Teatro Grego e Romano: História, Cultura e Sociedade

June 15, 2017 | Autor: Claudia Beltrão | Categoria: Ancient History, Greek Theatre, Ancient Greek and Roman Theatre, Roman Theater
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Teatro Grego e Romano História, Cultura e Sociedade

Ana Livia Bomfim Vieira Claudia Beltrão da Rosa (Organizadoras)

Teatro Grego e Romano História, Cultura e Sociedade

São Luís 2015

Copyright © 2015 by Ana Livia Bomfim Vieira & Claudia Beltrão da Rosa Editoração: Café & Lápis Editores: Claunísio Amorim Carvalho & Germana Costa Queiroz Carvalho Revisão: Claunísio Amorim Carvalho Diagramação: Germana Costa Queiroz Carvalho Capa: Marísio Amorim Carvalho Ilustração da capa: “Carta Arqueológica”. Gravura em metal. Água-forte e água tinta, de Patrícia Horvat. Impressão: Halley S. A. Gráfica e Editora Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) __________________________________________________________ T253 Teatro Grego e Romano: História, Cultura e Sociedade /. Ana Livia Bomfim Vieira; Claudia Beltrão da Rosa (Organizadoras). - São Luís: Café & Lápis; Ed. UEMA, 2015. 284 p. Coletânea de Artigos ISBN 978-85-62485-48-0 (Café & Lápis) ISBN 978-85-8227-083-7 (Editora UEMA) 1. Teatro Greco-romano – História. I. Veira, Ana Livia Bomfim. II. Rosa, Claudia Beltrão da. III. Título CDU 930.85:792(37/38) CDD 792.01 __________________________________________________________ Ficha catalográfica elaborada por: Marcelo Neves Diniz – Bibliotecário – CRB 489/13 Livro publicado com recursos provenientes do Edital n.º 010/2012 Programa de Apoio à Publicação (APUB/FAPEMA). CASA EDITORIAL QUEIROZ CARVALHO LTDA. CNPJ 10630734/0001-08 - Inscrição Estadual n.º 12311705-4 [email protected] São Luís - MA Telefone: (98) 3082-8871 EDITORA UEMA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CNPJ 06352421/0001-68 Cidade Universitária Paulo VI - Caixa Postal 09 - Tirirical - CEP 65055-970 - São Luís - MA www.uema.br / [email protected]

DIVISÃO DE EDITORAÇÃO Alan Kardec Gomes Pachêco Filho EDITOR RESPONSÁVEL Alan Kardec Gomes Pachêco Filho CONSELHO EDITORIAL Ana Lucia Abreu Silva Ana Lúcia Cunha Duarte Eduardo Aurélio Barros Aguiar Fabíola Oliveira Aguiar Helciane de Fátima Abreu Araújo Jackson Ronie Sá da Silva José Roberto Pereira de Sousa José Sampaio de Mattos Júnior Luiz Carlos Araújo dos Santos Marcelo Cheche Galves Márcia Milena Galdez Ferreira Maria Claudene Barros Maria José Nélo

Sumário

PARTE I - O TEATRO GREGO Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica Alexandre Carneiro Cerqueira Lima e Talita Nunes Silva . . . . . . . . .

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A etnicidade grega em Eurípides: o caso dos Ciclopes Fábio de Souza Lessa e Vanessa Ferreira de Sá Codeço . . . . . . . . . . .

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Do poder à servidão, da servidão à morte: representações da guerra e da violência no prólogo da tragédia Hécuba, de Eurípides Brian Gordon Lutalo Kibuuka . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O Teatro de Ésquilo e os valores que vêm do campo Ana Livia Bomfim Vieira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Os sonhos de Io: uma abordagem psicanalítica de Promoteu Acorrentado Patricia Vivian von Benkö Horvat . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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... E os gregos inventaram o Teatro Maria Regina Candido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

PARTE II - O TEATRO ROMANO Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Ideologia escravista em Aulularia, de Plauto Sônia Regina Rebel de Araújo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 Religião e Teatro na Roma Republicana: notas sobre a Aulularia, de Plauto Claudia Beltrão da Rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 Identidade Cultural e Teatro: um estudo de caso de um mosaico afro-romano Regina Maria da Cunha Bustamante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181 Da Epigrafia Teatral no Portugal Romano José d’Encarnação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 O Teatro é uma festa: controle dos prazeres na visão de Tertuliano Ana Teresa Marques Gonçalves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 Ordem e Desordem na Cidade Antiga: o Teatro entre a tradição clássica e a cristã Gilvan Ventura da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 Sobre os Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Parte I O Teatro Grego

Apresentação

Ana Livia Bomfim Vieira Se um de vocês, espectadores, fosse alado, E se tivesse fome e os coros trágicos o entediassem, Decolaria e almoçaria em casa, Depois, satisfeito, para nós de volta voaria. (ARISTÓFANES. As Aves, 786-789) O teatro grego teve um lugar de suma relevância na cultura helênica e representou, sem sombra de dúvida, espaço de contato e reafirmação dos valores políades. É bastante conhecida a crítica feita por Plutarco à importância excessiva, segundo ele, dada pelos atenienses à encenação teatral: “(...) gastaram mais dinheiro com As Bacantes, As Fenícias, os Édipos, Antígonas, os sofrimentos de Medéia e Electra, do que para lutar por sua hegemonia e sua liberdade nos seus combates contra os bárbaros” (PLUTARCO. A Glória dos Atenienses, 349a). Segundo hipóteses mais tradicionais, o teatro grego teve, desde o início, profunda relação com a religião grega, sobretudo com o culto a Dionisos. Eram quatro as festas em honra ao deus – As Dionisíacas Rurais, as Lenéias, As Antestérias e As Grandes Dionisíacas. Eram nas Grandes Dionisíacas que as competições teatrais tomavam lugar e mobilizavam todo o corpo cívico de Atenas. E estas competições trágicas foram instituídas ainda sob a tirania dos Psistrátidas, como forma de disseminar o culto a Dionisos e construir uma valorização dos espaços públicos, mas é no cenário democrático do período clássico ateniense que elas ganham todo o espaço político e simbólico que mereciam. Celebrada na primavera, esta festa em honra ao deus tinha nas encenações teatrais seu momento ímpar e, no anfiteatro cravado nas Teatro Grego e Romano

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encostas da Acrópole, já durante o V século a.C., vemos competir entre si poetas trágicos e cômicos, cada um em sua categoria. Pós uma série de cerimônias onde podemos ver a ordem cívica e religiosa plenamente integradas – sacrifícios animais, coroação dos cidadãos beneméritos, exortação dos órfãos de guerra, komos e uma procissão onde era levada a estátua de Dionisos aos santuários, culminando com a chegada dela ao teatro, no dia seguinte iniciavam-se as representações dramáticas. As tragédias duravam três dias com três poetas admitidos a concorrer e as comédias cinco dias, mais tarde tendo aumentado para seis, entre os séculos III e II a.C. O teatro era o locus onde, sobretudo em momentos de crise, serão apresentadas as peças teatrais que tratarão de questões que são sensíveis àqueles que as assistem (SEAGAL, 1994). Mas, mais do que apresentar aos cidadãos seus próprios conflitos, o teatro serviu de lugar para que experimentassem conflitos extremados, onde era possível vivenciar todas as tensões possíveis que envolviam os diferentes papéis sociais do cidadão. Era no teatro que o polites poderia compreender todas as dificuldades e conflitos existentes entre sua vida cívica e familiar (GOLDHILL, 1987; 74). Finley (1998, p. 178) apontou para a natureza de “tubo de ensaio” do teatro grego, que é uma espécie de concentração de experiências que, dificilmente, um cidadão comum ou um ser humano normal viveria em seu cotidiano. Segundo o autor, os poetas trágicos e cômicos excluíam de seus enredos tudo aquilo que pudesse engessar a imaginação e, neste caminho, construíam narrativas profundamente conectadas com o que existe de mais humano. Com as tensões e interdições que subsistem nas dobras do tecido social e mental e que, muitas vezes, não somos capazes ou não temos coragem o suficiente para expor. E, negando ou diminuindo a importância da busca pela verossimilhança das experiências narradas, o teatro grego colocou asas nas estruturas, convenções, tabus e interdições sociais. E, de certa forma, a despeito de todas as novidades implementadas no teatro em todos esses séculos posteriores, o teatro grego continua sendo uma autoridade a quem não podemos deixar de observar com respeito (FINLEY, 1998). Entre os séculos V e IV a.C., foi forjado pelos dramaturgos gregos o que seria o teatro e como o conceberíamos ainda hoje, na sua essência. É desta forma que os trabalhos desta sessão tentam discutir o teatro grego. Como um espaço de reflexão, de crítica social e de vivência 14

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Apresentação - Parte 1

simbólica de experiências humanas na fronteira entre o mito, o logos, o cívico e o irracional. O artigo de Alexandre Lima e Talita Silva, Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica, vai refletir sobre as relações que podem ser traçadas entre o teatro, e as encenações teatrais e a cerâmica ática, como suporte de representações destas encenações. Os autores evidenciam o trânsito existente entre o teatro e as oficinas, expondo a figura do artesão que é, ao mesmo tempo, espectador e produtor destas representações imagéticas. E nestas representações, é possível perceber todos os conflitos e transgressões expostos nas encenações teatrais. Em um mesmo sentido, o de evidenciar o teatro como lugar de exposição/discussão de conflitos, segue o texto de Fábio Lessa e Vanessa Codeço, A etnicidade grega em Eurípides: o caso dos Ciclopes, que tratará de uma das questões mais importantes para a construção da identidade grega, ou seja, a relação com o não- grego. O artigo vai analisar a questão da etnicidade entre os gregos, partindo de um peça do tragediógrafo Eurípides – o Ciclope – para demonstrar que esta categoria funciona como demarcação de autorreconhecimento e de territórios simbólicos que constroem as fronteiras entre o eu e o outro. No trabalho de Brian Kibuuka, Do poder à servidão, da servidão à morte: representações da guerra e da violência no prólogo da tragédia Hécuba, de Eurípides, os principais conflitos e tensões apresentados provêm das representações da violência e da guerra. Estas representações não são explícitas, já que a guerra ela mesma não figurou nas peças do trágico, mas sua concepção da guerra é que seus males alcançam níveis sociais muito amplos, levando os homens ao excesso e ao erro. Retomando o tema do teatro como lugar de encontro entre passado e presente, Ana Livia Bomfim Vieira expõe, em O Teatro de Ésquilo e os valores que vêm do campo, as peças de Ésquilo como discursos nostálgicos de uma Atenas passada, de valores ligados ao campo e ao trabalho na terra. A Atenas do V século a.C. é vista pelo tragediógrafo como uma pólis corrompida pelos valores citadinos. E, novamente, podemos observar o teatro como um lugar de questionamento da “realidade” vivida. Patrícia Horvat desloca a reflexão dos conflitos e tensões para a relação entre tragédia e psicanálise em Os sonhos de Io: uma abordagem psicanalítica de Promoteu Acorrentado. A autora constrói uma singular análise sobre a naturalização de uma ordem simbólica cultural, baseada em Teatro Grego e Romano

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necessidades masculinas e que produz e impõe modelos e papéis sociais de submissão às mulheres. Mas esses papéis, embora socialmente aceitos e reproduzidos, geram inúmeros conflitos sociais e de gênero pois reconhecem, na mulher, uma agente de transgressão e inversão desta ordem estabelecida. Maria Regina Cândido fecha esta sessão sobre o teatro grego com ... E os gregos inventaram o Teatro, nos apresentado a estrutura da formação das encenações e dos diversos gêneros teatrais, além de refletir sobre o lugar do teatro no mundo grego, as possíveis fronteiras entre teatro e religião e as relações entre a forma como concebemos o teatro hoje e as reflexões filosóficas sobre este espaço que foram forjadas ainda na antiguidade.

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Apresentação - Parte 1

Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima Talita Nunes Silva Introdução Alexandre Carneiro Cerqueira Lima As competições trágicas em Atenas foram organizadas durante o regime tirânico dos Pisistrátidas. Eles, seguindo aqui uma tradicional hipótese, apoiaram e disseminaram o culto ao deus Dionisos na ásty, além de organizarem o calendário cívico-religioso e oficial da pólis dos atenienses (LIMA, 2000, p. 17). A partir desse momento político, percebemos uma opção, por parte dos grupos políticos, em privilegiar o espaço público e as práticas relacionadas ao koinón. O interesse da comunidade deveria sobrepor-se aos interesses particulares (THEML, 1998). O regime da democracia irá incrementar as festas dionisíacas e abrirá espaço, no teatro, às encenações cômicas. Iremos vislumbrar ao longo do V século a.C., em Atenas, manifestações, performances e representações criadas por tragediógrafos e comediógrafos, bem como a circulação de ‘imagens’ acerca das obras desses poetas. Portanto, na primeira parte do presente capítulo, nós iremos investigar a estreita relação entre espaço/imagem e máscara por meio do teatro. Para tal, nós escolhemos trabalhar com uma imagem que poderá nos ajudar a compreender essa relação. Na segunda parte do texto, a Professora Talita Nunes Silva analisará uma imagem com a representação da personagem Clitemnestra, heroína transgressora do teatro esquiliano. O principal teatro da Ática, o de Dionisos, estava situado na ásty de Atenas, no sopé da Acrópole. A partir desse dado podemos levantar um referencial espacial importante: o de centralidade. O Teatro Grego e Romano

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complexo Acrópole – Teatro, na ásty, adequa-se à noção eis/es tò méson (para o centro). Marcel Detienne explica que tal noção expressa o que é comum a todos, algo compartilhado por todos em uma dada comunidade (DETIENNE, 1965, p. 434). Para o teatro convergiam atenienses de várias camadas sociais e estrangeiros. Talvez as mulheres também pudessem assistir ao festival. O teatro era uma espécie de ‘vitrine’ da pólis. Ideias, valores e crenças eram disseminados e compartilhados por vários grupos. Evidentemente, tais representações seriam lidas de forma diferenciada por cada segmento social. Duas competições teatrais ocorriam no espaço sagrado de Dionisos: as Leneias e as Grandes Dionisíacas. Nessa última, os atenienses recebiam o phóros (o tributo) dos aliados da Liga de Délos (MOSSÉ, 2008, p. 95). Aqui fica patente não só a ideia de centralidade, bem como de hegemonia por parte da democracia de Atenas. Os concursos teatrais reforçavam a ideia de centralidade (Atenas/ásty/Acrópole – Teatro) e a de liderança da pólis perante os aliados no Egeu. O Teatro de Dionisos acumula papéis ao longo do V século a.C. Além do aspecto anteriormente apontado, o de centralidade, há o de sacralidade. Os poetas trágicos e cômicos podem manifestar e explicitar suas opiniões acerca da política, pois estão protegidos pela sacralidade da festa. Temas como a guerra, a misthophoría, a demagogia poderiam ser apresentados no período da festa e no espaço sagrado do teatro (CARRIÈRE, 1979). Outro ‘papel’ importante é o de circulação de ideias e de representações. O poeta pode construir ou mesmo ‘desconstruir’ certas imagens sobre mitos, heróis, seres sobrenaturais, deuses, espaços ‘concretos’ da própria pólis (como a agorá, a casa, etc.) e espaços abstratos (o Olimpo, o Hades). O poeta pode, como fez Aristófanes em As Nuvens, criar uma ‘imagem’ do sofista. Tudo isso constitui material a ser elaborado pelo dramaturgo. Um último aspecto que nós gostaríamos de apontar aqui é o que chamamos de ‘vitrine’. Ali no palco e na orquestra, com a atuação do coro, emergem crenças e práticas próprias dos atenienses. Os poetas e intelectuais da Ática estão mergulhados em uma cultura e referenciais específicos. No palco do teatro surge com toda força as cores, os odores, a dança e a música da cultura dos atenienses. Contudo, não podemos nos esquecer que a plateia era bastante diversificada. Atenienses e estrangeiros assistiam às peças. E muitos dos estrangeiros que estavam 18

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Alexandre Carneiro C. Lima e Talita Nunes Silva

presentes nas Grandes Dionisíacas são magistrados de suas póleis com a dura obrigação de entregar o phóros, o tributo obrigatório para o tesouro da Liga de Délos. O teatro seria, portanto, uma manifestação cultural ‘imperialista’ ateniense? Uma vitrine que mostraria a força e a hegemonia até mesmo cultural dos atenienses? Do teatro ao vaso Muitas peças trágicas e cômicas ficaram no imaginário dos atenienses durante o período clássico. E provavelmente estimularam outros demiourgós (poetas, artesãos, filósofos) em suas obras. Temáticas criadas por Ésquilo e Eurípides, por exemplo, foram representadas e pintadas pelos artesãos do Cerâmico. Nós podemos, então, pensar em uma assimilação direta, por parte do ceramista, de temas veiculados no teatro? Sim, mas tomando alguns cuidados. Não acontecia em Atenas o que vemos atualmente ocorrer com filmes, novelas e seriados que geram uma enxurrada de produtos, souvenirs e até mesmo artefatos caracterizados como ‘artísticos’. O ceramista, da mesma forma que o poeta, possui um referencial e esse pode ser uma peça de teatro. Entretanto, como mostrou Anthony Snodgrass (2004), os pintores arcaicos possuíam a liberdade para criarem suas obras e não estavam atrelados exclusivamente à ‘tradição’ homérica. Nós entendemos, da mesma forma que Snodgrass, que os pintores do Cerâmico terão a liberdade de criar a partir de temas ou de passagens de peças teatrais. Isso quer dizer que o teatro passou a ser mais uma manifestação cultural importante no repertório dos artesãos da Ática. Um bom exemplo é a cratera de Pronomos. Nesse artefato nós podemos reconhecer os atores com suas máscaras e os músicos com os seus instrumentos (CALAME, 1986; WILSON, 2008). Tanto o teatrólogo quanto o ceramista possuem um fator limi-tador: o espaço para a representação. O teatro para o poeta e o suporte cerâmico para o pintor. O poeta adapta seu repertório extenso de referências ao espaço da encenação. O teatro (assentos, orquestra, palco) está presente na própria obra do escritor teatral. O espaço, portanto, interfere na obra do ‘artista’. Lembremo-nos da ida ao Hades pelo personagem Dionisos na peça As Rãs, de Aristófanes. O comediógrafo monta um Hades no palco com o protagonista, Dionisos, disfarçado de Héracles. Dionisos pede conselhos ao herói, que se saiu vitorioso em sua viagem ao mundo subterrâneo. Em um Teatro Grego e Romano

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dado momento na peça, Dionisos e o escravo estão temerosos com a possibilidade de serem devorados pelo ‘monstro’ Empusa. Dionisos corre do palco e pede ajuda ao seu sacerdote nos primeiros assentos na plateia (ARISTÓFANES, As Rãs, v. 285-290). Isso caracteriza bem o jogo articulado pelo poeta. Do Hades/palco a cena passa para o mundo dos vivos com o sacerdote de Dionisos presente na plateia do teatro. Imediatamente as espacialidades mudam em um ‘piscar de olhos’. Todas essas representações criadas pelos poetas trágicos e cômicos nos estimulam a pensar o espaço do teatro como heterotópico. O pensador Michel Foucault, em seu artigo Of other spaces, elaborou a noção de heterotopia. Tal noção é capaz de superpor num único lugar real diversos espaços, diversos locais que em si são incompatíveis (...) eles têm uma função em relação a todo o espaço restante. Essa função se desdobra entre dois pólos extremos. Ou seu papel consiste em criar um espaço de ilusão que expõe todos os espaços reais, todos os lugares em que se divide a vida humana, como ainda mais ilusórios (...) Ou então, ao contrário, seu papel consiste em criar um espaço outro, um outro espaço real, tão perfeito, meticuloso e bem disposto quanto o nosso é desarrumado, mal construído e confuso (SOJA, 1993, p. 26; FOUCAULT, 1986, p. 27).

O teatro, por meio de seus demiourgós, os poetas, cria e recria espaços. Trans-forma completamente o papel original de um lugar. Mais uma vez, nós recorremos ao teatro aristofânico. Na peça As Vespas, o comediógrafo monta um tribunal em uma casa/palco (ARISTÓFANES, As Vespas, v. 765-775). A pólis e todas as suas espacialidades, concretas e abstratas, estão presentes no palco do Teatro de Dionisos. Quando nós pesquisadores direcionamos nosso olhar para as cenas de vasos, buscamos os signos que nos apontam que tal imagem é de uma performance teatral. Nós devemos estar atentos às unidades formais mínimas, de acordo com o método proposto por Claude Bérard (1983), que nos indicam que aquela cena pertence ao universo do palco. Nós observamos a representação de atores, de músicos, de traços que explicitam a arquitetura do próprio teatro (palco, colunas), trajes, etc. Mas há um signo bastante frequente que imediatamente faz que o receptor da cena identifique-a como uma imagem de teatro: a máscara. 20

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A máscara é um acessório da indumentária do ator. Ela era feita de argila e expressava as características do personagem ‘encarnado’ pelo ator. Dessa forma, há máscaras de alguns tipos comuns do teatro grego, a saber: jovem, velho, escravo, mulher jovem e idosa. Ela expressava também sentimentos e sensações, tais como: fúria, medo e tristeza (PICKARD-CAMBRIDGE, 1953, p. 208-209). A máscara era, na imagética de vasos, representada pelos pintores principalmente quando o ator segurava-a em uma de suas mãos ou quando portava-a no rosto. Algumas etapas da encenação foram representadas pelos artesãos helenos: os ensaios de atores, a preparação para entrada em cena, bem como a própria atuação no palco. As máscaras, as vestimentas e os instrumentos musicais são os signos que explicitam as representações teatrais na imagética grega. Uma questão importante deve ser aqui colocada: qual seria o papel efetivo do mascaramento? Seria somente a transformação, o disfarce em um personagem? Acreditamos que não. E os pintores do Cerâmico nos proporcionaram indícios para pensarmos que há outras possibilidades de sua interpretação. Desde a década de 1980, a frontalidade vem sendo estudada por Claude Calame (1986) e por Françoise Frontisi-Ducroux (1995). O olhar frontal no prósopon – rosto/máscara sugere uma comunicação direta entre o emissor (pintor) e o receptor (‘consumidor’ do vaso). Muitas máscaras foram representadas com olhar de três quartos (3/4) e com olhar frontal. Mas há um dado importante que deve ser problematizado aqui. A máscara pintada com olhar frontal encontra-se em um contexto específico: o palco. E mais, encontra-se em um espaço performático e sagrado. O ator que porta a máscara está no santuário de Dionisos. Assim sendo, nós teremos de levar em consideração esses três aspectos, a saber: o mascaramento, a frontalidade e a epifania dionisíaca. Françoise Frontisi-Ducroux, em sua obra Le Dieu Masque, compreende que a máscara Dionisos – o prósopon da divindade em um pilar –, com seu olhar frontal, corresponde a um dos polos de extrema alteridade, aquela da contemplação do olhar dos deuses, cujo “brilho insustentável ofusca os olhos dos mortais”. O outro polo é ocupado pela máscara e pelo olhar da Górgona (olhar que petrifica, mortífero) (FRONTISI-DUCROUX, 1991, p. 13) A frontalidade caracteriza a representação de Dionisos e exprime graficamente a eficiência religiosa de seu olhar. A máscara pode ser suficiente para apresentá-lo e para Teatro Grego e Romano

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fazer o cultuador entrar em contato com a divindade (FRONTISIDUCROUX, 1991, p. 187) E ao entrar em contato com Dionisos, o cultuador – o folião (komastés) ou a bacante – sentem os efeitos da epifania dionisíaca.1 Para pensarmos melhor essa questão apontada acima, nós escolhemos uma imagem significativa. É uma cena em uma cratera de figuras vermelhas com a representação de dois atores se preparando para a encenação. O ator da direita está vestido de mênade e porta a pele de cabrito atada em seu chitón.2 O jovem à esquerda segura uma máscara em sua mão esquerda.3 A máscara possui olhar frontal. Assim, fica aqui bem marcado o aspecto do disfarce, do mascaramento e da sedução, por meio do olhar frontal, aspectos esses próprios dos ritos dionisíacos em Atenas do V século a.C. J.-P. Cèbe explica que a máscara proporciona o contato imediato com os seres do mundo invisível. Ela suprime a barreira entre profano/sagrado, vida/morte (CÈBE, 1987, p. 205). Assim sendo, no espaço do Teatro de Dionisos as fronteiras entre homem/mulher, sátiro/cidadão, mulher/bacante e, no caso dessa representação, jovem ator/mênade, ficam bem tênues. No palco, bem como nas imagens de vasos nós podemos perceber que as espacialidades acumulam papéis e representações, e são, portanto, heterotópicas.

De acordo com Marcel Detienne, a epifania dionisíaca pode ser caracterizada, em um primeiro momento, por confrontos e conflitos. “Segundo tipo de epidemia: o deus da vinha, a divindade do vinho e seus hospedeiros. (...) Epifania do senhor da taça inebriante, de quem a tradição ateniense nos dá refinada versão em suas voltas e contravoltas, tornando visível o quadro das mediações que preparam o advento das boas maneiras ao banquete do vinho” (DETIENNE, 1988, p. 18). 2 Lembremos que o transe dionisíaco começa pelos pés por meio de saltos. “O deus cabrito, o filhote de cabra em meio às bacantes da noite” (DETIENNE, 1988, p. 83). 3 Cratera ática de figuras vermelhas, ca. 460-450 a. C. Museo Archeologico Nazionale di Spina, inv. no. 20299 (VILLANUEVA-PUIG, 1992, p. 145). 1

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Alexandre Carneiro C. Lima e Talita Nunes Silva

[Fig. 1 - Atores e máscara] A permanência do caráter ‘transgressor’ de Clitemnestra na iconografia Talita Nunes Silva Como vimos anteriormente, muitas das peças teatrais permearam o pensamento dos atenienses durante o Período Clássico e influenciaram a obra dos pintores dos vasos cerâmicos. Esse deve ter sido o caso das tragédias escritas por Ésquilo, a julgar pela popularidade de sua obra. O número de cenas remanescentes do teatro esquiliano nos dá uma idéia desta notoriedade. Em Illustrations of Greek Drama, vemos que uma contagem bruta recente do número total de ilustrações sobreviventes nos dá alguma idéia do aumento e queda de popularidade. Esta pesquisa dá 167 ilustrações de Ésquilo, das quais 89 podem ser datadas no quinto século, 58 no quarto, e um punhado mais tarde (...) (TRENDALL, 1971, p. 1).

Ésquilo era, portanto, bastante popular durante o Período Clássico e particularmente no V século a.C., o que nos leva a inferir que as temáticas criadas por ele devem ter fincado raízes no imaginário ateniense, assim como influenciado a criação artística da época.4 No entanto, peças importantes como o Agamêmnon quase não foram ilustradas, enquanto A.D. Trendall e T.B.L. Webster dizem ser muito provável que dentre as peças esquilianas mais populares para a ilustração figurassem as Coéforas e as Eumênides. 4

Teatro Grego e Romano

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Devido a isto, ao observarmos imagens da cerâmica ática referentes às séries de assassinatos ocorridos no palácio de Argos, não podemos deixar de indagar se tais cenas retratam a encenação de uma das peças da Oréstia, ou se, embora não fossem representações de encenações teatrais, demonstram uma ‘influência’ da versão esquiliana do mito. As imagens da cerâmica ática que analisamos em nosso trabalho de pesquisa se inserem dentro do período de 480 a 440 a.C. Se considerarmos que a Oréstia foi encenada pela primeira vez em 485 a.C., podemos supor que tais imagens tenham sofrido certa ‘influência’ da trilogia de Ésquilo. Entretanto, não temos condições de confirmar ou não tais suposições para todas as imagens por nós analisadas, ainda que para algumas delas seja possível presumir uma provável ‘influência’ da obra do dramaturgo.5 Todavia, essas indagações não são essenciais para o que nos propusemos neste capítulo. Mais do que saber se as imagens áticas de figuras vermelhas a que tivemos acesso expressam uma influência do teatro de Ésquilo ou se elas são representações de suas encenações, nosso objetivo é observar se mesmo nestas imagens a personagem Clitemnestra apresenta características que nos possibilitam classificá-la como ‘transgressora’. Nosso intuito é comparar os elementos presentes na representação figurada da personagem que nos permitem tomá-la como ‘transgressora’ com aqueles presentes na Oréstia e que igualmente nos autorizam a considerar a Clitemnestra de Ésquilo como uma mulher ‘transgressora’ ao ideal de comportamento feminino presente na sociedade políade do V a.C.6 Isto posto, neste capítulo analisaremos uma das sete imagens que constituem nosso corpus iconográfico referente à esposa de Agamêmnon. Deste modo, buscaremos ao longo deste capítulo identificar os elementos presentes Quanto à suposição de que tais cenas poderiam retratar encenações teatrais da dramaturgia esquiliana, nas imagens que constituem nosso corpus não encontramos elementos que comprovem tal inferência devido à ausência de traços que explicitam a arquitetura do próprio teatro (palco, pilastras), assim como de um signo bastante frequente que permite ao receptor identificar imediatamente a cena como uma imagem teatral: a máscara. 6 Essa idealização consistia em um conjunto de virtudes reservado às mulheres, como o exercício das atividades domésticas, a submissão, a fragilidade, a abstinência aos prazeres do corpo, o silêncio, a reprodução de filhos legítimos, a reclusão no interior do oîkos, assim como sua exclusão da vida social, pública e econômica. Tal modelo ideal de mulher recaiu com mais rigor sobre as esposas dos cidadãos socialmente favorecidos, ou seja, as mulheres bemnascidas. 5

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na imagem analisada que mostrem a rainha de Argos cometendo desvios (ações transgressoras) ao ideal de comportamento feminino ateniense, nos atentando para as unidades formais mínimas que a mostrem como mulher bem-nascida7 e ‘transgressora’.8 A imagem aqui abordada se encontra sobre uma cratera de cerca de 470-460 a.C. e representa a morte de Cassandra sob as mãos de Clitemnestra.9 Aqui encontramos um elemento interessante. Embora mais comum na representação da personagem, o pélekus não é a única arma que aparece associada à Clitemnestra nos vasos áticos do V séc.a.C.10 Nesta cena a arma utilizada pela personagem é uma espada e não um machado duplo.

[Fig. 2 - Clitemnestra e Cassandra] Como unidades formais mínimas presentes em imagens da cerâmica ática de figuras vermelhas que nos permitem identificar as mulheres ali representadas como bem-nascidas, podemos citar os seguintes elementos presentes na caracterização das personagens: pele alva, uso de chiton e himation de cores claras, pés descalços, possível uso de joias, cabelos sempre escuros presos atrás em forma de coque com fitas, grinaldas e diademas ou soltos com fitas amarradas no alto da cabeça. 8 Transparência da vestimenta, uso do pélekus ou de espada. 9 Cratera ática de figuras vermelhas, ca. 470-460 a.C. Caltanissetta, Mus. S 733. Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (LIMC), v.VII (1). Artemis Verlag Zürich und München, 1994, f. 200, p. 685. 10 Contudo, consideramos que imagens de Clitemnestra brandindo uma arma que não o pélekus devem ter sido algo muito raro, pois em nossa pesquisa em volumes do CVA (Corpus Vasorum Antiquorum) e do LIMC (Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae) encontramos apenas uma imagem na qual Clitemnestra está brandindo uma espada em vez de um machado duplo. 7

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A profetisa Apolínea que foge à esquerda da cena vira o tronco para trás e olha para Clitemnestra, enquanto seus pés estão voltados para frente. Seus braços estão volvidos para a rainha argiva talvez num pedido de clemência ou num gesto de dor. Clitemnestra parece correr atrás de Cassandra. Ela veste um chiton e um himation, seus cabelos parecem estar presos e seus pés descalços (o que nos permite considerála uma mulher bem-nascida). Sua mão direita empunha uma espada semelhante à utilizada por Egisto e Orestes na cratera em cálice pintada por Dokimasia.11 O fato da espada utilizada por ela nesta iconografia da morte de Cassandra parecer menor do que a empregada pelos personagens representados por Dokimasia se pode dever ao fato de parte dela já estar entranhada em Cassandra – uma vez que não vemos sua ponta. Como o vaso é de fabricação posterior à primeira encenação da Oréstia, seu pintor pode ter se inspirado no drama esquiliano, pois utiliza a espada como instrumento para os crimes cometidos pela esposa de Agamêmnon. A arma utilizada por Clitemnestra na execução dos homicídios por ela perpetrados tem suscitado ao longo do tempo muitos debates. Na tentativa de responder esta questão, utilizaremos as profícuas asseverações de A. J. N. W. Prag (1991), em seu artigo Clytemnestra’s weapon yet once more, no qual o autor rebate a opinião de Malcolm Davies de que a arma utilizada por Clitemnestra, no Agamêmnon de Ésquilo, seria o pélekus. Prag nos diz que havia certamente um conceito de Clitemnestra brandindo uma espada na tradição iconográfica do Período Arcaico. Já a tradição literária anterior a Ésquilo, assim como o autor da Oréstia, era vaga sobre a arma utilizada pela personagem. No v. 1149 da peça Agamêmnon, ao prever sua morte, Cassandra anuncia que os cortes que a aguardam serão provenientes de bigúmea (a0mfh/kei, de dois gumes, duplo-cortante) arma. Mais à frente, após a conclusão dos crimes da rainha, o coro, ao lamentar a morte do rei, fala da arma pela qual este morreu, v. 1494-1496: “Ómoi moi! Neste repouso indigno dominado por morte dolosa por mão com ancípite (a0mfito/ mw, corte de ambos os lados, dois gumes) arma”. Se o texto da peça A cena retratada sobre essa cratera, produzida por volta de 465 a.C. e pintada por Dokimasia, é a única representação referente à morte de Agamêmnon em um vaso do V séc. a.C. No lado [A] do vaso se encontra a representação da morte de Agamêmnon por Egisto, enquanto no lado [B] observamos o assassínio deste por Orestes. Boston, Museum of Fine Arts, 63.1246 (N.º 275233). 11

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não nos tivesse dado nenhuma outra evidência, poderíamos pensar que a arma usada por Clitemnestra era realmente o pélekus devido à sua definição, um machado de dois gumes, como pelo seu aparecimento em diversos contextos mitológicos expressando a violência assassina (DURAND, 1986, p. 105). No entanto, Cassandra, ao prenunciar novamente a sua morte e a de Agamêmnon, menciona brevemente – mas como diz Prag, mais claramente – que o instrumento a ser utilizado por ela para perpetrar o assassínio do esposo será uma espada; “Aguçando o gládio (fa/sganon, coisa para cortar com/uma espada, Ag. v. 1262-1263) para o marido gloriar-se de puni-lo com morte por ter-me trazido”. Deste modo, ao contrário do que se esperaria,12 a arma utilizada por Clitemnestra no sacrifício será a espada. Embora ela não seja denominada explicitamente de ci/fov como o é a arma utilizada por Orestes para assassinar Egisto e Clitemnestra – conforme a visão da pítia no oráculo de Delfos nos diz nas Eumênides –, a espada portada por Clitemnestra tem dois gumes e é também associada à premeditação e ao guerreiro, como nos mostra Prag (1991, p. 246). O fato de Clitemnestra usar uma espada em vez de um machado implica uma mudança profunda de sentido. Nas Coéforas, na cena da morte de Egisto por Orestes, v. 875-893, a personagem se vê diante do inesperado. O imprevisto da situação a faz pensar em colocar a mão na primeira coisa que vem à sua mente para tentar livrar seu amado das mãos de Orestes, o ‘pe/lekun a0ndrokmh=ta’ (“machado homicida”; Ag., v. 887-891). O p/elekuv, ao contrário da espada, é uma arma de crise e do medo, do inesperado. Clitemnestra, ao usar de espada em vez do machado homicida, demonstra que seu ato não foi uma ação impensada, fruto do furor do momento. Mas sim um produto da razão, da reflexão que levou a perfeita execução de seus crimes. Segundo Prag, em vez de dar a sua Clitemnestra em pânico um machado, Ésquilo a faz tomar – tranquilamente e em pleno domínio da sua razão – da espada, instrumento de guerreiro, instrumento masculino. Do mesmo modo, ao adotar a espada, a personagem representada na iconografia está Ésquilo trata os homicídios cometidos por Clitemnestra como metáforas do rito do sacrifício, chegando a assemelhar Agamêmnon a um boi. Como os animais de grande porte – segundo Walter Burkert – eram mortos com o pe/lekuv, seria, portanto, de se esperar que ele fosse morto com o uso do machado duplo. 12

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adotando um instrumento associado ao masculino e assumindo uma postura viril, mas igualmente ela está demonstrando o caráter racional de sua ação. Isto posto, Clitemnestra nesta representação assume papéis negados ao sexo feminino. Ao ser representada como uma mulher bem-nascida assassina, sacrificadora, manipuladora de espada e executora de ação fruto de premeditação, ela nos permite designá-la como uma mulher masculina e consequentemente transgressora. A Clitemnestra da cratera analisada é, portanto, uma mulher transgressora tanto pelo ato que comete (assassinato) como pela forma como o empreende (uso de espada). Do mesmo modo que a Clitemnestra de Ésquilo, a personagem representada neste vaso se utiliza da espada e não do pélekus para executar suas vítimas. O que – como mencionado anteriormente – devido ao fato de sua datação ser posterior à da primeira representação da Oréstia, nos permite supor uma provável ‘influência’ da trilogia esquiliana na criação do pintor. No entanto, mais do que uma provável assimilação da dramaturgia de Ésquilo, o que nos chama atenção ao observarmos esta imagem é a coexistência tanto na literatura como na iconografia do Período Clássico de uma percepção de Clitemnestra como mulher ‘transgressora’ ao ideal de comportamento feminino vigente na sociedade ateniense. A nossa proposta, nesse capítulo, consistiu em problematizar o possível diálogo e trocas entre teatro e imagética. Pintores, artesãos e poetas, na pólis dos atenienses, viviam experiências comuns. Máscaras, espadas, machados são signos que nos permitem aproximar esses ‘artistas’ que viviam entre o Cerâmico e o Teatro de Dionisos. Documentação Textual e Iconográfica ÉSQUILO. Agamêmnon (Orestéia Vol. I). Trad. Jaa Torrano, ed. bilíngue. São Paulo: Iluminuras; FAPESP, 2004. _____. Coéforas (Orestéia Vol. II). Trad. Jaa Torrano, ed. bilíngue. São Paulo: Iluminuras; FAPESP, 2004. _____. Eumênides (Orestéia Vol. III). Trad. Jaa Torrano, ed. bilíngue. São Paulo: Iluminuras; FAPESP, 2004. Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (LIMC), v.VII (1). Artemis Verlag Zürich und München, 1994, f. 200, p. 685.

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A etnicidade grega em Eurípides: o caso dos Ciclopes

Fábio de Souza Lessa Vanessa Ferreira de Sá Codeço Propomos neste texto discutir questões vinculadas ao conceito de etnicidade entre os gregos antigos a partir do drama satírico O Ciclope, de Eurípides.1 Entendemos que o conceito de “bárbaro” foi construído pelos helenos numa clara intenção de se diferenciar (e distanciar) de todos aqueles que não partilhassem de sua cultura – o não grego. Esta concepção aparece em diversas bases documentais, especialmente a textual, aonde temos Heródoto como principal referência. No teatro grego antigo não era diferente; inclusive Maria de Fátima S. e Silva (2005, p. 15) afirma que o gênero trágico foi um poderoso portavoz desse embate entre gregos e os grupos humanos estranhos à sua cultura. Diversos tragediógrafos levaram às encenações personagens estrangeiras e a elas associaram valores objetivando demarcar o eu (grego) e o outro (bárbaro) e, assim, expor esse distanciamento às grandes audiências. Nosso objetivo será mapear como essa diferenciação se dá em Eurípides, trágico muito notável na Atenas Clássica, contudo, especialmente criticado por seus pares; “a sua arte era nova, muito livre, e devia chocar facilmente...” (ROMILLY, 2011, p. 129). Antes de apresentarmos algumas das ideias que singularizam a poesia de Eurípides, entendemos ser necessário refletirmos acerca da relação teatro e pólis na Grécia Clássica (séculos V e IV a.C.). Para A data de composição do drama satírico O Ciclope não é segura. Segundo Carmen Leal Soares há, pelo menos, duas opiniões extremas: os estudiosos que consideram a obra como produzida no período de maturidade de Eurípides a situam em 408 a.C.; há ainda os que a fazem recuar para aproximadamente 430 a.C., vendo na peça uma paródia da tragédia Hécuba (SOARES, 2009, p. 33). 1

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S. Goldhill (2007, p. 199), “assistir a uma tragédia na Atenas antiga era uma experiência surpreendentemente diferente de qualquer visita contemporânea ao teatro”. Talvez a relação estreita entre tragédia e pólis, um consenso entre os especialistas no assunto, possa explicar essa diferença entre as representações teatrais antigas e contemporâneas. Defendemos que, na Atenas clássica, o poeta através das tragédias podia se endereçar ao conjunto da sociedade políade, representando em cena suas principais preocupações. A representação trágica reflete a sua integração na pólis e nas suas instituições democráticas, ou como Goldhill (2007, p. 208) destaca, “continuamente a tragédia apreende a ideologia da cidade e expõe suas falhas e contradições”; isto é, o teatro coloca no palco a pólis em discussão. E as peças de Eurípides fazem exatamente a pólis se representar para si mesma. Sua obra está marcada pela atualidade, seja pela guerra (a do Peloponeso), seja pelas ideias sofistas; predominando a presença concreta do sofrimento humano, venha ele da paixão, da guerra, do erro ou dos deuses (ROMILLY, 2011, p. 130, 133; ROMILLY, 1998, p. 110). A guerra em Eurípides é trágica de forma mais abrangente, sendo o tema de grande parte de suas peças (KIBUUKA, 2012, p. 21). Certamente podemos concordar com K. Reinhardt (2011, p. 20), ao afirmar que o teatro euripidiano é um termômetro da crise. A tragédia grega é por excelência agonística. Nela, os homens se mostram frequentemente lutando por algum objetivo, em conflito uns com os outros, ou com alguma força circunstancial, que muitas vezes é personificada em um deus (COLLARD, 2011, p. 64). Dentre os dramaturgos, é Eurípides quem mais faz seu público consciente dos interesses dos deuses nos negócios humanos e, ao mesmo tempo, ele é visto como o poeta que mais questiona a natureza – e até mesmo a existência – dos deuses (LEFKOWITZ, 2011, p. 102-103). Em O Ciclope esta questão se faz presente. O personagem Ciclope, apesar de ser filho de um deus – Poseidon –, tem por Zeus, no mínimo, um desrespeito. Vejamos: “O raio de Zeus não o temo, estrangeiro, e não sei em que Zeus é um deus superior a mim” (EURÍPIDES. O Ciclope, v. 231, 319-320). A fala do personagem a Ulisses evidencia a afirmação de que as personagens euridipianas são conhecidas por sua censura crítica aos deuses (KIBUUKA, 2012, p. 73). Talvez uma boa síntese sobre as características do poeta Eurípides nos seja apresentada por Jacqueline de Romilly. Segundo a autora: 32

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Na sua época, Eurípides foi essencialmente um “moderno”. O seu retrato das paixões, a sua insistência na fraqueza humana, o seu realismo são algumas marcas. Mas, ao mesmo tempo, sensível a todas as correntes do tempo, ligado aos sofistas, emprestou às suas personagens a arte deles para discutir acerca de tudo e deixou aflorar no seu teatro todos os problemas, todas as novas ideias e, também, todas as dúvidas que eles puseram em moda (ROMILLY, 2011, p. 136).

A abordagem dos mitos, como o comum nas tragédias gregas, está presente nas obras de Eurípides. Inclusive, os autores contemporâneos mencionam com frequência que o poeta não hesitava em modificá-los livremente para inserir reviravoltas e ligar as suas personagens. Em O Ciclope, a situação não é diferente, pois Eurípides recupera parte do relato mítico de Odisseu no Canto IX (v. 106-542) da Odisseia de Homero, descrevendo a presença do herói de Ítaca e de seus companheiros junto do Cíclope Polifemo. Podemos afirmar que, no essencial, o tragediógrafo manteve na peça os elementos da narrativa homérica, porém, algumas mudanças no relato de Homero foram feitas por Eurípides. Certamente a própria especificidade do gênero trágico explique a necessidade de tais alterações. Exemplo dessa situação é a localização da ação da peça. O local escolhido por Eurípides para desenvolvê-la é a Sicília, e mais precisamente junto ao Etna. Ao indagar o personagem Sileno sobre “que terra é esta e quem a habita”, Ulisses obtém a seguinte resposta: “O Etna, o monte mais alto da Sicília” (EURÍPIDES, O Ciclope, v. 113114). Todorov afirma que uma das primeiras características associadas aos bárbaros é a questão geográfica. Os bárbaros são aqueles que, dentre outras peculiaridades, vivem em famílias isoladas em vez de se agruparem nos habitats comuns ou, melhor ainda, em vez de formarem sociedades regidas por leis adotadas em comum. Os bárbaros encontram-se do lado do caos e do arbitrário; eles não conhecem a ordem social (TODOROV, 2010, p. 26). A peça trata, o tempo inteiro, do embate (e por que não dizer choque) entre dois estilos de vida – o grego e o não-grego (entendido pelos helenos como bárbaro). Falar nesta dicotomia implica, necessariamente, nos inserir nas discussões acerca do conceito de etnicidade, tão debatido nas últimas décadas. Philippe Poutignat e Jocelyne StreiffTeatro Grego e Romano

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Fenart chamam a atenção, por exemplo, para o fato de que, para alguns autores, “a etnicidade refere-se a um conjunto de atributos ou de traços tais como a língua, a religião, os costumes, o que a aproxima da noção de cultura, ou à ascendência comum presumida dos membros, o que a torna próxima da noção de raça” (POUTIGNAT; STREIFFFENART, 1998, p. 86). Outros estudiosos a definem em termos de comportamentos, de representações ou de sentimentos associados à pertença, ou ainda em termos de um sistema cultural; sendo a cultura entendida como “simultaneamente um aspecto da interação concreta e o contexto de significação desta mesma interação...” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 86, 109-110). A língua aparece comumente como critério de diferença e de distância entre gregos e bárbaros. Segundo Maria de Fátima S. e Silva (2005, p. 15), “... no critério helênico, o Bárbaro, ao mesmo tempo em que articula sons que obedecem a uma cadeia incompreensível, realiza um processo mental que o distingue do Grego”. A imagem que o heleno constrói do bárbaro se pauta no grotesco, na falta de regras como justiça, prudência, sociabilidade e hospitalidade. Tzvetan Todorov afirma que o termo bárbaro assume dois significados para o grego que, em determinados momentos, podem se fundir ou não: 1. a questão do não falar o grego; 2. o fato de negarem a humanidade dos outros, agindo como se não fossem seres humanos (TODOROV, 2010, p. 27). Os bárbaros seriam, ainda, aqueles que transgrediriam as leis fundamentais da vida comunitária, desrespeitando, inclusive, as relações familiares com parricídios, matricídios, infanticídios, etc. Em outra peça de Eurípides, Ifigênia em Tauris, ao referir-se ao matricídio de Orestes, diz: “Até mesmo em terra bárbara, quem teria essa audácia?” (EURIPIDES, Ifigênia em Tauris, v. 1.174). Lembremo-nos, ainda, de Medeia, personagem da tragédia homônima que, sendo estrangeira em terra grega, vinga-se de Jasão assassinando os filhos. Morras! Agora hei tino, mas não tinha antes, quando de casa e solo bárbaro te trazia a lar grego, grande mal, tu, treda à terra tua nutriz e ao padre! (...) Eis como começastes; e, desposada comigo, filhos engendraste meus, que matastes por causa de uma cama. 34

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Nenhuma das mulheres gregas nunca o ousaria – mas eu contigo quis casar-me (...) Leoa, não mulher, cujo caráter é mais feroz que o da tirrena Cila. (EURÍPIDES, Medeia, v. 1329-1343)

Todorov admite que em determinados momentos essa divisão será questionada (TODOROV, 2010, p. 28). No século III, por exemplo, Eratóstenes, autor conhecido pelos fragmentos contidos na obra de Estrabão, irá apresentar o seguinte raciocínio: Na parte final do volume, Eratóstenes desaprova o princípio de uma divisão bipartida do gênero humano entre gregos e bárbaros, assim como o conselho dado a Alexandre a fim de tratar os primeiros como amigos e os segundos como inimigos. É preferível, diz ele, adotar critérios de divisão, tais como virtude e desonestidade: um grande número de gregos são pessoas malvadas, enquanto numerosos bárbaros têm uma civilização requintada, por exemplo, os indianos ou os povos que ocupam o planalto de Ariadne, ou ainda os romanos e os cartagineses, cuja instituições políticas são notáveis! (ESTRABÃO, Geógraphie, I, 4, 9).

O próprio Estrabão, inclusive, admite que pelo ponto de vista linguístico, o não grego seria um bárbaro. Mas os gregos, por sua vez, também o seriam: “do mesmo modo que não estaríamos em condições de falar a língua deles” (ESTRABÃO, Geógraphie, XIV, 2, 28). Voltando para o conceito de etnia, a classificação em barbárie estaria diretamente relacionada a etnia, uma vez que bárbaro seria aquele que não partilhassem determinadas prerrogativas comuns àquela sociedade. Para Edward M. Anson, o conceito de etnia aparece associado à noção de percepção, isto porque as semelhanças só adquirem importância se forem consideradas significativas pelosque estão em causa e reconhecidas por outras pessoas. E destaca cinco atributos significantes na percepção da etnia, a saber: 1.Origem ancestral comum; 2. cultura similar; 3. religião compartilhada; 4. raça comum e; 5. linguagem similar (ANSON, 2009, p. 5). Corroborando o que mencionamos acima, segundo ainda Anson, a ferramenta mais referenciadade assimilação ou de exclusão entre os helenos foi a língua, inclusive o termo para não-gregos – barbaroi – foi aparentemente linguístico na origem (ANSON, 2009, p. 18). Não podemos deixar de Teatro Grego e Romano

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concordar com J. Hall que a aparência física, a linguagem, a religião e a cultura não podem ser consideradas necessariamente critérios para a classificação étnica, até porque não são suficientes (HALL, 2005, p. 13). Outro autor considerado paradigmático nas questões relativas à etnia, etnicidade e identidade étnica, é o escandinavo Fredrik Barth, organizador de um estudo publicado pela primeira vez em 1969 e intitulado Os grupos étnicos e suas fronteiras. Na introdução desta obra, hoje considerada clássica, Barth (1976, p. 11) aponta que: O termo grupo étnico é utilizado geralmente na literatura antropológica [...] para designar uma comunidade que: 1) em grande medida se autoperpetua biologicamente; 2) compartilha valores culturais fundamentais realizados manifestadamente em formas culturais; 3) integra um campo de comunicação e interação; 4) conta com membros que se identificam e são identificados por outros e que constituem uma categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem.

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O grupo étnico encontra sua expressão mais visível a partir da identidade étnica, o que significa a classificação e separação de um grupo de pessoas em um conjunto de categorias definidas em termos de oposição. Segundo Barth, o grupo composto por Ulisses e seus companheiros formaria um grupo étnico, pois pertenceriam a uma comunidade que se autoperpetuaria biologicamente – a grega; eles compartilham valores culturais comuns (religião, costumes...); conseguem se comunicar e integrar-se graças ao domínio da língua e, finalmente, se identificam como pertencentes ao mesmo grupo, afastando-os de todos que fogem a esses pré-requisitos. Igualmente, Polifemo e seus sátiros foram outro grupo étnico. Desta forma, no embate entre a tripulação de Ulisses e o Ciclope e seus sátiros, temos a construção de uma fronteira. Julgamos necessário ressaltar que a etnicidade implica sempre a organização de agrupamentos dicotômicos Nós/Eles, sendo necessária que essa alteridade seja expressa e validada na interação social. Esta ideia é exatamente constatada por Jonathan Hall quando afirma que “a etnicidade depende de categorização, ou seja, da habilidade em dividir o mundo entre nós e eles” (HALL, 2001, p. 216). Este processo joga logicamente com a produção e transformação de fronteiras. Elas são sempre mais ou menos fluidas, moventes e permeáveis, sendo que Fábio de Souza Lessa e Vanessa F. de Sá Codeço

a sua manutenção “baseia-se no reconhecimento e na validação das distinções étnicas no decurso das interações sociais” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 111, 152, 158). Comecemos a verticalizar a nossa reflexão acerca da fronteira existente entre Ulisses/Nós e Ciclope/Eles. Esta fronteira nos remete, de imediato, a uma segunda: aquela entre civilizado/propriamente humano e bárbaro/selvagem. No caso específico de Homero, julgamos necessário enfatizar que encontramos pouco ou nenhum traço de estereótipos etnocêntricos e de depreciação de bárbaros2 (CARTLEDGE, 1993, p. 38). As imagens do bárbaro elaboradas pelas diversas expressões literárias cumprem, na Atenas democrática, uma função ideológica de importância e se associam aos modos de representação imaginária da identidade cívica ateniense, se opondo, é claro, à alteridade máxima grega, a saber: os persas. É exatamente com as Guerras Greco-Pérsicas que o bárbaro passa a ser mais concreto, podendo ser representado nas expressões literárias e artísticas de forma mais precisa. Pensemos, por exemplo, na noção de estrangeiro para Eurípides. Ela é, em geral, representada por um conjunto de elementos estereotipados e divergentes do modelo grego (SILVA, 2005, p. 18). Vejamos o estrangeiro com o qual Ulisses se depara no Etna. A caracterização do Etna e Ciclope feitas por Eurípides atua no sentido de delinear com clareza a fronteira, construída pelos próprios helenos entre o seu mundo e aquele dos bárbaros. Vejamos o diálogo entre os personagens Sileno e Ulisses: (Sileno): É o Etna, o mais alto monte da Sicília. (Ulisses): Onde estão as muralhas e as fortificações da cidade? Quanto ao termo bárbaro, Alexandre Moraes destaca que “a etimologia do vocábulo barbarophônon é costumeiramente discutida. Sugere-se, por exemplo, que o termo seja decorrente de uma onomatopeia de bambaino, “bater os dentes” e/ou “tremer de medo”, que teria gerado por sua vez o latim balbutio. Entretanto, parece mais plausível admitir que seja apenas uma representação de um gaguejar, visto que a repetição da primeira sílaba (bar-bar) soa mal em grego. Podes ser que se tratasse de uma maneira jocosa de se referir àqueles cuja língua era radicalmente diferente do grego e que, por isso, gerava estranhamento”. Segundo ainda o autor, o termo βα βα οθώνων (barbarophônon) aparece em Homero (Ilíada, II, 867) para se referir aos Cários (MORAES, 2011, p. 11). 2

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(Sileno): Não existem. Neste monte não habitam seres humanos. (Ulisses): A quem pertencem estas terras? A feras, por acaso? (Sileno): Aos Ciclopes, que habitam antros, não casas. (Ulisses): Quem é seu chefe? Possuem eles o regime democrático? (Sileno): São pastores errantes e ninguém obedece a ninguém em nada. (Ulisses): De que se alimentam? Cultivam o trigo, consagrado à Deméter? (Sileno): Alimentam-se de leite, queijo e de carne de carneiro. (Ulisses): Não bebem o suco da videira, consagrado a Brômio? (Sileno): De modo algum. Também não existe a dança nestes locais por eles habitados. (EURÍPIDES, O Ciclope, v. 114-124).

Nesta primeira passagem da peça, vemos uma série de características da vida grega ressaltadas nas palavras de Ulisses e que, por não serem vivenciadas na ilha onde habitam os titãs, faz causar um estranhamento entre aqueles que partilham valores gregos ou não. As muralhas, o fato de não compartilharem o regime democrático de governo, não cultivarem trigo e não serem hospitaleiros assinalam criaturas que não vivem sob o estilo heleno. Dentre as características atribuídas ao personagem Ciclope se destacam a animosidade e a selvageria frequentes na interação com estranhos, vejamos: (Ulisses): São hospitaleiros e benévolos com os estrangeiros? (Sileno): Os estrangeiros, dizem eles, têm uma carne saborosíssima. (Ulisses): Que dizem? Gostam de devorar carne humana? (Sileno): Todos que vieram aqui foram degolados. (EURÍPIDES, O Ciclope, v. 125-128).

Nada mais distante da cultura helênica do que a prática da antropofagia. Certamente deve ter sido essa a característica do Ciclope que mais estranheza causou em Ulisses, que mais explicita a diferença/ alteridade entre gregos e os outros; entre gregos e bárbaros. A prática, inclusive, aparece relacionada aos sátiros, companheiros de Polifemo, não demonstrando sequer respeito entre os seus.

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(Polifemo): Meu almoço está preparado direito? (Corifeu): Ele te espera: é só preparar a garganta. (Polifemo): Também os vasos estão cheios de leite? (Corifeu): Podes beber, se quiseres, a jarra inteira. Fábio de Souza Lessa e Vanessa F. de Sá Codeço

(Polifemo): Leite de ovelha, de vaca, ou misturado? (Corifeu): A tua escolha, contando que não me engulas! (EURÍPIDES, O Ciclope, v. 214-219)

O diálogo prossegue. Perguntado sobre o meio de sair da caverna, Sileno desconhece e tudo que consegue é negociar com Ulisses sobre alimentos a serem trocados para que a tripulação do herói pudesse comer. Depois de alguma negociação, Ulisses ainda adverte para que logo trouxesse, pois “os negócios fazem-se a luz do sol” (v. 137). Da negociação por alimentos, temos o acordo de que o pagamento dar-se-á em vinho, o que é comemorado por Sileno, há muito afastado dos sabores do licor de Dionisos. O que temos desse ponto em diante da peça é a descrição dos efeitos da bebida naqueles que não possuem o conhecimento, o domínio exato sobre ela. Sileno logo se rende, entregando tudo o mais requisitado por Ulisses por alguns odres de vinho. A peça segue e logo Ulisses e sua tripulação conhecem o ciclope Polifemo. O herói reclama a hospitalidade, ignorada por Polifemo. (Ulisses): (...) Existe, por outro lado, em relação aos mortais, uma lei, se é que discordas de minha argumentação, que manda acolher os suplicantes arruinados pelo mar; dar-lhes hospitalidade; fornece-lhes vestuário e não cravar-lhes os membros em grossos espetos para encheres tuas maxilas e estômagos. (Polifemo): A riqueza, homenzinho, é o deus dos sábios, o restante são discursos enfáticos e palavras bonitas. (...) Que pretendes com tuas palavras? O raio de Zeus não o temo, estrangeiro e não sei em que Zeus é um deus superior a mim. (...) No que se refere àqueles que fizeram leis para embelezar a vida humana, que se danem! Por isso, não deixarei de me satisfazer – vou te devorar! Como presente de hospitalidade, porque desejo ser irrepreensível, receberás fogo e a água paterna e um caldeirão: fervendo, ele envolverá maravilhosamente bem tuas carnes decepadas. (EURÍPIDES, O Ciclope, v. 317-345).

O titã ignora o costume grego e acaba por prender a tripulação na caverna e devorar dois dos marinheiros de Ulisses, além de ameaçar comer os outros restantes. Ulisses, então, oferece ao fim da trágica refeição uma taça de vinho, que logo é sorvida e faz que Polifemo fique tonto, a cantar musicas sem nexo com os prisioneiros. Teatro Grego e Romano

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É neste instante que Ulisses bola seu plano para livrar-se do gigante. Vai convencer o titã a não repartir o vinho e guardá-lo somente para si. Após estar completamente entorpecido, Ulisses com a ajuda dos sátiros e da tripulação empunharia um enorme tronco de oliveira com uma das pontas incandescidas e acertaria no único olho de Polifemo. Este uma vez cego, Ulisses poderia fugir com todos para as naus e escapar da ilha. O plano é bem recepcionado pelo coro, que apoia a ideia. E assim decorre a ação. Ulisses está na companhia do Corifeu, de Sileno e Polifemo. Sem a ajuda dos sátiros, que se acovardam na última hora, Ulisses cega o titã, que urra de dor e prostra-se na entrada da gruta, dizendo ao corifeu que ninguém o havia cegado, ardil usado por heróis para que não soubessem sua verdadeira identidade. Em sequência, temos a fuga dos marinheiros e do próprio Ulisses, que se escondem no dorso das ovelhas criadas pelo gigante. Como está cego, Polifemo, mesmo tateando, não consegue perceber a presença dos homens e libera o rebanho para sua saída da caverna. O que Eurípides quis nos mostrar com esta passagem mítica relembrada através do drama satírico? Como analisar tamanho estranhamento frente a uma audiência grega? Voltando ao conceito de etnicidade de Barth, segundo o autor, quanto maior a interação entre dois grupos étnicos distintos, mais potente ou marcado será o limite étnico entre eles (BARTH, 1976, p. 13). Desta forma, a interação entre Ulisses e seus marujos com Polifemo e seus sátiros revela um estilo de vida antagônico que, no caso grego, visa exaltar o modo de viver helênico. Assim, o beber o vinho misturado à água, o Dionisismo, a hospitalidade, os banquetes e as negociações à luz do dia são hábitos caracteristicamente gregos e que somente aqueles que possuem o devido conhecimento sobre eles que são considerados civilizados. São isoí. Estes apontamentos relacionam-se também com o que se esperava de um cidadão virtuoso na Atenas Clássica. Apesar da peça não ocorrer num espaço temporal similar ao da pólis ática, os hábitos encenados são contemporâneos. Desta forma, o autor transpassa que o civilizado deve portar-se deste modo. A plateia, ao presenciar esta cena, identifica-se com os valores lá exaltados, enxergando na figura de Ulisses o eu e na figura do Titã, o outro – o bárbaro. Apesar de todos os particularismos e por mais que verifiquemos mudanças maiores ou menores na definição da fronteira étnica helênica Fábio de Souza Lessa e Vanessa F. de Sá Codeço

conforme as épocas, um heleno da Antiguidade, em qualquer período, teria a impressão de achar-se em terreno reconhecível e familiar por toda parte, ao viajar a póleis ou regiões gregas que não fossem a sua (na condição de estrangeiro de passagem ou domiciliado). Os diferentes dialetos eram mutuamente compreensíveis, os deuses eram os mesmos, bem como no geral as cerimônias semelhantes em seus fundamentos: por trás dos detalhes distintos perceptíveis em qualquer domínio, quase sempre se podia notar um fundo comum – pelo menos naqueles pontos selecionados por meio dos quais a cultura servia, justamente, de fundamento à autoconsciência étnica (FINLEY, 1928, p. 1-21). A etnicidade aqui, portanto, é percebida como uma categoria objetiva de identificação, de auto-reconhecimento de diferenças, de demarcação de territórios simbólicos, em que os sinais construídos sobrepõem-se àquilo com que se vive e pensa, a própria marca da diferença. Documentação Textual ESTRABÃO. Géographie. Paris: Les Belles-Lettres, 1966. EURÍPIDES. Ciclope. Trad. Carmen L. Soares. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 2009. _____. O Ciclope. In: Teatro Grego: Eurípides e Aristófanes. Trad. J. S. Brandão. Rio de Janeiro: Ed. Espaço e Tempo, [s.d.]. _____. Iphigenia in Tauris. Trad.: Martin J. Cropp. Warminster: Aris & Phillips, 2000. _____. Medéia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Hucitec, 1991. Bibliografia ANSON, E. M. Greek Ethnicity and the Greek Language. Glotta, v. 85, p. 5-30, 2009. BARTH, F. Introducción. In: ____. (org.). Los grupos étnicos y sus fronteras. México: Fondo de Cultura Económica, 1976, p. 9-49. CARTLEDGE, P. The Greeks. Oxford; New York: Oxford University Press, 1993. COLLARD, C. Formal Debates in Euripides’ Drama. In: MOSSMAN, J. Oxford Readings in Classical Studies: Euripides. Oxford; New York: Oxford University Press, 2011, p. 64-80. Teatro Grego e Romano

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FINLEY, M. O Legado da Grécia. Uma nova avaliação. Brasília: Editora da UnB, 1998. GOLDHILL, S. Amor, Sexo & Tragédia: como os gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. HALL, J.M. Hellenicity: Between ethnicity and culture. Chicago and London: The University of Chicago Press, 2005. ____. Quem eram os gregos. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, v. 11, p. 213-25, 2001. KIBUUKA, B. G. L. Eurípides e a Guerra do Peloponeso: Representações da guerra nas tragédias Hécuba, Suplicantes e Troianas. 2012. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ. LEFKOWITZ, M.R. ‘Impiety’ and ‘Atheism’ in Euripides’ Dramas. In: MOSSMAN, J. Oxford Readings in Classical Studies: Euripides. Oxford;New York: Oxford University Press, 2011, p. 102-121. MORAES, A.S. Etnicidade na Odisseia de Homero: O caso de Polifemo. 2011 (Circulação restrita). POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da Etnicidade seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. REINHARDT, K. The Intellectual Crisis in Euripides. In: MOSSMAN, J. Oxford Readings in Classical Studies: Euripides. Oxford; New York: Oxford University Press, 2011, p. 16-46. ROMILLY, J. Compêndio de Literatura Grega. Lisboa: Edições 70, 2011. ______. A Tragédia Grega. Brasília: UnB, 1998. SILVA, M. F. S. Representações de alteridade no teatro de Eurípides: o bárbaro e o seu mundo. Génese e consolidação da ideia de Europa Vol. I: De Homero ao fim da época clássica. Coimbra, 2005, p. 187-237. SOARES, C. L. Introdução ao Ciclope. In: EURÍPIDES, Tragédias I. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 2009. TODOROV, T. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

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Do poder à servidão, da servidão à morte: representações da guerra e da violência no prólogo da tragédia Hécuba, de Eurípides

Brian Gordon Lutalo Kibuuka – Meu Deus, que violência! – retorquiu o príncipe no seu uniforme de gala, o peito coberto de condecorações, na face achatada um ar florescente, sem ligar a mínima importância a semelhante acolhimento. Guerra e Paz, Tólstoi Um sinônimo utilizado hoje para nomear o conjunto de males que Týche / Fortuna lega aos homens é tragédia – e a guerra, mais do que a maior parte dos outros males, é trágica –, eis o legado que hoje viceja e que é proveniente da concepção grega dos conflitos, inclusive os bélicos. E em Eurípides, “o mais trágico dos trágicos” (ARISTÓTELES, Poética, 1453 a 29-30), a guerra é trágica de forma mais abrangente, e é o tema de grande parte de suas tragédias supérstites. A guerra propriamente dita não foi posta em cena por Eurípides, como não o fora pelos outros dois tragediógrafos gregos cujas obras podem ser lidas hoje por terem sido preservadas, Ésquilo e Sófocles.1 O que foi preservado das obras dos tragediógrafos gregos do século V a.C. é apenas uma amostra da sua produção poético-dramática. De Ésquilo, o mais antigo deles, há Persas, Sete contra Tebas, Suplicantes, Prometeu Acorrentado e a Oresteia (trilogia formada por três tragédias: Agamêmnon, Coéforas e Eumênides). De Sófocles, foram conservadas as tragédias: Ájax, Antígona, Traquínias, Édipo Rei, Electra, Filoctetes e Édipo em Colono. De Eurípides, o autor do qual mais tragédias há para o leitor de hoje, as peças supérstites são: Alceste, Medeia, Heráclidas, Hipólito, Andrômaca, Hécuba, Suplicantes, Héracles, Troianas, Ifigênia em Táuris, Íon, Helena, Electra, Fenícias, Orestes, Bacantes, Ifigênia em Áulis e o drama satírico Ciclope. Para acessar as obras em grego, com tradução, ver: WEST, M. L. Aeschyli Tragoediae (1990); LLOYD-JONES, H.; WILSON, N. G., Sophoclis 1

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Eurípides optou por se apropriar, como era praxe na tradição das tragédias, dos mitos pertencentes aos ciclos épicos, tanto o troiano quanto o tebano, para que esses servissem de base para os seus próprios enredos lírica e tematicamente densos. Porém, diferentemente de Ésquilo e Sófocles, Eurípides colocou em cena personagens cuja condição desprivilegiada e frágil trazia a lume o patético de sua própria condição, cada vez mais sujeita aos reveses que a conduziam ao desfecho da ação trágica. A comparação com os demais trágicos revela ser Eurípides um autor que conhecia a tradição dos que o antecederam. Eurípides se dispôs, acima de tudo, a romper propositalmente com tal tradição. Todavia, o tratamento das inovações euripidianas ao teatro não tangencia o cerne da questão que interessa ao presente trabalho: a possibilidade de tornar o texto euripidiano fonte e ponto de observação para a reconstituição do contexto mais amplo de sua enunciação. Para tanto, um caminho viável é o reconhecimento das matérias míticas do drama euripidiano, a constatação das inovações e mudanças de tônus em tais mitos e a recepção da matéria própria de Eurípides. É viável ainda a análise dos códigos linguísticos, culturais e sociais presentes nas tragédias euripidianas que correspondam às questões que provocaram nos seus espectadores originais determinados sentidos. Por um lado, o que se tem é o drama de Eurípides. Por outro lado, o que se tem é o conhecimento, por meio dos diversos corpora documentais e materiais, do cotidiano da audiência. A tarefa que desafia a análise é o cruzamento e a leitura crítica de ambos. E, sendo assim, a questão não é apenas ler textos trágicos, mas lê-los na profusão de sentidos que emerge da consideração mais abrangente do contexto de enunciação trágica. A guerra se apresenta nas várias fontes documentais da Antiguidade Grega como um tema caro, por vezes imprescindível, discernível em sua importância como tema poético desde Homero. Recuperar, portanto, no tema poético algo do contexto exige uma leitura ‘hipercrítica’ dos textos, ainda mais quando o caráter da fonte é de relativo afastamento intencional do próprio gênero, como ocorre com Eurípides. Mas, apesar dos obstáculos, tal exercício é possível, pois:

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Fabulae (1990); DIGGLE, J. Euripidis Fabulae (3 vols., 1981-1984). Há ainda muitos fragmentos de tragédias de Ésquilo, Eurípides e Sófocles, bem como de outros tragediógrafos, os quais podem ser consultados na obra Tragicorum Graecorum Fragmenta (TrGF). Brian Gordon Lutalo Kibuuka

Enquanto ficção, tanto a narrativa literária quanto a histórica pressupõem uma ordenação do real e a busca da coerência através de uma correlação de elementos e do estabelecimento de relações entre dados. Esta coerência fictiva depende de uma possibilidade de construção de sentido articulada no momento da escritura do texto, mas que deverá ser reconstruída pelo leitor. Portanto, a construção da coerência narrativa deverá fazer sentido através da leitura. (LEENHARDT; PESAVENTO, 1998, p. 12).

A guerra também surge como tema nas imagens das obras de arte gregas: cenas de conflitos e combates são representados desde as cerâmicas e painéis micênicos do segundo milênio a.C. até os vasos gregos da época clássica. E tal qual uma ékphrasis[descrição],2 os poemas Ilíada e Odisseia apresentam muitos episódios de combates. É possível admitir que a guerra fosse um tema na literatura mais tradicional e nas várias manifestações artísticas dos gregos, e se manteve crucial nos textos e representações teatrais do século V a.C. Há em Eurípides menções à guerra, porém, com significativos deslocamentos. Não por acaso, a produção euripidiana sobre a guerra coincide com um período de iminência do conflito entre Atenas e Esparta, perpassando os períodos de combate e de cessar-fogo e terminando pouco antes do fim da guerra, que teve Esparta como vencedora. A questão das tensões simultâneas ou sucedâneas à guerra, que conduzem os homens ao excesso [hýbris] e ao erro [hamartía],3 tem relação com tais ocorrências na Guerra do Peloponeso, e é tratada em tragédias euripidianas como Ifigênia em Áulis, Suplicantes, Hécuba e Troianas, entre outras. Mas a chave para a abordagem histórica das relações entre a Guerra do Peloponeso e o drama euripidiano tem relação com as questões contextuais que permitem entender as possibilidades e as motivações dos dramaturgos gregos.

É, na Antiguidade, a descrição de alguma coisa, de alguma pessoa ou de alguma experiência. 3 Os dois termos, hýbris e hamartía, são termos utilizados por Aristóteles para descrever aquilo que o herói das tragédias faz que justifica o desfecho trágico das peças. 2

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A pólis-teatral, os festivais trágicos e a guerra Uma ideia oportuna para a análise das tragédias gregas é o conceito de “Estado Teatral”, de Clifford Geertz,4 especialmente no que diz respeito ao recurso às poéticas do poder, às linguagens, às imagens e às representações da dominação e da violência nas várias manifestações coletivas. Faz-se tal opção, não obstante o reconhecimento dos limites do conceito,5 por ser conveniente à análise de contextos como o ateniense. A cultura de Atenas é uma cultura da performance (REHM, 1992; CSAPO, E.; SLATER, W. J., 1995), marcada pela realização de celebrações religioso-rituais de grande valor cívico, dentre os quais destacam-se os dois importantes festivais anuais em honra a Dioniso: as Leneias e as Dionisíacas Urbanas ou Grandes Dionisíacas.6 Os festivais dionisíacos realizados na cidade de Atenas provavelmente surgiram das Dionisíacas Rurais,7 celebrações rituais e, ao mesmo tempo, dramáticas, realizadas no campo. Mais tarde, essas celebrações foram transferidas para a cidade e passaram a fazer parte das Leneias8 e Dionisíacas Urbanas,9 festivais mais tardios nos quais se sedimentou a performance de ditirambos, tragédias, comédias e dramas satíricos (PICKARD-CAMBRIDGE, 1988; SIMON, 1983). Os festivais dionisíacos eram oportunidades de descanso e recuperação dos mais de 200.000 habitantes da Ática que se dedicavam ao trabalho. Refletiam também a identidade cívica dos cidadãos que, Sobre a expressão “estado teatral”, consultar: GEERTZ, C. Negara: the Theater State in Nineteenth-Century Bali. New York, 1980. 5 Ver as críticas a Clifford Geertz em: SHANKMAN, P. The Thick and the Thin: On the Interpretive Theoretical Program of Clifford Geertz. Current Anthropology, 25, p. 261-279, 1984; ������������������������������������� KEESING, R. Anthropology as Interpretive Quest. Current Anthropology, 29, p. 161-176, 1987. 6 Sobre a natureza do festival, ver: MIKALSON, J. D. The heorte of heortology, GRBS, 23, p. 213-221, 1982. 7 As Dionisíacas Rurais eram celebradas em honra a Dioniso nos campos. Vários dêmoi celebravam esta festa em diferentes datas, mas todas no mesmo ano agrícola durante o fim do período de chuvas, entre dezembro e janeiro, poucas semanas antes das Leneias. 8 As Leneias era festivais de verão, que ocorriam entre janeiro e fevereiro. 4

As Dionisíacas Urbanas ou Grandes Dionisíacas eram um festival de primavera celebrado anualmente entre o fim de março e o começo de abril. 9

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agregados a uma democracia vigorosa na época clássica, viam representados diante dos seus olhos muitos dos códigos da ordem social em vigor, representações que sustentavam, criticavam ou reforçavam a identidade cívica ateniense, ou mesmo lembravam o passado mítico, dando a este corporeidade e expressão pela encenação. A partir de tal dado é que se observa o lugar ocupado pela temática da guerra no drama trágico, tendo por premissas a realização de uma guerra no período da encenação, a representação simbólica de conceitos socialmente aceitos e as referências a respeito da guerra no drama. Uma representação da vida e dos seus valores era encenada à audiência, repleta de códigos que são, eles mesmos, elementos aproximantes (ou distanciantes) entre a audiência e o tragediógrafo. A guerra fazia parte do cotidiano dos interlocutores das tragédias, seja nos mitos, na necessidade de defender a cidade dos ataques estrangeiros, seja no risco de guerra civil (stásis) ou mesmo na guerra entre cidades gregas. A guerra é, entre os gregos, um dado cultural e culturalmente interpretado. Os atenienses tinham a guerra como prática costumeira no quinto e no quarto séculos. E na guerra era exercitado tanto o engajamento cívico quanto a afirmação da virilidade e coragem. Não é por acaso que a coragem, a honra, a vingança, a virilidade e a ruptura de todos estes valores são temas e assuntos das tragédias, sendo postas em debate em peças como Agamêmnon (de Ésquilo), Ájax (de Sófocles), Suplicantes, Hécuba e Troianas (de Eurípides), bem como em muitas outras peças, de forma direta e indireta. Então, é possível lançar mão dos dramas trágicos como fontes para a reflexão sobre a guerra, reflexão esta política – visto que os mesmos que participavam dos embates democráticos que decidiam a existência e/ou os rumos da guerra faziam parte da audiência que decidia inclusive os vencedores dos concursos trágicos. O que se pode observar a partir da relação entre a guerra e a guerra como tema de um drama é que este é mais do que um ato artístico: é também a submissão, em um concurso dramático ocorrido em um ‘Estado Teatral’, de uma representação imbuída de idealidades e mentalidades com rupturas e continuidades significativas entre o drama e a audiência julgadora. E é neste campo intrincado de relações entre ambos que, segundo se indica aqui neste trabalho, emerge um novo ponto de observação sobre a guerra na Antiguidade, ponto produtivo e historicamente relevante. Teatro Grego e Romano

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A ‘teoria’ da guerra: um breve esboço

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A pesquisa sobre a guerra tem uma longa história. No caso da guerra na Grécia Antiga, obras como De equitum magistro, de Xenofonte, ou Tactica, de Aeneas Tacticus, são as primeiras obras disponíveis aos leitores modernos que mostram as orientações práticas do comando de tropas em um campo de batalha. Porém, não há em tais obras a vinculação da guerra com conceitos filosóficos ou religiosos – ou seja, não há indicações de uma reflexão a respeito da guerra, de suas motivações, dos valores e critérios para ela, ou até das razões para a declaração do início ou do fim dos combates. Obras dedicadas a outros temas mais específicos relacionados à guerra foram escritas apenas no período helenístico e romano. Herão e Fílon se dedicaram a abordar a guerra nos seus aspectos mais técnicos da formação de tropas. Posidônio e Asclepiodoto tratam, por sua vez, das táticas de combate, um viés semelhante ao tratamento de Frontino e Polieno. Os detalhes práticos dos conflitos bélicos foram tratados abundantemente no Epitoma Rei Militaris, de Vegetius. No caso de Asclepiodoto e Onasandro, ambos escreveram a respeito das causas da guerra e da razoabilidade dela. A ausência de fontes que tratem da teoria relacionada à guerra e que promovam uma avaliação crítica sua no período clássico da Grécia Antiga é um problema que pode ser equacionado pelas menções indiretas em textos, bem como nas evidências em inscrições de uma reflexão a respeito do conflito bélico. A evidência de reflexão crítica nos historiógrafos gregos Heródoto e Tucídides, no escritor Xenofonte e nos autores devotados à prosa filosófica é insuficiente para completar um quadro convincente dos conceitos fundamentais para uma teoria da guerra, ou seja: há potencialidades conceituais, mas tais carecem de instrumentos de leitura para serem acessadas e de complementação em outras fontes. E tal é a razão de se propor a análise do tema da guerra nas tragédias e comédias, visto que há representações e discussões a respeito da guerra nos dramas. Tal análise já fora sugerida por J.P. Vernant (1968), P. Vidal-Naquet (1986), P. Ducrey e Y. Garlan (1989), os quais tratam de instituições e demonstram que tais refletem as tensões de classe, que estão refletidas nas várias representações na pólis; e no trabalho de M. I. Finley (1981 – e também Van Wess, 2000), que mostra como a guerra no período clássico está ligada ao culto, ao ritual, às questões psicológicas, de gênero, à demografia e à Brian Gordon Lutalo Kibuuka

cultura em geral. Logo, é possível coletar, a partir do drama clássico e, em especial, o euripidiano, as representações presentes nas tragédias, as quais não apenas refletem uma concepção típica do senso comum a respeito do conflito bélico, mas uma reflexão sobre os motivos, os limites, as transgressões e as consequências da guerra. Os antecedentes da guerra na tragédia: a guerra na poesia arcaica A guerra, como já se afirmou acima, é um tema que perpassa diferentes corpora literários gregos. E tal se dá desde as origens da literatura grega, que é, fundamentalmente, devotada ao conflito – quer seja na afirmação da sua necessidade; quer seja no apelo ao engajamento e à excelência [areté] em relação aos assuntos bélicos; ou mesmo em relação ao oposto, em que o éthos da participação nos combates sofre a metafórica e cômica inversão no tema do ‘abandono do escudo’.10 A tragédia recorre ao mito e o faz em diálogo com a tradição mítica presente em autores do período arcaico. Homero, Hesíodo e os poetas líricos eram considerados educadores da cidade (pólis). Os seus escritos eram recitados e serviam para ensinar as crianças e reforçar nos adultos a sua ‘história’ e cultura – ou seja, a sua identidade como parte do povo grego. O discurso e a narrativa a respeito da beligerância não ocupam lugar marginal na literatura tradicional grega. O tema da guerra perpassa a tradição épica do período arcaico, em especial, o Ciclo Troiano, salpicando cores rubras nos mais diferentes relatos – tanto os relatos das batalhas, quanto os dedicados a narrar a preparação delas ou as consequências do pós-guerra. Nos textos do período arcaico, o conflito bélico é representado com uma extensão ampliada, ramificando-se Arquíloco de Paros, mais antigo representante da poesia em iambo, ainda no século VII a.C., usa os dísticos elegíacos e iambos (segundo, DOVER, K. J., The poetry of Archilochos, Entretien Hardt, Tome X, 1964, p. 185) para tratar do tema do abandono do escudo – o que o faz no fragmento 6 DIEHL. Arquíloco trata ainda, no fragmento 60 DIEHL, da preferência do general belo (caricatura de Glauco), que participa da aventura da expedição (ele participou do reforço da colonização de Tasos iniciada pelo seu pai). Ver ainda: FOWLER, R. L. The Nature of Early Greek Lyric: Three Preliminary Studies, Toronto, 1987, capítulo 1. Recorrem ao mesmo tema do abandono do escudo Anacreonte (fragmento 51 DIEHL) e Alceu (fragmento 428 LOBELPAGE). O tema é uma resposta ao apelo ao combate e à guarda do escudo até a morte feito por autores como Tirteu. 10

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em vários outros temas. A Ilíada, por exemplo,é um extenso poema narrativo cujo conflito faz parte do seu cerne, constituindo um consistente fio em meio à densa tessitura narrativa. Se o canto da deusa na proposição do poema é à “ira de Aquiles”, tal ira é a causa de muitos heróis perderem a vida, tombando no campo de batalha e servindo de repasto aos cães (HOMERO, Ilíada 1.1-5). Atrelada à temática da guerra, um conjunto de valores socioculturais é apresentado, nos quais as representações mediante a linguagem são índices da organização e da valorização dos entes que compõem esse mundo de representações. Na própria Ilíada, anuncia-se, por exemplo, a necessidade de a guerra ser assumida pelos mais jovens e vigorosos, cuja morte é honrosa e bela – em oposição à morte dos mais velhos, desonrosa quando eles, tendo os corpos expostos no meio do campo, insepultos e nus, servem de repasto para os cães, como se observa em Homero, Ilíada 22.71-76: Todas as coisas convém ao jovem que morre na guerra, trucidado pela lança pontiaguda; para aquele que está morto, todas as coisas são belas, porque todas as [coisas se mostram. Mas quando os cães desonram a cabeça e a barba grisalha e as partes vergonhosas um ancião morto isso, em efeito, é a coisa mais lamentável para os míseros mortais.

O mesmo tópico se irradia em diferentes corpora literários da Grécia Arcaica – porém, tal temática literária não é apenas uma categoria vazia, condicionada à ficcionalidade. É, entre outras coisas, a representação ficcional de códigos socioculturais típicos de um período histórico – e, sendo assim, tal representação, dissipando-se e ganhando novas cores e texturas nos textos que seguem, utiliza categorias reconhecíveis porque existentes nos contextos de enunciação. Se agora o que se tem são textos supérstites, o que havia outrora era mais do que isso. Há um amálgama em tais textos entre os contextos que os envolvem, as performances, a sua enunciação e a rica tradição mítica e narrativa que serve de antecedente dialógico para tais poemas. Investigar os componentes culturais e sociais que medeiam o jogo ficcional das narrativas permite que o leitor moderno se aproxime dos interlocutores, das demandas pragmático-discursivas e dos muitos outros elementos subjacentes a um poema da Antiguidade que trate da guerra. 50

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Um exemplo passível de observação é a recepção do tema homérico da guerra, da morte dos jovens no conflito bélico e da morte dos mais velhos no fragmento 10W de Tirteu de Esparta, versos 21-30: Pois isto certamente é vergonhoso: um homem mais velho, depois de cair entre os da vanguarda, ficar estendido diante dos jovens, tendo cabeça branca e barba grisalha, exalando o bravo ânimo na poeira, segurando nas caras mãos as vergonhas ensanguentadas – para os olhos, essas coisas são vergonhosas e é injusto ver – e a pele desnuda: para os jovens, todas as coisas são convenientes, durante certo tempo, a formosa flor da desejada juventude conserva-se, para os homens é admirável ver, para as mulheres é desejável quando está vivo, e é belo depois de cair entre os da vanguarda.

O fragmento supracitado de Tirteu também trata do éthos da guerra. O conceito da beleza na morte do jovem ocorrida na guerra se mantém. A rejeição do valor da morte do homem mais velho no combate também perdura. Porém, a relação intertextual apresenta inovações. A violência da morte é dignificada, mas tal não se dá mais no âmbito do combate individual característico de Homero – tal se dá no âmbito do combate hoplítico, lado a lado. Há uma linha de combate de frente, a “vanguarda”.11 Há, para além do âmbito do modelo de guerra, índices representacionais da juventude nos poemas do período arcaico. A ideia da brevidade do vigor da juventude é referida e desenvolvida no fragmento 13W do poeta Mimnermo de Colófon (ou Esmirna), que lança mão da metáfora relacionada ao “fruto da juventude”.12 O conjunto de valores relacionado à juventude, ilustrado no poema de Mimnermo, quando reassumidos em poemas que mencionam à guerra, faz parte de um jogo discursivo que relaciona adjetivos como ‘desejável’ e ‘admirável’ com o que é aceitável no combate. O contrário, o tratamento da velhice, é indicado no fragmento 1W de Mimnermo a respeito da velhice: O termo grego traduzido por “vanguarda”, promáchomai, significa “combater nas primeiras filas”. 12 [(…) por um breve espaço de tempo, nós gozamos os vigores da juventude / pois não conhecemos nem mal, nem bem da parte dos deuses; / Queres negras aproximam-se / uma portadora do fado da penosa velhice / a outra, da morte. Por pouco tempo viceja o fruto da juventude / assim como o sol sobre a terra difunde-se.]. 11

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[…] quando chega a velhice penosa, que faz o homem simultaneamente mal e feio… (o velho) para as crianças é odioso, para as mulheres é sem valor: deste modo um Deus estabelece uma penosa velhice.

As percepções representativas da juventude, da velhice e da guerra são, para além de opiniões de autores sobre o valor da guerra, da juventude ou da velhice, substratos indicionais de tais categorias, que perpassam os textos e os conectam em relações intratextuais. É claro que, na concepção dos biógrafos, críticos literários e classicistas devotados à literatura e aos temas de cada autor, é fundamental descrever, elucidar e relacionar temas com vistas a entender melhor uma obra. E no caso da investigação histórica, é fundamental pensar no sentido dos textos como o resultado de uma negociação que acontece entre a invenção literária e os discursos ou práticas do mundo social,13 negociação que conduz à identificação entre o literário e o cultural em um determinado período. A busca pelas matrizes envolve, necessariamente, a seleção crítica de vozes em meio a múltipla dicção literária. E dessas vozes, o substrato traditivo revela-se nas personagens desse jogo simbólico, os jovens guerreiros e os velhos, e outros in absentia: crianças, efebos, moças, velhas. Logo, pensar em textos que tratem da guerra, como Homero e Tirteu, perceber a vinculação da guerra com a juventude e velhice e observar em tais autores e em outros o tratamento que tais dão à velhice e juventude permite se inserir numa discussão que ganha em amplitude pela assimilação dos seus índices representacionais. A narrativa euripidiana também trata da guerra, da questão da juventude e da velhice. Mas, em diálogo com a tradição que o antecede, ela o faz pelo percurso in absentia. Na peça aqui discutida, Hécuba, as personagens são um exemplo disso. A peça começa com um monólogo enunciado por Polidoro, um não adulto assassinado por Polimestor, hospedeiro que havia sido hóspede do pai de Polidoro, Príamo, e que o fizera por causa do ouro que o menino tinha em sua posse. A Ver: CHARTIER, Roger. Culture écrite et societé. L’ordre des livres (XIVe-XVIIIe siècles), Paris, Albin Michel, 1996. Ver também: FOUCAULT, Michel. “Qu’estce qu’un auteur?”, Bulletin de la Societé Française de Philosophie, t. LXIV, juilletseptembre, 1969, p. 73-104 (reimpresso em Dits et écrits 1954-1988, Edition établie sous la direction de DEFERT, Daniel et EWALD, François avec la collaboration de LAGRANGE, Jacques. Paris, Gallimard, 1994, Tome I, 19541969, p. 789-821); FOUCAULT, M. L’ordre du discours, Paris, Gallimard, 1970. 13

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protagonista, Hécuba, fala em seguida: ela, uma velha, suporta o jugo da idade, da escravidão, da desconfiança dos males ainda maiores que sobrevirão – o conhecimento da morte do seu único filho vivo, Polidoro, e a morte da sua filha Políxena pela mão dos seus senhores. O jogo narrativo coloca em cena as antigas questões relacionadas à juventude, à morte e à velhice e relaciona-as com a guerra in absentia: a narrativa retrata os sofrimentos do pós-guerra enraizados no acampamento dos derrotados que sobreviveram e foram escravizados. Hécuba de Eurípides, as tragédias euripidianas e a guerra: considerações preliminares O documento a ser tratado aqui é o prólogo da tragédia Hécuba, de Eurípides (versos 1 a 97). Parte-se aqui da premissa de que o contexto que emerge da tragédia Hécuba, de Eurípides, está intimamente relacionado ao imaginário grego consoante à guerra no período dos conflitos entre Atenas e Esparta. A peça Hécuba é encenada no período da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) e proporciona um significativo material através do qual é possível observar a guerra e as suas implicações como temas fundamentais. Tal se dá pela existência de códigos culturais comuns, imbuídos de relevância cívica e religiosa, existentes entre poeta, encenador, coreutas, juízes, espectadores; entre os cidadãos atenienses e os estrangeiros que compareciam ao teatro no período das festividades.14 Mais especificamente, é estreita a relação entre as questões relacionadas à guerra e à maior parte das dezoito peças disponíveis do drama euripidiano. Sete peças de Eurípides podem ser consideradas como pertencentes a esse período, podendo também ser datadas com maior exatidão: Medeia (431 a.C.); Hipólito (428 a.C.); As representações teatrais eram encenadas nas festas a Dioniso, sendo parte dos muitos festejos cívico-religiosos que mobilizavam Atenas. As festas eram cinco: as Oscofórias, que ocorriam na segunda quinzena de outubro; as Dionisíacas rurais, que eram realizadas entre os meses de dezembro e janeiro; as Leneias, que eram realizadas entre os meses de janeiro e fevereiro; as Antestérias, que eram realizadas entre os meses de fevereiro e março; e as Dionisíacas urbanas, que eram realizadas entre os meses de março e abril. E a importância da tragédia nessas festas, que ocupavam a cidade durante a metade do ano, estava em constituir-se um espaço de interação social, de debate e de entretenimento. Ver: SOMMERSTEIN, Greek Drama and Dramatists. New York: Routledge, 2002. p. 6-7. 14

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Troianas (415 a.C.); Helena (412 a.C.); Orestes (408 a.C.); Bacantes (405 a.C.); e Ifigênia em Áulis (405 a.C.).15Troianas é, dessas peças, a que trata diretamente do contexto da guerra para vencedores e vencidos, e retrata os sofrimentos das mulheres dos troianos derrotados e mortos. Hécuba, ao contrário das peças supracitadas,é um drama cuja datação é estabelecida de forma indireta.16 Tal se dá pela menção à peça em uma comédia datada de Aristófanes.17 Sendo assim, Hécuba, cuja data aproximada é 424 a.C., aborda um tema semelhante ao da peça Troianas: as angústias de Hécuba, rainha tornada escrava por causa da derrota dos troianos na guerra. E, de alguma forma, tem relações temáticas com outras peças do autor, como Suplicantes (424 a 420 a.C.), que tem por tema a guerra entre Atenas, governada pelo rei mítico Teseu, e Tebas. O período da encenação da tragédia Hécuba corresponde ao primeiro período da Guerra do Peloponeso, que teve início em 431 a.C. e terminou com a chamada Paz de Nícias, em 421 a.C. No segundo período da guerra, iniciado na expedição à Sicília em 415 a.C., Eurípides apresentou ao público a peça Troianas. Nessas duas peças relacionadas à temática da guerra de Troia, é marcante a utilização de personagens femininas acometidas por desastres pessoais em decorrência do estenderse de conflitos que já não se sabe mais por que começaram. Nisso se dá a grande distinção de Eurípides em relação aos tragediógrafos que o precederam: ele parece ter escolhido histórias menos conhecidas, mitos considerados menores, provenientes de regiões remotas. Ao A datação adotada é proposta por: MCLEISH, Kenneth. A Guide to Greek Theatre and Drama. London: ������������������������������������������������������� Methuen, 2003, p. 106. O autor parte de evidências internas e externas. 16 As evidências para a datação de uma peça proveniente da Antiguidade são internas e externas. As internas se dão pela análise de dados que estão no próprio texto. As externas, pela investigação de referências, alusões e citações aos autores e obras em outras obras e autores. No caso de Eurípides, a evidência interna é a utilização de uma medida métrica do seu verso, o trímetro iâmbico: essa medida vai caindo em desuso progressivamente, o que coaduna perfeitamente com a observação da ocorrência desse metro nas peças datadas. As evidências externas são os scholia e as referências à premiação de Eurípides nos concursos trágicos, bem como a obra SUDA, um léxico enciclopédico bizantino do século X d.C. escrito em grego. 17 A grande ocorrência do trímetro iâmbico permite datar a peça entre as tragédias da primeira fase de Eurípides, entre 430 e 420 a.C. 15

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que parece, Eurípides selecionou partes menos destacadas de mitos mais conhecidos para ter uma oportunidade de mostrar personagens fortes em suas mulheres. As evidências apontam para um propósito motivador de Eurípides: a discussão dos dilemas políticos, morais e éticos das cidades gregas [póleis], principalmente os de Atenas. Porém, suas peças não tratam apenas das histórias que serviram de base para o enredo. Elas, na verdade, usam o mito para discutir acerca do caráter humano das divindades,18 do heroísmo,19 do amor humano20 e, no caso desta análise, da guerra.21 O que se apresenta em Hécuba, em suma, é uma peça sobre o tema da guerra e de seus desdobramentos, com menções de conflitos relacionados aos problemas da pólis. Tais conflitos sofreram oposição no drama euripidiano mediante o recurso à encenação da situação das mulheres escravizadas devido aos males decorrentes dos conflitos, os quais perduram após o seu término, tanto para vencidos, quanto para vencedores. O patético entranha-se com as questões políticas, formando um conjunto que exprime o objetivo do poeta: revelar que a desmedida é despertada devido à ausência de reflexão quanto às consequências dos atos cometidos em uma situação de conflito entre gregos.22 Além dos aspectos relacionados ao contexto mais próximo, urge destacar também que é evidente que os códigos culturais estão presentes nas caracterizações, no vestuário, no gestual, na composição das máscaras, na língua e na linguagem adotada na tragédia grega – mas também é preciso ressaltar que tais códigos também permeiam os temas, os motivos, os discursos, os agônes e outros elementos que configuram o drama trágico. Porém, por outro lado, as tragédias são produções artísticas cujas particularidades refletem uma dinâmica interna e outros condicionamentos relacionados ao autor e aos próprios modos, formas e critérios temáticos do gênero, ao mesmo tempo em que tais dramas contêm particularidades que as caracterizam como obras de autores distintos, cuja criação é diversificada. Bacantes, Héracles, Íon e Medeia. Helena, Os Filhos de Héracles, Medeia e Suplicantes. 20 Alceste, Electra, Helena, Os Filhos de Héracles, Hipólito e As Fenícias. 21 Hécuba, Fenícias, Suplicantes eTroianas. 22 Em Andrômaca, por exemplo, cita-se a dor causada pela guerra até para os vencedores (v. 650 ss). 18 19

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Os critérios temáticos empregados na feitura e na performance das tragédias não são aleatórios, tornando mais difícil ainda a tarefa de articular as referências ao contexto no texto trágico, permitindo a apropriação do drama pelo pesquisador para que tal sirva de documentação textual que informa indiretamente a respeito da Atenas Clássica. O mesmo se diz a respeito do caráter artístico do drama grego, o qual se torna preponderante quando o texto trágico é observado a partir de sua natureza composicional e são inferidos neste os aspectos de sua performance – ou seja, quando são aferidos os aspectos relacionados à possibilidade de se destacar de forma suficientemente criteriosa materiais de filiações diversas, os quais estão imbricados no texto trágico. É tal o problema que é o ponto de investigação que motiva o trabalho a ser apresentado em seguida: indicar, por meio de um breve passo de um texto dramático, os aspectos próprios da cultura e da sociedade ateniense. A documentação textual: tradução e comentário ao prólogo da tragédia Hécuba, de Eurípides A tradução do prólogo que segue foi realizada a partir de uma edição do texto em grego, com o apoio de uma edição crítica. Foi utilizado como base para a tradução o texto grego estabelecido por Justina Gregory (1999). Para o acesso às variantes textuais e a eventual escolha de uma delas, opta-se no presente trabalho pela edição crítica de T. E. Page, D. E. Capps e W. H. D. Rouse (1929).23 Nota-se, porém, que o que segue abaixo é a tradução em língua portuguesa do texto. Para a tradução, foram utilizados ainda os dicionários de Bailly (1963) e Liddell-Scott (1940), bem como as gramáticas de Horta (Tomo 1: 1983; Tomo 2: 1979) e Goodwin (1894). Fantasma de Polidoro Chego, depois de deixar a região subterrânea dos mortos e as portas da 1 escuridão, onde Hades habita em separado dos deuses, Polidoro, filho gerado de Hécuba de Kisseus e de Príamo, pai que a mim, quando a cidade dos frígios Os nomes em colchetes presentes na tradução, por exemplo, são reconstituídos pelo editor e aqui traduzidos, mas são mantidos entre colchetes. 23

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5 corria risco de cair pela lança helena, tendo temido, enviou-me sob sigilo da terra troiana para a casa de Polimestor, hóspede trácio, que esta excelente planície queronesa semeia, governando o povo amigo de cavalos através da lança. 10 O pai envia secretamente muito ouro comigo para que, se um dia cair o muro de Troia, não possa haver carência de recurso para os filhos vivos. [Eu] era o mais jovem dentre os priamidas, pelo que da terra me retirou secretamente: pois nem carregar armas 15 nem lança era possível [carregar] por causa do jovem braço. Então, enquanto os muros da terra permaneciam firmes e as defesas da terra de Troia estavam intactas e Heitor, o meu irmão, prosperava por meio da lança favoravelmente junto ao homem trácio, hóspede fraterno, 20 eu, desgraçado, me desenvolvia como um ramo causa dos alimentos; mas quando Troia e a vida de Heitor pereceram, e o lar paterno foi minado, e ele caiu junto a um altar consagrado após ter sido morto pelo homicida filho de Aquiles, 25 assassina a mim, desgraçado, por causa do ouro, o hóspede paterno e depois de matar, para a onda do mar lançou-me, a fim de que pudesse possuir ouro nas moradas. Jazo sobre as margens, outra vez no agito do mar, sendo levado para lá e para cá pelas muitas idas e vindas das ondas, 30 sem choro fúnebre, insepulto: agora, sobre a mãe querida Hécuba movo-me, após ter deixado meu corpo, há dois dias mantenho-me suspenso, tantos quanto, nesta tão grande terra queronesa, minha mãe miserável chega de Tróia. 35 Todos os calmos aqueus com naus estavam sentados na fronteira da pátria trácia: pois o filho de Peleu, Aquiles, aparecendo sobre a tumba, reteve todo o exército grego que dirigia para a casa o navio marítimo; 40 [ele] pede a minha irmã Políxena que para o túmulo leve consigo um sacrifício amigável e um presente E será feito isto, pois não [será] uma que recusa presentes por parte de homens benquistos: a que marca pelo destino vai matar a minha irmã nesse dia. Teatro Grego e Romano

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45 A mãe contemplará dois cadáveres de dois filhos, do meu e da miserável jovem. Pois aparecerei, para que obtenha resoluto a sepultura, diante dos pés da escrava no movimento das ondas. Portanto, eu pedi aos que são poderosos nos infernos 50 para receber um túmulo e às mãos da mãe cair. Portanto, tudo quanto eu desejava alcançar, ser-me-á: darei lugar à anciã Hécuba saindo do seu caminho: pois esta atravessa a pé para debaixo da cabana de Agamêmnon, porque teme o meu fantasma. Ai! 55 Ó, mãe, proveniente de casas tirânicas o dia vê da servidão, como sofres tão grande mal conforme a fortuna anterior: condenando-te algum dentre os deuses destrói a pregressa felicidade. HÉCUBA Levai, ó filhas, esta anciã para frente da cabana; 60 levai, aprumando a serva semelhante a vós, troianas, para vós, a que antes era rainha; [tomai-me, conduzi-me, enviai-me, erguei-me] segurando os braços envelhecidos: 65 e eu, com um bastão curvo na mão, com apressados os pés lentos depois de avançar em marcha convosco. Ó raio de Zeus, ó noite escura, por que estou presa 70 a objetos de horror noturno? Ó terra bendita, mãe de sonhos de asas negras, afasto a visão noturna a respeito de meu filho, que sobrevive na Trácia, bem como sobre a querida filha Políxena, pois sei que, por meio de sonhos, contemplei uma visão terrível que instrui. Ó deuses ctônicos, salvai meu filho, 80 o qual é única âncora da casa, que dos meus flui na Trácia coberta de neve com o anfitrião, hóspede do pai. Ocorrerá algo novo: chegará um canto de gemidos aos que gemem. 85 Jamais minha mente obstinada se agita, teme. De onde posso ver a alma divina Brian Gordon Lutalo Kibuuka

de Helena e Cassandra, Troianas, para que interpretem meus sonhos? 90 Pois eu vi uma cerva veloz degolada pela súcia sangrenta de um lobo, após havê-la arrancado de meus cuidados pela força. E meu temor é: veio ao alto cume da tumba o fantasma de Aquiles: exigiu uma oferta 95 das sofridas troianas. De minha filha, da minha [isto] apartem, deuses, eu suplico. Comentários formais e literários sobre o prólogo de Hécuba O prólogo da tragédia Hécuba é composto de dois monólogos: um enunciado pela personagem Polidoro, que surge como fantasma sobre o cenário [skenê]; e Hécuba, sua mãe. A leitura preliminar do prólogo da peça Hécuba revela três peculiaridades no texto: a existência de dois monólogos com estruturas diferentes; a fala por uma personagem morta, Polidoro, no primeiro monólogo; e a descrição dos elementos pertencentes a outras partes do enredo nos primeiros 95 versos da peça. Para dar conta de tais peculiaridades, foram definidos quatro pressupostos advindos da análise literária do texto, que permitem o aprofundamento nas questões relacionadas à sua composição. Em primeiro lugar, a análise da estrutura do prólogo revela-o bipartido e isso não é acidental na obra de Eurípides segundo Grube (1941, p. 68-69) e Santos (2008, p. 92). Santos afirma que a função geral do prólogo é dar informações básicas que permitam a compreensão da ação dramática.24 No caso, tais informações são dadas por mensageiros ou seres divinos. No lugar de um ser divino, dá-se a voz a um fantasma, um espectro de uma vítima de homicídio à traição. A posição que o fantasma ocupa é a mesma das divindades dos outros prólogos trágicos: no telhado da cabana que serve de cenário [skenê]. A aparição do fantasma nesse lugar é um recurso que visa fortalecer o estranhamento mediante o recurso ao fantástico. Por outro lado, as invocações aos deuses feitas por Hécuba na segunda cena do prólogo, dessa mãe ainda ignorante do fato de que seus dois filhos morrerão, são invocações feitas a deuses não-olímpicos e que têm por motivação SANTOS, Fernando Brandão dos. Alceste, de Eurípides: o prólogo (1-76). Humanitas, v. LX, 2008, p. 92. 24

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sonhos premonitórios. A segunda cena também se mostra eivada de recursos ao fantástico. Em segundo lugar, em relação à análise dos recursos trágicos peculiares de Eurípides, Easterling afirma que é próprio ao drama euripidiano o experimentalismo e a inovação. No caso do prólogo de Hécuba, o experimentalismo é mais uma vez utilizado para dar destaque ao que dizem as personagens.25 A terceira premissa literária é a de que os principais conflitos trágicos presentes na peça Hécuba são antecipados narrativamente no prólogo, o que mostra a inversão do mito concomitante à exposição da temática cruenta e violenta - e tal se dá pela boca de um não-adulto (Polidoro) e de uma mulher. Segundo Bowra (1958, p. 88): Los asuntos de la tragedia griega tenían que buscarse entre las historias de la Edad Heroica, y esta limitación sin duda entorpecía la índole moderna y “progresista” de Eurípides. Pero aceptó tal limitación y trató con nuevo espíritu las viejas historias, procurando en ellas lo que había de verdad permanente. El resultado fue una serie de dramas sobre las mujeres famosas de la antigüedad. En Medea (431 a. C.), Hipólito (428 a. C.) , Hécuba (ca. 424 a. c.) y Andrómaca (ca. 422 a. C.), Eurípides traza un conjunto de estudios trágicos sobre la feminidad que admiraban y sorprendían a sus auditorios. Dejando de lado las conveniencias y pasando sobre las opiniones recibidas respecto a la mujer, creó algo enteramente nuevo en estos cuadros de almas violentas, cuadros íntimos, exactos, descarnados y a la vez plenamente simpáticos.

Seaford afirma que o motivo geral, comum entre Hécuba, Helena e Filoctetes (esta última tragédia foi escrita por Sófocles), é a ruptura da hospitalidade [xenía] devida entre o estrangeiro e o que o hospeda/hospedou, entre o suplicante e o que ouve a súplica.26 EASTERLING, E. A. Form and Performance. In: EASTERLING, E. A. The Cambridge Companion to Greek Tragedy. Cambridge: Cambridge University Press, 1997 (2005). p. 151-177. 26 Segundo Seaford, “a violação da relação de xênia é central em três peças. No Filoctetes de Sófocles, Neoptólemo abandona Filoctetes, seu xenós e suplicante. Na Hécuba de Eurípides, Polimestor mata seu xenós Polidoro, e é morto (sic), em seu turno, por Hécuba. Na Helena de Eurípides, Teoclímeno faz ameaças de ferir Helena, a xenê hereditária que foi confiada ao seu pai 25

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Por fim, a partir da aplicação das teorias de análise da narrativa de Tzvetan Todorov (1971, p. 212-218; 233-235), é possível perceber que os marcadores temporais, verbos, encadeamentos narrativos e subestruturas são articuladores construídos com o propósito de fomentar uma recepção própria no ouvinte/espectador/leitor. Por sua vez, o cenário dramático-literário – a saber, a cenografia, a topografia e a cronografia do enunciador e contra-enunciador – aponta para a definição de um jogo proposto pela narrativa e que dirige o olhar do leitor para as concepções preestabelecidas no texto (MAINGUENEAU, 2001, p. 121-135). Analisando a primeira cena mais de perto: narrativa e pragmática da enunciação Todorov, em sua proposta de análise da narrativa, afirma que é necessário observar as estruturas mediante o destaque das repetições (TODOROV, 1973, p. 213),27 do encadeamento de micronarrativas (idem, ibidem, p. 216),28 da dependência entre as partes narrativas (ou homologias),29 do encadeamento ou justaposição de histórias (idem, ibidem, p. 234),30 da alternância ou do contar de duas histórias simultaneamente, e do encaixamento ou inclusão de uma história na outra.31 Já Maingueneau, no campo pragmático, chama a atenção para o por Zeus”. SEAFORD, Problematic Reciprocity in Greek Tragedy. In: GILL, Christopher; POSTLETHWAITE, Norman; SEAFORD, Richard. Reciprocity in Ancient Greece. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 53. 27 Segundo Todorov, “em toda obra, existe uma tendência à repetição, que concerne à ação, aos personagens ou mesmo a detalhes da descrição”. Ele destaca formas de repetição, como a antítese, a gradação e o paralelismo, sendo este último de dois tipos: o paralelismo que trata das grandes unidades da narrativa e o paralelismo das fórmulas verbais. 28 O encadeamento ou encaixamento das micronarrativas são “diferentes combinações de uma dezena de micronarrativas de estrutura estável, que corresponderiam a um pequeno número de situações.” Segundo Todorov, é possível alinhar tais micronarrativas em díades e tríades. 29 Homologia é a “projeção sintagmática de uma rede de relações paradigmáticas” (TODOROV, 1976 , p. 218) – uma relação proporcional entre termos de uma narrativa. 30 Encadeamento de histórias é o “justapor de diferentes histórias: uma vez acabada a primeira, começa-se a segunda”. 31 Alternância de histórias é, segundo Todorov, o contar de duas histórias simultaneamente, interrompendo ora uma ora outra. Teatro Grego e Romano

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cenário literário em que a topografia, a cronografia e a cenografia instituem a situação que torna o texto pertinente para o receptor de sua enunciação.32 Os parâmetros sugeridos por Todorov e por Maingueneau permitem, como já se afirmou acima, a abertura das narrativas para a identificação do que nela não é estrutural, mas contextual e narrativo – e, por ex-tensão, histórico. A personagem em destaque na primeira cena da peça é Polidoro, fantasma, filho dos soberanos de Troia, Hécuba e Príamo. Em sua fala, a personagem informa que veio do Hades, bem como revela o seu nome e a sua ascendência (versos 1 a 4). A utilização do verbo hékō [chegar, estar] logo no primeiro verso da peça é um procedimento usual no início das tragédias gregas. A sua função é a de introduzir a personagem em cena: usado em primeira pessoa, serve ao propósito de apresentar à audiência o responsável pela elocução. A partir do uso do pronome relativo (hós), cujo antecedente é Príamo, tem-se início a narrativa a respeito das várias ações do rei troiano que explicam a morte de Polidoro. Príamo enviara o filho com ouro para junto de Polimestor, rei da Trácia e antigo hóspede paterno, porque era muito jovem para combater em Troia (versos 4 a 15). Uma sequência de orações temporais coordenadas entre si, introduzidas pela conjunção héōs, relaciona o sucesso dos troianos na batalha com o bom tratamento dado a Polidoro por Polimestor. Uma nova sequência de orações temporais introduzidas pela conjunção e0pei/relaciona a derrota dos troianos com o assassinato de Polidoro por Polimestor. A antítese também é marcada pela presença das partículas μέν…δέ/. (versos 16 a 27). Uma nova ocorrência de um verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (verso 28), “jazo” [keîmai], introduz uma ação dramática que será desenvolvida no decorrer da peça: Polidoro encontra-se insepulto, ao sabor das vagas às margens do mar trácio, fato que sua mãe desconhece. Então, após Polidoro explicar as razões de sua morte e o estado do seu corpo, passa a falar dos antecedentes “Chamaremos de cenografia essa situação de enunciação da obra, tomando o cuidado de relacionar o elemento – grafia não a uma oposição empírica entre suporte oral e suporte gráfico, mas a um processo fundador, à inscrição legitimante de um texto estabilizado. Ela define as condições do enunciador e de co-enunciador, mas também o espaço (topografia) e o tempo (cronografia) a partir dos quais se desenvolve a enunciação”. MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária, p. 123 (grifos do autor). 32

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que culminarão na morte de sua irmã Políxena (versos 35 a 44). A causa da morte de Políxena é a exigência feita pelo fantasma de Aquiles de uma honraria, de um presente ofertado em honra [géras]: o sacrifício de Políxena. O uso de verbos no presente indica a simultaneidade entre a fala de Polidoro e a exigência de Aquiles. A inserção do verbo no futuro “será feito” é um indício de que o pedido de Aquiles será realizado (verso 42). A síntese dos sofrimentos que acometerão a protagonista Hécuba é marcada pelo uso do dual no verso 46, arcaísmo estilístico que reforça a referência a Polidoro e Políxena. Por ter gerado dois filhos, Hécuba contemplará dois cadáveres. Esse verso constitui a síntese dos prenúncios da primeira cena: a morte de Políxena (versos 35 a 44) e a descoberta do corpo de Polidoro (verso 46). Neste último caso, o verbo está em primeira pessoa do futuro seguido de uma conjunção conclusiva: “pois aparecerei” (verso 47), um paralelo perfeito com o prenúncio do sacrifício de Políxena (“será feito”, verso 42). O fim da fala de Polidoro é um duplo lamento sobre a condição da mãe, caracterizado pelo paralelismo antitético rainha/escrava. Tais lamentos são intercalados com a reafirmação da razão da aparição do fantasma (“receber um túmulo” – verso 50) e da fuga de Hécuba diante da visão do espectro (verso 54). Polidoro, ao mesmo tempo espectro e cadáver insepulto, nada tem da ‘bela morte’ entoada pelos poetas líricos. A beleza da morte no combate se desvanece quando a morte é por traição, por ruptura da hospitalidade. Está lançado diante dos olhos dos espectadores valores que eles mesmos entendem e provavelmente aceitam: a guerra, terminada, não termina se a injustiça e o ultraje perduram. Primeira Cena: o ‘fantástico’ anúncio da traição por cobiça que segue à guerra O recurso comum utilizado pelo tragediógrafos em seus prólogos é retomado por Eurípides em Hécuba: as personagens que enunciam o prólogo localizam o enredo no espaço e no tempo. Porém, para além da mera informação quanto aos elementos do enredo, que é a função básica do prólogo das tragédias gregas no período clássico, a estratégia de se recorrer à aparição de um fantasma no início da peça, e não a um deus ou a uma personagem convencional, eleva esse primeiro monólogo ou cena à dimensão do fantástico, resultado do paradoxo entre o estranho, referenciado em parâmetros naturais Teatro Grego e Romano

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e conformado em um tempo e espaço específicos e possíveis, postos em cena pela caracterização do cenário [skenê], pelas vestimentas, pela linguagem, pelas relações intertextuais e pelas referências tópicotemporais presentes no discurso. O maravilhoso, pertencente a um mundo impossível, é balizado nesse tempo e espaço – e, no caso da peça em questão, as balizas estão lançadas no recurso à aparição, no tempo dramático-narrativo, de um morto que, proveniente do invisível mundo dos mortos (“a região subterrânea dos mortos e as portas da escuridão”, verso 1), se dirige aos espectadores e narra sua história, descreve a terra em que está, narra a história de sua mãe e irmã e ainda prenuncia eventos que ainda ocorrerão na peça. A aparição de Polidoro é fundamental à narrativa e às concepções de sofrimento e guerra na peça. Polidoro é humano: fala, se move, vê e informa. Mas, ao mesmo tempo, é inumano: ele é proveniente do mundo dos mortos e gera medo até mesmo em sua mãe; e aparece em cena no telhado do cenário ao mesmo tempo em que contempla seu próprio cadáver insepulto lançado de um lado a outro às margens do mar. É por conta da aparição dessa personagem que se estabelece desde o prólogo de Hécuba um equilíbrio instável, que concede à narrativa – e também à performance – características que amplificam de tal forma as informações. Tais são patéticas, imbuídas de densidade advinda da imbricação dos elementos elencados na constituição da personagem e de sua articulação com o espaço-tempo narrados. O sofrimento que é narrado está encarnado (ou descarnado) em Polidoro, que pelo seu aspecto (a caracterização do ator) manifesta o que sofreu. Funde-se na personagem as imagens de vítima tardia da guerra e da cobiça que essa provoca nos que se beneficiam das situações geradas por ela; e de suplicante, que recorre à justiça esperando por restituição. A personagem Polidoro é síntese, junção de dois mundos, o real e o imaginário, mundos que se ramificam em sua fala e perpassam a narrativa em referentes textuais e cênicos que concedem força inicial ao drama. E só há força nos dois mundos porque tais fazem parte do campo de representações – um mundo que existe na cultura que une espectadores, atores e tragediógrafo, em que se pode cogitar a irrupção do mundo dos mortos no mundo dos vivos. Logo, o fantástico se dá no prólogo de Hécuba segundo matrizes que são culturais, jungindo as premissas do contexto com os recursos necessários à narrativa. Contudo, tal junção não prescinde dos códigos que permitem a sua encenação e compreensão pela plateia. Os sofrimentos dos infantes, 64

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a traição e a morte são ocorrências possíveis porque o seu pano de fundo é a guerra, que não termina nunca para os que a perdem. Tanto o tragediógrafo quanto a sua audiência sabe disso. A tragédia era um drama feito em e para um mundo em que conjunto de valores e crenças permitia a simultânea identificação entre a personagem e o espectador (ou, em outro momento, o leitor), bem como a distinção entre ambos – um mundo que não julga impossível a existência de uma interioridade que perdure em uma dimensão extracorpórea. Um mundo aberto à possibilidade de se imaginar, ao menos, a existência da vida após a morte, que ao menos cogite a possibilidade de se imaginar o retorno de um morto ao mundo dos vivos. É a esse conjunto de crenças e valores que Eurípides recorre na primeira cena do prólogo de Hécuba. Mas nesse mesmo mundo, a guerra é um tema presente desde os primórdios da formação da tradição cultural. Sendo assim, Eurípides une os dados imediatos e as suas impressões aos dados e temas traditivos mais remotos, fazendo-o por meio da voz de um morto. É a partir da vítima que se funda esse mundo ficcional que tem muito de realidade; esse mundo mítico que está enraizado no presente vivido dos espectadores; esse mundo representacional que não prescinde da própria coisa representada para ser entendido. O prólogo também desperta interesse pela via da negação, daquilo que deveria ser, mas não é. Lê-lo revela que há uma expectativa de que o fim da guerra resulte também no fim das hostilidades. Espera-se que um protetor legal conserve a vida do seu protegido – e caso não o faça, espera-se que tal se dê no âmbito do terror e do conflito entre iguais, homens adultos, no momento em que as rivalidades e os desacordos levam às rupturas. Mas o tempo da narração de Hécuba, de Eurípides, é tempo de paz. E é na paz que Polidoro, por razão fútil, lamenta e denuncia: “assassina a mim, desgraçado, por causa do ouro” (v. 25). Partindo da ideia de que “somente podemos chegar a definir aquilo que é fantástico na medida em que conhecemos a norma extratextual definida pela tradição cultural” (SCHWARTZ, 1981, p. 68), é possível observar e descrever a junção entre o enredo, a necessidade narrativa de articulação das partes de tal enredo, e as necessidades performativas resultantes. E é fundamental a compreensão, como dado articulador da viabilidade do discurso, que apenas são possíveis tais articulações, no caso do prólogo analisado, se o contexto de enunciação da narrativa performática se dê em um ambiente em que tal se torne ‘macro-ato’ de Teatro Grego e Romano

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linguagem, cuja opacidade entre o imaginado e o real, entre a criatividade e a continuidade, e entre o dramático-literário e o narrativo-histórico seja viável. O drama só será possível, bem como o literário, se tal estiver minimamente articulado com seu contexto – pois não há tessitura entre o literário-performático e o leitor-espectador sem que ambos tenham referências minimamente comuns: no caso, a língua, mas também um conjunto de crenças a respeito de possibilidades e impossibilidades, a partir dos quais rupturas e continuidades, em equilíbrio instável, geram efeitos viabilizadores do discurso. A morte por assassinato de uma escrava ou de uma criança em tempos de paz não é aceitável. As rivalidades que perduram após os conflitos, as exigências de ouro, as traições as explicam, mas não as justificam. Eurípides, ao transformar tais mortes em tema, o faz em alguma relação com a situação ateniense na época da encenação: sendo a tragédia encenada por volta de 424 a.C., ela tem em seu pano de fundo contextos semelhantes à chamada ‘revolta de Mitilene’ em que os atenienses, após vencerem os revoltosos mitileneus e realizarem uma assembleia para determinar o seu destino, decretaram por influência de Cléon matar todos os homens da cidade (TUCÍDIDES, 3.8-16, 25-50). A decisão, excessiva e cruel, foi modificada um dia depois de tomada. Observa-se no episódio de Mitilene e em Hécuba que as rivalidades e os interesses perduram após as tensões e conflitos bélicos. Logo, era oportuno que Eurípides encenasse o pós-guerra diante de uma plateia que experimentava no cotidiano o que era estar em conflito. É verdade que os recursos cênicos, dramáticos, narrativos e contextuais aqui observados, bem como a força narrativa, informativa e performativa da fala de Polidoro, devem ser entendidos inicialmente na dinâmica interna da narrativa dramática. Mas, ao mesmo tempo, tais códigos estão inseridos no contexto maior dos espectadores, e tal contexto é de guerra dura, interrompida eventualmente por armistícios de maior ou menor duração. Uma Hécuba deslocada da tradição: um novo olhar sobre a segunda cena Hécuba é descrita na tradição de origem homérica como a rainha de Troia. Ela é descrita na Ilíada como uma mulher nativa da Frígia, região situada na Ásia Ocidental. Juntamente com Andrômaca e Helena, ela é a mais importante mulher troiana citada na obra de Homero. Na Ilíada, ela é caracterizada como filha de Dimas (HOMERO, 66

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Ilíada 16.718; ver também VIRGÍLIO, Eneida 7.320; OVÍDIO, Metamorfoses 13.404-569). Esposa de Príamo, rei de Troia, ela é caracterizada como uma mulher sofredora, cujos sofrimentos se deram em especial por conta da morte de seus filhos homens e morte ou escravização das suas filhas mulheres. Mãe de dezenove filhos segundo a tradição de Homero (HOMERO, IIíada 24. 496), são citados como seus filhos na Ilíada: Heitor, Antífon, Heleno, Hipôno, Deífobo, Páris, Troflus, Polites, Cassandra, Creusa, Laódice e Políxena. Fora do âmbito da literatura homérica, é possível inferir pela literatura posterior dados de mitos não transmitidos nas obras supérstites do período arcaico. Os chamados Kýpria, atribuídos a Estasino, tratam das causas da Guerra de Troia, narrando inclusive o nascimento e o julgamento de Páris. A Etiópida, atribuída a Arctino de Mileto, fazia provavelmente menção a Hécuba por tratar dos principais personagens da Ilíada e ainda introduzir outros, como Pentesileia e Mêmnone. Ilíou Pérsis, obra atribuída a Arctino de Mileto, trata do sacrifício da filha de Hécuba, Políxena, indício de que a representação dos sofrimentos da personagem diante de sua filha morta, retratados, por exemplo, em peças trágicas clássicas, tem origens mais remotas. Por fim, o poema cujo título é Nóstoi [Retornos], cuja autoria é atribuída a Eumelo de Corinto ou Hágias de Trezena, provavelmente fazia menção à Hécuba, já que narra o retorno ao lar de Agamêmnon, cuja concubina é Cassandra, filha da rainha troiana; e de Ulisses, a quem a tradição épica atribui o senhorio em relação à rainha de Troia. Também há um conjunto significativo de narrativas sobre Hécuba na tragédia grega. Oito peças, aproximadamente um quarto do corpus supérstite dos trágicos, são baseadas em mitos conhecidos da Guerra de Troia. A popularidade deste material entre os dramaturgos deriva em parte do estado monumental da Ilíada e da Odisseia, na tradição poética grega e em parte do número e variedade de mitos conhecidos em torno dos conflitos entre os aqueus e os troianos. É no âmbito das peças que são ambientadas em Troia que Hécuba surge, caracterizada como mulher sofredora, cujas súplicas são ineficientes e que experimenta, após a riqueza e a glória características da majestade, sofrimentos inomináveis com a perda de seus filhos e filhas. Porém, é no drama euripidiano que Hécuba se tornará personagem importante e protagonista. Hécuba e Troianas são, das tragédias de Eurípides, aquelas em que a rainha troiana ganha voz e é explorada, sendo a sua caracterização e Teatro Grego e Romano

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história um amálgama entre mitos conhecidos em Homero, na tradição do Ciclo Troiano e inovações euripidianas. Em Troianas, Eurípides dramatiza a situação das vítimas escravizadas por causa da derrota na guerra – usando como base para as narrativas os eventos narrados no Ciclo Troiano, concentrando-se no impacto da guerra sobre os cativos e vencedores. No drama, Hécuba e as mulheres cativas que com ela estavam passam por três estágios previsíveis de sofrimento que levam à raiva, à ira e ao desejo de vingança, etapas que passam e que caracterizam a descrição euripidiana de um desastre cuja amplitude é praticamente insuportável. A tragédia Hécuba está ambientada no momento posterior à destruição de Troia, situação em que Hécuba, a rainha viúva, primeiro perde a filha Políxena, sacrificada em honra do fantasma de Aquiles, e depois descobre o cadáver de seu filho, último sobrevivente, Polidoro. É nesta peça que as inovações euripidianas em relação ao mito original são significativas: a proveniência queronesa de Hécuba, a mudança em relação à paternidade da rainha (Kisseus, não mais Dimas) e a atribuição de filiação de Polidoro provavelmente são invenções euripidianas. Hécuba, no prólogo da tragédia, não dirige seu discurso nem à plateia (como no primeiro monólogo), nem a Polidoro (que já não está em cena), mas às troianas (Trōiádes, vocativo citado no verso 61), que ainda não estão em cena, uma vez que o párodo (entrada do coro em cena) tem início apenas no verso 98. Em seu monólogo, Hécuba retoma a antítese que finaliza a fala de Polidoro, exceto na menção da relação entre Hécuba e as conservas: “outrora vossa rainha / agora, escrava igual a vós” [homódoulos]. A narrativa transita de forma contrastante, partindo da contemplação por parte de um ser sobrenatural para o sofrimento terreno pelo qual passa a protagonista. Ela também revela dois níveis de petição: às conservas e aos deuses. O primeiro nível peticional apresenta abundância de verbos no imperativo em sequência (“tomai-me, conduzi-me, enviai-me, ergueime”) no verso 62, o qual reforça o status de urgência dos rogos da protagonista.No segundo nível, tais rogos são súplicas dirigidas aos deuses utilizando o vocativo: “ó trovão de Zeus, ó Noite escura – verso 68; “ó Terra sagrada” – verso 70; “ó deuses ctônicos” – verso 77. A segunda cena transita em dois níveis: a menção ao sofrimento da velha Hécuba, vítima de guerra, na linha de frente do coro de 68

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Troianas, sendo a mais velha dentre elas. Devota às divindades não convencionais e ela mesma não convencional, Hécuba precisa de auxílio para transitar, para sair da tenda, para lidar com as angústias dos sofrimentos do porvir, presentes no prólogo por causa dos sonhos premonitórios anunciados pela personagem. A antiga temática do velho caído entre jovens no campo de batalha fica para trás: diante dos olhos dos espectadores está a inversão decorrente da guerra. A senhora tirânica vira escrava e, depois de escrava, se torna vítima de violências que não cessam. CONCLUSÃO As duas cenas do prólogo mostram, em nível estrutural, que os temas do sacrifício de Políxena, do encontro do corpo de Polidoro e da condição servil de Hécuba perpassam todo o prólogo, em uma estrutura A-B-C-C’-B’-A’, sendo A o sacrifício de Políxena, B o encontro do corpo de Polidoro e C a condição servil de Hécuba. A, B e C fazem parte da primeira cena. C’, B’ e A’ fazem parte da segunda cena. O sacrifício de Políxena desencadeará o tema da voluntariedade para o sacrifício, assunto recorrente do drama de Eurípides segundo Bowra, Lesky, Easterling e Seaford. A descoberta do corpo de Polidoro e da traição de Polimestor desencadeará a vingança de Hécuba, assunto também frequente em Eurípides segundo os autores supracitados. A oposição entre a Hécuba-rainha e a Hécuba-escrava adiciona ao enredo ‘tragicidade’ tal que, vinculada ao tema das consequências da guerra, permite o tensionar da mola trágica, que perdura por toda a peça até o seu desenlace. Por fim, em relação às coordenadas que servem de referência à enunciação, o esquema binário relaciona Troia e Trácia, pai morto e mãe viva, vitória e derrota, hóspede e inimigo, fantasma e corpo, fuga do filho versus ansiedade pelo aparecimento do filho, naus móveis e navegadores imóveis, morto e vítima prestes a morrer, esperança e desilusão e, principalmente, rainha e escrava. Tal cenografia está vinculada às relações temporais triádicas (passado, presente e futuro), espaciais triádicas (Troia, Trácia e Grécia) e entre cenários enunciativos preexistentes a Eurípides, conhecidos do públi-co (sacrifício voluntário, vingança e sofrimentos da guerra). A peça Hécuba, portanto, trata dos casos de violação: da hospitalidade, do direito à vida, da condição mínima até mesmo para Teatro Grego e Romano

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os escravos. Ao fazê-lo, a tragédia está tratando do mal, daquilo que, nas palavras de Ricoeur (1988, p. 62), “é o que é e não o que deveria ser, contudo nós não poderíamos dizer porque ela é” . Então, o sofrimento de Hécuba, protagonista, o suplício de seus filhos e a sua condição vexatória, destituída de marido, filhos homens e filhas mulheres casadas aguça na plateia o senso de justiça. O fato de a tragédia ter sido encenada em um período de conflito bélico, em que os excessos foram constantemente cometidos contra aquilo que se imaginava razoável, manifesta que: [(…) o senso de injustiça não é nada mais que somente mais pungente, mais perspicaz que o senso da justiça, porque a justiça é mais frequente que a falha e a injustiça que reina, e os homens tem uma visão mais clara que deficiente sobre as relações humanas que da maneira correta de organizar”] (RICOEUR, 1991, p. 177).

O desfecho da tragédia é a opção da protagonista pela vingança contra o assassino de seu filho Polidoro, que é o interlocutor no prólogo. A condição de escrava e a perda de toda e qualquer possibilidade de felicidade culminou na vingança extrema de Hécuba, cuja dimensão é de irracionalidade, um fenômeno humano recorrente, já que, segundo Ricoeur, também é típico do humano e, portanto, das narrativas. E a questão central em Hécuba é a escolha do mal que se faz eventualmente o pior, chocando a plateia deste drama que, na verdade, é uma grande metáfora da violência cometida no contexto dos expectadores na época da Guerra do Peloponeso. Hécuba escolhe, em retribuição à morte da sua filha Políxena e de seu filho Polidoro, supliciados por causa de honrarias vis e por causa do dinheiro, matar os dois filhos de Polimestor diante dele e cegá-lo, fixando para sempre tal ato em sua memória. O autor escreveu um enredo em diálogo com “as formas de ação e de pensamento pelos quais o homem compreende a si mesmo em seu mundo”.33 É necessário entender que mundo é esse, em que se concebe a escalada da violência. Eurípides mostra na narrativa não apenas uma modalidade “destiné à fonder toutes les formes d’action et de pensée par lesquelles l’homme se comprend lui-même dans son monde” RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté 2, Finitude et culpabilité 2, La symbolique du mal, Aubier, 1960, p. 168-169. 33

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de violência, mas demonstra através de uma rica discussão aquela que é justificável e aquela que não é. Opõe-se e reconciliam-se na tragédia Hécuba a violência e a justiça em uma formulação cuja equação final é o reconhecimento – mesmo que o caminho para tal seja a catarse pela violência retributiva. Há no prólogo inversões radicais, que ocorrem diante dos olhos dos espectadores. Inversão do corpo vivo em morto. Inversão do senhorio em escravidão. Em tais inversões, junge-se a ideia da guerra, da violência e do sofrimento. Em cada uma das inversões eclode uma nova perspectiva do texto: a dos espectadores, que são também autores e participantes da guerra e do teatro. E eles mesmos, vítimas e vilões, espectadores e atores sociais, entendem o prólogo de Hécuba porque se entendem, com ou sem máscaras. BIBLIOGRAFIA COMENTADA EURIPIDES. Hecuba. Introduction, text, and commentary: Justina Gregory. Atlanta, Georgia: American Philological Association, 1999. A edição de Justina Gregory apresenta o texto grego de Hécuba. Porém, a introdução e os comentários propostos pela autora permitem o reconhecimento das relações entre a peça de Eurípides e o mito, a guerra, os demais dramas euripidianos e o contexto da audiência. GREGORY, J. Euripides and the Instruction of the Athenians. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1991. A obra Euripides and the Instruction of the Athenians, de Justina Gregory, mostra as funções políticas e didáticas o drama euripidiano a partir da análise de Alceste, Hipólito, Hécuba, Héracles e Troianas.É uma obra que proporciona ao leitor uma leitura dos dramas de Eurípides, relacionandoos com o complexo e tumultuado período de sua encenação. SEGAL, C. O ouvinte e o espectador. In: VERNANT, J-P. (org.). O Homem Grego. Lisboa: Presença, 1994. O texto de Charles Segal trata das diferenças de recepção de quem ouve, assiste ou lê uma peça, destacando o que é percebido e imaginado pelo ouvinte/espectador/leitor. Tal diferença insere o leitor na discussão a respeito de uma estética da recepção pela audiência de um drama, abrindo o espaço para a ampliação da discussão sobre a existência de Teatro Grego e Romano

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representações simbólicas de dados do contexto nos textos. SOMMERSTEIN, A. H. Greek Drama and Dramatists. New York: Routledge, 2002. A obra Greek Drama and Dramatists é um estudo conciso de Alan H. Sommerstein que permite ao leitor conhecer uma breve história dos gêneros dramáticos, os principais autores e uma síntese das peças conhecidas de cada autor. Sommerstein também apresenta os chamados poetas menores, tanto os trágicos quanto os cômicos, e inclui na obra uma cronologia do drama grego e antologia de textos trágicos e cômicos. REFERÊNCIAS BAILLY, A. Dictionnaire Grec Français. Éd. revue par L. Séchan et P. Chantraine. 26 éd., Paris: Hachette, 1963. BOWRA, C. M. La literatura griega. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1933 (1958). CSAPO, E. Performance and Reception. Illinois Classical Studies, 24-25, 1999-2000. CSAPO, Eric; SLATER, William J. The Context of Ancient Drama. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1995. DIGGLE, J. Euripidis Fabulae. vols. I, II e III, Oxford: Oxford University Press, 1981-1984. (Oxford Classical Texts) DOVER, K. J., The poetry of Archilochos, Entretien Hardt, Tome X, 1964. DUCREY, P. Le traitement des prisonniers de guerre dans la Grèce antique. Paris,1968. EASTERLING, P. (ed.), The Cambridge Companion to Greek Tragedy. Cambridge, 1997. EURIPIDES. Hecuba. Introduction, text, and commentary: Justina Gregory. Atlanta, Georgia: American Philological Association, 1999. FINLEY, M. I. The Ancient Economy. Berkeley: University of California Press, 1999. ______. Aspectos da antiguidade. Lisboa: Edições 70, 1990a. ______. Grécia Primitiva: Idade do Bronze e Idade Arcaica. São Paulo: Martins Fontes, 1990b. 72

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O Teatro de Ésquilo

e os valores que vêm do campo

Ana Livia Bomfim Vieira Nos dias de hoje, as artes de um modo geral, e o teatro em particular, ganharam um lugar no mundo do entretenimento. Podemos ir ao teatro assistir a uma peça apenas para nos divertirmos. Não que o teatro, entre nós, não possa ter um caráter político, por exemplo, mas somos capazes de separar um do outro. O teatro antigo grego, ao contrário, era encarado como um espaço de discussão, e as tragédias são fruto do quinto século ateniense, contexto em que esta pólis passava por grandes mudanças. A utilização das peças trágicas para perceber e compreender as mudanças político-culturais de Atenas torna-se possível, pois estas possuem uma abertura às problemáticas sociais (SEGAL, 1994, p. 189), já que um de seus objetivos é o envolvimento, a catarse do espectador. Quando não há identificação, não há envolvimento. Segundo Charles Segal (1994, p. 194): Mas a tragédia não é apenas uma parte qualquer desse espetáculo citadino, dado que, com a sua extraordinária abertura, leva a cidade a refletir sobre o que está em conflito com os seus ideais, sobre o que deve excluir ou reprimir, sobre o que teme ou considera estranho, desconhecido, Outro. (...) A tragédia podia levar à cena, de forma simbólica, debates contemporâneos acerca de temas políticos e morais, (...).

O teatro, e a tragédia em particular, em momentos de crise vai utilizar-se dos mitos, passado heroico dos espectadores, para tratar de questões atuais na sociedade (SEGAL, 1994, p. 194). As peças são ainda de grande valor pela proeminência dada ao poder significante da linguagem utilizada, entre outras coisas, para emocionar e envolver o espectador. Sobre isso, veremos as metáforas Teatro Grego e Romano

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utilizadas por Ésquilo sobre o campo, mas são também conhecidos os jogos de palavras das críticas políticas de Aristófanes. A principal relevância da linguagem e, nesse sentido, do teatro, estaria ligada à palavra falada, esta como veículo de comunicação e de perpetuação da memória (SEGAL, C. 1994, p.186) tornando o passado sempre presente. Contudo vai mais além. A linguagem, com suas ambiguidades, não deixa de tornar perceptível a ambiguidade dos valores e do próprio mundo (VERNANT; VIDAL-NAQUET, p. 1988, p. 35-36). O homem percebe este mundo como um lugar de conflitos. Na tragédia, este conflito pode ser percebido na tensão entre o mito e as estruturas de pensamento ligadas à “cidade”. A tragédia é o lugar de conflito entre o passado e o presente, mas é por isso mesmo o seu lugar de encontro. O Teatro contribui também para o processo de construção de identidade entre os cidadãos. Ele une estes homens em torno das instituições democráticas atenienses (SEGAL, 1994, p. 195). Isto procede pois, como lembra J.-P. Vernant, a tragédia, está ligada a um momento histórico delimitado: o quinto século (VERNANT; VIDALNAQUET, p. 1988). Vernant e Vidal-Naquet, da mesma forma que Segal, compartilham o pressuposto de que o teatro fala do que lhe é familiar, da sociedade e do momento histórico em que está inserido. Segundo Vernant e Vidal-Naquet, a tragédia não poderia refletir aquilo que lhe causasse estranhamento. A tragédia – ou o teatro –, contudo, não se propõe apenas a falar ou a apresentar a sociedade, mas a questioná-la:

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A Tragédia não é apenas uma forma de arte, é uma instituição social que, pela fundação dos concursos trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos e judiciários. Instaurado sob a autoridade do arconte epônimo, no mesmo espaço urbano e segundo as mesmas normas institucionais que regem as assembléias ou os tribunais populares, um espetáculo aberto a todos os cidadãos, dirigido, desempenhado, julgado por representantes qualificados das diversas tribos, a cidade se faz teatro; ela se toma, de certo modo, como objeto de representação e se desempenha a si própria diante do público. Mas, se a tragédia parece assim, mas que outro gênero qualquer, enraizada na realidade social, isso não significa que seja um reflexo dela. Não reflete essa realidade, questiona-a. Apresentando-a dilacerada, dividida contra ela Ana Livia Bomfim Vieira

própria, torna-a inteira problemática (VERNANT; VIDALNAQUET, 1988, p. 21).

Um período de mudanças O século quinto ateniense foi um período de significativas transformações político-culturais. Durante a primeira metade do V século a. C., Atenas é representada, na sua produção cultural, como uma sociedade de valores ligados ao campo. Todas as características formadoras de um cidadão pleno eram encontradas no espaço rural. Essa Atenas assemelha-se à Atenas de Hesíodo: rural, agrícola e aristocrática. A partir da segunda metade do quinto século, Atenas faz uma opção pelo espaço urbano. Isso ocorre como forma de fortalecer a democracia e os segmentos sociais a ela ligados, segmentos esses essencialmente urbanos. Essa mudança nos esquemas culturais atenienses acontece motivada por processos históricos, tais como: vitória nas Guerras Pérsicas, organização de um império marítimo, crescimento da atividade comercial, derrota na Guerra do Peloponeso e o advento do pensamento sofista no âmbito dos saberes. Esses processos vão reorganizar culturalmente a sociedade ateniense do quinto século. As transformações, ou melhor, reorganizações na sociedade podem ser percebidas a partir das imagens construídas e apresentadas pelas peças teatrais, tais como as de Ésquilo e Eurípides. O primeiro nos mostra uma sociedade rural, aristocrática, que valoriza a terra como um bem, o campo como formador de valores essenciais ao cidadão e onde o saber camponês é valorizado, conhecido por todos e liga-se ao conceito de bem viver. O segundo fala de uma Atenas urbana, onde os valores que antes se ligavam a práticas e saberes rurais ligam-se agora a práticas e saberes urbanos: comércio, artesanato, marinha e o pensamento sofista. Neste trabalho, analisaremos a Atenas rural que Ésquilo imortalizou em suas tragédias. Ésquilo e o seu mundo rural O espaço rural tem um significativo lugar na vida do ateniense e da pólis como um todo. A agricultura é ainda no quinto século a base econômica de Atenas.1 Esse destaque pode ser percebido nos textos Sobre este ponto nos colocamos ao lado de Moses I. Finley. Consideramos a agricultura como a base econômica de Atenas, apesar de incorporarmos as 1

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antigos, que não apenas reiteram os valores da chóra, como ressaltam o apego do camponês à sua terra. Sobre esse aspecto, podemos citar Tucídides, no momento em que este historiador refere-se à saída de parte do campesinato do espaço rural para a ásty, no início da Guerra do Peloponeso: Depois de ouvir as palavras de Péricles os atenienses, já persuadidos, começaram a trazer do campo seus filhos, suas mulheres e todos os seus pertences; retiraram até o madeiramento das casas; os rebanhos e os animais de carga foram transportados para a Eubéia e para as ilhas vizinhas. Este deslocamento lhes pareceu penoso, pois os habitantes em sua maioria estavam habituados à vida do campo (TUCÍDIDES, Histoire de la Guerre du Peloponese, II, 14-17).

E ainda citando Tucídides: “(...) deixavam relutantes as casas e os templos aos quais estavam ligados por uma longa posse e, ao renunciarem à sua maneira de viver, era como se cada um deles se afastasse da sua própria cidade”.( TUCÍDIDES, Histoire de la Guerre du Peloponese, II, 16, 2) O espaço rural fazia parte do território cívico, portanto, era preciso mantê-lo não só para a pólis ateniense como também para o cidadão, principalmente no que se refere aos valores morais. Estes valores tinham como procedência a vida e o trabalho dos campos. Sobre este ponto, quem nos informa é Aristófanes: Com respeito à firmeza de alma, ao zelo que não conhece sono, à frugalidade do estômago formado a base de privações, contentando-se com salada para o jantar, fiques despreocupada e tranqüila, porque eu poderia servir de bigorna (ARISTÓFANES, As Nuvens, v. 420-422).

O camponês e o espaço rural representam o que há de mais valoroso. E é isto que queremos demonstrar, que na primeira metade do século quinto Atenas é representada na documentação como sendo essencialmente rural, e o teatro de Ésquilo foi um veículo fundamental para o reforço desta imagem. Contudo, a identificação deste fenômeno

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críticas feitas a este historiador a respeito da subvalorização do comércio. Este último teve um papel fundamental nas mudanças ocorridas no quinto século. Ver: Finley (1989, p.106); Finley (1986, p.134, 171, 182). Ana Livia Bomfim Vieira

se dá não só por encontrarmos em suas obras referências ao campo em si, mas pela numerosa presença de referências ao que podemos chamar de saber camponês, que pode ser observado através das obras de Hesíodo, por exemplo. Este autor vem em auxílio ao historiador no que diz respeito ao entendimento da formação da pólis, do mundo políade e da sua inserção no âmbito agrícola; muito embora saibamos que Hesíodo não era um ateniense. E embora Ésquilo não seja contemporâneo de Hesíodo, ele fala de uma mesma Atenas. É a Atenas com a preponderância do saber camponês como o saber pertencente ao espaço formador de bons e valorosos cidadãos. O trabalho na chóra é digno e honesto. É a melhor maneira de o homem não passar fome e até mesmo enriquecer. A sociedade dos atenienses do quinto século criou diversas formas de marcação de tempo. Entre elas permaneceu o que os historiadores chamaram de “calendário rural”. Com relação ao camponês, no entanto, ele não seguia somente o calendário cívico. Ele conhecia também um calendário natural constituído a partir do ciclo solar e das mudanças das estações. O agroîkos havia estabelecido esses marcos através da sua observação da natureza. Além disso, era através dos valores rurais que esta comunidade se via, isto é, era no espaço rural que se encontravam todos os valores políades, a chóra era o lugar ideal para o cidadão de bem, e o trabalho na terra, o labor digno por excelência. A estrutura políade ateniense, entendida como as relações simbólicas de ordem cultural, estava ligada aos signos, símbolos e saberes provenientes do espaço rural. Estes três elementos constituem um saber tradicional, o saber produzido pelo camponês. Os camponeses desenvolveram uma relação intrínseca com os fenômenos da natureza, fossem eles astronômicos, climáticos ou ambientais. Eram esses fenômenos que marcavam as mudanças de estações. Estas mudanças determinavam as práticas sociais camponesas, entre as quais podem ser citadas: semeadura, poda, colheita, pesca, caça, transumância. Os camponeses áticos, mais do que apenas guiar as suas atividades pelos sinais da natureza, produziram um saber, a partir da observação daqueles fenômenos apontados acima. Mas, exatamente, em que se constituía esse saber? O camponês observava os sinais que a própria natureza lhe fornecia, delimitando o tempo exato de plantar ou de colher. Estes sinais poderiam ser a chegada de aves migratórias, a presença de alguns insetos e, até mesmo, sinais astronômicos. O agricultor notava o aparecimento de constelações de estrelas fixas no Teatro Grego e Romano

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céu noturno e o seu consequente desaparecimento. Percebia a constância deste fenômeno. Os solstícios, por exemplo, eram considerados para o ano agrícola, pois marcavam o início do verão e do inverno. Esse saber, que foi passado de geração a geração pela tradição oral, constituiu-se naquilo que denominamos de saber empírico, já plenamente constituído e visualizado em Hesíodo (HESÍODO, Os trabalhos e os dias, v. 27-32; 380-385; 414-437; 479-493; 565-570; 573-582; 597-610): Quando Orion e Sírio tiverem chegado ao meio do firmamento, e quando a Aurora dos róseos dedos houver visto Arcturo, então, Perses, colhe e leva para a casa as tuas uvas, expõe-as ao sol durante dez dias e dez noites, põe-nas à sombra durante cinco dias e, no sexto, deita nas jarras a dádiva do alegre Dioniso. A seguir, depois de se terem posto as Plêiades, as Híades e o potente Orion, lembra-te que é a época das sementeiras, e haja feliz sorte a semente na terra (HESÍODO, Os trabalhos e os dias, v. 611-617).

O saber camponês apresentado por Hesíodo, que podemos, portanto, definir como aquele conhecimento do homem do campo, baseados na leitura dos sinais da natureza, que serviam para definir o tempos das atividades agrícolas, mostram para mostrar que no sétimo século este autor estava mergulhado em uma sociedade de valores aristocráticos, rurais e agrários. E são estas características que vamos encontrar nas obras de Ésquilo, situadas na primeira metade do quinto século. Elas apresentam uma pólis marcadamente ruralizada na qual o saber camponês continua sendo utilizado no cotidiano. Este saber, e isto é importante de ser observado, continua integrando harmoniosamente a produção cultural dessa sociedade. Ao trazer o saber camponês para a ásty, Ésquilo está valorizando os valores aristocráticos, pois o conflito entre campo e cidade está mais presente do que nunca. A phýsis em Ésquilo está majoritariamente no campo. A mesma concepção de marcação de tempo presente em Hesíodo encontra-se também em Ésquilo. Verifica-se nas peças deste último autor o quanto a marcação do tempo está relacionada com os sinais da natureza. Vejamos três passagens para demonstrar esta relação: (...) de tanto olhar o céu noite após noite agora sei reconhecer a multidão inumerável de estrelas, senhoras lúcidas do firmamento etéreo, indicadoras dos invernos e verões 82

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em seu giro constante pela imensidão (ÉSQUILO, Agamemnon, v. 5-10)

E também: “(...) irresistíveis no ataque final a Tróia quando as brilhantes Plêiades já declinavam (...)” (ÉSQUILO, Agamemnon, v. 928-929). Podemos perceber que os fenômenos astronômicos fazem parte deste saber apresentado também por Ésquilo, assim como foi por Hesíodo. As estrelas e constelações serviam de guia para o homem do quinto século, assim como guiava também o homem do sétimo século. Com o conhecimento deste saber camponês o espectador da peça de Ésquilo sabia que, segundo o trecho que selecionamos, o momento em que as Plêiades declinam, ou se põem, é o outono, mais especificamente no mês pyanepsión. Ésquilo, na verdade, nada mais faz do que falar da maneira que seria entendido, ou seja, marcando a passagem de tempo como os homens que o assistiam, e por que não ele mesmo, estava acostumado a fazer. Não há outra forma de marcação de tempo nas obras de Ésquilo. Mas esse autor não nos fala apenas de fenômenos astronômicos. Na phýsisde Ésquilo a fauna também tem seu lugar. Destacamos uma passagem que nos mostra a relevância, para o homem do campo, de algumas aves: “O Mastim fiel que guarda bem o seu rebanho (...)” (ÉSQUILO, As Suplicantes, v. 1020-1021). Ésquilo também nos mostra sinais ambientais e climáticos utilizados pelo camponês para a realização das suas práticas. Essas referências já apareciam em Hesíodo: Sabia eu que enquanto há seiva na raiz, renascem folhas abundantes que protegem a casa da canícula com sua sombra. Por isso, quando voltas para a intimidade do lar, comparas-te ao retorno do verão em pleno inverno; nesses dias em que Zeus nos dá o vinho feito das uvas mais ácidas, se o ar se torna ameno repentinamente, é que o senhor, o tipo acabado do homem, retorna e vê findarem os seus sofrimentos.(ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 1109-1118).

Ainda podemos ler: “(...) mais agradáveis para mim que a própria chuva mandada pelos deuses para a terra ávida na época em que as flores todas desabrocham.”(ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 1109-1118). Fica clara a intimidade do ateniense, que estava presente na plateia dessas peças, com os sinais da natureza. Ésquilo nos mostra isso Teatro Grego e Romano

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colocando em suas peças o conhecimento, o saber do camponês, a consciência de que no verão o vinho é mais bem consumido, que a presença de seiva nas raízes mostra que a planta ainda tem vida, que as chuvas são de suma relevância para o agricultor que precisa que seu trabalho tenha sucesso. Sua vida depende disso. O saber camponês presente em Ésquilo, portanto, deixa transparecer que este conhecimento está presente na pólis ateniense, que ele é o tipo de saber que melhor representa e que insere majoritariamente o corpo cívico na chóra. Esse conhecimento está vinculado, também, ao respeito aos deuses. Essa é outra característica da sociedade aristocrática de Hesíodo que vai estar presente na Atenas de Ésquilo. O camponês não poderia deixar de se guiar pela natureza se quisesse ter sucesso com suas práticas. Era fundamental estar atento aos sinais da phýsis. Contudo, mais importante ainda era realizar os rituais aos deuses. O homem do campo, para que sua produção não fosse prejudicada pela ira dos deuses, precisava render-lhes homenagens, oferendas, preces e agradecimentos. O mundo do camponês pertence aos deuses. A pólis ateniense pertence também aos deuses. E é isso que Ésquilo nos mostra. Em nossa análise, podemos demonstrar estes dados através dos seguintes versos: “Os muitos generosos dons de Zeus e as sementeiras anuais sempre vencem a fome(...)” (ÉSQUILO. Agamêmnon, v. 1158-1160). Podemos observar a mesma questão ainda neste trecho “Foi Zeus, que tudo faz e causa tudo!...Nada acontece a nós, mortais, sem Zeus. Que pode haver sem o querer divino?” (ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 1728-1730). É pela vontade dos deuses que as colheitas abundam, os rebanhos reproduzem, e os rios dão peixes. O homem deve respeitar os sinais da natureza e as suas regras, como as sementeiras anuais, por exemplo. Ele deve, porém, colocar os deuses acima de tudo, pois é através das graças derramadas por eles que prosperam as atividades humanas. A não obediência aos ritos pode ser desastrosa: Na noite de nossa chegada um deus mandou um rigoroso inverno antes do tempo certo, gelando inteiramente o Estrímon, rio sacro. Ali, alguns de nossos homens, descuidosos até então da reverência aos deuses pátrios, faziam promessas, adorando o céu e a terra (ÉSQUILO. Os Persas, v.658-664)

Ésquilo ainda nos informa mais sobre as relações entre os deuses e os homems e, principalmente, sobre os trabalho nos campos, inclusi84

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ve mencionando as oferendas mais comuns nos rituais para o plantio, colheita, enfim, para os trabalhos nos campos: Que Zeus faça fecunda, enfim, esta terra, em toda estação e sempre; que as ovelhas que pastam em seus campos sejam prolíferas; que tudo rejuvenesça por obra dos deuses. (...) E aos deuses que possuem esta terra (...) sacrifício de bois, coroas de louros (ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 658-664). (...) o leite de uma vaca nunca poluída pelo odioso jugo, o mel brilhante feito pela aproveitadora de todas as flores, além de água corrente de uma fonte virgem; trago também este licor puro e alegre, filho de mãe selvagem – de uma vinha antiga – e este fruto oloroso e louro da oliveira e flores em guirlanda, dons da terra fértil (ÉSQUILO. Os Persas, v. 792-799).

As obras de Ésquilo demonstram que a sociedade ateniense da primeira metade do quinto século estava mergulhada em um mundo rural, regulado essencialmente pelos deuses. A natureza, a phýsis é alguma coisa que faz parte do cotidiano dos homens, dos camponeses, mas é algo, também, que eles não podem controlar ou conhecer completamente. Ela está no âmbito do divino, do que não é passível de ser desvendado ou compreendido na sua natureza pelos simples mortais. Os fenômenos da natureza, fossem eles climáticos, astronômicos ou ambientais, eram manifestações da vontade dos deuses e lembravam aos mortais a quem eles deveriam render homenagens. Como apresentamos até aqui, Ésquilo, em suas obras, fala de uma Atenas ruralizada, temerosa dos deuses, lançando mão do saber camponês, saber esse presente e incorporado a essa sociedade pelo menos desde o VII século. Contudo, esse autor trágico enriquece ainda mais nossa argumentação com as figuras de linguagem por ele utilizadas. Estamos falando, mais precisamente, das metáforas que ele utiliza no decorrer de todas as suas peças e que vão indicar um mundo marcadamente rural. Essas metáforas vão estar sempre associadas a práticas e saberes provenientes da chóra. Observemos os seguintes trechos: “Ide pastar sem um pastor longe daqui, pois deus nenhum desejaria tal rebanho!” (ÉSQUILO. Os Persas, v. 259-260). E também sobre o mesmo tema: “(...) como se fosse uma nuvem de abelhas, seguindo o condutor de nossas forças ” (ÉSQUILO. Os Persas, v. 138-139). Teatro Grego e Romano

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Que soprem sobre esta cidade brisas calmas vindas da terra, do profundo mar, do céu, sob os raios propícios do brilhante sol! Que o solo rico e os rebanhos nunca deixem de dar prosperidade ao povo ateniense! Que a semente dos homens seja protegida! Que os descuidosos da veneração dos deuses sejam ceifados sem nenhuma piedade, pois como jardineiro sempre cuidadoso gosto de ver os mortais justos prosperarem como uma plantação livre de ervas daninhas. (ÉSQUILO. Eumenides, v. 1195-1205).

As passagens acima deixam transparecer que Ésquilo nos apresenta, através de suas metáforas, uma Atenas rural, onde a realidade campesina era comum e conhecida por todos. Uma Atenas aristocrática, com valores ligados à terra, onde os esquemas culturais estavam ligados à vida no campo. Ésquilo, como nos lembra Charles Segal, está muito mais próximo da cultura oral do passado, aproximando-se, desta forma, muito mais da relação direta entre palavras e coisas e do papel do poeta como porta-voz de valores ligados à comunidade (SEGAL, C. 1994, p. 19). Esses valores apregoados por Ésquilo – generosidade, coragem, atenção aos deuses – seriam aqueles ligados ao espaço rural, aos valores dos arístoi. Através de suas metáforas podemos perceber a criação de uma imagem rural para Atenas. Seguindo J. Dumortier (1975, p. 1), encaramos essas metáforas como palavras entendidas como imagens. Lembrando de Aristóteles, que observa: “A metáfora difere pouco da imagem”(ARISTÓTELES. Retórica, Livro III, c. IV). A sociedade de Ésquilo compartilha aspectos e preocupações com a de Hesíodo. Tanto uma como outra valorizam o campo como lugar de bem viver. As duas valorizam a agricultura como trabalho digno e fundamental para a sobrevivência da pólis: Que nunca os ventos cheios de miasmas soprem para matar as vossas plantas! Graças a nós o fogo irresistível, cujo calor consome a floração, nunca ultrapassará vossas fronteiras e o triste mal destruidor das frutas não se aproximará de vossas árvores! Que os campos generosos sempre aumentem as vistosas ovelhas fecundas para terem belos cordeiros gêmeos quando chegar a hora prefixada! E praza aos céus que as riquezas guardadas no solo cheio de grandes tesouros vos permitam retribuir aos deuses as dádivas do ganho inesperado! (ÉSQUILO. Eumenides, v. 1237-1251). 86

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Ésquilo utiliza-se das metáforas relativas ao campo e das referências ao saber camponês em si não só para mostrar a relevância da agricultura, mas também a do espaço rural como um todo, haja vista a menção à pesca com uma analogia às redes utilizadas pelos pescadores: “(...) emaranhei-o numa rede indestrutível igual às manejadas pelos pescadores (...)” (ÉSQUILO. Agamemnon, v. 1527) e à forma de abate de um peixe: “(...) como se seus adversários fossem atuns ou peixes outros, golpeavam, matavam a pancadas com restos de remos” (ÉSQUILO. Agamemnon, v. 554-556). Sem dúvida, estão presentes nesse autor todos os valores ligados à chóra, à terra, essa como aquela que nutre, que alimenta: (...) aos vossos filhos e à terra maternal, na qual vos espojastes no seu solo benfazejo quando éreis criança, que se encarregou de todos os cuidados da vossa educação e vos nutriu para que fôsseis cidadãos fiéis e a protegêsseis com os vossos escudos na necessidade presente. Digo-vos que até o céu está por nós; porque desde o dia que nos assediaram, a guerra, graças aos deuses, decorre cada vez mais a nosso favor. Mas hoje o adivinho falou: este pastor de pássaros que, sem o auxílio do fogo, observa pelo ouvido e pelo espírito os augúrios fatídicos com uma ciência infalível, este mestre dos presságios estraídos do vôo das aves, (...) (ÉSQUILO. Os Sete Contra Tebas, v. 18-29).

A terra é o bem mais valioso, a mãe geradora, a riqueza dos camponeses, a formadora dos cidadãos. É da terra que o homem de bem deve retirar o seu sustento e os seus valores morais. É no campo que o cidadão se forma, ou melhor, é através dos valores rurais que o ateniense se completa, se constitui, se transforma em um homem valoroso e digno de sua pólis. Estes valores ligados à terra são os valores aristocráticos dos bem nascidos. E o melhor saber para representá-lo é o do camponês, já que ele está ligado, eminentemente, à terra, ao espaço rural. E esse saber fazia parte do cotidiano dos homens, era por todos conhecido. Podemos afirmar isso levando em conta o papel do teatro neste quinto século. O teatro era um espaço de discussão dos problemas e realidades dessa sociedade. A tragédia não poderia apresentar algo que não fosse conhecido de quem a assistisse. Ela contribui, inclusive, para a construção de identidade entre os cidadãos. A tragédia une os atenienses em torno das instituições democráticas. Ela tem a função Teatro Grego e Romano

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de questionar a sociedade (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1988, p. 23), e Ésquilo, como um homem de seu tempo, apresentou uma Atenas ruralizada, com valores aristocráticos, revelando com isso um conflito já existente entre campo e cidade, a respeito do qual o autor se posiciona ao lado da chóra e de seus valores e saberes. CONCLUSÃO Com este trabalho, objetivamos demonstrar que a V século ateniense conheceu um processo de mudanças nos esquemas culturais. Esses esquemas estavam associados ao campo vinculando à chóra a procedência dos valores políades; vão posteriormente se ligar ao espaço urbano de Atenas. Não tratamos deste aspecto no texto, mas isso pode ser verificado, por exemplo, nas tragédias de Eurípides, um poeta eminentemente citadino e vinculado aos novos saberes urbanos. Há, portanto, uma tendência à valoração da ásty como o lugar ideal, como o lugar que melhor representa essa Atenas. Essa valoração do espaço urbano em detrimento do rural não foi gratuita. Existiam segmentos sociais, urbanos, que questionavam a associação do ideal do bom cidadão ao ideal do homem do campo, que, na verdade, representava a aristocracia, as fortunas advindas da terra. Esses segmentos urbanos – comerciantes, artesãos, homens ligados à marinha – detinham um poder econômico, tinham uma ampla participação política, contudo, estavam dissociados do “status” e dos valores morais que formavam o polítes ateniense. Além disso, na segunda metade do quinto século, Atenas encontra-se em um processo de desagregação, não sendo mais a “grande senhora dos mares”. O sistema políade precisava ser fortalecido. A forma encontrada foi vincular os valores antes associados aos arístoi, aos representantes dessa nova Atenas democrática, ou seja, os setores urbanos. O debate entre saber sofista e saber tradicional era, na verdade, um debate entre democracia e aristocracia. O confronto entre um passado de valores rurais, valores ligados ao nascimento e um presente de valores ligados à ásty, valores urbanos, que poderiam ser adquiridos por qualquer um. Este debate aparece nas peças de Eurípides e Aristófanes, esse retomando o ideal de uma Atenas rural, a que expomos aqui através de Ésquilo. A Atenas apresentada por Ésquilo, para a primeira metade do quinto século, é uma sociedade ruralizada. E percebemos isso pelas 88

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inúmeras referências às práticas rurais e ao saber camponês. Essas referências vão praticamente desaparecer nas obras de Eurípides, na segunda metade do referido século. Com a democracia radical, os grupos desse regime vão silenciar tais referências a práticas associadas aos arístoi. É reforçada, então, a hipótese de uma opção pelo espaço urbano como uma forma de ressaltar e reafirmar o sistema democrático. E, para isso, as práticas ligadas aos arístoi desapareceram das produções culturais dessa sociedade. Era necessário reforçar práticas e segmentos sociais ligados a essa democracia. E esses segmentos não estavam no campo. Eles encontravam-se no espaço da ásty. DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL AESCHYLUS. Suppliant Maidens; Persians; Prometheus; Seven Against Thebes. vol I, London: Loeb, 1996. _______. Agamemnon; Libation-Bearers; Eumenides; Fragments. vol II, London: Loeb, 1996. ARISTOPHANE. Les Acharniens - Les Cavaliers - Les Nuées. Paris: Les Belles Lettres, 2002. HÉSIODE. Les Travauxet les Jours.Paris: BellesLettres, 1986. THUCYDIDE. Histoire de la Guerre du Peloponese. Paris: Belles Lettres, 1944. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDREAU, J. Présentation: Vingt Ans Après L’Économie Antique de Moses I. Finley. Annales. Histoire, Sciences Sociales. 5, p. 947-960, 1995. BINTLIFF, J. The History of the Greek Countside: As the Wava Breaks, Prospects for Future Research. In: DOUKELLIS, P. N.; MEDONI, L. G.(eds.). Structures RuralesetSociétés Antiques. Besançon: Annales Littéraires de L’Université de Besançon, 1994. BORGEAUD, Philippe. O Rústico. In: VERNANT, Jean Pierre (org.). O Homem Grego. Lisboa: Editorial Presença, 1994. DEFORGE, Bernard. Eschyle, Poète Cosmique. Paris: Les Belles Lettres, 1986. Teatro Grego e Romano

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Os sonhos de Io:

uma abordagem psicanalítica de Prometeu Acorrentado

Patricia Vivian von Benkö Horvat É consenso que a psicanálise dialoga desde sua origem com a tragédia e ambas apoiam-se nos conflitos oriundos da impossibilidade de harmonização dos hiatos entre a vida individual e a vida política. Na leitura de Prometeu Acorrentado, atribuída a Ésquilo, pode-se fazer uma analogia entre o que a tragédia apresenta e a prática psicanalítica na atualidade. Nossa proposta é analisar um episódio desta tragédia, no qual é veiculada uma imagem da função e do papel das mulheres na sociedade,1 a partir da personagem Io, no terceiro episódio. A sociedade ateniense era androcêntrica,2 e nas representações teatrais apresentavamse masculinidade e feminilidade como atributos essenciais, explicados pela “natureza” de cada um dos sexos. No entanto, tais atributos ditos Conforme Judith Butler, consideraremos o gênero como “performativo”, ou seja, constituindo uma identidade proposta por um processo político e educacional, entendendo-o como uma construção social, culturalmente contingente, e não como uma concretização de uma distinção “biológica”, assumindo que “verdades” sobre as diferenças entre homens e mulheres são frutos de discurso e de práticas sociais e culturais: BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and Subversion of Identity (Thinking Gender) New York, Routledge, 1990, p. 25. 2 Termo que, segundo Ursula King, surgiu na sociologia norte-americana do início do século XIX, designando a adequação da experiência masculina nas sociedades europeias e europeizadas ocidentais com a experiência humana geral, e que deveria ser, portanto, aceita como norma por mulheres e homens, universalmente: KING, U. Religion and Gender: Embedded patterns, interwoven frameworks. In: MEDDE, T. A; WIESNER-HANKS, M.E. (edd.). A Companion to Gender History.The Blackwell Publishing Ltd. 2004, p. 73. 1

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“naturais” são elementos culturalmente incutidos nos seres humanos por um longo processo educativo (BELTRÃO; HORVAT, 2010, p. 2). A tragédia apresenta o castigo do titã Prometeu, protetor dos seres humanos, a quem concedeu o fogo roubado de Zeus, e ensinou as artes. Zeus, como punição, ordena Cratos, o poder, Bias, a violência, e Hefestos, o deus metalúrgico, a acorrentá-lo na Cítia,3 região escarpada e selvagem, perto do mar e fora dos limites do espaço humano (“Deves cumprir à risca, Hefesto, o édito/ paterno: aprisionar o criminoso/ com fortes cabos de aço no rochedo/ íngreme”, v. 3-6). Prometeu está preso à rocha e ali permanece (“Que aprenda a dar valor à voz de Zeus”. v. 10) e a peça consiste nos diálogos entre o Titã e seus visitantes (BELTRÃO; HORVAT, 2010, p. 7). Io, filha do deus-rio Ínaco, surge repentinamente no terceiro episódio, reclamando ser perseguida por um moscardo, ou pelo espectro de Argos, o pastor de mil olhos. A personagem conta sua história: Zeus tomou-se de desejo por ela, que o recusou, acusando-o de um desejo ignóbil, posto que ela era uma sacerdotisa do palácio de Hera (TORRANO, 2009, p. 349) e, portanto, destinada à castidade. Furioso, Zeus forçou seu pai Ínaco, o deus-rio, filho do Oceano, a expulsá-la de casa, e em sua testa brotaram chifres de vaca. A moça-vaca passou a ser vigiada por Argos que, morto por Hermes, assombrava-a sob a forma de um moscardo monstruoso, que não cessava de picá-la e a condenava a fugir incessantemente dele. Na tragédia, Prometeu indica a Io a longa viagem que faria, até seu término, às margens do Nilo, onde estaria destinada a dar à luz Épafo, de quem descenderiam as Danaides e, após muitas gerações, Héracles, o libertador de Prometeu. O episódio termina abruptamente, com o retorno do moscardo, que a espanta, e a fuga desesperada de Io, seguindo-se um estásimo4 do Coro, lamentando a triste sina de Io. Consideramos, então, como uma possibilidade de interpretação do terceiro episódio de Prometeu Acorrentado, que Prometeu desempenha um papel análogo ao de um psicanalista a quem Io, mimetizando a histeria, endereça a demanda de ajuda para a compreensão das razões do seu sofrimento. Nesta tragédia, identificamos alguns conceitos cunhados pela psicanálise, principalmente no que concerne 3

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Região ao norte do Mar Negro. Canto com o Coro parado no centro da orchestra. Patricia Vivian von Benkö Horvat

à “cura pelas palavras”5, aos mecanismos oníricos, à configuração dos sonhos e aos estudos sobre a histeria. Prometeu se reconhece como decifrador dos mistérios da alma humana e como profeta das ações divinas (“Classifiquei diversas profecias;/ figuras da vigília destaquei/ dos sonhos, decifrei rumores árduos/ e os símbolos plantados nos caminhos”, v. 484 -487) e Io encena os conflitos próprios à histeria (“Em detalhe, relato ponto a ponto,/ sem esconder, contudo, meu rubor:/ despencou sobre mim uma tormenta/ divina, o fim de minha antiga forma”, v. 641-644) que subsistem até os dias atuais com fisionomia semelhante. Entendemos, aqui, a histeria como um sintoma a partir do qual a psicanálise infere fantasias inconscientes obstaculizadas pela repressão (FREUD, 1991, II, p. 36-39), e seguimos a premissa psicanalítica segundo a qual o sofrimento psíquico remete à sexualidade, considerando o “Mito de Édipo” freudiano como uma alegoria do mito grego, particular à psicanálise. Consideramos, também, a proposta lacaniana de que os discursos, expressos pelas diversas formas de linguagem, são laços sociais, modos de se pôr no mundo e de estabelecer relações interpessoais (QUINET, 2009, p. 33, passim). Não desenvolveremos uma leitura arqueológica, mas, sim, uma leitura da peça em outro contexto cultural, que aceita e subsume o anacronismo implícito neste salto temporal. Io e Prometeu são interlocutores que buscam minimizar seus problemas e ansiedades, iluminando-os e esclarecendo-os através da linguagem verbal, e é explícita a sugestão de que a palavra pode prover a cura para o sofrimento psicológico, originado, em geral, por um conflito entre os anseios íntimos e pulsionais6 e os estatutos da moralidade. No verso 378 lemos: “palavras (logoi) curam o coração colérico?” na tradução de Trajano Vieira; e “Não sabes, Prometeu, que as palavras A “cura pelas palavras” é um termo utilizado por Bertha Pappenheim (descrita como Anna O.), paciente de Joseph Breuer, colega de Freud, para classificar o processo psicanalítico, indicando que o relato que fazia de suas histórias induzia à mitigação de suas aflições. Enquanto Anna O. se referia às palavras dos pacientes, Aristóteles, na direção inversa do diálogo, referindo-se às palavras do “terapeuta”, já considerava os efeitos curativos da sugestão verbal (cf. ENTRALGO, P. L. La curación por la palabra em la antigüedad clásica. Barcelona: Anthropos Editorial, 2005). 6 O termo “pulsão”, em alemão Trieb, remete ao termo latino pulsio, e é utilizado para marcar a sua diferença de “instinto”. Significa, para a psicanálise, o impulso para uma ação em direção a um objetivo não intencional. 5

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são médicos/ capazes de curar teu mal, este rancor?” v. 498-499, na tradução de Mário da Gama Cury. Io, como uma analisante, conta seus sonhos, “com pudor”, a Prometeu e ao Coro das Oceânides, que incentivam o seu relato e a escutam compassivas. Temos em vista que a psicanálise se apoia no acordo social que institui os significados da cultura ocidental moderna, tomados como fundamento, e que esta se constitui como teoria e prática pela abordagem dos termos da linguagem tais como se apresentam na cultura, com a fisionomia do pressuposto cultural. A psicanálise estabelece seu referencial na expressão individual, referindo-se ao sujeito, seu objeto e, observando os fatos individuais humanos com ênfase no código linguístico, procede a uma abstração do contexto espaço-temporal, remetendo-os à historicidade dos sujeitos individualizados em um procedimento de desconstrução dos significados constituídos e institucionalizados pela sociedade. Neste procedimento, a psicanálise opera também uma reconstrução dos significados que os isola do âmbito histórico-cultural e os realoca no particular (BOWLBY, 2007, p. 49), segundo uma axiologia em que a estrutura da subjetividade adquire um caráter de universalidade, ou seja, torna-se comum aos seres humanos em diversos tempos e lugares, o que permite o estabelecimento de um sistema teórico-metodológico próprio, tornando-se ciência e prática interpretativa. Cumpre esclarecer que os sonhos, que orientaram a hermenêutica da histeria implementada por Freud, exemplificam o funcionamento da linguagem do inconsciente, cuja característica é ser estruturado como uma linguagem, e, em sua formação, destacam-se três operações básicas: a condensação, o deslocamento, e a figuração (FREUD, 1987, p. 325331). O ponto de partida de Freud para a classificação dessas operações do inconsciente como linguagem foi a interpretação dos sonhos, que trazem um universo cognitivo obscuro à luz do dia, e o expressam de modo aparentemente truncado. Na condensação, a brevidade das figurações e percursos apresentados nos sonhos é resultado de uma economia linguística que reduz os pensamentos a serem representados ao seu mínimo possível, e a um encurtamento retórico determinado pelas permissões das restrições morais que freiam as expressões do imaginário onírico, omitindo lacunarmente alguns elementos do conteúdo e reiterando outros. No deslocamento, a manifestação do conteúdo latente é também obliterada pela censura, o essencial foge 94

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à apresentação, e o eixo da história é centrado em alguma proposição irrelevante, como que fugindo ao assunto e deformando a ação expressiva. Ambos os processos de transformação do material referencial dos sonhos pertencem à instância figurativa do imaginário, que transpassa as instâncias da subjetividade. A instância figurativa, seja do imaginário ou da racionalidade, opera em uma temporalidade não linear, é a instância da concomitância. As imagens são apreendidas em uma totalidade não linear, sobrepondo-se, esticando-se, de acordo com um desejo de apreensão, isento dos pressupostos lógicos “o sujeito não é, mas se faz e desfaz em uma topologia complexa em que se incluem o outro e seu discurso” (KRISTEVA, 1988, p. 245). Além disso, na figuração colocam-se em um mesmo topos elementos imagéticos aparentemente inadequados uns aos outros. Esses elementos estão representados em conjunto por similitude e por acordo arbitrário, não importando se são contraditórios e/ou excludentes. Para o inconsciente não há leis de exclusão formal, o único juízo é o moral, que institui a negação, e o que é negado representa igualmente a representação do que é afirmado, com a diferença de denotar, como acréscimo ao significado, a incidência da negação. No que concerne às obras de arte e, como tal, a tragédia, o que importa é representar o possível e não o real. A ação poietica é a mesma, e o que a diferencia do trabalho onírico é a sua intencionalidade, perpassada pela racionalidade e a maestria técnica que rege a sua execução. As regras ilógicas da organização dos significantes desta linguagem imagética também existem nas representações coletivas, populares, tais como mitos, lendas, provérbios, jogos de palavras, em que o significante, ou seja, o signo apresentado, afasta o significado gramaticalmente usual para dar lugar a outros e sucessivos significados. Esses procedimentos oblíquos de construção linguística observados pela psicanálise, tais como os deslizamentos dos significantes em relação aos significados teoricamente instituídos, podem ser exemplificados pelos procedimentos da construção poética. Em tais procedimentos, o significante precede o sentido: no caso da arte, por uma operação da linguagem que responde à realização de uma forma necessária à produção da imagem estética (aesthesis) e, no caso das expressões afetivas deflagradas em sonhos ou discursos não remetentes à norma geral de comunicação – que respondem à necessidade de eclosão de sentimentos aflitivos – , pelas operações de metáfora e metonímia. Teatro Grego e Romano

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Estas duas figuras de linguagem, em que a substituição significante busca um sentido que aponta para uma função expressiva, são observadas pela prática psicanalítica com uma acuidade específica e mais claramente do que em outros tipos de hermenêutica das sinuosidades da linguagem. No caso da metáfora, a substituição opera por meio da similaridade semântica ou homofônica que, caminhando por cadeias associativas, remete a significados inconscientes e, no caso da metonímia, o que ocorre é o deslocamento de valores que deriva em um deslocamento tópico de significado, cujo sentido é uma imagem eidética7 passível de ser representada e cuja interpretação se dá por meio de um percurso retroativo de associações que indica o significado obliterado. Foi a partir das indagações acerca das manifestações da histeria que a psicanálise colocou em pauta a expressão cênica da linguagem, aventando a possibilidade da existência de regras relativamente estáveis segundo as quais o corpo responde linguisticamente, em vez de fisiologicamente, às demandas do sujeito em sua relação com o mundo, e estabelecendo a constância de um conjunto típico de manifestações, constituinte de uma sintomatologia no topos corporal que tem sua etiologia no topos linguístico.8 De acordo com Freud: [...] verificaremos que as experiências psíquicas que formam o conteúdo dos ataques histéricos têm uma característica que lhes é comum. Todas são impressões que não conseguiram encontrar uma descarga adequada, seja porque o paciente se recusa a enfrentá-las, por temor de conflitos mentais angustiantes, seja porque (tal como ocorre no caso de impressões sexuais) o paciente se sente proibido de agir, por timidez ou condição social, ou, finalmente, porque recebeu essas impressões num estado em que seu sistema nervoso estava impossibilitado de executar a tarefa de eliminá-las (FREUD, 1991, I, p. 190).

O termo “eidética” remete ao grego eidós, e “imagem eidética” significa uma ideia em forma de imagem. 8 Não trataremos dos processos de internalização e obstaculização dos símbolos linguísticos, presentes nos escritos freudianos, pois ultrapassam o objetivo deste capítulo. Trataremos, aqui, de um processo de “dessubjetivação”, ou seja, de uma forma aparentemente espontânea de “exteriorização do indizível”, quando, cultural e circunstancialmente, a fala e as demais formas de expressão não encontram lugar (cf. SIMON. 1978, p. 241 passim). 7

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A personagem Io apresenta características da histeria feminina que podem ser comparadas às “impressões que não conseguiram encontrar uma descarga adequada”, descritas por Freud, a partir das quais podemos tecer interpretações psicanaliticamente coerentes sobre a histeria e pelas quais depreende-se a universalidade de estruturas psíquicas constituintes do ser humano. O episódio de Io no Prometeu Acorrentado Prometeu roubou o fogo, entregando-o aos seres humanos e, por isso, é vítima de Zeus. Io, sua interlocutora no terceiro episódio da tragédia, recusou-se à união carnal com Zeus e, por isso, é vítima de sua ira, desenvolvendo distúrbios que podem ser interpretados como histéricos. Alguns especialistas compreenderam os sinais comportamentais e físicos de Io como manifestações de mania, ou possessão religiosa, a enfatizar o caráter sagrado dos seus sofrimentos (GRIFFITH, 1983, p. 152-220), mas podem ser vistos, à luz da interpretação psicanalítica, como representação cênica dos sintomas de histeria conforme descritos na medicina grega, um mal que Hipócrates atribuiu a mulheres sem filhos (isto é, mulheres que escapavam ao ordenamento social ateniense)9 e que, segundo a medicina ateniense, só podia ser curado com a gravidez e o parto, que desobstruíam os tubos sanguíneos. A histeria é considerada ainda hoje a doença feminina por excelência, e esta ideia remete a modelos do corpo e do psiquismo femininos influenciados pelo discurso médico ateniense. Para Phyllis Katz, por exemplo, o episódio de Io apresenta um rito de passagem e reforça uma lição para a comunidade: a necessária transição das meninas atenienses para o papel social de mães submissas às necessidades masculinas (KATZ, 1999, p. 131). Os textos do Corpus Hippocraticum podem ser acessados, no grego e em tradução francesa, pelo sítio da Universitè Paris V - René Descartes, na Bibliothèque Interuniversitaire de Médecine: http://web2.bium.univ-paris5.fr/liva nc/?cote=34859x08&do=chapitre. O principal texto sobre o tema é o “Sobre as Virgens”, I, 4-9, no qual é exposta a origem do estado febril que levava ao delírio deambulatório, um mal causado pela retenção do sangue no útero, cuja cura era decorrente do parto, que desobstruía o sangue, recuperando sua circulação normal. Interessante é notar a prática médica para a verificação de distúrbios no útero: pela introdução de um dente de alho na vagina, verificava-se o hálito da paciente no dia seguinte. Caso a paciente apresentasse um terrível mau hálito, era considerada sã. 9

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Prometeu, pro methis, tem a sagacidade de ver adiante, o futuro,10 e está colocado fora do convívio de todos, isolado do mundo dos deuses e dos mortais, mas exposto à visita e à visão de todos, que, segundo ele, se comprazem de seu sofrimento. No entanto, parece ser o mundo que gira à sua volta, e ele, como um ímã titânico, atrai a passagem de visitantes, todos interessados naquele que desafiou o grande Zeus, detentor do poder, recém-vitorioso da Guerra de Titãs que lhe garantiu o domínio sobre os deuses e sobre o mundo, comportando-se, no universo diegético da tragédia, como o jovem tirano denunciado por Prometeu. O Titã detém o conhecimento que fará, no futuro e a partir da pacificação da violência de Zeus, com que o grande deus se consolide no poder e se torne o que será na religião grega: o princípio da sabedoria, o instituto do Grande Outro.11 Zeus representado na peça como tirano, está constantemente atento a Prometeu, tal que, no final da tragédia, envia seu filho e fiel escudeiro Hermes para descobrir o segredo do seu futuro, que só Prometeu sabia e que lhe garantiria governar eternamente. A tragédia põe em cena um tempo no qual Zeus ainda não é um deus político, e pode ser considerada a representação de um mito de fundação. Zeus, a partir de seu embate com o sophos Prometeu, aprenderá a ser o princípio da lei e da ordem, que o caracteriza no período histórico grego. Na peça, é emblemática a atitude violenta de Zeus para com todo aquele que não compartilha do estatuto simbólico da obediência inquestionável ao deus, cuja dominação é exercida com laivos de crueldade e cujo desejo ainda não reconhece interdição (“Verás que o duro rei não presta contas”, v. 324 e “o coração de Zeus, nada o comove:/ éduro quem exerce poder novo”, v. 34-25). Ao mesmo tempo em que lamenta, Prometeu suporta suas penas, reconhecendo É interessante pensar sobre a dimensão temporal da psicanálise, dimensão instaurada por Freud. A origem do que causa o relato (o relato presente do analisante) está no passado, mas, escondido nas dobras da memória, é desvelado no futuro (o presente da fala). Este f­uturo presente ressignifica o passado, vendo além – pro methis –, mas, igualmente, recria o passado, posto que depende das experiências, das vivências em todos os futuros passados vividos. Prometheus vê adiante, no jogo passado-presente-futuro deste presente triplo que é seu discurso. 11 A expressão Grande Outro é utilizada por Lacan para significar a instância simbólica que determina a subjetividade, a Lei. Representa os estatutos simbólicos internalizados, constituintes da subjetividade, e que determinam a relação do sujeito com seus desejos. 10

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a castração simbólica (temporária) por Zeus, seu sobrinho e novo rei dos deuses (“Fundamental levar de modo leve/ o destino fixado pelo fado,/ sabendo que o vigor do Necessário/não vacila”, v. 103106). O terceiro episódio inicia com a entrada desesperada de Io, diante do Prometeu acorrentado, debatendo-se a esmo para espantar o moscardo, espécie de mosca-de-cavalos, que a agride incessantemente com seu ferrão.12 A primeira fala de Io é de compaixão em relação a Prometeu, que vê agrilhoado à rocha, em pé, sujeito às intempéries e com a pele, a interface com o mundo, rachada pelo sol causticante, padecendo de um sofrimento tão atroz como o dela. Io pergunta a Prometeu que erros cometeu, identificando-se com a sua situação. Há uma empatia, a mesma que condiciona a relação psicanalítica, que poderia ser vista como um estado transferencial em relação ao sujeito suposto saber.13 Que raça, que país, que nome tem o prisioneiro que a intempérie agride, com aço preso àpedra? Que erros graves explicam os suplícios que tu expias? Por onde eu me extravio dolorida? (v. 561-565)

Io, desamparada, interpela Prometeu com a demanda de uma explicação sobre a razão do seu suplício e perguntando que lugar é aquele aonde sua deriva a levou. Que situação é aquela pela qual passa? Na peça original, em grego, Io entra gritando o seu nome, Io!, Io!, um som em staccatto, uma interjeição que indica o ato de pular. A mesma interjeição que inicia os cantos das procissões religiosas, que se chamam Io-Apollo, IoBacchus, segundo o deus que homenageiam. 13 A expressão sujeito suposto saber representa um topos imaginário no qual um sujeito coloca outro, supondo que este outro sabe algo sobre ele, ou sobre um assunto, que ele mesmo não sabe. Por exemplo, o analisante crê que o analista sabe algo sobre ele, que ele mesmo não sabe, como o estudante, que reputa ao professor os saberes que desconhece e que supõe existirem, e como os fiéis que supõe que os ministros religiosos detêm o conhecimento dos mistérios. É a relação em que uma pessoa supõe que a outra detenha um saber – e, como tal, um poder –, transferindo para a outra o papel de um ser que existe na sua imaginação, tornando-a o sujeito da cena. O sujeito suposto saber é uma das figuras em que se aloca a transferência e que configura a relação paciente/agente, com a delegação ao agente, do poder e da maestria. 12

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Lamenta que o moscardo a fere; este, “sombra de Argos”, é definido como imagem – eidolon, ao mesmo tempo ídolo e espelho –, espectro, fantasma de Argos, o pastor de mil olhos, a mando de Hera protetor de Io, morto por Hermes por ordem de Zeus. Argos que, filho da Terra, nem morto à terra volta; seu espectro persegue Io com seu ferrão. Em seus sonhos, a transmutação de Argos em um moscardo com seu ferrão insistente poderia representar o deslocamento do atributo fálico de Zeus. Ai! (Ââhè hé!) De novo o moscardo me fere, sombra de Argos, filho da Terra. Terra, me ajuda. Tremo ao ver as mil retinas do vaqueiro. Com mirada pérfida avança, pois nem morto a terra o oculta. Sai do inferno e vem à caça desta infeliz desnorteada, faminta a vagar pela praia (v. 566-574).

Ela continua a sua errância, admoestada pelo ferrão de Argos e pede à Terra, a origem, a grande mãe,14 da qual provêm todos os deuses, que a ajude a livrar-se do mal que a aflige. Em Argos é reiterada a visualidade, tanto por ter o corpo coberto por olhos, como pelo fato de ser o pastor, guardador, que vigia rebanhos e olha por Io. É a reciprocidade de Io, ainda que inconfessa, que enseja o conflito, mediado constantemente pela vigilância do supereu, o caráter de interdição que “Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também/ Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre” (Hesíodo. Teogonia, v. 116-117). Terra, ou Gaia, a grande mãe, forja o aço de suas entranhas, entrega a foice dentada a Cronos, seu filho, que castra o pai, o Céu, que cobria a terra de tal modo que abafava e prendia os filhos em seu interior. Cronos, o Tempo, castra o pai Uranos, o Céu, que se solta da Terra e deixa os filhos virem à luz. Cronos, depois de castrar o Céu, toma o poder, como rei dos deuses, mas, com medo de que seus filhos o destronassem, torna-se também tirânico e come seus filhos, gerados por Reia. Destes, a mais velha é Hestia, deusa do fogo doméstico, e o mais jovem é Zeus. É Terra quem ensina Reia, deusa mulher de Cronos, mãe dos Olímpicos, um estratagema para enganar Cronos e salvar seus filhos. Esses filhos provocarão a guerra de Titãs, na qual Zeus, com o auxílio de seus irmãos e do tio, Prometeu, derrota Cronos e assume o poder. 14

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opera as substituições simbólicas do objeto interditado e das experiências traumáticas, que, convertidas, configuram o sintoma. Ai! (Io iò pópoil) Por onde o descaminho me faz rondar sem rumo? Satúrneo,15 que erro meu explica este martírio? Oprimes com terror – frenético ferrão – uma mulher sem siso. Que teu fogo me queime, que a terra me acoberte,16 me tenham no repasto duros monstros marinhos; aceita, rei, meu rogo. Sei bem como extenua andar ao léu; fugir dos males não me é dado. Escutas o rogo da moça bicorne? (v. 576-589).

Hera destinara o vaqueiro de mil olhos, protetor de seu rebanho sagrado, para proteger sua sacerdotisa que, no entanto, nutre e reprime o desejo por Zeus. A existência desse desejo, que Io vagamente expressa ao dizer de si mesma que lhe falta o bom-senso (siso), abriu espaço para que Hermes matasse o vaqueiro, permitindo que Zeus se aproximasse da moça. Morto, Argos passa a persegui-la incessantemente, com a permissão de Hera, a quem a reciprocidade da moça a Zeus, ainda que ambígua, não escapara. Em Io, vemos em cena a antinomia entre o desejo e o repúdio, ela reitera o seu próprio castigo ao associar o desfrute (gozo)17 à punição. Ela diz: “... o açoite divino me persegue/ Satúrneo é aqui uma liberdade do tradutor, pois no texto grego Zeus é dito Cronida e não Satúrneo, e vez ou outra os dois deuses são confundidos um com o outro nas traduções. Prometeu é irmão de Cronos, tio de Zeus. Por sua, vez Saturno é um deus itálico, não grego. 16 No texto em grego, Io pede a Zeus que a cubra com terra, uma referência ao ritual de sepultamento dos mortos. 17 O termo “gozo” (Genuss em alemão e juissance em francês) “designa a ação de fazer uso de um bem com a finalidade de retirar dele as satisfações que ele supostamente proporciona” (ROUDINESCO, 1998, s.v. Gozo), em psicanáli15

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vítima do ferrão, por toda terra” (v. 680-681), supondo o erro que desconhece, denegado e desresponsabilizando-se. Io fala novamente em eidolon Argon, imagem de Argos, cuja perseguição era a causa do seu frenesi. Destacamos aqui dois níveis de significação: no primeiro, Io transforma-se em vaca, como na versão tradicional do mito, e é atormentada por um moscardo, fisicamente real; no segundo, Io, a mulher, é atormentada por alucinações táteis (v. 566), visuais (v. 568), e auditivas (v. 574). Nas linhas 673-5, por exemplo, ela descreve transformações físicas e mentais, mas em 878-886, seu tormento é descrito com sendo tanto manía, quanto um sofrimento físico devido a ferimentos (GRIFFITH, 1983, p. 195). Ai! Ai! Pobre de mim! Que espasmo súbito, que acesso delirante já me queima? O ferrão do moscardo me transtorna como se fosse um aguilhão de fogo! Meu coração espavorido palpita no fundo do meu peito sem parar! Meus olhos giram convulsivamente. Lançada para fora do caminho por um sopro de raiva furiosa, já não consigo dominar a língua E mil pensamentos desencontrados

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se, implica a ideia de uma transgressão à Lei, ao estabelecido como regra geral e internalizado como o instituído. Sem a interdição o sujeito investiria tanta energia na busca do prazer que se fundiria ao objeto do desejo, ocorrendo uma clivagem do sujeito, neste movimento complexo e repetitivo, a pulsão que direciona ao prazer, à “vida”, e a pulsão que direciona ao aniquilamento, à “morte”, estão imbricadas. Para Lacan, o gozo está intrinsecamente relacionado à repetição, como em um mecanismo em que para se buscar o prazer é necessário que haja a perspectiva de obstaculização da consecução, gerando um desprazer e a necessidade de novo impulso de busca de prazer, em uma circularidade sem fim que alimenta e realimenta o supereu, que é o instrumento de obstaculização, recrudescendo as censuras subjetivas. Assim, o gozo consiste em forçar a barreira do princípio do prazer, sendo necessária uma transgressão para lhe ter acesso e, por conseguinte, uma interdição a superar. “E se o vínculo social se baseia numa renúncia à satisfação da pulsão, é justamente porque esta pressupõe o gozo – no sentido jurídico do termo – de objetos que poderiam ou pertencer a outros ou privá-los de seu gozo” (Lacan, apud MIJOLLA, 2005, s.v. Gozo). Patricia Vivian von Benkö Horvat

debatem-se desordenadamente nas vagas de terríveis sofrimentos. (Prometeu acorrentado, v. 877-886)

O androcentrismo da sociedade ateniense, ao naturalizar e reiterar supostos atributos essenciais “masculinos” e “femininos”, encontrou no teatro um medium eficaz para a educação de seus membros, e a inserção destes atributos em uma peça que apresenta personagens-chave de mitos fundadores tem uma função retórica significativa. Io, incluída incomumente nesta tragédia, como uma inovação de Ésquilo, que fundiu duas tradições míticas, a de Prometeu e a de Io e as Danaides, é uma personagem própria aos mitos de fundação da humanidade. Ela mesma vai fundar, no Egito, uma nova raça de humanos, mais sofisticados do que a anterior, que entrara em decadência devido à sua violência desenfreada.18 Sua punição é um ensinamento que significa, então, a necessidade de que as mulheres respondam ao requisito de terem filhos. A personagem Io padece por seu desvio em relação à normatização social e por esquivar-se do desejo masculino. A normatização social é o resultado do desejo masculino, imposto, naturalizado e, através dos tempos, instituído como o simbólico. Retratado na peça, o desejo de Zeus é o índice do Grande Outro, que virá a instituir uma nova ordem simbólica, a do universal masculino (“Zeus reina com leis próprias./ Contra os deuses de outrora/ ergue a lança orgulhoso./ A terra toda geme”, v. 403-406). O supremo modelo da autoridade patriarcal (e real) de Zeus, cujo título é também Zeus Pater, e suas inúmeras conquistas sexuais tendem a reforçar sua dominância masculina e sua potência. Esse modelo de Após a Guerra de Titãs, o roubo do fogo por Prometeu, e o envio de Pandora, por Zeus, para puni-los, os seres humanos revelaram-se de uma belicosidade desenfreada. Com a paz estabelecida, no futuro da peça, entre Zeus e Prometeu, com o primeiro aprendendo o segredo de bem governar, Zeus decide pela exterminação necessária – com o apoio de Prometeu e de todos os deuses – dos seres humanos. Mas, decide também pela renovação deste ser. Trata-se do relato do dilúvio enviado, por ordem de Zeus, por todas as divindades aquáticas à terra, e a recriação dos seres humanos a partir de Deucalião e Pirra, filho e filha, respectivamente, de Prometeu e Epimeteu. Os novos mortais foram gerados a partir de pedras lançadas pelo casal por cima de seus ombros – segundo a mensagem de Hera: as pedras lançadas por Deucalião tornaram-se homens; as pedras lançadas por Pirra, mulheres. 18

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dominância masculina (e promiscuidade) é reproduzido através do reino humano. Há incontáveis passagens na tragédia grega em que uma ou outra personagem expressa lealdade ao nome e à pessoa do pai, do marido, do mestre (vivo ou morto); e tantas outras, em que obediência, submissão, ou silêncio são exercitados pelas mulheres em nome da autoridade paternal ou conjugal: “Mulheres, para uma mulher o silêncio é melhor adorno” (SÓFOCLES, Ajax, 293). Usualmente estas reiterações da sujeição feminina são aceitas sem refutação. E quando uma personagem feminina decide atuar por sua própria iniciativa, o resultado é quase desastroso, a não ser que ela seja uma grega buscando escapar do assédio de um rei bárbaro, estrangeiro, como em Eurípedes (Iphigenia em Tauris e Helena) (GRIFFITH, 2005, p. 341-342). Io, diante do Titã que sabe o que foi e o que será, insiste em conhecer seu futuro, ao que Prometeu aquiesce: Por que não anunciar-me tudo já? (...) Pode ficar tranquilo; quero ouvi-lo. Se é esse o teu desejo, então escuta. (v. 627-630)

Antes de Prometeu narrar o futuro de Io, para que conhecesse o destino dos seus males, o Coro pede que ela própria narre o seu passado, para que, só então, Prometeu comece a falar. Para fazer Io lembrar e reproduzir suas experiências oníricas, o Coro, dirigindo-se a Prometeu, ordena: Ainda não! Partilha esse prazer. que ela informe primeiro sua doença; que relate sua sorte deplorável. O restante do azar, saiba-o de ti (v. 631-634).

Ao que Prometeu diz a Io: É teu dever satisfazê-las, Io. Talvez deva lembrar-te: são tuas tias Chorar a própria sorte, lamentá-la, e ter em troca a lágrima do ouvinte é um entretenimento muito digno (v. 635-639).

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O Coro é composto pelas Oceânides, filhas do Oceano, irmãs de Ínaco, pai de Io. Em grego, em vez de “são tuas tias”, é dito “são irmãs do Patricia Vivian von Benkö Horvat

teu pai”, aludindo ao pai como argumento de autoridade e como modo de remetimento ao Grande Outro, ou seja, às regras do ordenamento social. Prometeu dá um comando a Io, fundamentadona ordem familiar e políade, da qual o Coro é a voz. Lembramos que o Coro representa a voz das instituições simbólicas. Incentivada pelo Coro e por Prometeu, segue-se a confissão dos sentimentos aflitivos e a indução à catarse: Em detalhe, relato ponto a ponto, sem esconder, contudo, meu rubor: despencou sobre mim uma tormenta divina, o fim de minha antiga forma. Sombras noturnas, volteando assíduas, repetiam conselhos veludosos: (...) Noite a noite tais sonhos me assaltavam, até que fui ao pai, contei-lhe eu mesma as visões que tomavam minhas noites (v. 641-657).

O primeiro verso do exórdio, que introduz o que será relatado (“sem esconder contudo meu rubor” v. 643), sugere que Io tem noção da necessidade tácita de cumprir o ordenamento do qual se esquivara ao se tornar sacerdotisa do santuário de Hera, em Argos.19 O desejo de Zeus é uma afronta a Hera, pois ele está invadindo uma região que pertence a outra divindade e se imiscuindo em assuntos sagrados concernentes a ela, tentando arrebatar sua sacerdotisa, o que pode ser interpretado como uma disputa de poder entre Zeus e Hera, irmã mais velha e casada com Zeus. O desejo de poder de Zeus sobre Hera é expresso sob a forma de incontinência do desejo sexual em relação à sua sacerdotisa. Io sofre as consequências do desmando tirânico de Zeus, tornando-se vítima de uma competição que ultrapassa sua própria compreensão. O olhar desejante de Zeus sobre ela desperta a possibilidade de responsividade, e provoca a instauração de um conflito entre uma proposta de vida – sua dedicação ao santuário – e a obediência à vontade de Zeus. O ordenamento social e o reiterado universo simbólico em que foi educada lhe incutiram o dever de responder ao olhar masculino. Nesta ordem simbólica, às mulheres cumpre aceder ao desejo masculino (SIMON, 1978, p. 96). Hera é deusa patrona, protetora de Argos, como Athená Partenos o era de Atenas e Medeia de Corinto. 19

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O conflito é a priori: por um lado, só às deusas é dado ter relativa autonomia e às mortais, a cuja índole a servidão é inerente, não há outra opção senão adotar integralmente uma feminilidade alegórica culturalmente construída e naturalizada de acordo com o universo simbólico, politicamente instituído, que lhes reserva o lugar de não agentes do próprio desejo, apenas responsivas ao olhar masculino e à necessidade política de procriar e reproduzir os valores sociais, mantendo a estabilidade da polis. Por outro lado, há a insurgência de desejos e de vontades advindos de instâncias próprias da sensibilidade e caráter, sublimados, organizados pela experiência de vida e exercitados no mundo epistêmico, racionalizados, e que são resultado de uma maturação e autonomia que ultrapassam os conflitos edipianos primários (SIMON, 1978, p. 239).20 ... despencou sobre mim uma tormenta divina, o fim de minha antiga forma. Podemos aventar a hipótese, segundo a leitura psicanalítica, de que Io busca o amor de um pai simbólico, Zeus, colocando-se no lugar de uma mãe, também simbólica, Hera. Para a psicanálise, o Complexo de Édipo, complexo relacional criança, mãe, pai, próprio à estrutura familiar nuclear ocidental, é um modelo explicativo que representa estruturalmente a constituição da subjetividade e remete ao desejo amoroso de uma criança pelo genitor. O complexo de Édipo tem estreita relação com a castração, que se traduz pela interdição por um genitor, ao amor do outro genitor, dando ensejo à saída da tríade, para a escolha de um objeto erótico e a busca de amor no mundo. Na tragédia em pauta não há uma personagem investida no papel de mãe, mas Io se depara com a “traição” por parte do pai, que a renega. Io, substituindo-o, aloca seu erotismo no pai simbólico exterior, Zeus, e se identifica e se coloca no lugar da mãe imaginária, Hera. Por outra vertente de leitura, podemos apontar para as manifestações do sintoma de Io como uma encenação do discurso histérico, considerando que, sendo os discursos modos de dominação, o agente do discurso histérico busca a maestria sobre o desejo do outro, despertando e manipulando o desejo do outro, desfrutando do prazer de negar-se à sua consecução e de reincitá-lo, em um jogo produtor de uma suspensão que desestabiliza o outro posto neste diálogo, como nos jogos de sedução amorosa. A encenação deste jogo não deixa incólume a personagem que atua, posto que a personagem histérica nesta encenação expressa também suas motivações, que permanecem inconscientes para ela, colocando-a em uma suspensão semelhante que se traduz por uma situação intrapsíquica conflitante que igualmente a desestabiliza. 20

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Sombras noturnas, volteando assíduas, repetiam conselhos veludosos: “Por que prolongas tua virgindade, moça de sorte? Ao teu alcance estão núpcias máximas. Arde em Zeus o amor dardo certeiro -; em ti vislumbra Vênus. Não deves resistir ao leito dele. (v. 644-652)

No verso 650, “Arde em Zeus o amor”, é clara a referência ao desejo masculino, o termo é uma perífrase digna e eufemismo para relação sexual, ao passo que “Não deves resistir”, conforme escrito em grego, é um termo pejorativo para a decisão de Io de permanecer virgem (GRIFFITH, 1983, p. 207). E é ela mesma que usa um termo pejorativo para si. Io responde, portanto, com um sentimento de culpa pela sua transgressão à naturalização do simbólico, cujo representante é o interlocutor, Prometeu, que reitera o seu destino de ceder aos desejos de Zeus e ser a progenitora de uma nova estirpe, incluindo Hércules, que matará a águia (animal distintivo de Zeus) que come o fígado de Prometeu, e, justiceiro, libertará o Titã do castigo do tirano. Prometeu sabe que a ordem de Zeus será instituída no futuro, ou seja, a ordem androcêntrica que substituirá a ordem titânica, na qual as deusas perderão a isonomia. Assim, Io, como Leda, Danae, e outras heroínas míticas que Zeus visitou sexualmente, e cujos mitos expressam a construção da ordem simbólica masculina, não pode se furtar a responder a seu papel na história dos deuses21. O sonho é imperativo: Alcança Lerna, vai ao prado fértil, onde teu pai tem pastos e estábulos: que o olhar divino acalme o seu afã (v. 652-654). As tragédias gregas... “justificam poeticamente a subordinação das mulheres, estrangeiros e escravos. As vozes e a liberdade de agir que o drama confere às mulheres se prestam amplamente à liberalização e, apesar das aparências, ao seu contrário. Caracteres femininos acabam por serem os instrumentos dos poetas homens para reafirmar a identidade e a supremacia masculinas... Mas a premissa central é, talvez anacronicamente, política: implica fortemente que a tragédia é inteira sobre a cidade e o lugar das mulheres”. MOSSMAN, J. Women’s Voices. In: GREGORY, J. A. Companion to Greek tragedy. The Blackwell Publishing Ltd, 2005. 21

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Lerna, que ficava a cinco milhas ao sul de Argos, área banhado pelo mar, com prados profundos, é, na literatura grega, o local convencional de encontros sexuais, como se pode ver em Homero (Ilíada, 14.346). A linha 654: “que o olhar divino acalme o seu afã”, ecoa o verso 376:“até que Zeus modere a sua cólera”, que fala na luxúria e temperamento forte, características dos jovens tiranos, como se apresenta Zeus. A expressão está nitidamente vinculada ao discurso do sonho de Io, e não há nenhuma justificava para o comportamento de Zeus além do mero desejo sexual; mas a mitologia grega está cheia de belas jovens que, voluntariamente ou não, se submetem ao desejo dos deuses. Aquelas que resistem sofrem por isto, por exemplo, Cassandra, muitas gerações depois de Io, condenada à presciência e ao descrédito por não ceder aos desejos de Apolo (GRIFFITH, 1983, p. 207). Noite a noite tais sonhos me assaltavam, até que fui ao pai, contei-lhe eu mesma as visões que tomavam minhas noites. Para Delfos, Dodona,22 partem vários consultores em busca de um informe: ato, palavra, o que era caro aos deuses? Retornam com oráculos ambíguos, expressos em linguagem desconexa. Ínaco enfim acolhe um sinal claro. Ordena sem torneios que me expulsem do palácio, de minha própria pátria, errante e só até o fim do mundo (v. 655-665).

Para justificar o destino errante de Io, dada sua expulsão da cidade e sua condenação a ser “estrangeira”, não há qualquer alusão a algum erro cometido por Ínaco ou por Io, caso em que Zeus poderia legitimamente, segundo o pensamento grego, simplesmente fulminar a pólis de Ínaco com seus raios (GRIFFITH, 1983, p. 208-209). Tratase tão somente da reiteração de uma regra de obediência inconteste à vontade de Zeus (“Ou o raio de Zeus, feição de fogo,/ fulminaria toda a nossa raça”, v. 665-667). “Errante e só até o fim do mundo”, é uma sentença que se perde na tradução e na nossa experiência temporal, mas era reconhecida pelos espectadores à época da tragédia, e no texto em grego compõe uma expressão utilizada como referência a animais sagrados que residiam e 108

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Delfos é o oráculo de Apolo, e Dodona, o de Zeus. Patricia Vivian von Benkö Horvat

vagavam no território dos templos. É apropriada por Io, na temporalidade do relato, antes de se tornar vaca (GRIFFITH, 1983, p. 208), o que prenuncia a sua “transformação” neste animal e fornece um indício para a compreensão da produção do sintoma. Io está se considerando, de antemão, um animal sagrado, para depois se transformar nele, ou assim acreditar e produzir-se como tal. Sintomas não são aleatórios, surgem da dicursividade, e Io se considera tal qual um animal sagrado, não apenas sob a sua forma física, de animal que transita pelos templos, mas também, simbolicamente, com a realização do sintoma da errância do sagrado, não localizado na estabilidade da mundaneidade, pois imaginariamente o sagrado tem epifanias em qualquer tempo e lugar (“despencou sobre mim uma tormenta/ divina, o fim de minha antiga forma”, v. 643-644). A vivência do sonho erótico é inconciliável com os pressupostos morais de uma sacerdotisa e só pode ser trazida à consciência e narrada por meio de uma aproximação com a instância do sagrado. Sagrado é um termo derivado de sacer, no latim “separado”, e sacrificium significa, literalmente, “fazer o sagrado” (ERNOUT; MEILLET, 2001, s.v. sacer, sacrificium). O sagrado religioso é o conteúdo manifesto do fenômeno insólito, que contrasta com a familiaridade habitual do que é natural, conhecido e imediatamente apreensível pelo entendimento. A hierofania é a aparição de uma singularidade que pertence a um sistema ontológico diferente, passível de operar uma ruptura no sistema habitual de ordenação, o kosmos, que poderia derivar em cataclismas e ser fatal (ELIADE, 2002, p. 21, passim). É no desconhecido que os seres humanos projetam seu imaginário e o símbolo sagrado, receptáculo das forças incontroláveis, mágicoreligiosas, se torna objeto de veneração, por seu potencial de sublimidade e de temor, pelo potencial de dissolução do estabelecido. Assim, Io sacraliza seu sintoma da melhor maneira que encontrou, circundando os escrúpulos de sua consciência moral e transformando-se em uma hierofania, uma vaca sagrada, e desse modo opera uma pseudo-reconciliação com a moralidade da ordem simbólica que concomitantemente incita e proíbe aquilo que ela percebe como transgressão. Nestes termos, o universal simbólico da teoria psicanalítica corresponderia à ordem simbólica do âmbito dos estudos culturais e seria um substrato cultural sacralizado que impregna o inconsciente. A partir destas considerações, poderíamos depreender o deslocamento operado no sonho de Io, do âmbito sexual para o sagrado. Teatro Grego e Romano

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Ainda assim, as coerções morais de Io não permitem uma resolução feliz na construção do sonho: o desfecho é punitivo. Io induz, com seu relato, que na vida real seria desnecessário, a reação do seu pai (“até que fui ao pai, contei-lhe eu mesma / as visões que tomavam minhas noites”, v. 656-657). Ela colocara, diante do seu pai, um outro pai maior que ele e o obrigava a tomar atitudes que, inevitavelmente, derivariam na obediência a Zeus, procedendo quase como em uma revanche, em uma atitude de perversão do esperado, que contrastaria com a passividade a que era obrigada. A nós ambos contrário, aceita o oráculo de Lóxias e me expulsa do palácio, a entrada me lacrando. Com violência, pelo freio de Zeus subjugado23 (v. 669-672).

O sonho de Io independe da plausibilidade. Nos sonhos, como na arte, as representações remetem ao imaginário possível e não ao mundo da realidade material, epistêmica. O inconsciente, como linguagem, comunica sem destino, sua comunicação é tão somente performática, dirige-se não à interlocução, mas a algum lugar, comunica-se, então, se assim quisermos dizer, com o nada, o topos da alteridade absoluta e, assim, remete ao particular, do emitente para o si próprio, passando por um outro lugar, um Grande Outro imaginário. O inconsciente onírico fala à “outra cena”, hinc et nunc inexistente, qualquer uma ou nenhuma (LACAN, 1998, p. 22, 25-27). Então, os sintomas histéricos sobrevêm como a expressão performática do conflito: [...] os mais variados sintomas, tidos como operações espontâneos e, por assim dizer, idiopáticos, da histeria, estão tão estritamente relacionados com o trauma desencadeador quanto os outros fenômenos que exibem a conexão causal de maneira bem clara. (...) Em outros casos a conexão causal não é tão simples. Consiste apenas no que se poderia denominar uma relação “simbólica” entre a causa precipitante e o fenômeno patológico – uma relação do tipo da que as pessoas saudáveis (sic) formam nos sonhos. (FREUD, 1991, II, p. 30).

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Lóxias é um dos nomes de Apolo. Patricia Vivian von Benkö Horvat

Como exemplo da conversão histérica24 de um sentimento obstaculizado pela repressão, temos a expressão e transformação corpórea de Io, para ela, real: Transmudou-se-me a forma e logo a mente; pelo agudo aguilhão azucrinada, com meus chifres, lancei-me à foz do Lerna, às águas de Cercnéia, louco assalto (v. 673-676).

Pode-se traduzir o verso 673 também como: “Minha aparência e minha mente foram distorcidas”. Nessa passagem, sintomas físicos e mentais são sobrepostos e a sua eclosão dramática deve-se ao conflito significativo trazido à tona no sonho recorrente de Io. Um infante da Terra, Argos, vaqueiro, destemperado em seu furor sem freio, espreitava-me os rastros, todo-olhos (v. 677-679).

Io não diz quem mandou Argos agir como vaqueiro, presumivelmente foi Hera, para impedir que Zeus se aproximasse dela metamorfoseado em boi, como era seu hábito, por exemplo, na visita a Europa, ou para punir sua sacerdotisa, como é declarado por Prometeu (“Como não, se o ferrão aturde a moça?/ O amor chameja pela filha de Ínaco/ no coração de Zeus. Hera lhe impõe/ irada a fatigante correria”, v. 589-592.). Tirou-lhe a vida um fato inesperado. Mas o açoite divino me persegue (v. 680-681).

Argos, espectro, com olhos por todo o seu corpo, tema popular em pinturas cerâmicas gregas, significa que Io está sob o olhar de mil olhos, publicamente vista nesta situação de transformação em vaca histérica. E o verso 681 é uma metáfora que aparece em Homero, e significa “derrotada pela intervenção de Zeus”, como na Ilíada, 13. 812 (GRIFFITH, 1983, p. 210).

Podemos dizer que o conceito de “conversão” remete a manifestações (transformação em alguma coisa somática) que correspondem ao desejo, nas quais unem-se o psíquico e o somático, provendo uma espécie de “substituição de satisfação” que remete a outra cena (o inconsciente), através do corpo. 24

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vítima do ferrão, por toda terra. Sabes a minha história. Conta agora o que mais vou sofrer. Dize! Condoído, não deves me embalar na fala falsa, pois para mim o engano é a pior moléstia (v. 682-686).

Para o discurso mítico, assim como para o onírico, as referências a representações imaginárias têm a mesma validade lógica que os remetimentos à realidade material. Assim, a pressuposição de veracidade da transformação de seres humanos em animais, tais como Argos-moscardo e a vaca, na qual Io se transforma, ou acredita ter se transformado, são expressões do universo simbólico, que alguns teóricos consideram atávico, enquanto outros consideram cultural. No âmbito da psicanálise tende a prevalecer o remetimento do valor simbólico ao âmbito das representações constituídas e instituídas pela cultura, e pode-se dizer que o significante vaca é um indício de significado na história afetiva do sujeito, cujo imaginário é culturalmente construído e interiorizado, e tem o valor de verdade que seu significado transporta. Podemos compreender o sintoma de Io como resultante de sua experiência como sacerdotisa no santuário de Hera, com seus rebanhos sagrados, e incorporação da ideia de fertilidade da vaca, suscitada pelo interesse sexual de Zeus. Junto a esse valor de verdade cultural, o símbolo desempenha a função de indicar um sentido de decifração, abrindo caminho para seus correlatos imaginários segundo a concepção do sujeito falante. Como é próprio às representações simbólicas, dependentes do acordo social historicamente determinado, a interpretação deste signo, cujo significante é a palavra vaca, era, para os antigos espectadores de Prometeu Acorrentado, plena de sentido. A vaca é símbolo religioso de fertilidade e, como tal, da mãe ancestral, a Grande Mãe e, junto ao boi, touro fecundador, compõe os princípios ativo e passivo das forças geradoras, como axiologia diádica do imaginário transcendental. No episódio em pauta, o que desencadeia as atribulações da personagem são seus sonhos, que exemplificam o funcionamento da linguagem do inconsciente. Para a psicanálise, na histeria verificase uma antinomia que Freud chamaria de duplo sentido antitético, no âmbito do simbólico, Die Symbolik. “Freud define a histeria pelo tipo de reação experimentada em termos de gozo: o desprazer” (QUINET, 2005, p. 112), que é o resultado desta antítese entre ser sujeito, ativo, 112

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e objeto, passivo, em que o conflito entre nomoi, leis, suspende o ethos, comportamento, dando lugar a um proton pseudos, primeira mentira, a um deslizamento da linguagem pela superfície do sujeito, objetificado, que pelas frestas da superfície deixa escapar fragmentos de desejo advindos de outra instância: o inconsciente. À necessidade premente de realização se interpõe a interdição. As perguntas da histeria são sobre o seu ser, a sua vontade e o seu desejo, mas nenhuma resposta as alcança, pois o sujeito histérico que enuncia as questões está ausente, deslizando na errância do desejo de uma alteridade imaginária, um Outro. É a identificação com a situação objetual, a materialização do ser em uma aparência, que determina que a aflição antinômica do histérico se expresse nesta interface com o mundo, o corpo, que se move e que transporta a aparência, espaço da mimetização, realizando nele o sintoma. O histérico se reconhece pela materialização de si em sua superfície fenomênica, naquilo que se apresenta ao olhar do outro, e se coloca em cena para ser visto para, então, se ver como existente. Na conversão histérica podem ser observados, portanto, indícios da linguagem do inconsciente. Como nos diz Lacan (2007): O homem está capturado pela imagem de seu corpo. Este ponto explica muitas coisas e, em primeiro lugar, o privilégio que tem a dita imagem para ele. Seu mundo, se é que esta palavra tem algum sentido, seu Umwelt, o que o rodeia, ele o corpo-reifica, o faz coisa à imagem de seu corpo. Não tem a menor ideia, certamente, do que acontece neste corpo. Como sobrevive um corpo? (...) O corpo ganha seu peso pela via do olhar.

Permanece uma questão quanto à recriação pela tragédia, na personagem Io, da histeria como uma desordemmimética, e a influência dessa representação nos conceitos da teoria psicanalítica. A questão de Io seria, então, a mesma da histeria: o que vem antes, o aprendizado da histeria como pseudo-solução do conflito derivado da pressão exercida pelo simbólico sobre o eu, intermediado pelo supereu, ou a superveniência de uma pulsão de vida irracionalizável que esbarra na interdição operada pelo temor ao aniquilamento pela invisibilidade no real androcêntrico e se transforma em pulsão de morte? Se os sintomas de sujeitos diversos, homens e mulheres, se assemelham, ainda que na sua forma fenomênica, não seria por terem sido aprendidos e, portanto, por existirem de antemão no imaginário comum sob uma ordem Teatro Grego e Romano

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simbólica androcêntrica cultural e politicamente instituída? Poder-se-ia questionar a naturalização de uma sujeição tão nitidamente instrumental, cuja pregnância deriva de ritos sancionados e institucionalizados – instrumentos de reiteração do simbólico e da manutenção da ordem social e política – que provavelmente se originam no reconhecimento de que as mulheres têm potencial para não só pontualmente realizar a fantasmática castração de sujeitos, mas para desequilibrar a ordem imaginária e real criada politicamente pelas necessidades masculinas, e no consequente temor da dissolução da ordem simbólica, isto sim, irracionalizável.

PROMETEU ACORRENTADO - EDIÇÕES UTILIZADAS CURY, M.G. Tragédia grega. vol VI: Prometeu Acorrentado, Ájax, Alceste. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. GRIFFITH, M. Aeschylus Prometheus Bound. Nova York: Cambridge University Press, 1983. TORRANO, J. Ésquilo – Tragédias. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2009. VIEIRA, T.; ALMEIDA, G. Três tragédias gregas. São Paulo: Perspectiva, 2007. BIBLIOGRAFIA COMENTADA BOWLBY, R. Freudian Mythologies. Greek Tragedy and Modern Identities. New York, Oxford University Press, 2007. Rachel Bowlby apresenta atualizações das leituras psicanalíticas das tragédias gregas utilizadas por Freud. Discute a diluição dos pressupostos dos séculos XIX e XX sobre cujas bases se construíram as teorias psicanalíticas, comparando-os com os substratos cultural e científico que formam a atual estrutura familiar e as novas formas de identidade.

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BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and Subversion of Identity (Thinking Gender). New York, Routledge, 1990. Obra de referência para os estudos de gênero, este livro tornou-se um clássico. A autora apresenta, além de definições sólidas e coerentes sobre os conceitos de gênero e identidade, um panorama das principais abordagens sobre a questão de gênero em diversas especialidades do conhecimento, incluindo a Psicanálise. Patricia Vivian von Benkö Horvat

QUINET, A. A lição de Charcot. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2005. _____. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2009. Quinet explica a histeria esteticamente, com uma peça teatral em que há um diálogo entre Charcot e seus contemporâneos, iniciadores da psicanálise, e a atualidade. Traz um histórico comentado da histeria baseado na teoria lacaniana. Em Psicose e laço social, Quinet parte da teoria dos discursos de Lacan para analisar como os quatro tipos de discursos, entre eles o da histeria, expressam a afetividade e estabelecem laços sociais imaginários, abordando os tipos clínicos da psicose e seu posicionamento apartado da linguagem institucionalizada. SIMON, B. Mind and madness in Ancient Greece. The classical roots of modern psychiatry. NY: Ithaca, 1978. Um livro de referência para os estudos de apropriação do classicismo no que concerne à psicologia, psiquiatria e psicanálise. Simon traz o percurso histórico, pela Grécia clássica, das ideias sobre doença mental e faz uma exegese dos textos em que os caracteres psicológicos e os sintomas psiquiátricos aparecem, comentando a persistência dos quadros analíticos que os descrevem e conceituam na atualidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELTRÃO, C; HORVAT, P. Papeis de gênero na Tragédia Ateniense: o “episódio de Io” em Prometeu Acorrentado. Caderno Espaço Feminino, v. 23, n. 1/2, p. 199-219.Uberlândia: NEGUEM/UFU: 2010. ELIADE, M. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ENTRALGO, P. L. La curación por la palabra em la antigüedad clásica. Barcelona: Anthropos Editorial, 2005 ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. Histoire des mots. Paris: Klincksieck, 2001. FREUD, S. Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos en vida de Freud. v. I. Buenos Aires: Amorrortu Editores S. A., 1991. ____. Estudios sobre la histeria. v. II. Buenos Aires: Amorrortu Editores S.A., 1991. ____. Fragmento de análisis de un caso de histeria – Tres ensayos de teoría sexual y otras obras. v. VII. Buenos Aires: Amorrortu Editores S.A., 1991. Teatro Grego e Romano

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____. A interpretação dos sonhos. Standard Ed. v. IV e V. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987. GRIFFITH, M. Authority Figures. In: GREGORY, J. A. (org.) A Companion to Greek Tragedy. Blackwell Companions to the Ancient World. Blackwell Publishing, 2005. _____. The Authenticity of Prometheus Bound. New York: Cambridge University Press, 1983. KATZ, Ph. Io in the Prometheus Bound: a Coming of Age Paradigm for the Athenian Community. In: PADILLA, M. W. (ed.). Rites of Passage in Ancient Greece. Literature, Religion, Society. Cranbury, London, Ontario: Associated University Press/Buckwell Reviews, 1999, p. 124-147. KING, U. Religion and Gender: Embedded patterns, interwoven frameworks. In: MEDDE, T. A; WIESNER-HANKS, M. E. (eds.). A Companion to Gender History. Oxford: The Blackwell Publishing Ltd. 2004. KRISTEVA, J. El lenguaje, ese desconocido - Introducción a la lingüística. Caracas: Editorial Fundamentos, 1988. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar. 1998. _____. Conferência “O sintoma”. Genebra, 1975. Texto para estudo veiculado na IPB-lista. Trad. Rita Smolianinoff, Recife, 2007. Disponível em: . MIJOLLA, A. de. (dir.). Dicionário Internacional da Psicanálise. 2 v. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2005. MOSSMAN, J. Women’s Voices. In: GREGORY, J. A Companion to Greek Tragedy. Oxford: The Blackwell Publishing Ltd, 2005. QUINET, A. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2009. _____. A lição de Charcot. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2005. ROUDINESCO, E; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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Patricia Vivian von Benkö Horvat

... E os gregos inventaram o teatro

Maria Regina Candido Se alguém convidar você para ir ao teatro, imagino que você, provavelmente, irá preparar-se para sair no período do entardecer ou mesmo à noitinha. Entre os gregos da região da Ática no período do V e IV séculos a. C., o ato de ir ao teatro significava participar de um festival em homenagem ao deus Dioniso, cujo evento começava ao alvorecer e durava o dia inteiro pelo período de quase uma semana. O teatro de Dioniso ficava encravado na encosta do lado sul da Acrópole de Atenas, tinha a capacidade para receber em torno de 14000 espectadores que assistiam a tragédias, comédias e dramas satíricos. O público era, geralmente, composto de homens e mulheres atenienses, de estrangeiros e de escravos. A razão para a popularidade do teatro nos diferentes segmentos sociais compostos de ricos, pobres e escravos não seria difícil de entender. O espaço físico do teatro tornara-se o local no qual os cidadão atenienses de todos os níveis e atividades assim como os visitantes de diferentes regiões da Grécia podiam assistir, se emocionar, rir e chorar, sofrer e lamentar, julgar os diferentes acontecimentos sociais que envolviam a pólis. Todos se alojavam no espaço físico do teatro que, em meados do V século, mudara a construção dos assentos de madeira para pedra. Nas primeiras filas, nos assentos em mármore ficavam os integrantes das melhores famílias locais, os aristhoi, acompanhados de seus hospedes. Em seguida, vinham aqueles considerados cidadãos de recursos médios, e, pelo meio da arquibancada, sentavam os cidadãos pobres com seus familiares. Theofrastos deixa transparecer que a entrada ao teatro era alvo de alguma pecúnia destinada a reparos e manutenção dos prédios públicos, pois o autor cita na obra Caracteres XXX que alguns Teatro Grego e Romano

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aproveitadores esperavam o momento em que os responsáveis pelo acesso ao teatro liberavam a entrada de graça (Theofrastos, XXX: 6). Os demais espaços do teatro seriam preenchidos pelos estrangeiros residentes identificados como metecos e os não residentes na qualidade de estrangeiros de passagem. Alguns pesquisadores consideram a presença de escravos nos últimos lugares da arquibancada. A hierarquia era respeitada e fundamental para a manutenção da ordem poliades. Um detalhe curioso é que o espaço físico ao qual denominamos de teatro grego não detém qualquer semelhança com as casas de espetáculos que conhecemos na atualidade nas grandes capitais do mundo. Entre os gregos, as apresentações teatrais ocorriam numa estrutura semicircular e em espaços abertos sendo determinante a existência de uma boa propagação do som vocal. Havia a necessidade de que essa construção semicircular estivesse encravada nas encostas com elevações acentuadas para permitir uma acústica eficaz que é perceptível até nos dias atuais. Outro dado interessante está na própria palavra teatro, ou melhor, theatron, que em grego significa lugar para ver, para assistir de forma atenta a um grande espetáculo de apresentação e perfomance. O termo orquestra que nos remete a um conjunto de instrumentos e de músicos, na antiguidade dos gregos representava o lugar para dançar, o espaço ficava no centro da estrutura semicircular por onde transitavam os atores que naquela época eram denominados de hypocrites e dividiam o espaço da orchestra com o coro e músicos e dançarinos. O termo hypocrites formou a palavra hipocrisia no sentido de dissimular, fingir ser, representar, ou seja, a própria perfomance do ator cuja história está associada à formação do teatro e o processo de especialização desse profissional. No fragmento da Vida de Ésquilo 15, citado por Eric Csapo, tomamos ciência que Ésquilo usou como primeiro ator Kleandros e depois adicionou um segundo ator, de nome Mynniskos de Chalkis, e que introduziu um terceiro ator. Entretanto, de acordo com Dicaearchus de Messena, o terceiro ator foi introduzido por Sófocles (CSAPO, 1994, p. 221). Aristóteles ratifica a questão ao citar que Ésquilo foi o primeiro que elevou de um a dois o número dos atores, diminuiu o valor do coro e fez do diálogo protagonista (Poética, 1449a15). Analisando a complexidade da estrutura da representação da dramaturgia, percebemos que o número de atores excede a três, tal fato ratifica que o numero de atores sem fala que atuavam no palco Maria Regina Candido

era ilimitado, sendo restrita e permanente a quantidade de atores que faziam o uso da fala. A delimitação para três atores tornou-se primordial para o estabelecimento de regras de atuação no palco, ou seja, o uso da fala se limitava ao diálogo no qual o terceiro ator permanecia, por convenção, em silêncio. Acreditamos na existência de competição entre os atores para atuar em primeiro plano; a documentação nos aponta que um dos efeitos do ambiente agônico e competitivo gerou a padronização na estrutura da atuação. Aristóteles cita na Retórica que aqueles que usam suas vozes bem e carregada de emoção arrebatam todas as premiações da disputa; para ele o embate no teatro estava tornando o ator mais importante do que o poeta que escrevia a dramaturgia (Retórica,1003b31). Platão, na obra Banquete/Sympósiun, questiona a eficácia de um poeta e ator em representar tanto na tragédia quanto na comédia (Simpósio, 223d). A disputa e a especialização da função de ator gerou o estabelecimento de hierarquia na atuação, composta pelo protagonista, que atuava no papel principal, o deuteragonista, que seria aquele que atuava como coadjuvante, e o triagonista, que atuava como ancora, auxiliar dos anteriores. Entretanto, somente o protagonista poderia estabelecer contrato com o arconte basileus e receber a primeira premiação como ator (CSAPO, 1994, p. 223). Como podemos observar, os três termos da hierarquia de atuação são compostos pela palavra agon, que se define como um confronto, embate, desafio ação presente na sociedade helênica. A representação da dramaturgia torna-se o espaço de atuação eficaz diante do embate entre o coro e o protagonista, luta entre dois heróis que representam posições adversas e/ou antagônicas. O confronto tem como função simbólica expressar os valores poliades que estão sendo desafiados ou levados ao esquecimento. O agon entre os gregos está presente em diferentes situações como nas dramaturgias, nos banquetes, nos concursos musicais e de poesias e junto às facções políticas conhecidas como hetareia de diferentes naturezas, ao qual incluímos os atores no teatro. As representações que nos apontam para o espetáculo das perfomances teatrais estão fartamente documentadas na imagética grega desde o VI a. C. Um dos objetos mais comuns representados nas imagens é a máscara usada pelos atores levadas antes ou depois de uma performance. Desde o período helenístico, esse uso decorativo da máscara foi encontrado em muitos aspectos da arte grega, como imagens em vasos de cerâmica, afrescos e esculturas. A motivação pode ter se originado Teatro Grego e Romano

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através da prática de atores vitoriosos na disputa do drama dedicarem as suas máscaras como oferendas aos deuses. Nessa ocasião, a máscara não apenas celebra o papel que levou à vitória, mas também as festividades que acompanhavam a vitória (CSAPO, 1994, p. 282). Para F. B. Jevons, o uso da máscara pode ter levado à formação da performance do drama grego. A máscara foi usada pelos três tipos de dramaturgia: tragédia, comédia e drama satírico, porém, Jevons reafirma que não há evidências do uso das máscaras em outros tipos de performance que não fosse o drama trágico (JEVONS, 1916, p. 172). O detalhe mais curioso era a proibição da mulher de participar como atriz no teatro; os papéis femininos de deusas, rainhas e heroínas eram representados pelos homens. Tal fato nos leva a concluir que os atores tinham que ter uma excelente performance para convencer o público, de forma eficaz, que eles estavam diante de uma personagem feminina. Havia o coro de mulheres, de jovens e dos homens que cantavam em cerimônias públicas, porém, com a restrição de que somente os homens podiam usar as máscaras. A proibição se deve à tradição antiga dos gregos em usar a máscara em cerimônia de culto dos ancestrais praticado pelos sacerdotes e familiares maculinos. O pesquisador Jevons traz como questão se a máscara usada no culto dos ancestrais era usada somente pelo morto, como nos indicam as cerimônias realizadas na realeza palaciana do período minoico-micênico, ou se a presença das máscaras somente ocorria durante o culto ao ancestral usadas pelos participantes do sexo masculino (JEVONS, 1916, p. 174). A abordagem do teatro grego está repleta de curiosidades pelos arqueólogos; eles questionam se os primeiros teatros na Ática teriam uma estrutura retangular ou semicircular. Os pesquisadores alemães, com base nas escavações arqueológicas, argumentam que a orquestra dos primeiros teatros de Thorikos e Ikarion na Ática seria de forma retangular. A justificativa da forma retangular se deve à formação do processo de isonomia e da democracia, ou seja, a pólis estava mudando a sua forma de defesa individual ao acrescentar o segmento social dos zeugitas visando à formação coletiva da falange de soldados hoplitas. A formação hoplítica requer um longo aprendizado efetivado através da participação dos jovens soldados no Ritual da Efebia, no qual aprendiam através de intensos treinamentos a marchar em ordem unida e em linha reta. De acordo com o pesquisador Alair Figueiredo Duarte, essa formação hoplítica tornou-se a base dos treinamentos e desfiles militares em diferentes países da modernidade (DUARTE, 2011, p. 15). Maria Regina Candido

Para entendermos o significado da performance da dramaturgia grega, temos que recorrer à obra Poética, de Aristóteles. O filósofo analisa a formação da tragédia e da comédia e menciona que tragédia emergiu do improviso dos solistas do dityrambo, e a comédia dos hinos fálicos, ambos muito estimados entre os atenienses (Poética, 1449a). A citação do filósofo tem sido alvo de debate na atualidade sobre a origem do teatro na sociedade grega; o filósofo deixa transparecer que os primórdios da formação dos rituais os quais denominamos de teatro eram cerimônias relacionadas ao culto ao deus Dioniso. A tese de Aristóteles esteve presente entre os helenistas da Escola de Cambridge no início do século XX, como Francis M. Cornford (1914) e Jane Harrison e Gilbert Murray (1927). A abordagem que começou como uma aplicação experimental do método antropológico para a elaboração da história da religião grega, logo se expandiu para outros ramos de conhecimento da literatura, do teatro, da antropologia e com acentuado diálogo entre os pesquisadores interessados na formação do teatro grego. O pesquisador Eli Rozik refuta o consenso, que existe junto aos especialistas, que relaciona a formação do teatro grego à atividade ritualizada ao deus Dioniso. Rozik nos informa que a teoria foi formulada na Cambridge School of Anthropology/CSA, que buscava fundamentar, cientificamente, a formação do teatro grego (ROZIK, 2002, p. ix). Para o autor, o teatro existiu de forma independente ao ritual religioso, ambos, o teatro e o ritual formavam duas entidades culturais autônomas. O ritual pode estar presente no teatro assim como pode apoiar outras atividades culturais, como a narrativa mítica, eventos de música e dança, que não pertençam necessariamente à atividade relacionada ao campo religioso (ROZIK, 2002, p. x). Para Mariana McDonald, os gregos não foram os primeiros a representar narrativas históricas através de gestos e palavras fora do campo do ritual religioso usando música, dança, máscaras e indumentárias específicas. A perfomance teatral realizada diante de uma audiência e com propósitos específicos pode ser encontrado em diferentes sociedades antigas (McDONALD, 2007, p. 13). Tal fato torna difícil traçar uma linha divisória entre a performance do teatro e o ritual, cerimônia e representação. A pesquisadora McDonald considera que ao tecer análises sobre o teatro grego, devemos nos reportar ao período minoano no qual a população não grega colonizou a ilha de Creta e de Theera Teatro Grego e Romano

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durante a segunda metade do II milênio. As imagens dos afrescos presentes nas paredes dos palácios apontam para a realização de cerimônias e rituais que incluíam a representação imagética de danças, acrobacias e sacerdotes comandando atividades ritualizadas (McDONALD, 2007, p. 14). Eric Csapo retoma a controvérsia ao explicar que a matriz da relação entre o drama e o ritual religiosos começou com Friedrich Nietzsche, na obra Die Gerburt der Tragödie oder Griechentum (O Nascimento da Tragédia), em 1872. Na obra, o autor descreveu a origem da tragédia a partir do ritual de representação do drama dionisíaco ao ser desmembrado pelos Titãs. Para o autor, toda a representação trágica, como Prometeu, Édipo, Ajax e outras, seria uma das formas de reviver o drama da divindade simbolizando a mística mensagem da paixão e sofrimento do verdadeiro Dioniso. O drama do desmembramento significa o retorno aos elementos primordiais como água, terra, ar e fogo (CSAPO, 2007, p. 24). A explicação de Nietzsche causou impacto e suscitou o debate no universo germânico e depois entre os pesquisadores e classicistas das demais escolas. A helenista Jane Harrison retomou a teoria do drama ritual e combinou a sua análise com a abordagem de Nietzsche, G. Frazer e a teoria do drama-ritual da Escola de Cambridge/Cambridge's Ritualism. Harrison e Gilbert Murray, no livro Themis: a study of social origins of Greek Religion, apresentam Dioniso como o principal herói dos gregos por simbolizar o ciclo da morte e renascimento. O processo seriam etapas de coesão que integram o ciclo da natureza, da vegetação, do culto aos ancestrais mortos e adorado como herói pelos integrantes da comunidade poliades. Para Jane Harrison, o culto à natureza foi originalmente honrado na primavera através da performance do dithyrambo, que resultou no ritual cujo padrão recorrente definem as etapas do agon que seria o embate contra os adversários e inimigos; o pathos cujo ritual envolvia o sacrifício da morte do deus; o mensageiro que reportava a morte do deus; o threnos, o lamento dos fieis seguidores do deus; o anagnorisis que seria a descoberta da morte do deus e finalmente a theophania etapa da ressurreição ou apoteose máxima de Dioniso (MURRAY, 1927, p. 343-344). Ao longo dos tempos, criou-se a máxima de que a perfomance da dramaturgia ocidental tem muito do que foi representado na teatro ateniense do V século. Entretanto, a tese tem sido questionada na atualidade. O pesquisador Eric Csapo considera que a invenção do draMaria Regina Candido

ma, como conhecemos hoje, foi formado, no período do renascimento (CSAPO, 2007, p. 4). Parte dos pesquisadores, como Eli Rozik, considera que a dramaturgia emergiu fora no processo ritual, e como evidência para a origem do drama e teatro grego, recorrem à antropologia devido à possibilidade de efetivar a comparação com outras culturas. A controvérsia teve início através da antropologia comparativa aplicada por Sir James Frazer ao articular que o drama trágico provém do processo ritual endereçado às divindades dos gregos. A abordagem denominou-se The Cambridge's Ritualism, composta por helenistas profissionais que se baseavam em evidências da sociedade grega. Embora a tese que tende a relacionar a origem do drama ao ritual fosse refutada por Arthur W. Pickard-Cambridge, no livro Dithyramb, Tragedy and Comedy (1927), alguns pesquisadores ainda explicam o desenvolvimento da dramaturgia trágica ocidental e o teatro a partir do processo ritual. Como exemplo, podemos citar Phyllis Hartnoll, na obra Concise History of the Theatre (1971), na qual afirma que a origem do teatro emergiu dos rituais religiosos das antigas comunidades que deixaram vestígios de seus cultos e ritos realizados por adoradores vestidos com pele de animais ao honrar o deus (HARTNOLL, 1971, p. 7). O pesquisador Oscar G. Brockett considera que o teatro necessariamente foi originado de atividade ritualizada o que nos permite afirmar que teatro e ritual detêm uma coexistência mútua (BROCKETT, 1991, p. 3). Para Eric Csapo, os pesquisadores da The Cambride's Ritualism classificavam os materiais etnográficos estrangeiros a partir da comparação com os vestígios de ritual encontrados na sociedade grega. Fato que gerou a formulação de um consenso, um padrão universal que apontava a existência do ritual e a dramaturgia trágica como própria dos helenos. Jane Harrison descreveu que a ação dramática foi uma invenção dos gregos que permitiu à Europa sair da selvageria para a civilização (CSAPO, 2007, p. 2). A tese da Escola de Cambridge adquiriu popularidade junto à antropologia comparativa ao ratificar a ideia de superioridade da civilização ocidental. Os helenistas herdaram a visão eurocentrista e evolucionista presente na antiga abordagem da antropologia comparativa desenvolvida na Europa Ocidental do século XIX e inicio do XX (CSAPO, 2007, p. 1). Alain Martin participou do debate ao nos alertar que a emergência e a formação da tragédia grega tinham sido pouco pesquisadas nos últimos anos da década de 90 e que grande parte da historiografia Teatro Grego e Romano

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analisava a tragédia como um culto religioso, um gênero literário ou um ação cívica (MARTIN, 1995, p. 17). Eric Csapo (2007, p. 31) atualiza esses dados aos afirmar que desde 1980 ressurgiu o interesse em estabelecer a ligação entre drama e ritual junto aos helenistas: • 1971-1986 – Richard Green foi capaz de listar somente doze estudos sobre a origem do teatro grego no meio acadêmico anglo-saxão; • 1987-1995 – houve um aumento para cinquenta e três publicações; • 1995 – houve um acentuado aumento de publicação de literatura relacionando o ritual grego ao drama, a partir da teoria da New Ritualism da Escola de Cambridge.

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A partir dessa teoria, o pesquisador Eric Csapo afirma que, entre os atenienses, o drama é descrito no texto oficial como “coro para Dioniso” e era realizado após as orações e sacrifícios (CSAPO, 2007, p. 5) diante do ícone de madeira constrido na forma do deus. A tragédia grega e o drama satírico integram a narrativa mítica de Dioniso, veículo de disseminação do mito no mundo helenizado. O filosofo grego Aristóteles, na Poética 1448b, nos informa que o termo drama significa ato de fazer, atuar, agir, e a palavra não pertence ao dialeto ático, mas teria a sua origem com os dórios. Para os atenienses, diferentemente dos dórios, a palavra que designa ação, o ato de agir se concretiza no termo prattein, palavra da qual emerge os termos praxis e pragma/pragmatismo muito próximo do sentido de performance. Aristóteles ainda nos informa que, por essa razão, os dórios reclamam para si a invenção da tragédia e da comédia (Poética, 1448a). Para Mariana McDonald, nem a tragédia, nem a comédia parecem ser de fato uma invenção dos atenienses; as duas representações foram precedidas em regiões distintas, como o coro trágico na região de Sycion e o coro cômico representado pela comunidade dos dórios na região do Peloponeso e na Sicília. Para a peculiar instituição ateniense de dramas satíricos com ações heroicas e de homens vestidos de sátiros e silenos parecem, segundo a autora, que não foram trazidos para Atenas antes do final do VI a. C., provavelmente introduzidos por Pratinas de Phleious, uma região próxima de Argos (McDONALD, 2007, p. 21). Na produção do drama teatral em Atenas, o coro era a mais importante atuação do cidadão voluntário, e a legislação da pólis insMaria Regina Candido

tituía a liturgia denominada de corégia. O número de participantes voluntários era de cinquenta homens identificados como integrantes legítimos da comunidade de cidadãos aptos para integrar o dithyrambo ou o drama. Segundo Konrad H. Kinzl, no artigo The origins and early history of Attic tragedy (1980), a palavra dithyrambo é de origem grega e proveniente da Ásia Menor, cujos autores mais remotos seriam Arion de Methyna, Lasos de Hermione e Hypodikos de Chalkis (KINZL, 1980, p. 178). O termo dithyrambo, segundo Sir Arthur Pickard-Cambridge, já circularia entre os gregos do VII como nos aponta o fragmento de Archiloco de Paros, ao mencionar: “eu sei como entoar a música para o senhor Dioniso, um dithyrambo com o meu punho atrelado ao vinho”. O autor afirma que, no tempo de Arion de Methymna, o dithyrambo era uma simples composição literária e que o termo kyklios khoros está sempre relacionado à performance do dithyrambo (PICKARDCAMBRIDGE, 1962, p. 1). Na atualidade, questiona-se sobre a relação do termo kyklios khoros com o dithyrambo; a palavra pode ter sido usada na linguagem oficial visando à inscrição da apresentação do coral no teatro e não como termo equivalente a dithyrambo (CSAPO, 2007, p. 8). As demais referências estão em Píndaro e Platão, o filósofo e autor da República menciona no verso 329c que ao vencedor da disputa do dithyrambo cabia como premiação um boi e que Arion de Methymna teria inventado o gênero na corte do rei Periandro de Corinto. A referência a Arion está presente na poesia Elegia, de Sólon (frag. 30aw) e reporta que Arion de Methymna foi o primeiro a introduzir o drama da tragédia, como Sólon indicou em seu poema intitulado Elegia. Heródoto (História, I: 23) também menciona que Arion foi o primeiro a compor, nomear e ensinar o coro de dithyrambo. As citações deixam transparecer que existe uma estreita relação da característica rural do culto e a formação da tragédia ao relembrarmos que a região de Ikarion detém em sua narrativa mítica uma relação com o culto ao deus Dioniso, que revelou aos homens a cultura da uva e a produção do vinho. Para Aristóteles (Poética, 1449a), no ponto de vista técnico, a tragédia é uma espécie de dithyrambo dionisiaco (MARTIN, 1995, p. 18). Aristóteles acredita que a tragédia e a comédia têm por matriz uma forma de culto e hinos fálicos cantados e presididos por rituais de sacrifício aos deus Dioniso. Teatro Grego e Romano

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Para John Winkley, a história da performance da Dionisia Urbana foi marcada por três estágios: tragoidoi seria uma espécie de canto organizado por Thepis em 534 a. C. durante o período da tirania de Pisístratos. A premiação para o coro dos homens e dos meninos que competiam no dithyrambo foi adicionada no período da reforma constitucional de Clisthenes em 508 a. C. Os komoidoi que foram introduzidos na categoria de competição almejando a premiação em 486 a. C. O dithyrambo e o coro cômico seriam muito mais antigos que a sua oficialização no festival e a polis passou a fornecer financiamento e estrutura competitiva para uma antiga tradição (WINKLET, 1985, p. 40) festejada e realizada de forma diletante antes de ser subvencionada pela pólis. Acredito que cabe agora nos questionar: Afinal, o que seria um dithyrambo? A resposta a esta questão torna-se de difícil nos dias atuais diante do acentuado intervalo de tempo e do fato da palavra trazer em si o sentido de antiguidade. O termo está relacionado à emergência da pólis e ao processo de mudança na sua estrutura e organização política. Dithyrambo configura-se como um coro formado por um grupo de cinquenta homens e/ou jovens efebos que cantava nos rituais em honra à divindade relacionada ao cultivo do vinho. O termo – dy thyrambo –nos remete a narrativa mítica do duplo nascimento de Dioniso que foi gerado no ventre de Semele e depois nasceu das coxas de Zeus. A análise da palavra também nos possibilita associar a performance que envolve a marcação do ritmo, a sonoridade vocal, aos passos da dança. Nós estamos acostumados a pensar nesse gênero como literatura épica, lírica, satírica, porém, originalmente, o gênero era realizado através da oralidade acompanhado pela sonoridade vocal com acréscimo de instrumentos musicais e demarcado por passos de dança. A música coral era acompanhada por instrumentos musicais como a kithara ou phorminx, instrumentos adequados para acompanhar múltiplas vozes diante de ampla plateia alojada em lugares amplos e abertos. A lira era geralmente empregada para acompanhar o cantor solo em lugares pequenos e de pouco público. Para a celebração do dionisismo, o aulos duplo era o mais adequado devido ao seu forte timbre e ritmo frenético próprio da região do norte da Trácia e da Frígia acompanhado pelo tympano, tambores e krotala. Em relação ao ritmo do iambos, esse seria marcado por uma batida, acompanhada de sonoridade vocal baixa e passos marcados no mesmo lugar; dithyrambos seriam duas batidas e modulação vocal média com dois passos em círculo; triambos seria um ritmo de três marcações rápidas seguido de voz alta ou aguda Maria Regina Candido

com três passos de dança também rápidos. Arthur Pickard-Cambridge nos traz a citação de Cratinus fr.36 que deixa transparecer que extrair sons triamboi tornavam a musica odiosa (PICKARD-CAMBRIDGE, 1962, p. 8), ou seja, tornava o ritmo acelerado e desagradável. Os termos coro de meninos e coro de homens talvez fossem estas as designações, de uso oficial e popular, para esse tipo de performance. Quando o dithyrambo passou a integrar oficialmente as competições da Dionisia Urbana, os seus participantes foram divididos por categoria e idade: os meninos, os ageneioi e os homens. Lembrando que o termo ageneioi designa e significa jovem imberbe (WINKLEY, 1985, p. 42). Podemos afirmar que os movimentos selvagens do dithyrambos dionisiaco foram gradualmente domesticados em que a dança foi transformada em gênero musical acrescida de composição poética. A dança do coro foi perdendo o seu caráter orgiástico através da interseção de Arion, Lasos e Thespis. A remodelação resultou na redução do coro de cinquenta para vinte e quatro pessoas e depois para quinze integrantes, instituíram o dithyrambo agon em Atenas no qual um coreuta passou a dialogar musicalmente com o coro (KINZL, 1980, p. 183). Eric Csapo nos afirma que os fragmentos pré-aristotélicos, como IG II²2318 de aproximadamente 500 a.C., nos informam que já existia o coro para Dioniso e o coro para a tragédia, assim como a lista de vitoriosos no coro circular, na tragédia e na comédia. Outro fragmento menciona a lei ateniense que institui a procissão do coro de meninos seguido do coro dos homens (CSAPO, 2007, p. 12). Diante da pouca informação dos fragmentos provenientes das inscrições, devemos recorrer aos recursos da arqueologia cujos dados estratigráficos para a área do teatro de Dioniso em Atenas apontam para o período do final do VI século. Fato que levou diversos especialistas a considerar que a dramaturgia trágica e o teatro foram criação do processo democrático (CSAPO, 2007, p. 13). O período demarca o processo de reconfiguração do espaço físico de Atenas como a ação efetivada por Laso de Hermione, que direciona a procissão do dithyrambo para um lugar fixo que se tornara lugar para ver, o theatron com um espaço circular ao centro a orchestra que se designou lugar para dançar. Em síntese, grande parte dos helenistas consideram o dithyrambo como o precursor do teatro grego e que a tragédia deixa transparecer que pertence ao território Ático do VI séc. A demarcação do período levou a pesquisadora Jacqueline de Romilly (1973) a afirmar que Pisístratos é, em certo sentido, Dioniso, pois o tirano ateniense havia desenvolvido Teatro Grego e Romano

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o culto a essa divindade. Ele ergueu, no sopé da Acrópole, um templo a Dioniso de Eleutherio, e instituiu em sua honra as festas dionisíacas urbanas, que seriam aquelas tragédias (ROMILLY, 1998, p. 16). A autora complementa que os primórdios da formação teatral ficaram a cargo da aristocracia, pois dois eminentes magistrados eram designados como khoregos, ou seja, cidadãos de recursos que teriam a honra de selecionar, subvencionar e manter os integrantes do coro/ coreutas às próprias expensas (ROMILLY, 1998, p. 26). Os mesmos magistrados tinham por incumbência a escolha dos poetas beneficiados pelo financiamento da pólis. Entretanto, cabia aos poetas selecionados a tarefa de ensaiar o coro, pois os coreutas eram considerados o ponto de partida para uma performance vitoriosa. A questão foi trazida a debate pelo pesquisador Alain Martin, no artigo La Tragedie Attique de Thespis a Eschyle (1995), no qual questiona a relação entre Pisístratos e Dioniso. No artigo Teatro, Memória e Educação na Atenas Clássica (CANDIDO, 2005, p. 625-636), teci algumas considerações a respeito da possibilidade de novas abordagens. O pesquisador Alain Martin interage com as abordagem de Fr. Kolb (1977) e Konrad H. Kinzl (1980) ao situar o desenvolvimento do drama trágico na área de influência de Pisístratos (CANDIDO, 2005, p. 626). Segundo Thomas H. Carpenter, o pesquisador John Boardman argumenta que Héracles era o herói associado a Pisístratos, tanto que após o afastamento dos tiranicidas percebe-se um acentuado decréscimo no número de imagens em vasos cuja narrativa mítica remetia à figura de Héracles (CARPENTER,1997, p. 26). Konrad H. Kinzl considera que a base de apoio político de Pisistratos era a população urbana de poucos recursos, os remanescentes da área de influência da aristocracia rural (KINZL, 1980, p. 185). Alain Martin acrescenta que devemos iniciar a análise dos primórdios da tragédia grega conceituando o termo. A palavra grega tragos significa bode e oidia seria canto; teremos como definição o canto do bode em homenagem ao deus Dioniso. O animal tem sido representado em imagética dos vasos gregos como oferenda ao deus. Retomo a pesquisa de O. Szemerenyi, que considera a palavra tragoidia muito próxima à família do verbo hitita tarkuwai, que se traduz por dançar. O teatro trágico seria um espetáculo rural ritualizado com música e dança presente na região da Anatólia e na Jônia por volta do VIII e VII a.C., transmitida ao continente grego na região de Ikaros e Thorikos, proveniente da região de Mileto (MARTIN, 1995, p. 17). Para o autor, Maria Regina Candido

a imagem do bode não teria nenhuma relação com o deus Dioniso que se manifestava em êxtase ou enthusiasmo, mas com o ritual de passagem da infância para a adolescência do jovem cidadão participante do Ritual da Efebia (MARTIN, 1995, p. 18). John Winkley, no artigo The Ephebes' Song:tragoidia and Polis (1985), menciona que o ritual visava preparar o jovem ateniense para a guerra, que fazia parte da cultura dos helenos. O embate entre as poleis era regido por regras e normas que tinham por princípio a honra e a vergonha, princípios fundamentais no aprendizado dos jovens e futuros soldados. Cabia aos jovens ter conhecimento que no campo de batalha o soldado não devia fraquejar ou demonstrar medo do ataque surpresa ou da morte; o local da batalha era previamente determinado e era o resultado de uma resposta formal a um desafio; o embate podia durar dias sucessivos, entretanto, emboscadas e ataques surpresas efetivados à noite constituíam uma séria violação dos princípios de honra do homem grego (WINKLEY, 1985, p. 28). Aristóteles, na obra Constituição de Atenas (42.3), nos informa sobre a formação do jovem ao citar que uma vez congregado o grupo de efebos, esses, primeiramente fazem o percurso dos santuários e, a seguir encaminham-se para o Pireu para guardar a região em Muniquia e em Acte. Osefebos teriam dois treinadores e instrutores que ensinavam a combater como hoplita, a atirar com arco, a lançar dardo e catapulta. O sustento de cada preceptor era de uma dracma e de quatro óbolos para cada efebo. Após o período de um ano, eles retornavam ao centro cívico de Atenas, e, em assembleia realizada no espaço físico de teatro, demonstravam as manobras militares aprendidas perante os demais integrantes da polis. A citação de Aristóteles gerou a dúvida sobre a relação entre dithyrambo e o teatro, ou seja, entre o coro dos meninos e a formação dos efebos. O coro do dithyrambo formado por homens e meninos, a perfomance era de dança circular, enquanto os ageneioi ou tragoidoi moviam em formação linear. Os integrantes do coro ficavam ordenados em três colunas com quatro ou cinco fileiras, podendo totalizar de doze a quinze jovens que, marchando firmemente, entravam na orquestra enfileirados. Embora a orquestra fosse circular para a apresentação do dithyrambo como kyklios choros, os tragoidoi entravam em formação retangular em ordem unida e com movimentos precisos da formação hoplítica. Em Atenas, as informações convergem para a afirmação que a apresentação da performance da efebia militar ocorria no teatro de Dioniso. Teatro Grego e Romano

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Sob o ponto de vista cívico as pesquisas de Fr. Kolb e Konrad H. Kinzl apontam que a história da tragédia se inscreve no processo gradual de formação do exercício do poder político como deixa transparecer o mais remoto espaço de teatro na região de Thorikos e de Ikarion. A peculiaridade do sua construção retangular ratifica a abordagem de Dioniso está relacionado ao exercício e à prática militar como rito de iniciação dos jovens efebos em período anterior às reformas de Clístenes. John J. Winkler nos afirma que a performance no dithyrambo era designada para duas categorias de idade, ou seja, os homens maduros e os jovens rapazes cuja participação era marcada pela tragoidoi, como a primeira performance sob a direção de Thespis em 534 a.C. durante a tirania de Pisístratos. A premiação para o melhor coro de homens e de jovens rapazes que executaram o dithyrambo se insere no período da reforma territorial de Clístenes (WINKLER, 1985, p. 41). Para o autor, o tragoidoi era destinado aos efebos cujo movimento ocorria em formação retangular e o dithyrambo tinha os passos de dança realizados de forma circular cujo resultado é a perfomance teatral que passamos a conhecer no período clássico ateniense. DOCUMENTAÇÃO ARISTOTELES. El Arte Poetica.(grego-espanhol) Madrid: EspasaCalpe, 1979 ARISTOTLE. Polítics. Ed. bilingüe. Trad. H. Rackham. Cambridge: The Loeb Classical Library, 1990. _____. Rhétorique. Trad. Médéric Dufour. Paris: Les Bellles Lettres, 1991. _____. Metafísica. Trad. Valentin Garcia. Madrid: Gredos, 1998. HERÓDOTUS. History. Ed. bilingüe. Trad. A. D. Godley. London: Willian Heinemann, vol. 1 (1990); vol. 2 (1995); vol. 3 (1994); vol. 4 (1981). PLATÃO. República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fund. Caloustre Gulbekian , 1993. ____. Gorgias. Lisboa: Ed. 70, 1991. ____. The Laws. Trad. R.G. Bury. London: William Heinemann, 2 vols., 1984. 130

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Maria Regina Candido

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Maria Regina Candido

Parte II O Teatro Romano

Apresentação

Claudia Beltrão da Rosa Nossos poetas nada deixaram que não experimentassem, nem foi pequeno o louvor que mereceram os que, ousando abandonar os vestígios gregos, celebraram os feitos domésticos ora criando [as fábulas] praetextae ora as togatae. (HORÁCIO, Arte Poética, 285-88)1

O termo theatrum é uma clara latinização do grego theatron, mantendo o significado central de um lugar de onde se vê, já fixado no sentido de um lugar para assistir a performances dramáticas. O termo, a partir do século I a.C., passou a designar, também, os edifícios nos quais tais performances ocorriam, como em nossos dias, e o drama antigo, a partir de um longo processo de apropriações, abandonos, ressignificações e redescobertas, é um dos principais componentes da tradição cultural ocidental. Na dramaturgia moderna, comédia e tragédia ainda são referidas a gêneros e padrões estabelecidos entre cerca dos séculos VI a.C. e III d.C. O teatro romano, contudo, foi alvo de acusações reiteradas de ser uma “mera cópia” do teatro grego, este sim inventivo, criativo e paradigmático. Essa mesma acusação se estendeu à arte romana em geral e, durante muito tempo, as artes plásticas e cênicas romanas foram vistas, quando não como “meras cópias”, como exclusivamente dependentes de modelos gregos. É certo que tal visão não era desprovida de fundamentos, e o poeta autor de nossa epígrafe teve sua frase: “A nil intemptatum nostri liquere poetae/nec nimium meruere decus uestigia Graeca/ ausi deserere et celebrare domestica facta/uel qui praetextas quel qui docuere togatas (HORÁCIO, Ars P. 285-88). 1

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Grécia cativa capturou seu feroz captor, e trouxe as artes para o agreste Lácio”,2 retirada de seu contexto original, tornando-se uma máxima que comprovava o caráter secundário da arte romana em geral. No caso específico do teatro, o orador Cícero parecia fornecer a prova cabal quando, numa passagem de seu tratado Dos termos extremos dos bens e dos males (De finibus bonorum et malorum), declara que os dramaturgos romanos copiavam os originais gregos “palavra por palavra” (ad uerbum). Muitos estudiosos se contentaram com esta frase, e classificaram o teatro romano como “cópia” ou “simples tradução” do teatro grego. Nada melhor, porém, do que retomar a “fonte” dos mal-entendidos e deixá-la falar: Há neles [naqueles que desprezam os escritos latinos], contudo, algo que considero estranho: por que os assuntos mais graves lhes agradam em latim, enquanto as pequenas peças do teatro em latim, traduzidas palavra por palavra do grego, são para eles uma leitura desagradável? Poderia haver quem fosse tão inimigo do nome romano para desprezar a Medeia de Ênio ou o Antíope de Pacúvio sob o pretexto de que as peças lhe agradam em grego, mas lhe são intoleráveis em latim? Então, diria ele, seria necessário ler o Synefebo de Cecílio ou o Andria de Terêncio, e não uma ou outra dessas peças em Menandro? Estou longe de pensar como aqueles que, malgrado toda a perfeição da Electra de Sófocles, evitam ler a má tradução de Atílio, de quem Licínio disse ser um “escritor de ferro”; apesar disso, é um escritor, e devemos lê-lo, pois a completa ignorância de nossos poetas é sinal tanto de uma total preguiça quanto de um gosto exageradamente delicado. De minha parte, creio que ninguém é suficientemente culto se ignora nossa literatura. O trecho: Mais ao céu que no bosque,3 o lemos tão bem quanto no grego, e não queremos que as ideias de Platão sobre a virtude e a felicidade sejam lidas em latim? E se não fazemos traduzir literalmente, mas temos o cuidado de reter o que foi expresso no original somado àquilo que aprovamos, acrescentando nossas próprias opiniões e nosso estilo de composição? Que razão eles podem oferecer para preferir Graecia capta ferum victorem cepit, et artes intulit agresti Latio (HORÁCIO, Ep. 2, 1, 156). 3 Trecho inicial da Medeia de Ênio. 2

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Apresentação - Parte 2

o que é brilhantemente escrito em latim, e não literalmente traduzido do grego? (CÍCERO, De Fin. I, 2, 4-6)4

Podemos realmente concluir que Cícero afirmou que os dramaturgos romanos “copiavam” os gregos? Cremos que a declaração de Cícero insiste que há mais, muito mais, nas versões latinas de peças gregas: há aquilo que chama “nossas opiniões e nosso estilo de composição” (nostrum iudicium et nostrum scribendi ordinem), indicando, no caso da comédia e da tragédia traduzidas de originais gregos, a inclusão de elementos romanos, criando o que chamaríamos de versões. Esse desmerecimento do teatro romano tinha, também, fundamento num desconhecimento do fenômeno teatral para além dos gêneros gregos tragédia e comédia, ou numa redução do teatro a esses dois gêneros. Mas, mesmo na tragédia e na comédia, a prática romana diferiu bastante da ateniense.5 Dramaturgos romanos que adotaram, com entusiasmo, a tragédia e a comédia, adaptavam seus originais gregos, quando não compunham obras originais com temas gregos. In quibus hoc primum est in quo admirer, cur in grauissimis rebus non delectet eos sermo patrius, cum iidem fabellas Latinas ad uerbum e Graecis expressas non inuiti legant. Quis enim tam inimicus paene nomini Romano est, qui Ennii Medeam aut Antiopam Pacuuii spernat aut reiciat, quod se iisdem Euripidis fabulis delectari dicat, Latinas litteras oderit? Synephebos ego, inquit, potius Caecilii aut Andriam Terentii quam utramque Menandri legam? A quibus tantum dissentio, ut cum Sophocles uel optime scripserit Electram, tamen male conuersam Atilii mihi legendam putem, de quo Licinius: “Ferrum scriptorem”, uerum, opinor, scriptorem tamen, ut legendus sit. Rudem enim esse omnino in nostri poetis aut inertissimae segnitiae est aut fastidi delicatissimi. Mihi quidem nulli satis eruditi uidentur, quibus nostra ignota sunt. An “Vtinam ne in nemore...” nihilo mminus legimus quam hoc idem Graecum, quae autem de bene beateque uiuendo a Platone disputata sunt, haec explicari non placebit Latine? Quid, si nos non interpretum fungimur munere, sed tuemur ea, quae dicta sunt ab iis quos probamus eisque nostrum iudicium et nostrum scribendi ordinem adiungimus, quid habent, cur Graeca anteponant iis quae et splendide dicta sint neque sint conversa de Graecis? (CÍCERO, De Fin, 1.2.4-6). 5 Num exemplo simples, se, nas tragédias romanas, há um coro em cena, não há uma orchestra, o que demanda, de imediato, alterações cênicas e métricas, para além das diferenças linguísticas. A própria arquitetura do teatro romano é bastante distinta do teatro grego. Por exemplo: se os assentos eram dispostos em círculo, como nos teatros gregos, o palco romano criava uma sensação de fechamento da cena mais próximo ao efeito do “palco italiano” moderno; havia diferenças arquitetônicas entre os teatros nas cidades imperiais, mas pode-se perceber um esquema geral do teatro romano, apresentado no artigo de Gilvan Ventura da Silva nesta coletânea. 4

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O contexto romano da performance diferia significativamente da prática grega. Em Roma, representações cênicas compunham o programa de vários ludi – festivais religiosos na essência – de abril a novembro. Não havia competição entre dramaturgos, como em Atenas; as peças eram escolhidas pelo edil ou outro magistrado responsável pelos jogos, e os dramaturgos eram pagos se suas peças fossem selecionadas. Além dos ludi, representações cênicas eram incluídas em ocasiões como triunfos e funerais, financiadas por seus promotores, e iam além das tragédias e das comédias. O teatro romano formou-se a partir de diversos elementos itálicos (etruscos, latinos, úmbrios e outros) e das cidades gregas da Itália. A Península Itálica, desde pelo menos o século VIII a.C., conheceu e encenou performances, o que demanda pesquisas, e a própria Roma contava com diversos elementos cênicos em seus ritos religiosos6 séculos antes que a primeira tragédia fosse encenada na urbs, no século III a.C., apesar de, até os últimos anos da República, performances dramáticas de todo tipo serem encenadas em palcos temporários. O primeiro teatro permanente deveu-se a Pompeu, o Grande, em cerca de 60 a.C., e outros logo se seguiram a este em Roma, mas as ocasiões nas quais a encenação de peças já eram numerosas e comuns, para audiências cada vez maiores, sob o patrocínio de políticos romanos há muitos séculos. As formas itálicas do teatro se multiplicaram com as conquistas romanas: tragédia, comédia, farsas Atellanae, competições musicais e retóricas de vários tipos, pantomimas, recitações, declamações etc., mas o estudo da dramaturgia latina depende de poucas peças supérstites e de fragmentos, e a observação de detalhes das performances depende de anedotas ou referências incidentais em outros textos. Há comentários sobre o teatro em textos de arquitetos, oradores, juristas, gramáticos e outros sobre o que ocorria em cena, sobre os atores etc. Os vestígios físicos de teatros estão por toda a parte nas cidades imperiais romanas; há também pinturas e mosaicos com temas relativos ao teatro, para além de epigrafias que nos ajudam a compor corpora documentais para o estudo do fenômeno teatral romano.7 Como as encenações que compunham a dança dos sacerdotes sálios. Alguns elementos, contudo, perderam-se, como é o caso da música cênica, para a qual, se se registra sua presença no palco, e seus instrumentos e músicos, a música propriamente dita é desconhecida. 6 7

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Apresentação - Parte 2

Falar em teatro romano implica pensar os espetáculos num sentido mais amplo do que geralmente o fazemos hoje. Observar as representações cênicas no contexto dos principais espetáculos cívicos (corridas de cavalos, de carros, lutas – armadas ou não – entre seres humanos, animais etc.), cada qual com suas especificidades e desenvolvimentos particulares; analisar o sucesso do Império Romano tanto para absorver e ressignificar, quanto para orientar as escolhas das populações das cidades imperiais, e outros temas que demandam pesquisas pontuais e de conjunto. No Brasil, os estudos sobre o teatro romano vêm conseguindo, paulatinamente, ultrapassar as restrições tradicionais do estudo da dramaturgia, mas o estudo dos espetáculos cênicos e do fenômeno teatral ainda é incipiente, demandando maior investimento em pesquisas que dediquem maior atenção às relações entre a documentação textual e a cultura material, entre a dramaturgia e o palco, entre teatro e sociedade, temas que nos possibilitam levantar mais problemas do que aventar soluções. Os artigos presentes nesta seção não têm como objetivo apresentar as origens e o desenvolvimento das artes cênicas em Roma e nas cidades imperiais, tampouco apresentar um levantamento exaustivo da dramaturgia romana. Longe disso, e as ausências são óbvias. Esta seção reúne um grupo de especialistas em História e Cultura Romana, em torno de uma preocupação comum: perceber e analisar, a partir de casos pontuais, a presença marcante e central do teatro na vida social e cultural das populações de Roma e de municípios imperiais, numa abordagem que escapa do “romanocentrismo” e lança mão de documentos diversos. Os artigos de Sônia Regina Rebel de Araújo e de Claudia Beltrão da Rosa têm como objeto uma mesma obra dramática, trazendo duas abordagens distintas e complementares da Aulularia, de Plauto. No primeiro, Ideologia Escravista em Aulularia de Plauto, Sonia Rebel discute as representações dramatúrgicas das relações ambíguas entre senhores e escravos, destacando a ideologia escravista romana. Já em Religião e Teatro na Roma Republicana: notas sobre a Aulularia de Plauto, Claudia Beltrão tem como objeto as pouco conhecidas crenças e práticas religiosas domésticas romanas, das quais a dramaturgia é excelente fonte documental. A riqueza do teatro plautino assoma na polissemia de suas cenas e personagens e nas ricas possibilidades de pesquisa que abre como via de acesso à cultura romana republicana. Teatro Grego e Romano

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Em Identidade Cultural e Teatro: um estudo de caso de um mosaico afro-romano, Regina Maria da Cunha Bustamante lida com o complexo tema das identidades e alteridades culturais, problematizando suas articulações a partir da análise de um mosaico de uma domus norte-africana, no qual o teatro desponta como signum da cultura imperial romana, enquanto José d’Encarnação, em Da Epigrafia Teatral no Portugal Romano, apresenta inscrições epigráficas como media para o estudo de um elemento característico da vida urbana em cidades imperiais romanas na província da Lusitânia, e seu pertencimento cultural ao imperium. O teatro, desempenhando um papel fundamental na identificação das elites locais e das populações urbanas à ordem romana, foi um tema de destaque na obra de autores cristãos, geralmente sob a forma da invectiva. No artigo O Teatro é uma Festa: controle dos prazeres na visão de Tertuliano, Ana Teresa Marques Gonçalves analisa a obra De Spectaculis, do cristão Tertuliano, pérola de invectiva contra os espetáculos de toda natureza, conclamando os cristãos a renunciarem aos prazeres do mundo, texto que assoma como uma das principais fontes para o estudo do teatro romano, a despeito das intenções de seu autor. A presença física dos teatros nas cidades romanas é uma preocupação central de Gilvan Ventura da Silva, em Ordem e Desordem na Cidade Antiga: o teatro entre a tradição clássica e a cristã. A partir da observação da centralidade do teatro na cidade antiga, como “microcosmo” da cultura imperial, o artigo analisa o discurso do pregador cristão João Crisóstomo contra a presença de cristãos no teatro e contra a existência de teatros na “cidade cristã”. Os textos e os objetos da cultura material que chegaram até nós revelam a popularidade e o fascínio do teatro em Roma e nas cidades imperiais. Mesmo moralistas cristãos sucumbiam ao seu poder de atração e, apesar de suas vituperações – excelentes fontes, quando devidamente depuradas, para o estudo do teatro pela riqueza de detalhes que apresentam – performances teatrais continuaram a ser realizadas após o século IV d.C. subsidiadas por cidadãos ricos, por magistrados e imperadores. No século V d.C, o antigo Teatro de Pompeu foi restaurado, e Claudiano, poeta da corte do imperador Honório, faz referências a representações cênicas tradicionais (Pan. Man. Theod. 323-30), bem como os novos governantes ostrogodos e vândalos estimulavam os espetáculos populares e as performances 140

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Apresentação - Parte 2

teatrais. O fechamento dos teatros por Justiniano, em 526 d.C., não parece ter sido permanente ou, pelo menos, eficaz. Em 692 d.C., o Concílio de Trullo, reunido em Constantinopla sob Justiniano II, contudo, baniu todas as formas de representação teatral, fechando, definitivamente, os teatros antigos, num momento em que “todos os homens temiam seu poder” (omnes formidant homines eius ualentiam. Nev. Danae. fr. 1).

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Ideologia escravista em Aulularia, de Plauto

Sônia Regina Rebel de Araújo Este capítulo tem como escopo discutir aspectos das relações entre amos e escravos na República Romana do século III a.C., enfocando a ideologia escravista que informava essas relações, tomando a peça Aulularia de Plauto como locus da análise. Pretendo demonstrar que as fontes literárias, mesmo ficcionais, podem iluminar aspectos do social, inclusive a situação social dos escravos em relação a seus amos. Igualmente é possível perceber nessas fontes a ambiguidade dos escravos vistos como seres humanos cheios de defeitos, mas, ao mesmo tempo, capazes de lealdade ao amo. “Pensar a humanidade do escravo era filosoficamente problemático”.1A ambiguidade do pensamento consiste em que o amo sabia que o escravo era ao mesmo tempo um ser humano e uma mercadoria, “e a este respeito, viver com escravos significava viver em contradição”.2 Alguns autores enfatizam o fato de escravo ser mercadoria, outros a humanidade do escravo, porque a instituição era contraditória. Ao analisar esta fonte para perceber o teor das relações entre amos e escravos, verifico os limites possíveis da visão dos letrados e senhores no mundo romano sobre os escravos, pois nela aparecem tanto o mandonismo dos amos, como um discurso da acomodação dos escravos a sua situação, e também aspectos de antagonismo entre amos e escravos. O conceito de ideologia com que trabalho neste texto foi formulado por R. Williams que, entre várias acepções marxistas deste Ambiguidade: Finley (1991); Ideologia escravista e defeitos dos escravos: Garnsey (1996). 2 Escravidão como instituição contraditória: Davis (1968) e Fitzgerald (2000). 1

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conceito, a definiu também como “o processo de produção do sentido” (WILLIAMS, 1979, p. 60). Tal concepção de ideologia é especialmente interessante para análise da literatura produzida no mundo romano, pois centra sua preocupação no significado de um texto, como ele é produzido e como chega a significar algo. Igualmente importantes para minha análise são as ideias de Lucien Godmann (1970) sobre ideologia e classes sociais. Seu método estruturalista genético acerca da Sociologia da Literatura estabelece premissas relevantes para os estudos socioliterários e as utilizo para aplicá-las à análise da ideologia escravista no mundo romano. De acordo com este método, a criação literária deriva, ou melhor, origina-se das estruturas mentais que organizam tanto a consciência real de um grupo social quanto o universo imaginário que o artista cria. Por tal motivo, as estruturas mentais são sociais, coletivas, e não são frutos apenas de um artista individual. A consciência de classe de um dado autor é chamada por Goldmann de “estrutura englobante”, e seria a classe social o verdadeiro autor coletivo da obra literária. As estruturas mentais e sociais é que conferem à obra artística sua unidade, constituindo esta última um elemento fundamental da qualidade estética da obra. Por outro lado, tais estruturas sociomentais são não-conscientes, exigindo uma pesquisa sociológica que as explique (GODMANN, 1970, p. 128). Os métodos que este enfoque pressupõe consistem em buscar, através do recorte do objeto, a apreensão do significado da obra e para tal é preciso verificar como a estrutura descoberta no texto tem um caráter funcional e constitui um comportamento significativo. Pressupõe também que “explicação” e “compreensão” não são categorias opostas e cumprem tarefas diferentes e complementares, visto que a compreensão atuaria no nível imanente da obra, suas estruturas internas, enquanto a explicação se preocuparia com a sua inserção numa estrutura mais vasta, que tanto pode ser o gênero a que a obra pertence, quanto a “estrutura englobante”, a consciência de classe do autor. Exemplifico com uma obra de Plauto. “Nós não necessitamos de escravas, exceto para ter alguém para tecer, moer o trigo, cortar lenha, fiar sua roupa, limpar a casa, para a gente bater” (vapulo) (PLAUTO, Mercator).3 Ou seja, o tema da escravidão citado na obra impõe a abordagem do assunto, ligando escravidão feminina à exploração do trabalho doméstico e a 144

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Apud Fitzgerald (2000, p. 32-33). Sônia Regina Rebel de Araújo

castigos físicos. A consciência de classe do autor apresenta-se neste trecho como uma estrutura mais geral, mas o emprego do verbo vapulo, bater, fustigar, mostra que a análise do vocabulário, no nível da compreensão da obra, é fundamental para o entendimento da obra como um todo (GOLDMANN, 1976, p. 212). Pretendo, então, analisar esta peça de Plauto mediante a articulação de um estudo das estruturas internas da obra com algo mais geral, a ideologia escravista do mundo romano de que a obra plautina é um exemplo. Alguns dados biográficos de Plauto Titus Maccus Plauto viveu entre os anos 254 e 184 a.C. Nasceu em Sarsina, fronteira da Úmbria, e proveio de família modesta. Foi o mais antigo dos comediógrafos latinos. São-lhe atribuídas mais de cento e trinta peças, mas só nos chegaram vinte e uma com autoria comprovada por Varrão. A influência dos autores gregos da “comédia nova”, Menandro e, sobretudo, Dífilo, é certa e, por representarem o modo de vida dos gregos, são conhecidas como fabulae palliatae. No entanto, em suas peças, Plauto introduz elementos da vida romana, do cotidiano das classes populares, o que lhes confere uma originalidade especial, resultante também do fato de ele frequentar os meios populares romanos (MCCARTHY, 2000). O enredo da maioria de suas peças gira em torno dos engodos e trapaças de um escravo às vezes destinado a unir amantes apaixonados. Entre seus personagens estão, além de escravos ardilosos, pais estúpidos, soldados falastrões, rufiões gananciosos. Dentre as mais famosas peças estão Captivi, Aulularia, Amphitryo, Pseudolus, Asinaria, Casina. Em suas peças os diálogos são muito importantes e ocupam boa parte do texto, cerca de um terço. Os dois terços restantes eram consagrados à cantica, a parte cantada. Esta peça narra as peripécias de um velho pobre e avarento, Euclião, que tinha como única riqueza uma panela cheia de ouro e cuja filha Fedra tinha sido desonrada por Licônidas, um jovem vizinho. Euclião tenta por todas as maneiras evitar que se descubra o pote de ouro em seu poder, escondendo-o em vários esconderijos, até que, ao esconder o ouro no bosque de Silvano,4 é roubado por Estróbilo, Sobre o significado religioso desta peça e particularmente do esconderijo do pote de ouro no bosque de Silvano, ver neste livro o artigo a cargo de Claudia 4

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escravo de Licônidas. Aqui se destaca a figura do escravo ardiloso que negocia com os amos a posse da panela em troca da própria liberdade. A moça, que tinha sido prometida por seu pai a Megadoro, um velho rico, tio do jovem, acaba por se casar com Licônidas, e seu pai Euclião, feliz com o casamento da filha e com a recuperação do ouro, doa o conteúdo da panela ao jovem casal. Há dois diálogos muito significativos dessa comédia de erros, em ambos Euclião é interlocutor. O primeiro entre Euclião e Megadoro, em que cada personagem fala a respeito do assunto que mais o interessa, o ouro para Euclião e a mão da moça no caso de Megadoro. Entre Euclião e Licônidas acontece um dos momentos mais cômicos, pois a extensão do diálogo e dos enganos em relação ao assunto da conversa – novamente, Euclião pensa que se está a mencionar o ouro e Licônidas tenta contar o crime que cometeu contra Fedra e fala em reparar o erro casando-se com ela. A importância da peça para estudar ideologia escravista é enorme. A presença de escravos – Estáfila, a escrava doméstica de Euclião, vários escravos cozinheiros, mas, sobretudo, o ardiloso Estróbilo, que conquista com esperteza a sua liberdade – invoca, por um lado, os defeitos dos escravos – curiosidade, roubar – por outro, o mandonismo dos amos, a repressão em forma de castigos rotineiros ou ameaças de castigo e até a morte (crux, crematio). Acomodação e Resistência de Escravos na República Romana: o exemplo de Aulularia Em primeiro lugar, abordo as premissas de Finley (1991, p. 97-128) acerca da escravidão na Antiguidade para referenciar minhas reflexões sobre a instituição escravista no mundo romano. O Autor parte de duas considerações de caráter mais geral: a de que a sorte do escravo dependeria das disposições do senhor para com os escravos e se este é um bom ou mau amo; a ambiguidade do escravo como ser humano e ao mesmo tempo propriedade, objeto, mercadoria, é um excelente ponto de partida teórico para explicar a escravidão no mundo antigo. A seguir, Finley acentua que os escravos pagariam com o corpo pelas ofensas cometidas pelo fato de não serem livres, e também

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Beltrão da Rosa, Religião e Teatro na Roma Republicana: Notas sobre a Aulularia de Plauto. Sônia Regina Rebel de Araújo

por serem desenraizados, privados do direito de família, violências decorrentes do fato primordial de serem propriedades. A prática da tortura, longe de ser irracional, torna-se corriqueira naquela sociedade, pois era fundamental distinguir os homens livres dos não-livres. A despersonalização dos escravos se daria pela mudança constante de seus nomes, pelas possibilidades de venda como mercadorias, e por serem chamados de “garotos” – pais em grego, puer em latim – sua idade real não importava aos amos. Finalmente, os escravos não tinham personalidade jurídica, eram desprovidos de direitos, seu casamento era um prêmio àqueles de bom comportamento e, de qualquer modo, não tinha valor legal, o que dava poderosas vantagens de manipulação dos casais e dos filhos por parte dos amos. As implicações destas premissas para a análise da situação dos escravos e sua situação real de vida, mesmo que se parta de fontes primárias de cunho ficcional, são enormes. Quanto à ideologia dos letrados romanos, por exemplo, observem-se os resultados do fato de se os considerar como coisas e como seres humanos: os escravos poderiam ser companheiros de trabalho do amo, realizando tarefas diversas; poderiam se voltar com frequência para o amo como uma referência, aceitando certos valores dos elementos das camadas dominantes, o que explicaria o sentimento de fidelidade em relação aos amos.5 A visão ambígua acerca de alguns fâmulos – amas, pedagogos, sobretudo médicos – aparece nos escritos de letrados gregos e romanos, vistos por uns com sentimentalismo (refiro-me aos epigramas funerários de Marcial) mas condenados pelos moralistas – Plutarco pode ser um bom exemplo – que criticavam o fato dos pais entregarem os filhos, futuros cidadãos, aos cuidados de “bárbaros incultos”. A este respeito, Finley (1991, p. 122) indica como elemento da ideologia dos letrados, o “racismo”, “resultado lógico da equação escravo-estrangeiro, termo no qual insisto, apesar da ausência de um estigma de cor, a despeito da variedade de povos, e a despeito da frequência das manumissões e suas consequências peculiares”. Ainda sobre ideologia escravista, Peter Garnsey (1996, p. 3552) discorre acerca dos defeitos dos escravos serem uma justificativa para a degradação cometida pelos senhores. Assim, os escravos eram mostrados como ladrões, sempre aptos a roubar coisas de seus donos, o que justificava a recomendação de se trancar os objetos de valor, Um bom exemplo constante na comédia plautina Os Cativos é a relação de fidelidade entre o escravo Tíndaro e seu amo Filócrates. 5

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como seres curiosos, sempre escondidos atrás das portas para ouvir as conversas dos amos, como glutões e luxuriosos.6 Ao lado do poder do amo sobre os escravos, a resistência destes sempre existiu de forma mais ou menos organizada. Não devemos vêlos, contudo, como vítimas indefesas de seus sádicos senhores, nem também como rebeldes de tempo integral, sempre desejosos de fugir ou atacar os senhores. Os escravos acomodavam-se, a maior parte do tempo, para sobreviver e resistiam ao domínio do amo de maneiras variadas, dependendo das circunstâncias. A rebelião de escravos de forma organizada foi rara na Antiguidade e ocorreu quando a conjuntura foi favorável. Em minha análise, os dois aspectos estão presentes: os escravos do mundo romano, embora nunca tenham aceitado a escravidão, revoltaram-se quando possível, acomodando-se quando não era viável resistir, provavelmente a maior parte do tempo. Mas ressalto, neste texto, a resistência cotidiana do escravo, no caso da peça de Plauto, o emprego da astúcia, do engodo e do roubo para obter a liberdade. Passo então a analisar a peça Aulularia de Plauto para dar conta das ideias sobre acomodação e resistência enfocando, sobretudo, o mandonismo dos amos sobre os escravos e a manipulação dos amos pelo escravo esperto, ardiloso. Quero demonstrar que as relações sociais entre amos e escravos eram de antagonismo, mas que nem sempre o poder do amo, teoricamente total sobre o escravo, se exercia plenamente havendo brechas para a manipulação do escravo. Como estabeleceu W. Fitzgerald (2008, p. 8) O que eu quero enfatizar aqui é que a coabitação entre escravos e o amo gerava um conjunto de problemas sobre o status moral do escravo que não poderia ser definitivamente resolvido e que são mais frutíferas as experiências dos amos e dos escravos em termos de semelhantes conflitos do que em termos de atitudes rigidamente estabelecidas especialmente quando alguém está estabelecendo [a análise a partir da literatura].

Sobre a escravidão como metáfora para relações sociais ver as origens dessa forma de pensar localizada na obra de Aristóteles, mas muito presente no mundo romano como se verá na análise da peça de Plauto. Ver P. Garnsey (1996). “Justifications of Slavery”, p. 35-52; e “Slavery as metaphor”, p. 220-243. 6

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Em uma condição extrema, escravidão provê aos livres uma metáfora e uma medida para uma variedade de relações. Aristóteles mapeou relações políticas, familiares e sociais em termos de domínio e subordinação, traçando uma série de analogias e distinções entre as diferentes relações (FITZGERALD, 2000, p. 74).

Vejamos como a fonte escolhida demonstra o teor das relações entre amos e escravos. Em primeiro lugar, na cena 1, Euclião maltrata a escrava Estáfila, alegando que sua curiosidade resultaria em mexericos e consequentemente na perda da panela com ouro que ele escondia na lareira. Ele a insulta e ameaça. É uma ocorrência típica do mandonismo dos amos e também da violência cotidiana sobre os escravos: Olha esta malvada, como resmunga lá consigo. Por Hércules, ainda te vou arrancar os olhos minha sem vergonha, para que não possas espiar o que eu vou fazer. Vai lá para trás! Mais! (...) Bom, aí podes parar. Mas (...) olha que se sais deste lugar (...) ou se olhares para trás sem que eu te dê licença, então (...) mando-te logo para a cruz, para te ensinar. [à parte] Do que eu tenho um medo terrível é de que ela não me tenha caçado alguma palavra por descuido meu e não lhe tenha chegado o cheiro do lugar em que escondo o ouro; porque esta malvada até parece que tem olhos na nuca (Aul. 1,1).

Este excerto contém o núcleo da ideologia escravista que atribui aos defeitos dos escravos as desgraças que podem acometer os amos e que, para corrigi-los, os meios empregados são repressivos, podendo chegar à eliminação física na cruz. Como o assunto principal da peça é o ouro contido na panela que Euclião temia acima de tudo ser roubado, as menções a roubos perpetrados por escravos são numerosas, como se pode conferir no Ato II, no diálogo entre dois escravos de Megadoro, Congrião e Estróbilo, quando este último diz: Aqui em casa vamos ter muita confusão, são muitos os escravos, e há mobília, há ouro, há vestuários e há vasos de prata. Se desaparecer alguma coisa (e, pelo que sei de ti, é-te muito fácil não tocar nas coisas quando não as tens pela frente) vão logo dizer: ‘Foram os cozinheiros que roubaram. Prendam-nos, atem-nos, batam-lhes, atirem-nos à cova!’ Ora, a ti não te vai acontecer nada disto; lá [na casa de Euclião] não há nada para roubar (Aul. Ato II). Teatro Grego e Romano

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Reforço, então, a coerência do pensamento de Plauto em relação aos escravos, pois dois fatos merecem nossa atenção: afirmação de que o escravo sempre que tem oportunidade rouba o amo, e a repressão, a coerção física como meio de coibir, corrigir, os defeitos dos escravos, particularmente roubopdiu7. Como já foi dito acima, a acomodação dos escravos à situação de inferioridade igualmente ocorre na comédia plautina. É um recurso estilístico de o autor colocar na boca do próprio escravo o discurso da conveniência da acomodação, mesmo a naturalização da condição de escravo.8 Em Aulularia vê-se Estróbilo, o esperto escravo de Licônidas, dizer para si mesmo: É próprio de o bom escravo fazer aquilo que estou realizando e comportar-se de maneira que não tenham demora nem obstáculo as ordens de seu amo. O escravo que deseja servir bem o seu senhor trata de fazer primeiro tudo que diz respeito ao amo e depois o que a si próprio diz respeito. (...) acho que do mesmo modo deve o escravo ser jangada para seu amo generoso, para sustentá-lo à tona d’água e não deixar que vá ao fundo. Deve conhecer seu amo a ponto de saberem os olhos o que deseja o espírito; (...) Quem o fizer, se livrará das censuras e chicote e não polirá com sua diligência grilheta alguma (Aul. 4,1).

Novamente, a menção aos onipresentes castigos físicos – chicote, grilhetas – mostra que a escravidão como modo de produção era um trabalho compulsório que implicava para dar dividendos aos amos a coerção física. Mas o destaque aqui é para outra faceta da escravidão, a existência do escravo leal ao amo generoso, o “bom escravo”.9 Também em Plauto, Asinária há menção às costas vergastadas, chicoteadas, dos escravos, como de resto, em várias fontes literárias, não só na obra plautina. 8 Sobretudo em Os Cativos, quando o capataz de Hegião pondera junto aos prisioneiros de guerra ora escravizados que é necessário acomodar-se à “desgraça da escravidão (...) tem de se tornar digno tudo que de indigno faz o dono” (Cativos, 2, 195-205). 9 A questão do “bom escravo”, do escravo leal ao amo, refere-se a um assunto delicado e controvertido: pode um escravo ter ética? Sim, pois suas qualidades morais de “bom escravo” são referidas não a ele como pessoa, mas na sua relação com o amo; se ele bota os interesses do amo acima dos seus, se sem7

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Para W. Fitzgerald, o corpo vergastado do escravo lembra ao livre sua própria vulnerabilidade. As imagens do escravo punido são como espelho do mundo: adjetivos como bubulinus, ulmeus, ferreus, são acrescentados ao vocabulário da cidadania e da política (FITZGERALD, 2000, p. 40). Plauto traça paralelo entre soldado e o escravo inteligente, esperto. Fizgerald analisa o vocabulário plautino e descobre coisas interessantes, por exemplo, uma similaridade entre as costas calosas do escravo e a esperteza. A esperteza do escravo intratável e astucioso é um sinônimo da dureza da pele, impermeabilizada para punições, o que faz com que seja constantemente chicoteado, açoitado; Experiência e impermeabilidade são ambas produtos da raiva do senhor (FITZGERALD, 2000, p. 41).10

Estróbilo consegue roubar o ouro de Euclião quando este, depois de retirar a panela do templo da Fidelidade, a esconde no bosque de Silvano, fora dos limites da cidade, para onde o seguira Estróbilo que, ao descobrir o esconderijo, se apodera do ouro e o oferece ao seu amo Licônidas em troca de liberdade. Mas há um jogo de palavras nessa cena do diálogo ente Licônidas e Estróbilo em que este espertamente testa a disposição de seu amo para libertá-lo antes de confessar que realmente tem o ouro da panela de Euclião em seu poder. Depois de ameaçá-lo com chicotes e correntes, Licônidas se dispõe a ouvir as ponderações de Estróbilo em que este negocia sua liberdade e evita, com palavras, os castigos. Se me torturares até a morte, verás quais vão ser as consequências: primeiro, morrer-te um escravo; depois, não conseguires o que desejas. Mas se me tentasses com o doce prêmio da liberdade, já sem dúvida alguma terias alcançado o que queres. A todos a natureza jurou livres e todos por natureza pensam na liberdade.11 O pior de todos os males, a pre fica ao seu lado, se não foge, então é um bom escravo. Ver: Finley (1991), capítulo 3 principalmente. 10 Ver observações sobre palavras de raiz latina colleo, de onde vêm caloso e esperteza. Eles mesmos, os açoites, são a recompensa do escravo esperto = callidus. 11 Novamente vê-se aqui uma passagem idêntica àquela de Os Cativos, em que o capataz conversando com Hegião, seu amo, fala na liberdade como natuTeatro Grego e Romano

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pior de todas as desgraças é a escravidão. O que Júpiter faz antes de tudo àqueles que odeia é torná-los escravos (Aul. 5).

Se Plauto aceita, e até justifica a escravidão, como de resto os demais letrados do mundo romano, por outro lado observe-se a crítica à concepção que naturaliza este sistema. Para ele, a escravidão é “doença”, “desgraça”, pelas indignidades e violências que causa. O fato de ele constantemente mencionar castigos físicos como inerentes às relações entre amos e escravos, a meu ver, deriva do próprio fato social que é a existência de textos literários. Em outras palavras, a verossimilhança é inerente ao texto literário. Lucien Goldmann, ao discorrer sobre as origens do texto literário, ao explicar a autoria coletiva dos textos, mostra que por trás de um autor individualizado há uma consciência de classe, esta é a origem fundamental da obra. Se para Goldmann as estruturas mentais são sociais, se a classe social, sujeito coletivo portador de ideologia, então se pode explicar de forma rigorosa a árdua questão da autoria da obra literária, e mais, explicar as relações entre o ficcional e a realidade social. Os pressupostos de Goldmann são úteis para sepultar a anacrônica teoria da “obra de arte como reflexo do social”, ao dar uma explicação satisfatória para o surgimento de uma obra literária de um autor. Para ele, o universo mental do autor tem uma coerência que se manifesta de forma inconsciente nos escritos, o que confere unidade e qualidade à obra. E preconiza como método, por exemplo, que o investigador leia a obra completa do autor em questão para se ter uma ideia de seu universo mental. O seu método “estruturalista genético”; “estruturalista” porque o Marxismo adotado por ele é um estruturalismo, e “genético” porque, tal como Lukács, ele se preocupa com as classes sociais e com a consciência de classes para entender a origem das obras literárias.12 Em termos de método, Goldmann insiste que não há contradição entre dois tipos de abordagens, a compreensiva e a explicativa. Ao contrário, elas se complementam. A primeira trata de explicar as

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ral ao ser humano e que a escravidão é uma “desgraça”, uma “doença” que acomete os homens, mas não é natural. É bem significativo observar-se esta crítica, na obra de Plauto como um todo, à ideia aristotélica da “escravidão natural”. 12 Duas obras de L. Goldmann (1970; 1976) são importantes para aprofundar estas questões. Nesta última, ver especialmente a “Conclusão”, em que ele explica didaticamente o “Método Estruturalista Genético” em Literatura (GOLDMANN, 1976, p. 203-220). Sônia Regina Rebel de Araújo

estruturas internas da obra: vocabulário, metáforas as divisões do texto; por “explicação” o Autor se refere à necessidade que o investigador tem de inserir a obra num contexto mais geral, seja o das classes sociais, seja a categoria, o gênero a que a obra pertence, o contexto histórico. Esses passos são necessários para se entender o significado da obra, pois esta é a tarefa primordial do analista ou crítico. Assim, em minha própria abordagem da obra plautina, seguindo Goldmann, analiso o vocabulário da escravidão, as passagens da peça, com vistas a entender e explicar o teor ideológico nela contido. Neste sentido, cito uma frase de Finley que é do maior valor para todos que estudam obras literárias que têm como objeto a escravidão, seja ou não relativa à Antiguidade: “É o tema da escravidão que implica a abordagem”.13 Em outras palavras: Plauto tem como assunto a escravidão nesta e em outras peças; então, os temas da repressão, dos abusos contra os escravos, de seus defeitos morais, dos ardis, são obrigatoriamente apresentados. É neste sentido que emprego a premissa da “autoria coletiva” derivada da consciência de classe de que fala Goldmann. Sobre a resistência dos escravos à situação de dominação sobre eles exercida, cito um trecho em que Estróbilo critica o agir dos amos em relação à sua propriedade. Lembro ainda que esta peça é da época em que Roma se lançara à expansão sobre o Mediterrâneo, em que as riquezas afluíam para Roma em grande quantidade, através das guerras. Aqui se trata de uma crítica à avareza dos senhores.14 (...) O nosso tempo produziu donos demasiadamente avarentos. Costumamos chamá-los Harpagões, Harpias e Tântalos, pobres no meio das maiores riquezas e sedentos no seio do vasto oceano. Não lhes chegam bens nenhuns, nem os de Midas, nem os de Creso. (...) Os donos tratam indignamente os seus escravos; por seu lado; por seu lado, os escravos cumprem mal as ordens de seus donos. Assim nenhum deles faz o que seria justo. Os velhos avarentos fecham a sete chaves os escritórios, as despensas, os celeiros. O que eles mal querem conceder a seus filhos legítimos, os escravos ladravazes, espertos e ladinos o pilham, mesmo que Finley (1991, p. 97). Vários analistas mostram a influência desta peça de Plauto sobre a obra de Shakespeare e de Molière. Neste último caso, a referência óbvia é à peça O Avarento. 13 14

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esteja fechado com as tais sete chaves. A furto lho tiram, devoram-no. Nem a cruz os faz confessar as centenas de roubos. Assim os escravos se vingam, divertindo-se e rindo, de sua escravidão. Concluo, portanto, que a liberdade faz os escravos fiéis (Aul. 5).

Nesta cena, o monólogo de Estróbilo, o escravo esperto, ladino, traduz a maneira de pensar do próprio Plauto acerca da escravidão e das relações entre amos e escravos. À época da escrita de suas peças, como já mencionei, havia a expansão romana no Mediterrâneo e um número impressionante de escravos foi trazido para a Itália e a Sicília. Não por acaso, esta época também testemunhou a ocorrência de numerosas, pequenas, revoltas de escravos – na Apúlia, em Roma, no Sul da Itália – que antecederam as grandes revoltas servis do século II a.C. na Sicília, pois o número expressivo de escravos de primeira geração, ao lado de outros fatores,15 trouxe necessariamente conflitos nos locais que os receberam. O que Plauto denuncia nesta peça, especialmente no trecho acima, é a modificação no comportamento dos senhores: tornaram-se mais gananciosos, agressivos, desejosos de lucro fácil mesmo à custa das vidas miseráveis dos escravos. Além da denúncia, este texto traz um programa para o relacionamento entre amos e escravos. O chicote cotidiano e a crucificação, castigo tremendo destinado aos escravos rebeldes e criminosos, não coibiam o roubo e as demais atitudes negativas dos escravos. Estes resistiam como podiam: roubando, enganando, mas também usando o riso e a ironia como armas contra o amo. Esta passagem é muito importante porque trata da fala de um escravo inteligente que quer obter a liberdade através do roubo, do engano, mas manipulando a ganância de seu amo, o desejo deste de possuir o ouro da panela de Euclião. A ironia é uma arma do próprio Plauto, já que ele mesmo aceitava a escravidão como fato, não tinha nem de longe ideias abolicionistas, o que aliás era impensável na Antiguidade. Quando Estróblio diz que “Concluo, portanto, que a liberdade faz os escravos fiéis”, ele quer dizer que não existiam escravos fiéis, já que a liberdade no mundo romano trazia a cidadania para o liberto. Portanto, a escravidão era sinônimo de crimes, de vinganças e violências de parte a parte, de amos e escravos, e que a avareza dos senhores era um fator agravante da situação já bastante explosiva na sociedade romana. 154

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Bradley (1989). Sônia Regina Rebel de Araújo

CONCLUSÃO Euclião é convencido a desfazer o trato de casamento se sua filha com Megadoro e casar Fedra com Licônidas, que pede perdão por tê-la desonrado e propõe o casamento como reparação. Euclião transformase de velho avarento em generoso, pela oferta da panela de ouro aos jovens nubentes. O deus Lar, que apresenta toda a situação no Prólogo da peça, em que critica os sucessivos donos daquela casa por não lhe fazerem as honras devidas, é que dispôs para que Euclião não usufruísse do ouro em seu poder, mas sim sua filha, pois esta lhe fazia todas as honras, cultuava-o, ofertava-lhe incenso e vinho, fazia-lhe preces. O deus Lar informa que fará uma trama para que o vizinho Megadoro peça a mão da moça em casamento, “e isto pra que mais depressa se case com aquele que a seduziu” (Prólogo). Neste sentido, a religião doméstica é um tema central na peça, assunto nobre, mas que se desenvolverá a contento a partir dos engodos de um escravo ardiloso. DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL PLAUTE. Comédies. Tome I: Amphitryon; Asinaria; Aulularia. Texte établi et traduit par A. Ernout. 3e tirage. Langues français, latin XLIX - 412 p. (1932). PLATUS. Amphitryon. The Comedy of Asses. The Pot of Gold. The Two Bacchises. The Captives. Edited and translated by Wolfgang de Mello. Harvard, Loeb Classical Library. Jan. 2011. PLAUTO - TERÊNCIO. A Comédia Latina. Trad. Agostinho da Silva. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRADLEY, K. R Slavery and Society at Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1994; Spanish translation 1998; excerpted In: CHODOROW, S; SORTOR, M. The Other Side of Western Civilization: Readings in Everyday Life: Volume I The Ancient World to the Reformation5 [Texas: Fort Worth, 2000, p. 53-66]) ______. Slavery and Rebellion in the Roman World, 140 BC-70 BC. Bloomington: Indiana University Press; London: Batsford, 1989; updated reprint 1998. Teatro Grego e Romano

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Religião e Teatro na Roma Repúblicana: Notas sobre a Aulularia, de Plauto1

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Claudia Beltrão da Rosa

...omnia quae cernerent deorum esse plena (CÍCERO. Leg., 2, 26).

A religião romana vem atraindo um número cada vez maior de estudiosos. A postura tradicional, que via uma religião estática e conservadora, não mais se sustenta, e nos últimos trinta anos sua imagem assoma como um dos fundamentos dinâmicos da urbs, ampliando o olhar dos historiadores para aspectos da experiência romana até então obscurecidos ou mesmo desconhecidos. Nas últimas décadas, ao lado das contribuições teóricas dos estudos antropológicos, pesquisas arqueológicas recentes trazem novas discussões e novas possibilidades de abordagens, somadas à reavaliação da documentação textual. Do mesmo modo, estudiosos das artes cênicas, especialmente no que tange às comédias de Plauto e Terêncio, vêm propondo hipóteses e leituras sobre o teatro romano que renovam as possibilidades do diálogo interdisciplinar na construção do conhecimento sobre o mundo antigo, e o período tradicionalmente conhecido como República romana é um período muito fértil, em todos os sentidos, para o estudo das instituições e dos fenômenos religiosos romanos. Uma primeira versão deste estudo foi apresentada, sob o título Elementos da religião doméstica romana na Aulularia de Plauto, no Encontro Internacional sobre Religião, Rito e Magia, promovido pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA-UERJ), em 2010. Agradecemos às oportunas observações e sugestões dos colegas antiquistas Norma Musco Mendes, Sonia Regina Rebel de Araújo e Gilvan Ventura da Silva. 1

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A religião inseria-se em todos os aspectos da vida individual e coletiva na urbs. Sabemos, por meio de vestígios arqueológicos, literários e outros, que a religião romana sempre esteve ligada demaneira profunda ao quotidiano da urbs, em suas festas públicas e privadas, em eventos políticos e na vida familiar. Trata-se de um tecido de relações complexas, expresso em discursos e rituais cujos vestígios nos permitem uma via de acesso à sua compreensão (BEARD; NORTH; PRICE, v. 1, 1998; BELTRÃO, 2006). Nossa principal preocupação é com as áreas da vida religiosa no período republicano sobre a qual temos uma quantidade maior de informação de um tipo ou de outro – rituais, festivais, instituições, edifícios religiosos, santuários etc., e dentre os possíveis documentos para a pesquisa sobre a religião romana está o texto dramático. Tendo como premissa a ideia de que o sistema religioso romano era o elemento que fundamentava a ordem moral e política da urbs, fomentando a coesão social, favorecendo a formação de um espírito coletivo nos membros da comunidade, proporcionando o sentido e conhecimento do passado, projetando o futuro e fundando a identidade coletiva romana, a análise das peças teatrais ganha, atualmente, um novo vigor no que tange à investigação da vida religiosa romana no período republicano.2

C. Geertz cunhou uma definição de religião que mantém elementos do funcionalismo simbólico de Durkheim (a religião como um ato social coletivo) e de teses de M. Weber sobre o significado da religião como um sistema para o ordenamento do mundo, sem tanger questões de crenças tão comumente vinculadas às definições de religião. Desse modo, uma definição universal e categórica de religião nos parece não apenas impossível quanto indesejável, falseadora das características diversas e múltiplas das distintas religiões, não apenas porque os conteúdos, práticas e crenças religiosas são histórica e culturalmente condicionados, mas também porque qualquer definição é, em si, um produto do processo discursivo, com suas especificações históricas e culturais. Sua definição abrangente é, portanto, útil para nossos propósitos: “... uma religião é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas” (GEERTZ, 2008, p. 67). 2

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Chegaram até nós inúmeras imagens de cenas de rituais3 e outras práticas religiosas romanas, mas pouquíssimos documentos que explicitem as fórmulas vocalizadas e orações e a própria vivacidade da vida religiosa romana. Certamente há uma maior dificuldade para pintores e escultores de representar momentos do ritual em que os sons são o elemento preponderante, momentos visualmente muito mais ambíguos do que outras cenas da ação ritual. Mas todas as ações rituais eram acompanhadas de sons, articulados ou não. O teatro pode ser um meio para recuperarmos, em parte, algo das “vozes” dos rituais, que as imagens silenciosas ocultam, uma via de acesso às palavras rituais e sua performance. A palavra, a fórmula ritual, eram elementos cruciais no ritual (PLÍNIO. HN, 28,10), assim como as duplicações e respostas dos assistentes e/ou dos espectadores, e o cuidado com as palavras e os termos utilizados era fundamental, especialmente quando era utilizado o vocabulário arcaico em rituais tradicionais, cuja compreensão há muito fora esquecida (cf. QUINTILIANO. Inst. 1.6.49: sobre o Hino a Marte) para a realização correta dos ritos. O teatro romano reflete a importância do ritual. De certo modo, o próprio drama é um ritual, e representações dramáticas faziam parte de festivais cívicos em Roma pelo menos desde 240 a.C. (CÍCERO. Brut, 72).4 Desse modo, acreditamos que a Seguiremos, aqui, uma definição proposta por Stanley Tambiah que nos parece profícua para nossos propósitos: “Ritual é um sistema socialmente constituído de comunicação simbólica. É constituído de sequências de palavras e atos padronizadas e ordenadas, frequentemente expressas em múltiplos media, cujo conteúdo e arranjo são caracterizados em vários graus pela formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fixidez) e redundância (repetição)” (TAMBIAH, 1985, p. 128). 4 A primeira performance dramática, uma tragédia de L. Andrônico, ocorreu no programa dos ludi Romani. Aos poucos, os ludi Plebeii e os festivais de Apolo e da Magna Mater adotaram representações cênicas em seus programas rituais e, ao longo do período republicano, as performances dramáticas mantiveram sua ligação com os festivais públicos e com as instituições religiosas. A partir do século III a.C., há registros de vários ludi scaenici, em honra de diversas divindades: Apolo, Flora, Magna Mater, Júpiter Optimus Maximus e outros. Estudiosos como E. Gruen (1996) e M. Beard; M. Crawford (1985) defendem a tese do desenvolvimento da literatura e das artes cênicas romanas, muitas vezes explicitamente baseados em modelos helênicos, e dos ludi scaenici em particular, como uma das inovações religiosas do século III a.C., provavelmente em decorrência das interações culturais intensificadas com cidades de cultura helênica ou helenizada, sobretudo após as intervenções militares ro3

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análise da dramaturgia romana pode, especialmente, aprofundar nossa compreensão das práticas religiosas romanas. Teatro, ritual e ordem sagrada O teatro é, na verdade, aquela prática que calcula o olhar para as coisas serem vistas: se eu colocar o espetáculo aqui, o espectador verá tal coisa; se o colocar noutro lugar, ele não a verá... (BARTHES, 1982, p. 195).

Há muito o drama5 é utilizado como documentação em pesquisas sobre o mundo antigo, sendo atualmente consenso entre os estudiosos da religião romana que as performances dramáticas expressam, enquanto representações da vida humana, a importância e a complexidade dos rituais e de elementos da vida religiosa da urbs. Acreditamos que a pesquisa histórica deve buscar as interações entre as peças dramáticas e outras formas de ação social, a fim de discernir como uma apreciação das ações (drama) no palco enriquece a compreensão das ações sociais, pois a encenação torna-se significativa no interior das tradições e práticas sociais. Palavras, gestos e convenções religiosas têm um grande impacto quando encenados no palco, sobrelevando a sensibilidade dos espectadores a tais ações. O drama e o palco são culturalmente significantes, e podem ser vistos como – e envolvidos por – um ato cultural maior, no qual se insere a religio romana.

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manas no Mediterrâneo Oriental. Na própria Itália, Nápoles, Siracusa e outras cidades de origem helênica estavam então na órbita romana. 5 Seguimos a definição aristotélica de drama como ação (Poet. 1450a 20-23). O teatro é mimético, no sentido aristotélico da mimèsis tès praxèos, isto é, a estilização da ação. E, para o filósofo, “imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em imitar” (Poet. 4,13). Aristóteles analisa a mimèsis segundo três critérios distintos: os meios, os objetos e o modo de representação (Poet. 46a10-48b3), acentuando o drama: a) do ponto de vista dos meios, especialmente sobre os aspectos não verbais, como os gestos, a mímica, etc., observando a expressão ou o caráter “conativo” da linguagem; b) do ponto de vista dos objetos, observando seu lugar, posição e sentido no desenvolvimento do drama, ampliando seus aspectos expressivos e afetivos; e c) do ponto de vista do modo, a representação no sentido “dramático” (cf. PAVIS, 2007: s.v. dramático). Claudia Beltrão da Rosa

Certamente, há sempre algum nível de abstração e de estilização, maior ou menor, no teatro, tanto no drama quanto na cena. Uma encenação, invariavelmente, seleciona, abstrai e organiza dados da realidade quotidiana, simplificando-a e reduzindo-a ao essencial, criando uma unidade em meio à multiplicidade das coisas e do mundo social, geometrizando os códigos e as convenções de uma determinada sociedade. O teatro, portanto, é o local da simulação, uma simulação que, segundo R. P. Martin (2007, p. 38), ...inevitavelmente nos conduz ao estudo da história, da arqueologia e da semântica, as especialidades acadêmicas que buscam visualizar os contornos sociais precisos de uma antiga cultura através da identificação de seus significados primários e seus campos de força.

Performances dramáticas realizadas em rituais religiosos não são exclusividade grega nem romana, e a conexão entre ritual e drama vem chamando a atenção de estudiosos há muito tempo (cf. TURNER, 1990). O drama é ação, assim como o ritual; como este, é realizado por atores especializados, com papéis definidos, e a analogia entre teatro e ritual religioso é notória: o sacrificante – geralmente o líder do grupo –, os assistentes, os papeis estereotipados, o coro, e cria um tempo e um espaço separados da vida quotidiana. Os rituais romanos eram distintos no tempo e no espaço, gerando comportamentos ritualizados com alto nível de formalização. Nascimentos, mortes, vitórias, dedicações de templos, festivais etc., todos tinham suas características particulares e performances próprias, e apresentavam uma combinação estilizada de palavras, música, dança e elementos visuais, contendo claros elementos dramáticos, a despeito de seu caráter não teatral. Os rituais envolviam toda a comunidade, com vários atores representando a comunidade, cada qual desempenhando seu papel. Assim como as performances dramáticas, envolviam atores/agentes e uma audiência; trata-se de um momento separado no tempo e no espaço, com movimentos, gestos palavras e objetos convencionais, mesmo que num solilóquio (um monólogo teatral, e.g.). Em ambos os casos, as ações são realizadas de modo a despertar sentimentos e a fazer crer, a partir dos elementos postos em cena, criando um arranjo espacial único e especializando formas arquitetônicas distintas: recintos sagrados, santuários, o palco, o teatro. Sua estrutura é também semelhante: simples e clara, com início, meio e fim, de modo Teatro Grego e Romano

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fácil de memorizar e reproduzir. Uma performance, ritual ou teatral, não só diz ou faz algo; ela o realiza diante dos olhos de sua audiência, assim como é percebida em relação a outras performances que a antecederam, em comportamentos ritualizados com alto nível de formalização, estilizando as ações e apresentando uma “versão” que atua, pela ilusão,6 pelo efeito de real,7 no sentido da complementação e potencialização das formas pelas quais a ordem social é vivida e percebida. São ambos, ritual religioso e performance dramática, expressões coletivas que nos revelam muito sobre a vida comunitária, as instituições, as crenças, sentimentos e modos de ação dos grupos sociais. Performance e ritual inserem-se no que podemos definir como atos comunicativos direcionados a uma audiência, e acreditamos não ser equivocado ver a cultura romana republicana como performática, seja nos comitia, no Senado, no forum romanum, na oratória, nos sacrifícios e procissões, etc., e a performance é um componente-chave da identidade social dos romanos – ao menos dos romanos da elite – em suas preocupações com o arranjo, a seleção e a atenção aos detalhes, à audiência, à estilização expressiva de gestos, palavras, vestuário etc.8 E os diversos elementos dos rituais religiosos e das representações cênicas falam também de conteúdos políticos; sua finalidade é a manutenção do status quo romano, público ou doméstico, a manutenção da ordem político-social e a proteção contra ameaças a esta ordem. No espaço ritual e no espaço cênico, tais conteúdos são “encarnados” à vista do Segundo Pavis, a ilusão é uma situação sine qua non no teatro, e o público é conivente, pois a ilusão está ligada ao efeito de real produzido pelo palco; ela se baseia no reconhecimento psicológico e ideológico de fenômenos já familiares ao espectador (PAVIS, 2007: s.v. ilusão). 7 Efeito de real é um termo cunhado por R. Barthes (1968) designando os dispositivos que obscurecem o mais possível o uso de técnicas, equipamentos, materiais cênicos diversos. Segundo Pavis: “Além do prazer da identificação para o espectador, o efeito de real tranquiliza sobre o mundo representado, que corresponde perfeitamente aos esquemas ideológicos que temos dele, esquemas que se dão como naturais e universais” (PAVIS, 2007: s.v. efeito de real). Na comédia, contudo, naturalmente alusiva às práticas sociais de seu tempo e lugar e tendendo à autoparódia, vemos uma frequência maior de efeitos teatrais, que podem ser definidos em oposição ao efeito de real, sem perder seu poder persuasivo. Para o estudo dos efeitos teatrais especificamente nas comédias de Plauto, veja-se: Cardoso (2010). 8 Tivemos a oportunidade de analisar algo desse caráter performático da cultura romana, especialmente no que tange à formação e à performance do orador romano (BELTRÃO, 2007). 6

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público, seus gestos, suas vozes, suas expressões, suas vestes estão no centro do processo de significação. Podemos, portanto, perguntar, com Patrice Pavis (2007, p. 124): A que ‘ideologização’ são submetidos o texto dramático e a representação? O texto – seja ele dramático ou espetacular – só se compreende em sua intertextualidade, principalmente em relação às formações discursivas e ideológicas de uma época ou de um corpus de textos. Trata-se de imaginar a relação do texto dramático e espetacular com o ‘contexto social’, isto é, com outros textos e discursos mantidos sobre o real por uma sociedade.

Ressalte-se que as representações teatrais eram parte do programa de festivais religiosos públicos, eram rituais sancionados, “oficiais”, que expressavam a identidade religiosa e cívica, criando e consolidando os laços entre divindades, seres humanos, lugares e tempos. Desse modo, podemos depreender a representação da ordem social e da hierarquia no palco romano. Não apenas a institucionalização das práticas religiosas, mas também sua representação e atualização protegiam a ordem pública, naturalizando-a diante do corpo social. A representação romana de mundo distinguia diversas áreas de competências particulares, abrangendo todo o mundo. De acordo com essa imago mundi, as divindades tinham áreas, competências e lugares particulares, e o mundo era racionalizado segundo tal visão. Os próprios indivíduos tinham seus deuses particulares, um Genius para cada homem e uma Iuno para cada mulher (cf. PLAUTO. Captiui, 290), e lidar com o sagrado (sacer), realizar o sacrifício, demandava qualidades e conhecimentos específicos dos atores do culto (CÍCERO. Leg. 2, 24), comportamentos, gestos, palavras e sons apropriados. E as “versões” teatrais dos rituais religiosos os estilizam, encenando a cidade e a ordem social, interpretando-a e, mais ainda, disseminando-a, tornando-a uma ordem sagrada.9 Acreditamos que mais do que concernindo a sentimentos ou percepções individuais, a religião é relacionada e diz respeito à sociedade e à manutenção da ordem social. William Paden, e.g., argumenta que, para além da interação com poderes sobrenaturais – por exemplo, as divindades – as religiões funcionam “a partir de um constante monitoramento e negociação das fronteiras de sua própria integridade” (PADEN, 1996, p. 4). E um meio para a manutenção dessa integridade como uma dimensão crucial da religiosidade é conceituar 9

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Os Jogos Cênicos, ludi scaenici,10 se atraíam a “boa vontade” das divindades, atraíam também o interesse de sua audiência humana, potencializando, por seus efeitos miméticos, seus elementos parateatrais e patéticos, o efeito do ritual (REHM, 2007, p. 185ss). Uma de nossas premissas é considerar as comédias11 de Plauto e de Terêncio não como simples “adaptações” de comédias gregas, mas como representações cênicas complexas, encenadas e fazendo apelo a audiências concretas em Roma. As peças, e.g., devem ser analisadas em seu contexto, e não isoladamente. Por exemplo, o Sticchus foi encenado nos ludi Plebeii (200 a.C.); o Pseudolus, na inauguração do templo da Magna

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a religião como uma “ordem sagrada”, caracterizada por uma constante luta entre a manutenção de determinada ordem e sua potencial violação, na qual o “sagrado” é visto como uma entidade ou fenômeno sobre-humano que se “manifesta” no mundo, sacralizando a própria ordem social. Como Paden sublinha, a sacralidade não é construída como um “além”, mas como o modo pelo qual uma ordem específica é propagada, consolidada ou mantida intacta (PADEN, 1996, p. 5). 10 Segundo T. Lívio, os ludi scaenici tiveram sua origem nas pantomimas com acompanhamento musical, realizadas por atores etruscos (ludiones), em 364 a.C., como tentativa de encerrar uma peste; ameaçados por uma epidemia, em 364 a.C., os romanos realizaram um lectisternium (um banquete no qual os deuses participam como comensais). Não conseguindo expurgar o prodígio, apelaram para dançarinos etruscos (ludiones) (AVC, 7, 2.3. ss; cf. também Horácio, Epist. 2, 1, 139-55). Os ludi scaenici teriam, para Lívio, uma função análoga à dos lectisternia: alimentar os deuses, desenvolvendo-se uma tradição de pequenas performances dramáticas nos rituais romanos, o que foi incrementado em 240 a.C., com a inovação de Lívio Andrônico. Talvez T. Lívio se referisse a tradições itálicas, como as fabulae Atellanae, ou os dramas phlyax do sul da Itália, mas não podemos ter certeza, tratando-se de um tema que demanda novas pesquisas. 11 Seguimos a definição de P. Pavis para a comédia: “Tradicionalmente, definese a comédia por três critérios que a opõem à tragédia: suas personagens são de condição modesta, seu desenlace é feliz e sua finalidade é provocar o riso no espectador. (...) ela se dedica à realidade quotidiana e prosaica das pessoas comuns (...). O riso do espectador é ora de cumplicidade, ora de superioridade: ele o protege contra a angústia trágica, propiciando-lhe uma espécie de ‘anestesia afetiva’. O público se sente protegido pela imbecilidade ou pela doença da personagem cômica; ele reage, por um sentimento de superioridade, aos mecanismos do exagero, contraste ou surpresa” (PAVIS, 2007: s.v. comédia). Claudia Beltrão da Rosa

Mater (191 a.C.); o Phormio, de Terêncio, nos ludi Romani (161 a.C.) e seu Adelphoe, nos funerais de L. Emílio Paulo (160 a.C.). Percebemos, então, que as peças eram encenadas, principalmente, em ocasiões e festividades de grande importância religiosa e política na Roma republicana. Um risco, contudo, é superestimar o efeito dessas peças sobre suas audiências, apesar de sabermos que houve um incremento crescente de performances teatrais, por exemplo, nos ludi Romani (a partir de 240 a.C.), acrescentando-se os ludi Apollinari (a partir de 212 a.C.), os ludi Plebeii (desde pelo menos 200 a.C.), as Cerealia (antes de 201 a.C.), as Megalensia (desde 194 a.C.) e as Floralia (desde ca. 210, tornados anuais em 173 a.C.) (cf. GRUEN, 1992).12 Religio domestica e ordem sagrada: notas sobre a Aulularia Ne quis miretur qui sim, paucis eloquar. ego Lar sum familiaris ex hac familia unde exeuntem me aspexistis. hanc domum iam multos annos est cum possideo et colo patri auoque iam huius qui nunc hic habet (PLAUTO. Aul. 1-5).

Em sua organização e delimitação, na constituição de seus sacerdócios, de seu calendário e de seus espaços sagrados, a religio romana, a religião publica de Roma, absorveu muitas crenças, objetos, fenômenos, ritos e lugares designados priuata,13 especialmente devido à marcante E. Gruen, por exemplo, trouxe uma discussão interessante sobre vários ludi, as diversas instâncias de realização, entre 216 e 179 a.C., e outras ocasiões nas quais ludi scaenici ocorreram neste período. 13 Uma pista para a distinção entre sacra publica e sacra priuata é fornecida por Festo: Os ritos públicos são aqueles realizados a expensas públicas em benefício do povo (...) em contraste com os ritos privados que são realizados em benefício de indivíduos, das famílias, dos descendentes (Publica sacra, quae publico sumptu pro populo fiunt quaeque pro montibus pagis curis sacellis; at priuata, quae pro dingulis hominibus familiis gentibus fiunt. Fest. 350L). Sacra priuata, como podemos depreender, não eram apenas os ritos da religio domestica, mas tudo o que não se inseria na definição de publica sacra, ou seja, os ritos realizados em benefício do povo romano (pro populo), por oficiantes sancionados e financiados pelo tesouro público, com participação ativa de magistrados e sacerdotes, diante da grande massa do público assistente, que geralmente participava – no todo ou em parte – do banquete após o sacrifício. A própria definição de sacrum é 12

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presença das gentes na formação da urbs e de seu império. Legalmente distintos do culto público, o vasto universo dos sacra priuata não apenas era permeado pelos conteúdos e pela organização do culto público, mas também tinha proeminência social similar ou correlata. Os altares domésticos, por exemplo, e suas dedicationes eram um signo pelo qual a lei romana reconhecia uma domus, e também o que distinguia uma casa enquanto “edifício” e enquanto um “lar” (cf. ULPIANO. Dig. 25.3.1.20).14 A despeito das definições jurídicas – sempre epigonais em relação à experiência vivida – depreende-se pela documentação que os romanos viam seus altares particulares, seus deuses domésticos e suas dedicationes como sendo tão eficazes e importantes como aqueles considerados, oficialmente, publica (cf. CÍCERO. Att. 12.18). Para a análise da religio domestica,15 a literatura e o teatro nos trazem imagens variadas: os cultos domésticos, por exemplo, são presenças constantes na urbs e nas cidades imperiais, e escritores romanos e gregos declaravam a antiguidade desses cultos – e a dificuldade de defini-los. As práticas quotidianas da vida religiosa romana, contudo, recebem pouco detalhamento na documentação disponível, sendo mais frequente o registro das celebrações públicas.16 De fato, o princi-

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reservada para coisas e lugares consagrados oficialmente pelos pontífices (cf. GAIO. Inst. 2,5; ULPIANO. Dig. I, 8.9.). Podemos assumir que a definição de sacra – ao menos juridicamente – seguia os mesmos passos que definiam o ritual público, ou seja, um objeto ou lugar que se tornava sagrado através de um ato ritual específico – a consecratio – que devia ser autorizado pelo Senado, presidido por sacerdotes e magistrados e promovido com fundos públicos. 14 Cf. Bodel (2008), que analisa a ação de Cícero, ao partir para o exílio, removendo sua estátua doméstica favorita de Minerva de sua casa no Palatino para “a de seu pai” (o templo de Júpiter Capitolino). Cícero parece ter vinculado Júpiter Optimus Maximus, deus cívico por excelência, a um culto familiar, além de ter dedicado sua pequena Minerva como “salvadora da cidade”, vinculando os poderes apotropaicos da deusa aos seus esforços, como cônsul, contra Catilina e seus seguidores (cf. CÍCERO. Leg. 2, 17; PLUTARCO. Cic. 31). 15 Dentre os sacra priuata, os cultos da religio domestica eram aqueles realizados pela familia romana, em seu benefício. 16 Certamente, estamos mais bem informados sobre as práticas rituais públicas, mas é possível que a distinção entre práticas públicas e práticas privadas seja mais uma preocupação acadêmica moderna do que uma preocupação romana. Os princípios e os meios de comunicação com as divindades, por meio do ritual, parecem-nos similares, distinguindo-se por seus atores (magistrados, Claudia Beltrão da Rosa

pal obstáculo para o estudo da religião doméstica é sua inconsistência e ubiquidade. Uma imensa quantidade de referências imagéticas e escultóricas a divindades romanas em contextos domésticos chegaram até nós, mas a linha que demarca esses vestígios, permitindo distinguir com clareza o que era um objeto de culto, e o que era um objeto decorativo é obscura. Rigorosamente falando, pinturas e objetos que apresentam representações de divindades são indícios inseguros para um estudo da religião doméstica propriamente dita, e por religio domestica entendo as práticas rituais realizadas pelos habitantes da domus, incluindo a familia romana.17 Os Lares familiares, os Penates18 e o Genius19 doméstico – sejam pintados ou representados de modo tridimensional – são as únicas figuras que podemos assumir como objetos religiosos stricto sensu nas casas da elite romana. O material iconográfico restante é por demais equívoco, como demonstram as pesquisas da arqueóloga Annemarie Kaufmann-Heinimann (2007). Paul Zanker (1999), do mesmo modo, tratando de pinturas com representações divinas em contextos domésticos destaca três pontos: a) as imagens são polissêmicas, e sua interpretação pode variar; b) as imagens propiciavam uma ocasião para que os espectadores as interpretassem, demonstrando um alto nível cultural; c) a despeito da variação de temas, as pinturas costumam não estar vinculadas, rigorosamente falando, à ação mítica correspondente, mas harmonizam-se em ações que misturam cenas tradicionais, geralmente com dois protagonistas, e os deuses chegam a ter rostos de contemporâneos, penteados da moda, etc. Ilustravam, desse modo, sacerdotes, patresfamilias etc.) e beneficiários (populus romanus, uma familia ou um grupo social específico). Scheid estabeleceu o paradigma: os indivíduos participavam da religião como membros da res publica, os rituais eram realizados em benefício do grupo, e sua violação trazia consequências para o grupo (SCHEID, 2003). 17 A família patriarcal romana é um agrupamento de pessoas livres e não livres (famuli, escravos, de onde deriva o nome familia: ERNOUT; MEILLET, 2001: s.v. familia), que implica propriedade e patrimônio. 18 Deuses das despensas (penus) que tinham seu lugar no atrium das casas romanas, considerados protetores da casa, junto com os Lares. 19 O espírito (numen) do paterfamilias, que lhe garantia o poder gerador, simbolizado por uma serpente. Seu local era o lectus genialis (a cama do casal principal da casa). O culto do Genius, ao que consta, ocorria no dia do aniversário do paterfamilias. Teatro Grego e Romano

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a cultura e a riqueza de seu proprietário, exaltando uma vida idílica e harmoniosa. Assim, definir a relação entre as pinturas murais e as práticas religiosas é tarefa difícil, à exceção das pinturas dos lararia. O centro da religio doméstica era o lararium, o coração da domus, onde era alimentado o fogo (sagrado) e residiam as divindades domésticas, assim como no forum ardia o fogo de Vesta, na lareira circular que centralizava a religio romana. Uma enorme quantidade de estatuetas de bronze e de outros materiais foi encontrada em quase todo o território imperial, além de pinturas em lararia. Se não podemos obter conclusões mais seguras sobre o culto doméstico pela própria natureza da documentação, podemos, contudo, entrever a importância da religio domestica em Roma e outras cidades imperiais.20 Elementos da vida quotidiana são presenças constantes nas comédias de Plauto, nas quais orações, rituais e sacrifícios surgem representados nos palcos para as grandes plateias presentes aos rituais religiosos.21 Podemos entrever a interrelação entre o modelo doméstico e o modelo público dos rituais religiosos romanos, e vemos a ordem sagrada representada comicamente. Assim, buscando passagens e indícios que possam nos auxiliar na difícil tarefa de observar alguns aspectos da religio domestica, optamos por apresentar uma brevíssima análise Além disso, por um documento tardio, podemos perceber a permanência e a longevidade do culto doméstico: o edito de Teodósio, de 392 d.C., que proíbe o culto dos Lares, do Genius e dos Penates (Cth. 16.10.12). Para o estudo do desenvolvimento do culto doméstico na Antiguidade tardia, veja-se: Bowes (2008). 21 A própria população da urbs havia se ampliado ao longo dos séculos III e II a.C. No século III a.C., a concessão da cidadania a comunidades itálicas foi incrementada, além da concessão da cidadania a libertos (BEARD; CRAWFORD, 1985, p. 78-92). Os rituais religiosos e o teatro promoviam a educação cívica desses novos cidadãos (e, certamente, novas tensões sobrevinham). É deste momento um aumento notável de documentos literários sobre a religião romana, concomitante ao movimento de consolidação da língua latina como língua literária; por exemplo, os fragmentos de Ênio (Annales, ROL, I, 3,215) fornecem elementos para o estudo das ideias religiosas, e de Catão o Antigo (Origines), que transmitem informações sobre tradições e rituais religiosos, mesmo em estado fragmentário, complementadas pelos dados do De re agricola. O teatro de Plauto, portanto, fornece à pesquisa ricos elementos sobre a religião romana pública e doméstica, numa época de inovações e transformações. 20

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da comédia Aulularia, peça da qual não sabemos a data da primeira encenação. Esta comédia, cujo motivo central é a avareza de Euclião, figura ridícula, transtornada pela descoberta de um tesouro, tange o tema da fortuna da família, defendida pelo Lar familiaris, e o texto dramático – posto que a encenação propriamente dita seja praticamente inalcançável para nós – pode ser um guia para a análise de práticas religiosas domésticas. Nosso objetivo é, então, tentar entrever práticas e crenças relacionadas à religião doméstica romana.22 Há, porém, vantagens e desvantagens no uso da documentação dramática numa investigação sobre discursos, ritos e práticas religiosas. Os espaços físicos nas cidades, nos quais as peças eram encenadas (espaços teatrais) e a participação cênica, mesmo indireta, de divindades que recebiam culto público ou privado em Roma, constituem elementos importantes das performances, criando as interdependências entre o espaço ficcional e o espaço cívico, entre personagens e espectadores, especialmente porque as peças eram encenadas, como vimos, em datas e espaços religiosos (cf. RAWSON, 1991). No final da II Guerra Púnica, Salus, Victoria, Fides, Spes, Fortuna, Libertas, Honos et Virtus, Mens e Concordia tinham pelo menos um templo em Roma (cf. ORLIN, 2002). As comédias de Plauto foram escritas e encenadas num momento em que um grande número de divindades (relacionadas, em geral, com personificações de virtudes) “ganhou uma casa” em Roma, permitindo que vislumbremos algo de sua recepção e das respostas a tais divindades na urbs. Rituais surgiam nos palcos, personagens invocavam os deuses, juravam, faziam libações, oferendas, sacrifícios (apesar de os Referências à religião e a rituais envolvendo a familia romana, e à observância religiosa estão presentes em praticamente todo o corpus plautino, mesmo que em breves alusões, mas, devido aos limites de um capítulo, não seria possível tentar dar conta de todas. Aos Lares, por exemplo, temos referências em Mer. 864-5 (Lares uiales) e, dentre outros, Mer. 834 e Mil. 1339 (Lares familiares). É certo também que a presença de deuses “atuando” no prólogo tornouse uma característica da Comédia Nova grega, após algumas experiências de Eurípedes (Alceste, As Troianas), apesar de personagens divinas não tomarem parte direta nas tramas, exceção feita a Mercúrio e a Júpiter, no Amphitryo, de Plauto. Num mundo pleno de religiosidade, a mimesis da vida humana não poderia ser feita sem a presença de elementos e personagens religiosas. Além disso, nossa escolha – a Aulularia – deve-se também ao sucesso da peça na tradição teatral ocidental, incluindo recriações no teatro brasileiro (cf. O santo e a porca, de A. Suassuna). 22

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sacrifícios serem geralmente mencionados, e não realizados no palco) – e os espaços ficcionais podiam ser santuários públicos (e.g., PLAUTO. Rudens, em frente ao santuário de Vênus de Cirene, e Aulularia, no templo da Fides e no bosque de Silvano) ou domésticos, como na própria Aulularia, revelando a centralidade do lararium. Na Aulularia, 582-6 e 606-18, encontramos uma passagem interessante para nossos propósitos. Trata-se do apelo de Euclião, o paterfamilias avarento, à Fides, em cujo templo tenciona esconder seu pote de ouro, e do apelo de Estróbilo, o escravo, à mesma deusa, a fim de roubar o ouro, o que só consegue depois que Euclião resolve transferir o pote para o bosque de Silvano, fora da cidade.23 Aqui, vemos um indício do caráter fisicamente localizado das divindades romanas e de seu poder, nesta Atenas-Roma da comédia.24 Ambas as personagens sentiam-se aptas a usar um espaço fisicamente delineado em “Roma” pelo culto da Fides, tanto para conseguir atingir seus objetivos, quando para reivindicá-los. Se podemos assumir que houve uma peça de Menandro25 que serviu como modelo para Aulularia, a escolha de Fides na cena é certamente de Plauto, pois a Pistis grega, que seria a divindade mais semelhante à Fides romana, não parece ter tido um altar na Grécia até a época de Adriano. Euclião reivindica um acordo prévio com a deusa (“Fides, você me conhece e eu te conheço”), e dá a entender que, para ele, o significado da divindade é sinônimo de “confiança”, “boa-fé”. Já Estróbilo pede que Fides prefira a ele, e não a Euclião, e que lhe seja “fiel” (fidelis). Vemos que há uma leitura discrepante entre as formas de endereçamento das personagens à deusa. Fides, cujo templo no Capitólio foi construído pouco antes do nascimento de Plauto, não operava apenas na esfera dos tratados, mas também num domínio ao qual as comédias antigas faziam apelo e no qual ostensivamente se situavam: o domínio da vida quotidiana, corriqueira, das pessoas “comuns”. Assim, a discrepância entre os apelos das personagens à Fides pode ser ilustrativa: o escravo não parece se referir à Fides do mesmo modo que Euclião, um paterfamilias, mesmo Deuses como guardiões da propriedade e templos usados como depósito de riquezas surgem também em Plauto, Bacch, 306-331. 24 Cf. Chaniotis (2009); Beltrão (2010). 25 É lugar comum vincular a comédia romana à comédia grega, especialmente à Comédia Nova, de Menandro, e às fabulae Atellanae, da Úmbria, cf. nota 12. Para o aprofundamento dessa questão, veja-se: Rehm (2007). 23

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que vicioso. Euclião declara ter excelentes relações de confiança com a deusa; Estróbilo parece se remeter a um sentido de “obter um crédito” da Fides, para que a deusa permita o roubo, o que, no palco cômico, surge como perfídia. Assim, perguntamos: poderíamos interpretar esta discrepância de sentido como um exemplo das negociações quotidianas com os deuses, diferentes conforme a posição que cada um ocupava na sociedade romana e, consequentemente, de diferentes percepções da ordem social e divina? A distinção entre confiança e perfídia, expressa nos apelos das personagens à Fides, teria uma relação com a cosmovisão romana? O escravo revela certo júbilo em relação ao possível sucesso de seu plano. Poderia esta fala estar vinculada a uma visão aristocrática, detectada em textos posteriores a Plauto, sobre a perfídia de escravos?26 É possível, pois a comicidade de uma peça só e somente só faz sentido se estiver de acordo com, não apenas, o universo cognitivo de seu público, mas principalmente com suas crenças morais, ou o riso não ocorre. As comédias são, de certo modo, centradas na domus, na familia romana, nos conflitos familiares, suas personagens são definidas por sua posição no interior da familia e suas ações se inscrevem nos quadros de seu estatuto familiar. Certamente, há de relembrar seu caráter ficcional, mas as obras cômicas são pautadas pela moralidade comum, pelos modelos normativos, religiosos – ou não provocariam o riso.27 Na Aulularia, o riso assoma quando Euclião, o paterfamilias avarento e desconfiado, por isso “não confiável”, reivindica o apoio da Fides, enquanto Estróbilo, o escravo, exterior à fides romana, portanto “pérfido”, endereça a Fides um apelo para que lhe dê um crédito, por ser um “bom escravo” (seruus frugi), ou seja, por visar à felicidade de seu senhor, para quem entregaria o ouro esperando, em troca, sua manumissão (um tema recorrente em Plauto). É importante, porém, lembrar que Estróbilo não consegue realizar o roubo no templo da Fides, e só obtém o sucesso quando Euclião, sempre desconfiado, transfere o pote de ouro para fora do pomerium, para Remetemos ao artigo de Sônia Regina Rebel de Araújo, intitulado Ideologia Escravista em Aulularia de Plauto, sobre o tema em pauta. 27 Segundo Pavis, “o riso do espectador é ora de cumplicidade, ora de superioridade; ele o protege contra a angústia trágica, propiciando-lhe uma espécie de ‘anestesia afetiva’. O público se sente protegido pela imbecilidade ou pela doença da personagem cômica; ele reage, por um sentimento de superioridade, aos mecanismos do exagero, contraste ou surpresa” (PAVIS, 2007: s.v. comédia). 26

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fora do solo consagrado de Roma, entregando-o a Silvanus, um deus anterior à urbs, que vive nas matas (siluae) do Lácio, que não atende aos ditames das regras sociais, e isso permite entrever algumas características da religio romana. Como apresentamos em publicação recente, O termo fores, que chegou até nós nas palavras fora, foro, forâneo, forasteiro, era um dos termos-chave na definição do limite entre o espaço doméstico e aquilo que era deixado de fora, o mundo exterior, estranho e adverso, domínio das feras e das divindades não aplacadas, culminando no forum romanum, centro da res publica, o espaço que concentrava os cidadãos, local que criava o espaço público comum a todos e estabelecia os limites entre o romano e o não-romano, influenciando a paisagem social e fomentando relações de convivência e estabelecendo leis e costumes, e depois, segundo Cícero, a organização do direito e a disciplina da vida, de modo a proteger a vida (De Off. II, 15). Daí a sacralidade de tais lugares e a identificação da urbs com os templos de seus deuses, com os sepulcros de seus antepassados e com os marcos limiares. O valor desses marcos é expresso no rito de fundação de uma cidade, que evocava o rito etrusco, criando um baluarte sobrenatural com sua dimensão sagrada (sacer). A ideia é expressa por Cícero, assinalando a força da comunidade de sangue na formação da res publica, exaltando os monumentos dos maiores, o uso dos mesmos lugares sagrados e dos sepulcros comuns (De Off. I, 55) (BELTRÃO, 2007).

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Durante décadas, contudo, a ênfase política da historiografia levou a um esquecimento desta relação entre o poder doméstico e o poder político, eclipsando o primeiro nas análises sobre a sociedade romana e as instituições da res publica, e a dramaturgia romana se constitui como um tipo de documento precioso para a análise da centralidade do poder doméstico na República romana. Todo poder é exercido em virtude de uma determinada ordem, que se apresenta como lei, seja lei da natureza, lei divina, lei humana, leis escritas ou não, e implica regras formais ou informais, precisas e rigorosas, que regem a obtenção e a justificativa do poder e de seu exercício, bem como a aceitação e o reconhecimento deste poder – e de seu exercício – por outros indivíduos. Consideramos, portanto, uma arbitrariedade destacar o sentido público do poder em detrimento do sentido doméstico, vendo as diClaudia Beltrão da Rosa

versas ocorrências literárias das referências sobre o poder doméstico como derivadas, secundárias ou, mesmo, irrisórias, e projetando sobre o vocabulário romano do período republicano sentidos ou construções jurídico-políticas que lhes são posteriores. Cícero, por exemplo, declara a superioridade da lei não escrita sobre os códigos de lei (Leg. 3, 3), e compara sua relação com seu irmão mais novo, Quinto Cícero, com a de um paterfamilias em relação ao filho, citando Terêncio (Phorm, 232 ss). No De re publica, 3, 37, o orador enumera os poderes partindo dos menores aos maiores: o poder dos reis, dos generais, dos pais, dos povos... Em Caec. 52, com a expressão imperium domesticum, Cícero menciona o poder do paterfamilias como uma instituição reconhecida e como fundamento das demais. É interessante notar que também Plutarco, de origem e idioma gregos, indica a interação entre as instituições domésticas e as públicas na Roma de seu tempo, declarando o caráter paternal dos poderes políticos, e que a domus é uma espécie de ciuitas (Cato Maior, 21.4). Essas manifestações literárias, que insistem na soberania do paterfamilias como pai, marido e senhor, indicam a importância da análise da religio domestica e sua centralidade como um dos fundamentos da ordem romana, calcada na centralidade da domus.28 Acreditamos que a força da religio romana estava contida em cada domus, estendendo-se ao forum romanum e procedia tanto de sua íntima relação com as divindades como com os antepassados, e isso é visível na comédia. A casa é um santuário, com seus Lares e Penates, no qual oficiava como sacerdote o paterfamilias. Mas a casa familiar não era fechada sobre si mesma; a comunicação com a vizinhança e com o forum era constante, e as interrelações entre interior e exterior se institucionalizavam no quotidiano, fundadas nos mores, na moralidade expressa pela religio. Temos, então, um interesse especial por esta comédia: a presença de uma divindade no prólogo e o que ela apresenta aos espectadores. O prólogo explica previamente a situação, e é próprio do teatro que os discursos não sejam apenas enunciados, mas mostrados, ou seja, a cena apresenta o discurso ao olhar, e não apenas à razão, graças à maRemetemos ao estudo de Jean-Christian Dumont (1990), que analisa as características e o funcionamento do poder do paterfamilias, com base nas comédias de Plauto e de Terêncio. Para referências explicitas de Plauto sobre o poder do paterfamilias ver: Amph, 991; Asin, 505,508; Bacch. 459; Persa, 339, 344; Stic. 141. Note-se que na Asinaria, trata-se do poder de uma mãe viúva sobre sua filha, a quem pretendia prostituir. 28

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terialidade dos dispositivos cênicos, buscando a adesão do espectador pela mediação da representação das personagens como modelos que tornam visíveis e inteligíveis as leis, os códigos e a lógica da sociabilidade. A cena dá, então, uma consistência física e estética aos discursos, às opiniões, aos valores, etc., de uma sociedade, presentificando o corpo político. A Aulularia nos traz um Lar familiaris, o deus doméstico par excellence, que apresenta a trama para o público. Após se apresentar como o protetor divino da familia, conta como o avô de Euclião lhe confiou um tesouro, destacando a avareza dos patresfamilias, avô/filho/neto, motivo pelo qual manteve em segredo o ouro que guardava: LAR: Como estava para morrer – e era por natureza avarento – jamais quis revelar isso ao seu filho, e preferiu deixá-lo pobre a mostrar-lhe o referido tesouro. Deixou-lhe uma pequena extensão de terra, para que vivesse miseravelmente e com grande sacrifício. Quando aquele [avô de Euclião] que me confiou o tal ouro morreu, comecei a observar se porventura o filho [pai de Euclião] me prestava maior honra do que seu pai fizera. Mas, na verdade, importava-se cada vez menos [comigo] e cada vez menos me reverenciava com oferendas. Em resposta, tratei-o de maneira semelhante, pois morreu na mesma penúria. [Ele] deixou de si este filho [Euclião] que agora mora aqui, de costumes iguais, como foi o pai e o avô dele (v. 9-12).29

Na religião doméstica, o paterfamilias deveria oferecer aos deuses palavras e gestos em benefício do grupo familiar, como o magistrado o fazia pro populo. Como no teatro, a música e toda uma cenografia acompanhavam a cena/a ação. Cantos potencializam a dramatização, além de eventuais danças e gestos ritmados.30 E o Lar apresenta o motivo pelo qual fez com que Euclião descobrisse o tesouro no LAR. Is quoniam moritur, – ita auido ingenio fuit/– Numquam indicare id filio uoluit suo,/Inopemque optauit potius eum relinquere/Quam eum thesaurum commonstraret filio./Agri reliquit ei non magnum modum,/Quo cum labore magno et misere uiueret./Vbi is obiit mortem qui mihi id aurum credidit,/Coepi obseruare, ecqui maiorem filius/Mihi honorem haberet quam eius habuisset pater./Atque ille uero minus minusque inpendio/Curare minusque me impertire honoribus./Item a me contra factum est: nam item obiit die ./Is ex se hunc reliquit qui hic nunc habitat filium/Pariter moratum, ut pater auusque huius fuit (v. 9-22). Tradução nossa. 30 Cf. Plauto, Epidicus 314-16; 414-16, para as preliminares de ritos domésticos. 29

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lararium: a piedade de Fedra, filha de Euclião, cujo casamento estava sendo preparado: LAR: Este tem uma filha que me presta culto sempre, todos os dias, ou com incenso ou com vinho ou com alguma outra coisa. Dá-me coroas de flores. Por causa desta consideração, fiz com que Euclião encontrasse aqui [no lararium] o tesouro, para que, se quisesse, a concedesse mais facilmente em casamento (v. 23-27).31

Os Lares familiares eram divindades domésticas que cuidavam da casa da familia romana e de seus moradores e eram cultuados no lararium nas Kalendas, nas Nonae e nos Idos do mês, além de em ocasiões especiais, principalmente os casamentos. Eram benfazejos para a familia, desde que tratados com atenção e respeito, mas sabemos muito pouco a seu respeito. Euclião, o avarento, é uma personagem ridícula por não corresponder ao ideal do paterfamilias, sacerdote de sua familia, desagradando ao deus de sua casa. Este deus residia no recinto doméstico e, em seu altar (ara) de pedra, de forma quadrangular, próximo à lareira, deveriam ser oferecidos os sacrifícios propiciatórios que estabeleciam as relações com os seres divinos e com os numina dos antepassados, cujos restos repousavam em um sítio que na urbs encontrou seu lugar fora das casas, o que o dominus Euclião não fazia. Na Aulularia, conseguimos entrever elementos sobre os Lares que apenas pelo material iconográfico não conseguiríamos, daí sua importância, além de menções a elementos da religio domestica serem raros em outras fontes textuais. Certamente, as personagens em cena enunciam uma argumentação que não pode exceder os limites da dramaturgia, mas as palavras são pronunciadas e seu discurso é uma enunciação efetiva e pública. O teatro representa, assim, as relações sociais, políticas institucionais, mas também utópicas e imaginárias. E tem uma clara função didática, pondo em cena o ideal da sociabilidade, apresentando-o, com base nos incidentes e na conduta da sociedade em questão, na religião e na moralidade pública. Movendo-se entre a dimensão política e a dimensão afetiva, entre seu potencial e sua eficácia, repousa sobre o processo de LAR. Huic filia una est; ea mihi cottidie/ Aut ture aut uino aut aliqui semper supplicat;/ Dat mihi coronas. Eius honoris gratia/ Feci thesaurum ut hic reperiret Euclio,/ Quo illam facilius nuptum, si uellet, daret (v. 23-27). Tradução nossa. 31

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identificação, essencial na comunicação. O teatro de Plauto surge como o teatro da moral pública, mostrando o mundo e as coisas inscritas no simbólico (ou melhor, a vida quotidiana, seus sentimentos, ações, paixões, etc., recebem uma consistência simbólica). A comédia plautina apresentava aos espectadores romanos os fundamentos de sua própria identidade, contribuindo para a manutenção da ordem sagrada romana. AULULARIA – EDIÇÕES UTILIZADAS PLAUTO. Four Comedies. The Braggart Soldier. The Brothers Menaechmus. The Haunted House. The Pot of Gold. Trad. Erich Segal. New York: Oxford University Press, 2008. _____. Comedias I. Anfritión. La Comedia de los Asnos. La Comedia de la Olla. Las Dos Báquides. Los Cautivos. Cásina. Int y Trad.: Mercedes Gonzales-Haba. Madrid: Editorial Gredos, 1992 (texto em latim e tradução em espanhol). T. MACCI PLAVTI AVLVLARIA. The Latin Library, from the Leo edition of 1895-96. Disponível em: . BIBLIOGRAFIA COMENTADA BEARD, M.; NORTH, J. A.; PRICE, S. R. F. Religions of Rome. v. 1 (A History); vol. 2 (A Sourcebook). Cambridge: Cambridge University Press, 1998. Mais do que um manual sobre a religião romana, o primeiro volume desta obra, escrita por três especialistas na pesquisa sobre a religião romana, apresenta análises acuradas das características e do desenvolvimento das instituições religiosas romanas e uma antologia de documentos, com comentários.

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GEERTZ, C. A Religião como Sistema Cultural. In: ______. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 65-91. C. Geertz cunhou uma definição de religião que mantém elementos do funcionalismo simbólico de Durkheim (a religião como um ato social coletivo) e de teses de M. Weber sobre o significado da religião como um sistema para o ordenamento do mundo, sem tanger questões de crenças tão comumente vinculadas às definições de religião. Para o Claudia Beltrão da Rosa

autor, uma definição universal e categórica de religião é não apenas impossível quanto indesejável, falseadora das características diversas e múltiplas das distintas religiões, não apenas porque os conteúdos, práticas e crenças são histórica e culturalmente condicionados, mas também porque qualquer definição é, em si, um produto do processo discursivo, igualmente condicionado. DUMONT, Jean-Christian. L’imperium du paterfamilias. Publications de l’École Française de Rome, 129. Rome: École Française de Rome, 1990. Este artigo de Jean-Christian Dumont (1990), que analisa as características e o funcionamento do poder do paterfamilias, enquanto pai, marido e senhor de escravos, em relação ao poder do magistrado, com base nas comédias de Plauto e de Terêncio, demonstrando, a partir de um cuidadoso estudo de vocabulário, a interação do modelo do poder doméstico e do modelo do poder público. GRUEN, E. S. Culture and National Identity in Republican Rome. New York, Ithaca: Cornell University Press, 1992. O livro de E. Gruen traz uma discussão profícua e bem documentada sobre vários ludi e as diversas instâncias de suas realizações, entre 216 e 179 a.C., e outras ocasiões nas quais ludi scaenici ocorreram neste período. SCHEID, J. An introduction to Roman Religion. Bloomington, Indianapolis: Indiana University Press, 2003. Um dos maiores especialistas internacionais em religião romana, John Scheid estabeleceu o modelo da orthopraxis e o paradigma: os indivíduos participavam da religião como membros da res publica, os rituais eram realizados em benefício do grupo, e sua violação trazia consequências para todo o grupo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, R. L’Obvie et l’Obtus. Essais Critiques III. Paris: Le Seuil, 1982. _____. L’Effet de Reel. Communications, 11, p. 84-89, 1968. BEARD, M.; NORTH, J. A.; PRICE, S. R. F. Religions of Rome. v. 1 (A Teatro Grego e Romano

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History); vol. 2 (A Sourcebook). Cambridge: Cambridge University Press, 1998. BEARD, M; CRAWFORD, M. Rome in the Late Republic. Problems and Interpretations. New York, Ithaca: Cornell University Press, 1985 BELTRÃO, C. Interações religiosas no Mediterrâneo Romano: práticas de interpretatio e de acclamatio. In: CANDIDO, M. R. (org.). Memórias do Mediterrâneo: Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2010. ______. Considerações em torno de religio em suas manifestações literárias. In: LIMA, A. C. C.; TACLA, A. B. Experiências Politeístas. Cadernos do CEIA. Ano I, n. 1. Niterói: Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA/UFF), 2008. ______. Tirocinium fori: o orador e a criação de “homens” no forum romanum. Phoînix, 13, p. 52-66, 2007. ______. A Religião na urbs. In: MENDES, N. M.; SILVA, G. V. (orgs.). Repensando o Império Romano. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. BODEL, J. Cicero’s Minerva, Penates and the Mother of the Lares. An Outline of Roman Domestic Religion. In: _____; OLYAN, S. Household and Family Religion in Antiquity. Contextual and Comparative Perspectives. Oxford: The Blackwell Publ., 2008. BOWES, K. Private Worship, Public Values and Religious Change in Late Antiquity. New York: Cambridge University Press, 2008. CARDOSO, I. T. Ilusão e engano em Plauto. In: CARDOSO, Z.A.; DUARTE, A.S. (orgs.). Estudos sobre o Teatro Antigo. São Paulo: Alameda, 2010, p. 95-126. CHANIOTIS, A. Acclamations as a form of religious communication. In: CANCIK, H; RÜPKE, J. (edd.). Die Religion des Imperium Romanum. Tübingen: Mohr Siebeck, 2009, p. 199-218. ERNOUT, A; MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. Histoire des mots. Paris: Klincksieck, 2001. DUMONT, Jean-Christian. L’imperium du paterfamilias. Publications de l’École Française de Rome, 129. Rome : École Française de Rome, 1990. ______. La comédie phlyaque et les origines du théatre romain. Actes du Colloque “Texte et Image”, 13-15 octobre, 1982. Paris: Les Belles Lettres, 1984, p. 135-150. GEERTZ, Cl. A Religião como Sistema Cultural. In  : _____. A Claudia Beltrão da Rosa

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Identidade Cultural e Teatro:

Um estudo de caso de um mosaico afro-romano1

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A História nos permite conhecer melhor o presente e a inesgotável diversidade humana, que nela se manifesta. Renunciando à presunção dos julgamentos definitivos e irrevogáveis, sendo historiadores, devemos nos empenhar em observar a dimensão plural da existência dos homens, isto é, examinar criticamente as ações e especificidades das sociedades humanas. Ao dialogarmos com os antigos, esforçamo-nos por nos colocarmos em lugares específicos do passado, onde eles se moviam, mesmo sabendo que os resultados alcançados por essa aventura serão, muitas vezes, precários. Nesta diretriz, posiciona-se Hartog (2003, p. 198), que defende justamente a “manutenção desse jogo do mesmo e do outro, com sua sucessão de problemas e sua história, com suas tensões e suas reviravoltas”, o que faz com que os antigos despertem interesse no presente por serem paradoxalmente “nem mesmo, nem outros e, ao mesmo tempo, um e outro”. O estudo da Antiguidade produz indubitavelmente um sentido de alteridade espacial e temporal, que é operada com a intenção de projetar uma reflexão sobre o presente, estimulando e desenvolvendo um olhar crítico sobre o social. Problemas urgentes do mundo contemporâneo trazem, para o âmbito da História Antiga, campos de visibilidade da vida social que nos ajudam a compreender, através do encontro com a diferença, nossos próprios caminhos e opções. Eis a dialética da duração: como estudiosos da AnNo presente texto, aprofundaram-se aspectos desenvolvidos para a comunicação “Mosaico ‘O poeta trágico e o ator cômico’: identidade cultural e elite provincial afro-romana”, apresentada no V Colóquio Internacional “Mito e performance: da Grécia à modernidade”, ocorrido em La Plata (Argentina) no período de 16 a 19 de junho de 2009. O texto foi resultante de pesquisa realizada para a Bolsa de Produtividade do CNPq. 1

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tiguidade, ao nos debruçarmos sobre o passado, pensamos no presente e pensamos o presente. Assim, o tema contemporâneo da construção das identidade/alteridade culturais suscitou o presente texto. Identidade/alteridade culturais, uma relação dialógica

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A questão da identidade/alteridade culturais na nossa sociedade está sendo vigorosamente debatida nas teorias sociais. Argumenta-se que as velhas identidades, que uniam e estabilizavam o mundo social por tanto tempo, estão em diluição dando lugar a novas identidades (nacionais, culturais, sociais, geracionais, religiosas, gênero...) e fragmentando o indivíduo moderno como sujeito unificado. Essa denominada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança que está “deslocando” as estruturas desmanchando as “armações” que davam aos indivíduos e grupos a unidade e a estabilidade no mundo social, ou seja, o conceito de identidades está sendo “descentrado”. O mundo contemporâneo vive uma volatilização de sistemas éticos, de identidades e de solidariedades “locais”. A identidade – que antes oscilava entre a separação de um complexo múltiplo de unidades definidas pelas suas diferenças e uma estrutura capaz de absorver uma multiplicidade de variáveis e ainda assim manter sua unidade básica – estaria agora sendo abordada como uma relação em que o “outro” constitui a identidade do “eu”. Haveria, portanto, uma relação de alteridade no processo de identificação. Os estudos atuais criticam uma perspectiva unitária, monolítica, autônoma, essencialista e a-histórica das culturas. Considera-se que as formas de identidade/alteridade são específicas de um contexto histórico e social determinado, tanto no tocante aos processos internos da sociedade quanto às suas relações e aos contatos com outras sociedades próximas ou distantes. Portanto, pertencer ou não a um grupo ou a uma sociedade é uma construção social e cultural, cujo significado e forma variam no tempo e no espaço, podendo coexistir uma multiplicidade de identidades/alteridades que interagem umas com as outras. Por isso, devemos atentar para as múltiplas interpenetrações e apropriações culturais, que possibilitam o entendimento do aparecimento de identidades e culturas fronteiriças, próprias das práticas de negociação cultural que transcendem às contradições dualistas através das experiências relacionais. Evidenciamos, assim, uma pluralidade de situações de inclusão, assimilação, segregação, estigmatização e exclusão social, que instigam o estudo das diversas estratégias, como por exemplo: hoRegina Maria da Cunha Bustamante

mogeneização (estratégias formais e informais de vigilância/punição devido ao grande medo da diversidade), hierarquização da diversidade (estratégias de favorecimento para formação de grupos fechados com lugares hierarquizados) ou “mestiçagem”/“hibridismo” (estratégias de criação de lugares de ambiguidade). Ao lado dos parâmetros para nos situar frente aos “outros” pelo poder econômico e pela autoridade política, estão surgindo novos parâmetros que privilegiam uma visão do “eu” e do “outro” a partir das experiências relacionais do cotidiano, condizentes com os diferentes aspectos culturais presentes em cada sociedade. Assim, a identidade dos grupos humanos seria construída a partir das interações culturais historicamente verificáveis, nas quais se inseriria a concepção de alteridade, permitindo a percepção do homem na sua diversidade, como ser essencialmente cultural. Portanto, a mesma operação, que possibilita conceber o “outro”, inscreveria também os parâmetros da identidade: reconhecer-se, substantivar-se, definir para si aquilo que lhe é próprio. Não há constituição em separado do “mesmo” em identidade e do “outro” em diferença. O estudo dos mecanismos de abordagem da diferença em sociedade pressupõe o estudo das formas de reconhecimento em que o grupo compreende-se e se fabrica como unidade. Verso e reverso – identidade e alteridade – encontram-se intimamente interligados. Assim, as identidades coletivas envolveriam sistemas complexos de interpelações e reconhecimentos através dos quais os agentes sociais se inscreveriam na ordem das formações sociais de diferentes formas: voluntária, negociada, consensual, imposta e outras. A interação entre culturas acontece com a intersecção de diferentes hábitos, valores e conceitos presentes na sociedade. A interação cultural requer uma concepção de cultura como historicamente reproduzida na ação. Neste contexto, as interações culturais implicariam dinamismo/transformação/alteração/variação de culturas seja em termos diacrônicos ou sincrônicos. Problematizar as diversas formas de identidades/alteridades culturais não implica forçosamente abordar unicamente formas institucionais nem priorizar um conjunto particular de determinações (quer sejam técnicas, econômicas ou demográficas), mas atentar para como se inserem no processo social. Valorizam-se tanto os seus feixes de ativação e modos de assentimento/assimilação quanto às diversas formas de resistência, reprodução, sublevação, subversão, ou seja, as diversas maneiras pelas quais os sujeitos/grupos interpretam, reinterpretam, Teatro Grego e Romano

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desviam e fazem circular as múltiplas identidades/alteridades culturais presentes na sociedade, penetrando assim no labirinto das relações e das tensões que o constituem. Neste sentido, pensar diferentes modos de articulação das identidades/alteridades com o mundo social demanda uma sensibilidade para a pluralidade das clivagens (classificação socioprofissional, pertenças de gênero, etnias ou geracionais, adesões religiosas, tradições educacionais, solidariedades territoriais...) e a diversidade dos empregos de materiais ou de códigos compartilhados. Desta forma, os conceitos de identidades/alteridades culturais facultam compreender um campo social compósito. Busca-se entender os processos e resultados das complexas negociações entre diferentes grupos e culturas. Assim, pretendemos aqui avaliar as experiências vividas e os significados presentes no discurso construído pela elite provincial da África Romana, que, no presente caso, se materializa numa imagem vinculada a um mosaico. Imagem, um discurso a ser interpretado

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Neste estudo, optamos por privilegiar o modo de produção de sentidos da imagem, ou seja, como ela provoca significações. Partimos da premissa de que a imagem é uma linguagem composta de signos e, portanto, passível de interpretação (JOLY, 1997, p. 48). O produtor da imagem encontra-se numa relação dialógica com a sociedade na qual está inserido: produz por diversas motivações culturais e sociais e seus produtos retornam à sociedade reforçando, criticando ou formulando novos valores e práticas. Seguindo Bérard (1983, p. 5-37), consideramos que as imagens correspondem a uma narrativa e seus criadores as fizeram a partir de um repertório comum de elementos estáveis e constantes na sua sociedade. A combinação destes elementos constituise numa imagem de conteúdo narrativo. Através destas combinações associativas, podemos passar da relação de referência à relação de significação, daí a pertinência da aplicação da leitura semiótica. Tal como o signo, a imagem está no lugar de alguma coisa para alguém e possui alguma relação ou alguma qualidade analógica desta coisa, constitui-se assim numa representação visual. Apresenta-se como uma ferramenta de expressão e comunicação ao transmitir uma mensagem para outro. É, portanto, uma mensagem visual composta de diversos signos, ou melhor, uma linguagem. O texto imagético, por utilizar um código visual construído socialmente, é um importante documento para a compreensão da sociedade que o produziu e consumiu. Regina Maria da Cunha Bustamante

Na leitura do mosaico selecionado, aplicamos a proposta do semiólogo Peirce, pois partimos do pressuposto de que a imagem é um signo, na medida em que exprime a relação entre o significante e o significado, que se transforma em ideias e demanda uma atitude interpretativa dos seus leitores. Eco (1991, 2004a, 2004b e 2007) abordou a ideia de Peirce da semiótica ilimitada, porém, isto não implica dizer que a interpretação não tivesse critério nem que a interpretação fosse desprovida de objeto, nem, muito menos, que ocorresse por si própria. No esquema peirceano (PEIRCE, 1992 e 2000), o signo mantém uma relação solidária entre, pelo menos, três polos que compõem a dinâmica de qualquer signo como processo semiótico: o significante ou o representamen (a face perceptível do signo), o objeto ou o referente (o que é representado pelo signo) e o significado ou o interpretante (que depende do contexto do seu aparecimento e da expectativa do receptor). A partir destes três polos do signo, estruturamos o presente estudo de caso. Signo imagético musivo: seu significante

FIGURA 12 (KHADER; SOREN, 1987, p. 191, fig. 57; FANTAR; et al., 1994, p. 199; BLANCHARD-LEMÉE; et al., 1996, p. 220, fig. 165; LANCHA, 1997, pl. IX; LAVAGNE, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA, 2000, fig. 57; SLIM; FAUQUÉ, 2001, p. 173; KHADER, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA, 2003, fig. 235; ABED, 2006, p. 114, fig. 6.4) Dimensões: medalhão central: 1,31m de diâmetro; Acervo: Museu Arqueológico de Sousse na Tunísia. 2

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Eis o mosaico selecionado que, no esquema peirceano, corresponde à face perceptível do signo, constituindo, portanto, o seu significante ou representamen. Passemos à identificação do objeto ou referente, visando inferir o que é representado pelo significante acima exposto (FIGURA 1). a. Signo imagético musivo: seu objeto Emoldurado por uma composição geométrica de cubos em perspectiva, encontra-se um medalhão circular com elementos figurativos em fundo branco. Nele, há duas figuras humanas, vestidas à maneira clássica. Utilizou-se, assim, uma expressão iconográfica da tradição cultural greco-romana. Principiemos pela figura sentada mais ao fundo da cena. É um homem de cabelo encaracolado e barba – sinal diacrítico de idade adulta – castanhos. Veste uma toga com faixa púrpura estreita e pregas (toga angusticlave contabulada) e está sentado num banco sobre estrado com as pernas cruzadas e calçando crépida.3 A toga simbolizava a dignidade do cidadão romano. Também se relacionava à paz, pois era utilizada, em períodos pacíficos, para atividades políticas e cerimoniais, próprias do espaço urbano, diferentemente do uniforme e das armas do soldado, portados pelo cidadão em tempos de guerra (MENDES, 2003, p. 310-312). Por isso, o poeta latino Virgílio (70-19 a.C.) definira os romanos como “nação togada” (VIRGÍLIO. Eneida I.282), ressaltando assim a Pax Augusta (Paz Augusta), obtida no governo de Augusto (27 a.C.-14). Os romanos consideravam-se possuidores não apenas do poder militar, mas também de uma civilização, que tinha a toga como a indumentária do seu cidadão, que se opunha às vestes do “outro” (mulher, escravo, estrangeiro/“bárbaro”). Tradicionalmente, a toga era feita de um longo tecido (em alguns casos, de até 6,5m) em lã espessa e branca, que era arrumado em dobras cobrindo o corpo. A própria palavra toga deriva do verbo latino tego, texi, tectum, que significa cobrir. Era uma roupa tão elegante quanto incômoda: era difícil de vestir e portar, restringindo os movimentos e tornando os gestos mais comedidos e solenes, distintamente da túnica curta que era utilizada pelos trabalhadores em suas fainas diárias. A toga diferenciava Calçado com alças (ansæ) fixadas nas bordas da sola, pelas quais se passava uma correia (amentum), que se entrelaçava sobre o peito do pé até o tornozelo (RICH, 2004, p. 201). 3

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os cidadãos por sua idade, condição social ou cargo público que ocupavam, sendo, portanto, um fator de visibilidade da diferenciação social. Assim, a toga angusticlave, adornada com uma faixa estreita de púrpura, era vestida pelos membros da ordem equestre, magistrados inferiores e filhos de senadores. Este tipo de toga se opunha a laticlave, que se caracterizava por faixa púrpura larga, sendo vestida pelos patrícios, senadores e altos dignitários. O qualificativo contabulata refere-se à roupa com longas pregas, que surgiu a partir de fins do século II,4 tornandose popular nos séculos III e IV, o que corrobora a datação do início do século III para o mosaico em análise. O homem togado segura, na altura do queixo, com uma das mãos, o calamus, instrumento para a escrita, feito de um pedaço de cana ou junco, talhado obliquamente ou afinado na extremidade, utilizado antigamente para escrever em papiros e pergaminhos. Na outra mão, ele tem um volumen. Este objeto era uma folha longa e estreita, feita com certo número de faixas de papiro coladas juntas, que se enrolava, quando a obra era concluída, em torno de um cilindro, de maneira que o leitor a desenrolava à medida que a lia. Foi somente em fins do século III (após, portanto, a datação do mosaico) que, no Ocidente Romano, ocorreu a afirmação definitiva do codex sobre o volumen. O codex era feito de folhas separadas encadernadas juntas, como as páginas dos nossos livros, e representou uma revolução na leitura, pois, distintamente do volumen, deixava as mãos livres para fazer anotações e se podia voltar mais facilmente a um trecho lido. Além disso, a economia do material era enorme, pois se escrevia nos dois lados, reduzindo os seus custos em relação ao volumen (CAVALLO, 1998, p. 71-102). Todos os sinais diacríticos, até agora analisados, permitem inferir o pertencimento desta figura humana à civilização romana e, ainda, sua plena inserção no mundo da cultura escrita. O gestual indica a situação de escrita interrompida: o calamus não está na superfície do volumen, mas no queixo, e seu olhar dirige-se para frente, como se buscasse inspiração. É um escritor prolífero, pois, próxima aos seus pés, há uma capsa (caixa cilíndrica) com doze voluminis. O tipo de escritor é identificado pelo objeto que está sobre o móvel à sua esquerda: uma máscara barbada e de testa alta com peruca encaracolada castanha. Esta máscara era O termo contabulata é derivado do escritor africano Apuleio (c. 125-c. 190), em Metamorfoses XI.3, quando descreve o complexo pregueado da palla (manto retangular feminino) de Ísis. 4

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típica da tragédia, destacando-se o onkos (a parte superior da máscara em forma de lambda – Λ / λ). A fronte acentuada era frequentemente dissimulada por uma peruca. Com o onkos, objetivava-se, por um lado, restabelecer as proporções do corpo, acrescido com as vestimentas e pelos altos cothurni,5 e, por outro, emprestar às figuras trágicas um aspecto distinto. Este acessório atingia, por vezes, dimensões desmedidas, mas sua altura era muito variável. A máscara é de um homem moreno (melas anêr) e adulto. Sua tez morena (melas), sua barba e seus cabelos crespos simbolizam a força viril. O ar rude (trachus) do seu rosto pode indicar que esta máscara estava destinada aos papéis “antipáticos”. A máscara da tragédia nos informa que estamos diante de um dramaturgo. Blanchard-Lemée (1996, p. 219) observa que não seria extraordinário para um notável rico na próspera cidade de Hadrumetum se dedicar a compor versos ou mesmo peças; nem seria mais extraordinário ainda se ele decidisse registrar seus feitos em alguns dos cômodos da sua casa. A autora questiona se existia alguma cidade afro-romana que não possuísse seu próprio compilador ou gramático. Os trabalhos de um número de poetas menores africanos foram eventualmente coletados para uso educacional em Cartago. Mas, o nome do escritor neste mosaico não é mais conhecido por nós; sobreviveu apenas este retrato musivo anônimo... O olhar do dramaturgo é frontal. A intencionalidade comunicativa deste olhar pode ser compreendida através das proposições de Calame (1986), que analisou a representação da figura humana, e, em particular, do jogo dos olhares, na cerâmica clássica. Ele concluiu que os olhares não foram feitos ao acaso; havia uma relação entre os elementos do enunciado icônico e o receptor. O estudioso identificou três situações: o olhar de perfil, quando os personagens olham entre si, não se preocupando com o receptor nem se interessando pela sua presença; o olhar de ¾, quando o personagem, ao mesmo tempo, olha para a situação do enunciado – o interior do texto – e para o receptor, como se o estivesse convidando a participar com ele da situação; e o olhar frontal, em que o personagem, voltado diretamente para o receptor, dialogaria com ele. No caso do mosaico, o dramaturgo está com o olhar O cothurnus era uma bota com solado alto, usada pelos atores trágicos quando em cena (VIRGÍLIO. Bucólicas, VIII.10) para aumentar a sua altura (JUVENAL. Sátira, VI.633) e lhe dar um ar mais imponente. Para esconder o cothurnus, os atores trágicos portavam longas vestimentas que tocavam o chão (RICH, 2004, p. 200). 5

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frontal, por conseguinte, está interagindo com os leitores da imagem que a apreciam. A outra figura do mosaico, que se encontra em primeiro plano, é um homem, com cabelo castanho com corte pajem e imberbe, sinal diacrítico de juventude. Veste uma túnica e manto; não porta a toga, a roupa do cidadão. Normalmente, os atores possuíam baixo status social; eram, em sua maioria, escravos ou ex-escravos. Um cidadão que atuasse como ator era degradado pelos censores (magistrados que estabeleciam as classificações sociais na Roma Antiga) e excluídos da sua posição (HALL; EASTERLING, 2008, p. 265-266 e 277-278).6 O jovem do mosaico calça soccus, pantufas que cobriam todo o pé. Em Roma, o uso deste tipo de sapato estava restrito às mulheres (soccus muliebris) e aos atores cômicos, contrastando então com o cothurnus do ator trágico (RICH, 2004, p. 589-590). A túnica e os sapatos baixos (socci) davam aos atores cômicos a liberdade de movimentos e estavam condizentes com as vestes de segmentos sociais populares. O jovem em pé tem um dos seus braços sobre uma coluneta. Com o outro braço, segura uma máscara. Esta máscara representa um dos personagens da comédia: o do jovem com cabelo anelado (oulos neaniskos). Este seria o tipo de jovens libertinos, debochados (iuvenes luxuriosi) e bonitos com rosto vivaz e as sobrancelhas arqueadas. Foi identificado como “capitão” por ser moreno e sua cabeleira flutuar como uma crina; é desta particularidade que se origina seu nome: episeistos. Estes tipos faziam parte da comédia latina, que teve como um dos seus parâmetros as peças do ateniense Menandro (343-291 a.C.), um dos mais célebres escritores da Nova Comédia,7 cujos trabalhos influenciaram os comediógrafos latinos republicanos, como Plauto (c. 254-184 a.C.) e Terêncio (c. 186/5-c. 159 a.C.) (GRIMAL, 1986, p. 103116; PARATORE, 1987, p. 39-61 e 111-133; CIRIBELLI, 1995, p. 3338 e 51-77; COUTO, 2006, p. 12-34; e MEDEIROS, 2008, p. 10-15). No Código Teodosiano (CTh), compilação em 16 livros contendo todas as leis imperiais promulgadas desde o imperador Constantino (306-337) até o imperador Teodósio (379-394), elaborado entre 435 e 438, há uma parte específica sobre homens e mulheres envolvidos em espetáculos (CTh XV.7.1-13), em que se reafirma sua estigmatização. 7 Na Comédia Nova, surgida no período helenístico (323-260 a.C.), predominavam os enredos ������������������������������������������������������������������ em torno de identidades falsas, intrigas familiares e amorosas. 6

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Pelos sinais diacríticos do soccus e da máscara em questão, estamos diante de um ator cômico. Enquanto o dramaturgo encontra-se mais ao fundo da cena, condizente com seu trabalho relacionado aos “bastidores” do Teatro, ou seja, à escrita das peças a serem representadas, o ator cômico situa-se em primeiro plano, referindo-se assim à sua performance no palco em frente à plateia. Ele também tem o olhar frontal, estabelecendo, tal como no palco, uma relação direta com o espectador. b. Signo imagético musivo: seu significado Abordaremos, neste segmento, o significado ou o interpretante. Para tanto, observaremos o contexto do aparecimento do mosaico e as expectativas dos receptores. O mosaico selecionado é um dos que decorava um cômodo de recepção de uma domus (residência) – denominada de “Casa das Máscaras” – da antiga Hadrumetum, atual Sousse na Tunísia. Esta cidade situa-se numa região que, desde a Antiguidade, permaneceu próspera devido à cultura da oliveira, cuja produção de azeite era exportada do seu porto. De origem fenícia, foi encontrado, na cidade, material arqueológico remontando ao século VI a.C. Durante a Segunda Guerra Púnica (218-202 a.C.) entre Cartago e Roma, Hadrumetum aliou-se a Roma recebendo como recompensa o status de ciuitas libera (cidade livre), o que lhe permitiu manter sua autonomia até as guerras civis do Primeiro Triunvirato entre Pompeu e Júlio César em meados do século I a.C. (LEPELLEY, 1981, p. 261). Como se posicionou favorável aos pompeianos, com a vitória de Júlio César, foi agravada com pesados tributos e com a instalação de um conuentus ciuium romanorum8 (JÚLIO CÉSAR. Guerra da África, XCVII.2). Entretanto, moedas hadrumetinas da época de Augusto mostraram que a libertas (liberdade) era ainda conservada ou fora restaurada (FOUCHER, 1964a, p. 112-116). A história municipal de Hadrumetum é mal conhecida (GASCOU, 1972, p. 67-75), devido à continuidade da ocupação humana da cidade, o que afetou a sobrevivência de material epigráfico. Por uma tábua de patronato de 321 encontrada em Roma (CIL VI.1687 = ILS 6111), sabeAssociação oficial de cidadãos romanos nas aglomerações sem status de município ou de colônia (LAMBOLEY, 1995, p. 116). Em Hadrumetum, era composta de negociantes romanos que comerciavam os produtos agrícolas da região visando exportá-los para Itália (LEPELLEY, 1981, p. 261). 8

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se que Trajano (98-117) promoveu Hadrumetum à colônia honorária, o que demonstra a plena inserção da cidade na ordem romana.9 Este imperador estabeleceu ainda um procurator regionis Hadrumetinae, responsável pelos domínios imperiais (LEPELLEY, 1981, p. 262). Desde o Principado (27 a.C.-284), Hadrumetum era uma capital regional. No governo de Diocleciano (284-305), com a criação da província de Bisacena,10 a cidade tornou-se a sua capital. A partir do século II, foram construídos monumentos públicos como teatro, anfiteatro, circo, termas e suntuosas residências aristocráticas ricamente decoradas com mosaicos. A prosperidade econômica da região fundamentava-se principalmente na produção e comercialiA promoção à colônia honorária assimilava os cidadãos da comunidade provincial aos de Roma e a obrigava teoricamente a renunciar ao que restava do seu próprio direito para adotar integralmente o direito romano. Durante o domínio romano na África do Norte, mais de 50 cidades indígenas receberam o título de colônia honorária (LEPELLEY, 1979, p. 122). Mesmo com a extensão do direito de cidadania, concedida por Caracala (211-217) através da Constituição Antonina em 212 aos habitantes de todas as cidades (excetuando-se aquelas que resistiram ao domínio romano e certas categorias de pessoas), o governo imperial continuou a conceder, a pedido das próprias comunidades, os status de município e de colônia, como se comprova nas inscrições epigráficas norte-africanas do Baixo Império (LEPELLEY, 1979, p. 128-132). O sentido de colônia, portanto, não implicava necessariamente a criação de uma nova cidade. Poder-se-ia conferir o título às cidades de categoria inferior como uma forma de promoção. Roma incentivava a lealdade das comunidades locais já existentes através da concessão deste título honorífico, quando sua história tornasse possível, desejável ou necessária esta transformação, tanto para o sistema imperial quanto para os habitantes da cidade. Era um reconhecimento de um grau de romanização suficiente para justificar a agregação de uma cidade à comunidade dos cidadãos romanos. Mas, uma romanização mais intensa era também incentivada por esta concessão, favorecendo um movimento espontâneo de adesão em favor dos costumes e leis de Roma. 10 Ignora-se a data precisa da criação da província; supõe-se entre 294 e 305. A reforma administrativa diocleciana dividiu a Província da África Proconsular em três: Zeugitana ou África Proconsular propriamente dita, Bisacena e Tripolitânia. Esta divisão visava aumentar os recursos fiscais destinados a enfrentar as ameaças exteriores, reforçar a autoridade imperial e, ao mesmo tempo, diminuir a do procônsul da África Proconsular, cujo poder em geral fazia o jogo dos usurpadores (MAHJOUBI, 1983, p. 482). 9

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zação do azeite. Em fins do século II (193-197), um cidadão hadrumetino, Décimo Clódio Albino, disputou o trono imperial com Septímio Severo, natural de outra cidade afro-romana, Leptis Magna (HISTÓRIA AUGUSTA. Clodius Albinus, IV.1). A ascensão da dinastia severiana (193-235), de origem afro-síria, ao poder representou um período de grande desenvolvimento para as províncias norte-africanas; foi a época de esplendor em Hadrumetum, quando houve uma significativa atividade edilícia, dentre elas, a residência onde se localiza o mosaico em tela, datado do início do século III. Nesse período, desenvolvia-se o “estilo musivo africano”, surgido no século anterior, que rompeu com os padrões geométricos simples, semelhantes aos italianos, seguidos pelos mosaicistas da região, que relegavam as tradições púnicas. As oficinas norte-africanas passaram a se dissociar então dos cânones dos mosaicos italianos e estabeleceram seu próprio estilo com a gradual introdução da policromia nas bordas e da integração de elementos florais e geométricos. Produziram uma grande quantidade de mosaicos policromáticos, geométricos, florais e figurativos em fundo branco. Cada região desenvolveu seu próprio estilo e seus temas a partir de tradições locais (FANTAR; et al., 1994, p. 18-45 e 55-9; LAVAGNE, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA, 2000, p. 6874). A representação do cotidiano oscilou entre o realismo, a caricatura e alguma idealização, mas também era comum se recorrerem a cenas mitológicas. A predileção por assuntos tomados da vida real e a forma de representação com distribuição de cenas trabalhadas em cores sobre uma ampla superfície branca não diferenciada eram características distintivas do “estilo musivo africano”, que chegou a sua maturidade a partir do século III e se difundiu pelo Império Romano (FANTAR; et al.,1994, p. 59 e 240-259). Os mosaicos nas paredes e no teto eram um dos elementos decorativos mais admirados. Traziam leveza às domus da elite local, ao decorar seus aposentos como se fossem afrescos e tapetes, e também revelavam a vida cotidiana, os prazeres e os valores da elite provincial (THÉBERT, 1990, p. 300-398). A riqueza desta elite, fundamentada, sobretudo, na produção de cereais e na manufatura do vinho e do azeite, como em Hadrumetum, encontrou expressão tanto na construção de monumentos públicos quanto na decoração sofisticada das residências urbanas (domus) e rurais (villae), onde os membros da elite provincial, profundamente romanizada, afirmavam seu status e seus valores culturais. A decoração doméstica nas residências urbanas de pessoas 192

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abastadas buscava reafirmar a posição privilegiada do seu proprietário frente à comunidade romanizada. A aceitação social do pavimento com mosaicos nas cidades norte-africanas era uma prática do estilo de vida urbano romano-africano. Desta forma, podemos esperar que o conteúdo das decorações nos revele muito a respeito dos gostos e valores da elite nesta parte do mundo romano. Na soleira do aposento de recepção (dimensões: 6m²) decorado com o mosaico “O poeta trágico e o ator cômico”, havia outro exemplar que apresentava três máscaras cômicas: a máscara da esquerda, por ter na cabeça um enfeite amarelo, considerado um sinal de ganância, poderia ser uma cortesã; a do centro sugeriria um velho irritável que serviria para o papel de um pai; e a da direita com uma faixa vermelha seria aceitável para o papel de servente ardiloso (KHADER, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA, 2003, p. 103). A ênfase no tema das máscaras nesta residência fez com que ela passasse a ser conhecida na contemporaneidade como “Casa das Máscaras”. Ela se localizava a cerca de 50 m ao sul do antigo teatro de Hadrumetum. O gosto dos habitantes de Hadrumetum por literatura é comprovado a partir do período dos Severos (193-235) por uma série de mosaicos, dentre eles, além dos supracitados da “Casa das Máscaras”, o de “Virgílio e as Musas”11 e o do provável Menandro ou ator cômico frente a duas máscaras cômicas. Essas imagens davam à elite provincial a oportunidade de demonstrar seu conhecimento da alta cultura (paideia), distinguindo-se assim da massa iletrada; era um signo de pertencimento social durante a vida; supunha a vitória da inteligência sobre a animalidade, da civilização sobre a barbárie. Temas relacionados à literatura clássica funcionavam, no mundo romano e no grupo social ao qual estavam relacionados, como uma prova de adesão ao conjunto de valores com forte conotação de prestígio social. O homem livre era, na verdade, instado a ocupar a maior parte de seu tempo de lazer (otium) cultivando as Musas “com igual zelo” (APULEIO. Florida, XX.1). As tragédias e comédias eram representadas no palco e também lidas, sendo declamadas em voz alta nos grandes banquetes aristocráticos e por grupos ou clubes literários. Este mosaico, um dos carros-chefes do Museu do Bardo na Tunísia, foi objeto de análise por vários estudiosos, dentre eles, Foucher (1964a, p. 216 e 230; 1964b, p. 247-257); Fantar; et al. (1994, p. 196-197 e 199-202); BlanchardLemée; et al. (1996, p. 222); Lancha (1997, p. 43-46); Khader, Balanda; Uribe Echeverría (2003, p. 530) e Bustamante (2007, p. 292-313). 11

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Havia um elo entre temas culturais e a difusão da cultura romana, que era efetiva em cidades com teatros e outros edifícios de espetáculos e que se beneficiavam também da circulação de ideias e de artistas. Os notáveis da África Romana não se limitavam a oferecer jogos no anfiteatro; eles também subsidiavam espetáculos teatrais.12 Embora a forma de espetáculo teatral mais vulgar fosse considerada particularmente imoral por teólogos cristãos (p. ex., TERTULIANO. Espetáculos, XIV e Apologético, XV; e MINÚCIO FÉLIX. Otávio, XXXVII.12), Agostinho (354-430), bispo da cidade norte-africana de Hipona, admitiu que, em sua juventude, quando ainda não se convertera ao cristianismo, apreciava muito o teatro (AGOSTINHO. Confissões, I.10.16 e III.2.2-4). O tema teatral dava prestígio ao proprietário da casa aos olhos dos seus convidados. Os cômodos de recepção recebiam um número significativo de decorações figuradas com assuntos culturais e literários. Observamos a tendência de fazer representar os assuntos literários e culturais na parte pública da casa. O arquiteto romano Vitrúvio (c. 70-25 a.C.) apresenta, para cada acomodação da domus, uma decoração própria condizente com o seu uso; assim, na exedra (sala de recepção), a decoração devia reproduzir cenas trágicas, cômicas ou satíricas (VITRÚVIO. Arquitetura, VII.5.2), tal como se apresenta na “Casa das Máscaras”. Para Lancha (1997, p. 371-372), a fácil adaptação de temas teatrais aos diferentes cômodos e edifícios privados e públicos prova a sua perfeita integração não apenas por simplesmente compor o reperVeyne (1976) cunhou o neologismo evergetismo, a partir do termo grego euergetein, para denominar uma manifestação de uma virtude ética, de uma qualidade de caráter, uma magnificência dos ricos particulares, que participavam com sua fortuna no embelezamento da sua cidade ou tomavam ao seu encargo uma parte das suas obrigações financeiras, distribuíam dinheiro aos seus concidadãos, organizavam jogos, financiavam espetáculos e banquetes públicos, distribuíam azeite e de trigo por ocasião de dedicatórias monumentais... Com isso, a elite municipal obtinha prestígio e assegurava uma grande popularidade. Era um meio de se fazer eleger como magistrados municipais; uma obrigação (munus) para a elite local, especialmente por ocasião da sua ascensão às dignidades públicas ou municipais, provando, desta forma, sua generosidade. O benefício era proporcional à posição e à fortuna do evergeta, à importância da cidade ou à função almejada. De fato, os candidatos competiam por honras públicas, a fim de obter os necessários votos populares, e não poupavam suas fortunas para agraciar sua cidade e seus concidadãos. Era uma maneira de manter as comunicações entre os vários grupos sociais urbanos. 12

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tório dos mosaístas, mas, principalmente, por estar condizente com a mentalidade dos que encomendavam os mosaicos. Era, assim, um dos aspectos mais evidentes e sensíveis da interiorização desta cultura entre os proprietários das domus e villae. Ela não funcionava apenas como sinal de reconhecimento – na parte pública da casa – entre nostálgicos e/ou militantes da cultura pagã, mas sua ubiquidade dava a medida da constante vontade de tornar viva uma cultura literária, poética, filosófica e política que constituía um componente essencial da sociedade romana provincial. As imagens dos pavimentos das casas não podiam ser separadas das leituras dos senhores, nem da sua condição de espectador, nem, eventualmente, do encargo de financiar espetáculos. Segundo Lancha (1997, p. 45), os mosaicos com estas temáticas atestavam a cultura e o gosto literário do seu proprietário. Distintamente, Fantar; et al. (1994, p. 198) questionam se os mosaicos seriam realmente demonstrativos da “grande erudição da sociedade aristocrática [local]” ou da “vitalidade da cultura clássica tradicional” na África Romana. Levanta a possibilidade de considerar que os provinciais, que encomendavam os mosaicos com esta temática, buscando reafirmar sua ascensão social advinda das primeiras gerações enriquecidas pela prosperidade da oleicultura e seus descendentes, como financistas, produtores ou armadores, estavam mais preocupados em manter transações comerciais rentáveis e em ter uma carreira política bem sucedida. Para o autor, não se podem negligenciar os modismos e esnobismos, que influenciavam na escolha dos temas dos mosaicos. Estes tipos de fenômenos também estão presentes em épocas mais recentes, como por exemplo, o orientalismo em voga no Ocidente durante o século XVIII e o american way of life dos séculos XX e XXI. Consideramos que a elite provincial afro-romana buscava se aparentar, se situar e se identificar à ordem romana através da reprodução de cenas que desvelavam a cultura clássica entre a elite, que mesmo com a cristianização do Império, não deixou de estar presente e ser valorizada na decoração das suas casas. O seu uso era fator de distinção e enobrecedor, pois permitia se identificar, se lembrar da “sua memória” e se colocar ao lado daqueles que podem e sabem se lembrar; se reconheciam apenas aqueles que tinham uma história que a sabem contar para seduzir e se fazer admitir. Portanto, os membros da elite provincial, profundamente romanizada, afirmavam assim, não apenas o seu status, mas também valores culturais comuns. As temáticas clássicas, como a do Teatro, por exemplo, eram reproduzidas e se Teatro Grego e Romano

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inseriam na retórica, que teve papel central no mundo greco-romano na construção do pensamento e expressão da elite. O motivo teatral era uma maneira de representar experiências e acontecimentos dentro de certa espécie de moral ou rede social; era uma forma de expressar alguns “significados compartilhados” (HUSKINSON, 2000, p. 7), que fundamentavam a cultura da qual se originava. Para Huskinson (2000, p. 5 e 8), apesar da diversidade cultural do Império Romano, havia uma experiência cultural compartilhada, manifesta no emprego de representações aceitas de identidade comum, que percebemos, por exemplo, através do tema escolhido para o mosaico em análise. Especificamente o Teatro, constituía-se num assunto mais tradicional para simbolizar a ligação com a cultura clássica. Desta forma, manifestava-se a constante vontade de tornar viva uma cultura literária, que era um componente essencial da sociedade romana provincial, e inferia o pertencimento e o aceite da ordem imperial romana. Lemos o mosaico em foco – encomendado por um membro da elite afro-romana para decorar sua residência – como uma construção sociocultural que cria significações sobre o poder, gerando e mantendo hierarquias. Para Woodward (2000, p. 8), “as identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas”. Justamente, compreendemos que o presente mosaico, através da linguagem visual, é uma representação que atuou simbolicamente para classificar o mundo e as relações da elite provincial no seu interior, resultando na construção de uma identidade, que estava vinculada às condições sociais e materiais específicas. Os sistemas de representação presentes na decoração doméstica das residências da elite provincial constituíram lugares a partir dos quais esta elite pôde se posicionar e se expressar. CONCLUSÃO

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A manutenção da unidade do Império Romano demandou compatibilidade de valores entre as unidades participantes da comunidade romana, compartilhando códigos de moralidade e comportamento social. Estes valores ganhavam efetividade quando incorporados a instituições, língua, religião, nomes, vestuário, culinária, imagens..., originando uma forma de vida comum, que reforçava os laços entre as unidades e originava um sentimento comum, estabelecendo assim confiança e lealdade mútuas entre as unidades da comunidade. Entretanto, não se excluía a alteridade através da existência de identidades locais; Regina Maria da Cunha Bustamante

havia espaço para o elemento local. O respeito aos direitos e costumes locais era um dos princípios essenciais da política romana. O sistema político romano buscava agregar novos elementos sem comprometer sua própria existência e, ao mesmo tempo, todos salvaguardavam sua organização particular. O mosaico “O poeta trágico e o ator cômico” permitiu compreender o processo de construção de identidade entre Roma e a elite provincial norte-africana. As identidades coletivas envolvem sistemas complexos de interpelações e reconhecimentos através dos quais os agentes sociais se inscrevem na ordem das formações sociais de diversas formas, tais como voluntária, negociada, consensual, imposta e outras. Como beneficiária da ordem romana, a elite norte-africana adotou um marco decorativo que lhe servia como elemento de identificação e de integração ao lhe permitir viver à maneira romana. Assim, manifestava sua participação na gestão do Império Romano e afirmava sua posição privilegiada frente à sociedade local. A existência de uma comunidade cultural mediterrânea, incentivada pela civilização romana e apoiada num intenso intercâmbio econômico, político e intelectual, ocasionou o desenvolvimento de uma decoração privada característica das elites em todo o Império Romano. A homogeneidade social e a cumplicidade política dessas elites foram fatores fundamentais para a perceptível uniformidade dos princípios básicos de sua decoração doméstica, sem, contudo, excluir de todo os elementos locais. As identidades culturais são formadas e transformadas dentro de um contexto social complexo composto, não apenas de instituições, mas também de símbolos e representações. Neste sentido, Woodward (2000, p. 17) aponta que “a representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos”. A constituição de uma comunidade demanda a capacidade de gerar um senso de identidade e aliança e de construir significados que norteiem e organizem ações e autoimagens. É fundamental, portanto, compreender as estratégias implementadas para a construção de identidades com a elaboração de modelos de comportamento e valores e imagens que permitam manter unidos grupos de pessoas que, se identificando culturalmente, se reconheçam e se distingam dos “outros”. Teatro Grego e Romano

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COMENTÁRIOS BIBLIOGRÁFICOS O livro de Grimal (1986) é uma introdução sucinta13 sobre o Teatro na Grécia e Roma antigas. No caso deste último, apresenta o seu surgimento e as proximidades e diferenças em relação ao Teatro grego (capítulo VI), os gêneros dramático (capítulo VII) e cômico (capítulo VIII) a partir dos seus autores e obras. Um maior aprofundamento sobre a vida dos dramaturgos e comediógrafos latinos e uma análise mais detalhada da sua obra podem ser encontrados em Paratore (1987).14 Os estudos clássicos mais tradicionais enfatizam a produção e a hermenêutica dos textos, como se verifica, por exemplo, em Grimal (1986) e Paratore (1987). Desenvolvendo perspectivas um pouco menos usuais, destacam-se duas coletâneas: uma organizada por Cavallo e Chartier (1998)15 e a outra, Hall e Easterling (2008).16 A primeira centrase no campo da recepção dos textos escritos, mais especificamente, as Este caráter introdutório está condizente com a proposta da coleção da qual o livro de Grimal faz parte: “Que sais-je?”, editada pela Presses Universitaires de France (PUF). Esta coleção, cujo subtítulo é “Le savoir vite” (O saber rápido), tem como alguns de seus princípios: direcionada ao grande público (estudantes e leigos), desenvolvimento de temas por especialistas, síntese/introdução sobre todos os assuntos e apreensão do mundo de ontem e de hoje (Disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2011). O livro em foco é a tradução portuguesa do original: GRIMAL, P. Le théâtre antique. Paris: PUF, 1978 (Coll. Que sais-je n° 1732). 14 A Fundação Calouste Gulbenkian, objetivando incentivar o Ensino Superior, desenvolveu uma linha editorial de publicação de manuais universitários, originais e estrangeiros (Disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2011). O livro de Paratore (Storia della letteratura latina. Firenze: Sansoni, 1979) insere-se nesta última categoria. 15 O livro faz parte da Coleção “Múltiplas Escritas”, publicada pela Editora Ática em fins do século XX. O primeiro volume da História da leitura no mundo ocidental foi dedicado aos períodos antigo e medieval ocidentais. Ele foi traduzido do original: CAVALLO, G.; CHARTIER, R. (Ed.). Histoire de La lecture dans Le monde occidental. Paris: Seuil, 1997. 16 Tradução do original: HALL, E.; EASTERLING, P. (Ed.). Greek and Roman actors: aspects of an ancient profession. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. 13

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práticas de leitura. Com a colaboração de especialistas, a obra apresenta um panorama bastante interessante das diferentes normas e convenções de leitura em diferentes comunidades (dentre elas, na Roma Antiga: capítulo 2) para definir os usos dos livros, os gestos de leituras e os seus processos interpretativos. Por sua vez, a coletânea de Hall e Easterling (2008) também apresenta outro aspecto, que se distingue dos estudos clássicos tradicionais: trata dos atores gregos e romanos, analisando a arte do ator, o mundo desta profissão e a ideia de ator, através de uma documentação diversificada (escrita e material) e com uma abordagem interdisciplinar que privilegia a dimensão representativa da literatura antiga, ou seja, a performance. A coleção monumental da História Geral da África, publicada sob o patrocínio da UNESCO,17 em seu volume, dedicado à África Antiga,18 fornece um panorama abrangente da África Romana19 (capítulo XIX, parte I), abordando a ocupação territorial, a organização administrativa e os problemas militares, a colonização e a organização municipal, a vida econômica (população, agricultura, indústria e comércio), a sociedade, religião e cultura. Os conceitos identidade/alteridades ganharam uma relevância significativa a partir dos Estudos Culturais. Neste contexto, insere-se a obra organizada por Silva (2000), que contem três ensaios que abordam esta questão: um de autoria do próprio organizador (capítulo 2) e os outros dois escritos por Stuart Hall (capítulo 3) e Kathryn Woodward A coleção, publicada na década de 1980, foi elaborada a partir da perspectiva dos próprios africanos. Para tanto, 350 cientistas coordenados por um comitê formado por 39 especialistas, dois terços deles africanos, procuraram reconstruir a historiografia africana livre de estereótipos e do olhar estrangeiro. Desde 2010, toda a coleção, em seus 8 volumes, está disponível em: , por iniciativa governamental, que a colocou sob domínio público, objetivando fornecer uma importante referência no campo dos estudos africanos. 18 Especificamente o volume 2, está disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2011. 19 Em termos territoriais, corresponde atualmente à região que abrange desde a Tunísia ao Marrocos. 17

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(capítulo 1).20 Esta faz uma introdução esclarecedora, revisitando as operações definidoras dos conceitos de identidade e diferença, fundamentadas na estreita interrelação entre estes dois conceitos. Dialoga com estudos antropológicos (Claude Lévi-Strauss sobre a cozinha, Mary Douglas sobre puro/impuro), filosóficos (Jacques Derrida sobre oposição binária, Hélène Ciouxs sobre gênero, Louis Althusser sobre ideologia) e psicanalíticos (Freud e Lacan sobre inconsciente). Peirce (1839-1914), pensador prolífero e multifacetado,21 impactou os estudos semióticos de textos escritos, como as obras de Eco (1991, 2004a, 2004b e 2007), e imagéticos, como em Niemeyer (2007) e Joly (1997) 22. Esta utilizou a Semiótica de Pierce para analisar a mensagem visual fixa, como pintura, fotografia e cartaz, que foram utilizados como exemplos metodológicos. Seu livro é esclarecedor para aqueles que se interessam pelo tema. DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL APULÉE. Apologie; Floride. Trad. P. Valette. Paris: Les Belles Lettres, 2002. (Collection des Universités de France) APULÉE. Les métamorphoses. T. III: livres VII-XI. Trad. D. S. Robertsn et P. Valette.Paris: Les Belles Lettres, 2002. (Collection des Universités de France). Tradução do original: WOODWARD, ��������������������������������������������� K. Concepts of identity and difference. In: _____. (Ed.). Identity and difference. London: Sage Publications, 1997, p. 8-61. 21 Santaella (2004, p. 15-22) apresenta Pierce como “um Leonardo das ciências modernas” por seu conhecimento em múltiplas áreas do conhecimento (Química, Geodésia, Metrologia, Espectroscopia, Biologia, Geologia, Astronomia, Arquitetura, Literatura, Linguística, Filologia, Filosofia, História e Psicologia), além de ser poliglota (“uma dezena de línguas”). O que unia esta diversidade científica era seu interesse pela Lógica das Ciências, ou seja, buscava compreender os métodos de raciocínio científico. Ele adotou uma concepção ampla de Lógica, que “era quase coextensiva a uma teoria geral de todos os tipos possíveis de signos”, visto como Semiótica. Produziu cerca de 80.000 manuscritos. 22 O livro, em sua edição portuguesa (JOLY, M. Introdução à análise de imagens. Lisboa: Edições 70, 2007), está disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2011. Tanto a edição portuguesa quanto a brasileira são traduções do original: JOLY, M. Introduction à l’analyse de l’image. Paris: Nathan, 1994. 20

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Da Epigrafia Teatral no Portugal Romano1

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Entende-se por “epigrafia teatral” o conjunto de epígrafes que, de forma directa ou indirecta, se prendem com o teatro como espaço ou como espectáculo e seus intervenientes.2 A expressão ‘Portugal romano’, desprovida de sentido numa acepção literal – pois nunca houve um “Portugal romano”!... –, pode considerar-se, porém, aceitável se nela consubstanciarmos, de forma expedita, dois conceitos não contemporâneos: o geográfico e o histórico; ou seja, ter em linha de conta o que é, hoje, o território português (por sinal, um dos territórios europeus cujas fronteiras se mantêm inalteráveis há mais de oitocentos anos) e, por outro lado, os vestígios que nele foram deixados pelos Romanos há mais de dois mil anos. Por conseguinte, ainda que essa área compreenda o que foi, na Antiguidade, a província romana da Lusitânia, certo é que não apenas a capital dessa província se situa, na actualidade, em território Esta nota insere-se na actividade desenvolvida no âmbito dos objectivos propostos pelo projecto de investigação do grupo Epigraphy and Iconology of Antiquity and Medieval Ages, do Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto (Unidade I&D n.º 281 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia). 2 Expressão equivalente, “epigrafia anfiteatral”, tem sido amiúde utilizada, precisamente para identificar as inscrições ligadas aos anfiteatros e aos espectáculos neles realizados. Consagraram-na, entre outros, o projecto Epigrafia anfiteatrale dell’Occidente Romano iniciado em Roma por Patrizia Sabbatini Tumolesi (1988), que estudou os textos de Roma. No que concerne à Península Ibérica, coube a Joaquín Gómez-Pantoja a elaboração do respectivo volume (o VII da série, 2009). Idêntica iniciativa ainda se não tomou em relação ao teatro, decerto também porque são consideravelmente menos as epígrafes relacionadas com a actividade teatral. 1

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espanhol, como o espaço geográfico a norte do rio Douro estava administrativamente incorporado na província da Hispania Citerior. Qual é, pois, o objectivo desta nota? Apresentar e comentar as epígrafes mais significativas de que tenho conhecimento e que se prendem com a actividade teatral nesta finisterra romana. Não temos, diga-se desde já, riqueza substancial nesse domínio. Uma placa (Fig. 1) como a de Pompeios, que, afixada num odeon, explicita claramente quem o mandou fazer – C(aius) Quinctius C(aii) f(ilius) Valg (us) / M(arcus) Porcius M(arci) f(ilius) / duovir(i) dec(urionum) decr(eto) / theatrum tectum / fac(iundum) locar(unt) eidemq(ue) prob(arunt) [CIL X 844]3 – não encontrou, por enquanto, qualquer paralelo na Hispânia ocidental.

Figura 1 Encontrou-se um teatro, o de Olisipo; temos sérias probabilidades de que outros hajam existido. Epígrafes que falem de representações teatrais, quer as de índole particular, encomendadas por senhores para gáudio dos seus convidados, quer as que resultam de circunstancialismos político-sociais, pois que celebrar um acontecimento com representações teatrais era hábito corrente por todo o Império… não há! Por enquanto… pensamos nós! Primeiro, porque este Ocidente, embora afastado dos centros decisórios e culturais importantes, nunca deixaria seus créditos por mãos alheias; depois, porque, sitas em contextos urbanos que perduraram ocupados até aos nossos dias, sem dúvida que essas pedras com letras foram, naturalmente, aproveitadas nas construções seguintes… Tradução: “Gaio Quíncio Valgo, filho de Gaio, Marco Pórcio, filho de Marco, duúnviros, por decreto dos decuriões trataram da implantação e fiscalizaram a construção deste teatro coberto”. 3

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“�������������������������������������������������������������� Converteu-se o teatro num difusor da ideologia imperial, à medida que esta se foi enraizando no seio da sociedade romana. Assinalou-o Zanker em termos bem adequados: o teatro como ponto de encontro entre o Princeps e o povo”, escreveu José L. Jiménez Salvador (1993, p. 237). Não admira, portanto, que todas as capitais conventuais, por exemplo, devessem ter teatro, precisamente para ser palco dessas manifestações, em que, para além dos aspectos artísticos propriamente ditos, as implicações sociopolíticas eram deveras consideráveis. Não se trata, este, de um tema de investigação inédito; contudo, apesar de no volume 2 dos Cuadernos de Arquitectura Romana (1993) se ter optado por analisar, em exclusivo, os teatros romanos de Hispânia (), quase se pode apontar o ano de 2002 como o do súbito despertar do interesse por estas problemáticas, se pensarmos que se reuniram, em Córdoba, nesse ano, umas jornadas sobre teatros romanos em Hispania (MÁRQUEZ; VENTURA, 2006), e Trinidad Nogales Basarrate superintendeu a edição de Ludi Romani, o catálogo de uma exposição realizada em Mérida, sobre esse tema dos espectáculos na Hispânia romana, de 29 de julho a 13 de outubro de 2002, acerca do qual, na ocasião, se realizou também um Colóquio Internacional, cujas conferências são dadas a conhecer nesta obra. Nesse domínio se tem distinguido, entre outros, Alberto Ceballos Hornero, que traçou, em 2004, uma panorâmica da documentação epigráfica relativa a tudo o que eram espectáculos da Hispânia romana, temática a que continuou a dedicar-se (2007; 2011). Os teatros nas cidades Por consequência, é bem provável que trabalhos arqueológicos de emergência ou sistematicamente planeados venham dar a conhecer edifícios teatrais nas mais importantes cidades do Ocidente romano. Pax Iulia (a actual Beja, sita no Sul do território português), que foi capital do conventus Pacensis, tê-lo-ia sem dúvida, embora os vestígios materiais da sua existência ainda se não tenham logrado encontrar.4 Da cidade provém a inscrição de um eventual exodiarius, a que mais adiante me referirei. Em Bracara Augusta (a actual Braga, sita no Norte), que foi capital do conventus Bracaraugustanus, pertencente à província romana da Sugere Vasco Mantas (1996, p. 13) a sua localização: “Apesar de pouco nítida, a estrutura do edifício evidencia-se através da análise estereoscópica […]”. 4

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Hispania Citerior, existiu. Os seus vestígios arquitectónicos foram postos a descoberto pela equipa da Universidade do Minho (MARTINS, RIBEIRO; MAGALHÃES, 2006); contudo, não são conhecidas, por enquanto, inscrições relacionáveis com o edifício ou com a actividade teatral. De duas outras cidades importantes na época romana, Aeminium (actual Coimbra) e Conimbriga (esta, seguramente, o núcleo urbano mais escavado do Portugal romano), poderá sempre suspeitar-se que tiveram teatro; nada, porém, até ao momento de relacionável se encontrou.5 Para além dos edifícios – e cingindo-nos, de modo especial, ao tema desta nota – haverá que encontrar inscrições. Podem ser monumentais, do jeito da que atrás se citou, de Pompeios, relativas, portanto, às circunstâncias que envolveram a erecção do edifício e às personalidades que nisso intervieram. Essas serão, pois, referências directas, como o seria também o achado de pedras com números, a identificar – como na actualidade – os assentos. Podem ser, todavia, referências indirectas: a epígrafe que assinala ter uma personalidade celebrado um acontecimento editis ludis scaenicis, “promovendo representações teatrais”, ou uma singela tessera theatralis, de osso, de cerâmica ou mesmo metal, à semelhança dos bilhetes de ingresso de agora… No território que escolhemos para estudo, nada disso foi encontrado até ao momento; mas, como se sublinhou, dado que as cidades continuaram a ser habitadas e a ter construções, o normal é assistir-se ao aproveitamento das pedras antigas nas novas edificações. Daí que seja, hoje, de norma o acompanhamento arqueológico de tudo o que é renovação urbana. Um teatro em Évora O caso de Ebora Liberalitas Iulia (Évora) pode exemplificar o que acaba de se assinalar. “O eixo determinado pela fachada oeste do criptopórtico coincide com o eixo transversal da estrutura que julgamos representar o teatro”, escreveu Vasco Mantas, ao referir-se à estrutura urbana de Aeminium (1992, p. 508); o tema não teve, porém, que eu saiba, ulterior desenvolvimento, dado que, em 1999, afirmou: “De outros monumentos da cidade apenas restam indícios ou vestígios de difícil ou impossível identificação, caso do teatro, que se levantaria a norte do fórum” (p. 386). 5

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Na verdade, não só a análise da morfologia do aglomerado urbano já sugeriu inclusive a mui provável localização do teatro,6 como a inscrição7 gravada no que considerei as costas de um assento do teatro, que – se a minha interpretação está correcta, porque apresentei a reconstituição feita a partir de um fragmento – nos dá conta de que Philon ofereceu ao seu patrono, Aulus Castricius Iulianus, um subsellium, ou seja, o assento de mármore que lhe ficava reservado. É a primeira vez que se encontra um testemunho deste teor; daí, a razão da minha cautela na proposta de interpretação que fiz. Regista-se a profissão de subselliarius na Roma antiga: veja-se, por exemplo, essa palavra no Oxford Latin Dictionary, que traz à colação a epígrafe de Roma (CIL VI 6055), referente a Aulus Veturius Tiro, liberto de uma mulher, que é dito supsellarius [sic]. Trata-se de singela placa, achada em columbário modesto, e nada mais diz. Por seu turno, o termo subsellium, sem uma tradução específica para português, usava-se, de modo especial, no foro judicial: homo a subselliis era a expressão que designava quem era costumeiro nos tribunais; versatus in utrisque subselliis identificava quem era versado em questões analisadas tanto do ponto de vista dos juízes como do dos advogados; e o citado dicionário apresenta uma série de testemunhos do uso da palavra nesse contexto. Pôs-se-me, por conseguinte, a questão: justificava-se a oferta de um assento na cúria? Pareceu-me que o mais ajustado seria optar por um cenário de pompa, de solene privilégio e, para esse fim, nada melhor que um teatro. Havia, como se sabe, lugares marcados no teatro consoante a categoria social; considerei, pois, que seria essa a melhor opção. De resto, Victor Chapot, no artigo sobre subsellium que assina no Dictionnaire das Antiquités Grecques et Romaines dirigido por Ch. Daremberg e Edm. Saglio (p. 1551-1552), é peremptório: “No teatro, no anfiteatro ou no circo, designavam-se assim todas as filas de assentos que rodeavam em círculo o interior do edifício (cavea), em degraus sobrepostos”. “A curva que a actual Rua de S. Mancos descreve sugere a curvatura da cavea de um teatro. A ser assim, o teatro romano de Évora ficaria perfeitamente axializado com o fórum” (ALARCÃO, 1988, p. 185). 7 Veja-se Encarnação (2008, p. 225). O estudo mais pormenorizado do texto apresentei-o em 1986-1987, p. 13-18. Acrescente-se agora Ceballos Hornero (2004, p. 616-617) (inscrição n.º 150), que, no entanto, parece preferir, sem argumentos, a hipótese de inserção da epígrafe num anfiteatro.

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E esta será, sem dúvida, uma prova deveras interessante não apenas da existência do edifício como, inclusive, da importância que lhe era concedida no seio da população culta da cidade. O teatro de Lisboa É, contudo, em Olisipo (Lisboa) que temos o teatro mais bem documentado e estudado desta zona ocidental do Império.8 A zona foi abalada pelo terramoto de 1755 e só quando, em 1798, ali se abriram os alicerces para um prédio, se puseram a descoberto as suas ruínas, que o arquitecto Francisco Xavier Fabri desenhou, desenhos que Luís António de Azevedo (1815) deu a conhecer. A reconstrução da cidade não teve, porém, em consideração a possibilidade de recuperação total do edifício (os tempos e as mentalidades eram outros!...) e só a partir de meados do século XX se voltou a dar mais atenção às ruínas existentes, embora mui significativa parte das bancadas, por exemplo, jazam ainda hoje sob o casario.9 Têm sido praticamente impossíveis as negociações para que os proprietários dos imóveis aceitem vendê-los ou permutá-los.

Figura 2 Cf. Ceballos Hornero (2004, p. 593-596), (n.º 140). Veja-se, por exemplo, em Jorge de ALARCÃO (1982) breve história da descoberta e descrição do monumento. 8 9

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No que concerne aos vestígios epigráficos, teve-se a sorte de partes de uma das mais sugestivas epígrafes ter sido desenhada também; e os subsequentes trabalhos arqueológicos, a cargo de equipas sob a tutela do Município, ajudaram a identificar os blocos que ‘sobreviveram’ (FERNANDES; CAESSA, 2006-2007, p. 93-98) (Fig. 2). Era, de facto, uma grande inscrição arquitectónica, distribuída por blocos que se ajustavam. Nem todos foram encontrados. Ou seja: nunca tivemos a inscrição completa e logo Luís António de Azevedo teve o cuidado de esclarecer: Como as relíquias das letras que se descobriram da primeira inscrição foram ainda, num quadrângulo ESARIS, num semicírculo AESAR, além de AVG e Is, assentámos, em consequência e conformidade destas palavras e sílabas, que devíamos suprir na presente inscrição o que, de ordinário, trazem semelhantes monumentos, que é dizerem não só de quem o imperador é filho, mas também declarar de quem é neto, bisneto, trineto, e assim dos outros parentescos daí por diante, como se prova de um grande número de inscrições que a todos aqueles que tiverem lição desta matéria são notórias (AZEVEDO, 1815, p. 13-14).

Na verdade, parece ter sido corrente – e certamente por obediência a uma directriz imperial tendente a justificar, por hereditariedade, a legitimidade da sua assunção do poder – que, nos monumentos em que se incluía a identifica������������������������������������������� ção���������������������������������������� do imperador Nero, viesse exaustiva referência aos seus antepassados: trineto do divino Augusto, bisneto de Tibério, neto de Germânico, filho do divino Cláudio...10 O que resta, na actualidade, do monumento epigráfico de Olisipo confirma, em parte, essa possibilidade, até porque se reconhece a existência de muitas lacunas, dado que a epígrafe se desenvolveria numa única linha, a ocupar o proscénio em toda a sua largura. Uma possível reconstituição seria, pois, a seguinte: NERONE CLAVDIO DIVI · CLAVDI(i) F(ilio) · GERMA[NICI C] AESA[RIS NEP(ote) / [TI(berii) C]AESARIS [PRON(epote) DIVI AVGVSTI ABN(epote) CAESARE] AVG(usto) GERMANICO PONT(ifice) MAX(imo) TRIB(unicia) POT(estate) III (tertia) IMP(eratore) III (tertium) CO(n) Cf. : registos 1249, 1360 e 1683, por exemplo, todos da província da Bética. 10

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S(ule) II (secundum) DESIGNATO III (tertium) / PROSCAENIVM ET ORCHESTRAM CVM ORNAMENTIS / AVGVSTALIS PERPETVVS C(aius) HEIVS PRIMVS […]

Que assim se poderia traduzir: Sendo Nero Cláudio Augusto Germânico – filho do divino Cláudio, neto do César Germânico, bisneto de Tibério César, trineto do divino Augusto – pontífice máximo, no 3.º poder tribunício, imperador pela 3.ª vez, cônsul pela 2.ª vez, designado pela 3.ª – Gaio Heio Primo, augustal perpétuo, (ofereceu?) o proscénio e a orquestra com ornamentos…

Reconhecemos, com Armín Stylow (2001, 145 – citado em Hep, 11, 2005, n.º 690), que a identificação do imperador se deve reconstituir em ablativo, a indicar a data da benemerência do augustal, neste caso uma data bem precisa: pouco antes de 13 de outubro do ano 57, dia em que assumirá o 4.º poder tribunício, mas já está designado cônsul pela 3.ª vez, cargo de que apenas será empossado a 1.º de janeiro de 58. Não é, de facto, viável, porque fora do comum neste contexto, supor que se trata de uma dedicatória – e há, pois, que corrigir todos os comentários que vêm sendo feitos nesse sentido. Não há motivo, por outro lado, para se não continuar a pensar que existiu uma primeira construção, provavelmente em tempo de Augusto, contemporânea, mui provavelmente, da urbanização inicial da cidade – no contexto político a que atrás se fez referência – e que esta intervenção de Gaio Heio Primo se insere numa remodelação do edifício. Tendo sido nomeado augustal perpétuo – uma honra de muito merecimento, que teve certamente justificação plena no papel por ele desempenhado no seio da sociedade olisiponense, ao nível económico, político e social11 –, não quis também ele deixar os seus créditos por mãos alheias e meteu ombros ao empreendimento de custear as despesas de construção do proscénio e da orquestra, com a decoração adequada. A monumental inscrição perpetuaria perante todos o seu nome e o seu gesto com mui justificada razão.

Luís da Silva Fernandes (2007) teve ocasião de enquadrar esta família dos Heii no contexto romano, sublinhando a sua importância. 11

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Figura 3

Figura 4

Fica-se, porém, com a sensação de que o texto poderia ter continuação: a presença dos nomes Cato e Heia no desenho de Fabri (Fig. 3), no final da epígrafe, pode sugerir que algo mais haveria e acaba por remeter, queiramos ou não, para a outra epígrafe citada por Azevedo e de que traz desenho (Fig. 4), em que libertos de Primus o homenageiam. Se, como parece, esse cipo12 foi colocado em lugar de Não creio que possa ser pedestal de estátua, pois, no teatro, estátuas havia, sim, mas de divindades ou de imperadores em pose de deuses – e estou a re12

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destaque no próprio teatro, também poderia ter acontecido que, além de Primus, outros membros da sua família houvessem contribuído para a remodelação do edifício. Há, porém, outro vestígio epigráfico a merecer amplo realce: a placa incompleta com a representação, em baixo-relevo, de Melpomene, musa da tragédia (Fig. 5).

Figura 5

Podemos sempre interrogar-nos acerca do lugar onde esse fragmento de placa de revestimento se encontraria originalmente e se se faria acompanhar de outras musas e, quiçá, do próprio Apolo. Não é crível, de facto, que apenas Melpomene tivesse tal honra. Contudo, o que também interessa acentuar é a circunstância de a identificação da musa vir… em caracteres gregos! Trata-se, na verdade, de uma das poucas inscrições gregas do corpus de inscrições do Portugal romano e há que fazer notar que tamanha singularidade significa não apenas erudição

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cordar a escultura do teatro de Arles a representar Augusto como se de Apolo se tratasse… José d’Encarnação

e cultura, mas também uma atitude deveras assinalável de cosmopolitismo, perfeitamente consentâneo com o facto de os augustais serem libertos e de o cipo honorífico ter sido mandado lavrar por libertos cuja onomástica é, também ela, etimologicamente grega.13 Assume-se Olisipo, desta sorte, como ponto de encontro de culturas, um porto de mar que bem poderia fazer a ponte entre o Atlântico e o Mediterrâneo Oriental. Nomes que são indícios… - Então e que nome vamos pôr ao bebé? - O pai disse-me que se chamasse Manuel José. - Apelido da mãe? - Marques; ela é da família dos Marques. - Apelido do pai? - Ah esse eu não sei!... Nós chamamos-lhe os Torneiros, porque um dos antepassados deles era torneiro, mas o nome verdadeiro não sei!... - Então, o miúdo fica Manuel José Marques Torneiro – perorou o funcionário do Registo Civil.

A cena passou-se em 1946, em Portalegre. Nessa altura, era o almocreve que, uma vez por mês, quando ia à cidade, registava as crianças nascidas nas redondezas. E, como se calcula, o pai não gostou da opção; mas, apesar de ter ficado zangado com o almocreve, acabou por chamar de Marques Torneiro a todos os filhos homens. Refiro o caso, que é verídico, porque frequente ainda nos dias de hoje, como o seria em tempo de Romanos: a profissão transformar-se, Transcrevo a versão de (registo n.º 21 285): “- - - - - / [Augu]stali / perpetuo / C(aio) Heio C(ai) l(iberto) / Primo / C(aius) Heius Primi lib(ertus) / Nothus et Heia / Primi l[ib(erta)] Elpis / Heia Notha Secunda / C(aius) Heius Nothi f(ilius) Gal(eria) / Primus Ca[t]o / Heia Nothi f(ilia) Chelid(a) / T(itus) [H]eius Nothi f(ilius) Gal(eria) / Glaphyrus Nothian/[us? - - -] / - - - - - -”. Os seus libertos aqui identificados são: Gaio Heio Primo, Heia Elpis e Heia Notha Secunda; Gaio Heio Primo Catão, filho de Notho, já é cidadão, uma vez que está inscrito na tribo Galéria (de Olisipo); registam-se, ainda, Heia Quélida, filha de Notho, e seu irmão, Tito Heio Glafiro Nothiano [?], também ele já cidadão inscrito na tribo Galéria. E outros nomes haveria. Trata-se, por conseguinte, de uma homenagem familiar, apenas passível de estar integrada no edifício, devido à benemerente contribuição dada pelo seu patrono. 13

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a dado momento, em nome próprio. E serve de introdução explicativa ao que se vai aduzir de seguida. Exodiarius

Figura 6 Foi dado a conhecer por Frei Manuel do Cenáculo, através de desenho constante no seu álbum,14 o fragmento de uma placa funerária (Fig. 6), onde se lê o seguinte (apresento a leitura interpretada): D(is) · M(anibus) · S(acrum) / PATRICIVS / EXODIARIVS / ANNORVM / […] Este arcebispo de Évora foi notável coleccionador de antigualhas, que reuniu desde os tempos em que esteve em Lisboa até ir para Beja, onde juntou uma colecção, que foi o embrião do actual Museu regional de Beja. Quando foi nomeado arcebispo de Évora, levou consigo boa parte da colecção, hoje no acerbo do Museu dessa cidade. Foi, porém, meticuloso desenhador das peças que ia ajuntando e nesses seus desenhos podemos confiar, uma vez que, comparando-os com os monumentos existentes, se verifica essa fidelidade aos mais imperceptíveis pormenores; daí que, em relação aos objectos arqueológicos que desenhou, nomeadamente inscrições, nós possamos garantir que o erro será mínimo, tão grande foi o rigor com que tudo registou. O seu álbum – que cito na bibliografia – religiosamente guardado na Biblioteca Pública de Évora constitui, por isso mesmo, uma importante fonte histórica. Cf.: Encarnação (2010, p. 47); e Morais (2009). 14

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Reflecti sobre a epígrafe e dei dela, em 1984 (IRCP 247), a seguinte tradução: Consagrado aos deuses Manes. (Aqui jaz) Patrício, actor, de … anos. […]

Analisando o desenho de Frei Manuel do Cenáculo, comentei, acerca da leitura do cognomen de Patricius, que Emílio Hübner (CIL II 65) interpretara como [E]XOD[IA]RIVS, embora, à primeira vista, se leia, de facto, IXODINPIVS (com NP em nexo): Efectivamente, no desenho de Cenáculo, da primeira letra resta a metade inferior: uma haste vertical com vestígio da barra mediana – poderá ser, portanto, um E cuja barra inferior estivesse pouco nítida; os AA não são traçados, pelo que a letra após o primeiro I pode ser A com a haste da direita bastante prolongada, chegando a tocar a letra seguinte que também poderá ser R – parece-nos ver a haste oblíqua inferior; do S final distingue-se a terminação de baixo.

Atendendo à habitual precisão de Frei Manuel do Cenáculo, a proposta de interpretação é viável e só há que esperar que o fragmento se reencontre para melhor podermos ajuizar da sua viabilidade. Em todo o caso, na sequência do que atrás se disse a propósito de o termo indicativo de uma profissão poder vir a ser integrado como antropónimo, poderia pensar-se que a tradução mais correcta seria, não a que eu propus, mas sim Patrício Exodiário, funcionando a palavra como cognomen; neste caso, parece-me que não, atendendo a que não há praenomen e Patricius, usado isoladamente se adequa a uma utilização como nome único e não como nomen, indiciando estatuto de escravo.15 Estaremos, pois, mui provavelmente, em presença de um exodiário, o que acrescenta à população de Pax Iulia um nível cultural deveras significativo. Na verdade, quanto me é dado saber, apenas mais uma referência explícita a um exodiarius se registará no conjunto da epigrafia imperial: trata-se de uma célebre inscrição em verso, de Roma (CIL VI 9797), datada do ano 126, em que (se bem a interpreto) Urso se vangloria das suas façanhas, sublinhando, nas linhas 19 e 20: “nec semel sed saepius Remeto para Kajanto (1982, p. 313), que inclui este antropónimo entre os cognomes, informando que, na Península Ibérica, no conjunto do CIL, há 8 testemunhos em 20. Esse estatuto servil parece ter sido também o dos três Patricii da necrópole de Quinta de Marim (Olhão): IRCP 49 e 50. 15

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cuius libenter dicor exodiarius”, “não é uma só vez mas amiúde que de muito boamente sou chamado exodiário”.16 Também não serão frequentes as referências literárias ao exodium, pequena peça, do jeito de uma farsa, que finalizava, completando-a graciosamente, uma representação teatral. No Oxford Latin Dictionary (s. v. exodium), alude-se a uma passagem da Vida dos Doze Césares, de Suetónio, concretamente no final do capítulo XLV referente ao imperador Tibério, em que se faz lúbrica citação de uma “atelana”, remetendo, pois, para as então chamadas exodia Atellanica. E, na verdade, se dificilmente encontraremos ‘exódio’ num dicionário de língua portuguesa, “atelanas” está consignado como “farsas populares em uso entre os antigos Romanos”. É ainda em Suetónio, na vida de Domiciano (X, 4), que se lê: “Occidit et Helvidium filium, quasi scaenico exodio sub persona Paridis et Oenones divortium suum cum uxore taxasset�������� ”������� (����� “���� Mandou matar também Helvídio filho, com o pretexto de que numa representação intitulada Paris e Oenone censurava o divórcio do príncipe”).17 Sirva-nos este pequeno excurso de aperitivo para uma conclusão: caso, como parece, Patricius foi exodiarius, à população de Pax Iulia terá mesmo de atribuir-se um estatuto cultural deveras elevado, se atendermos às características atrás citadas dos exódios: pequenas peças, de algum sabor irónico e crítico, destinadas a transmitir ao espectador forte dose de boa disposição. Aliás, isso mesmo se pode depreender da seguinte explicação, a propósito de uma sátira de Juvenal (III, 175), aduzida por Grifi (p. 27): Exodiarius apud veteres in fine ludorum intrabat, quod ridiculus foret; ut quidquid lacrymarum atque tristitiae coegissent ex tragicis affectibus, huius spectaculi risus detergeret.

O que, em tradução livre, quer dizer o seguinte: Entre os antigos, o exodiário entrava no final das peças, para ser ridículo; a fim de que, se trágicos sentimentos tivessem provocado lágrimas e tristeza, o riso deste espectáculo os fizesse desaparecer.

Esta inscrição é frequentemente citada, desde há muito. Veja-se, a título de exemplo, que já vem comentada no livro de Grifi (1847, p. 28-29). 17 Sigo a tradução indicada na bibliografia; contudo, facilmente se verificará que se trata de uma versão um tudo-nada livre, que não respeita a precisão terminológica, no caso vertente do tipo de representação. 16

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Já vimos que, com muita verosimilhança virão a encontrar-se, um dia, sob as actuais construções de Beja os restos de um edifício teatral. Não era obrigatório que o exodiário necessitasse de um palco formal para representar as suas pantomimas (passe o termo); mas não restam dúvidas de que, a ser correcta a interpretação que vimos dando a esta epígrafe, o seu testemunho reforça substancialmente essa realidade.18 Thymelicus Se se procurar o significado de Thymelicus, decerto a primeira imagem que nos aparece pode ser a de uma borboleta, a Thymelicus sylvestris, pertencente ao género Thymelicus, família das Hesperiidae. Num comum dicionário de Latim, ocorrerá encontrar-se o antropónimo feminino Thymele, Tímele; contudo, no Oxford Latin Dictionary, algo se acrescenta, com base em Marcial (1.4.5) e em Juvenal (6.66): nome de uma famosa bailarina, tida como o expoente máximo da sua profissão (“a famous dancer, taken as typical of her profession���������������������������� ”��������������������������� ). Vem, de seguida, o vocábulo Thymelicus, directamente colhido do grego θυμελικός e referente à dança e ao teatro – “of or connected with (dancing in) the orchestra of a theatre” –, como adjectivo ou, em função substantiva, como dançarino, “a performer in such dancing”. E transcrevem-se passagens de Apuleio (Apol. 13), Vitrúvio (5.7.2) e Ulpiano (Dig. 3.2.4), em que a palavra surge, assim como da inscrição CIL VI 32 323 (que é o comentário acerca dos V Jogos Seculares), onde se refere a realização de representações gregas timélicas no teatro de Pompeu, à terceira hora: (ludos) graecos thymelicos in theatro Pompei h(ora) III (tertia). Não admira, pois, que, tendo encontrado numa inscrição19 o cognomen Thymelicus, eu o tivesse relacionado, de imediato, com a actividade teatral (ENCARNAÇÃO 2010, 126-130). O texto é o seguinte: Ceballos Hornero (2004) também inclui esta epígrafe no seu livro: p. 383384 (inscrição n.º 66). Cita a opinião de Mariner segundo a qual Patricius poderia actuaria com o seu grupo pela Península Ibérica, acabando por morrer em Pax Iulia; isso é prova, conclui, que havia aí um teatro, tal como, aliás, cita, é opinião de Hauschild de que “pelo menos em cada capital conventual haveria um teatro permanente onde a população poderia assistir regularmente à representação de ludi”. 19 Vide: , registo 22 859. Fig. 7. 18

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Iulia L(ucii) f(ilia) Modesta an(norum) XIIX (duodeviginti) / Livia Nymphe an(norum) XXXX (quadraginta) / h(ic) s(itae) s(unt) / L(ucius) Iulius Thymelicus sibi filiae et / uxori Aqui jazem Júlia Modesta, filha de Lúcio, de 18 anos; Lívia Ninfe, de 40 anos. Lúcio Júlio Timélico para si, para a filha e para a esposa. Procede esta placa (de 43,3 cm de altura e 92 de comprimento) da aldeia de Souto da Casa, concelho do Fundão, um concelho bem rural da actual Beira Baixa portuguesa. Perto, em tempo de Romanos e com alguma relevância política, económica e social, apenas a civitas Igaeditanorum.20 Não se encontrou ainda qualquer vestígio de teatro entre as muitas descobertas que na cidade se vêm fazendo (CARVALHO 2009). E não se pôs sequer, por enquanto, a hipótese de o vir a encontrar. Não sabemos, porém, donde é oriundo Timélico, ainda que a sua onomástica e o cognomen de sua mulher grafado à maneira grega nos deem quase a garantia de que estamos em presença de uma família de libertos. Terá, no entanto, a atribuição do cognomen Thymelicus algo a ver com uma tradição teatral ou com o seu desempenho como actor ou bailarino, porventura enquanto escravo e ainda que a título privado ou a nível da comunidade local? Nunca o poderemos garantir; como também nunca poderemos garantir o contrário! Que estamos perante um nome invulgar, pleno de mistério e mui sugestivo, isso não se pode negar. Mais um caso em que a “profissão” determinou a onomástica? E por que não? CONCLUSÃO Estavam os teatros nas cidades. Às cidades romanas foram sucedendo, salvo raras excepções (como no caso de Conimbriga), ‘outras cidades’ ao longo dos tempos. Pedras para as novas construções haviaas, por isso, ali mesmo, à mão de semear, e muitas delas já aparelhadas, a jeito de serem incorporadas nas paredes. Então as ‘pedras com letras’ eram normalmente bem facetadas e mesmo à medida!... Essa, a razão primordial para que, neste Ocidente peninsular a que demos, por comodidade, o nome de “Portugal romano”, a epigrafia teatral seja escassíssima. De Évora suspeitamos que um fragmento de Vide o mais recente estudo sobre a sociedade e a cultura nesta cidade: SÁ 2007. 20

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mármore possa ter pertencido ao assento no teatro de um notável local. De Lisboa logrou-se retirar uma série de blocos pertencentes a uma das epígrafes mais significativas, que redunda, afinal, em prestígio do augustal benemerente, dado que o seu nome ficava bem à vista de todos no teatro para cuja reabilitação ele, a expensas suas, largamente contribuíra. Por tal motivo, nesse mesmo espaço colocaram inscrição em sua honra. E como o teatro denunciava inspiração, bem presentes estariam ali as musas, de que se recolheu o baixo-relevo de uma, Melpomene, a da tragédia. Serviu-nos, por fim, na falta de outros elementos, a onomástica: se Patricius, de Pax Iulia, foi realmente um exodiarius, estavam os habitantes da cidade dotados de elevado grau de cultura; se um Thymelicus teve tal nome por ser actor, há-de procurar-se local onde actuasse, a não ser que de actor ambulante se tratasse e, nesse caso, qualquer local lhe serviria para se fazer ouvir. A expectativa? – Que o acompanhamento metódico dos trabalhos em meio urbano, designadamente nas cidades que foram romanas, venha a mostrar-nos esses tais monumentos epigrafados a dar conta de que as famílias locais também sabiam que as representações no teatro (editis ludis scaenicis…) constituíam imprescindível veículo de inigualável promoção social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (COMENTADAS) ALARCÃO, Jorge de. O Domínio Romano em Portugal, Mem Martins: Edições Europa-América, 1988. Síntese do que então se conhecia sobre a presença romana no território actualmente português: economia, sociedade, cultura, urbanismo, organização territorial... É a edição em língua portuguesa do I vol. de Roman Portugal, Warminster, 1988. ALARCÃO, Jorge, O teatro romano de Lisboa. Actas del Simposio El Teatro en la Hispania Romana, Badajoz, 1982, 287-302. Uma das primeiras sínteses sobre a problemática arqueológica e histórica suscitada pelos vestígios até então postos a descoberto. AZEVEDO, Luís António de. Dissertação Critico-Filologico-Historica sobre o verdadeiro anno, manifestas causas, e attendiveis circumstancias da erecção do Teatro Grego e Romano

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Tablado e Orquestra do antigo Theatro Romano, descoberto na excavação da Rua de São Mamede perto do Castelo desta Cidade, com a intelligencia da sua Inscripção em honra de Nero, e noticia instructiva d’outras Memorias alli mesmo achadas, e atégora apparecidas. Lisboa, 1815. O título, bem à maneira da época, dá logo o resumo do seu conteúdo. Como é natural numa ciência em fase de nascimento, a fantasia prendese com a realidade e constante o recurso às fontes literárias antigas. CARVALHO, Pedro C., O fórum dos Igaeditani e os primeiros tempos da civitas Igaeditanorum (Idanha-a-Velha, Portugal). Archivo Español de Arqueología, 82, p. 115-131, 2009. Um dos trabalhos mais válidos sobre esta civitas, na medida em que, com base nos novos dados trazidos pelas escavações que o autor dirigiu, se faz uma concatenação com os conhecimentos anteriores. Disponível em: . CEBALLOS HORNERO, Alberto e David, La nominación de los espectáculos romanos en la epigrafía provincial del Occidente latino, Emerita, 79/1, p. 105-130, 2011. Resumo: Existem 279 espectáculos mencionados em 234 inscrições latinas, de cronologia alto-imperial, que provêm das províncias do Ocidente romano, excluída Itália. O objectivo dos autores é estabelecerem que fórmulas latinas se utilizavam para designar a edição dos espectáculos: munera gladiatorum, uenationes, ludi scaenici, circenses e certamina pugilum. CEBALLOS HORNERO, Alberto, Geografía y cronología de los ludi en la Hispania romana, Cæsaraugusta, 78, p. 437-454, 2007. Integração geográfica e histórica da realização dos ludi documentados. CEBALLOS HORNERO, Alberto, Los Espectáculos en la Hispania Romana: La Documentación Epigráfica, 2 tomos, Cuadernos Emeritenses – 26, Museo Nacional de Arte Romano, Mérida, 2004. A mais completa colectânea de inscrições que, directa ou indirectamente, se relacionam com os espectáculos (no teatro, no anfiteatro e no hipódromo). Inclui também as duvidosas e apresenta resumo das informações que dá cada uma. 222

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CENÁCULO, Frei Manuel do. Manuscrito da Biblioteca Publica de Évora: Álbum de Antiguidades Lusitanas e Luso-romanas e Lapides do Museu Sesinando Cenáculo Pacense [Códice CXXIX/1-14]. Um dos preciosos manuscritos deixados por este bispo amante de antiguidades. Dá o desenho bastante rigoroso de cada uma das peças da sua colecção e anota o local de achado. Várias das peças que desenhou se perderam, o que torna estes manuscritos de muito maior valia. ENCARNAÇÃO, José d’, Epigrafia – As Pedras que Falam. 2 ed., revista e aumentada, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, mar. 2010. Manual para o estudo da Epigrafia, designadamente da Epigrafia Romana. Encara-se o monumento epigráfico como singular fonte histórica e dão-se exemplos. ENCARNAÇÃO, José d’, IRCP – 25 anos depois. Revista Portuguesa de Arqueologia. 11/2, p. 215-230, 2008. Disponível em: . Apontamentos sobre achados epigráficos mais significativos ocorridos após 1984 (data da publicação de IRCP). No caso da epígrafe aqui estudada, é apresentada a correspondente bibliografia. ENCARNAÇÃO, José d’. Religião e cultura na Évora dos Romanos. A Cidade de Évora 69-70, p. 5-19, 1986-1987. Disponível em: . ENCARNAÇÃO, José d’. Inscrições Romanas do Conventus Pacensis [IRPC]. Coimbra, 1984. [O número indica o número da inscrição no catálogo]. O I volume contém o estudo tanto quanto possível exaustivo de cada um dos quase 700 monumentos epigráficos deste conventus, que abarca todo o Sul de Portugal. Analisam-se, no II, as informações que eles fornecem sobre os diversos aspectos da aculturação romana nesse território. Estão disponíveis em: a introdução, a conclusão geral e o índice. FERNANDES, Lídia; CAESSA, Ana. O proscaenium do teatro romano de Lisboa: aspectos arquitectónicos, escultóricos e epigráficos da Teatro Grego e Romano

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renovação decorativa do espaço cénico. Arqueologia e História (Revista da Associação dos Arqueólogos Portugueses) 58/59, p. 83-102, 20062007. Lídia Fernandes é a arqueóloga encarregada deste teatro e nele tem feito escavações; Ana Caessa é também técnica superior no município olisiponense, tendo a seu cargo a análise das epígrafes que vão sendo encontradas. Este é, pois, um trabalho que actualiza os dados conhecidos. FERNANDES, Luís da Silva, C. Heius Primus, augustalis perpetuus. Théâtre et mise en scène du pouvoir à Olisipo. In : MAYER I OLIVÉ, Marc; BARATTA, Giulia; GUZMÁN ALMAGRO, Alejandra (edit.). Acta XII Congressus Internationalis Epigraphiae Graecae et Latinae, Barcelona, p. 483-490, 2007. Disponível em: . Panorâmica dos testemunhos epigráficos acerca da família dos Heii em nível de todo o Império Romano, com vista a melhor se compreender o seu papel benemerente e a sua posição sociopolítica e económica em Olisipo. GÓMEZ-PANTOJA, Joaquín L. Epigrafia Anfiteatrale dell’Occidente Romano. VII – Baetica, Tarraconensis, Lusitania, Roma: Edizioni Quasar, 2009. Corpus bem estruturado de todas as epígrafes relativas aos espectáculos que se realizaram nos anfiteatros das províncias hispânicas. GRIFI, Luigi. Sulle iscrizioni intorno a teatri antichi e a giuochi in essi rappresentati – ragionamento primo. Roma: Tipografia delle Belle Arti, 1847. Vale o livro não apenas pelas informações que dá – data dos primeiros tempos do grande interesse pelos monumentos epigráficos – mas também pelas considerações e citações com que recheia os seus comentários. É uma obra acessível: Google eBook. HAUSCHILD, Theodor. La situación urbanística de los teatros en la Península Ibérica. El Teatro en la Hispania Romana. Badajoz, p. 95-98, 1982. 224

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Arquitecto de formação, arqueólogo por paixão, T. Hauschild constitui, sem dúvida, um dos investigadores mais sabedores acerca da relação entre os edifícios públicos e o urbanismo romanos. Também estudou exaustivamente o teatro romano de Lisboa (Madrider Mitteilungen, 31, p. 348-392, 1990). HISPANIA EPIGRAPHICA [HEp]. Revista editada pela Universidade Complutense de Madrid. Indica-se, geralmente, o número, a data da publicação e o número da inscrição. Existe uma versão on line: . JIMÉNEZ SALVADOR, José L., Teatro y desarrollo monumental urbano en Hispânia. Cuadernos de Arquitectura Romana, 2, p. 225-238, 1993. A integração do teatro no tecido urbano. Disponível em: . KAJANTO, Iiro. The Latin Cognomina, Roma, 1982 (reimp.). A obra ainda clássica sobre os cognomes latinos, porquanto regista todos os testemunhos documentados no conjunto do CIL (Corpus Inscriptionum Latinarum, obra monumental de recolha de todas as inscrições romanas, levada a cabo pela Academia de Ciências de Berlim). MANTAS, Vasco Gil. O espaço urbano nas cidades do Norte da Lusitânia. In: RODRÍGUEZ COLMENERO, Antonio (coord.). Los Orígenes de la Ciudad en el Noroeste Hispánico, I, Lugo, p. 355-391, 1999. O autor tem-se interessado pela problemática do urbanismo romano; nesta comunicação faz o ponto da situação acerca do que nesse âmbito se pode apontar como viáveis hipóteses de análise espacial. MANTAS, Vasco Gil. Teledetecção, cidade e território: Pax Iulia, Arquivo de Beja, I (3.ª série) p. 5-30, 1996. Tendo sido um dos primeiros arqueólogos portugueses a recorrer aos dados colhidos mediante a teledetecção, o autor aplica o sistema ao caso da cidade de Pax Iulia. MANTAS, Vasco Gil. Notas sobre a estrutura urbana de Aeminium, Biblos, 68, p. 487-513, 1992. Teatro Grego e Romano

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Uma das mais sugestivas reflexões acerca do modo como a cidade de Aeminium (hoje, Coimbra) se implantou no terreno, com especial destaque para o circuito da muralha e a localização dos principais edifícios públicos romanos. MÁRQUEZ MORENO, Carlos; VENTURA VILLANUEVA, Ángel (coords.). Jornadas sobre Teatros Romanos en Hispania, Córdoba, 2006. Actas desta reunião científica, realizada em Córdoba, em 2002, uma das primeiras que escolheu o teatro, nos seus diversos aspectos, como tema primordial de análise. MARTINS, Manuela; RIBEIRO, Jorge; MAGALHÃES, Fernanda. A arqueologia urbana em Braga e a descoberta do teatro romano de Bracara Augusta, Forum, 40, p. 9-30, jul./dez. 2006. Disponível em: . A primeira notícia sobre a identificação das estruturas do teatro e sua integração na malha urbana da cidade. MORAIS, Rui. Um caso exemplar: Cenáculo e o coleccionismo no Portugal de Setecentos, Cadmo, 19, p. 209-228, 2009. Uma perspectiva sobre a actividade de Frei Manuel do Cenáculo enquanto coleccionador de antiguidades. NOGALES BASARRATE, Trinidad [ed.], Ludi Romani (Espectáculos en Hispania Romana), Museo Nacional de Arte Romano, Mérida, 2002. Recensão em Conimbriga, 42, p. 237-242, 2003 Disponível em: . SÁ, Ana Marques de. Civitas Igaeditanorum: Os Deuses e os Homens, Município de Idanha-a-Nova, 2007. Primeira grande actualização do livro de D. Fernando de Almeida sobre Egitânia (Idanha-a-Velha, concelho de Idanha-a-Nova), feita a partir de cuidada análise das epígrafes na sua totalidade. Os capítulos de síntese tratam, de modo especial, da sociedade, da cultura e da religião. Realce para as excelentes fotografias, de Delfim Ferreira, cuja memória desta forma também se homenageia.

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STYLOW, Armín U. Las estatuas honorificas como médio de Autorrepresentación de las elites locales de Hispania. In: NAVARRO CABALLERO, Milagros; DEMOUGIN, Ségoulène (coords.), Élites Hispaniques, Bordéus, p. 141-155, 2001. Discute o facto de conseguir autorização para levantar uma estátua em lugar público ser honra reservada apenas a alguns notáveis locais. SUETÓNIO. Os Doze Césares, Trad. e notas de João Gaspar Simões. Lisboa, Editorial Presença, 1979. Uma das versões em língua portuguesa desta obra clássica, onde amiúde, como se sabe, a realidade se mescla com o boato e a intriga palaciana constitui tema dominante. TUMOLESI, Patrizia Sabbatini. Epigrafia Anfiteatrale dell’Occidente Romano: I. Roma, Roma: Edizioni Quasar, 1988. [Recensão in: Conimbriga, 27, p. 216-220, 1988]. O primeiro grande corpus epigráfico sobre este tema dos gladiadores e dos espectáculos levados a efeito em Roma nos anfiteatros. Um olhar arguto sobre um mundo verdadeiramente insuspeitado, que também escolheu a epígrafe como forma de eternizar sentimentos e memórias.

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O Teatro é uma Festa:

controle dos prazeres na visão de Tertuliano

Ana Teresa Marques Gonçalves A releitura da obra De Spectaculis, isto é, Sobre os Espetáculos, de Tertuliano, produzida no final do II século d.C., traz-nos interessantes questões acerca da relação dos cristãos com os vários tipos de festividades públicas promovidas pelos não cristãos no seio do Império Romano. Como temos desenvolvido pesquisas referentes às festas promovidas pelos romanos na passagem do II para o III século d.C., durante os governos dos Imperadores Severos, tornou-se fundamental a análise da narrativa tertuliânea, por seu caráter paradigmático no que concerne ao estímulo que era dado aos que professavam a fé cristã de se apartarem das cerimônias pagãs, topos literário, ou seja, uma ideia-força e recorrente, que aparece em muitos autores que defendiam a difusão das crenças e práticas cristãs no interior de uma formação imperial na qual ainda imperavam os cultos gentios. Interessante enfatizar que neste momento da chamada História do Cristianismo, os autores enfatizam a congruência que se deveria fixar entre crenças estabelecidas e práticas realizadas. A profissão de fé cristã engendrava em si comportamentos específicos, que levava seus fiéis a se protegerem da contaminação pagã, tanto pelo empreendimento de ações específicas quanto pela negação e refutação de certas ações. Peter Brown, no livro A Ascensão do Cristianismo no Ocidente, ressalta exatamente essa necessidade cristã inicial de se diferenciar dos não cristãos (BROWN, 1999, p. 34), por ações específicas a serem promovidas e/ou evitadas. Tal procedimento acaba por gerar um processo de formação identitária própria que caracterizaria as primeiras comunidades cristãs. Teatro Grego e Romano

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A Construção das Identidades Cristãs No artigo intitulado “Quem Precisa da Identidade?”, Stuart Hall demonstra como a ideia de uma identidade integral, originária e unificada tem sido criticada na contemporaneidade. Parte-se do pressuposto de que a identidade é um desses conceitos que se operam “sob rasura”, no intervalo entre a inversão e a emergência, uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem ser sequer pensadas (HALL, 2000, p. 104). As identidades são construções, ou seja, são criadas e recriadas ao longo do tempo e respondem às necessidades dos sujeitos que as constroem. Por isso, estão fundadas na fantasia, na projeção e na idealização (HALL, 2000, p. 107). Muitas vezes as identidades são construídas não a partir do que a pessoa é, mas do que ela gostaria de ser e de como ela gostaria de ser vista pela comunidade com a qual se relaciona. As identidades devem se adaptar aos vários papéis que os seres humanos representam em sociedade. A identidade deve ser plural porque o ser humano é plural. Ele é filho, marido, irmão, trabalhador, entre tantos outros papéis, e o homem tem que responder ao que a sociedade espera dele em cada uma dessas funções que exerce ao longo dos dias. E ele deve ser identificável em cada uma delas. A complexidade da vida moderna exige que assumamos diferentes identidades (WOODWARD, 2000, p. 31). Assim, as identidades estão vinculadas ao processo de autorreconhecimento que cada indivíduo elabora. No primeiro capítulo do livro Fora do Lugar: Memórias, Edward W. Said comenta: “Todas as famílias inventam seus pais e filhos, dão a cada um deles uma história, um caráter, um destino e até mesmo uma linguagem” (SAID, 2004, p. 19). Esta invenção de uma tradição, de antepassados idealizados, de um lugar no mundo, é o processo de identificação pelo qual todo ser humano passa, da mesma forma como os cristãos buscaram estabelecer características próprias de vivências comunitárias capazes de diferenciá-los dos que não professavam sua fé. Em seu caso específico, sua principal força identitária foi estabelecida sobre sua fé, que justificava ações, reprimia posturas e elencava comportamentos permitidos e/ou proibidos. A ação a ser empreendida era explicada pela adesão a um corpo de crenças compartilhadas por alguns, que buscavam expandir suas relações sociais por meio de 230

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práticas proselitistas, característica predominante da fé cristã frente a outras seitas estabelecidas a partir de cânones judaicos. As identidades são antes de tudo relacionais. Parte-se da alteridade, do que não se é, para se definir o que se gostaria de ser. Traz tranquilidade ao ser humano acreditar que se é o que se pensa que é. As identidades são marcadas pela diferença e pela formulação de símbolos que as identifiquem (WOODWARD, 2000, p. 9). Uma forma de se vestir, de se comportar, uma linguagem específica, pode simbolizar a adesão a um determinado processo de identificação, gerando fidelidades e lealdades a um determinado grupo, mas também o afastamento de outros setores sociais, com os quais o processo de identificação não se define. Na obra Os Estabelecidos e os Outsiders, Norbert Elias e John Scotson já demonstravam, a partir de um estudo de caso sobre as relações mantidas pelos habitantes de um povoado industrial inglês, como, para estes habitantes, o povoado estava claramente dividido entre um grupo que se percebia, e que era reconhecido, como o establishment, local e um outro conjunto de indivíduos e famílias vistas como outsiders. Os primeiros fundavam a sua distinção e o seu poder em um princípio de antiguidade: moravam em Winston Parva, a comunidade pesquisada, antes dos outros, encarnando os valores da tradição e da boa sociedade. Os outros viviam estigmatizados por todos os atributos associados com a anomia, como a delinquência, a violência e a desintegração (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 7). Arnaldo Momigliano, em duas obras bastante citadas por quem trabalha com os conflitos e integrações constantes estabelecidos entre pagãos e cristãos no mundo antigo, intituladas Sobre Pagãos, Judeus e Cristãos (1996) e O Conflito entre o Paganismo e o Cristianismo no Século IV (1989), enfatiza essa necessidade inicial de se estabelecerem dogmas, livros sagrados, espaços de culto, heróis cristãos (mártires e santos) capazes de identificarem os fiéis com seus paradigmas identitários. Suas ações deveriam ser capazes de diferenciá-los e destacá-los dos não fiéis, estabelecendo diferenças típicas dos processos de construção de identidades. Esta é ao mesmo tempo simbólica e social. Deste modo, existe uma associação entre as identidades de uma pessoa e os objetos que ela utiliza e expõe para apreciação pública (WOODWARD, 2000, p.10), da mesma forma que esta pessoa realiza ou evita certos comportamentos no meio social, intencionando estabelecer vínculos com certos indivíduos e, no mesmo momento, se apartar de outros. Teatro Grego e Romano

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Norbert Elias, na obra A Sociedade dos Indivíduos, demonstra como a individualização se dá no processo social, ou seja, só percebemos o que somos e como somos em contraste com os outros, com o que fazem e como se comportam os que nos cercam. E essa individualização se dá a partir de conflitos: E quanto menos objetivas são as pessoas em seus pensamentos e ações, quanto mais são suscetíveis aos sentimentos e à fantasia, menos são capazes de suportar os perigos, conflitos e ameaças a que estão expostas. Em outras palavras, as ciências humanas e as ideias gerais que as pessoas têm de si como “indivíduos” e “sociedades” são determinadas, em sua forma atual, por uma situação em que os seres humanos, como indivíduos e como sociedades, introduzem na vida uns dos outros perigos e temores consideráveis e basicamente incontroláveis. E essas formas de conhecimento e pensamento sobre as pessoas contribuem, por sua vez, para a constante reprodução desses perigos e temores (ELIAS, 1994, p. 72).

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São esses perigos e temores causados pelo estranhamento que se desenvolve na relação com os outros, os diferentes, os que não são facilmente compreendidos, que “tornam as sociedades mais coesas e dão aos seus membros uma sensação de poder sobre acontecimentos sobre os quais, na realidade, é frequente eles exercerem pouco controle” (ELIAS, 1994, p. 72). A identificação a um grupo tanto pode unir os membros deste grupo, quanto atiçar o fogo do conflito e da tensão entre os membros destes grupos de identidades diversas, que se representam de formas diferentes. A fixação das identidades é um processo que depende sempre da maneira pela qual um determinado grupo concebe, interpreta ou representa o seu mundo, resultando daí a interdependência entre os conceitos de representação e de identidade (SILVA, 2004, p. 15). Para Roger Chartier, os homens se percebem e esta autopercepção constitui sua identidade. Mas esta percepção se dá no campo das representações coletivas, do imaginário compartilhado por um grupo, num espaço e num tempo específicos. A noção de representação coletiva, por ele adotada, permite que se analisem os conflites que surgem no interior de uma dada sociedade, para que suas representações sejam consideradas as mais adequadas para aquela comunidade naquele momento. As sociedades são constituídas por diferentes grupos, que Ana Teresa Marques Gonçalves

manifestam visões de mundo diferenciadas. Essas visões de mundo hierarquizam as representações: Uma dupla via é assim aberta: uma que pensa a construção das identidades sociais como resultando sempre de uma relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma; a outra que considera o recorte social objetivado como a tradução do crédito concedido à representação que cada grupo faz de si mesmo, portanto, à sua capacidade de fazer com que se reconheça sua existência a partir de uma exibição de unidade (CHARTIER, 2002, p. 73).

As representações são fruto de lutas e de consensos, de conflitos e de articulações, no interior das comunidades. Quando Tertuliano escreveu sua obra, os cristãos estavam em busca exatamente de seu poder de nomear, de definir, de classificar o mundo em que viviam e no qual se encontravam imersos, para o qual buscavam uma significação e um entendimento próprio. Precisavam se unir em torno de suas crenças e ações comuns no intuito de buscar o reconhecimento de sua existência. Referimo-nos a um período da História Romana pouco anterior às perseguições oficiais engendradas no III século d.C., tão bem estudadas por G. E. M. Ste-Croix (1981), no seu artigo “Por que foram perseguidos os primeiros cristãos?”, e mais recentemente por Daniel Boyarin (1999), no livro Dying for God, obras nas quais se destaca um tema caro à obra de Tertuliano: a importância do martírio no estabelecimento da fé cristã. O próprio termo “ato de fé”, que caracteriza a prática do martírio, ou seja, morrer de forma trágica e violenta em nome de uma crença une em si os dois fatores que queremos ressaltar neste texto: a ação em si, que pode ser de realização (fazer algo) ou de inércia (evitar fazer algo), e a crença, isto é, os princípios teológicos e teleológicos que justificam a ação e/ou a não-ação. Tertuliano, na sua oração sobre os espetáculos não cristãos, enfatiza claramente o que deveria ser empreendido e o que deveria ser evitado pelos que professassem a fé cristã. Em sua narrativa podem ser destacados os aspectos práticos das ações humanas e as justificativas para sua implementação enquanto questão de fé. A opção por acreditar num deus único, diferente das divindades cultuadas Teatro Grego e Romano

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pelos gentios, impele o fiel a certos comportamentos, aceitando certos deveres e evitando alguns prazeres. O Autor e a Obra Quinto Séptimo Florens Tertuliano nasceu na África Romana, mais especificamente em Cartago, por volta de 155 d.C. Teve uma educação privilegiada e erudita, tanto em letras quanto em direito, tanto que como advogado exerceu a jurisprudência em Roma (a capital do Império e do mundo conhecido), alcançando notoriedade e autoridade na área do direto. Após sua conversão ao cristianismo, quando ainda estava em Roma, iniciou seus estudos sobre aquilo que ele mesmo classificaria de filosofia cristã. Ao retornar a Cartago, em 195 d.C., buscou se dedicar ao estudo do cristianismo, sua história e sua filosofia, no qual tentou dedicar-se ao estilo apologético, ou seja, de convencimento proselitista dos ainda não-convertidos à fé cristã, demonstrado exaustivamente no decorrer de suas obras. O estilo apologético foi muito utilizado pelos cristãos, indo dos Evangelhos aos escritores patrísticos e às orações, pois este estilo de escrita retratava um discurso dinâmico, normalmente feito para ser lido em voz alta e em público, por meio do qual ficava ressaltada a capacidade crítica, a forte base retórica, a grande erudição dos autores, pois por meio de artifícios de linguagem, isto é, de princípios de retórica, os expositores/ leitores precisavam captar e manter a atenção de sua plateia. Por isso, são obras nas quais costumeiramente encontram-se abundantes metáforas, exemplificações e outras figuras de linguagem. Trata-se de obras de persuasão, antes de tudo, pois visam ampliar o rebanho do Senhor, o número dos convertidos, dos crentes, por intermédio da veiculação de argumentos encarados como irrefutáveis, visto que baseados nas Sagradas Escrituras. Foi contemporâneo do governo do Imperador Septímio Severo (193-211 d.C.), além de seu compatriota, pois nasceram em cidades norte-africanas (Tertuliano em Cartago e Septímio em Leptis Magna) e ambos fazem parte de um processo de inserção de valores norteafricanos no interior do Império Romano. Septímio Severo, em 202 d.C., lançou um edito imperial, no qual lembrava aos súditos da necessidade de realização dos sacrifícios e dos cultos aos deuses do Império e enfatizava a importância do culto ao genius do Imperador, pois havia ascendido ao poder após longa luta civil contra as legiões de 234

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Pescênio Nigro e Clódio Albino, e desgastante contenda externa contra os Partos, que onerou de forma intensa o erário público. Com isso, acabou proibindo, mesmo que de maneira indireta, qualquer forma de proselitismo e propaganda religiosa concorrente à religio licita, atingindo assim especialmente a fé judaica e a fé cristã (SIMON; BENOIT, 1987, p.134). Esta nova legislação causou grandes problemas aos cristãos, especialmente porque o estilo apologético e o caráter proselitista eram a principal forma de agregação de pessoas ao movimento cristão. Tentando solucionar as crises sociais e políticas vigentes, além de visar à agregação e a unidade social, este edito, que em sua essência não pode ser visto como um incentivo claro à perseguição de cristãos, acabou dando margem para tais ações, pois o edito imperial tinha status de lei. Logo, com o ato de desobediência feria-se o preceito jurídico romano da legalidade, sendo o desobediente passível de ser penalizado juridicamente pela sua desobediência e podendo chegar até a ser condenado pelo crime de Lesa-Majestade, ou seja, traição ao poder exercido pelo povo romano por intermédio de seus magistrados, dos quais o Imperador era o principal representante em Roma e nas províncias. A situação dos cristãos ao tempo de Severo parece ter sido boa, não se detectando nos documentos a existência de uma perseguição imperial (ao menos não sistematizada tal qual se verá mais tarde no governo de Décio, por exemplo), mas devemos lembrar que o edito de Severo poderia levar à ocorrência de perseguições locais por parte de governadores das províncias romanas (MATOS, 1997, p. 69), gerando prisões de fiéis e o fechamento de centros de ensino cristãos, como os de Alexandria e de Cartago (SIMON; BENOIT, 1987, p. 135). Visto como herdeiro da erudição de Tácito, mas sem perder suas raízes eruditas e o estilo africano de escrita (HAMMAN, 1995, p. 72), Tertuliano buscou dentro do direito romano as condições para provar a tese da ilegalidade das perseguições aos cristãos, demonstrando com estilo e retórica irrepreensíveis, que o problema fundamental daqueles que perseguiam os cristãos era o desconhecimento desta filosofia, ou seja, a ignorantia dos perseguidores (HAMMAN, 1995, p. 73). Com uma contribuição que marcou todo o pensamento e os escritos cristãos posteriores, Tertuliano, por intermédio de um estilo que mesclava erudição greco-romana clássica com seus conhecimentos dos dogmas cristãos, quis trazer a sophia àqueles que não a detinham (CAMPENHAUSEN, 2005, p. 198). Teatro Grego e Romano

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Segundo Martino Menghi (1995, p. 20), sua vasta obra pode ser dividida em três grupos: estudos apologéticos, narrações anti-heréticas e orações ético-disciplinares. Do primeiro grupo, fazem parte: Ad Nationes, Apologeticum, De Testimonio Animae, Ad Scapulam e Adversus Iudaeos, obras nas quais buscou enfatizar as diferenças das crenças cristãs das judaicas e confirmar os princípios de ação dos que professavam a fé cristã, com grande ênfase para a prática dos martírios. O segundo grupo é integrado pelas obras: De Praescriptione Haereticorum, Adversus Marcionem, Adversus Hermogenem, Adversus Valentinianos, De Baptismo, De Carne Christi, De Resurrectione Carnis, Adversus Praxean e De Anima, obras nas quais o autor discute princípios que considera heréticos e reafirma ações do que considera sua visão de um verdadeiros cristianismo. Já o terceiro grupo é formado pelas orações: Ad Martyras, De Cultu Feminarum, De Oratione, De Patientia, De Paenitentia, Ad Uxorem, De Exhortatione Castitatis, De Monogamia, De Virginibus Velandis, De Corona, De Fuga in Persecutione, De Idolatria, De Ieiuno Adversus Psychicos, De Pudicitia, De Pallio e De Spectaculis. Deste último grupo, faz parte a obra que nos propomos a analisar neste texto e agrega obras nas quais Tertuliano explicita a forma de agir de um bom cristão. As práticas que ele enfatiza são todas justificadas pelas crenças cristãs e devem ser efetivados sem relutância por aqueles que optarem por professar a fé no deus cristão. Congrega temas diversos, mas fundamentais para a produção identitária cristã, pois por meio destas orações discute a importância da virgindade, do martírio, da fuga da idolatria, os tipos de vestimentas adequadas aos não gentios e as qualidades a serem desenvolvidas na prática da fé, como a coragem para o martírio, o pudor, a castidade, a monogamia, a paciência e a penitência. Neste grupo de orações, que foram em sua maioria produzidas para serem lidas em voz alta para um auditório já convertido ou em vias de conversão, Tertuliano prega a transformação das qualidades cristãs em ações adequadas aos fiéis, vinculando crença e prática na criação de uma identidade compartilhada cristã. Tertuliano apresenta, por meio de seus escritos, um modelo de vida alternativo ao praticado pela cultura e pela lei dos romanos (MENGHI, 1995, p. 5). O prêmio iminente para os convertidos e para os que demonstrarem diariamente por suas ações sua conversão seria a criação de um reino celeste na Terra. Os comportamentos por ele indicados criam uma moral, uma ética, uma disciplina próprias capazes de promoverem as virtudes cristãs. Ao repertório de virtudes pagãs tradicionais, como a coragem, a pietas, a fides, a clementia, entre outras Ana Teresa Marques Gonçalves

(PEREIRA, 1990), Tertuliano propõe ao mesmo tempo a releitura destas qualidades (a noção de pietas pagã diz respeito à manutenção da família, à proteção do patrimônio familiar e à execução dos deveres primordiais dos cidadãos, como a defesa do território pátrio, diferenciando-se sobremaneira da noção cristã de piedade, por exemplo) e a inclusão de novas posturas, como o pudor, a castidade, a paciência, que engendravam novas práticas sociais. Em suas obras, Tertuliano propõe uma releitura de princípios platônicos, aristotélicos, estoicos e epicuristas no afã de converter os gentios, de disciplinar suas ações e aproximá-las do ideal cristão. Na tentativa de convencimento, tornava-se necessário partir-se do que era conhecido para se poder ressignificar as práticas sociais. Falar dos prazeres até então realizados para se propor novos prazeres, mais de acordo com as Escrituras. Discursar sobre antigas concepções filosóficas já cristalizadas pela tradição para se propor novas ideias. Elencar antigos costumes para se estimular a prática de novas ações. Como a produção identitária sempre engendra a construção de identidades múltiplas e conflitantes, este processo se efetivou nos primórdios da produção da fé cristã. Tornaram-se comuns grandes e intensas discussões doutrinárias, ao longo do estabelecimento dos cânones teológicos, que geraram a irrupção de diversas posturas posteriormente denominadas heréticas. Um exemplo a ser destacado no estudo da obra tertuliânea é a formação do chamado movimento montanista, que se alastrou bastante no norte da África. Montano foi seu líder fundador, na transição do I para o II século d.C., quando afirmava ser portador de uma relação especial com o Espírito Santo que lhe garantia a glossolalia, isto é, a possibilidade de por meio de um transe se expressar em várias línguas, inclusive a dos anjos, o que lhe permitiria converter um número maior de povos e se aproximar dos apóstolos de Cristo, também inundados pelos dons do Espírito Santo na ação de Pentecostes. A doutrina montanista pregava forte rigor moral e práticas ascéticas que afastavam os fiéis de ritos considerados impuros. Montano, originário da Frígia, encorajava o martírio diante das perseguições locais, o que atraiu a simpatia de Tertuliano. W. H. C. Frend, a partir de uma análise filológica das obras de Tertuliano, defende que ele teria integrado a seita montanista e depois se afastado dela para criar uma comunidade ainda mais firme em termos de preceitos morais: “(Tertuliano) considera a igreja não somente como uma escola para a salvação, mas como uma comunidade de santos, aguardando a aproximação cada Teatro Grego e Romano

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vez mais rápida do fim do mundo” (FREND, 1952, p. 118-119). As obras mais tardias de Tertuliano apresentam noções ascéticas mais rígidas, exortando a monogamia ou mesmo rechaçando o casamento em prol da virgindade, enfatizando as práticas da penitência e a abolição de antigos costumes e prazeres como demonstrações de fé e de caridade cristãs. Não temos, contudo, informações sobre Tertuliano a partir de 222 d.C., data de sua última obra (De Pallio). Propondo uma Releitura do De Spectaculis Trata-se exatamente da abolição de antigos costumes e de enfáticos prazeres a obra De Spectaculis, na tentativa de formar os novos cristãos, de exortar suas virtudes e de controlar seus afetos, sentimentos e práticas sociais. A oração está disposta em trinta sucintos livros, escritos em latim, que propõem um novo prazer para os cristãos: um bom assento no espetáculo do Juízo Final, se o fiel souber evitar tentações como a de assistir aos espetáculos pagãos. Para melhor realizar o ato de convencimento e de conversão à fé cristã, Tertuliano se apropria de cânones, gêneros, formas linguísticas, ideias e exemplos retirados da tradição pagã. Ele cita textualmente os nomes de Timeu, Varrão e Suetônio no livro V, pois era preciso falar e convencer tomando-se por base o que já era conhecido. Só se efetiva um ato de persuasão a partir de modelos já construídos e estabelecidos na tradição de exempla e de referenciais retóricos. A obra em questão é uma oração na qual se exortam os cristãos a não integrarem de forma alguma, nem como partícipes nem como espectadores, espetáculos promovidos pelos pagãos. Tal exortação reveste-se de significados religiosos, políticos e éticos (MENGHI, 1995, p. 10), pois os rituais romanos congregavam todas estas esferas. Como ressalta Florence Dupont, a realização de ritos públicos e a participação em espetáculos era uma parte importante da vida política dos cidadãos romanos na capital e nas províncias (DUPONT, 1991, p. 10). Em sua condenação do mundo pagão, Tertuliano prega a ruptura com as práticas culturais dos gentios e a construção de práticas próprias para os cristãos, integrando-os em uma nova comunidade, paralela a até então existente. É uma proposta de apartamento de certos valores e de ressignificação de práticas culturais, que em última instância promoveriam a criação de uma nova cultura, mais adequada aos valores expressos nas Escrituras Sagradas. 238

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Apropriando-se de um cânone dissertativo e expositivo muito comum aos retóricos antigos, Tertuliano rejeita o ato de ver e de ouvir os espetáculos pagãos. Os sentidos da visão e da audição sempre foram caros e precisos para vários gêneros, inclusive o da História, na Antiguidade. Na concepção de François Hartog, na produção de textos de História nas sociedades clássicas: O saber deve fundar-se na autópsia e organizar-se com base nos dados que esta proporciona. Dos dois meios do conhecimento histórico, o olho e o ouvido, só o primeiro pode conduzir a uma visão clara e distinta. Além disso, é preciso usá-lo bem: autópsia não consiste num dado imediato; convém filtrá-la mediante todo um procedimento de crítica dos testemunhos, a fim de estabelecer os fatos com tanta exatidão quanto possível (HARTOG, 2003, p. 57).

Tal afirmação se baseia em elementos do método histórico, como os fornecidos por Tucídides no Proêmio da História da Guerra do Peloponeso: Quando aos fatos da Guerra, considerei meu dever relatá-los, não como apurados através de algum informante casual nem como me parecia provável, mas somente após investigar cada detalhe com o maior rigor possível, seja no caso de eventos dos quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais obtive informações de terceiros (TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, I. 22).

Assim, estabelece-se, desde os autores gregos, que os sentidos da visão e da audição daqueles que viram o fato são os melhores veículos para se chegar à verdade dos acontecimentos. Por isso, Tertuliano é tão imperativo em sua obra em se manifestar contrário a que cristãos ouçam ou vejam espetáculos pagãos, pois adaptando o sentido de verdade ao que está estipulado nas Sagradas Escrituras, ele percebe a audição e a visão como os veículos para a contaminação. Os sentidos não apenas podem se impregnar com a verdade como podem ser maculados pela vergonha. Tanto o ato de ver quanto o de ouvir em si não são bons ou maus, mas o que é visto ou ouvido se converte em porta de danação ou em caminho de salvação para o crente. São várias as passagens na obra De Spectaculis nas quais se faz referência a estes sentidos: “Prazeres exteriores dos olhos e dos ouvidos não podem nutrir uma religião baseada Teatro Grego e Romano

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sobre o espírito e sobre a consciência” (TERTULIANO. De Spectaculis, I. 1.13-15); “Pois deve-se lembrar de que o que contamina o homem pode ser recebido pelos olhos e pelas orelhas” (TERTULIANO. De Spectaculis, XVII. 5.4-6); “Aquele que tem usado a língua e as orelhas em benefício do diabo contra deus” (TERTULIANO. De Spectaculis, XXVII. 3.12-13); “Nosso espírito pode imaginá-lo graças à fé, como são aqueles espetáculos que nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem estão dispostos no coração do homem” (TERTULIANO. De Spectaculis, XXX. 7.19-22). Ou ainda na passagem mais longa: Se liberamos a gula e o ventre para todo tipo de gordura, nos afastando cada vez mais de nossos órgãos mais nobres, como os olhos e as orelhas, em direção a prazeres que consagramos aos ídolos e aos mortos, não passarão pelos intestinos, mas serão digeridos pelo nosso espírito e pela nossa alma (TERTULIANO. De Spectaculis, XIII. 1.20-25).

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Desse modo, como cita Peter Brown, no capítulo sobre festas pagãs e cristãs no mundo antigo, no livro Governanti e Intellettuali: Popolo de Roma e Popolo di Dio, é pelo uso do que há de mais humano, que são os sentidos mais primordiais, que a fé deve se estabelecer e se impregnar na essência dos crentes (BROWN; RUGGINI; MAZZA, 1982, p. 67). A noção de fides latina, tão bem estudada por Gérard Freyburger, em sua obra Fides: Étude Sémantique et Religieuse depuis les Origines jusqu´à l´Époque Augusténne, na qual se define que o conceito designa ao mesmo tempo uma disposição interior do indivíduo, uma crença, uma opinião pessoal, e um aspecto de prestígio social, vinculado à concepção de fama, estão ligados a certa atitude de constância e provém de um engajamento preciso, baseado na reciprocidade com obrigações inequívocas e numa dedicação a outrem. Fides é ao mesmo tempo ato (foedus) e poder (potestas) (FREYBURGER, 2009, p. 15). Sua acepção de crença, unida a uma sinceridade no ato de crer, fez com que ela fosse ressignificada pelos autores cristãos e traduzida nestas obras como “fé”, vista como engajamento particular em princípios divinos estabelecidos por uma divindade superior que em tempos imemoriais se comunicou diretamente com os seres humanos, que são sua criação. Este pacto criador-criatura estabelece um sistema de leis e convicções que devem ser praticadas pelos que nele creem. Maria Helena da Rocha Pereira lembra-nos, em sua obra Estudos de História da Cultura Clássica, que fides se relaciona diretamente com os atos Ana Teresa Marques Gonçalves

de confiar, garantir e deixar-se persuadir. Trata-se da fé nos juramentos, na força da palavra empenhada, na lealdade sancionada pela divindade, práticas tão caras às sociedades orais (PEREIRA, 1990, p. 323). E é desta forma que Tertuliano inicia sua oração: “Quais fundamentos da fé, quais princípios da verdade, quais prescrições da doutrina cristã vieram mostrar outros erros do mundo, como a realização dos espetáculos” (TERTULIANO. De Spectaculis, I. 1.1-3). A opção pela fé cristã incita o fiel a escolher alguns prazeres em detrimento de outros: “os prazeres dos espetáculos são incompatíveis com a verdadeira religião e com o verdadeiro respeito devido ao verdadeiro Deus” (TERTULIANO. De Spectaculis, I. 4.19-20). Interessante como Tertuliano percebe que assistir aos espetáculos pagãos é uma fonte de prazeres, mas que tal ato deve ser evitado pelos cristãos a partir de duas premissas argumentativas: renunciar aos prazeres é uma prática ascética muito bem vista e participar dos espetáculos seria ato de idolatria, pois todas as cerimônias romanas pagãs se revestiriam de atos religiosos em honra de alguma divindade do panteão. Queremos nos ater a esta segunda ideia tertuliânea: “os espetáculos trazem em sua essência a idolatria” (TERTULIANO. De Spectaculis, IV. 3.11). Para este autor, os escritores antigos indicam que todos os espetáculos, cerimônias e festividades advêm de “práticas religiosas” (TERTULIANO. De Spectaculis, V.3.19), isto é, todas as festas são celebradas “no interesse público” e estão designadas para “ídolos e superstições” específicas (TERTULIANO. De Spectaculis, VI. 2.6-7). Desta forma, renunciar à participação nos espetáculos era o mesmo que renunciar à idolatria. Retomando a Noção de Espetáculo no Império Romano Tertuliano proporciona em sua obra uma apresentação bastante interessante de alguns espetáculos romanos. Em primeiro lugar, infere que tudo que existe no mundo é obra de Deus. Assim, o problema não é o que existe, mas a finalidade dada pelo homem a cada coisa existente, pois em sua ignorância transforma em mau o que é em essência bom. O homem corrompe a criação divina ao utilizar as coisas a seu serviço de forma equivocada. O autor nos fornece um exemplo bem elucidativo desta sua argumentação: “Um homicídio, por exemplo, pode ser realizado com uma arma, com veneno ou por meio de fórmulas mágicas. Tanto o material da arma quanto o que é usado Teatro Grego e Romano

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para fazer os venenos e as magias são obras de Deus, mas o homem lhes dá mau uso” (TERTULIANO. De Spectaculis, II.8.18-21). Trata-se do “uso perverso da criação por parte das criaturas” (TERTULIANO. De Spectaculis, II. 11.11-12). O mesmo raciocínio retórico é usado para entender o mal que a visão dos espetáculos pagãos poderia causar num cristão, visto que a idolatria seria se afastar da disciplina, seria também fruto da ignorância e a pior das ofensas (TERTULIANO. De Spectaculis, II. 9.29). Os espetáculos citados pelo autor são antes de tudo grandes festas latinas, que buscavam integrar os provinciais, garantir sua lealdade e fortalecer o consenso em torno da expansão territorial do Império Romano. Por intermédio destes espetáculos, os romanos e seus líderes demonstravam sua grandeza, sua força, sua soberania, sua abundância e pediam às divindades que esta situação se estendesse por muito tempo. Como aponta Giuseppina Grammatico, no artigo “La Fiesta como el Tiempo del Dios”, o festivo na Antiguidade une a sacralidade ao trágico. A sacralidade restabelece a unidade na comunidade e desta com o divino que a institui, enquanto a tragicidade se apresenta na catarse (catharsis) que a festa encerra. A festa garantia a repetição periódica da realidade. Os gregos chamavam as festas de heorté, palavra que indica deleite, alegria, celebração, e de thalía, germinação, florescimento. Os romanos falavam em feriae, dias de repouso consagrados a render homenagens aos deuses com cultos e sacrifícios, e em festa, dias nos quais não se poderiam fazer muitas coisas, mas também seja obrigatório, lícito, fazer muitas outras, cuidadosamente estipuladas pela ordem da religio (GRAMMATICO, 1998, p. 35). E a autora demonstra como mesmo no culto a Dioniso o que parece excesso nada mais é do que a manutenção de uma regra: a bebida do vinho traria o conhecimento do mundo divino. Joaquin Barceló, no artigo “El Sentido Religioso de la Fiesta en el Mundo Antiguo”, segue esta mesma lógica argumentativa. O mundo da festa é apresentado por ele como o mundo da religião, do culto, do ritual, do cerimonial regrado e ordenado. Em todos os casos estudados pelo autor, “o sentido originário da celebração festiva exige entender a ação humana em relação direta com o divino, porque sem a interferência e a intervenção dos deuses os esforços humanos não podem prosperar nem dar frutos” (BARCELÓ, 1998, p. 81). Lembra que a festa no seu sentido mais originário não é um tempo dedicado a divertir-se, mas é uma atividade séria em que os homens têm a oportunidade de se pôr Ana Teresa Marques Gonçalves

em contato com o sobrenatural e de se vincular com as forças divinas que regem o mundo (BARCELÓ, 1998, p. 82). As festividades são momentos nos quais seu caráter cíclico e regular garantem uma renovação de laços com o sagrado, mas também dos laços sociais. São espaços que se abrem para acionar o geral e o particular, as memórias individuais e as coletivas. Na narrativa de Tertuliano, espetáculo é festa e traz prazer. E o prazer maior do cristão seria renunciar ao prazer transitório da festividade em nome de sua demonstração pública de fé, pois seria dever cristão “declarar publicamente vossa adesão a Ele” (TERTULIANO. De Spectaculis, I. 1.5), “religião esta baseada sobre o espírito e sobre a consciência” (TERTULIANO. De Spectaculis, I. 3.14-15). Para Tertuliano, as Sagradas Escrituras se prestam sempre a várias interpretações (TERTULIANO, De Spectaculis, III. 4.20), noção esta que será reformada em autores cristãos posteriores. Sendo assim, não há na Bíblia uma interdição direta dos espetáculos. Mas cabe a Tertuliano argumentar de forma enfática que certas práticas são boas em si e que devem ser reforçadas enquanto outras, más em si, devem ser evitadas. Os espetáculos permitem a reunião de ímpios, de incrédulos, e seria interessante que os cristãos se afastassem dos gentios (TERTULIANO. De Spectaculis, III. 8.18). Em nenhum lugar achar-seia escrito “não irás ao circo nem ao teatro, não observareis uma luta nem um combate de gladiadores”, mas os que se afastam dos ímpios se afastariam da corrupção (TERTULIANO. De Spectaculis, III. 2.10-13). Outro excerto exemplifica também este argumento: Esta renúncia não está explicitamente prescrita (...). De fato, como existe um desejo de riqueza, de dignidade, de gula, de libidinagem ou de glória, também existe um desejo de prazeres e os espetáculos são uma espécie de prazer (TERTULIANO. De Spectaculis, XIV. 1.4 e 2.8-11).

Ele compara os espetáculos romanos à pompa que cercaria o diabo (TERTULIANO. De Spectaculis, IV. 1.5) e vincula cada jogo romano a uma explicação mitológica e/ou lendária e a uma divindade, dando relevo à figura de Liber Pater, uma das emulações latinas de Dioniso. Nos livros V e VI, exemplifica sua argumentação citando os jogos natalícios dos Imperadores e dos Reis, os jogos públicos em prol da prosperidade dos cidadãos, as festas municipais e as cerimônias fúnebres. Tanto que o autor classifica os jogos em duas categorias: os sagrados e Teatro Grego e Romano

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os fúnebres, ou seja, em honra dos vivos e em honra dos mortos (TERTULIANO. De Spectaculis, VI. 3.13-15). Relata os sacrifícios, a organização das corridas de bigas e quadrigas no Circo, as estátuas perfiladas, os tronos, as coroas, as roupas, os mobiliários que cercavam as cerimônias de beleza e glamour, mas que horrorizavam os olhos de Tertuliano. Segundo ele, os espetáculos provinciais eram organizados com menor cuidado pela diminuta disponibilidade de meios econômicos (TERTULIANO. De Spectaculis, VII. 4), mas ofendiam o deus dos cristãos da mesma forma. No Circo, poder-se-ia ver o culto ao Sol, vindo de Samotrácia, ou à Grande Mãe, vindo do Egito. O Circo, os teatros e o Capitólio seriam lugares ocupados pelos espíritos do diabo; para evitar contaminação o cristão deveria se manter longe destes espaços citadinos (TERTULIANO. De Spectaculis, VIII. 10.17-21). Até as torcidas do Circo (vermelha, branca, verde e azul) estariam conspurcadas por sua vinculação às divindades não cristãs (TERTULIANO. De Spectaculis, IX. 5.26-28). Os jogos atléticos estariam contaminados pelo cerimonial efetivado pelos sacerdotes pagãos e porque o Estádio imitaria o Circo ao estar dedicado a vários ídolos, como Castor, Hércules e Mercúrio (TERTULIANO. De Spectaculis, XI. 4.18-19). No livro XII, Tertuliano dedica-se a descrever o munus, segundo ele, “o maior e mais famoso dos espetáculos” (TERTULIANO. De Spectaculis, XII. 1.1), ressaltando sua extrema crueldade. O Anfiteatro seria consagrado a potências divinas ainda mais terríveis que aquelas encontradas no Capitólio, transformando-se no templo de todos os demônios (TERTULIANO. De Spectaculis, XII. 7.14-16). Religião e Poder se misturavam intrinsecamente em solo romano. O calendário de festividades (feriae) era imenso e comportava verdadeiros ciclos festivos bastante heterogêneos nas formas de comemoração. As festas misturavam várias maneiras de agradar aos deuses e aos homens. Numa mesma festividade poderiam ocorrer procissões festivas, sacrifícios de animais, jogos gladiatórios, banquetes públicos, corridas de carros, entre outras atrações. A lógica tertuliânea é de que não se pode servir a bem a dois senhores, pela participação nestes espetáculos tão variados, mas imersos na religiosidade não cristã: Não reconhecemos os altares, não adoramos as imagens, não realizamos sacrifícios, não oferecemos sacrifícios aos mortos, não comemos nada que provenha dos sacrifícios 244

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feitos aos deuses ou aos mortos, pois não podemos nutrirnos ao mesmo tempo da ceia de Deus e daquela oferecida aos mortos (TERTULIANO. De Spectaculis, XIII. 4.14-20).

Assim, todos os espetáculos seriam criados no interesse do Diabo e organizados de acordo com o que lhe provem (TERTULIANO. De Spectaculis, XXIV. 1.4-5). Por isso, não se deveria participar nem com ações, nem com palavras, nem com o olhar, nem com o pensamento (TERTULIANO. De Spectaculis, XXIV. 3.9-11). Porém, Tertuliano fornece aos cristãos outras fontes de prazeres: escutar os profetas ou ler/ ouvir os salmos (TERTULIANO. De Spectaculis, XXV. 3.10-13). Podese tocar instrumentos e cantar, mas a harmonia deve ser feita em nome do Senhor (TERTULIANO. De Spectaculis, 5.23-25). Os espetáculos cristãos devem ser santos, eternos e gratuitos. Por eles, revelar-se-ia a verdade, reconhecer-se-iam os erros e se perdoariam pecados cometidos no passado, por meio de uma vida moderada, da liberdade de uma consciência pura e da superação do temor da morte (TERTULIANO. De Spectaculis, XXIX. 1.5-7 e 3.14-15). Mas o verdadeiro espetáculo do deus cristão seria a criação de uma nova Jerusalém, quando um grande incêndio anunciaria o Juízo Final e um novo tempo de paz e prosperidade (TERTULIANO. De Spectaculis, XXX. 1.5 e 2.10). O Teatro é uma Festa As referências ao espaço, às técnicas e às tramas teatrais se iniciam no livro XV da obra de Tertuliano. Segundo ele, não é o Teatro em si, enquanto lugar, que estaria contaminado, pois seria obra de Deus, mas o que fosse realizado neste espaço que contaminaria quem lá estivesse. As obras apresentadas trariam a alteração do espírito, tirariam a calma e a paz enquanto promoveriam “o furor, a bile, a ira e a dor” (TERTULIANO. De Spectaculis, 2.8-10). Os textos representados incitariam à paixão, pois “ninguém se aproxima do prazer sem paixão e ninguém prova uma paixão sem risco” (TERTULIANO. De Spectaculis, XV. 6.2425). Seria impossível assistir aos espetáculos teatrais com temperança e sabedoria, ou ânimo imperturbável e sem paixão atingindo o espírito. Interessante notar como Tertuliano nega, assim, toda a importância da catarse garantida aos textos teatrais em A Poética, de Aristóteles (XIV. 1.30-54). Para o autor cristão, a catarse teatral geraria o furor, a vaidade, a estranheza, e não a reflexão que melhoraria o caráter dos homens, como para Aristóteles. O furor seria um sentimento capaz de Teatro Grego e Romano

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impelir o homem a más ações, a delírios, a paixões (TERTULIANO. De Spectaculis, XVI. 4.15), por isso deveria ser evitado a todo custo, mesmo abrindo-se mão de situações consideradas prazerosas. A ação de assistir a atos teatrais poderia levar à impudicícia e à obscenidade que os atores representavam com seus gestos. Arriscava-se a ordem ao se colocar no palco, por exemplo, personagens que representassem prostitutas (TERTULIANO. De Spectaculis, XVII. 2.5 e 4.20-22). Tertuliano retira do texto teatral qualquer possibilidade pedagógica, qualidade que os antigos autores pagãos tanto reforçavam. Seria impossível aprender qualquer valor cristão assistindo às peças ou participando de espetáculos teatrais. Eram festas, sem dúvida, mas que contaminavam ao invés de limparem o espírito: “Da interdição da impudicícia advém a interdição também do teatro” (TERTULIANO. De Spectaculis, XVII. 6.8). Tanto no gênero trágico quanto no cômico, defender-se-iam crimes e se apresentariam cenas libidinosas, cruentas e lascivas, o que reforçaria a obscenidade por meio dos olhos e dos ouvidos. O texto teatral não deveria ser acolhido nem sob forma de recitação (TERTULIANO. De Spectaculis, XVII.7.17). O espetáculo teatral não deveria ser visto porque ficaria na memória do expectador e ao recordá-lo ele seria para sempre revivenciado, o que denotaria novas ondas de impurezas no caráter do cristão. O espaço cênico estaria reservado para cenas de adultérios, mentiras, idolatrias. Os espetáculos no Circo causariam frenesi, os do Estádio, insolência, os do Anfiteatro, horror, e os do Teatro, impureza (TERTULIANO. De Spectaculis, XX. 5.17-20). O fiel deveria se proteger de palavras vulgares e de gestos desavergonhados. Tertuliano critica até mesmo o fato dos atores usarem sapatos que os deixavam mais altos que os outros mortais, pois para ele apenas Cristo poderia ter uma estatura mais elevada. As máscaras, objetos cênicos por excelência, seriam terríveis, pois imitariam a imagem de Deus. Ele não aprova quem falsifica a própria voz, o sexo, quem faz passar por verdadeiros falsos amores, quem falseia lágrimas e gemidos, quem finge ser uma mulher (TERTULIANO. De Spectaculis, XXIII. 4.15-19 e 5.20-24), desabonando qualquer prática teatral. No livro XXVI, bem ao gosto da retórica antiga, fornece um exemplo vivaz do que pode acontecer com quem frequenta teatros. Uma mulher que foi ao Teatro acabou tomada pelo Diabo. Durante o exorcismo, o espírito maligno afirmava: “eu fiz algo que me é de direito, pois ela se encontrava em meu território” (TERTULIANO. De Ana Teresa Marques Gonçalves

Spectaculis, XXVI. 2.4-8). Tem-se uma quantidade suficiente de obras, versos, pensamentos, hinos e cantos, mas não se encontra neles a verdade. Não se divulga por eles a castidade, a fé, a misericórdia e a modéstia, valores mais ressaltados por Tertuliano nesta obra (TERTULIANO. De Spectaculis, XXIX. 4.19-22 e 5.25-27). A obra teatral desequilibraria os humores e os sentimentos, turbaria a visão da verdade. Os atores, os atletas, os gladiadores, os aurigas acabariam sendo exaltados mesmo não detendo amplos direitos civis. Eles receberiam distinções mesmo não integrando a Cúria, o Senado, a Rostra, ou pertencendo à ordem equestre ou tendo honras e distinções. Os partícipes dos espetáculos confundiriam a ordem instituída, falseariam os papéis sociais e desorganizariam o equilíbrio das instituições, na opinião tertuliânea (TERTULIANO. De Spectaculis, XXII. 1.6-7 e 2.10-15). Da mesma forma como condena todos os tipos de espetáculos, sem fazer grande diferença entre eles, Tertuliano indica que o espaço do Teatro é também um espaço festivo, mas tão indigno quanto os outros. Nada de bom poderia vir de se frequentar os espaços cênicos, nem o palco, nem a plateia, nem os locais de recitação e/ou leitura pública. Para o autor, não se poderia desenvolver a moral verdadeira em locais onde se praticavam atos impuros aos olhos do deus cristão. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pela releitura atenta da obra em questão, percebe-se que o mundo de Tertuliano é dividido entre o bem e o mal. Seu imaginário é marcado pelo confronto entre luz e trevas num mundo real criado à imagem e semelhança de seu Deus. Os espaços foram criados pela divindade, mas mal usados pelo Diabo e por seus seguidores. Nas festas cristãs, o único sangue bem vindo seria o dos mártires, como o próprio Cristo, que se imolou pelos seus fiéis. O único gesto salutar seria o do martírio em prol do proselitismo cristão. Tertuliano chega mesmo a enfatizar: “Querem também um pouco de sangue? Tem aquele de Cristo” (TERTULIANO. De Spectaculis, XXXIX. 5.28). Como a origem de todos os espetáculos seria a idolatria, eles deveriam ser evitados. A loucura, a ira, a dor se insinuariam inevitavelmente aos que participassem das manifestações festivas (MENGHI, 1995, p.14). Mesmo na plateia, os espectadores seriam partícipes dos atos impetrados e se contaminariam tanto quanto quem nele interferisse diretamente. Não há diferença na mácula entre atores e público no Teatro Grego e Romano

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espaço teatral pensado por Tertuliano. Como compensação pela renúncia aos prazeres pagãos, o autor apregoa um lugar de relevo no maravilhoso e terrível espetáculo que será o fim do mundo. Os olhos, como portas da alma, e os ouvidos deveriam ser poupados para o Apocalipse, o mais importante espetáculo cristão. Portanto, no longo processo de construção de uma identidade cristã, frente às expressões culturais não cristãs, autores como Tertuliano expressaram seu incômodo com práticas tradicionais pagãs e admoestaram os fiéis a controlarem seus prazeres, em prol da construção de um novo tipo de sociedade, baseada em novas lógicas, novas mitologias e várias ações ressignificadas. DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL ARISTÓTELES. A Poética. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1995. TERTULLIANO. De Spectaculis. Trad. Martino Menghi. Verona: Arnaldo Mondadori, 1995. TUCÌDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: EdUnB, 1987. OBRAS GERAIS BARCELÓ, J. El Sentido Religioso de la Fiesta em el Mundo Antiguo. In: GRAMMATICO, G.; et al. (eds.). La Fiesta como el Tiempo del Dios. Santiago: CEC, 1998, p. 77-86. BOYARIN, D. Dying for God. California: Stanford University Press, 1999. BROWN, P. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. _____; RUGGINI, L. C.; MAZZA, M. Governanti e Intellettuali: Popolo de Roma e Popolo di Dio. Torino: Giappichelli, 1982. CAMPENHAUSEN, H. Von. Os Pais da Igreja. Rio de Janeiro: CPAD, 2005. CHARTIER, R. À Beira da Falésia: A História entre Certezas e Inquietude. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002. DUPONT, F. Teatro e Società a Roma. Bari: Laterza, 1991. ELIAS, N. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 248

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Ordem e Desordem na Cidade Antiga: O Teatro entre a Tradição Clássica e a Cristã

Gilvan Ventura da Silva Romanização ou romanidade? Os estudos acerca da assim denominada “identidade romana” desenvolvidos nas últimas décadas tem insistido num aspecto crucial quando se trata de compreender os mecanismos que conferiam certa unidade a uma infinidade de povos, línguas e crenças disseminadas pelas províncias de um território supra continental: o fato de que, não obstante tenha gozado de uma ampla receptividade entre arqueólogos e historiadores, o conceito de romanização deriva ao fim e ao cabo de uma valorização excessiva da matriz cultural latina, que tenderia a exercer uma influência irresistível sobre as realidades locais, dando margem inclusive à classificação das culturas provinciais como “pré-romanas”, “romanas” e “semiromanizadas” (MENDES, 2008, p. 38-39). Na contramão desse modelo unilateral de interpretação da dinâmica cultural do Império, os pesquisadores têm hoje investido numa reflexão um pouco mais complexa, pretendendo elucidar, com base em estudos de caso, quais elementos poderiam ser interpretados como próprios de uma “cultura romana” standard e quais seriam as particularidades locais, sem, no entanto, supor um conflito, uma contradição entre elementos “romanos” e “não romanos” e sem atribuir a qualquer uma das variáveis da equação uma carga valorativa em comparação à outra. O que investigações tendo como referência, por exemplo, as modalidades de apropriação do espaço – e, quanto a isso, o espaço urbano, mas não apenas ele, adquire uma importância singular – apontam sem cessar é a existência, no Império Romano, de múltiplas variações regionais, isso não se pode negar (REVELL, 2009, p. 3). No entanto, essas mesmas investigações também demonstram a recorrência de formas culturais Teatro Grego e Romano

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que, se não podem mais ser explicadas à luz da romanização, uma categoria que padece já de certo esgarçamento teórico, talvez adquiram algum sentido mediante o emprego do conceito de romanidade, de sentimento de pertença a uma comunidade portadora da humanitas, ou seja, do estatuto de humanidade revelado pela adesão a alguns valores, ritos e comportamentos comuns.1 Uma romanidade que sabemos fluida, plural, porosa, mas que não deixa de exibir, no limite, uma face que poderíamos qualificar como romana, ou antes, como greco-romana (VEYNE, 2005, p. 11). Estimulada por esse novo approach que vemos se delinear nos últimos anos, a exploração da cultura material tem trazido indícios preciosos acerca da configuração dos processos identitários no Império Romano, uma vez que constatamos uma conexão indissolúvel entre a fixação das identidades e as atividades do cotidiano executadas dentro de um ambiente específico a partir de performances igualmente específicas. Dentre as variáveis que nos permitiriam falar em padrões culturais compartilhados pelas populações do Império, os quais sustentariam a ideia de romanidade, as diretrizes de organização do espaço cívico, vale dizer, o urbanismo, desempenhariam, ao lado da imagem imperial e da práxis religiosa pagã, um papel de primeira grandeza, auxiliando na reprodução, em nível local, das estruturas simbólicas que confeririam certa unidade ao Império. Tomando como ponto de partida a centralidade da vida urbana para os romanos, o que se observa nas províncias é o investimento das elites na construção, manutenção e restauro de um conjunto de formas arquitetônicas associadas, embora de modo um tanto difuso, a uma “cultura romana”, ou antes, a uma expectativa cultural do que se entenderia como romano em oposição, por exemplo, ao bárbaro, formas arquitetônicas essas que contribuem para a manutenção de uma ordem calcada em diversas oposições: rico e pobre; homem e mulher; cidadão e estrangeiro; livre e escravo, dentre outras (REVELL, 2009, p. 19). Desse modo, por mais que tenhamos consciência do quanto o Império era múltiplo, multifacetado, como os pesquisadores não cessam de nos alertar, é impossível pura e simplesmente desconsiderar as recorrências que nos permitem falar do Império Romano, no singular, e não de “impérios”, no plural, e que se materializam, por exemplo, num repertório de edifícios urbanos bastante Para uma discussão sumária, mas atualizada, acerca dos limites do conceito de romanização, consultar Hingley (2010). 1

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característicos que podem ser encontrados da Bretanha à Mesopotâmia, com destaque para as termas, o circo, o anfiteatro e, naquilo que nos interessa, o teatro. Prescindindo de uma abordagem tão-somente arquitetônica e propondo uma análise cultural mais abrangente, é possível afirmar que estes edifícios comportam uma conexão estreita entre as atividades que aí se desenvolvem e o público que regularmente os ocupa, o que nos remete ao princípio da arquitetura como experiência vivida, razão pela qual a maneira como os grupos sociais se relacionam com os edifícios e monumentos, a representação que deles fazem, o significado cultural que lhes são atribuídos, as regras de ocupação do recinto, nos trazem valiosas informações sobre como, no dia a dia, as hierarquias sociais são produzidas, reproduzidas e subvertidas e sobre como as identidades e alteridades são forjadas. Tendo em vista essas considerações, nos propomos, neste capítulo, a refletir sobre o teatro como um espaço polissêmico capaz de engendrar ao mesmo tempo a ordem e a desordem de acordo com o ponto de vista do espectador. Para tanto, discutiremos, num primeiro momento, as relações existentes entre o teatro, compreendido na sua dimensão física, arquitetônica; as modalidades de espetáculo que aí se desenrolam e a produção/reprodução daquilo que poderíamos qualificar como “ordem” romana, ou seja, como um conjunto de disposições hierárquicas que estabelecem uma “cartografia” das relações de poder na qual os pobres, as mulheres, os escravos e os estrangeiros figuram numa posição usualmente subalterna. Cumpre notar, entretanto, que esta ordem não deve, em absoluto, ser tomada como uma realidade estanque, estática, pois onde quer que ela se imponha haverá sempre um trabalho de contraordem, de subversão, como pretendemos demonstrar em seguida, ao analisarmos a censura dos cristãos ao teatro. Desde pelo menos Tertuliano, os autores cristãos não cessam de qualificar o teatro como um espaço privado de Deus, um território posto sob influência demoníaca, o que, pela insistência e consistência discursivas, nos revela a importância dessa forma de entretenimento para a configuração de uma determinada identidade no Império. A base empírica de nossas reflexões é constituída pela série de Homilias sobre o Evangelho de Mateus proferidas por João Crisóstomo, um pregador que desde 386, ao assumir o cargo de presbítero da igreja de Antioquia, não poupou esforços no combate aos espetáculos teatrais que, muito embora fossem uma das manifestações culturais mais características da cidade antiga, eram para os cristãos fonte de desordem, desregramento Teatro Grego e Romano

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e poluição, numa surpreendente inversão de todos os valores que até então conferiam ao teatro uma posição preeminente para a manutenção da ordem imperial. A arquitetura romana dos ‘ludi scaenici’ Os espetáculos romanos, designados ludi ou agones, faziam parte do ciclo de comemorações religiosas previstas no calendário oficial. Prolongando-se por vários dias, os festivais em honra aos deuses ou aos mortos costumavam apresentar, além das exibições dos aurigas no circo (ludi circenses), múltiplas funções teatrais (ludi scaenici) de caráter cômico e trágico. Já os combates de gladiadores (gladiatoria munera), que tanto interesse despertam em nós, contemporâneos, eram menos frequentes, mas nem por isso deixavam de seduzir os espectadores, que lotavam as galerias do anfiteatro para aplaudir os seus combatentes favoritos (EDMONDSON, 2002, p. 9). As representações cênicas em Roma remontam, pelo menos, ao século IV a.C., sem que delas conheçamos os pormenores. Sabemos, todavia, que os primeiros espetáculos propriamente ditos surgem apenas por volta de 240 a.C., inspirados em originais gregos das poleis do sul da Península Itálica. Doravante, o teatro, cada vez mais integrado à sociedade romana em virtude da conquista do Mediterrâneo oriental, experimentará uma bem-sucedida trajetória como uma das principais manifestações culturais do Império, a ponto de, sob o Principado, supor-se que toda civitas digna desse nome devesse contar com pelo menos um teatro (BARNES, 1996, p. 161). Não obstante o interesse crescente da elite e da população em geral pelos ludi scaenici, importa assinalar que a construção de teatros em pedra na Península é um acontecimento até certo ponto tardio, pois somente por volta do I século a.C. temos notícia dos primeiros teatros permanentes em cidades como Tivoli, Preneste e Pompeia, até que, em 55 a.C., Pompeu decidiu erigir o primeiro teatro em Roma, ao que parece inspirado no modelo de Mitilene, cidade grega da ilha de Lesbos. Antes do século I a.C., todos os teatros erguidos na Itália eram temporários, permanecendo em uso apenas durante o festival que visavam a atender e sendo demolidos em seguida, muito provavelmente devido ao zelo do Senado, temeroso de que os romanos se tornassem por demais afeitos à “moda grega”, tida como prejudicial a homens de índole viril (BROTHERS, 1989, p. 99). 254

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Mirando-se de início nos teatros gregos da época helenística, os teatros romanos, ao se multiplicar em fins da República, apresentarão algumas inovações importantes em termos arquitetônicos. O teatro grego convencional era composto por um espaço circular (orchestra) no qual evoluía o coro, um componente indispensável das tragédias e comédias. Ao redor, ocupando quase o raio total da orchestra, ficava o auditório (cavea), composto por arquibancadas concêntricas. Do lado oposto das arquibancadas, erguia-se um edifício denominado scaenae frons, um cenário fixo em formato retangular que apresentava uma extensão compatível com a da orchestra (GRIMAL, 2003, p. 70). À frente da scaenae frons corria uma plataforma denominada pulpitum, o palco propriamente dito sobre o qual os atores representavam, que se elevava de três a quatro metros acima da orchestra (Fig. 1 A). Os arquitetos romanos operaram diversas modificações nessa estrutura, dentre as quais uma das mais expressivas foi a conversão da orchestra num semicírculo, acompanhando a opção dos dramaturgos romanos em reduzir o papel do coro, uma tendência já presente nas peças de Plauto e Terêncio. Como consequência, a orchestra romana será ocupada pelos espectadores mais ilustres, como os senadores, os membros da domus (casa) imperial e, no caso dos teatros locais, os decuriões e seus familiares (BROTHERS, 1989, p. 103). O espetáculo, na sua íntegra, é então transferido para o pulpitum que, além de ter a sua extensão e profundidade ampliadas, é rebaixado, aproximando-se do nível da orchestra (Fig. 1 B). Além disso, outra singular inovação romana foi o investimento na decoração da scaenae frons, uma parede muitas vezes da altura da cavea que reproduzia a fachada de um palácio. Um jogo de portas (três ou cinco, conforme as dimensões do teatro) permitia o trânsito dos atores entre os bastidores e o pulpitum. A porta central era denominada regia e utilizada pelo protagonista. A ornamentação da scaenae frons, em sintonia com o gosto romano por uma decoração mais sofisticada, exibia inúmeros rebuscamentos, incluindo revestimento com pedras coloridas, instalação de frisos esculpidos e construção de nichos (cellae) nos quais eram depositadas estátuas dos deuses, do imperador ou de personagens ilustres. Muito embora a monumentalidade da scaenae frons obrigasse o cenário a permanecer sempre o mesmo, independentemente do tipo de espetáculo, uma das suas vantagens era amplificar a voz dos atores, que da parede reverberava para a cavea. Por último, enquanto os teatros gregos eram, em sua maioria, erguidos nas Teatro Grego e Romano

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encostas das montanhas, uma hábil solução que permitia assentar a cavea na rocha entalhada, poupando-se assim tempo e matéria-prima, os teatros romanos se situavam em terreno plano, sendo sustentados por um complexo de vigas e arcos formando galerias utilizadas para dar acesso à orchestra e à cavea e como abrigo em caso de chuva repentina (GRIMAL, 2003, p. 70-71). As três principais divisões espaciais do teatro romano eram, por um lado, a cavea e a orchestra, locais da audiência e, por outro, o proscaenium que, repartido em pulpitum e scaenae frons, pertencia aos atores. A cavea, formada por semicírculos concêntricos (cunei), subdividia-se em ima, media e summa cavea, ocupadas pelos espectadores conforme o seu status, como veremos a seguir. Cada uma dessas seções era separada das demais por meio de muretas (podia), a fim de restringir a possibilidade de contato entre indivíduos de condições sociais distintas. Temos conhecimento que alguns assentos da cavea eram reservados em nome de determinadas personagens ou collegia (associações profissionais), como no teatro de Bostra, onde inscrições demonstram que uma parte da media cavea pertencia aos collegia dos bronzeiros e joalheiros. Havia também o hábito de numerar as fileiras de assentos, começando pela parte inferior. Nesse caso, os bilhetes, usualmente confeccionados em osso ou marfim e representando um peixe, um pássaro ou mesmo uma porta (a entrada principal do teatro) trazem a indicação precisa do assento. Sobre a cavea era possível afixar toldos (velae), desfraldados para proteger o público do sol ou da chuva. Sabemos, inclusive, que os toldos poderiam receber uma decoração elaborada, pois Nero teria feito instalar, no teatro de Pompeu, uma vela na qual aparecia conduzindo uma biga, estratagema visando certamente a enaltecer a própria imagem diante do público da Capital. Em muitos teatros romanos, a parte superior da cavea era circundada por uma colunata coberta (porticus). A orchestra, por sua vez, destinava-se aos senadores e principais magistrados, cujos assentos eram dispostos em torno da borda. Assim como a summa, a media e a ima cavea eram separadas entre si pelo podium, o mesmo ocorria entre a orchestra e a cavea. Nas laterais esquerda e direita da orchestra ficavam as tribunalia, ou seja, as tribunas de honra dos magistrados responsáveis por presidir os ludi scaenici, a exemplo dos pretores, em se tratando da cidade de Roma. A terceira parte do teatro, o proscaenium, dividiase, como dissemos, em pulpitum e scaenae frons. O pulpitum, usualmente 256

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confeccionado em madeira, era a plataforma sobre a qual os atores se movimentavam. Atrás deles, projetava-se a scaenae frons, uma parede que funcionava como cenário fixo, em geral reproduzindo a fachada de um palácio com portas ímpares. Na parte anterior do pulpitum, numa canaleta do tablado, situava-se a cortina (aulaeum), abaixada no início das apresentações e suspensa ao término, ao contrário do movimento atual. Acima do pulpitum havia uma cobertura em madeira cuja finalidade, muito provavelmente, era favorecer a acústica. Atrás do proscaenium localizava-se o postcaenium, composto por camarins e escadas que conduziam ao topo da scaenae frons (SEAR, 2006, p. 1 e ss.). Os custos de construção e manutenção de um teatro costumavam ser vultosos, exigindo amiúde uma combinação de fundos provenientes de patronos ricos e da própria comunidade cívica beneficiada. Por esse motivo, não nos causa estranheza que alguns teatros tenham demorado mais de meio século para ficarem prontos. Uma solução eficiente para acelerar os trabalhos de construção era o recurso ao patronato régio, como constatamos no período helenístico, quando Eumenes II, soberano de Pérgamo, empreendeu a reforma do teatro de Delfos, um edifício que, à época, já contabilizava duzentos anos de funcionamento (SEAR, 2006, p. 12). Essa prática foi imitada pelos líderes romanos de final da República, ávidos em aumentar seu prestígio, não sendo por acaso que a construção do primeiro teatro em Roma, como assinalamos, foi encomendada por Pompeu. O monumento foi concebido com o propósito de realçar a auctoritas do triúnviro, uma vez que no porticus foram erguidas estátuas representando os povos sobre os quais Pompeu havia triunfado, ao passo que a parte superior da cavea alojava um templo consagrado a Vênus Victrix, sua divindade protetora (BROTHERS, 1989, p. 101). O mesmo expediente foi empregado pelo rival, Júlio César, que por volta de 46 a.C. construiu ou fez restaurar, não sabemos ao certo, o teatro de Antioquia. No final do século I a.C., o teatro surgia assim, em Roma, como um meio eficaz de enaltecimento dos generais que digladiavam pelo controle supremo da República, o que denota, por um lado, a popularidade alcançada pelos espetáculos cênicos e, por outro, o potencial político contido em um edifício que logo se tornará o principal ponto de referência dentro da paisagem urbana e o emblema maior da romanidade. A sutura proporcionada pelo teatro entre lazer, política e religião logo despertou a atenção de Augusto, que patrocinou diretamente – Teatro Grego e Romano

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ou fez patrocinar por intermédio de seus auxiliares – a construção de inúmeros teatros, tanto no Ocidente quanto no Oriente, com destaque para os de Vienne, Arles, Nîmes, Orange, Augusta Emérita, Óstia, Laodiceia e Atenas, onde Agripa erigiu um odeum, um teatro de dimensões mais modestas destinado a concertos. Além disso, diversos reis-clientes que mantinham relações estreitas com Augusto se dispuseram a acompanhar o evergetismo do princeps, como Juba II, soberano da Mauritânia, responsável por introduzir a arquitetura cênica romana no norte da África quando da construção do teatro de Iol/Cesareia entre 25 e 15 a.C.; e Herodes, rei da Judeia, que, em fins do século I a.C., construiu teatros em estilo romano em Cesareia Marítima, Sidon, Damasco e Jerusalém. Pelas províncias, muitos aristocratas, na condição de êmulos do imperador, assumiram a tarefa de agraciar sua cidade com um teatro ou subvencionar obras de restauração.2 Sob o governo de Augusto observa-se, portanto, um estímulo sem precedentes à construção de teatros, sem dúvida como parte de um amplo “programa” político tendo por objetivo estreitar os laços que uniam o princeps às comunidades cívicas, uma vez que muitos teatros foram dedicados ao numem de Augusto e de sua divindade tutelar, Apolo, pelos Augustales, ou seja, por sacerdotes do culto imperial então nascente. Desse modo, não nos causa surpresa constatar que as principais contribuições romanas à arquitetura do teatro, a saber, o aumento das dimensões do proscaenium, o esplendor da scaenae frons, a instalação de estátuas da família imperial nas cellae, além da consolidação da orchestra semicircular, remontem ao início do Principado, difundindo-se rapidamente para o Oriente e o Ocidente (SEAR, 2006, p. 12-15). O teatro como microcosmos da ordem imperial O evergetismo das elites permitiu ao teatro tornar-se, sob o Principado, um dos principais símbolos da romanidade, auxiliando na formulação de um ethos que congregava as populações urbanas em torno de um edifício convertido em reprodução microscópica dos princípios hierárquicos que sustentavam a ordem social. De fato, em nenhum outro edifício imperial é possível constatar com tanta nitidez a exibição e ao mesmo tempo o reforço das relações de poder vigentes na soApenas para citar dois exemplos circunscritos à Península Itálica, o teatro de Volaterra foi patrocinado por Cecina Severo, cônsul em 2-1 a.C. Já Mítio Celer, um nobre local, construiu o teatro de Corfino (SEAR, 2006, p. 13). 2

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ciedade romana, o que não poderia passar despercebido a Augusto, cujo interesse pelo teatro como um emblema dos novos tempos não se limitou à construção de edifícios, mas comportou igualmente o desejo de que, nesses lugares onde de quando em quando a população se aglomerava para assistir a encenações trágicas e cômicas, desfrutando assim de uma experiência coletiva, as clivagens sociopolíticas que fixavam de modo estrito a posição ocupada por cada um dentro da estrutura social não fossem, em absoluto, ignoradas. Ainda durante a República, vemos emergir a tendência de se reservar assentos especiais para os senadores por ocasião dos ludi, numa reação a um antigo costume segundo o qual cidadãos de categorias distintas sentavam-se lado a lado para assistir aos espetáculos. Em 67 a.C., a adoção de assentos especiais é formalmente instituída por meio da Lex Roscia, que destina as quatorze primeiras fileiras da ima cavea aos membros da ordem equestre, uma medida recebida com hostilidade pela população. Tal inovação não se restringe à Capital, pois fora de Roma a reserva de assentos para os integrantes da elite logo se torna regra, como vemos na colônia de Urso, na Hispania, cuja carta de fundação (Lex Ursonensis), datada de 44 a.C., já especifica a quem caberiam, no teatro, os lugares de honra: magistrados romanos, promagistrados (i. é, governadores de província), senadores e seus filhos e equestres, além, é claro, dos magistrados locais e decuriões (EDMONDSON, 2002, p. 11). A associação entre o recinto do teatro e a ordem romana já presente nos tempos da República se torna mais nítida sob o governo de Augusto, num momento em que o princeps se impõe a tarefa de restaurar os antigos padrões hierárquicos que teriam sido abalados em função da aguda crise deflagrada após o assassinato de César, em 44 a.C. Nesse período, temos conhecimento de que alguns indivíduos, em particular soldados e libertos enriquecidos, teriam começado a pleitear uma elevação do seu status. Um dos recursos simbólicos que então empregaram foi se lançar, sem a menor cerimônia, sobre os assentos do teatro destinados aos senadores e equestres. A atuação de Augusto com a finalidade de sanar o problema transcorreu em duas etapas. Na primeira delas, em 26 a.C., o princeps solicitou ao Senado que votasse um senatusconsultum determinando que, em todos os espetáculos, as fileiras iniciais fossem reservadas aos senadores, e isso tanto em Roma quanto nas províncias. Alguns anos mais tarde, entre 20 e 17 a.C., Augusto dispensa uma atenção maior à matéria mediante a Lex Iulia Theatralis, que pretendia regular em detalhes a distribuição do público na orchestra e na Teatro Grego e Romano

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cavea, convertendo assim o teatro num monumento à ordem hierárquica romana. Infelizmente, não possuímos o texto da lei, mas podemos reconstituí-la em suas linhas gerais com base nas informações transmitidas por Suetônio (EDMONDSON, 2002, p. 11). A Lex Iulia Theatralis, no seu propósito de disciplinar a ocupação do teatro de acordo com o status dos usuários, foi além de ratificar aquilo que já se encontrava consignado na Lex Roscia e no senatusconsultum de 26 a.C., ou seja, que aos equestres se concedia o privilégio de sentar nas quatorze primeiras fileiras da ima cavea e aos senadores, o de sentar na orchestra. Entre os senadores e os equestres, Augusto posicionou os soldados agraciados com a corona civica, uma condecoração militar atribuída àqueles que haviam salvado a vida de um companheiro. Os próprios equestres, por sua vez, foram alvo de repartição. Os que haviam servido como tribunos militares e os que galgaram a posição de magistrados juniores (os XX viri) foram autorizados a ocupar as duas primeiras fileiras da ima cavea, numa posição superior diante dos equestres, digamos, ordinários. Mais tarde, ainda sob Augusto, estes últimos foram classificados como seniores e juniores e alocados em fileiras distintas. Atrás das quatorze fileiras equestres e na frente da plebs romana foram instalados os apparitores, funcionários (secretários, arautos, mensageiros) que prestavam serviço aos magistrados romanos. Em seguida, distribuída pela ima, media e summa cavea, encontrava-se a população em geral (plebs). Na ima cavea, os soldados em serviço e, muito provavelmente, os veteranos, foram apartados da plebs, recebendo assentos próprios. À direita deles sentavam-se os cidadãos casados (mariti) e à esquerda os pueri praetextati, os rapazes que ainda portavam a toga praetexta, vestimenta dos cidadãos que não haviam ainda alcançado a idade adulta e que, portanto, não podiam revestir a toga virilis (toga viril). Na condição de acompanhantes dos pueri praetextati, os professores (pedagogos), muitos deles escravos ou libertos, foram autorizados a sentar junto aos seus alunos, uma maneira encontrada por Augusto para homenagear os responsáveis pela formação das futuras gerações. A media cavea, por sua vez, era reservada aos ingenui (cidadãos nascidos livres). Já na summa cavea ficavam as categorias inferiores da sociedade romana: cidadãos miseráveis que, não podendo adquirir uma toga branca, eram obrigados a portar a túnica negra (pullatus), libertos, estrangeiros e pobres em geral. Logo depois da summa cavea vinha o recinto dos escravos e por último, nas cadeiras dispostas sob o pórtico coberto, as mulheres comuns, uma vez que as 260

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virgens vestais e as matronas da domus caesaris (a família do imperador) assentavam-se numa das tribunas laterais da orchestra (fig. 2). De acordo com Edmondson (2002, p. 14), tal segregação tinha por objetivo evitar que as mulheres desfrutassem de uma visão nítida do corpo dos atores, por vezes bastante sensual, bem como protegê-las dos olhares lascivos do público masculino. Essa disposição espacial da audiência instituída pela Lex Iulia Theatralis, embora tivesse como alvo primário o público da cidade de Roma, tendeu a se reproduzir mutatis mutandis pelas cidades do Império, como convinha a uma sociedade na qual as oportunidades de ascensão eram limitadas, o que só fazia acentuar a distância entre os grupos sociais. Do ponto de vista físico, arquitetônico, o teatro é assim responsável por proclamar a munificência do imperador e das elites comprometidas com a sua construção e manutenção, permitindo que a comunidade reunida para celebrar os festivais preste ao mesmo tempo reverência à generosidade dos seus patronos, mas sem que esse congraçamento acarrete qualquer tentativa de ruptura da ordem social. Nesse sentido, se o teatro é um dos principais loci da festa, da comemoração, do riso e da dança, um espaço conectado amiúde com o culto a Dioniso, a divindade do excesso e da pândega, ele não é, ao contrário do que poderíamos supor com base, por exemplo, nos testemunho dos detratores cristãos, um local de transgressão das hierarquias, de supressão das convenções sociais. Ou, pelo menos, a inversão de papéis verificada sobre o palco existe somente enquanto representação, ou seja, enquanto um exercício efêmero de mimesis por parte dos atores, não produzindo de imediato uma alteração no comportamento dos espectadores que, segregados espacialmente, são a todo o momento lembrados da sua posição na escala social. Os vínculos do edifício com a ordem imperial podem ainda ser evidenciados em outras oportunidades, pois algumas vezes a população se reunia no teatro, não para assistir a encenações de mimos e pantomimas, mas para participar de atos solenes que implicavam demonstrações do poder romano, como quando o imperador ou algum representante oficial chegava à cidade. Tais cerimônias eram em geral precedidas por uma procissão de magistrados, decuriões e sacerdotes portando símbolos que exaltavam o domínio de Roma, além de estátuas de divindades locais. Em seguida, os melhores oradores declamavam discursos em honra à autoridade presente. Imagens do imperador e de sua família também costumavam ser trazidas ao Teatro Grego e Romano

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teatro como objeto de veneração, recebendo aclamações do público, o que contribuía para reforçar a ideia de participação dos provinciais nessa autêntica “comunidade imaginada” que era o Império Romano (GEBHARD, 1996, p. 127). O teatro emerge assim como um instrumento de reprodução da ordem imperial, propriedade reforçada pelo caráter religioso que cerca o edifício. Por mais que alguns autores defendam a hipótese segundo a qual, no decorrer da fase imperial, os ludi experimentaram uma “laicização” progressiva, é necessário que nos acautelemos contra algumas conclusões precipitadas, ao menos no que diz respeito ao teatro, um edifício que, desde os seus primórdios, na Grécia, era consagrado aos deuses, não havendo motivo para supor que a sacralidade do teatro tenha se esvaído sob o Império, muito pelo contrário.3 Quanto a isso, vale a pena recordar que o primeiro teatro construído em Roma por Pompeu comportava, no topo da cavea, um templo dedicado a Vênus Victrix (BROTHERS, 1989, p. 101). Durante o Principado, muitos sacerdotes do culto imperial (flamines Augustalis) construíram teatros em homenagem ao imperador e suas divindades tutelares (SEARS, 2006, p. 15). Além disso, por todo o Império constatamos uma associação evidente entre estruturas teatrais e templárias, de maneira que, em algumas ocasiões, um teatro poderia ser consagrado ao Numen Theatri, o espírito divino do teatro, como vemos em Clunia, ou abrigar um pequeno templo, como em Bilbilis, ambas as cidades situadas na Península Ibérica. Mais que isso, escavações arqueológicas revelaram que em Bilbilis o templo se comunicava diretamente com o teatro por meio de uma escadaria, o que levou Revell (2009, p. 144) a sugerir a existência de um importante nexo espacial entre o templo e o teatro. Desse modo, as performances teatrais continuariam a apresentar, sob o Império Romano, um matiz sagrado, sendo inclusive encenadas durante os festivais religiosos, o que contradiz a tese da “laicização” dos ludi. Espaço de reprodução da ordem social, o teatro era igualmente um espaço posto sob a proteção dos deuses, o que lhe conferia um papel importante na manutenção do equilíbrio cósmico. Todavia, no que diz respeito àquilo que era encenado sobre o palco, poderíamos nutrir a mesma expectativa? Para uma defesa da laicização dos festivais pagãos em Antioquia no final do século IV, consultar Natali (1975) e Liebeschuetz (1972). Uma crítica consistente a essa tendência historiográfica foi estabelecida por Soler (2006). 3

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Mimos e pantomimas: vetores da desordem? A história do teatro romano, até onde podemos remontar com base em informações mais confiáveis, tem início nos ludi de 240 a.C., quando Lívio Andrônico, um liberto de origem grega que desempenhava ao mesmo tempo as funções de escritor, diretor e ator, estabeleceu as primeiras adaptações latinas da tragédia e da comédia helênicas. No decorrer do século seguinte, o teatro romano experimentou um notável desenvolvimento, surgindo então um elenco de comediógrafos e tragediógrafos que, até o fim da República, se revelarão bastante ativos, como Plauto, Terêncio, Pacúvio, Lúcio Ácio e Vário Rufo, autores de peças encenadas na íntegra nos festivais, a exemplo dos seus congêneres gregos (LEBEK, 1996, p. 34). Por essa época, o ofício de escritor de peças teatrais já se mostrava rentável, pois os autores costumavam vender seus manuscritos aos magistrados encarregados de patrocinar os ludi ou mesmo a proprietários de companhias teatrais, às vezes por quantias consideráveis. Conta-se que, em 29 a.C., Vário Rufo teria recebido um milhão de sestércios para compor a tragédia Tieste, encomendada por Otaviano para a sua cerimônia de triunfo sobre Marco Antônio e Cleópatra. Muito embora valores semelhantes dificilmente tenham sido pagos com frequência aos autores, o episódio é mais um indício do prestígio alcançado pelo teatro em Roma, o que justifica o investimento de Augusto na construção de novos edifícios. No final do século I a.C., no entanto, o teatro romano começa a passar por uma profunda transformação. Segundo o que podemos concluir das poucas fontes disponíveis, as representações de comédia e tragédia perdem pouco a pouco o seu apelo junto ao grande público, abandonando-se então a montagem de peças inteiras.4 Muito embora textos trágicos e cômicos continuassem a ser escritos, como nos dão testemunho, por exemplo, o Agamêmnon e a Medeia, de Sêneca, o consumo dessa literatura se fazia cada vez menos por intermédio da encenação no palco do teatro, substituída pela leitura recitada ou cantada de um tragicus cantor ou mesmo de um professor de retórica.5 Desse modo, no decorrer da Não sabemos ao certo em que momento as tragédias e comédias deixaram de ser encenadas. Na opinião de Barnes (1996, p. 169), isso deve ter ocorrido por volta do século III. Easterling; Miles (1999), por sua vez, creem que até a Antiguidade Tardia haverá ainda espetáculos dessa natureza, mas as evidências empíricas sobre a qual se apoiam para extrair tal conclusão são bastante frágeis. 5 O tragôidos ou tragicus cantor recitava ou cantava excertos trágicos usando más4

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era imperial os clássicos da literatura dramática greco-latina se tornam familiares apenas para um público restrito, composto pelos alunos dos gramáticos e rétores ou por anfitriões da elite e seus convidados, ao passo que a cena é invadida por dois gêneros outrora secundários: a pantomima e o mimo (LUGARESI, 2008, p. 68-69). O surgimento da pantomima encontra-se associado aos nomes de Pilades e Batilo, atores-dançarinos que gravitavam em torno da corte de Augusto. Ambos teriam sido responsáveis pela reestruturação dos espetáculos teatrais em Roma ao encenarem sketches extraídos das tragédias sob a forma de passos coreografados. Ao que tudo leva a crer, a primeira demonstração pública do novo gênero para uma audiência ampliada ocorreu em 23 a.C., durante os jogos de Marcelo. Doravante a pantomima, também conhecida como “dança itálica”, gozará de ampla receptividade, permanecendo como a principal modalidade de encenação até a fase final do Império e angariando inclusive a simpatia de Juliano, pouco afeito aos ludi (LUGARESI, 2008, p. 70). A pantomima consistia de um solo de dança no qual o artista, sempre do sexo masculino, encenava uma passagem mitológica utilizando apenas a linguagem corporal, com destaque para os movimentos das mãos e dos dedos. A indumentária era composta por uma máscara (variável, conforme a personagem) e uma túnica de seda, por vezes bordada a ouro, que caía até os tornozelos (HAUBOLD; MILES, 2004, p. 25). Durante a performance, o dançarino era acompanhado por um coral e por músicos tocando diversos instrumentos, tais como flauta, tamborete, cítara, címbalo e castanholas. Segundo consta, essa forma de expressão artística teria surgido na Grécia e alcançado a Península Itálica em meados do século II a.C., mas até ser reestruturada por Pilades e Batilo, no alvorecer da era imperial, a pantomima não teria despertado a atenção do público, muito mais interessado nas tragédias e comédias propriamente ditas (JORY, 1996, p. 2). Com o passar do tempo, entretanto, a pantomima será apreciada como um gênero de representação altamente sofisticado, havendo inclusive referências à transposição, para a linguagem da dança, de versões dos diálogos platônicos. A arte do pantomimo, na condição de forma de expressão artística, recebeu a admiração até mesmo de Agostinho, um autor que, como a maioria

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cara. Em geral, trajava uma veste de mangas largas e atuava sobre coturnos ou pernas de pau. O tragicus cantor poderia ou não ser acompanhado da cítara (EASTERLING & MILES, 1999, p. 96). Gilvan Ventura da Silva

dos cristãos, é inteiramente refratário aos ludi, quaisquer que sejam eles (LUGARESI, 2008, p. 70). Enquanto a pantomima se incumbia de representar cenas trágicas conectadas ao patrimônio mitológico, os mimos, por sua vez, cumpriam a tarefa de satisfazer o interesse do público pelos enredos cômicos. Originários da Magna Grécia, os primeiros mimos encenados em Roma estavam relacionados às Floralias, o festival em honra à deusa Flora celebrado pela primeira vez em 238 a.C. e que se tornou regular de 173 a.C. em diante. As encenações realizadas durante os ludi Floralis, ao que parece, exibiam um conteúdo escandaloso, uma vez que Flora era a divindade protetora das meretrizes (TRAINA, 1994, p. 86). Nos mimos, homens e mulheres atuavam como atores e cantores, mas sem o apoio de um coro (BARNES, 1996, p. 169). Os espetáculos “mímicos” eram constituídos por diálogos burlescos improvisados contendo alusões de natureza sexual, erótica e, no limite, obscenas. O enredo do espetáculo girava quase sempre em torno do adultério, embora tenhamos conhecimento de mimos versando sobre temas políticos e mitológicos. A vítima, um homem mais velho e desprovido de atrativos, costumava ser exposta ao ridículo pela esposa, uma mulher mais jovem – e, portanto, fogosa – que o traía com outros homens. Ao contrário dos pantomimos, os atores dos mimos não portavam máscara nem qualquer indumentária mais elaborada. O traje típico dessa modalidade de representação era um vestido curto denominado centuculus, ao passo que, nos pés, os homens usavam sandálias baixas. Já as atrizes (mimae) costumavam representar descalças, o que acentuava o topos da mulher livre e desimpedida. Os espetáculos mímicos possuíam assim uma estética que poderíamos qualificar como “realista”, pois neles os atores apareciam tal como eram, ao mesmo tempo em que reproduziam a linguagem do povo, repleta de metáforas de duplo sentido e palavras de baixo calão (PEREA YEBÉNES, 2004, p. 14). Não resta dúvida de que, quando comparados às pantomimas, os mimos estimulavam um comportamento muito mais exaltado por parte do público, que neles podia contemplar belas mulheres extravasando sensualidade e recitando textos repletos de picardia. Além disso, sabemos que um dos momentos mais aguardados pelos espectadores era a nudatio mimarum, quando a mima se despia em cena (TRAINA, 1994, p. 88). Acerca do conteúdo dos ludi scaenici, é comum os autores cristãos – e mesmo alguns pagãos, como Dión de Prusa e Élio Aristides – rotularem os espetáculos como “indecentes” e “imorais”, seja pelo fato Teatro Grego e Romano

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de homens encarnarem papéis femininos ou de mulheres se exibirem em trajes sumários e dizendo obscenidades. Desse ponto de vista, o teatro exerceria sobre a plateia uma influência absolutamente nociva, difundindo comportamentos inadequados e, com isso, corrompendo o corpo cívico. Resta, contudo, nos indagarmos se os espetáculos teatrais, no período imperial, cumpririam de fato uma função como esta, ou seja, seriam eles vetores de corrupção do mos maiorum (dos costumes ancestrais) como propugnavam os moralistas pagãos e cristãos? No que diz respeito às pantomimas, a resposta é negativa, uma vez que os temas representados pelos dançarinos – enredos mitológicos e cenas das grandes tragédias – não eram totalmente desconhecidos do público. Por outro lado, considerando que o pilar da formação educacional (paideia) da aristocracia romana era a tradição mitológica acerca dos deuses e heróis preservada nas epopeias homéricas e nas obras dos tragediógrafos, podemos supor que as pantomimas, ao levarem para a praça pública essa tradição, contribuíam para reforçar, entre espectadores o mais das vezes iletrados, todo um repertório de conhecimentos que, do contrário, permaneceriam restritos à elite, configurando assim um processo de circularidade cultural como proposto por Bakhtin e Ginzburg (LEYERLE, 2001, p. 29). Acreditamos que a pantomima, assim como o teatro grego na fase clássica da polis, era um instrumento pedagógico de instrução cívica, contribuindo para a formação cultural dos habitantes dos núcleos urbanos, aqueles que tinham maiores oportunidades de assistir às performances teatrais. Em apoio ao nosso argumento, podemos evocar o testemunho de Libânio, um dos autores mais eruditos da fase final do Império, que, na Oratio 64, Em defesa das pantomimas, pronunciada em 361 na cidade de Antioquia, se propõe a refutar a censura de Élio Aristides aos atores, considerados uma ameaça à ordem pública. Opondo-se frontalmente a Aristides, Libânio defende o princípio segundo o qual a arte dos pantomimos é um elemento intrínseco à cultura cívica por propiciar aos cidadãos uma pausa para contemplar a harmonia e a beleza, dissipando assim a monotonia do labor cotidiano. Ao mesmo tempo, em Libânio, o corpo do pantomimo, dotado de uma elasticidade que dificulta a sua ruptura, se converte numa metáfora do corpo cívico, que deve sempre se esforçar para manter a sua unidade. Para Libânio, em lugar de ameaçar a polis, as pantomimas contribuem para preservá-la (HAUBOLD; MILES, 2004, p. 30-31). Mas, e quanto aos mimos? Os dois principais defensores dos ludi scaenici na época imperial, Luciano de Samósata e Libânio, não dedicam uma atenção especial aos Gilvan Ventura da Silva

mimos, elegendo antes as pantomimas como tema central da refutação que fazem a Élio Aristides. É como se os espetáculos cômicos e os atores e atrizes que os encenam não compartilhassem do caráter respeitável atribuído, a princípio, aos pantomimos, mais não fosse pelo fato de que, nos mimos, mulheres e homens encenassem lado a lado um drama que, com raras exceções, rebaixava o arquétipo masculino diante do feminino, numa inversão de valores repulsiva para os membros mais respeitáveis da comunidade, a exemplo dos magistrados e professores. Quanto a isso, não é por mero acaso que, em termos jurídicos, as atrizes foram de longa data equiparadas às prostitutas, a ponto de, com o tempo, mima se tornar sinônimo de meretrix (PEREA YEBÉNES, 2004, p. 14). Na realidade, atores e atrizes, de acordo com o direito romano, eram humiles et abiectae personae, pessoas humildes e abjetas, recaindo na situação de infames, daquelas “sobre quem não se deve falar” e partilhando assim do mesmo estigma atribuído às prostitutas, proxenetas e gladiadores, categorias que, do mesmo modo, degradavam o próprio corpo ao ofertá-lo em troca de dinheiro (FRENCH, 1998, p. 296). No entanto, se nos afastamos de uma leitura excessivamente jurídica ou conservadora acerca do assunto, os mimos e seus profissionais nos revelam uma realidade muito mais complexa e até certo ponto contraditória. Em primeiro lugar, a representação social que fazia do mundo do palco o domínio da licenciosidade, da devassidão e da desordem é justamente isso, uma representação, que não condiz em absoluto com os códigos que regiam o exercício da profissão de ator. Os mimos não são imunes às distinções hierárquicas aplicadas a outros ofícios no Império Romano, como constatamos por intermédio das inscrições tumulares dos atores e atrizes, os quais se fazem proclamar archimimus (chefe dos mimos) e secundus mimus (segundo ator em importância na companhia), informações preciosas que nos revelam a existência de uma autêntica carreira, como em qualquer outra profissão dita “honrada” (EDMONDSON, 2002, p. 25).6 Em segundo lugar, muito embora fossem atingidos pelo estigma da infamia, os atores não deixavam de gozar de popularidade e prestígio junto às Entre as atrizes também verificamos diversas gradações e especializações, havendo a saltatrix (saltadora ou contorcionista), a circulatrix (atriz indecente que circulava no palco) e a embolaria (atriz que atuava no embolium, a esquete dos entreatos), além da mima, a atriz que apenas representava; da pantomima, que cantava, dançava e representava e da arquimima, a chefe da companhia (PEREA YEBÉNES, 2004, p. 27). 6

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suas comunidades, que não hesitaram em homenageá-los. Assim é que a cúria e o povo de Taormina, na Sicília, erigiram, em honra da atriz Júlia Bassila, uma estela funerária na qual celebravam a sua arte, virtude e sabedoria (FRENCH, 1998, p. 296). Ao que tudo indica, esse procedimento não era incomum no Império, pois Teodósio, em uma lei datada de 394, determina a destruição das imagens de atores e aurigas que se encontrassem próximas às imagens imperiais, de modo a evitar a profanação destas últimas, tidas no Baixo Império como sagradas. Entretanto, no texto da mesma lei, o imperador autoriza que as imagens dos atores sejam postas na frente do palco, reconhecendo assim como legítimo o tributo que, por ventura, a população desejasse prestar à memória de pessoas reputadas como infames (C. Th. 15,7,12). O teatro como fonte da ‘stásis’: o discurso cristão Por mais que os espetáculos teatrais desagradassem os círculos mais conservadores da elite romana e que os atores, especialmente os integrantes dos mimos, fossem tidos como infames, não verificamos por parte dos autores pagãos, nem mesmo dos mais ácidos, como Dión de Prusa e Élio Aristides, a formulação de nenhuma proposta de supressão dos ludi scaenici, uma modalidade de entretenimento incorporada de longa data ao mos maiorum (LUGARESI, 2008, p. 171). As críticas mais contundentes contra o teatro antigo serão desferidas pelos cristãos, para quem, nos espetáculos, não poderia haver nada de positivo, muito pelo contrário. Fazendo parte da cidade antiga, mas nutrindo um forte desejo de afastamento diante de práticas e valores que julgavam incompatíveis com o credo que professavam, os cristãos elegerão os espetáculos, em geral, e as representações teatrais, em particular, como um ponto de apoio para demarcarem a sua própria identidade nos ambientes urbanos, razão pela qual a recusa a frequentar o teatro, o anfiteatro ou o circo logo se tornou um dos principais elementos de distinção dos cristãos. Convém assinalar, entretanto, que essa recusa não era universal, pois até a fase final do Império vemos as autoridades eclesiásticas empenhadas em evitar que os membros das suas congregações socializem com os pagãos nos recintos onde ocorriam os ludi, especialmente os ludi scaenici, considerados os mais perigosos, devido não apenas à “imoralidade” e à “idolatria” que encerravam, mas, como argumenta Lugaresi (2008, p. 57), à confusão que promoviam entre verdade e ficção, contrariando assim a ratio veritatis (razão verdadeira) 268

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que teria presidido a Criação. Reproduzindo sobre o palco uma realidade imaginária, os atores subverteriam assim a ordem do mundo instituída por Deus, dentro de um jogo retórico entre aparência e essência que atribuía à primeira um caráter de ilusão, falsidade, engano, predicados de Satanás. Desse modo, logo emerge uma tradição literária voltada para a exposição dos argumentos que sustentavam a repulsa cristã ao teatro, tradição esta da qual o tratado De Spectaculis, escrito por Tertuliano entre 200 e 206, é considerado o texto fundador. As invectivas contra os espetáculos receberão, nos séculos IV e V, um impulso considerável em virtude do florescimento da homilética, que fará da condenação aos ludi um dos seus temas prediletos, como nos dá testemunho João Crisóstomo, o principal pregador da igreja de Antioquia entre os anos de 386 e 397, período em que atuou como presbítero da entourage episcopal de Flaviano. Antioquia, na segunda metade do século IV, era célebre por abrigar uma população que nutria um entusiasmo particular pelos festivais, jogos e espetáculos cívicos, como é possível concluir da atuação dos magistrados locais, generosos nas demonstrações de evergetismo público. Ao lado de Elis e Apameia, Antioquia era, à época, a sede dos principais jogos olímpicos da Antiguidade, celebrados a cada quatro anos com pompa e circunstância. Os jogos duravam cerca de um mês e atletas de todo o Império se dirigiam à cidade para tomar parte nas competições desportivas, que incluíam, além da luta e do pugilato, campeonatos de retórica e corridas de cavalo. Os jogos tinham lugar em Antioquia e em Dafne, um subúrbio a 8 km no sentido sul, em locais próprios para este fim, como o Plethrion e o Xystos (LIEBESCHUETZ, 1972, p. 136).7 Afora os Jogos Olímpicos, que movimentavam bastante a cidade de tempos em tempos, Antioquia contava ainda com um extenso calendário de comemorações religiosas das quais a Maiuma e a Caliopeia eram as mais concorridas.8 Essas festas davam ensejo a apreO Plethrion de Antioquia, construído durante o governo de Dídio Juliano, em fins do século II, destinava-se a acomodar as competições de luta e pugilato, outrora realizadas no teatro. Já a ereção do Xystos é um pouco anterior, remontando ao governo de Cômodo. Abrigando um templo em honra a Zeus Olímpico, a divindade protetora dos Jogos, o Xystos era uma pista de corrida coberta para uso dos atletas (DOWNEY, 1961). 8 O festival em honra de Calíope, padroeira de Antioquia, era celebrado anualmente, no início do verão. No que diz respeito à Maiuma, em honra a Dioniso e Afrodite, sabemos que o festival acontecia a cada três anos, com duração 7

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sentações de mimos e pantomimas, encenadas no Teatro de Dioniso e no Teatro de Dafne com grande sucesso, a julgar pela recorrência dos ataques de João Crisóstomo contra os espetáculos teatrais. A respeito do teatro da Capital as informações são mínimas, pois as escavações conduzidas entre 1932 e 1939 não foram capazes de estabelecer com exatidão o seu sítio. Pelos testemunhos literários, sabemos apenas que o teatro, construído ou reconstruído por Júlio César, não ficava na região do fórum, mas nas encostas do Monte Sílpios, nas imediações do templo de Dioniso. Quanto ao teatro de Zeus Olímpico, em Dafne, felizmente as informações são mais detalhadas, pois os arqueólogos conseguiram recuperar vestígios do edifício. O teatro, assim como o de Antioquia, assentava-se numa colina, seguindo, portanto, o padrão arquitetônico dos teatros gregos. O formato da orchestra, porém, era semicircular e o proscaenium bem extenso, ao passo que a scaenae frons era decorada com colunas de mármore e granito, assinalando uma inequívoca influência romana. Sua construção remontava ao governo de Vespasiano, que teria utilizado os espólios obtidos na Guerra da Judeia para subvencionar a obra (KONDOLEON, 2001, p. 155). Era nesses ambientes associados aos cultos de Dioniso e de Zeus que a população de Antioquia tinha por hábito se reunir para assistir aos mimos e pantomimas, provocando a ira de João Crisóstomo, que se esforça por alertar a sua audiência acerca da contaminação à qual estavam sujeitos ao frequentar os espetáculos teatrais, encenados num ambiente assolado pela idolatria. Para João o recinto do teatro é saturado de potestades demoníacas e, no seu interior, os espectadores, entregues aos cuidados de Satanás e suas falanges, são capazes das piores baixezas. Na sua série de homilias dedicadas ao comentário do Evangelho de Mateus, o pregador, em inúmeras oportunidades, admoesta os ouvintes para que não se deixem seduzir pelos perigos do teatro, que é convertido, mediante argumentos retóricos bastante rudes, numa das piores heterotopias possíveis, um local capaz de transtornar a personalidade dos indivíduos, afastando-os de Deus. Numa passagem sugestiva em que busca traçar a diferença entre o comportamento dos cristãos e dos helenos por intermédio da crítica aos mimos, o pregador alude à origem do teatro da seguinte maneira:

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de trinta dias. Uma antiga tradição situava a Maiuma em maio, mas estudos recentes assinalam outubro como o mês mais provável (SOLER, 2006, p. 10). Gilvan Ventura da Silva

Não nos convêm estar continuamente rindo e ser dissolutos e lascivos, mas isso pertence àqueles sobre o palco, as prostitutas, os homens que são talhados para tal propósito, parasitas e bajuladores. Não aqueles que são chamados aos céus, não aqueles que são inscritos na cidade de cima, mas aqueles que são inscritos ao lado do demônio. Pois é ele quem fez do assunto uma arte, para enfraquecer os soldados de Cristo e arrefecer o seu zelo. Por esse motivo ele também construiu os teatros nas cidades e, tendo treinado os bufões, pela perniciosa influência deles permitiu que esse tipo de pestilência queimasse sobre toda a cidade, persuadindo os homens a seguir aquilo que Paulo nos ordenou evitar, “conversas e brincadeiras tolas”. E o que é mais sério do que isso é o tema da risada. Pois quando aqueles que executam essas coisas absurdas, dizem alguma blasfêmia ou sujeira, muitos dentre os mais irresponsáveis riem e se regozijam, aplaudindo-os por aquilo que eles deveriam ser apedrejados. E atraindo sobre suas próprias cabeças, por meio desses gracejos, a fornalha de fogo (Mat. hom. VI,10).

João Crisóstomo considera o teatro, tomado tanto na acepção arquitetônica quanto artística, como uma invenção demoníaca destinada a minar a fé dos cristãos, numa distorção grosseira dos fatos históricos, pois antes do surgimento do cristianismo, os espetáculos teatrais contavam pelo menos uns quinhentos anos de história. No teatro, os atores, esforçando-se por provocar o riso, empregam amiúde gestos licenciosos e imagens grosseiras. Os espectadores, por sua vez, não são tidos como vítimas inocentes expostas aos horrores do local, mas compartilham da vileza dos atores ao incentivá-los, por meio de gargalhadas, a prosseguir com a sua conduta indecente. Congregando a ralé composta por homens e mulheres depravados que afrontam a inteligência divina, o teatro se torna a matriz de todos os comportamentos ditos contra natura. Esse assunto merecerá atenção especial de João em outra homilia da série, a de número 37: E o que é uma vez mais o aplauso? O que são o tumulto, os gritos satânicos e os gestos diabólicos? Pois, em primeiro lugar, um indivíduo, sendo um rapaz, usa seu cabelo caindo pelas costas, e mudando sua natureza para a da mulher, se esforça em aspecto, em gesto e em roupas, e em todos os modos, para assumir a imagem de uma jovem donzela. Então Teatro Grego e Romano

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outro que é velho, de modo contrário a isso, tendo raspado o seu cabelo, com seu lombo preparado, sua vergonha retirada antes do seu cabelo, aguarda, pronto para ser fustigado com uma verga, pronto a nada fazer ou dizer. As mulheres uma vez mais, com as cabeças descobertas, esperam sem sequer enrubescer, discursando para a multidão, tão perfeita é a sua experiência na falta de vergonha; e desse modo despejam impudência e impureza na alma dos seus ouvintes. E seu único propósito é remover toda a castidade desde as suas bases, corromper nossa natureza para saciar o desejo dos demônios imundos. E há também ditos repugnantes e gestos piores. E o estilo do penteado segue esse caminho, e o modo de andar e os trajes, e a voz e o movimento dos membros. E há movimentos dos olhos, flautas, dramas, ardis. Em resumo, todas as coisas da mais extrema impureza. [...] Tanto adultérios quanto casamentos roubados estão aí, e há mulheres se fazendo prostitutas, homens se prostituindo, jovens corrompendo a si mesmos. E tudo é iniquidade ao extremo, tudo é feitiçaria, tudo é vergonha (Mat. hom. 37,8).

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Como se pode depreender desta passagem, o teatro, segundo João Crisóstomo, é um ambiente que se presta a todas as confusões, a todas as transgressões. Nele, os atores interferem na própria aparência física, rompendo as fronteiras biológicas do sexo e da idade a fim de confundir os espectadores. Atores, ao que tudo indica pantomimos, assumem a aparência de mulheres, muito provavelmente por meio do uso de máscaras com franjas, como vemos em algumas representações iconográficas (JORY, 1996). Homens velhos, raspando a cabeça, se tornam moços, e numa atitude de submissão incompatível com os códigos de masculinidade vigentes na sociedade romana, se deixam fustigar. Já as atrizes, trazendo a cabeça descoberta, um dos principais indícios da falta de decoro para os cristãos, ousam falar em público, numa afronta às orientações de Paulo, que proibia às mulheres tal conduta. A confusão de papeis que se estabelece no teatro é reforçada por um repertório de artifícios destinados a atrair a atenção do espectador, tornando-o presa fácil para os demônios. Recaem nessa categoria os gestos e palavras obscenas, o estilo do penteado, a indumentária, as flexões vocais, a maneira de caminhar, ou seja, todos os recursos característicos da profissão de ator, que concorrem para arruinar os lares e corromper a juventude. Por esse motivo é que o teatro, suas funções e seus profissionais são, de acordo com João Crisóstomo, os principais responsáveis Gilvan Ventura da Silva

por disseminar o caos na cidade, como vemos em outra passagem, extraída também da Homilia 37: Eu pergunto a vocês: nós devemos arruinar todas as leis? Não, mas é arruinar a ilegalidade se nós paramos com estes espetáculos. Pois são eles que criam o caos em nossas cidades; devido a eles, por exemplo, existem sedições e tumultos. Pois eles são mantidos pelos dançarinos e por aqueles que vendem a sua própria voz para o estômago, cujo ofício é gritar e praticar tudo o que é abominável. Esses são especialmente os homens que insuflam a população, que criam tumultos em nossas cidades. Pois a juventude, quando dá as mãos à indolência e é criada em tão grandes males, se torna mais feroz do que as bestas selvagens. Os necromantes também, eu pergunto a vocês, onde estão? Não é com o objetivo de excitar o povo que está ocioso e sem propósito e fazer com que os dançarinos sejam beneficiados com muitos e sonoros aplausos, e fortalecer as prostitutas contra os castos, que eles praticam até agora a feitiçaria, a ponto de nem mesmo deixar de perturbar os ossos dos mortos? (Mat. hom. 37, 8).

João Crisóstomo produz aqui uma relação de causa e efeito entre o teatro e a desordem pública, acusando uma vez mais os pantomimos de insuflar a população e disseminar a insegurança na cidade. Sabemos que, no Império Romano, a pantomima era a modalidade de espetáculo teatral favorita do grande público, dando margem à formação de factiones que vez por outra entravam em atrito (LEBEK, 1996, p. 43), como vemos no episódio do levante das estátuas de 387, quando a claque do teatro tomou parte ativa nos motins, arrastando e destruindo pelas ruas de Antioquia as estátuas do imperador e da imperatriz, num ato de rebelião aberta que por pouco não culminou num banho de sangue. Testemunha ocular do acontecido, João Crisóstomo não perde a oportunidade de responsabilizar os atores pelas sedições, acusandoos ainda de fazer uso das artes magicae para obter popularidade, o que reforça o caráter idolátrico atribuído ao teatro, pois, num ambiente gerido por Satanás, os sortilégios e encantamentos executados mediante a invocação dos demônios não poderiam de modo algum se encontrar ausentes. A essa altura, caberia interrogar a respeito da solução imaginada por João Crisóstomo para colocar seus concidadãos ao abrigo das “torpezas” do teatro. Implicaria tal solução a destruição completa dos edifícios? Vejamos a resposta: Teatro Grego e Romano

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“Vamos então por abaixo o palco”, eles dizem? Seria possível fazer isso; ou antes, se nós quisermos, até onde nos diz respeito, ele já está posto abaixo e enterrado. Contudo, eu não desejo tal coisa. Deixando esses lugares de pé, como estão, eu exorto vocês a torná-los sem efeito, o que seria um elogio ainda maior do que destruí-los. Imitem pelo menos os bárbaros, se não algum outro. Pois eles de fato são isentos de contemplar tais visões. Que desculpa então podemos ter a respeito disso, nós, cidadãos do céu, e companheiros nos coros dos querubins e em irmandade com os anjos, por nos tornarmos piores que os bárbaros, e isso quando muitos outros prazeres, melhor que estes, estão ao nosso alcance? Se vocês desejam que suas almas gozem de refrigério, se dirijam a sítios agradáveis, a um rio fluindo ao redor, e aos lagos, prestem atenção nos jardins, ouçam os gafanhotos enquanto cantam, estejam o tempo todo junto à sepultura dos mártires, onde há saúde do corpo e benefício da alma, e nenhum ferimento ou remorso após o prazer. Tenham uma mulher, tenham filhos. O que se compara a estes prazeres? Tenham uma casa, tenham amigos, estas são as autênticas delícias (Mat. hom. 37, 8-9).

Considerando a vitalidade da cultura greco-romana em Antioquia, João Crisóstomo não poderia decerto sugerir ao seu público que promovesse a demolição dos teatros da cidade, uma alternativa que, no entanto, não soaria de todo implausível ao pregador, uma vez que, em fins do século IV, verificamos a multiplicação dos ataques a templos e sinagogas por parte dos cristãos, fato que, em mais de uma ocasião, exigiu a mediação imperial a fim de restabelecer a normalidade. Na impossibilidade de mobilizar a população cristã de Antioquia contra o teatro, João imagina um estratagema mais sutil, apelando para a oposição entre a vida na polis e uma vida mais próxima ao estado de natureza, livre assim dos prazeres da cidade. Na medida em que o modus vivendi cívico, do qual o teatro era uma das peças principais, constituía uma das expressões mais nítidas da romanidade, João Crisóstomo estabelece um contraponto com os bárbaros, louvando estes últimos por não conhecerem o teatro, uma metonímia para a própria vida urbana. Em substituição aos prazeres do teatro, João sugere a sua congregação apreciar a flora e a fauna e a buscar refúgio junto às sepulturas dos mártires que, em sua maioria, se situavam em território extra muros. Investindo igualmente 274

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num reforço dos laços familiares, o pregador cria outra oposição, desta vez entre a polis e o oikos, um topos que retomou amiúde ao longo da sua carreira sacerdotal. Não que João pretendesse, mediante o emprego de tais imagens, suprimir a polis, pois a cidade, segundo ele, era uma criação divina que havia sido corrompida pelos abusos humanos. Seu propósito era antes erradicar da polis tudo aquilo que desagradasse o Criador, de modo a restituir a ela a sua face original, vale dizer, a harmonia entre os seus habitantes. Dentre as medidas necessárias para restaurar o equilíbrio da polis, a supressão dos espetáculos teatrais revelava-se urgente, pois, em sua concepção, o teatro era responsável por disseminar a stásis e promover a cisão do corpo cívico. Ao fazer isso, no entanto, João simplesmente descarta todo o simbolismo hierárquico que cercava o teatro, convertido, na época imperial, num monumento à ordem romana. Mantendo com a cidade antiga uma relação de permanente estranhamento, o discurso cristão se volta contra um dos principais símbolos constituintes do estilo de vida romano, dentro de um processo de afirmação identitária que encontra, na cristianização do espaço urbano, a sua contrapartida geográfica e arquitetônica. Nesse sentido, a cristianização da cidade antiga implicou não apenas a construção de edifícios conectados com o culto cristão, como os martyria, nosokomia e hospitia, que pouco a pouco se impõem na paisagem. Ela implicou também um trabalho contínuo de desconstrução dos lugares e ambientes conectados com os valores e as concepções religiosas pagãs, os quais são esvaziados da sua importância como espaços de sociabilidade e de ratificação das normas que regiam a vida social para se tornarem espaços perigosos, poluentes e, por isso mesmo, intransitáveis. Dentro desse processo de formulação de heterotopias desencadeado pela Igreja na Antiguidade Tardia, certamente nenhum outro edifício greco-romano foi tão atingido na sua dignidade quanto o teatro. DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL CHRYSOSTOM, St. John. Homilies on the Gospel of Saint Matthew. In: SCHAFF, F. (ed.) Nicene and post-Nicene fathers. Translated by G. Prevost. Peabody: Hendrickson, 2004. v. 10. Repertório de noventa homilias sobre o evangelho de Mateus pronunciadas por João Crisóstomo durante a sua fase como presbítero em Antioquia. Conjugando a exegese do texto bíblico com orientações Teatro Grego e Romano

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de natureza disciplinar, as homilias constituem uma preciosa fonte de informação sobre o cotidiano do Império na Antiguidade Tardia. PHARR, C.; DAVIDSON, T. S. (Trad.). Codex Theodosianus and novels and Sirmondian Constitutions. Princeton: Princeton University Press, 1952. Coletânea de leis da fase final do Império Romano, o Código Teodosiano é uma das principais fontes para o estudo, não apenas de temas próprios da esfera do Direito, mas também de aspectos da vida cotidiana, pois os imperadores costumavam legislar sobre os assuntos mais prosaicos, como, por exemplo, a cor da roupa das prostitutas. BIBLIOGRAFIA COMENTADA LEYERLE, B. Theatrical shows and ascetic life: John Chrysostom’s attack on spiritual marriage. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2001. A autora, ao analisar os argumentos de João Crisóstomo contrários ao costume das virgens coabitarem com homens que não eram seus parentes, demonstra como tais argumentos se encontram repletos de imagens extraídas do teatro. LUGARESI, L. Il teatro di Dio: il problema degli spetacolli nel cristianesimo antico (II-IV secolo). Brescia: Morcelliana, 2008. Obra fundamental para o estudo do pensamento eclesiástico sobre o teatro, com destaque para Tertuliano, Agostinho e João Crisóstomo. Nela, o autor se dedica a investigar os pontos de convergência entre os discursos cristãos, realizando uma ampla prospecção das principais fontes disponíveis. SLATER, W. J. (ed.). Roman theater and society. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1996. Trata-se de uma coletânea composta por sete ensaios nos quais os autores abordam diversos aspectos referentes ao teatro romano, dentre os quais a profissão do ator, a iconografia das pantomimas, a importância do teatro como um espaço de exercício do poder e a relação dos cristãos com os espetáculos.

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SEAR, F. Roman theatres: an architectural study. Oxford: Oxford University Press, 2006. Estudo erudito e abrangente sobre os teatros romanos do ponto de vista da arquitetura. Cotejando a documentação arqueológica com uma leitura atenta dos textos literários, o autor expõe, em detalhes, a maneira pela qual os edifícios eram construídos, mantidos e restaurados, fornecendo ainda um inventário dos teatros do Império. SOLER, E. Le sacré et le salut à Antioche au IVe siècle après J.-C.: pratiques festives et comportements religieux dans le processus de christianisation de la cité. Beyrouth: Institut Français du Proche-Orient, 2006. Uma das obras mais completas sobre as tradições religiosas de Antioquia no final do Império. Nela, o autor tem por objetivo refutar a concepção segundo a qual, no século IV, a cidade já estivesse completamente cristianizada. Para tanto, um dos argumentos que evoca é justamente a popularidade dos espetáculos teatrais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARNES, T. D. Christians and the theater. In: SLATER, W. J. (ed.). Roman theater and society. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1996, p. 161-180. BROTHERS, A. J. Buildings for entertainment. In: BARTON, I. M. (ed.). Roman public buildings. Exeter: University of Exeter, 1989, p. 97125. DOWNEY, G. A history of Antioch in Syria. Princeton: Princeton University Press, 1961. EASTERLING, P.; MILES, R. Dramatic identities: tragedy in Late Antiquity. In: MILES, R. (ed.) Constructing identities in Late Antiquity. London: Routledge, 1999, p. 95-111. EDMONDSON, J. Public spectacles and Roman social relations. In: BASARATTE, N.; CASTELLANO HERNÁNDEZ, A. (ed.). Ludi romani: espectáculos en Hispania Romana. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, 2002, p. 9-29. FRENCH, D. Maintaining boundaries: the status of actresses in Early Christian society. Vigiliae Christianae, v. 52, n. 2, p. 293-318, 1998. Teatro Grego e Romano

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Fig. 1 – Padrões arquitetônicos dos teatros grego e romano

Vemos acima, em “A”, o teatro de Epidauro, construído no século IV a.C., com sua orchestra circular e o proscaenium limitado. Em “B” temos a reprodução do teatro de Arausio, nas Gálias, construído no primeiro século d.C, com destaque para a orchestra semicircular e o amplo proscaenium. Fonte: Brothers (1989). Teatro Grego e Romano

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Fig. 2 – Ocupação do teatro segundo a Lex Iulia Theatralis, de Augusto Fonte: Edmondson (2002)

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Gilvan Ventura da Silva

Sobre os autores

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima – Professor Associado do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do NEREIDA/UFF e MNEMOSYNE/UEMA. E-mail: . Ana Livia Bomfim Vieira – É professora Adjunta de História Antiga do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA e do PPGHEN – Programa de Pós-Graduação em História, Ensino e Narrativas da UEMA. Coordena o MNEMOSYNE – Laboratório de História Antiga e Medieval do Maranhão, e é pesquisadora do NEREIDA/UFF. Estuda o imaginário marinho, os mitos e suas relações com a religiosidade grega e os modelos identitários. E.mail: . Ana Teresa Marques Gonçalves – Professora Associada III de História Antiga e Medieval na Universidade Federal de Goiás. Doutora em História pela USP. Bolsista Produtividade II do CNPq. Coordenadora do LEIR-GO e do GTHA - GO. Autora de diversos artigos em periódicos nacionais e estrangeiros, coordenadora de várias coletâneas e autora do livro A Noção de Propaganda e sua Aplicação nos Estudos Clássicos: O Caso dos Imperadores Romanos Septímio Severo e Caracala (2013). Brian Gordon Lutalo Kibuuka – Mestre em História Antiga pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estudos feitos na Universidade de Coimbra, dedicou sua formação acadêmica ao estudo do Teatro Grego, em particular, o teatro de Eurípides. Graduou-se ainda em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Rio de Janeiro, em Teologia pela Teatro Grego e Romano

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Universidade Metodista de São Paulo e em Letras (Português-Grego) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É pesquisador do grupo NEREIDA, sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Carneiro, do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra e do Grupo de Pesquisa Discurso na Antiguidade Grega (DAG-UFRJ). Claudia Beltrão da Rosa – Professora Associada do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutora em História Antiga, a autora atua nas áreas de História Antiga Romana e Estudos Clássicos, realizando e orientando pesquisas nos seguintes temas: Roma republicana; religião romana; religião e política romana; teatro romano; religião, rituais e imagens. Fábio de Souza Lessa – Professor Associado de História Antiga do Instituto de História (IH) e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA) / UFRJ e Membro Colaborador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra. Gilvan Ventura da Silva – É professor dos Programas de Pós-Graduação em História e em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História Antiga e Medieval pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade 1-D do CNPq. José d’Encarnação – É Professor Catedrático na Universidade de Coimbra. Membro do Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto. Escreveu mais de cinco centenas de artigos científicos, tem proferido conferências para os mais diversos públicos, e já participou em mais de duas centenas de reuniões científicas, em Portugal e no estrangeiro. Especializou-se em Epigrafia, domínio em que publicou as seguintes obras: Divindades Indígenas sob o Domínio Romano em Portugal (Subsídios para o seu Estudo), Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1975; Inscrições Romanas do Conventus Pacensis – Subsídios para o Estudo da Romanização, 2 volumes, Coimbra, 1984; Introdução ao 282

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Sobre os Autores

Estudo da Epigrafia Latina, Coimbra, 1979 (1.ª edição), 1987 (2.ª), 1997 (3.ª); Roteiro Epigráfico Romano de Cascais, Cascais, 1994 e 2001 (2.ª edição); Estudos sobre Epigrafia, Coimbra, 1998; Epigrafia – As Pedras que Falam, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006 e 2010 (2.ª edição). Maria Regina Candido – É Professora Associada de História Antiga e Coordena a Area: História Antiga e Medieval do Departamento de História da UERJ. Atua na Coordenação do NEA//www.nea.uerj.br e na Coordenação do Lato Sensu de História Antiga e Medieval/CEHAMUERJ. Membro da Society for Historical Archaeology/SHA/USA. Orienta temas de pesquisa sobre religião, mito e magia na Grecia Antiga nos Cursos de Graduação de História e de Arqueologia Clássica assim como no PPGH-UERJ. Patricia Horvat – É Bacharel em Belas Artes (Escultura), Mestre em Filosofia e em Psicanálise e Doutoranda em Psicanálise. Professora de Filosofia no Curso de Licenciatura em História da UNIRIO. É pesquisadora do Núcleo de Estudos e Referências sobre a Antiguidade e o Medievo (NERO/UNIRIO) e do Núcleo de Representações e de Imagens da Antiguidade da Universidade Federal Fluminense (NEREIDA/UFF). Estuda a recepção do Teatro Antigo e sua interface com a Psicanálise. Regina Maria da Cunha Bustamante – Possui Licenciatura Plena e Bacharelado em História pela UFRJ, Mestrado em História Social pela UFRJ e Doutorado em História pela UFF. Atualmente, é Professora Associada da UFRJ, vinculada ao Instituto de História, sendo docente dos Cursos de Bacharelado e Licenciatura em História e dos Cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e do Curso de Mestrado Profissional de Ensino de História / PROFHISTÓRIA. Pesquisadora do Laboratório de História Antiga / UFRJ. Coeditora científica da Revista Phoînix (ISSN 1413-5787). Atua na área de História Antiga, com ênfases em: Antiguidade Romana, desenvolvendo pesquisa em África Romana, identidade/alteridade e imagética, e Ensino de História, particularmente, em Educação Patrimonial, documentos e o seu uso na produção e no ensino do conhecimento histórico escolar. Teatro Grego e Romano

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Sônia Regina Rebel de Araújo – Professora Associada de História Antiga, pertencente aos quadros do PPGH-UFF. Co-organizadora, com Claudia Beltrão da Rosa e Fábio Duarte Joly do livro Intelectuais, Poder e Política na Roma Antiga (NAU, 2009) e co-organizadora com Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, do livro Um Combatente pela História: Professor Ciro Flamarion Cardoso (Vício de Leitura, 2012). Talita Nunes Silva – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense e Bolsista da CAPES. Pesquisadora do NEREIDA/UFF. E-mail: . Vanessa Ferreira de Sá Codeço – Doutora em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do Laboratório de História Antiga (LHIA). Estuda temas relacionados a Teatro Antigo Grego, História da Vestimenta, Etinicidade e Educação Grega Clássica.

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Sobre os Autores

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