TEATRO ANATOMICO - palestra.docx

May 25, 2017 | Autor: Alessandra Vannucci | Categoria: Renaissance Studies, Physical Theatre, Italian Renaissance Art, Architecture and Public Spaces
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Putana mo' del vivere, mo' a' son pur desgraziò. A' crezo ch'a' foesse inzenderò quando Satanasso se petenava la coa. A dir ch'a n'abi mè arrosso né quieto, pì tormento, pí rabiore, pí rosegore, pí cancari ch'aesse cristian del roesso mondo… (Ruzante: Moscheta, I,1) trad Vannucci - Julio Adriao


TEATRO ANATOMICO. O caso de Angelo Beolco, dito Ruzante
Estimulada por tantos arquitetos neste Congresso, gostaria de desenvolver a ideia arquitetônica do teatro anatômico (uma estrutura especializada para práticas de dissecação do corpo humano, cujos primeiros exemplares remontam ao século XV, coincidindo com os primórdios da ciência moderna) para análise prática (encenação) das farsas de Angelo Beolco (1502-1542), dito Ruzante, um autor/ator da Renascença italiana. Os dois temas que tento conectar interessam a outros artistas e pesquisadores do teatro. Quanto ao Ruzante, Dario Fo costuma aponta-lo para seu "maior mestre" ao lado de Molière (os três comungam a função de autor/ator, como justificou ao receber o Premio Nobel). Quanto ao Teatro anatômico, é uma figura que Eugenio Barba utiliza para evocar o espaço estético que procura, entre espetáculo e ciência, entre didática e transgressão, entre horror e admiração. "Nas arquibancadas – cito da Canoa de Papel, p. 138 – se misturavam espectadores famintos com os petulantes, filósofos carrancudos e jovens religiosos atraídos pelo mistério tremendo do homem aberto". Visando a revelação dos órgãos – o que se esconde por baixo da pele – o teatro de Barba visa um ator que seja, ao mesmo tempo, similar "ao corpo aberto e ao cirurgião preciso e herético que o abre". No meu cantinho, nos últimos dez anos, montei duas farsas de Ruzante, no Rio de Janeiro (2002) e em Brasília (2012). Nos anteriores dez anos não me interessei pelo Ruzante nem pelo Teatro Anatômico. Mais antes, em pleno século passado, quando era aluna da Universidade de Bologna, passava tardes inteiras estudando no Teatro Anatômico do Archiginnasio, antiga sede da Universidade, atualmente integrado à Biblioteca de Obras Raras. Ali, em 1988 preparei meu exame de história moderna, com o prof. Carlo Ginzburg; e meu objeto de pesquisa foi uma tal de Margherita, ajudante de um farmacêutico, que acabou-se na fogueira no começo do século XVII, por ter sido encontrada com entranhas e pele que o Inquisidor entendeu provirem de corpos humanos, enquanto a própria declarava serem de porco, te-los recebidos do patrão como pagamento e não querer com eles fazer nenhuma experiência mágica, e sim só preparar um salame. Não cabe agora o destino da Margarida, mas sim o nexo fatalmente herético entre duas experiências profanadoras: a do "corpo aberto" no sentido da dissecação de um corpo humano (para fins mágicos, científicos ou artísticos que sejam) e a da fome. Esta segunda, com sua economia de miséria, desemprego, redução da humanidade ao nível da pura necessidade, está ao centro, como veremos, das farsas de Ruzante. Eu tentei trazer a primeira dimensão, a do corpo aberto no teatro anatômico, para dentro de minha mais recente montagem, O cozido (A moscheta) no ano passado, do qual verão algumas imagens no fim da fala.
O estudo da anatomia humana, através da dissecação do corpo, já praticada pela Escola de Alexandria, tem sentido de profanação no âmbito da fé crista na salvação pela ressurreição dos corpos. Já condenada por Santo Agostinho, embora este a admitisse em animais, a dissecação pública è limitada a uma a cada cinco anos na Escola Medica de Salerno, sob o império de Federico II, e definitivamente impedida em 1299 por uma bula papal (Detestandae feritatis) em que se ordena a tumulizaçao do cadáver no lugar mais próximo a morte e no tempo mais curto possível. Apesar dos contágios e da grande peste, configurando a sua necessidade em casos excepcionais de saúde pública, a anatomia ao longo do século XIV só é permitida em sede judiciária, no corpo de alguma vitima de delito ou criminal de baixa renda. Entretanto, dois séculos mais tarde, é uma prática tão difusa nas mais avançadas Universidades italianas que livros sobre o argumento, como o De humani corporis fabrica de Andrea Vesalio (ver imagem) tem ampla circulação; o Senado de Padova em 1585 revoga qualquer veto às dissecações publicas e particulares.
No século seguinte, anatomias constam na agenda das cerimônias públicas de cidades como Bologna e Padova, já sem restrição de escopo sanitário ou didático. Ou seja, a abertura do corpo havia se tornado um espetáculo, tão concorrido e frequente que faltavam cadáveres. Quando não conseguia-se compra-los de parentes endividados, mandava-se rouba-los dos patíbulos ou dos hospitais. O negócio é bom, se justifica a construção, bancada por professores e médicos renomados, de estruturas especificas removíveis e finalmente, em 1594, de um primeiro edifício, chamado de Teatro Anatômico, em Padova (ver primeira imagem) no interior de Palazzo Bo que hospedava a Faculdade de Medicina. Segue-se a construção de edifício similar em Leida, 1597 e Bologna, 1637.
Trata-se, geralmente de um espaço oval ou circular, com cinco ou seis anéis de arquibancadas entalhadas em madeira e, ao centro, uma pequena mesa reversível, um palquinho dotado de recursos para efeitos cênicos, como a repentina aparição do cadáver. Além do defunto, protagonistas do espetáculo poderiam ser o professor ex cátedra, um ostensor mostrando e separando os membros com a varinha e o cirurgião, armado de bisturi; ou até um único cientista nas três funções. Os espectadores ficavam penduradas nos parapeitos, de pé, tão apertados que nem mesmo em caso de desmaio, iam abandonar o posto. Não era infrequente a participação de músicos, configurando uma ocasião quase festiva, certamente para exorcismar o fim e a própria humana finitude, como auspicia a inscrição em latim pendurada acima da porta do Teatro de Padova, Hic est locus ubi mors gaudet succurrere vitae ou seja, este é lugar onde a morte goza ao socorrer a vida, e outras inscrições evocando o memento mori com leveza, bem ilustradas pelos esqueletos dançantes que circundam o público no Teatro Anatomico de Leida.

Não parece estranho, assim, que em 1637, em Londres, a corporação dos Barbeiros e Cirurgiões tenha contratado o maior arquiteto da época, também cenógrafo, Inigo Jones para construir seu teatro anatômico, aberto não só aos estudantes mas ao publico em geral, pagante. Nesta estrutura, de planta circular parecida com o Teatro Anatômico de Padova, visitado por Jones poucos anos antes, os elementos espetaculares, por exemplo a decoração do teto em forma de céu estrelado com os símbolos do zodíaco, como no Globe Theatre, são realçados.

Os puritanos evidentemente consideravam o espetáculo da morte um bom antídoto às frivolidades mundanas, tanto que em 1649 mandam por no teatro londrino a efígie de Carlo I decapitado, exemplo único de anatomia régia. Mas há algo mais. A lição de anatomia, herética para a sociedade medieval por desmembrar o corpo, impedindo a sua apresentação ao julgamento universal e duplamente obcena, pela exibição da nudez e pela perversão do olhar, havia conquistado a ribalta do grande teatro do mundo. Já etimologicamente lugar da visão, o teatro, com sua forma circular (citando a esfericidade do olho) não somente garantia a plena visibilidade de qualquer ponto de vista, com também evocava a circularidade do universo, ao centro do qual estaria o corpo humano, como objeto de observação. O corpo vivo, assim como morto; o microcosmo dinâmico da vida através das formas estáticas da morte.

O teatro da morte oferecia-se, assim, como um observatório sobre a vida. Longe da brutalidade medieval, o seu procedimento (dissecar, ou seja, dividir cortando metodicamente) aplica aos estudos anatômicos o dispositivo morfológico da ciência moderna. Parafraseando a frase de Galileu sobre o livro do universo, aberto diante de nossos olhos, escrito em língua matemática e caracteres geométricos para que o cientista o decifre (Il Saggiatore), o "corpo aberto", como um livro aberto, convida a investigar empiricamente a natureza, fechando para sempre os Livros dos antigos e das autoridades. Penetrar abaixo da pele, indagar as entranhas, é uma curiosidade tipicamente renascentista; emancipado, o corpo torna-se objeto de observação não só de cirurgiões e médicos mas também de artistas que refundam nele seu conhecimento das formas e conceitos de beleza, que a Renascença entende muito mais próxima do estado natural da vida.

Vejamos em breve o procedimento de desenho do corpo humano por Leonardo (acima), réu confesso de dissecar mais de 30 cadáveres de homens e mulheres para fins de modelagem de suas figuras mas também autor de avançadas e fartas anotações anatômicas. O desenho não fotografa o órgão, o decompõe, secciona, interpreta, constituindo-se como ato cientifico que embasa e garante o efeito de "realismo" da pintura final.
O desenho disseca o corpo vivo, visando uma morfologia das expressões que Leonardo estende explicitamente às emoções: tendo ideia, como declara em 1489, de dissecar o movimento muscular que leva um rosto a expressar alegria, ferocidade, coragem, e figuras de esforço como empurrar, levar, levantar, etc.
Através da anatomia, o artista individua na natureza os princípios fisiológicos da beleza, os decompõe em vetores de força e as reconstrói, na arte, como harmonia entre formas e forças do corpo. A busca da beleza que protagoniza a temporada estética renascentista, ainda condicionada à utilidade prática das artes no âmbito moral e educativo, amplia seu campo perceptivo sobre o corpo humano, incluindo a figuração do corpo morto, do corpo nu e do corpo aberto. É evidente que, em oposição a celebração do corpo vivo e vestido, com por exemplo em Leonardo, há uma busca pela beleza na condição "natural" do corpo, por mais cadáver que seja na mesa da autopsia (como em Mantegna, Milano, 1475) ou nos monumentos sepulcrais (como o de Ludovico il Moro, Pavia, 1580).


Na maioria dos casos, é alias evidente que foi mesmo um cadáver o modelo do pintor, com consequências nem sempre positivas para ele, como no caso de Caravaggio que teve sua Morte da Virgem recusada pelos comitentes por causa da "obcenidade" das características cadavéricas da morta, com a barriga inchada, a face cinzenta e os tornozelos à vista, retiradas de uma prostituta afogada no Tibre.

A compreensão do realismo como decifração da natureza, com seus sinais "objetivos" independentes dos regimes de controle, da moral e até mesmo do estilo, configura na arte renascentista uma visão do corpo menos serena e mais provocadora do que aparenta ser, em que os sinais da miséria, da fome, dos vícios e da velhice, não já excluídos da cena (ob-cenos) se impõem na composição harmônica do sujeito. O legado da "naturalidade" trazendo a arte para uma estreita conexão com a vida, a confronta com as diversas figuras da finitude – degeneração até total destruição do organismo, destituído de implicações metafísicas – entre as quais, a morte. Se isso é verdade para com as artes plásticas, cujo repertorio de imagens é limitado as obras primas, que conservamos, imaginem o que vamos achar em testemunhos mais triviais da vida cotidiana da Renascença, como, por exemplo, o teatro em suas formas populares.
Puta que o pariu, sou um infeliz. Acho que quando eu nasci o diabo estava penteando o rabo. Não tenho paz nem sossego. Só chatice, pentelhação, encheção de saco e o caralho a quatro. Mundo cão. (Ruzante, Moscheta, ato I)
Se alguém aqui enrubesceu pela obscenidade desta entrada em cena, quinhentos anos depois de ser atuada pela trupe de Ruzante, nos arredores de Padova, acho que já consegui dar uma ideia do tom único deste autor, no contexto do teatro renascentista em geral e não só italiano. Trata-se de um teatro pós-catástrofe, que tem que lidar com o excesso de cadáveres na realidade crua da época. Fome, miséria, doenças, desemprego e outras perdas materiais causadas pela guerra são ingredientes de tramas alucinados em que troca-se sexo por comida e juras eternas por dinheiro, mas um dinheiro ruim, um dinheiro "sujo" e roubado, sem valor naquela grotesca dimensão de sobrevivência, pautada pela fome. O cenário agreste, longe de ser bucólico como o queria a Arcadia da época, é povoado por tipos desdentados, despidos e despudorados cuja humanidade é reduzida à essência fisiológica de corpos que gozam e padecem, fremem e temem, comem e morrem. A economia dramatúrgica da farsa, uma espécie de anti-comédia materialista e escatológica, onde não penetram superestruturas, nem de comportamento nem morais nem metafísicas, nem psicológicas, hospeda, assim, um dos mais impiedosos retratos da sociedade renascentista, um teatro da crueldade dos mais lúcidos de toda a tradição cômica italiana. Quem era este Angelo Beolco, que viveu em Padova na primeira metade do século XVI, conhecido como Ruzante e tão amado por seus contemporâneos e sucedâneos, como o já citado Dario Fo e o sábio Galileu – que em 1605, teimando em explicar a aparição repentina de uma estrela nova no céu de Padova, onde era professor de matemática na Universidade, escreve um diálogo bem no estilo Ruzante, em dialeto padán, entre dois rudes camponeses os quais com seu raciocínio plano e prático demonstram que Aristoteles e Ptolomeu estão redondamente enganados e mais, que "se há o engenho natural, nada mais precisa à ciência". Atrelar a ciência ao conhecimento "natural" não era exatamente uma postura tranquila, do ponto de vista político, se considerarmos os feitos da Inquisição da época (a condenação de Giordano Bruno, em 1600). Filho de um médico dono de terras nos arredores de Pádua, Ruzante vivia e trabalhava no campo, mas em culto convívio com figuras como Alvise Cornaro e o filósofo Pietro Pomponazzi, ligadas à vanguarda humanista da Universidade. Sua companhia teatral de camponeses é a primeira com estatuto profissional, um estatuto cooperativo que preanuncia as famílias da Arte, em que os mesmos histriões são autor, encenador, prólogo, contrarregra e ator, passando de protagonista para escada e do palco para o meio da plateia, uma rasteira atrás da outra na boa fé do público. Um clássico da trupe era apresentar um Mariazo, ou Farsa do marido corno, para o dia do casamento dos amigos de Cornaro. O próprio Beolco entrava em cena nos panos de Ruzante, um vilão rústico e imprestável, incorporando em sua linguagem a impudência satírica dos jograis e a verve obcena da burla erótica (como em Boccaccio) do ponto de vista mais "baixo" possível, com um texto ruidoso e fisiológico, em que ao dialeto e às contínuas blasfêmias misturam-se sons orgânicos como versos de mastigação, peidos e arrotos. A sua rejeição à língua "inchada, escura e afetada" dos sapientes è uma deliberada opção política e não um capricho. Na peça Vaccária, seu personagem afirma que pensar é para o homem o que são "unhas, dentes e cornos dos outros animais", isto é, identifica a atividade intelectual com a pura experiência física em contato com uma realidade agressiva, assassina. No Parlamento de Ruzante che iera vegnù de campo, o falatório do vilão que regressa assolado da guerra – inspirado talvez na Confessio militis de Erasmo de Rotterdam mas, também, no trágico episodio da tomada de Padua pela Lega de Cambrai, em 1508 – não deixa margem de duvida quanto ao propósito "realista" do autor. A linguagem dilacerada, explosiva, no limite da representabilidade, atira na cara dos espectadores, com feroz objetividade, os cacos da experiência também limite do cotidiano de fome, epidemias e humilhações ao qual o camponês deve fazer frente. Na Moscheta (1528), Ruzante, de volta à aldeia, deve disputar a mulher com dois amantes, por ela recrutados no período para garantir a sobrevivência. Na Bilora, ele próprio a oferece ao sior, por dinheiro, mas acaba por assassinar o seu benfeitor. Escavando abaixo da pele, no caos das entranhas e dos instintos "naturais", o teatro de Ruzante se propõe como uma experiência científica: uma vivisseção ou autopsia pública em corpo vivo, para fins de análise patológica das pulsões dos personagens, geralmente uma comunidade de marginais cuja aparente paz é atentada pelas dinâmicas do desejo (sexo, comida ou dinheiro).
Formalmente, poderia se aproximar à ideia da anatomia publica a que certamente ele teria assistido, por ser filho de um médico, na Padova renascentista. A ideia, como dissemos, materializa uma metamorfose perceptiva na cultura artística e médica moderna europeia: a natural degeneração do corpo humano é feita visível e torna-se objeto de analise cientifica (no teatro anatômico) e torna-se espetáculo, nas farsas de Ruzante o qual, sem fazer concessões aos clichês bem-comportados e à ortodoxia da comédia da época, refunda a cena em bases fisiológicas, como uma máquina de tortura física. A perspectiva cientifica revela no seu teatro uma categoria dupla de realismo, no sentido de uma relação por um lado "pobre" no sentido de intensa e física; e por outro "distanciada" do real. Atores, como cobaias de uma anatomia, tem seus órgãos vitais "abertos" e postos sob observação; sendo eles próprios os cirurgiões aos quais se exige a frieza necessária (uma crueldade no sentido artaudiano) para o exercício de dissecação do tumulto desenfreado das veias, músculos, emoções e instintos. Vejam por exemplo a cena – um lazzo de enorme sucesso, incluído nos séculos a seguir em inúmeros roteiros de Commedia dell'Arte – em que Ruzante, querendo se matar sem ter uma arma qualquer, resolve comer seu próprio corpo até morrer. Neste deliberado triunfo do elemento corporal, Ruzante lança uma provocação filosófica alinhada com a releitura "determinista" do aristotelismo por parte da academia paduana, especialmente de Pomponazzi, em cheiro de heresia ao por em questão a imortalidade da alma. O legado da "naturalidade" que é poética central em Ruzante, não é capricho, mas uma postura de resistência ao jogo arcádico que permeou a Renascença florentina com uma leitura alienada e confortante da vida agreste. O procedimento anatômico de Ruzante, ao contrario, escancara ambientes aparentemente humildes e ingênuos, com o bisturi de uma lúcida reflexão sobre a violência da sociedade e as lógicas perversas que governam o roesso mondo (o mundo cão acima citado, o mundo pelo avesso). A luta pela sobrevivência se dá no fio da esperteza, da malandragem e do "engenho" que não passa do desesperado "jeitinho" de quem não tem direito a nada, nem a sua própria mulher, na economia da fome.
Essa nossa natureza, declara o coitado do Ruzante massacrado pela história, nos faz entrar em buracos inimagináveis e fazer coisas que não presta. Ainda na Moscheta, a encenação do delirante encontro entre a "natural" expressão do povo e a "afetação" da língua erudita – na cena em que Ruzante, para provar a desonestidade da esposa, resolve seduzi-la disfarçado de estudante – aponta para a postura política do autor resistindo em sua língua menor, contaminada desmedida e fisiológica, contra a campanha de homologação linguística então empreendida pelas Academias florentinas. A consciência do desequilíbrio que dilacera a realidade alimenta a busca pela desarmonia como projeto estilístico, um estilo que Ruzante quer dilacerado, entre máxima violência e máximo entretenimento. A visão do estado "natural" do ser humano que procede deste "teatro anatômico" é uma fantasia hedonista que descamba no grotesco, como nos painéis de Jeronimus Bosch e como provavelmente nas publicas autopsias, onde um prazer mórbido se mesclava ao horror na percepção dos espectadores. Vejam novamente a imagem dso Teatro de Leida (acima) em que è o corpo de uma mulher, nu e aberto, que é exposto aos olhares de muitos homens, espectadores e atores desta derradeira profanação. E vejam a postura polêmica de um Ruzante quando, no final da Betia, poe na boca da protagonista, uma mulher que passou por todos os tipos de peripécias tendo seu corpo explorado como produtor e reprodutor, até conseguir impor a sua "paz" no acordo entre homens, que a franqueia da posse patriarcal e de qualquer julgamento moralista, este tipo de "moral" que é um verdadeiro triunfo do corpo gozoso e da filosofia do natural:
Pode ser que dentro deste respeitável publico alguém considerou inconveniente este linguajar de caralho, buceta e cu e achou uma falta de educação invocar xotas e paus em vão. Ouvi senhores tremendo de indignação. Eu vi senhoras arregalando os olhos, torcendo a boca e cruzando as pernas tão apertadas que nem a minha faca poderia se enfiar no meio das coxas. Mas quem não sabe de qual buraco vimos ao mundo? E porque não deveria ser invocado? Bem, dizem que só as mulheres da vida, de fala vulgar e obscenos hábitos, agüentam tanto palavrão. Mas vocês aí agüentaram tudo, caladinhas, e até riram bastante! Então não saiam reclamando por aí que são cidadãs de bem... mais do que nós, atores e atrizes. Quer saber? Para mim, palavrões são guerra, fome, invasão, repressão, tortura, ouro, desemprego, peste e carestia, estupro, prisão e prisioneiros, injustiça e tirania. Benditas sejam lanças e canhoes, abençoa o padre, instrumentos de morte das quais logo escoará o sangue de pais e irmãos! E se o padre abençoasse os instrumentos de prazer que temos escondidos debaixo de nossas peles, saias e calções? Viva a buceta, o pau e o cu! Acabou-se.


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