TEATRO, CRIAÇÃO E FORMAÇÃO – UMA EXPERIÊNCIA COM MARIA CECÍLIA ADRIANA MAIA

May 23, 2017 | Autor: Adriana Maia | Categoria: Applied Theatre
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TEATRO, CRIAÇÃO E FORMAÇÃO – UMA EXPERIÊNCIA COM MARIA CECÍLIA ADRIANA MAIA A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria. (Paulo Freire)

Em junho de 2012, o grupo teatral Teatro das Possibilidades1 iniciou um experimento artístico que envolvia os componentes do grupo, jovens estudantes da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro e seus respectivos professores. A intenção era desenvolver uma prática colaborativa no decorrer da construção do espetáculo A estranha viagem de Maria Cecília. A experiência se deu em quatro etapas. Na primeira fase (junho e julho) o grupo – três atrizes e uma diretora – iniciou um processo de ensaios convencional para montagem da encenação. Até aí nada de mais. O elemento distinto, entretanto, aparecia no formato do texto. A estranha viagem de Maria Cecília falava de uma menina que contava histórias inacabadas, entrechos que não terminavam, que não chegavam a um final. A personagem inventava tramas que não se desenvolviam completamente e que, se, em alguns casos pareciam retornar, na realidade neste retorno apareciam levemente modificadas ou ampliadas e isso muitas vezes se dava mais pelas formas de exposição desses retornos do que pelo avanço ou desenvolvimento da trama em si. Percebeu-se que esse não encerramento das histórias, o caráter de sugestão existente no texto proporcionava ao espectador um campo de dramaturgia para a sua própria invenção. O espectador de A estranha viagem de Maria Cecília era impulsionado a imaginar, espontaneamente, continuações. Este espaço aberto à imaginação do público era o alicerce principal da experiência artística que pretendíamos realizar. No processo dos ensaios chegamos a conclusão que as três atrizes2

deveriam

estar

caracterizadas

como

Maria

Cecília,

apoderando-se

alternadamente da palavra e da cena, sugerindo uma disponibilidade do próprio lugar da narradora/protagonista que elas representavam. O “eu” da narradora – Maria Cecília –, pela sua própria abertura e pela abertura da trama, poderia se tornar domínio do público,

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O grupo foi fundado em 2004 por Adriana Maia, Dadá Maia e Xando Graça e desde então o principal foco de investigação é a utilização do texto narrativo como texto dramático sem efetuar adaptações ou adequações de gênero, além de pesquisas cênicas em torno de espetáculos de temática ecológica. 2 Diana Hime, Gabriela Estevão e Stella Brajterman

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do espectador. Aquele que imaginava continuações da história de Maria Cecília fazia-se continuação de Maria Cecília.

Figura 1 As três "Marias Cecílias": Diana Hime, Stella Brajterman e Gabriela Estevão

Na feitura da montagem teatral as partes inacabadas, sugeridas, não terminadas permaneciam deliberadamente desta forma e como resultado criou-se um espetáculo que não estava totalmente pronto, de formato fragmentado e ainda por ser desenvolvido, o chamado work in progress, um espaço em construção que pede para ser revolvido. Na segunda etapa do processo, em agosto, oito turmas de alunos da Rede Municipal de Ensino, de seis escolas de bairros da zona norte e sul carioca3, com faixa etária entre nove e quatorze anos, junto com professores de linguagens artísticas e de língua portuguesa, assistiram, em sessões exclusivas, esta montagem criada pelo grupo Teatro das Possibilidades para o texto inédito A estranha de viagem de Maria Cecília de Carlos Cardoso4. As sessões aconteciam dentro do horário escolar e após cada uma das apresentações o grupo promovia uma conversa com a plateia sobre a montagem e as possibilidades de novas contribuições para a reconstrução deste espetáculo, estimulando o olhar e o desejo dos jovens espectadores em se tornarem co-autores da obra em questão. Na terceira fase, que aconteceu no início de setembro de 2012, estabeleceu-se um processo de criação colaborativa entre os alunos, os componentes do grupo, e os 3

Escolas que participaram do projeto realizado em 2012 no Teatro Poeirinha: Escola Municipal França (Piedade); Escola Municipal Rio Grande do Sul (Engenho de Dentro); Escola Municipal Malba Tahan (Irajá); Escola Municipal Orsina da Fonseca (Tijuca); Escola Municipal Joaquim Abílio Borges (Humaitá); PET Presidente Arthur Costa e Silva (Botafogo). 4 Carlos Cardoso é um autor teatral premiado na área de teatro voltado para juventude e infância.

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professores. Ao longo de um período de aproximadamente vinte dias, o grupo teatral e os estudantes, encontraram-se regularmente dentro das escolas, onde foram desenvolvidas propostas dos alunos para o espetáculo. Estas propostas artísticas foram elaboradas em diversas linguagens artísticas – teatro, dança, música, artes plásticas, composições textuais, vídeo e fotografia. O elenco e a diretora visitaram repetidas vezes as escolas, ajudando e estimulando o processo criativo das crianças co-autoras. O resultado deste exercício não podia ter sido mais rico, pois as contribuições foram prolíficas e surpreendentes. As turmas apresentaram à equipe partituras coreográficas, esculturas de cerâmica para o cenário, uma cantiga de ninar, um rock instrumental, múltiplos desenhos, novas cenas teatrais, personagem que se comunica em libras, entre outros. Este rico material colhido foi trabalhado e incorporado pela direção, elenco e equipe artística, resultando em um espetáculo transformado e ressignificado, como foi visto na temporada aberta ao público em outubro/novembro, na quarta etapa do processo. Como bem disse a atriz Gabriela Estevão: “nenhuma ideia é minha e, ao mesmo tempo, de alguma forma eu me enxergo nas ideias de todos.” Nesta última fase do trabalho, os alunos participantes, por sua vez, retornaram ao teatro, no papel de co-autores, e assistiram a esta nova versão acrescida do material que foi criado por eles na escola, em sessões especiais dedicadas a eles. Após cada apresentação, o elenco e a equipe de criação – diretora, atrizes, cenógrafa e figurinista – do espetáculo debateram com os estudantes pontos a respeito deste inusitado processo de re-criação e elaboração do segundo espetáculo. Além das apresentações exclusivas para os alunos, no dia seis de outubro estreou no Teatro Poeirinha, em Botafogo, a montagem final de A estranha de viagem de Maria Cecília5 numa nova encenação proposta a partir do processo colaborativo do grupo com as duzentas crianças participantes. O espetáculo permaneceu em cartaz até o dia dezoito de novembro de 2012 sempre aos sábados e domingos às 17h. O grupo Teatro das Possibilidades concebeu este projeto em parceria com o autor Carlos Cardoso, pois acredita que a função essencial do teatro voltado para crianças e jovens é a de formar plateias através da fruição de uma experiência prazerosa que será lembrada até a vida adulta, transformando esse adulto em um espectador que busca a experiência artística em suas práticas de lazer. Ao inserir jovens estudantes na 5

O espetáculo foi contemplado com a Menção Honrosa pelo trabalho desenvolvido de arte educação dada pelos jurados do Premio Zilka Salaberry, em 2013, além do Prêmio de melhor iluminação para Anderson Ratto, e uma indicação ao Prêmio de melhor atriz para Stella Brajterman

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criação de um espetáculo forma-se um vínculo com a obra artística e estes jovens passam a conhecer na prática as ferramentas da criação, abrindo inúmeras possibilidades para além deste projeto e da sala de aula. A experiência oferecida em A estranha viagem de Maria Cecília inova ao propor uma ação de criação colaborativa entre alunos de escolas da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro e a equipe de criação de um espetáculo, projeto que, na sua primeira edição, se mostrou um sucesso, haja vista o entusiasmo demonstrado pela equipe de professores participantes da empreitada e do rico e múltiplo material produzido pelos alunos. Tornar a arte acessível é intervir na educação, no crescimento emocional e na formação de uma sociedade mais saudável. Como diz o grande educador Paulo Freire em uma de suas máximas mais famosas: “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção; quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.”

Figura 2 Numa das sessões na Escola Municipal Rio Grande do Sul (Engenho de Dentro) numa turma do 5º ano o aparecimento de uma nova personagem: Chuancatofelina, conselheira de Maria Cecília

Figura 3 Detalhe de Chuancatofelina

A rica e preciosa experiência que o grupo Teatro das Possibilidades vivenciou com A estranha viagem de Maria Cecília, resgata uma das características mais poderosas do teatro, a sua função social que há muito tempo vem perdendo espaço para uma faceta comercial e de entretenimento encontrada na maioria das produções teatrais da cidade. Por outro lado, é interessante notar que este fazer teatral hoje em dia envolve grandes dificuldades, que vão das questões econômicas e dos meios para conseguir-se espaço para ensaios e temporada até aos conflitos internos, produtivos ou desgastantes, entre os artistas que se envolvem em um processo de criação. Isso sem esquecer-se que, 4

depois de pronto o espetáculo, ainda vivemos a angústia da escassez de público, o que nos obriga muitas vezes a inventar estratégias mirabolantes para atrair espectadores interessados em exercer a atividade fundamental (pelo menos para o bom curso deste) que é assistir a um espetáculo. Vivemos uma realidade em que o espaço para o teatro parece muitas vezes encolher, e sua função social se embaralha: por que fazer teatro? Para quem fazer teatro? Quem está interessado em teatro? O teatro é necessário, indaga o professor, diretor e autor teatral Denis Guénoun?6 Para quem? O teatro comercial que busca herculeamente espectadores que mínguam a cada temporada, ao mesmo tempo está atravancado de atores e técnicos que batem à sua porta procurando emprego. Que fato curioso! Uma diminuição na quantidade de espectadores não faz com que artistas e técnicos desistam de um ofício tão irregular e incerto. O problema da falta de público não provoca uma queda na frequência de cursos e oficinas teatrais que colocam no mercado todo ano novos artistas e técnicos teatrais que irão procurar empregos (pouquíssimos) em produções comerciais. Mata-se um boi a cada nova empreitada teatral! O já citado professor e artista teatral Denis Guénoun busca entender o porquê desta crise a partir de uma observação muito simples: “o teatro não é uma atividade, mas duas. Atividade de fazer e atividade de ver” (2004:14). Trata-se de uma especificidade do teatro que aponta para o fato que esses dois atos são inseparáveis, e o teatro só pode existir quando ambos acontecem simultaneamente. Para Guénoun, a chave para se começar a entender esta crise reside exatamente aí, nesta especificidade do teatro. O teatro impõe, num espaço e num tempo compartilhados, a articulação do ato de produzir e do ato de olhar. E ele só se mantém de pé se estas duas ações se orquestrarem. Ora, o momento que vivemos está marcado pelo divórcio entre ambas: aprofunda-se a separação entre o teatro que se faz (ou que se quer fazer) e o teatro que se vê (ou que não se quer mais ver). Atores e espectadores caminham sobre trilhos cujo trajeto é divergente: o teatro está abalado, o edifício não se sustenta mais (2004: 14).

É urgente então trabalhar para que estas duas ações voltem a se articular. Aqui, do meu lugar de artista e professora de teatro penso que, uma reflexão sobre estes fatos deve destacar o papel do espectador como um dos protagonistas do fenômeno teatral

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Título do livro de Denis Guénoun, O teatro é necessário? Tradução de Fátima Saadi, SãoPaulo, Perspectiva, 2004

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para que possamos pensar sobre o que é próprio do teatro e como se está fazendo teatro hoje em dia. Ao colocar o espectador em diálogo com o trabalho cênico, estou pensando no resgate de um público interessado e disponível que passe a ter necessidade de frequentar as salas de espetáculo. De onde viria este espectador potencial? Acredito que esta é uma tarefa que deve começar desde a infância, na escola, onde se prepara o ser humano para a vida adulta. Sabe-se que, em países como a Inglaterra ou os Estados Unidos, em cada escola, pública ou privada, existem sempre, em grande atividade e contando com o apreço da comunidade escolar, grupos de jovens que, anualmente, encenam peças de teatro, como expressão de atividades curriculares ou como iniciativa independente associada à vida comunitária escolar. Além disso, estes jovens assistem a espetáculos e frequentam os teatros participando de sessões programadas especialmente para turmas escolares. Poucos destes jovens, decerto, vêm a tornar-se artistas profissionais, mas o efeito principal dessa experiência de que tantos participam em seus anos de escola é a formação de plateias: na vida adulta, já fora da escola, conserva-se o interesse pelas artes cênicas e germinam os frutos da cultura artística que se prendeu a valorizar, com a própria experiência, na escola. Além disso, com o intuito de promover nas escolas a convivência com a diferença, muitos grupos de teatro amador são formados por alunos de diferentes gêneros e idades, integrando-se nas aulas de teatro, alunos de classes especiais, portadores de deficiências físicas ou dificuldades de aprendizagem. O convívio do teatro amador é necessariamente inclusivo, proporcionando ao jovem a oportunidade de coexistir com a diferença para que no futuro possa aprender a lidar com ela. Isto sugere uma reflexão sobre a relação entre cultura artística e educação, sobre as possibilidades de enriquecimento da vida espiritual de alunos e professores abertas por essa relação: “a gente não quer só comida, a gente quer diversão e arte” (Titãs). É bom ressaltar que o trabalho de formação desenvolvido em A estranha viagem de Maria Cecília, não é só um projeto que se preocupado em desenvolver ações de formação de plateia, mas principalmente é um empreendimento que proporcionou aos estudantes o convívio com as linguagens artísticas integradas dentro de um processo de criação, alçando o jovem a um protagonismo que deveria ser seu de direito.

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Figura 2 Numa sessão no Ginásio Carioca Orsina da Fonseca alunos do 7º ano escrevem novas histórias para Maria Cecília junto com a professora Maria Luiza Burdman

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2010 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011 GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? Tradução de Fátima Saadi, SãoPaulo, Perspectiva, 2004

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