTE, Jean-François. Sartre: Un théâtre d'idées sans idées de théâtre?. Les temps modernes: Notre Sartre. Paris: Les temps modernes, 2005. NOUDELMANN, François. Huis clos et Les mouches de Jean-Paul Sartre (Essai et dossier). Paris: Gallimard, 1993. SARTRE, Jean-Paul. O Diabo e o bom Deus. São Paulo: Círculo do Livro,1975.

______ .Questions de méthode. In: Critique de la Raison dialectique, tome 1 : Théorie des ensembles pratiques. Précédé par Questions de méthode. Paris: Gallimard, 1985. ______ . L'Idiot de la famille, tome 1. Paris: Gallimard, 1988. ______ . L'être et le néant . Paris: Gallimard, 2005a. ______ . Les mains sales. In_Sartre: théâtre complet. Paris: Gallimard, 2005b. ______ . Saint Genet, comédien et martyr. Paris: Gallimard, 2011.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.