Tecendo Amanhãs

June 29, 2017 | Autor: André Bueno | Categoria: Teaching History, Ensino de História
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O Ensino de História na Atualidade

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ANDRÉ [André Bueno] Dulceli Tonet Estacheski Everton Crema

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BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton. [organizadores] Tecendo Amanhãs: o Ensino de História na Atualidade. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição Especial Sobre Ontens, 2015. ISBN: 978-85-65996-33-4 Disponível em: www.simpohis.blogspot.com.br www.revistasobreontens.blogspot.com.br

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ÍNDICE A APRENDIZAGEM DA HISTÓRIA A PARTIR DA CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS SOBRE O PASSADO. UM ESTUDO COM JOVENS ESTUDANTES EM BRASIL E PORTUGAL Isabel Barca / Marlene Cainelli Universidade do Minho / UEL 9 DIGITAL HISTORY E FORMAÇÃO DE HISTORIADORES: SUGESTÕES PARA UM DEBATE Patricia Santos Hansen Universidade de Lisboa 25 ENSINO DE HISTÓRIA E JUSTIÇA SOCIAL: UM DEBATE POSSÍVEL Sebastian Plá Universidad Nacional Autónoma de México 39 CONTATOS IMEDIATOS NO ‘3º GRAU’: HISTÓRIA ANTIGA E OS PROBLEMAS EM SEU ENSINO UNIVERSITÁRIO E ESCOLAR ANDRÉ [André Bueno] UERJ 55 O ESTÁGIO SUPERVISIONADO NA FORMAÇÃO DOCENTE EM HISTÓRIA: ENTRE TEORIA E PRÁTICA Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski UNESPAR 63 AS DIRETRIZES CURRICULARES PARANAENSES DA EDUCAÇÃO BÁSICA EM HISTÓRIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO NÚCLEO REGIONAL DE EDUCAÇÃO DE UNIÃO DA VITÓRIA: UM BALANÇO EDUCACIONAL NECESSÁRIO (2004-2014) Everton Carlos Crema UNESPAR 73

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A TECNOLOGIA EDUCACIONAL NO ENSINO DE HISTÓRIA: UMA PROPOSTA A PARTIR DA METODOLOGIA WEBQUEST Fábio André Hahn UNESPAR 81 DESENHANDO O PERFIL DE UM BOM PROFESSOR/UMA BOA PROFESSORA DE ENSINO DE HISTÓRIA: FAÇA A CRÍTICA DA LISTA DE CRITÉRIOS QUE SEGUE, E ACRESCENTE SUAS OPINIÕES Fernando Seffner UFRGS 93

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VOLTA GEOGRAFIA, VEM VIVER OUTRA VEZ AO MEU LADO... Itamar Freitas UNB 99 'EU, TU, ELES' OS QUADRINHOS E A AUTOBIOGRAFIA: ESCRITA DE SI DENTRO DA SALA DE AULA Jefferson Lima Maristas SC 105 ELECTRA, A VINGADORA (1962): TEATRO, CINEMA, HISTÓRIA E OS INSONDÁVEIS OLHOS DE IRENE PAPAS José Maria Gomes de Souza Neto UPE 111 A REFLEXÃO DIDÁTICA NO ENSINO SUPERIOR – A EXPERIÊNCIA DE PRÁTICA DE HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL NA UEPG Luis Fernando Cerri UEPG 127

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FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA NO BRASIL: EMBATES E DILACERAMENTOS EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO Maria Auxiliadora M.S.Schmidt UFPR 135 JOVENS, CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E VIDA PRÁTICA: AS MANIFESTAÇÕES DE RUA E SEU SIGNIFICADO PARA JOVENS BRASILEIROS Maria Auxiliadora M.S.Schmidt UFPR 151 ENSINO DE HISTÓRIA E SITES DE PESQUISA ESCOLAR Nucia Alexandra Silva de Oliveira UDESC 167 A HISTÓRIA NOS FILMES DE FICÇÃO E SEU USO EM SALA DE AULA Maytê Vieira UEPG 177 CONSCIÊNCIA HISTÓRICA, NARRATIVA HISTÓRICA E ENSINO Rodrigo Scama OPET 191 OBJETOS ANTIGOS NO ENSINO DE HISTÓRIA: CONTRIBUIÇÕES PARA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO HISTÓRICO DOS ESTUDANTES Zuleide Maria Matulle UNESPAR 199

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A APRENDIZAGEM DA HISTÓRIA A PARTIR DA CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS SOBRE O PASSADO. UM ESTUDO COM JOVENS ESTUDANTES EM BRASIL E PORTUGAL Marlene Cainelli / Isabel Barca UEL / Universidade do Minho Introdução Nosso trabalho se fundamenta na ideia de que para a constituição de aprendizagens históricas é importante que os alunos sejam capazes de compreender as diversidades históricas do passado humano reconstituído pela historiografia, implicando na capacidade de produzir conhecimentos a partir da consciência de que o conhecimento sobre o passado é realizado com base na evidência histórica. Esta investigação tem como suporte teórico e metodológico os pressupostos da investigação em Educação Histórica, no sentido de que a forma como os indivíduos mobilizam os conhecimentos históricos e constroem a sua consciência histórica conferem sentido a História e a si mesmos. Este estudo discute a constituição do pensamento histórico de jovens estudantes do ensino fundamental no Brasil e Portugal com relação a fatos que se articulam nas histórias nacionais dos dois países. Tendo como referência a afirmativa de Collingwood (1978) de que o pensamento histórico é a atividade da imaginação incluindo o presente como evidência do seu passado, foram apresentadas aos jovens portugueses e brasileiros questões diretamente relacionadas aos acontecimentos discutidos no ensino de história sobre o “descobrimento” do Brasil. Em uma questão específica foi admitida a possibilidade dos portugueses não terem sido os “descobridores” do Brasil; a partir disto perguntamos aos alunos o que então teria acontecido ao Brasil. Nesse sentido a pergunta sugeria a discussão sobre a possibilidade de uma contra- história no desenvolvimento do tema. Uma das questões importantes a serem demonstradas neste estudo, principalmente no que diz respeito aos alunos brasileiros, é o fato de queas atuais abordagens pedagógicas têm sido criticadas por não desenvolverem nos alunos um sentido crítico que lhes permita tomar decisões fundamentadas sobre as respostas históricas.

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Em muitos casos no Brasil e Portugal o desenvolvimento da disciplina de história na educação básica é realizado através do trabalho com conteúdo substantivo. Na História ensinada de forma geral não há espaço para que os alunos emitam opiniões, tomem decisões, escolham caminhos ou levantem hipóteses. Aos alunos na maior parte das intervenções pedagógicas em sala de aula é apenas permitido repetir o ensinado, reproduzir o texto do livro ou da aula do professor. Segundo a professora de um dos colégios onde a pesquisa foi realizada no Brasil, os alunos quando solicitados a emitir opiniões ou apresentar uma narrativa livre sobre algum tema apresentam muito “sofrimento” e preferem escrever apenas “não sei” ou “não lembro” para as questões propostas.

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Nesse sentido estamos através da coleta e estudo de dados empíricos tentando compreender as noções que os alunos constroem sobre a história a partir no processo de aprendizagem na escola formal. É nosso interesse entender como se formam as ideias históricas dos alunos, em primeiro lugar porque só se pode mudar aquilo que se conhece e em segundo lugar para promover situações de ensino de História estruturantes que não valorizem apenas a reprodução pouco refletida de temáticas curriculares, mas que também promovam a formação da consciência histórica. Assim, entende-se a consciência histórica como uma atitude de orientação de cada pessoa no seu tempo, sustentada pelo conhecimento da História. Segundo Rüsen, A consciência histórica constitui-se mediante a operação, genérica e elementar da vida prática, do narrar, com a qual os homens orientam seu agir e sofrer no tempo. Mediante a narrativa histórica são formuladas representações da continuidade da evolução temporal dos homens e de seu mundo, instituidoras, por meio da memória, e inseridas, como determinação de sentido, no quadro de orientação da vida prática humana. (2001, p.66) As ideias foram coletadas através da construção de narrativas pelos alunos, entendendo a narrativa no sentido atribuído como expressão - sob qualquer formato – da compreensão histórica e os sentidos que lhes são atribuídos, como considera Rüsen (2001) ao afirmar ser a narrativa histórica a face material da consciência histórica.

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Enquadramento teórico A investigação em educação histórica tem como objetivo entender as relações que alunos e professores estabelecem com os conceitos e as categorias históricas, sejam ideias substantivas ou de segunda ordem. Por conceitos substantivos podem ser entendidos os conteúdos da História, como, por exemplo, o conceito de industrialização, renascimento, revolução, enquanto conceitos de segunda ordem são aqueles que estão envolvidos em qualquer que seja o conteúdo a ser aprendido: entre os conceitos de segunda ordem podemos citar noções temporais como continuidade, progresso, desenvolvimento, evolução, época, enfim, aqueles que se que se referem à natureza da História (LEE,2001). Para Rüsen, a metahistória – que corresponderá aos conceitos de segunda ordem reflete sobre a natureza da história com base na história enquanto algo que ocorreu no passado. A história é um modo de lidar com o passado, de atribuir-lhe sentido com o propósito de orientar as pessoas no presente, na dimensão temporal de suas vidas; também podemos dizer que a metahistória contempla os princípios mentais que constituem o pensamento histórico. Em nosso estudo, temos interesse nos modos de constituição das identidades dos indivíduos a partir da relação entre o ensino de história formal na escola e aquele produzido e narrado pelos alunos. A educação histórica tem especial interesse na forma pela qual o trabalho com fontes, as estratégias de ensino, os materiais didáticos, os objetos históricos, entre outros, colaboram para a formação do pensamento histórico e da consciência histórica de alunos e professores. A questão da narrativa e as relações que os indivíduos estabelecem entre passado, presente e futuro tem sido alvo de várias pesquisas na área de educação histórica. Estes estudos visam compreender as ideias de crianças e jovens na perspectiva de que é possível a construção de ideias históricas gradualmente mais sofisticadas pelos alunos, no que respeita à natureza do conhecimento histórico. Em Portugal e no Brasil, as pesquisas sobre narrativa histórica têm sido objeto em vários estudos (BARTON, 2001; WERSTCH, 2004; BARCA, 2007; SCHMIDT, 2008; GAGO, 2011; GEVAERD, 2011; ALVES, 2012). Enquadramento metodológico Na tentativa de entender as mensagens nucleares apresentadas nas narrativas dos alunos brasileiros e portugueses sobre as relações entre passado, presente e futuro, tentamos identificar tanto os

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conceitos epistemológicos quanto os conceitos substantivos presentes em suas narrativas sobre a história do Brasil em relação com a História de Portugal, tendo como foco que quando apresentam alguma homogeneidade transversal à maioria das narrativas específicas indiciam identidades coletivas orientadas em determinado sentido.

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Com este propósito realizamos um estudo de natureza essencialmente qualitativa (com abordagem quantitativa adicional) com alunos portugueses e brasileiros, sendo que os dados foram coletados no Brasil e Portugal com alunos nas mesmas séries escolares. As metodologias qualitativas de investigação constituem o conjunto de diretrizes que têm orientado as investigações científicas realizadas no campo da educação histórica. O foco da investigação é delimitado por questões relacionadas à cognição e meta cognição histórica, tendo como fundamento principal a própria epistemologia da História. As questões realizadas permitiram evidenciar alguns elementos da perspectiva da cognição histórica dos alunos, o alcance dos conhecimentos prévios e a forma como estes tomam decisões sobre um conteúdo que precisa ser reescrito à luz dos saberes dos alunos, neste caso sobre a chegada dos portugueses ao Brasil. Participantes Para iniciar nossa investigação aplicamos um questionário a 570 alunos no total, 450 alunos em duas escolas da cidade de Londrina, Paraná – Brasil, e 120 alunos de duas escolas da região do Grande Porto – Portugal. No Brasil, o instrumento foi aplicado nas turmas de 6º ano ao 9º ano com alunos de idades entre 12 e 15 anos, das duas escolas. Estas escolas se encontram na mesma região da cidade de Londrina em bairros diferentes. Denominaremos aqui as escolas como 1 e 2, para evitar identificação dos sujeitos e lugares. A Escola 1 fica em uma região de periferia com uma população de classe média baixa (sobretudo filhos de operários e prestadores de serviços). A Escola 2 fica no designado centro expandido, e tem uma população de classe média baixa e classe média (filhos de comerciantes, comerciários, professores e profissionais liberais). Para a escolha das escolas brasileiras levamos em consideração os aspectos culturais dos alunos e a proximidade dos professores com projetos na Universidade Estadual de Londrina.

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Para a escolha das escolas portuguesas também foi pensada a perspectiva da heterogeneidade do contexto cultural. Aqui, os alunos que participaram da pesquisa são do 6º ano e 9º ano *, com idades entre os 12 e os 14 anos. Embora com turmas heterogêneas, estas escolas tem uma população semelhante às do Brasil no seu conjunto (filhos de funcionários públicos e trabalhadores). Denominaremos as escolas portuguesas de 3 e 4. *A seriação em Portugal se iguala ao Brasil no tempo destinado a educação básica de 12 anos, mas difere na divisão dos tempos de estudo. Enquanto no Brasil a educação básica é dividida em três ciclos: cinco anos no ensino fundamental 1. Quatro anos no ensino fundamental 2 e três anos no ensino médio. Em Portugal a organização é a seguinte: 1.º Ciclo: 1.º ano (6 de idade), 2.º, 3.º e 4.º.(com exames a português e matemática que valem 25%) 2.º Ciclo: 5.º, 6.º ano ( tem exames a português e matemática que valem 25%) 3.º Ciclo: 7.º, 8.º e 9.º ano (este tem exames a português e matemática que valem 25%) Ensino secundário que é de carácter obrigatório:10.º, 11.º (com exames nas disciplinas que terminam neste ano) e 12.º (com exames das disciplinas que terminam neste ano). São 12 anos obrigatórios atualmente. No caso dos alunos brasileiros, no 6º ano estavam estudando a Grécia Antiga e ainda não tinham estudado o conteúdo sobre história do Brasil. Os alunos do 9º ano estavam estudando Revoluções burguesas, tendo já abordado a História do Brasil no 6º ano e 7º ano. No que se refere aos alunos portugueses, no 6º ano estudam a história de Portugal e também as navegações portuguesas e os alunos do 9º ano, tal como os brasileiros, já tinham contactado com o conteúdo em algum momento escolar. Instrumentos e procedimentos de aplicação Tendo como perspectiva os estudos de Chapman (2009), elaboramos um instrumento de pesquisa onde pudéssemos entender a progressão conceitual dos alunos a partir da possibilidade destes pensarem a variação de perspectivas em História. As questões que constam do quadro 1 fizeram parte do estudo principal. Apenas a última pergunta não fez parte do estudo aplicado em Portugal.

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1- Se os portugueses não tivessem chegado ao Brasil em 1500 o que seria diferente e o que permaneceria da mesma forma na história do Brasil? 2- Qual a matéria mais importante sobre a História de Portugal/Brasil que você já estudou? Qual o período da história de Portugal/Brasil você mais gosta de estudar? Qual o maior herói/heroína da história portuguesa/Brasileira? Justifique. 3- Imagine que você está na internet conversando com pessoas de vários países e precisa contar a história do Brasil que você conhece para o colega. Faça uma narrativa contando esta história para seu amigo. *4-Complete a frase, contando a história do Brasil até os dias atuais Em 1500 portugueses a bordo de três caravelas, comandadas por Pedro Álvares Cabral chegaram a costa do que hoje chamamos de Brasil Quadro 1. Questões colocadas aos alunos. * Questão colocada apenas aos alunos brasileiros.

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Nosso interesse na construção do instrumento de pesquisa se insere em duas problemáticas de caráter epistemológico. A primeira com relação aos conteúdos substantivos que dizem respeito à possibilidade dos alunos perceberem que a história não é determinada. Também levamos em conta a forma de desenvolvimento deste conteúdo em sala de aula de forma a que, ao estudarem os conteúdos substantivos sobre o período, os alunos conseguissem estabelecer relações entre as grandes navegações e a possibilidade de outros países também chegarem ao continente, tendo como pressupostos o pensamento de Koselek (2006) e Hawthorn (1991) sobre possíveis anterioridades e posterioridades do acontecimento a conferirem sentidos ao passado. Em segundo lugar as questões relacionadas à meta história e à forma de explicação que os alunos encontrariam para justificar um ‘não acontecimento’ histórico, nas escolhas argumentativas das suas narrativas. Com relação a esta problemática (questão 1), indagamos quais fatores que os alunos utilizariam para explicar o não acontecimento, quais fatores resultariam deste não acontecimento e quais as consequências que este fato acarretaria historicamente. Nas questões seguintes, os alunos teriam necessariamente que fazer escolhas historiográficas e seleção de conteúdos substantivos para compor suas narrativas.

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Para este artigo selecionamos para discussão a análise das respostas à primeira pergunta fornecidas tanto por alunos portugueses como por alunos brasileiros do 6º ano. Analisamos a forma como os alunos brasileiros e portugueses responderam ao desafio de pensar a História do Brasil sem a presença portuguesa no descobrimento. Pretendeu-se ainda, neste caso específico, perceber quais operações mentais os alunos movimentam em torno de uma questão de caráter hipotético sobre o passado. Tendo como pressuposto, como afirma Dray (1980), que as causas de um acontecimento não são fatos objetivos e imutáveis à espera de serem descobertos, antes emergem dos pressupostos do julgamento histórico, da interpretação e do ponto de vista do historiador, tivemos, portanto, como objetivo mapear a relação que o aluno do ensino fundamental estabelece entre possíveis causas e consequências de um determinado acontecimento histórico: “Se os portugueses não tivessem chegado ao Brasil em 1500, como seria a História do país? O que seria diferente e o que permaneceria da mesma forma na história do Brasil?” Nesse sentido, podemos afirmar que a sugestão da narrativa ao não focalizar a análise sobre um fato que realmente aconteceu levou os alunos a terem que movimentar os conhecimentos para além daqueles condicionados e materializados nos materiais didáticos. Nosso estudo levou em consideração investigações na área de educação histórica que têm sugerido que os alunos dão sentido aos conteúdos históricos utilizando conceitos fornecidos pelas suas vivências na realidade atual. Outra relação diz respeito à contribuição da história para a educação e formação de pensamento “que não estará no conhecimento mecanizado ou na simples compreensão de situações do passado (lições a seguir ou a evitar), mas num exercício de reflexão gradualmente objetiva e crítica, sobre diferentes ações, razões, motivos e interesses dos diversos agentes históricos” (Lee, 1998). Análise de dados Para a análise indutiva dos dados relativos à questão proposta consideramos as respostas dos alunos com relação aos conteúdos substantivos apresentados, e ainda outra com relação a um pensamento de segunda ordem. Com relação aos conceitos

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substantivos, podemos agrupar as respostas dos alunos brasileiros e portugueses da forma apresentada nos quadros 3 e 4.

Alunos brasileiros: Manutenção do Brasil no estado de natureza intocável. Permanência da população como indígena Ausência de Tecnologia Mudança na forma de ensinar história: diálogo passado e presente Mudança na língua e ausência de país. Quadro 3. Conceitos substantivos apresentados por alunos brasileiros

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Alunos portugueses: - Manutenção do Brasil como antes da chegada dos portugueses - O que aconteceria a Portugal? - Outros países teriam descoberto o Brasil: diálogo com a historiografia - Não existência do Brasil no mapa - Questão do desenvolvimento cultural: -Influências atuais Quadro 4. Conceitos substantivos apresentados por alunos portugueses Entre as ideias meta históricas sugeridas nas respostas substantivas, sobressaem as que se relacionam com noções de mudança ou permanência, e que foram agrupadas em três categorias: 1. Paragem no tempo 2. Paragem no tempo e consequências para o presente 3. Outros cenários possíveis Categoria 1. As respostas que consideram ausência de mudança e de tecnologia apontam, ao nível das noções meta históricas ou de segunda ordem, para uma ideia de permanência ou de continuidade no caso da não ocorrência do evento consubstanciado pela chegada de Cabral ao Brasil.

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Há nas respostas uma ideia de paralisação da história do Brasil, com um tempo intocado da natureza e da falta de tecnologia (avançada). Para uns, essa ‘paragem’ no tempo significaria simplesmente uma melhor qualidade para os povos que aqui viviam: Exemplos de respostas de alunos brasileiros: “Não ficaria igual, pois existiriam muitas árvores, indígenas e se ninguém ainda descobriria, seria um país mais verde (natural).”;“Se os portugueses não tivessem chegado ao Brasil nós não seríamos brancos, nós iríamos viver na floresta, em vez de casas o ar seria um pouco mais limpo”;“Quase tudo seria diferente se os portugueses não tivessem chegado ao Brasil, não teria tecnologia, cidades e pessoas como nós e os índios viveriam melhor sem a nossa chegada.” Para outros alunos, essa ‘paragem’ no tempo é revestida de um sentido porventura ambivalente quanto à qualidade de vida: “Sim, seria diferente. Porque se os portugueses não tivessem chegado aqui nós ainda viveríamos com tangas e no meio do mato. O ouro e a prata seriam achados muito fácil e nós saberíamos lidar com as doenças mais conhecidas no Brasil. Permaneceria as guerras entre uma tribo e outra.”;“É difícil achar uma coisa que não foi mudada, a única coisa que eu acho seria a nossa fauna e flora diversa teria mais árvores e plantas também teria animais extintos, mas nenhum de nós teria nascido. Resumindo, se não fosse o Pedro Álvares Cabral ter errado a viagem o Brasil seria talvez uma grande selva.”;“Não ia ter tecnologia nem arma de fogo, ia ter mais árvores, não ia ter prédios, nada disso que tem agora ia ter.” Outros alunos, ainda, parecem atribuir um sentido negativo a tal situação de paragem: “O Brasil não teria essa tecnologia de hoje e nem teríamos grandes cidades.” Tal como para os alunos brasileiros, também para os portugueses existe um pensamento sem o descobrimento por Cabral aliado a um

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sentido de paralisação temporal do Brasil. Para uns, essa paralisação temporal não explicita uma carga valorativa: “Manutenção das florestas, dos indígenas”; Permaneceria igual era, ou seja, indígena”;“Permaneceria da mesma forma – os animais e as plantas e permaneceriam mais escuras, pois eram índios”. Para vários alunos portugueses, a exemplo de alguns alunos brasileiros, a ausência do descobrimento traria consequências positivas: “Ia permanecer como no início ainda teria mais índios, pois não teriam sido explorados de forma tão brutal”;“Ia permanecer igual com uma história menos dolorosa, teriam muito mais liberdade os índios pois não seriam explorados pelos portugueses.”

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Categoria 2. Se a maior parte dos alunos, quer no Brasil quer em Portugal, se fixou numa simples ausência de mudança pelo fato de não ter ocorrido um determinado evento significativo (como se não pudesse haver outros fatores que conduzissem a outras consequências), alguns alunos apresentaram um pensamento ligado à emergência da conceptualização de mudança. Esta emergência da ideia de mudança é indiciada pela construção mental de um cenário alternativo em relação a situações do presente: diálogo passado e presente ou mudanças na forma de ensinar história. Exemplo de respostas de alunos brasileiros: “Sim, a história do Brasil iria ser diferente porque os índios estariam na maioria das histórias brasileiras, mas eles não estão, porque os portugueses descobriram o Brasil, porque são de Portugal.”;“Seria diferente mais não iríamos estudar sobre ele, pois eles não estariam nos livros, etc....;“Sim, seria diferente, as pessoas não descobririam o Brasil, o Paraná não seria nada, as minas de ouro, ninguém descobriria as matas só teria índios e a gente não teria outros estados e não saberíamos outra língua”;“Sim, diferente o Brasil não seria mais um país.” Exemplos de respostas de alunos portugueses:

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“Se os portugueses não tivessem chegado ao Brasil a língua seria totalmente diferente pois o Brasil teria sido colonizado por outros países como Inglaterra.”;“Se Portugal não tivesse chegado ao Brasil em 1500 os brasileiros não falavam a mesma língua, pois não tínhamos colonizado seu país. O resto da história do Brasil seria diferente pois sua língua e provavelmente sua cultura seria diferente.” Categoria 3. Alguns, poucos, alunos, concebem a mudança e avançam com cenários alternativos à história existente. Como exemplo, eis a resposta de um aluno português, que problematiza consequências para o seu próprio país: “Se os portugueses não tivessem chegado ao Brasil, Portugal não conheceria o ouro, os índios e muito mais coisas. (...) E se Portugal não tivesse conhecido o Brasil o Rei não teria podido refugiar-se e talvez agora em 2013 Portugal seria um país francês. Nesta resposta a narrativa se volta para a História portuguesa dando um sentido não ao que aconteceria ao Brasil, mas sim ao que aconteceria a Portugal, mais significativo para este aluno. Aí percebemos na narrativa uma possibilidade de diálogos alternativos entre passado, presente e futuro. Como afirma Rüsen (2010), a consciência histórica é uma combinação complexa que contém a apreensão do passado regulada pela necessidade de entender o presente e presumir o futuro. Desta forma o aluno se debruça em ir além de um passado fixo, estabelecendo cenários de relações explicativas com o presente e futuro, no plano das possibilidades lógicas (mas não reais). Em algumas narrativas podemos perceber um diálogo mais avançado com a historiografia em termos de perspectiva de mudança e relação com evidência do presente, numa interação dinâmica entre tempos. Alguns alunos portugueses adiantam que outros países poderiam ter descoberto o Brasil mas, nesse sentido, não indicam algum país específico, apenas sugerem numa narrativa aberta que se não fossem os portugueses poderia ser outros povos: “Podia ser outro país a encontrar o Brasil”. “Acho que o Brasil seria dominado por outro país e iria

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conseguir também a independência”. “O Brasil mais tarde iria ser descoberto, portanto o Brasil iria aparecer no mapa.” “Se os portugueses não tivessem chegado ao Brasil, o Brasil tinha sido descoberto por outro país, esse país até podia não pertencer a união europeia.” “Eu acho que se não tivéssemos chegado ao Brasil em 1500 o Brasil teria sido ocupado por outro povo qualquer.” Para além dos sentidos de mudança, precisamos em nossa análise levar em consideração as teias tensionadas de formação da identidade destes jovens que é complexa, constituída por uma rede de pertenças em que os sentimentos e ideias ligadas a um povo se integram numa relação de consenso, tensão ou, por vezes, de conflito. Como afirma RÜSEN (1993), a identidade/s é/são alimentadas pelo saber histórico, mas também resultam de interesses práticos.

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Na questão meta-histórica, uma ideia partilhada por muitos alunos é que o passado é verdadeiro e imutável, caso hipoteticamente tivesse ocorrido de outra forma não seria possível uma história na medida em que o tempo ficaria paralisado (categoria 1 na análise). O que chama a atenção nas respostas de vários alunos é tanto o caráter estático de uma história que se não fosse assim não seria outra, como a perspectiva, em alguns casos, de que se não fosse assim seria de outra forma sem qualquer mediação de dúvida ou pressuposições quanto ao futuro. No entanto, em algumas narrativas podemos perceber a relação de mudança e diálogo com o presente, no que tange a ideia de que pode ser que no Brasil algo diferente poderia acontecer, e “seria dominado” por outros. O tempo verbal acompanha uma previsão de futuro hipotética que dependeria de diversos fatores para ser concretizada. Nesse sentido, a História está por ser feita ou realizada e cabe a quem comenta apenas inferir possíveis futuros a partir da questão colocada. Na análise percebemos que o uso de marcadores temporais: séculos, anos, períodos que são utilizados pelos alunos portugueses, pois há uma preocupação em localizar temporalmente as narrativas, não acontece com os alunos brasileiros que não estabelecem relações temporais para construções narrativas históricas. No caso do Brasil, isto pode ser creditado à forma de ensinar história nas escolas brasileiras no fim do século XX que contrapôs uma história dita

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moderna, temática, a uma história tradicional marcada por fatos, datas e locais. Este contraponto que tornou negativo o uso de datas acabou por retirar de muitas das salas de aula tanto no ensino básico como universitário a preocupação com a questão de localização temporal de temas históricos. O professor não podia se preocupar em exigir datas, nomes e locais dos alunos, caso assim fosse seria considerado tradicional, no sentido de ultrapassado. A ideia de um não acontecimento dando um sentido provisório ao conhecimento histórico “definitivo” causou perplexidade nas conclusões históricas dos alunos, pois de certa forma provocou neles um percurso desafiante, sem mapas de informação indicativos, seja o livro didático ou a fala do professor em torno das possibilidades históricas que uma mudança de acontecimento causou ao fato histórico colocado. Reflexões preliminares sobre o estudo Propusemos aos alunos que respondessem a um argumento para a ideia de um percurso temporal que não aconteceu, fazendo que pensassem a partir de uma questão hipotética sem necessariamente terem como parâmetro uma evidência concreta. As respostas que obtivemos em muitos casos não progrediram em torno de uma interpretação e discussão de argumentos históricos, mas sim ligados a uma ideia de verdade “histórica” estática e imutável. Nesse sentido, nosso estudo se aproxima das reflexões de Chapman (2009, p. 162) quando este argumenta em suas análises que considerou haver limitações na conceptualização da interpretação histórica dos participantes que pareceram em diversas tarefas não dominarem as ferramentas necessárias para darem sentido à história. Se como afirma (Barca, 2011) a compreensão do passado está relacionada ao desenvolvimento do pensamento histórico (ideias de segunda ordem) combinadas com a necessidade de promoção de um quadro coerente (substantivo) do passado que possibilite aos jovens uma orientação temporal consistente para suas vidas, o quadro que encontramos acaba por demonstrar que o ensino de história nas escolas pesquisadas não está ainda estruturado para este desafio. Outro ponto de reflexão que podemos inferir é a ideia de um mito fundador que se expressa na chegada dos portugueses ao Brasil e, como afirma Chauí, este “mito fundador” é “aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos

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valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo” (CHAUI, 2000, p. 9). Estamos analisando as narrativas a partir de questões colocadas pela historiografia que trabalha o mito fundador, a natureza, o fato histórico. Neste caso, a história escolar do Brasil não cessa de reiterar este mito todos os anos em salas de aula por todo país. É como se o Brasil estivesse desde sempre à espera de Pedro Álvares Cabral. Também podemos afirmar junto com Vesentini (1984, p.76) que estes temas que formam o passado mítico da nação “resistem à crítica e continuam a reproduzir-se. Organizam-se como pequenos “nós”, pontos centrais em torno dos quais todo um conjunto de temas passa a ser referido através dessa rede de relações, articulando vários temas de um nó, cada um deles torna-se definidor e periodizador”. Vesentini diz que o livro didático não cria estes temas, apenas os reproduz e, nesse sentido, a escola no Brasil hoje é responsável pela manutenção desta forma de aprender a História.

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Desta forma, podemos afirmar que o ensino de história em sala de aula tende a narrar acontecimentos, como fatos já pré-demarcados e que aquilo que Koselleck argumenta que o acontecimento precisa ser visto como modalidade temporal não se concretiza. Os alunos perdem com isto a dimensão que “só com o mínimo de anterioridade ou posteridade se consegue a unidade de sentido que forma um acontecimento a partir dos incidentes” (KOSELLECK, 1993, p. 142), sem preocupação de criar relações explicativas abertas. Também Barton (2001) alerta que, nos Estados Unidos, os educadores devem começar por ajudar os alunos a problematizarem o conhecimento histórico para que eles compreendam a necessidade da evidência, abordagem que deverá ser fundada no contato com todo o processo de pesquisa histórica. Notamos ainda que os alunos questionados tanto em Portugal como no Brasil, em sua maioria, não se ancoram em evidências históricas para construir afirmações possíveis à situação histórica sugerida e sim em uma história já determinada e conhecida que, se não acontece, não há outra a ser colocada no lugar, pois os alunos não consideram a movimentação de outros fatores. O passado está domesticado pela história factual sempre repetida.

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DIGITAL HISTORY E FORMAÇÃO DE HISTORIADORES: SUGESTÕES PARA UM DEBATE Patricia Santos Hansen Universidade de Lisboa Introdução O objetivo deste texto é apresentar algumas das questões que as práticas associadas à chamada Digital History colocam aos historiadores no momento atual. Tais questões, espera-se, podem talvez contribuir para a formulação de uma pauta de discussões a ser considerada nos cursos de formação de historiadores, em ambos os níveis de graduação e pós-graduação, no que diz respeito à(re)elaboração dos programas de disciplinas obrigatórias, na reformulação de currículos, e/ou na oferta de disciplinas opcionais. Não ignoro que a falta de infraestruturas, em muitas universidades, seja um enorme obstáculo. Porém, penso que uma vez compreendidas como prioridade (assim como não é possível haver cursos de informática sem computadores), as condições terão de ser criadas. Nesse sentido, sendo muito otimista é claro, não vou tratar das dificuldades postas pelos problemas de infraestrutura material e tecnológica, as quais são muitas e as realidades diversas, tampouco da falta de recursos humanos que serão formados conforme a necessidade se apresentar, isto é, quando estas questões constituírem de fato uma agenda para o ensino superior de história. Além disso, a necessidade de se discutir o tema extravasa as considerações sobre os contributos metodológicos e práticos que as diversas tecnologias podem oferecer aos profissionais de história, emesmoa importância da aquisição de competências técnicas básicas para usufruir destas. Portanto, nesta comunicação procurarei abordar principalmente as consequências, para o exercício profissional crítico e reflexivo, de situações geradas ou propiciadas pelo ingresso da Digital History no universo de atuação dos profissionais de história. Estes serão aqui considerados como aqueles que se dedicam aos diversos níveis de ensino de história e/ou à pesquisa na área, por isso também não levarei em conta dicotomias estabelecidas entre “pesquisadores” e “professores de história”,existentes em maior ou menor grau em diferentes contextos,considerando o problema concernente tanto à formação

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básica destes profissionais, quanto às subsequentes especializações e áreas de atuação profissional. O problema Trata-se de um fato de difícil contestação que nas últimas décadas a grande maioria dos historiadores de todas as subáreas disciplinares, tanto no ensino quanto na pesquisa, do mesmo modo que quaisquer outros profissionais de nível superior, tornaram-se não só usuários como, em maior ou menor grau, utilizadores dependentes das tecnologias da informação e comunicação. Tal dependência varia de acordo com fatores que incluem desde as competências individuais, ou o interesse e oportunidade para aquisição de competências para utilização das inúmeras ferramentas disponíveis, até a necessidade posta por problemas de pesquisa ou situações de ensinoaprendizagem, condicionadas pelos contextos nos quais atuam.

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No momento atual, a produção e a circulação do conhecimento histórico são, e tendem a tornar-secada vez mais,de formas imprevisíveis, mediadas em muitos aspectos pelas tecnologias da informação e comunicação (TICs), especialmente pelo uso da internet.Seja devido aos usos de recursos informáticos na educação, em sala de aula ou pela disseminação dos cursos em e-learning; pela facilidade de pesquisa em catálogos ou acervos digitalizados;pela maior possibilidade de divulgação dos resultados de investigações em periódicos científicos online e de comunicação com o público mais amplo através de blogs, redes sociais e websites; ou ainda, para aqueles que perseguem uma carreira acadêmica, pela presença em redes profissionais específicas (Research Gate; Academia.edu; LinkedIn; H-net, etc) que possibilitam manter-se a par de eventos, publicações, oportunidades de emprego ou financiamento de pesquisa, mas também por exigências relacionadas à gestão da produtividade e divulgação de índices métricos individuais, cada vez mais exigidos por agências de fomento e instituições empregadoras, ou até, na falta de termo melhor, por razões de “marketing” curricular. Nesse sentido, as TICs, na medida em que passam a implicar fatores que condicionam o conhecimento histórico,já não podem mais ser ignoradas pela reflexão historiográfica. Contudo, também não devem ser desprezadas no que diz respeito à preparação para o mercado de trabalho e empregabilidade dos futuros profissionais.

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Desnecessário listar exaustivamente os benefícios trazidos por estas tecnologias para historiadores profissionais,como os decorrentes da ampliação do acesso às fontes, das possibilidades de comunicação de resultados de pesquisa e formação de redes em torno de subáreas disciplinares, dos recursos educativos disponíveis para o ensino de história, da democratização propiciada pelo e-learning, etc. No entanto, também não é de se desprezar os encargos trazidos por estas ferramentas, como o aumento exponencial da bibliografia sobre a qual historiadores precisam manter-se atualizados e tempo gasto em selecionar o que interessa, muitas vezes perdido em meio a imenso volume de “lixo acadêmico”, o enorme investimento na “aprendizagem ao longo da vida” que as tecnologias demandam, agravado, entre outros aspectos, pela sua rápida obsolescência, os riscos de plágio, desinformação e dificuldades de identificação de conteúdos fraudulentos por parte do público, além de outros problemas.Muitos, certamente, têm a sensação desconfortável de incapacidade ou impotência perante tantos desafios. Mesmo após duas décadas de presença doméstica da World Wide Web, haverá ainda um número bastante significativo de profissionais compartilhando o sentimento,tão familiar no fim do século passado, descrito por Nicolau Sevcenko como perturbadoramente equivalente à sensação de se estar prestes a mergulhar no loop de uma montanha-russa:“o mergulho no vácuo, o espasmo caótico e destrutivo” [Sevcenko, A Corrida Para O Século XXI.] Também Robert Darnton, à mesma época, exprimiu num tom mais pessoal seus receios, resistências e fascinação com a internet. Cito: Como muitos acadêmicos, estou prestes a dar o salto para ciberespaço, e eu estou com medo. O que vou encontrar lá fora? O que eu vou perder? Será que vou me perder? Quanto mais me aproximo da fronteira da World Wide Web, mais me apego com carinho às mídias do passado: a palestra e o livro. Não é notável que ambos ainda sejam tão fortes em nossos campi, depois de séculos de uso, apesar do advento da chamada Era da Informação? Por mais que admire meus colegas mais jovens, que encaixam música e imagens computadorizada sem suas palestras, eu prefiro falar diretamente aos meus alunos, armado com nada além de giz e um quadro-negro. Sou um historiador, e quando trabalho nos arquivos preencho fichas com anotações que organizo em caixas de sapato, enquanto isso, ao meu redor,

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a geração mais nova tecla em PCs portáteis. Eu amo livros, livros à moda antiga, quanto mais antigos melhor. A meu ver, a cultura do livro alcançou o seu pico mais alto quando Gutenberg modernizou o códice; e o códice é, em muitos aspectos, superior que o computador. [...] A conclusão a que chega ao final do texto, não obstante, é esperançosa e visionária. O que não surpreenderá aqueles que, após dezesseis anos, podem testemunhar o modo como Darnton enfrentou seus receios e resistências:

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Quer eu aterre ou não com segurança sobre ele [o ciberespaço], estou convencido de que a Internet vai transformar o mundo da aprendizagem. A transformação já começou. Nossa tarefa, eu acho, é procurar controlá-lo, para que possamos manter os mais altos padrões de práticas do passado enquanto desenvolvemos outras para o futuro. Que lugar melhor para começar do que junto aos alunos que agora produzem suas dissertações? Tendo passado a sua infância com os computadores, eles saberão para onde vão quando mergulharem no ciberespaço. [Darnton, “A Historian of Books, Lost and Found in Cyberspace.”] Dezesseis anos depois, tendo testemunhado a “transformação” a que Darnton se referiu e constatando que ela foi muito mais radical do que alguém poderia imaginar em 1999, eu concordo com sua opinião sobre a tarefa de todos os responsáveis pela formação de futuros historiadores, incluindo os próprios estudantes dos cursos superiores de história que não são recipientes passivos de uma educação que lhes é alheia, de procurar “tomar o comando” do ciberespaço para garantir a boa prática profissional, e volto a perguntar o mesmo: que melhor lugar para começar que nos cursos de graduação? Subscrevo esta opinião, pois o tempo deu razão a Pierre Levy quando afirmou, ainda na mesma década de 1990, que a cibercultura era o veneno e o remédio para a experiência de cada um no mundo digital: […] nos casos em que processos de inteligência coletiva desenvolvem-se de forma eficaz graças ao ciberespaço, um de seus principais efeitos é o de acelerar cada vez mais o

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ritmo da alteração tecno-social, o que torna ainda mais necessária a participação ativa na cibercultura, se não quisermos ficar para trás, e tende a excluir de maneira mais radical ainda aqueles que não entraram no ciclo positivo da alteração, de sua compreensão e apropriação. Devido a seu aspecto participativo, socializante, emancipador, descompartimentalizante, a inteligência coletiva proposta pela cibercultura constitui um dos melhores remédios para o ritmo desestabilizante, por vezes excludente, da mutação técnica. Mas, neste mesmo movimento, a inteligência coletiva trabalha ativamente para a aceleração dessa mutação. Em grego arcaico, a palavra "pharmakon" […] significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Novo pharmakon, a inteligência coletiva que favorece a cibercultura é ao mesmo tempo um veneno para aqueles que dela não participam (e ninguém pode participar completamente dela, de tão vasta e multiforme que é) e um remédio para aqueles que mergulham em seus turbilhões e conseguem controlar a própria deriva no meio de suas correntes. [Levy, Cibercultura] A metáfora da “deriva” é forte, porém representa um risco real para muitos futuros historiadores que não tenham oportunidade de lidar com essas questões durante os seus anos de formação profissional. Mais ainda, implica em grandes chances de que se crie, num futuro próximo, um abismo intransponível em relação à qualidade do conhecimento histórico produzido em países que investem na formação dos historiadores para o uso de novas tecnologias e para a reflexão sobre as implicações que têm sobre o seu ofício,e aqueles que ignoram esta realidade. Sem querer assumir um tom alarmista, a inércia no enfrentamento do assunto poderá, efetivamente, potencializar a criação de dois cenários distintos, não necessariamente excludentes: a nível internacional, o de um novo “roubo da história”, onde nações ou povos com mais recursos passam a monopolizar as narrativas históricas numa dimensão global, sobre suas próprias sociedades e de outras, seja por terem o domínio sobre as tecnologias da informação e comunicação, seja por estabelecerem as categorias pelas quais a história é pensada em todo lado;a nível nacional, o risco é o da elitização de profissionais de história com recursos particulares e individuais para superar tais desafios.

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“O roubo da história”, título do livro do antropólogo Jack Goody,“refere-se à apropriação da história pelo Ocidente”. Isto é, ao modo como o passado foi e é “conceitualizado e apresentado de acordo com o que aconteceu na escala provincial da Europa, particularmente na da Europa ocidental, e então imposto ao resto do mundo”.[Goody, The Theft of History, p.1] Um novo “roubo da história” a partir da Digital History, caso ocorra (se é que já não está a ocorrer), não será mais eurocêntrico, porém anglocêntrico, como o próprio conceito. Esta preeminência do inglês, a “língua da internet”, coloca ainda uma outra questão que diz respeito ao bilinguismo no ambiente acadêmico, uma realidade que se impõe rapidamente em vários países da Europa, cujas universidades oferecem uma variedade de cursos em inglês, inclusive nos mais resistentes e apegados aoidioma nacional, e que agrava o risco para o qual chamei atenção acima, de uma maior elitização entre historiadores.

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Digital History Digital History é uma designação que engloba práticas e produtos bastante variados e seus objetos costumam ser tratados a partir de uma e/ou outra das seguintes perspectivas: como uma forma de História Pública; ou como parte do grande campo transdisciplinar tem sido chamado de Digital Humanities. São termos recentes no léxico acadêmico e não há consenso, entre os que se declaram praticantes, que permita uma definição fixa dos seus significados. Há concordância, entretanto, de que algumas das práticas que hoje são classificadas sob estes rótulos já existiam anteriormente, ou existem em países onde ainda não se pensa nas relações entre as humanidades em geral, ou a história em particular, e a informática, as mídias digitais e a internet, sob os vieses destes conceitos. Em Portugal e no Brasil, alguns temas começam a ser debatidos e vêm ganhando visibilidade pelo trabalho de jovens pesquisadores, que dedicam suas pesquisas de mestrado e doutorado à reflexão sobre tópicos variados relacionados à Digital History[Ver, entre outros, Lucchesi, “Digital History e Storiografia Digitale: Estudo Comparado sobre a Escrita da História no Tempo Presente (20012011).”; Aguiar, “Cultura Digital e Fazer Histórico: Estudo dos Usos e Apropriações das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação no Ofício do Historiador.”; Dantas, “O Passado em Bits – Memórias e Histórias na Internet.”], e por análises desenvolvidas por historiadores mais experientes a respeito de

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assuntos correlatos [Por exemplo: Alves, “From ‘Humanities and Computing’ to ‘Digital Humanities’”; Alves, “Guest Editor’s Introduction”; Boschi, O Historiador, os Arquivos e as Novas Tecnologias; Tavares, “História e Informática.”; Figueiredo, “História e Informática: O Uso do Computador.”; Maynard, Escritos sobre História e Internet.]. Não obstante, a inexistência de centros ou linhas de pesquisa, grupos de trabalho organizados e redes de colaboração condicionam o modo pelo qual a Digital History existe, é pensada, e se desenvolve nos respectivos contextos acadêmicos. De acordo com Willian G. Thomas III, o termo digital history nasceu com a fundação doVirginia Center for Digital History, entre 1997-1998, sendo em seguida disseminado em outras atividades acadêmicas como seminários e projetos de pesquisa. [JAH-Journal of American History, “The Promise of Digital History.”] Seu uso tem consequências para a prática e para o próprio conceito de história, do mesmo modo que o de outros conceitos muito presentes no léxico da historiografia atual, ainda que não tão novos, como os de “história pública”, “consciência histórica” e “cultura histórica”. Trata-se,como bem observa Anita Lucchesi, de um problema que diz respeito à uma história da historiografia no “tempo presente”[Lucchesi, “Digital History e Storiografia Digitale: Estudo Comparado sobre a Escrita da História no Tempo Presente (2001-2011).”]. A autora, aliás, dá uma importante contribuição aos estudos sobre a Digital History ao abordar, da perspectiva de uma análise dos conceitos, semelhanças, diferenças e conexões entre a Digital History,tal como praticada nos Estados Unidos, e a Storiografia Digitale, praticada na Itália. Vale lembrar, nesse sentido, a importância de considerarmos o nome pelo qual o objeto é designado, seguindo os passos de Reinhart Koselleck, pois o aparecimento de neologismos ou a formulação de novos conceitos são elementos-chave para a compreensão de determinadas dinâmicas e contextos históricos, na medida em que as expressões linguísticas fundamentam e condicionam interpretações e ações sobre a realidade. Se há falta de consenso a respeito do que é a Digital History, assim como sobre asDigital Humanities, é importante, pelo menos, considerar a opinião de alguns experts. Em debate promovido pelo Journal of American Studies, durante alguns meses de 2008,

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Willian G. Thomas III propôs a seguinte definição como um primeiro passo neste sentido: Digital History é uma abordagem para analisar e representar o passado que trabalha com as novas tecnologias de comunicação do computador, da Internet, e sistemas de software. De um lado, digital history é uma arena aberta à produção e comunicação acadêmica, abrangendo o desenvolvimento de novos materiais didáticos e conjuntos de dados. De outro, é uma abordagem metodológica enquadrada pelo poder hipertextual dessas tecnologias para fazer, definir, inquirir, e observar associações no registro do passado humano. Fazer digital history, então, significa criar um quadro, uma ontologia, através da tecnologia, para que as pessoas a experimentem, leiam, e acompanhem uma discussão/argumento sobre um problema histórico. [tradução minha do original: JAH - Journal of American History, “The Promise of Digital History.]

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Willian Turkel, por sua vez, sublinha que a Digital History “faz uso de fontes digitais” e que isso impacta o trabalho dos historiadores, pois estas fontes: Podem ser criadas e alteradas com relativamente pouco esforço ou despesa Podem ser duplicadas com custo marginal de quase zero e compartilhadas por qualquer número de pessoas Podem ser transmitidas quase que à velocidade da luz Podem ser armazenadas em escala “nano” Podem servir como entradas para qualquer processo que possa ser especificado por algoritmo Permitem mais facilmente separar a forma do conteúdo Permitem que os historiadores ganhem os tão conhecidos benefícios de trabalhar em rede O uso de fontes digitais, em outras palavras, muda completamente o panorama dos custos da informação e de negócios que os historiadores têm tradicionalmente enfrentado [tradução da autora, ibid.]

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Sobre a questão das fontes, Daniel Cohen lembra um artigo de Roy Rosenzweig, um dos pioneiros da Digital History, que analisa dois “futuros possíveis”: a escassez ou a abundância das fontes. “Escassez, na medida em que os materiais digitais são muito frágeis e podem desaparecer com um simples toque no delete ou por uma pane magnética, e abundância pois o armazenamento digital torna virtualmente possível salvar e tornar globalmente acessível, pela rede, toda e qualquer expressão humana.” [ibid.] No mesmo debate, vale a pena ainda registrar um comentário destoante. Trata-se da opinião de Michael Frisch, que se diz “cético sobre o valor de ‘digital history’ como um termo”, pois, de acordo com o seu argumento, digital history ou acabará significando coisas demais ou muito pouco e logo será tão incontornável (em vinte anos, estará algum profissional trabalhando em história sem envolver isso sobre o que estamos falando?) que não será capaz de designar nada que seja suficientemente específico para uma disciplina, workshop, ou blog. História Quantitativa, por exemplo, veio e se foi, como rubrica – em parte porque foi vencedora, e muitos historiadores lidam rotineiramente e efetivamente com dados quantitativos quando querem ou precisam de um modo fluido e compreensivamente inquisitivo. Sendo assim, eu estou principalmente interessado em como, porquê, e, especialmente, em que consequências importantes resultam do fato de que historiadores estejam fazendo história de novas formas, que eles possam começar a refletir para onde esses caminhos conduzem e como eles vão transformar não apenas o que os profissionais fazem e o modo como o fazem – mas também o que eles produzem e o que isso significa para a compreensão do passado. [ibid.] Poderíamos continuar ainda com muitas outras perspectivas sobre a Digital History, incluindo opiniões de outros historiadores “digitais”, de outros países e continentes, mas penso que as intervenções citadas permitem vislumbrar o que tem sido discutido. A lista de problemas colocados pelas TICs aos historiadores é infinita e aumenta a cada dia, de modo que não vamos aprofundar o assunto. Discussões estão presentes em periódicos e blogs, e uma

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boa síntese é dada pelo capítulo “La transformation des sciences historiques. La part du numérique” [Vink and Natale, “La transformation des sciences historiques. La part du numérique.”] do livro Disciplines Académiques em Transformation: entre innovation et resistánces, que se coaduna com o tipo de problematização do objeto que é aqui abordado: o das transformações da disciplina e da necessidade de formar futuros profissionais cientes destas transformações e aptos a lidar com elas.Vink e Natale, autores do texto, abordam o problema em seis aspectos: “fontes utilizadas”; a “redescoberta das dimensões materiais e sociais da produção histórica”; dos “antecedentes da Humanities Computing à difusão da informática”; a “revolução informática no trabalho dos historiadores”; “transformações da pesquisa de informações”; o “paradoxo do Google: a ‘invisibilização’”; “mediação das relações sociais: a relação entre pesquisadores e profissionais da informação”; uma “pesquisa mais transversal”; a “renovação da figura do amador”; “filiação profissional e as formas inalteradas de promoção na carreira”; “modos de crítica das fontes na era da informática”; e o “deslocamento [de foco] dos “produtos” para os “processos””. Tendo a concordar com a opinião de Frisch, de que o termo digital historyprovavelmente não fará sentido daqui a alguns anos. Entretanto, penso que sua utilização no momento é útil, tanto para chamar a atenção no ambiente acadêmico e profissional para as transformações que se efetuam na disciplina e ao redor, como para circunscrever um objeto que urge ser pensado, discutido, e incluído entre os conteúdos do ensino-aprendizagem, pois que afeta o futuro profissional de muitos. Se nos Estados Unidos, onde o tema tem sido amplamente discutido, um relatório de 2013 proclamava que a “disciplina histórica estava falhando em promover práticas modernas de pesquisa” [Townsend, “Report Claims History Discipline Failing in Modern Research Practices.”], o que se dirá de países onde a maioria dos departamentos de história ou não considera o tema como um problema “departamental”, ou tratam o assunto como algo que pode ser contornado por iniciativas individuais de professores interessados? Sugestões para um debate Não se trata de apresentar aqui um programa pronto ou uma pauta fechada de temas a serem discutidos, até porque cada curso, departamento ou programa de pós-graduação apresenta condições

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específicas e terá de enfrentar diferentes obstáculos. Alguns, certamente, já o fazem. Não obstante, é possível levantar alguns tópicos a partir da bibliografia sobre o assunto e buscar informações sobre outras experiências a fim de identificar boas práticas ou modelos que possam ser adaptados a outros contextos. O primeiro ponto diz respeito ao levantamento das infraestruturas e identificação dos recursos humanos disponíveis ou passíveis de serem mobilizados. Dizer que o debate deve envolver os departamentos de história como um todo, não quer dizer que, para enfrentar os desafios urgentes referidos acima, os professores tenham que adquirir uma série de novas competências que lhes são completamente estranhas de um dia para o outro. A falta total ou a escassez de infraestruturas e recursos humanos podem, em muitos casos, ser compensadas por um maior diálogo e cooperação com outros departamentos ou centros de pesquisa das universidades, pelo recurso à programas de financiamento de projetos, apoios para contratação de bolsistas, técnicos, etc. Trata-se, então, em muitos casos, de uma questão de gestão, criatividade e vontade,e também de contornar dificuldades burocráticas que com frequência atravancam iniciativas transdisciplinares, interdepartamentais e interinstitucionais. O importante, contudo, é que os departamentos de história estejam preparados para atender a uma demanda por parte dos alunos que só tende a aumentar, na medida em que eles se tornam mais informados e conscientes das transformações que atingem a profissão, as quais, vale sublinhar, não dizem respeito unicamente à digital history, ainda que esta seja provavelmente aquela que mais implica investimentos materiais e pessoais. O segundo ponto, complementar ao anterior, é que muito do que é preciso refletir junto aos estudantes em relação à digital history não exige conhecimentos técnicos, mas sim experiência e competência profissional em aspectos teóricos e metodológicos. Formar historiadores críticos e capazes de refletir sobre a própria prática sempre foi o objetivo dos cursos de história. Grande parte das questões colocadas pelo uso da internet, - por exemplo em relação à pesquisa de documentos digitalizados -, não altera os procedimentos básicos de crítica das fontes e problematização dos arquivos, como a interrogação sobre os critérios de seleção de documentos, origem, etc. Mais ainda, uma boa parte do problema pode ser colocado como

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sendo de caráter ético: como formar profissionais capazes de praticar uma “história responsável”, nos termos de Antoon De Baets, e não uma “história negligente” ou “irresponsável” no contexto atual?[ De Baets, “Uma Teoria do Abuso da História.”] Ou, de uma outra perspectiva, que “virtudes epistêmicas” são necessárias aos historiadores do presente e do futuro? [ Paul, “Performing History.”]

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Isso conduz ao terceiro ponto, o qual diz respeito a dois problemas correlatos. Primeiro, o do investimento na empregabilidade dos futuros historiadores. Esse problema foi enfrentado, primeiro nos EUA e depois no Reino Unido, pela criação de cursos de Public History que visam formar profissionais aptos a se inserir em outros mercados de trabalho que não a academia ou instituições escolares, tais como a indústria de entretenimento, museus, turismo, etc.[ Sobre os argumentos que conduziram a esta inflexão no panorama dos cursos universitários de história nos EUA ver Grafton and Grossman, “No More Plan B: A Very Modest Proposal for Graduate Programs in History.”] O debate sobre a aquisição de competências técnicas a fim de ampliar as opções de atuação profissional dos historiadores não deve ignorar esta questão. O segundo problema é o da concorrência com profissionais de outras áreas ou amadores no que diz respeito às representações do passado. É certo que os historiadores nunca tiveram o monopólio das narrativas ou representações do passado, mas, por outro lado, nunca tiveram tanta concorrência. Preparar futuros historiadores para o uso de outras mídias, que não as convencionalmente usadas, significa equipá-los com ferramentas que permitam explorar criativamente diferentes formas de apresentação do conhecimento histórico, e também avaliar criticamente produções e recursos disponíveis. O ensino de códigos de programação já é uma realidade para crianças muito pequenas, no ensino básico nos EUA e em escolas de elite no Brasil. Compreender a lógica da programação torna-se, com medidas como essa, um dos elementos básicos da literacia digital. Ainda assim, arrisco discordar da emblemática frase de Le Roy Ladurie,que em 1968, no apogeu do deslumbramento com a história quantitativa, vaticinou: “L’historien de demain sera programmeur ou ne sera plus”. Hoje, softwares de uso cotidiano fazem o trabalho do ideal do historiador-programador dos anos 60 e 70. Ainda que considere importante que enquanto potenciais usuários das novas tecnologias os historiadores estejam aptos a tirar o maior partido

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possível dos softwares disponíveis, o que é facilitado quando setem algumas noções básicas de sua lógica de funcionamento, penso que o historiador do presente e do futuro estaria melhor representado pela figura dodesigner. É que mais que a lógica de programação, são as exigências dos motores de busca(leia-se Google), e a interface do usuário (que lhe sugere uma rota de navegação tal como os “protocolos de leitura” contidos nos textos e inscritos em seus suportes), que hoje se impõe como determinantes na produção e comunicação do conhecimento. Bibliografia Aguiar, Leandro Coelho de. “Cultura Digital E Fazer Histórico: Estudo Dos Usos E Apropriações Das Tecnologias Digitais de Informação E Comunicação No Ofício Do Historiador.” Dissertação de Mestrado em Ciência da Informação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação, 2012. Alves, Daniel. “From ‘Humanities and Computing’ to ‘Digital Humanities’: Digital Humanities in Portugal with a Focus on Historical Research.” H-Soz-Kult, October 24, 2014. http://www.hsozkult.de/searching/id/diskussionen2455?title=from-humanities-and-computing-to-digital-humanitiesdigital-humanities-in-portugal-with-a-focus-on-historicalresearch&q=Daniel%20Alves&sort=&fq=&total=9&recno=1&subTy pe=debate. ———. “Guest Editor’s Introduction: Digital Methods and Tools for Historical Research.”International Journal of Humanities and Arts Computing 8, no. 1 (April 1, 2014): 1–12. doi:10.3366/ijhac.2014.0116. Boschi, Caio. O Historiador, Os Arquivos E as Novas Tecnologias: Notas Para Debate. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. Dantas, Camila Guimarães. “O Passado Em Bits – Memórias E Histórias Na Internet.” Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Programa de PósGraduação em Memória Social, 2008. Darnton, Robert. “A Historian of Books, Lost and Found in Cyberspace.” Chronile of Higher Education, March 12, 1999, B4. De Baets, Antoon. “Uma Teoria do Abuso da História.” Translated by Patrícia Santos Hansen. Revista Brasileira de História 33, no. 65 (2013): 17–60.

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ENSINO DE HISTÓRIA E JUSTIÇA SOCIAL: UM DEBATE POSSÍVEL Sebastián Plá UNAM México A pesquisa contemporânea em ensino de história para a educação básica e média pode ser rastreada até os últimos anos da década dos sessenta e princípios dos setenta. A partir daí ela cresceu exponencialmente, sobretudo nos últimos vinte e cinco anos, depois da Guerra Fria e com a perda de certo controle por parte dos Estados-Nação da história na escola. Foi na Inglaterra onde se iniciou parte significativa deste impulso; simplificando ao extremo para uma maior clareza expositiva, produziram-se duas visões sobre a história – e as ciências sociais – na escola que compartilharam e se diferenciaram em vários aspectos. Por um lado esteve Denis Shemilt, a quem graças a um estudo longitudinal e sua implementação curricular, The School’s Council History Project (SCHP), analisou e defendeu a potencialidade transformadora e democrática do ensino das habilidades históricas aos estudantes de educação obrigatória. Digamo-lo simplesmente, Shemilt assentou as bases do movimento que se pode nomear de modo geral hoje em dia como ensino do pensar historicamente, com força especial no Canadá, Estados Unidos e, claro, na ilha britânica e em outros países de fala inglesa. Mas nessa mesma década, Lawrence Stenhouse desenvolveu The Humanities Curriculum Project, em que ao contrário de Shemilt, predominou uma lógica interdisciplinar na qual o centro não eram as habilidades cognitivas ou heurísticas disciplinares, senão a compreensão do presente a partir de temas controversos próximos aos estudantes, aos professores e inclusive aos pais de família. Ambas as posições compartilham algo, ademais de serem muito divergentes entre si, e repudiaram a história memorialística, enciclopédica e nacionalista, quer dizer, cresceram em oposição à história oficial tradicional. Esta visão dicotômica – habilidades disciplinares e de pensamento frente a contextos culturais e políticos do presente – é demasiada inexata, mas útil para as minhas pretensões de gerar polêmica. É inexata porque não discute o papel da ciência na visão de Stenhouse ou do contexto das escolas e os alunos na visão de Shemilt, não aprofunda em suas aproximações à psicologia nem ao papel do

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professor ou as concepções de estudantes e nem sequer aborda a problemática dos conteúdos históricos, das humanidades ou das ciências sociais que pretenderam trabalhar nas aulas segundo cada projeto. Muito menos observa o que acontece dentro das aulas, quando se trabalha de uma ou outra maneira, e os métodos de pesquisa utilizados.*

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* Seguramente existem muitas outras posturas sobre ensino de história. Algumas delas inclusive conjugam com êxito ambas as posições. Por exemplo, a proposta de consciência histórica de Jorn Rüsen e suas competências narrativas, que tiveram no Brasil uma influência significativa, poderia aparentemente localizar-se nesse lugar intermediário: as competências narrativas do lado das habilidades cognitivas e a consciência histórica e seus componentes como a cultura histórica, ao lado dos conteúdos controversos ou relacionados com o presente. No entanto, acredito que se analisarmos bem a proposta de Rüsen e suas derivações posteriores, a balança terminaria inclinando-se para o lado de habilidades cognitivas por duas razões: o caráter universal de sua proposta (que logo se modificou ao modo ocidental de pensar historicamente) se sustém em uma base cognitiva, não cultural e política. A segunda razão são as preocupações teóricas de Rüsen, centradas no cânone de pensar historicamente, quer dizer, que suas propostas terminam fundamentadas no pensamento disciplinar e não no contexto social. Podemos encontrar outra visão em uma proposta unificadora entre ambas as posições: ensinamos a pensar historicamente para compreender e solucionar os temas controversos ou os problemas de nosso presente de maneira científica e, portanto, democrática. Claro que a última assertiva também é discutível: desde quando a ciência em geral e a historiografia em particular são democráticas? A forma dicotômica, ademais, não inclui os desenvolvimentos particulares em cada nação. Por exemplo, no México entre 1974 e 1992 dominou a proposta de ciências sociais e o ensino de temas relacionados com o presente e posterior às reformas dos noventa, a ênfase se deu principalmente no desenvolvimento de habilidades cognitivas e competências históricas. No Brasil, por exemplo, as reformas curriculares da última década do século XX também deram

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peso às competências e habilidades em cima dos conteúdos, mas a inclusão de temas, como a cultura afro-brasileira, produziu uma forma híbrida.* *Em toda a América latina, mas notadamente no Brasil, a relação entre ensino de história e os problemas contemporâneos não provém das propostas inglesas dos anos setenta. A tradição freireana e o impacto de Ivan Illich na pedagogia da região são mostras suficientes desta pluralidade. No entanto, a dicotomia conceitual segue sustentando-se, independente da procedência das ditas tradições. Na Alemanha, a tradição didática própria se encaminhou aos conceitos de consciência histórica produzidos por Rüsen ou pelos problemas da reunificação. A África do Sul, pela sua parte, iniciou sua época pós-apartheid preocupada com a história e as ciências sociais como componentes centrais para a reconciliação social; porém, atualmente, por trás de duas novas reformas curriculares, predomina a lógica de habilidades de pensamento e das competências. O Canadá, que iniciou nos noventa um projeto de consciência histórica e multiculturalidade, defende agora a avaliação em grande escala e a aprendizagem de seis habilidades básicas do pensar histórico, paradoxalmente, emoldurada dentro da consciência histórica e da multiculturalidade. Nos Estados Unidos, ainda que existam vários posicionamentos, predomina o projeto de pensar como historiador sobre o ensino da história para o bem comum. Na Argentina, a imensa preocupação pela memória da história recente se choca às propostas de competências dos anos noventa. Estes são somente exemplos que mostram as diversidades nacionais, mas que não eliminam de corte a minha classificação dicotômica, somente a matizam. Porém, também é útil para introduzir a pergunta deste ensaio e tratar de lhe dar resposta: se o ensino de história ou as ciências sociais é parte constitutiva do curriculumou dos planos de estudo de muitos sistemas educativos nacionais e os sistemas educativos têm – ou ao menos deveriam ter – à justiça social como parte medular de seus objetivos: que história ensinar na educação básica e obrigatória para fomentar a justiça social? Para esboçar alguma resposta utilizo a imaginação como instrumento analítico. Isto significa que na segunda parte deste texto apresento um debate fictício entre um

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acadêmico e uma acadêmica com a intenção de responder a pergunta a partir de duas perspectivas antagônicas. Também há uma terceira voz que representa a moderadora e a narradora. Antes de continuar, é necessário esclarecer que sempre há uma terceira posição que sustenta que a função da história na escola não está em fomentar a justiça social, senão em formar na identidade nacional, e se baseia em conteúdos factuais da história dos Estados-Nação. Esta posição, contra o que tanto Shemilt como Stenhouse lutaram nesse tempo “primevos” da pesquisa em ensino da história e as ciências sociais, segue sendo, todavia, muito poderosa nas políticas curriculares, mas dificilmente se defende no âmbito universitário e entre um importante número de docentes. Assim mesmo, como é uma concepção por princípio excludente, permaneceu excluída deste debate. II

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- A pergunta central deste debate é: que história ensinar na educação básica e obrigatória para fomentar a justiça social? – iniciou a moderadora. O acadêmico defensor das habilidades de pensamento, psicólogo cognitivo de formação e com um amplo interesse na história tomou rapidamente a palavra: - A justiça social e a educação dependem da qualidade da aprendizagem. Se conseguirmos que o aluno aprenda um conjunto de competências históricas embasadas na forma de pensar dos historiadores, quer dizer, a história como forma particular de conhecimento, os egressos da educação obrigatória poderão atuar com maior probabilidade de êxito no mercado de trabalho flexível ou na educação superior. Isto iguala as oportunidades e, portanto, promove uma sociedade mais justa. Se a escola ensina efetivamente as competências históricas, logo o espaço que ocupe na sociedade não dependerá tanto das origens sociais ou da desigualdade econômica, senão do desempenho ou do mérito de cada um. Ademais, estas competências lhe permitirão, graças à capacidade de análise crítica das fontes históricas, atuar ativamente como membro de sua sociedade ou, em outras palavras, como um cidadão ativo e crítico. Isto termina, portanto, reduzindo os processos de desigualdade social e fomenta uma sociedade mais justa.

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- Por minha parte – comentou a acadêmica dos temas contemporâneos, docente de profissão e com estudos de pósgraduação em ciências sociais – considero que a pergunta faz referência ao “para quê” do ensino da história. Como tal, ele está emoldurado nos contextos políticos, econômicos e teóricos mais amplos, sobretudo no que concebemos como uma sociedade mais justa. As sociedades atuais, especialmente a partir dos anos noventa e o crescimento desmedido da desigualdade social, devem ser tanto o objeto de estudo como o objetivo da inclusão da história no desenho curricular. No entanto, nem a escola nem o ensino da história são responsáveis por solucionar este tipo de desigualdades. A responsabilidade é do Estado, e em particular, das instituições governamentais responsáveis pela regulação das arrecadações, a cobrança de impostos e a justa redistribuição da riqueza por meio de diferentes bens e serviços públicos. Isto implica que se vigie e garanta que as diferenças entre os indivíduos sejam menores em relação à renda e ao status, independentemente de qual trabalho se desempenhe. A história na escola, portanto, deve ensinar as condições históricas e estruturais de desigualdade (como as relações de poder e a distribuição da riqueza) que caracterizam o presente e assim, com base nos problemas atuais, promover nos estudantes uma participação cidadã crítica que possa fomentar as condições de igualdade social. Em outras palavras, a função do ensino de história para a justiça social é relevante enquanto ensine aos jovens a dimensão política de sua existência. - É estranho, em suas respostas se utilizam as mesmas palavras, contudo, no que consigo distinguir, com significados diferentes. O primeiro é o de uma sociedade justa, o segundo o de cidadania crítica. Podem se aprofundar neles? - Claro. Quando falo de uma sociedade mais justa, afirmo que toda relação social termina produzindo desigualdade, mas não é o mesmo uma desigualdade produzida pelos privilégios herdados, por exemplo, no Antigo Regime europeu ou pela diferença racial na África do Sul do Apartheid, que a desigualdade produzida pelos méritos de cada pessoa. Mas para que essa desigualdade seja justa desde a sua base, é necessário que a educação de qualidade garanta a todos os membros da comunidade o conjunto de habilidades que lhes permitam competir em igualdade de condições. O resultado então depende de cada pessoa. Neste ponto que é indispensável que a história, dentro da escola, ensine competências básicas, como a

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análise de fontes, a mudança e a permanência dos processos históricos ou a estrutura narrativa do pensamento histórico. Estas habilidades permitirão aos estudantes de educação básica serem críticos quando alcançarem a maioridade, e sejam cidadãos plenos de seu país. Por exemplo, as habilidades de contextualização e corroboração das fontes históricas permitem ao aluno ser crítico com a publicidade ou com a propaganda política; pois lhes ensina que há intenções nas mensagens que lhes enviam os políticos ou os meios massivos de informação. Mas, sobretudo, o crítico se fundamenta, ao contrário do que pensa nossa colega aqui presente, em que a história, enquanto ciência dona de uma forma particular de conhecimento, está isenta das parcialidades políticas. Graças ao pensamento histórico, entre outros conteúdos científicos, os alunos aprenderão a tomar decisões racionais.

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- Efetivamente divirjo substancialmente com o que acabas de dizer. A igualdade de oportunidades é uma falácia. Está mais que demonstrado, pelo menos desde a sociologia crítica da educação de Bourdieu e outros tantos, de que as origens sociais são determinadas não só no desempenho escolar, sobretudo pelo lugar que se ocupa na sociedade. Quer dizer, o filho de executivo ganhará mais em sua vida que o filho do trabalhador porque é filho de executivo e não pelo seu desempenho acadêmico ou seus méritos pessoais. Para evitar e igualar realmente a base, o que temos é que controlar desde o Estado as desigualdades sociais, isso é, que o filho do trabalhador, se continua sendo trabalhador, tenha um ingresso muito mais próximo ao do executivo. A distância resultante não deve ser moralmente significativa. Portanto, a escola como direito é parte fundamental da justiça social, mas esta última depende de muitos outros fatores, como a redistribuição de renda. Inclusive, eu acrescentaria, a função da história na escola e de todo o sistema educativo para a justiça social reside, fundamentalmente, na formação dos indivíduos e os cidadãos muito mais além do aspecto econômico. Não devemos educar para o desempenho profissional futuro, sobretudo em educação básica, senão para a formação do sujeito integral. Este sujeito deve ser um cidadão crítico, mas não o será se crê que a ciência é um conhecimento neutro ou se possui as habilidades cognitivas de pensar historicamente. E o será enquanto possua o corpus conceitual e analítico que lhe permita ver a dimensão política de toda prática social e de todo conhecimento, e as condições de desigualdade simbólica e real que produzem e reproduzem. Por exemplo, sua ideia de neutralidade do

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conhecimento científico é uma posição científica que busca colocar o conhecimento científico que produz hierarquicamente acima dos outros, a que se considera invadido por interesses políticos, quer dizer, mesquinhos. - Fica-me claro – mediou a moderadora – que o problema da justiça social está plantado em ambos os casos no âmbito da redistribuição da riqueza e dos bens em geral. Para um, a redistribuição reside na igualdade de oportunidades e a escola tem um papel importante nisso; para a outra, a redistribuição deve ser garantida por outras instituições do Estado, em especial aquelas que regulam os salários e os impostos. Mas isso somente é uma das faces da justiça social. Se seguirmos Fraser, outra face é o problema do reconhecimento, outra seria a da representação dos diferentes grupos sociais na discussão pública. O que podem dizer a respeito? - É aí onde a história e as ciências sociais na escola cobram um papel relevante na justiça social. Se nos desatamos do estreito nó neoliberal que vê a educação somente em função ao sistema produtivo, inclusive nos distanciamos do economicismo do marxismo ortodoxo em que a estrutura é o determinante da superestrutura, poderemos compreender de forma cabal minha postura – se adiantou a intervir a acadêmica defensora da dimensão dos temas controversos do presente em sala de aula. – A pedra angular do meu posicionamento é que a distância entre ambos os sistemas, o econômico e o educativo, é o espaço potenciador no qual a história e as ciências cobram sentido para a justiça social. O conhecimento crítico e social é ideal para incluir e reconhecer aos grupos tradicionalmente excluídos nos planos de estudo e não só aí, senão nas salas de aulas a partir dos contextos culturais e econômicos que rodeiam e formam cada centro escolar. É necessário que o objetivo da aula de história e das ciências sociais não seja o desenvolvimento de competências básicas, objetivo que se alcança quase no automático quando se trabalham bem os outros conteúdos, senão a inclusão das minorias ou das maiorias menos favorecidas. Por exemplo, há que trabalhar com a condição dos indivíduos e coletivos com ascendência africana na América, as condições de marginalização à que foram submetidos os indígenas, o olhar dos trabalhadores diante da exploração da que são objeto, e outros tantos coletivos ou não tão coletivos mais, como as mulheres, as crianças, as minorias étnicas, os homossexuais, as lésbicas e os transgêneros. Mas não basta apenas incluí-los nas narrações curriculares, também há que fazer com que a escola reconheça

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diferentes epistemologias, por exemplo, as formas de construção histórica em diferentes culturas, ou seja, como dizem os póscolonialistas, recuperar as diferentes epistemologias exterminadas nos processos de colonização do século XVI e no imperialismo do XIX. Isto me leva a pensar no terceiro elemento mencionado da justiça social, o da representação, aspecto em geral negado aos alunos em uma boa parte dos sistemas educativos nacionais. Este aspecto é complicado, pelo que tratarei de exemplificá-lo. No Canadá, um importante movimento para definir as características do pensamento histórico ocidental colheu seus frutos com o projeto e a colocação em prática de instrumentos de avaliação em grande escala. Na continuação deste projeto, os pesquisadores apresentaram a legítima intenção de compreender as formas do pensar histórico dos indígenas canadenses, assim como estabelecer similitudes entre ambos. Entretanto, no momento de decidir sobre os critérios de avaliar em grande escala, isso é, os componentes do conhecimento legitimado pela avaliação, não se inclui o tempo cíclico ou a relação entre tempo e paisagem, ferramentas cognitivas para pensar a história desde um ponto de vista não ocidental. O projeto canadense reconhece a diferença, mas não lhe permite se representar nas políticas educativas. O ensino da história e as ciências sociais podem tratar de amenizar isto nas aulas, e de fato o fazem em muitos lugares, mas enquanto as políticas educativas sigam sem fazê-lo, e a proposta de competências genéricas não seja mais que uma nova imposição cognitiva dos organismos internacionais, quer dizer, o multilateralismo controlado pelo ocidente, a justiça social e suas dimensões de reconhecimento e representação serão, todavia, uma utopia. Para lutar por uma igualdade cognitiva, o conceito de justiça curricular e a exigência de olhar os conteúdos desde os menos favorecidos poder nos ser útil. - Te escuto e me parece historicamente muito interessante. O colonialismo, imperialismo, marxismo e os maquiavélicos organismos internacionais me soam um discurso dos setenta; como se trinta anos de reformas educativas e de desenvolvimento da investigação não houvessem existido. Mas enfim, o bom é que as competências do pensar historicamente me deixam ver as mudanças e permanências nos discursos educativos contemporâneos, quer dizer, distinguir aquelas propostas inovadoras de outras que são francamente anacrônicas. Dado que todo modelo de justiça social, e o de Fraser não é o único, deve responder às necessidades do presente e neste momento, a desigualdade econômica é um flagelo

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que açoita nossas sociedades, sobretudo em regiões como América Latina, o tema central segue sendo a redistribuição de bens e a criação de condições que permita a igualdade de oportunidades para distribuí-los justamente. Portanto, nesta discussão, há que considerar ao conhecimento e às habilidades cognitivas um bem. Isto implica reconhecer as necessidades e características dos diferentes coletivos. Tanto é assim que o princípio que subjaz nesta ideia de justiça se baseia na equidade, quer dizer, reconhecendo as desigualdades, todo programa ou política pública deve estar destinada aos menos favorecidos: bolsas para estudantes com poucos recursos e programas de apoio a comunidades indígenas são dois exemplos. Mas isso não está diretamente vinculado com o ensino da história e as ciências sociais como parte da justiça social. Assim é, enquanto cumpre a função de apoiar a criação de “um salário cultural mínimo”. Permitam-me explicar um pouco mais. Amartya Sen, Prêmio Nobel de economia, sustenta que todo principio de justiça parte de um consenso de ‘igualdade de quê’? A seleção da resposta traz consigo necessariamente a limitação em outros âmbitos. Uma igualdade nos salários implica uma redução da liberdade dos salários. Se levamos este critério ao âmbito educativo e vermos a educação básica como um direito para todos, podemos contestar que a justiça social se considerou na segunda metade do século XX como o direito ao ingresso à escola e que as políticas estiveram centradas em garanti-las. Com o tempo as pesquisas foram percebendo que a qualidade diferenciada das escolas formava melhor a uns que a outros, pelo que na atualidade devemos conceber a igualdade tanto na garantia ou acesso como na formação ou a qualidade. Mais especificamente, a qualidade educativa como um direito implica que todos os alunos saiam com o mesmo nível de conhecimentos, com um “salário cultural mínimo” que lhes permita realizarem-se em nossa sociedade complexa e globalizada. Qual parte deste salário cultural mínimo corresponde ao aporte dado pela História e Ciências Sociais? As habilidades de pensar historicamente. Em outras palavras, um jovem ou uma jovem ao egressar da educação básica, deve ter a capacidade de pensar historicamente. Portanto o problema do reconhecimento se aplica nas políticas públicas focalizadas, mas no que se refere ao ensino da história e as ciências sociais, ou mais bem, ao conhecimento que produzem e ensinam, devem se considerar como parte da redistribuição. Pensar historicamente significa usar as habilidades construídas por um grupo de expertos, os historiadores, e é responsabilidade da escola redistribuir um conhecimento científico a

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toda a população. A igualdade e, portanto, a justiça, reside em que todos possuam as mesmas habilidades de pensamento para ter as mesmas oportunidades. Dado que é impossível incluir tudo no currículo, isto traz inevitavelmente a exclusão de outras formas de pensar, mas o custo é menor se observarmos as vantagens desta igualdade. - Como sempre o tempo está se esgotando, e apesar de tudo, muitos temas permanecem apenas esboçados, como a definição de conteúdos do currículo, a formação docente, ou os processos de ensino e aprendizagem dentro da sala de aula, quero retomar dois aspectos que foram mencionados e que necessitamos aprofundar, ainda que sucintamente e a modo de conclusão: Quais são as características epistemológicas do conhecimento histórico escolar ou das ciências sociais, e que relação tem com os processos de avaliação e com esta justiça social? – perguntou a moderadora.

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- Não é uma pergunta nada simples, e dado o curto espaço de tempo, minha resposta inevitavelmente ficará incompleta. Por isso, a farei em oposição ao “inovador” e “contemporâneo” discurso que meu contemporâneo acaba de esgrimir. O fato de que considere minha resposta de anacronismo é uma negação de nossa contemporaneidade. Nesta lógica, ele e eu pertencemos a diferentes tempos históricos. Ele ao presente e ao futuro, e eu a um passado fossilizado. A ideia de progresso ou a história linear do ocidente é o que sustenta esta afirmação. Se o tempo é uma linha, ele está mais avançado que eu. Meu objetivo vital não pode ser outro que alcançálo. Se me proíbe traçar minha própria temporalidade, minha própria linha ou linhas do tempo circulares, quadradas ou irregulares. Se tento fazer isso, rotula-me de primitiva. Essa foi a lógica do imperialismo do século XIX. Se levarmos isso ao ensino de história, significa que a escola, sobretudo a do Terceiro Mundo ou a do Sul, menos desenvolvida, se assim preferirmos chamá-la, deve formar para alcançar esse tempo histórico a que não pertence, do qual está defasado. Ademais de implicar em hierarquias diferentes de conhecimento, esta visão parte de uma lógica epistemológica que tem sua procedência no positivismo do séc. XIX: a história é um conhecimento científico e como tal é universal e independente de seu contexto de produção. A escola nesse ponto deve adotar ou levar a cabo um processo de transposição didática, que permita aos alunos compreenderem a natureza do conhecimento histórico e utilizar suas ferramentas cognitivas. Todo conhecimento histórico fora deste

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cânone ocidental é um conhecimento local, particular e dependente do contexto de produção. Em outras palavras, as histórias orais, as concepções cíclicas do tempo ou as relações não exploradoras com a natureza ficam fora do cânone e, portanto, da escola. O conhecimento histórico na escola não deve se pensar como uma adaptação do conhecimento científico, senão como um uso público da história. Isto implica que o próprio conhecimento histórico escolar tem uma epistemologia própria, isso sim, política e culturalmente determinada. Se concebermos a história escolar como um uso do passado, significa que a historiografia, os museus, a comercialização ou as identidades juvenis também são usos legítimos e públicos da história. E ante tal diversidade de histórias possíveis, a avaliação fica em suspenso, pelo menos a avaliação estandardizada, homogênea, imposta por instituições que definem, sob princípios próprios, qual é o conteúdo histórico ou social que os alunos devem aprender, mas sobretudo, prescrevem como se deve pensar o passado dentro da escola. A avaliação do ensino e aprendizagem da história deve ser decidida por cada professor, pelas necessidades do grupo e levando em consideração os contextos culturais e econômicos de cada escola. Isto não implica que não haja um mínimo de conteúdos a aprender em educação básica, o que significa é que esses mínimos devem aceitar a diversidade cognitiva, e que esse mínimo não necessariamente deve ser controlado a partir de um centro administrativo. - Esta última afirmação é tão inexata que só é possível responder com uma nova pergunta: como estabelecer um mínimo sem normas acordadas que meçam ou não se ou alunos aprendem esses mínimos? – revidou o acadêmico – Sem um poder central, que fomente a autogestão do docente e ao mesmo tempo avalie seu desempenho, somente criamos condições para uma autonomia tão ampla que gerará uma redução notável da qualidade. Se há tantas formas de pensar a história como culturas existentes, então que cada um decida seus conteúdos; e, no entanto, não existiria nenhum conhecimento em comum e não haveria então nenhuma identidade comum dentro de um país. O resultado é um processo de diferenciação tal que seria impossível dar garantia a um conteúdo mínimo, e desse modo uma base cognitiva para os estudantes que lhes permita competir em pé de igualdade em relação às oportunidades no meio social. A diferenciação levaria à exclusão, pois muitos estudantes ficariam sob a decisão de seus mestres, sem as habilidades necessárias para poderem atuar com êxito em nossa

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sociedade. O que a sociedade do conhecimento exige é a capacidade de processar informação e criar novos conhecimentos. Se reconhecermos a produção do saber histórico profissional como uma ciência com sua epistemologia própria, isso é, como uma forma de conhecimento particular, o que temos que levar para a escola, obviamente, não é uma cópia deste mesmo, senão ajustar os processos cognitivos dos expertos em sala de aula e fomentar o pensamento crítico. A relação entre a historiografia e a escola é que a segunda deve desenvolver as habilidades de pensamento produzidas histórica e culturalmente, quer dizer, não naturalmente, em toda a população. Ademais, estas habilidades são tangíveis e suscetíveis de serem avaliadas. Ao serem operações mentais que criam um produto determinado, este produto pode ser avaliado em seus diferentes níveis de desenvolvimento. Por exemplo, com uma matriz de avaliação que pode observar se os alunos são capazes de identificar as causas e as conseqüências de um acontecimento, identificar as mudanças e os pertencimentos, a capacidade de empatia e se finalmente são capazes de estabelecer um significado histórico dos conteúdos estudados. Estes critérios podem ser perfeitamente avaliados em grande escala, exigindo e garantindo uma qualidade igualitária para todos do ensino, mas, sobretudo, da aprendizagem da história e as ciências sociais. A modo de conclusão, a avaliação em grande escala nos permite fomentar, e por extensão, garantir a inclusão de todos no pensamento histórico, que é o conhecimento pertinente que requer a nossa sociedade. Dessa maneira, conseguir uma sociedade mais justa tem como base a igualdade de oportunidades, sempre e quando respeite a liberdade individual e se aceite as justas desigualdades que se produzem. III Minha intenção ao imaginar este debate não foi em esgotar o tema da relação entre ensino de história – e das ciências sociais – e a justiça social. Pelo contrário, o que quero é abrir o debate de um tema onipresente no ensino de história, porém ao mesmo tempo velado, quase oculto ou subentendido. É como se por um lado todos nós, pesquisadores e docentes, nos déssemos por feito que é uma resposta óbvia e, por outro lado, como se nosso agir fosse incapaz, às vezes, de ver ou identificar aqueles aspectos que se relacionam com âmbitos muito mais amplos que a sala de aula ou as revistas indexadas de pesquisas. Assim mesmo, tendo em vista que é um tema complexo, que deve beber das teorias da justiça, da sociologia

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da educação, da teoria da história e da epistemologia, procurei tratálo de uma maneira pouco acadêmica e óbvia. Espero tê-lo conseguido. O debate tratou de olhar, desde duas perspectivas encontradas, os problemas da função de ensino da história em relação ao sistema produtivo, à participação cidadã, à inclusão ou não de certos conteúdos históricos, aos problemas de avaliação e a epistemologia do conhecimento histórico e do conhecimento histórico escolar. Tratei de ser imparcial nos posicionamentos de cada um dos personagens, ainda que meus trabalhos se localizem mais de um lado da balança que do outro. Seguramente existem muitos matizes que interrelacionam ambas as posturas, mas acredito que, para este reduzido espaço, ficam claros os posicionamentos centrais: por um lado se encontra a igualdade na redistribuição da riqueza, porém a diferenciação cognitiva, pelo que o ensino de história teria sua função na formação integral do indivíduo e não do trabalhador. Por outro lado, temos uma postura que fomenta a desigualdade econômica concebida como justa e meritocrática, que exige para ela a homogeneização conceitual e cognitiva, para pensar a história e atuar na sociedade. Permanecem muitíssimos temas vinculados ao ensino de história e a justiça social que não mencionei, contudo, por agora me basta explicitar que a decisão que tomarmos sobre a igualdade, a equidade e a diferença no momento que ensinamos história, seja consciente ou inconscientemente, pode determinar nossas práticas docentes. Por exemplo, e a modo de conclusão aberta: se minha proposta de ensino de história é fomentar a equidade de gênero, e a equidade implica necessariamente o reconhecimento de uma desigualdade de condições para tomar medidas que favoreçam aos grupos menos favorecidos, neste caso o da mulher frente ao homem nas sociedades patriarcais da imensa maioria dos países: devo então aplicar estratégias didáticas diferenciadas às alunas, apesar dos resultados acadêmicos das mulheres tenderem a ser superiores aos dos alunos em boa quantidade de países? A aplicação da mesma atividade para todos não vai contra meu princípio de equidade? Ou pelo contrário, a aplicação de estratégias diferenciadas não termina por produzir uma nova exclusão? É evidente que para responder estas perguntas não basta, apesar de ser uma condição necessária, incluir a história das mulheres nos planos de estudo.

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Referências Ainda que não tenha citado nenhum texto de maneira explícita, as ideias, conceitos, dados e modelos de debate se encontram explicitamente em um ou mais dos seguintes livros ou artigos:

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CONTATOS IMEDIATOS NO ‘3º GRAU’: HISTÓRIA ANTIGA E OS PROBLEMAS EM SEU ENSINO UNIVERSITÁRIO E ESCOLAR André Bueno UERJ Klaatu Barada Nikto! [do filme ‘O Dia em que a Terra parou’, 1951] Cenário: Um disco voador desce no Egito antigo, milênios atrás. Sem qualquer razão conhecida, o alienígena desce e constrói as pirâmides – mais especificamente, Quéops, Quéfren e Miquerinos. Depois, ele vai embora e desaparece, nunca mais entrando em contato com a Humanidade. E terá sido mesmo um extraterrestre, ou poderia ser alguém do continente perdido de Atlântida? Tais perguntas alimentam as especulações da maior parte dos episódios que as pessoas assistem no programa ‘Alienígenas do Passado’, do canal History Channel. É notável que tanta desinformação continue a reinar no imaginário social. Nenhum dos especialistas é historiador, mas falam o tempo todo de história. Nenhum deles entende de hieróglifos, de história egípcia, nem mesmo deu uma rápida olhada em qualquer texto egípcio, senão em traduções vulgares. Igualmente, não entendem também de Engenharia, nem de Física; nem ao menos conhecem teorias básicas da História da Arte, que podem facilmente explicar os sistemas simbólicos da Antiguidade. Enfim, há que se perguntar no que são especialistas; mas o questionamento mais sério, a meu ver, é porque as pessoas têm dificuldade em refutá-los, porque as pessoas ainda lhes dão ouvidos. Pior: o senso comum do público em geral conta com a ‘vantagem’ do desconhecimento, da educação deficiente, da ignorância sobre as leis mais básicas da ciência. Mas muitos professores, das mais diversas áreas, não sabem, e nem conseguem [ou, nem se preocupam!] em modificar tais equívocos. Há uma leniência absoluta com o engano, cúmplice da falta de estudo, e da preguiça com a atualização no conhecimento científico. Pois bem, vamos à desconstrução desse cenário. Só posso, a princípio, falar como historiador; mas, por meio de algumas poucas leituras selecionadas, sou capaz de encontrar respostas para algumas das ‘profundas dúvidas’ [e fui irônico aqui] que compõe a questão.

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Comecemos, pois, pelas pirâmides; quem estudar um pouco sobre arte e arquitetura egípcia saberá que elas são o resultado de séculos de experiência na construção de modelos piramidais cada vez mais aperfeiçoados [e com direito, claro, a muitos erros]. A pirâmide de Sacara, construída por Imhotep [2655-2600 a.C. - sim, o arquiteto tinha nome, e era humano], foi construída num sistema simples de empilhamento. Gradualmente, materiais e estruturas foram sendo aprimoradas, desenvolvendo-se modelos maiores e mais complexos. Todavia, as pirâmides do Egito não se restringem a Quéops, Quéfren e Miquerinos. Existem milhares de pequenas pirâmides espalhadas pelo Egito e pelo Sudão [antigamente conhecido como Núbia]. Algumas são do tamanho de uma pequena casa. O corte das pedras, bem como seu transporte, foram feitos com técnicas primitivas, mas até hoje utilizadas, em qualquer pedreira espalhada pelo mundo. Mas pergunto: quem já foi a uma pedreira saber como se cortam pedras com martelos e cravos?

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Quanto aos discos voadores, o que se há pra dizer? Pelo visto, os antigos não deveriam ter imaginação nenhuma. Eles não seriam capazes de conceber seus deuses, religiões, histórias, suas mitologias. Tratar-se-ia, em tudo, de aparições de seres extraterrestres, disfarçados de divindades. Mas isso não explica como os gregos construíram o Partenon, em Atenas, sem ajuda deles; como os romanos fizeram seus templos, aquedutos e palácios, ou ainda, como os chineses fizeram a Muralha da China. Obras tecnicamente tão difíceis quanto as pirâmides teriam sido feitas sem intervenção alienígena! Vitrúvio [séc. 1 a.C.], o renomado arquiteto romano, nos legou um razoável conhecimento técnico sobre construção, que nos explica como muito disso tudo surgiu, simplesmente, da mente humana. Curiosamente, a farra dos discos voadores parece ter arrefecido depois do surgimento do Cristianismo. Não se falou mais deles. E, sem qualquer ajuda externa, o homem medieval – sim, aquele que muitos chamam de bruto, inculto e ignorante – construiu seus castelos em pedra, em cima dos morros e montanhas, sem ajuda dos alienígenas. E podem se separar os Deuses e os mitos das técnicas? Onde fica então o mito de Atlântida [esse ‘estepe’ à hipótese extraterrestre, quando ela falha]? Platão comentou sobre ele em seu livro Timeu; quiçá isso torna real, igualmente, a lenda dos hermafroditas, ou das raças de bronze, ferro e ouro, que ele colocava na boca de Sócrates? Mas foi o historiador Vernant, que cedendo algo de seu precioso

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tempo, explicou-nos em seu agradável livro ‘Atlântida – Pequena História de um Mito’ [São Paulo: Edunesp, 2008] um pouco da história do Mito de Atlântida, e de seu uso, como discurso, ao longo dos séculos. Há pouco tempo atrás, inclusive, circulou uma reportagem pela Rede sobre um grupo de pesquisadores holandeses que teriam decifrado o enigma da construção das pirâmides [veja as ligações eletrônicas no final do texto]. Bem, historiadores especializados em História Antiga já sabiam sobre essas técnicas há décadas [eu mesmo as vi na Graduação]. Existem ligeiras divergências sobre a possibilidade de existirem técnicas diversas na engenharia arquitetônica egípcia, mas nada que anule uma a outra. A pergunta que faço é: como, então, chegamos a esse ponto? É claro, ter que ler alguns livros, e abrir a cabeça para idéias vindas de outras áreas, parece ser um fardo para a maior parte das pessoas. Mas aceitar a vinda de alienígenas é tão simples assim? Essa pode ser considerada uma hipótese plausível, tendo em vista as imensas dificuldades que se tem de comprovar qualquer uma dessas aparições? Devemos ter em mente, portanto, que há um encanto com esse desconhecido, essa visão alternativa que representa a teoria do passado alienígena. Tal encanto, se não for superado na época da juventude, torna-se hábito ou crença. No momento que escrevo [18/02], vejo na Rede [veja as referências no fim desse texto], igualmente, o 1º Encontro de Ufologia Avançada do Paraná, em Curitiba, nos dias 13 a 15/03 de 2015. David Heatcher, estrela do programa ‘Alienígenas do Passado’, do History Channel, estará lá; pesquisadores da ‘História Secreta’ dos alienígenas no passado, também. Nenhum deles tem formação em História, até onde eu saiba; a maior parte do público, igualmente, também não o tem. Então, onde foi que os professores de História falharam, para que a versão desses autores fosse mais interessante que aquela ensinada na escola? É inevitável que pensemos, assim, no que estamos fazendo, como profissionais de Ensino. História Antiga, essa injustiçada Há pessoas que realmente acreditam que não precisamos de História Antiga ou Medieval. Afinal, somos o Brasil, um país que não viveu ‘nessa época’. Essa estreiteza de visão mostra muito da ampla ignorância de seus autores. Não se estuda o Mundo Antigo apenas pela sua beleza - embora eu creia, particularmente, que a empatia

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por um determinado período histórico é que faz com que nos aprofundemos mais nele. Afinal, na faculdade de História, escolhemos como tema de estudo de nossas monografias, e de nossos planos de aula de estágio, o que mais nos apetece... Porém, não se trata disso. A História Antiga trata dos fundamentos da civilização humana. Deixe-me contar duas situações rápidas aqui, passadas em estágios de Ensino de História. Na primeira, a estagiária iria dar aula de história romana, e perguntou se os alunos sabiam de onde vinha, e o que era, a República. Após um certo silêncio, alguém respondeu: ‘Com o Marechal Deodoro, em 1889’. Não houve nem a tradicional chacota dos colegas, posto que todos concordaram. Na segunda situação, outra estagiária questionava a turma sobre o que eles sabiam sobre Idade Média. O único audaz, que se propôs a encarar o desafio, respondeu que existia ‘A infância e adolescência, a Idade Média e a Terceira Idade’. Eu poderia incluir, aqui, o aluno que perguntou se Carlos Magno era parente de Alexandre Magno, mas creio que o leitor já entendeu onde quero chegar. Por esses poucos exemplos, não é difícil constatar que o desconhecimento é amplo, a formação em História está péssima.

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Mesmo sendo uma disciplina obrigatória, a História está sendo mal lecionada – e a História Antiga, especificamente, tem sofrido muito com isso. Não é raro, em várias escolas, que se distribua História Antiga como tarefa para iniciantes, como punição ou trabalho árduo e chato. Bem, se muitos profissionais de História já acham a área entediante, que sentimento eles podem transmitir aos alunos? Obviamente, que o seu desconhecimento [e desconexão] com a História Antiga data de seus cursos de Graduação, no qual alguns docentes pregam a importância fundamental de certas causas – em geral, suas próprias causas – no estudo da História. Ingênuos, preguiçosos ou oportunistas, muitos alunos se deixam levar por essa ultra-especialização, que pouco se aprofunda de fato, e se torna um discurso superficial de auto-afirmação acadêmica. Note-se, aqui, que não sou contra, de forma alguma, com alguém especializar-se em algo: mas, quando esse alguém domina os instrumentos da pesquisa, ele será capaz de estudar mais seriamente, buscar as fontes, estabelecer as conexões, elaborar aulas, enfim, de conceber uma visão histórica mais ampla. Se chamado a lecionar sobre qualquer fase histórica, ele será capaz de pesquisar, de construir conteúdos adequados e métodos atraentes para o bom funcionamento de seu curso. Isso só não ocorre em dois momentos: ou quando a turma tem sérios e reais problemas de disciplina e envolvimento ou, via de

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regra, quando o docente está absolutamente desinteressado de estudar qualquer coisa que esteja além de seus interesses particulares. Nesse caso, ele não ‘perderá seu tempo’ lendo o que não seja de sua alçada para realizar a ‘tarefa menor’ de lecionar. Ele repetirá automaticamente o conteúdo dos problemáticos livros didáticos de que hoje dispomos, alegando diretrizes curriculares maiores que ‘o dirigem’. Esse amplo quadro de insensatez conecta-se, diretamente, com a questão do ensino. Desprovidos de qualquer conhecimento maior sobre História Antiga, e alheios a métodos de pesquisa que sejam atraentes, os alunos – desde a escola, passando pela Graduação universitária – caem na vil armadilha do comodismo imediatista, atrelando-se a conteúdos e expedientes que limitam seus pontos de vista. Tornam-se repetidores da insuportável cantilena da sistematização histórica, superficialmente estruturalista, que determina o trágico destino fatal das antigas civilizações antigas: ‘Mesopotâmia, inventora da Escrita e das Leis; Egito, das Pirâmides e Múmias; Israel, da Religião; Fenícios, do Comércio e do Alfabeto; Gregos, da Filosofia; Romanos, do Império...’. Esse tipo de apresentação, fatalmente, leva os alunos das escolas ao desencanto com os antigos. Ele só ressurge em momentos esporádicos, movidos por filmes como ‘300’ [2007] ou ‘Thor’[2011]. Não causava espanto ao público, por exemplo, que o seriado ‘Hércules’, de alguns anos atrás, exibisse o personagem principal em calças jeans, num total anacronismo. Gostaria de ilustrar novamente esse problema com outra historieta, essa passada comigo. Eu fui assistir o filme ‘Gladiador’ no cinema, em sua época de lançamento, logo na primeira semana de exibição. Eu sou fã assumido dos filmes épicos da década de 50, e a aparição desse filme me interessava sobremaneira. Eu me perguntava: o que as pessoas querem ver nesse filme? O que elas buscam? A maior parte delas mal conhece esse período histórico... e as antenas do pesquisador se ligaram no público ao redor. Desde o início, constatei que a aventura, a violência e a pancadaria davam o tom da assistência. ‘Gladiador’ estava sendo visto como um filme de artes marciais, muito mais no âmbito dos filmes de Jean Claude Van-Damme do que, propriamente, de Charlton Heston. Por fim, ao sair do cinema, ouço a conversa de um casal, atrás de mim, em que a moça declarava: ‘eu até gostei do filme, apesar de ser meio violento’, ao que o seu companheiro respondeu: ‘achei uma porcaria, viu que não aconteceu nem um tiro sequer?’

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Por isso, não é de se estranhar que essa desconexão com um sentido histórico de passado promova, indiretamente, a difusão de teorias alienígenas. O passado parece distante demais para a maior parte das pessoas, e permanece, de certa forma, inexplicável. Por essa razão, as teorias mais absurdas, mas carregadas de empatia, de mistério, de oculto, atraem entusiasticamente aqueles cujo conhecimento carece de possibilidades mais amplas. Elas atuam em um nível mental que lhes é mais familiar – omítico – que não exige respostas coerentes, racionais ou mais aprofundadas, senão o domínio de uma lógica que é aquela própria proposta pelo mito. Vendo assim, faz todo sentido, então substituir os antigos deuses das mitologias pelos extraterrestres; trata-se, tão somente, de uma substituição de sistemas mitológicos, que cumprem a função de suprir explicações para o que é aparentemente ‘inexplicável’.

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Vemos, por fim, a falta que um conhecimento histórico mais aprofundado causa. Nesse ponto, a História Antiga torna-se um ponto fundamental de inflexão, tendo em vista que ela trabalha com três níveis fundamentais para a construção do conhecimento histórico: a) a origem da civilização humana, em seus conceitos fundadores, quer sejam o pensamento, a religiosidade ou a política, etc.; b) o uso amplo de uma postura interdisciplinar, na pesquisa, que envolve os mais diversos campos de conhecimento científico, a fim de construir hipóteses mais sólidas; c) uma preocupação contínua com os métodos e técnicas de ensino dessa fase histórica, posta a fragmentação de suas fontes, o distanciamento temporal, e a projeção que sobre ela é feita a partir de teorias contemporâneas, sejam estas religiosas, políticas ou mesmo, extraterrestres e fantásticas. Se desejamos, portanto, desconstruir preconceitos, concepções equivocadas e restritivas, teorias fantásticas ou místicas, precisamos recorrer aos antigos, mas de forma séria e centrada. Sem um ensino consistente, e consciente, de História Antiga, continuaremos a ser presas fáceis de teorias obtusas e fundamentalistas, que seguem promovendo a sua marcha de insensatez e violência sobre as pessoas comuns. O próprio Santo Agostinho já dizia que o Mal provinha da ignorância, e nada parece ser mais acertado; e a indefectível frase do Mestre Confúcio, o grande educador chinês, nos elucida: ‘estudar sem refletir é inútil; e refletir sem estudar é perigoso’. A frase tem

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mais de dois milênios de existência, mas infelizmente, permanece atual. Para concluir: ‘Klaatu barada nikto’ é uma frase retirada do filme ‘O Dia em que a Terra parou’ [1951]. Klaatu, o alienígena, dá esse comando ao seu robô Gort, antes que ele destrua tudo ao seu redor. A frase não significa absolutamente nada, como a produção do filme re-inteirou várias vezes. Contudo, uma busca rápida pela Rede mostrará a quantidade enorme de pessoas que ainda buscam um sentido oculto nela. É o espírito de nossa época. Referências Sobre a notícia da construção das pirâmides [2014]: http://hypescience.com/cientistas-descobriram-o-segredo-egipciopara-mover-as-enormes-pedras-daspiramides/ http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/05/14 0502_piramides_areia_lk Matérias sobre a construção de pirâmides [privilegiei, aqui, materiais de caráter didático, para evidenciar o desconhecimento do público sobre esse tipo de leitura mais acessível]: http://projetoafricadetodosnos.blogspot.com.br/2011/09/contrucao -das-piramides.html [Página simples, com conteúdos educativos relevantes e atraentes] http://mundoestranho.abril.com.br/materia/como-foram-erguidasas-piramides-doegito?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm _campaign=redesabril_mundoestranho [Matéria da revista Mundo Estranho, n.70, cumprindo a função que deveria ser dos professores. Nesse número, vemos a fonte de vários textos e imagens que circulam pela rede] https://www.youtube.com/watch?v=q7zyyX7PK9E [Excelente vídeo do grupo Nerdologia, feito de forma rápida, atraente e atual. Recurso didático imprescindível, com toques de humor e ironia] https://www.youtube.com/watch?v=kFbgQ0UZ5e4 [Documentário feito por Josh Bernstein que, vestido de Indiana Jones, entrevista Zahi Hawas e um especialista esotérico, acerca da construção das pirâmides. O debate é bastante elucidativo, ao

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mostrar todas as falhas do discurso fantástico. O History Channel, porém, dava os primeiros indícios do que seria depois a sua ‘metodologia histórica’] MILLARD, Anne. O mais belo livro das pirâmides. São Paulo: Melhoramentos, 1996. [apresentação simples, didática e fartamente ilustrada sobre o tema] Sobre o evento de Ufologia no Paraná: http://www.ufo.com.br/ufologiapr/

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O ESTÁGIO SUPERVISIONADO NA FORMAÇÃO DOCENTE EM HISTÓRIA: ENTRE TEORIA E PRÁTICA Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski UNESPAR Estudantes de licenciatura, ao ingressarem nos cursos, costumam apresentar concepções frágeis em relação à prática da docência. Por um lado, uma parcela ressalta as deficiências de professores e professoras com que tiveram contato durante a sua educação básica, enquanto outra parcela afirma que ingressou no curso de licenciatura justamente pelo exemplo de docentes que marcaram positivamente seu período escolar. As considerações feitas em relação à prática docente ruim, nem sempre vem acompanhadas de argumentos sólidos, frutos de reflexões sérias a respeito das mazelas da educação no país. As disciplinas voltadas ao ensino nos cursos de licenciatura visam promover reflexões amplas, proporcionando o desenvolvimento de um entendimento maior a respeito da prática docente que deve ir além do simples encantamento / descontentamento com determinados/as profissionais. As discussões teóricas realizadas na graduação visam superar essas concepções, por vezes, simplistas em relação à docência, enquanto o estágio objetiva uma experiência prática que não só confirma ou não a vontade de estudantes seguirem na profissão, mas principalmente, que ensina sobre a complexidade de tal escolha. O Estágio Curricular Supervisionado, como uma etapa obrigatória dos Cursos de Formação de Docentes tem uma carga horária de 400 (quatrocentas) horas, que devem ser distribuídas na segunda metade dos cursos de licenciatura, obedecendo a Resolução CNE/CP 2, de 19 de fevereiro de 2002, que institui a carga horária dos cursos de licenciatura. São consideradas atividades de Estágio Curricular as ações educacionais de ensino-aprendizagem proporcionadas aos acadêmicos e acadêmicas pela participação em situações reais, realizadas em instituições de Ensino Fundamental e Médio. O fato de que tais atividades só podem ser cumpridas a partir da segunda metade do curso se justifica pela necessidade de um amadurecimento teórico, não apenas em relação aos conteúdos a serem ministrados nas escolas ou colégios, mas referente à docência, ao ensino e à aprendizagem. Mais do que como ‘obrigatória’, a prática de estágio deve ser entendida como importante para a formação docente. Ela visa

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proporcionar uma experiência prática na profissão, comportando boa parte das atividades que fazem parte do dia a dia de profissionais da educação, desde o planejamento de ensino, a produção de materiais didáticos, a avaliação escolar e a realidade da sala de aula com sua dinâmica e seus imprevistos.

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Em seu texto ‘O estágio de docência como práxis formadora’, Caimi (2002) ressalta que a prática de estágio visa justamente romper com a tão propagada frase “a teoria na prática é outra coisa”, dita por estagiários e egressos de cursos de licenciatura, que privilegiaram apenas ou em maior escala a formação teórica, a racionalidade técnica que desconectada da prática não garante respostas para a realidade escolar. Não há como ‘treinar’ bons professores, isso não existe. Não há como garantir que as teorias e metodologias discutidas na faculdade irão solucionar todos os problemas da educação e que determinadas técnicas de ensino, bem treinadas, terão como resultados a aprendizagem de estudantes, pois a sala de aula é um espaço vivo, dinâmico, por vezes conflituoso, por vezes apático, mas estimulante, pois provocativo para docentes que compreenderam o sentido da profissão e desejam de fato que a socialização dos conteúdos historicamente acumulados ocorra, que estudantes construam saberes, que a aprendizagem aconteça. Treinamento não é eficaz, formação que integra teoria e prática sim. As teorias não funcionam quando não são compreendidas de fato. Hannah Arendt (1997) já fez o alerta em 1957 em seu texto ‘A crise na educação’, quando critica o que ela chama de aceitação servil e acrítica de modernas teorias pedagógicas, que ao não serem entendidas, não apresentam resultados positivos na prática, e por isso são em seguida trocadas por outras da mesma forma inconsistentes. A aliança entre teoria e prática na formação docente busca romper com tais incoerências, quando confronta as propostas e alternativas para o ensino e a aprendizagem com experiências reais. Sem a compreensão teórica, a prática será uma repetição de ações vivenciadas. Estagiários e estagiárias, que reclamam na graduação de experiências negativas com aulas de história em sua educação básica em que se privilegiava o decorar de informações sobre determinados eventos e não a compreensão contextualizada e problematizadora, muito provavelmente ministrarão aulas que seguem esse padrão, pois não compreenderam o sentido, o fio

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condutor de uma nova dinâmica de ensino que traz a teoria. Por outro lado, o saber teórico fechado em si mesmo desvinculado da prática não permite que o/a estagiário/a tenha a experiência real, que ensina a aplicabilidade teórica. A teoria na prática é a mesma coisa quando existe a compreensão da primeira e o empenho na segunda para que a aprendizagem ocorra. É preciso estar ciente de que na teoria o uso de diversas linguagens de ensino, como salienta Fonseca (2003) e Bittencourt (2004), como a música, o cinema, a fotografia, e o ensino de história por meio da investigação histórica, como ressaltam Barca (2004) e Schmidt (2009), são eficazes para a aprendizagem histórica de estudantes, pois estimulam a criatividade, o interesse, desenvolvem a capacidade analítica e narrativa; e estudantes precisam de atividades desafiadoras que propiciem o desenvolvimento do pensamento histórico. Porém, isso não significa que na prática, na primeira tentativa de implementação destas teorias, que a receptividade será totalizante: é preciso para além da compreensão clara de tais propostas o compromisso sério com a prática docente, com os alunos e alunas e o desenvolvimento de seu pensamento histórico. Insistir, dar continuidade às atividades, explicar com clareza, ser perseverante mesmo diante das adversidades da sala de aula. Caimi (2002, p. 49) propõe a lógica “ação-reflexão-ação como estratégia de formação”, salientando a necessidade de uma postura investigativa para o fazer docente colocando o estágio como momento privilegiado de articulação entre teoria e prática. Sugerese aqui a ampliação de tal lógica para o esquema ‘reflexão-açãoreflexão-ação’. Antes da prática de estágio na escola, acadêmicos/as devem planejar suas ações à luz da teoria: isso significa refletir antes de agir buscando metodologias de ensino que se apresentem como alternativas viáveis para a aprendizagem efetiva de estudantes. O estágio de regência é o momento de colocar em prática tais percepções. Voltar a refletir, após ele, é essencial para avaliação do desempenho do/a estagiário/a, de estudantes do ensino fundamental ou médio que participaram da experiência, e da eficácia ou não das metodologias aplicadas naquela realidade escolar. Tal reflexão deve conduzir a uma nova prática futura que reforce os pontos positivos e altere os pontos negativos de tal experiência. Em suma, o estágio não pode ser encarado apenas como etapa obrigatória dos cursos de licenciatura, deve ser etapa significativa.

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Professores/as que pretendem “transformar a sua prática – fragmentada, improvisada, não refletida, cotidiana – em práxis pedagógica” (CAIMI, 2002, p. 49) devem comprometer-se com um método de investigação. A escrita sobre a prática fundamentada na teoria é um caminho possível. O esforço de relacionar a experiência vivida com as propostas teóricas de ensino obriga a refletir sobre as possibilidades e dificuldades enfrentadas. O relatório de estágio, por exemplo, exigido nas primeiras experiências de regência e depois o Trabalho Final de Estágio Supervisionado do curso de História da UNESPAR, campus de União da Vitória tem esse objetivo. Ao descrever as ações realizadas, estagiários e estagiárias ativam a memória da experiência vivida e relatam o que funcionou ou não funcionou na prática. A análise de tais ações faz com que argumentem sobre tais questões, enfrentando a realidade. A exigência de que todo relato de experiência, seja fundamentado na teoria, faz com que não se separe uma coisa da outra, e que o momento final de tal relato, que consiste em reorientar a ação, seja menos frágil, superando tanto a teorização fechada em si mesma quanto a prática irrefletida.

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O relato de um acadêmico, em seu Trabalho Final de Estágio Supervisionado, demonstra esta preocupação com a relação entre teoria e prática: Refletimos que o desafio do estágio seria como construir um pensamento histórico naquela turma tida como indisciplinada. O planejamento da aula teve como prioridade uma aula que se tornasse atraente, em que os alunos participassem da construção do conhecimento, por isso busquei teóricos que aliassem a teoria com a prática. Rüsen (2006), parte da necessidade do aluno construir o seu pensamento histórico a partir de suas experiências, sendo que elas tinham que ter utilidade em sua vida prática. Percebemos que o professor regente já utiliza essa concepção e sempre constrói o conhecimento com os alunos a partir de algo que lhes é comum, dando exemplos do seu cotidiano, relacionando o conteúdo histórico com a vida prática da comunidade que cerca esses alunos. (KZIOZEK, 2014, p. 20)

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A sequência de seu relato de experiência demonstra que o mesmo compreendeu a importância da reflexão sobre o trabalho docente, que deve ser constante, do planejar as ações ao avaliar os resultados: Essa autoavaliação nos fez refletir o quanto crescemos com a prática, conseguir aplicar uma teoria é um dos objetivos dos acadêmicos desde o início da sua faculdade. Percebemos que no princípio esta teoria parecia estar longe da prática, algo surreal, mas com uma bagagem maior de leitura, e com o amadurecimento das ideias ela foi possível. (KZIOZEK, 2014, p. 29) Conscientes de que nem tudo o que é planejado durante a organização do estágio se configura de forma perfeita em sala de aula, pois se está sujeito aos imprevistos do cotidiano escolar e à subjetividade dos sujeitos da educação, mas de que tal planejamento é essencial, assim como é indispensável a preparação teórica e a pesquisa em torno do tema a ser abordado em sala de aula durante o estágio de regência no ensino fundamental e médio, estagiários e estagiárias do curso de História da UNESPAR, campus de União da Vitória, tem demonstrado em seus trabalhos finais de estágio supervisionado uma visão clara sobre a relevância do estágio como momento indispensável para a formação docente: O estágio supervisionado é a vivência dessa prática orientada por moldes teóricos desenvolvidos e analisados durante o curso. É o início do desenvolvimento de uma autonomia metodológica que deverá ser construída concomitantemente ao suceder dos anos enquanto profissional. Logicamente o período destinado a estágios é relativamente curto, mas permite que possamos compreender o funcionamento do sistema de ensino, atentando-se para as subjetividades do mesmo, gerado pela gestão escolar e pelo ambiente escolar. Cabe a nós utilizarmo-nos desse fluxo de aprendizado para corrigir, posteriormente, falhas apresentadas nesse processo bem como aprimorar técnicas que se mostraram eficientes no processo de ensino aprendizagem. (KOVALCZUK, 2013, p. 4) A acadêmica acima mencionada escolheu, como tema de seu estágio final do curso de História, o ensino da história local, trabalhando

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com estudantes do curso de magistério. Seu objetivo foi trabalhar o tema em si, a história das cidades de Porto União e União da Vitória e também as possibilidades metodológicas para o ensino de tal tema na educação infantil. Com uma boa base teórica, pautando-se principalmente nas ideias de Barca (2004) e sua proposta de ‘aula oficina’, que utiliza do método da história para o ensino e aprendizagem da história, a acadêmica desenvolveu suas atividades e posteriormente refletiu com seriedade sobre elas em seu trabalho final de estágio supervisionado salientando tanto as dificuldades enfrentadas como os sucessos obtidos: 'Minha criticidade me torna capaz de apontar as deficiências, mas o meu empenho e a minha responsabilidade exigem que em contraponto, eu seja capaz de apontar soluções, de fazer da minha conduta, da minha prática, áreas convergentes com meu discurso ideológico'. (KOVALCZUK, 2013, p. 43)

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Convém apontar que, para além dos resultados descritos e analisados pela acadêmica em seu trabalho final, a narrativa de uma estudante do curso de História que neste ano de 2015 está no segundo ano do curso, ou seja, ingressou no mesmo um ano após ter sido aluna nas aulas de estágio no curso de magistério da acadêmica citada acima, ressaltou que a experiência vivida fez com que pudesse perceber que existem outras possibilidades para o ensino da história que estão longe de uma prática ineficaz do estudo do passado pelo passado, da memorização de conteúdos históricos fechados em si mesmos, sem relação com a vida prática de estudantes. Tal relato revela que a experiência do estágio curricular supervisionado pode e deve se configurar em uma ação, que não apenas visa cumprir uma exigência acadêmica, mas que forma, amadurece e estimula a elaboração de novas perspectivas para o ensino de História, não apenas para o acadêmico/a estagiário/a, mas para estudantes que ficam sob sua responsabilidade durante este período e também para docentes da graduação e da educação básica que partilham esse momento de formação e dialogam de forma efetiva sobre a prática docente durante o planejamento do estágio e durante a avaliação do mesmo nas bancas de conclusão de curso. Fonseca e Silva (2007) no texto ‘Entre a formação básica e a pesquisa acadêmica’ discorrem não apenas sobre a pesquisa e formação docente, mas também nas relações entre a formação e a

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pesquisa. Para os autores, as lutas do movimento docente e as relações entre formação, profissionalização e pesquisa constituem a identidade do/a professor/a de história. O texto resgata uma trajetória histórica de lutas de docentes de história pelo entendimento da docência, enquanto profissão e pela redemocratização do país, mobilizando a sociedade durante o processo constituinte, em defesa da educação pública, da cidadania e democracia, combatendo desigualdades e injustiças sociais. Ressalta a necessidade de formação permanente e não apenas inicial, nos cursos de licenciatura: Torna-se necessário situar nossa concepção de formação docente (inicial e contínua) como algo permanente; um modo de ser e estar na profissão, no ofício, atitude permanente e constante de preparação, capacitação para dar respostas adequadas, comprometidas e atualizadas dos fatos, problemas e necessidades da complexa realidade socioeducacional, às ações da vida pessoal e profissional. (FONSECA; SILVA, 2007, p. 25) A formação docente é encarada como um processo educativo que deve se desenvolver ao longo da vida. Profissionais da educação necessitam dedicar um tempo para o conhecimento, reflexão, crítica e aperfeiçoamento profissional. Essa necessidade deve ser compreendida desde a formação inicial, na graduação. A dedicação à reflexão e aperfeiçoamento deve começar no curso de licenciatura, ser vivenciada nas práticas de estágio e nas aulas voltadas às questões de ensino e aprendizagem e se tornar parte constitutiva da ação docente. O estágio curricular supervisionado tem a vantagem de conseguir congregar os sujeitos da educação, promovendo um diálogo entre universidade e escola, diminuindo a distância entre o que se discute na academia e as práticas cotidianas escolares. Novas abordagens em relação aos temas, novas possibilidades do uso de fontes históricas em sala de aula, a utilização de novas tecnologias e metodologias de ensino são apresentadas por estagiários e analisadas por experientes docentes da educação básica. Em contrapartida, estes docentes auxiliam na formação dos estagiários, orientando-os no cotidiano escolar e debatendo com a universidade sobre as questões que hoje são realidade na escola, e que não podem ficar de fora da reflexão acadêmica para que a universidade não se

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feche em si mesma, pesquisando e publicando para as prateleiras, ao invés de ter uma produtividade realmente significativa para a vida prática. O estágio proporciona também o diálogo entre professores/as das disciplinas específicas do curso e professores/as das disciplinas pedagógicas que ao orientarem em conjunto os estagiários e as estagiárias, refletem sobre o ensino dos temas específicos e sobre as melhores possibilidades para se levar para as escolas, na produção de materiais didáticos e planejamentos de aulas a renovação historiográfica e as concepções teóricas sobre a História. E é claro, promove a interação entre acadêmicos/as e estudantes da educação básica. Enquanto os/as primeiros/as podem apresentar a estudantes temáticas e metodologias significativas que revelem o sentido do estudo da história, os/as segundos/as podem revelar para a universidade, tendo como ponte os/as acadêmicos/as suas percepções sobre a disciplina.

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Estudantes e docentes da educação básica, acadêmicos/as e docentes da graduação, das disciplinas específicas e pedagógicas, se reúnem nas práticas do estágio curricular supervisionado. Mais do que obrigação curricular, o estágio é possibilidade de relação real entre teoria e prática. É formação docente e momento privilegiado de envolvimento de todos os sujeitos da educação para criar possibilidades reais de melhorias no ensino de História. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A crise na Educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997. BARCA, Isabel. Aula Oficina: do projecto à avaliação. In: Para uma educação histórica de qualidade: actas de Quartas Jornadas de Educação histórica. Braga: Centro de Investigação em Educação (CIED)/Instituto de Educação e Psicologia. Universidade do Minho, 2004. BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. CAIMI. Flávia Eloisa. O estágio de docência como práxis formadora. In: PADRÓS, Enrique Serra (org.). Ensino de História: formação de professores e cotidiano escolar. Porto Alegre: EST, 2002. FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História. Campinas, SP: Papirus, 2003.

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FONSECA, Selva Guimarães; SILVA, Marcos. Ensinar História no século XXI: em busca do tempo entendido. Campinas, SP: Papirus, 2007. KOVALCZUK, Simoniely Lilian. Eu sou a história: reflexões sobre a importância do ensino de história local para a geração de sentido histórico. Trabalho Final de Estágio Supervisionado. União da Vitória: UNESPAR, 2013. KZIOZEK, Claudinei José. Formação do pensamento histórico: teoria e práticas aplicadas a partir do tema ‘Sociedade Mineira na época do ouro no Brasil’. Revista Sobre Ontens. Especial LAPHIS – TFES, 2014. RÜSEN, Jörn. Didática da história Didática da história Didática da história: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis Educativa, Ponta Grossa-PR, v.1, n.1, 15 jul./dez. 2006. SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel (orgs.). Aprender História: perspectivas da educação histórica. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009.

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AS DIRETRIZES CURRICULARES PARANAENSES DA EDUCAÇÃO BÁSICA EM HISTÓRIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO NÚCLEO REGIONAL DE EDUCAÇÃO DE UNIÃO DA VITÓRIA: UM BALANÇO EDUCACIONAL NECESSÁRIO (2004-2014) Everton Carlos Crema UNESPAR O presente texto é parte do projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós Graduação em Educação na área, escola, ensino, cultura da UFPR e esperamos que nossa proposta possa contribuir com o ensino de historia. A construção de um currículo escolar está profundamente marcado por um ordenamento político, sua criação se insere diretamente através das demandas e espaços sociais em disputa, e em nada é um projeto neutro. As Diretrizes Curriculares em História do Estado do Paraná, não diferentemente, reproduziram essa perspectiva ao inserirem um novo quadro teórico metodológico na disciplina de História, rompendo com modelos educacionais tradicionais que refletiam o momento político brasileiro. O distanciamento de um modelo neoliberal de educação deu lugar a promessa de uma construção coletiva, das práticas e saberes educacionais, pautadas nas teorias críticas do conhecimento e contextualização dos sujeitos históricos. Nessa perspectiva, o conhecimento desenvolvido criticamente permitiria a compreensão da dinâmica dos processos sociais, e viabilizaria uma tomada de consciência e ação política. Portanto, o currículo representa muito mais do que uma estrutura de conhecimento formal ou uma perspectiva de conhecimento puramente científico, o currículo opera diretamente na conformação social, e naturalmente se torna lugar privilegiado da pesquisa e da educação histórica. Dessa forma, o objeto de investigação se articula a proposta da linha de pesquisa cultura, escola e ensino e vincula-se a um necessário balanço da implementação das Diretrizes Curriculares em história, a partir da realidade educacional do Núcleo Regional de Educação de União da Vitória. Buscamos investigar como o documento orientador transformou o ‘pensar e o fazer’ do professor de história, na sala de aula e as condições de ensino decorrente desse processo. Precisamos compreender historicamente o contexto de mudança no ensino de história, o lugar do professor, do aluno e da escola, e as

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condições objetivas de participação/resistência possíveis para uma ‘educação histórica’. Em 2014 se completam 10 anos do inicio dos primeiros trabalhos do que se constituiria, posteriormente, nas Diretrizes Curriculares para a educação básica do Estado do Paraná, um documento orientador e unificador da política educacional governamental, que buscava romper com o modelo educacional do Governo Federal representado no final dos anos 90 pelos PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais. Segundo Yokohama (2006), a proposta do Currículo Básico de educação do Estado do Paraná elaborado em 1990, apresentava no inicio do século XXI, problemas de ordem significativa, reflexo de uma relativa anomia e indefinição pedagógica, que segundo a autora, desconfigurou e deformou a proposta do Currículo Básico.

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O contexto político paranaense, com o fim do governo Lerner (19952003) e a chegada ao poder de Roberto Requião (2002-2009), pode ser relacionado diretamente a mudança na gestão e no planejamento educacional do Estado. Alinhado com o governo federal de orientação neoliberal, Lerner reproduziu no Paraná um modelo educacional marcado pela diminuição dos investimentos educacionais, esvaziamento crítico, desumanização, desmobilização social e privatização dos espaços públicos. O resultado prático desse processo foi à fragilização das políticas educacionais paranaenses, que almejavam uma reforma e valorização educacional nos anos pós-ditadura. A sucessão política recolocou a questão educacional em debate. Assim, desde o inicio dessa Gestão 2003-2006, estabeleceu-se como linha de ação prioritária da SEED a retomada da discussão coletiva do currículo. A concepção adotada é a de que o currículo é uma produção social, construída por pessoas que vivem em determinados contextos históricos e sociais. Portanto, não almejamos construir uma proposta curricular prescritiva, mas uma intervenção a partir do que está sendo vivido, pensado e realizado nas e pelas escolas. (PARANA, 2003, p. 3) De outro lado, o projeto das Diretrizes Curriculares Paranaenses, buscava um necessário distanciamento das políticas nacionais de educação, especificamente dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs e sua proposta de unificação das matrizes curriculares

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nacionais. A construção dos PCNs reproduziu de maneira geral a política centralizadora do MEC – Ministério da Educação e Cultura, e se construiu como modelo distante da realidade brasileira, sendo concebido a partir de intelectuais espanhóis e educadores paulistas, da educação privada, distante da realidade educacional brasileira, e muito mais ainda, da paranaense. Além disso, não existia um debate consistente sobre educação nos Parâmetros Curriculares Nacionais, que pudesse sustentar uma perspectiva ou metodologia educacional, sobrepondo-se a isso ainda podemos perceber seu caráter prescritivo, e a ausência de diálogos com o professorado, problemas de um modelo nacional que desconsiderava a cultura e história regional. Na elaboração das Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná foram construídos grupos de trabalho das disciplinas especificas, congregando professores da área de conhecimento especifico, representantes da SEED – Secretaria de Estado da Educação e NREs – Núcleos Regionais de Educação, a ideia defendia que “o coletivo da escola possa, com subsídios e autonomia construída, produzir sua proposta educacional.” (PARANÁ, 2006, p. 4) Desse esforço, originaram-se especificamente as Diretrizes Curriculares da Educação Básica em História, apresentadas definitivamente em 2008, apesar de diversos problemas, limites e criticas, à sua construção e implementação,entendemos que as Diretrizes Curriculares da Educação Básica em História, alcançaram um significativo avanço educacional e, sobretudo definiram de forma inequívoca o tipo de educação e o perfil do aluno que frequenta e depende da escola publica, como meio de transformação da própria realidade. “Um sujeito é fruto de seu tempo histórico, das relações sociais em que está inserido, mas é, também, um ser singular, que atua no mundo a partir do modo como o compreende e como dele lhe é possível participar” (PARANÁ, 2008, p. 8). Ou seja, as Diretrizes Curriculares em História são um documento fundante e orientador das práticas e saberes de professores e alunos, pois a conformação do modelo educacional interfere e orienta diretamente o cotidiano escolar, ao mesmo tempo em que dele é reflexo. Ao mesmo tempo, a escola deve ser percebida como espaço de continuado confronto e diálogo, entre os conhecimentos sistematizados e os conhecimentos do cotidiano popular: “As propostas curriculares e conteúdos escolares estão intimamente

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organizados a partir desse processo, ao serem fundamentados por conceitos que dialogam disciplinarmente com as experiências e saberes sociais de uma comunidade historicamente situada” (PARANÁ, 2008, p. 30). O professor, ao pensar a prática de ensino, deve ter em mente os sujeitos e os fundamentos teóricos da educação, as dimensões e formas de conhecimento e os fundamentos teóricos metodológicos da disciplina que leciona. Deve ainda dominar os procedimentos do pensamento histórico, bem como conhecer em nível suficiente os teóricos e correntes historiográficas que sustentam a formação do conhecimento histórico. Para o aluno, a construção do conhecimento histórico mediado pela realidade social e cultural, passa pelo formato educativo e pelas ciências de referência, não diferindo nesse processo os princípios epistemológicos e cognitivos.

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A validade de qualquer currículo ou proposta educacional pode ser auferida a partir da perspectiva de eficiência e eficácia, manifesta nos níveis de compreensão e domínio da própria proposta curricular pelos docentes, bem como da satisfação advinda da docência. Os problemas inerentes ao modelo curricular e suas relação com os referencias metodológicos também podem ser percebidos de maneira inversa, numa perspectiva de resultado, observados os 118 professores de história do Núcleo Regional de Educação de União da Vitória, dispostos em mais de 08 municípios diferentes. Problemas de Pesquisa Segundo Schmidt, (2009) o aprendizado histórico no Brasil está diretamente ligado às concepções e fundamentações da disciplina de história e da produção histórica, sendo o ensino de história, lugar de referência para a construção de manuais e currículos de História. Sendo assim, podemos depreender a importância de uma análise/balanço acerca das Diretrizes Curriculares em História no Paraná, pois se percebe a articulação direta entre o ensino e suas carências, e sua relação com a construção do documento orientador. Entretanto a educação, e parte dela, o ensino, decorrem e emergem diretamente no corpo social, exigindo que a ‘educação histórica’ responda à suas demandas e problemas. Existe uma forte crítica ao distanciamento da produção historiográfica da educação básica na disciplina de Historia, fruto de uma hierarquização de saberes e de uma incompreensão da relação

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da produção histórica com o ensino. Devemos olhar para o processo de construção das Diretrizes Curriculares como ruptura e superação de modelos anteriores, em seus diversos níveis. Para Schmidt, (2009) a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) partiu do problema do fracasso e repetência escolar, para propor um novo projeto de ensino em nível nacional. Desconsideraram totalmente o contexto histórico-social e as potencialidades da educação, como um poderoso processo de mudança social e autonomia política. Apresentaram um modelo educacional sem um debate sobre educação, seu significado e objeto social, e a preocupação com a repetência sistematizou o debate de forma pontual e interventiva, focada numa ‘profilaxia social’. Se pensarmos em termos comparativos, os diferentes projetos educacionais, contextualizados, sejam os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, percebemos concepções de modelos teórico-metodológicos distintos. Precisamos ter em mente que suas concepções de ensino se materializaram em programas de ensino e processos de aprendizagem postos ‘no chão da sala de aula’ e a comparação entre os modelos citados somente adquire significado quando podemos perceber os resultados reais de suas implementações. Também precisamos perceber que a definição de ‘sucesso escolar’ é muito difusa e em geral reflete seu modelo educacional. Em termos de documento, como proposta de transformação as Diretrizes Curriculares da Rede Pública de Educação Básica do Estado do Paraná, inova sobre diversos aspectos quando é pensada e construída socialmente: ...para a maioria da população brasileira, a escola constitui a alternativa concreta de acesso ao saber, entendido como conhecimento socializado e sistematizado na instituição escolar. Sob essa perspectiva de escola publica, construímos essas Diretrizes Curriculares, por meio de uma metodologia que primou pela discussão coletiva ocorrida, efetivamente, durante os ultimo cinco anos e envolveu todos os professores da rede. Com essas Diretrizes e uma formação continuada focada nos aspectos fundamentais do trabalho educativo pretendemos recuperar a função da escola pública paranaense que é ensinar, dar acesso ao conhecimento, para que todos, especialmente os alunos de classes menos favorecidas, possam ter um projeto de futuro

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que vislumbre trabalho, cidadania e uma vida digna. (PARANÁ, 2008, p. 8) Em diversas perspectivas, as Diretrizes Curriculares em História avançam se comparadas aos Parâmetros Curriculares Nacionais; pontualmente podemos, perceber, segundo Schmidt (2009, p. 29), que existe uma diferenciação entre conhecimento escolar e conhecimento científico, bem como o tempo é tratado pelos PCNs dentro de uma cronologia tradicional, que suscita uma forma de linearidade. Outra crítica evidente é a opção pela descrição objetiva das categorias do conhecimento, que não passam pela construção de formas de compreensão históricas, ou seja, o aprender ‘história’ deve passar pelo ensinar história, historicamente, desde que compreendida a relação com a ciência histórica:

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Como tais correlações são abordadas do ponto de vista da racionalidade do pensamento histórico, a mediação operada pela teoria entre ciência e profissão não pode reduzir-se a uma mera instrumentalização da ciência em benefício da profissão, nem se volta para a ciência “pura” em detrimento da aplicação dos conhecimentos por ela produzidos no contexto social do pensamento histórico. (RÜSEN, 2001, p. 42) O papel e o lugar da teoria histórica não podem ser desconsiderados em nosso processo de análise, pois aliada a metodologia, acabam por sustentar o processo de construção historiográfica. Em termos educacionais, a teoria permite a construção de uma problematização e contextualização fundamental, para que o aluno perceba como a história é construída, adquirindo um principio reflexivo sobre a mesma. Problematizando a questão, durante os momentos iniciais da construção coletiva das Diretrizes Curriculares em História, os professores se manifestaram em suas apreensões e interesses, e os documentos síntese elaborados pela Diretoria de Ensino de História – SEED, apontaram que 26,1% (PARANÁ, 2006) dos professores participantes se preocupavam com a linha teórica-política que nortearia o documento. De acordo com o parecer CNE/CEB 04/98 das Diretrizes Curriculares Nacionais, não se adotou apenas uma visão teórico-metodológica. Portanto, a adoção das linhas teóricas e perspectivas diversas advindas da ‘Nova História’, ‘Nova História

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Cultural’ e ‘Nova Esquerda Inglesa’, mediaram os interesses dos educadores, e da politica governamental contida no documento, adequando ao projeto curricular à importância e significância desses referenciais dentro do campo da história. De forma geral a análise e balanço dos resultados das Diretrizes Curriculares de História para a educação básica paranaense se apresenta de forma urgente para a investigação do campo educacional. REFERÊNCIAS PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Educação Básica. História. Secretaria de Estado da Educação – SEED. Paraná, 2008. RÜSEN, JÖRN. Razão Histórica: Teoria da história os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Rede Pública de Educação Básica do Estado do Paraná: Documento preliminar. Secretaria de Estado da Educação SEED. Curitiba: MEMVAVMEM, 2003. PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Rede Pública de Educação Básica do Estado do Paraná. Secretaria de Estado da Educação SEED. Curitiba: MEMVAVMEM, 2006. SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. Aprender história: Perspectivas da educação histórica. Ijuí: Editora Unijuí, 2009.

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A TECNOLOGIA EDUCACIONAL NO ENSINO DE HISTÓRIA: UMA PROPOSTA A PARTIR DA METODOLOGIA WEBQUEST* Fábio André Hahn UNESPAR A proposta, neste texto, é tratar brevemente de alternativas e de possibilidades da utilização das tecnologias educacionais no ensino de História, com foco na metodologia WebQuest. O que se tem verificado, de modo geral, é o baixo número de pesquisas e de materiais didáticos voltados ao tema, considerando o contexto emergente da utilização das tecnologias, em especial da utilização pelos jovens estudantes. O desafio é como aliar as tecnologias já marcadamente presentes e consolidadas no dia a dia do convívio social com o currículo de base nas escolas, de modo a verificar a possibilidade da melhoria no processo de ensino-aprendizagem da História. A proposta aqui apresentada foi desenvolvida e aplicada em turmas de 3ºs anos do Ensino Médio em quatro escolas estaduais de quatro diferentes municípios da Mesorregião Centro-Ocidental do Paraná:

Mapa

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A ideia inicial era verificar como estudantes de diferentes realidades sociais e educacionais se comportariam na utilização da metodologia WebQuest no ensino de História. Qual a viabilidade na utilização da metodologia? É possível verificar, em curto período de tempo,melhoria na aprendizagem dos estudantes? Qual é a reação dos estudantes na utilização da internet no ensino de História? Tentando responder a essas questões iniciais e que foram pontuadas a partir da divulgação de dados nacionais que tratam sobre o acesso às tecnologias mais próximas dos jovens estudantes das escolas, o primeiro elemento motivador da investigação foi o acesso aos dados publicados pelo CETIC (http://cetic.br/pesquisa/educacao/) no relatório sobre as Tecnologias de Informação e Comunicação – TIC em Educação que, desde 2010, apresenta os resultados de sua investigação em inúmeros eixos. Os resultados da pesquisa de 2012 e 2013 apontam para o fato de que 99% das escolas brasileiras já possuem computadores. Já quanto ao acesso à internet nessas escolas, os dados apresentados foram os seguintes:

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Figura 1 – Gráfico: Escolas com acesso à internet Fonte: CGI.br, 2012 e 2013 – Relatório TIC Educação 2012 e 2013 Os dados revelam um aumento de 5% do acesso à internet, portanto um crescimento representativo dentro de um percentual bastante elevado e que alerta para a necessidade de explorar essa ferramenta disponível em grande escala nas escolas brasileiras. Já os dados que apontam sobre o fato de os estudantes disporem de computador em casa, os dados apresentados pela CETIC foram:

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Figura 2 – Gráfico: Estudantes que possuem computador em casa Fonte: CGI.br – Relatório TIC Educação 2010, 2011, 2012 e 2013 O aumento do número de estudantes que possuem computador em casa é representativo, sendo possível estimar que, na continuidade da escalada de crescimento, a maior parte deles obtenha acesso ao computador em sua residência até 2017. Ao mesmo tempo que o crescimento é representativo, também é representativo o número de estudantes que ainda não possuem o computador em casa, pois atinge ainda um total de ¼ deles.Assim, portanto, trata-se de uma parcela significativa, o que reporta para a necessidade de planejamento no uso e na abordagem das tecnologias educacionais. Nesse sentido, a pesquisa revelou que, em 2013, 97% dos estudantes já utilizaram o computador e 95% já utilizaram a internet, o que revela que esta não é uma prática nova para os estudantes. Quanto ao fato de os estudantes terem acesso à internet em casa, os relatórios TIC apontaram que:

Figura 2 – Gráfico: Estudantes que possuem acesso à internet em casa Fonte: CGI.br – Relatório TIC Educação 2010, 2011, 2012 e 2013 A partir desses dados, fica evidente que há um crescimento significativo, apesar de uma parcela representativa de estudantes não dispor ainda do acesso à internet em casa. Na escola, as iniciativas desenvolvidas são inexpressivas, para não reduzir essa realidade à nulidade total, caminhando na contramão do

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crescimento do acesso tanto ao computador, quanto à internet. Enquanto os estudantes que ingressam anualmente nas escolas são cada vez mais tecnológicos, os professores ainda mantêm métodos de ensino e aprendizagem que pouco se modificaram nas últimas décadas. Trata-se de um evidente descompasso entre gerações e que pouco se modificou ao longo dos últimos anos do século XX e dos anos iniciais do século XXI. Em decorrência disso, propomos uma metodologia que aproxime os estudantes com as ferramentas tecnológicas, neste caso em especial, do computador e da internet.

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A metodologia Em virtude dos dados acima apresentados, optamos por apresentar a aplicação de uma metodologia que aproximasse a utilização da tecnologia educacional do ensino de História. Evidente que ainda temos problemas com laboratórios de informática, com poucos materiais didáticos disponíveis e com falta de qualificação dos professores para lidar com as ferramentas tecnológicas, mas os professores precisam ser instruídos no uso do computador, superando o medo e a desconfiança em relação ao uso da tecnologia. O professor, como destacou Valente (2002), deve conhecer o que cada uma dessas facilidades tecnológicas tem a oferecer e como pode ser explorada em diferentes situações educacionais. É preciso que o professor tenha condições de aliar conhecimentos técnicos e pedagógicos, de modo que possa orientar e desafiar os estudantes para que a atividade contribua para a geração de novos conhecimentos. Ou seja, as representações mentais dos estudantes precisam ser confrontadas entre si para que ocorra a aprendizagem, impondo um freio de emergência que desacelere o processo aparentemente inócuo de distração, para que possam pensar e discutir sobre o que aprenderam (ZUIN, ZUIN, 2011). A metodologia WebQuest é uma alternativa que propomos aqui.O conceito foi criado em 1995 por Bernie Dodge e Tom March, tendo por proposta o desenvolvimento de uma atividade investigativa com o uso da internet. A proposta WebQuest é elaborada e orientada pelo professor com questões e tarefas a serem investigadas por grupos de estudantes. Trata-se, portanto, de uma atividade de aprendizagem colaborativa, podendo fazer uso na pesquisa de fontes principalmente em páginas da web, mas também pode recorrer a

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outros recursos, como livros, vídeos e imagens, sem esquecer que a WebQuest deve sempre ser orientada e supervisionada pelo professor, evitando o que Dodge chamou de “surfagem” pela rede. Com base em Dodge (1999), Bottentuit Júnior e Coutinho (2012) informam que a WebQuest é constituída de algumas etapas, como: (i) introdução ao tema, com objetivo de preparar a proposta e fornecer informações gerais; (ii) a tarefa com linguagem simples, para estimular o aluno a desenvolvê-la; (iii) o processo no qual o aluno deverá se orientar para a realização da tarefa; (iv) os recursos caracterizados como pistas disponíveis na web para a produção do conhecimento; (v) a avaliação, que fornece ao aluno os indicadores qualitativos e quantitativos referentes à atividade proposta; e (vi) a conclusão, que propõe um desfecho da proposta sobre o que aprenderam, mas que também aponta para a continuidade da investigação. A WebQuest é essencialmente constituída de uma interface na internet que apresenta caminhos de pesquisa que podem ser tanto on-line, quanto materiais disponíveis na biblioteca, como de mapas e referências bibliográficas. É, entretanto, preciso tomar alguns cuidados quanto aos limites da metodologia. Conforme Bottentuit Júnior e Coutinho (2012, p. 75), “[...] para ser uma verdadeira WebQuest, a atividade deveria incluir tarefas que solicitassem a transformação da informação pesquisada e recolhida num novo produto ou numa nova informação que refletisse a capacidade dos estudantes criarem novos saberes”. É, portanto, preciso ter claro que a metodologia tem os seus limites e que, frequentemente, é confundida com a WebExercises, que está voltada ao cumprimento de uma atividade de exercitação e não de transformação em uma nova informação, em um novo saber. O caso desenvolvido Para a aplicação da metodologia WebQuest desenvolvemos um site que apresenta uma interface que pudesse atrair os estudantes para o desenvolvimento da atividade. O site, intitulado Janela para a história, ainda está em fase de avaliação, mas já está disponível e poderá ser consultado no seguinte endereço: http://www.unespar.edu.br/janelaparaahistoria:

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http://www.unespar.edu.br/janelaparaahistoria/

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Inicialmente foram desenvolvidos três casos com conteúdos que estivessem voltados à História do Paraná, em especial conteúdos que reportassem a elementos comuns aos estudantes dos quatro municípios em que a metodologia seria aplicada. As propostas foram: (i) O cotidiano da colonização da região de Campo Mourão; (ii) Imigrantes ucranianos no Paraná; (iii) Descobrindo a história da Estrada Boiadeira. Optamos, neste momento, por apresentar alguns elementos do terceiro caso desenvolvido e aplicado: “Descobrindo a história da Estrada Boiadeira”.

http://www.unespar.edu.br/janelaparaahistoria/casos/3.html Antes de iniciarmos a aplicação da metodologia nas escolas, realizamos uma exposição do funcionamento da ferramenta no

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laboratório de informática. Na sequência os estudantes foram divididos em duplas, de modo que fosse estimulado o trabalho colaborativo de investigação entre eles. Na proposta “Descobrindo a história da Estrada Boiadeira”, a parte inicial do caso trata de uma rápida contextualização da abertura de estradas no Paraná no começo do século XX e de que a estrada conhecida como “boiadeira” teria tido iniciado ainda no final do século XIX, na época com propósito de fazer ligação dos estados do Paraná e do Mato Grosso [Sul], estando ainda hoje inacabada. Com essa contextualização inicial, o objetivo é fazer os estudantes se questionarem, ficarem intrigados sobre a importância da estrada e do porquê de não ter sido concluída. Como tarefa,propusemos que os alunos se imaginassem um personagem representante do governo estadual, convidado para realizar um estudo sobre a história da abertura da estrada e que deveria ser relatada em uma carta endereçada ao governador do Estado. Definida a atividade a ser realizada, apresentamos no tópico “passo a passo” uma etapa constituída de 9 pistas a serem investigadas que tratam do caso da abertura da Estrada Boiadeira. O objetivo, nesse momento, foi fornecer três tipologias de fontes diferentes sobre o tema:(i) trechos de documentos; (ii) mapas; (iii) fotografias. Entre os historiadores parece haver consenso quanto à importância do uso das fontes históricas em sala de aula, favorecendo o entendimento e a compreensão do tema pelos estudantes, dentre a multiplicidade de possibilidades de abordagens possíveis. Dessa forma, procurando romper o verbalismo, a reprodução e a memorização comuns nas aulas de História, procuramos fornecer condições para que os alunos pudessem aprender a formular hipóteses a partir de diferentes fontes históricas. As pistas iniciais tratam de trechos de documentos, como é o caso do texto escrito por Luiz Cleve em 1903 e tratando sobre as primeiras iniciativas realizadas. Na sequência vai uma pista fazendo referência à estrada em 1908 e como ela já aparecia no mapa do estado do Paraná. A opção foi utilizar vários mapas,tanto de época, quanto mapas atuais, que foram adaptados estabelecendo a rota da estrada e a localização do município em que os estudantes vivem, para demonstrar o quanto a estrada está geograficamente próxima a eles. Além disso, as pistas estão repletas de imagens, de modo a colaborar

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na compreensão do tema e a aguçar a imaginação referente ao período. Entre os documentos de época estão trechos dos textos publicados por Edmundo Mercer em 1913 no jornal Diário dos Campos, de Ponta Grossa. Mercer escreve sobre o período de 1910-1912, momento em que a população vivia a comemoração da abertura da estrada. Por fim, uma pista que aproxima os estudantes da realidade atual de trechos da Estrada Boaideira por meio de fotografias. A tarefa proposta aos estudantes está voltada à produção da carta endereçada ao governador do Estado e da exposição oral aos colegas da pesquisa realizada. O propósito, com essa atividade, foi tratar de uma temática próxima à realidade dos estudantes, apoiada por uma mescla de fontes e por uma investigação aliada aos recursos tecnológicos disponíveis.

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Considerações Como considerações preliminares podemos apontar alguns resultados iniciais já verificados, apesar de a pesquisa ainda estar em andamento.Nas observações realizada sin loco constatou-se que os estudantes se mostraram interessados em desenvolver as tarefas propostas e não demonstraram dificuldades no manuseio da ferramenta, o que foi um ponto positivo. Depois, no entanto, na escrita da carta apresentaram algumas dificuldades, especialmente de redação e de organização das ideias, mas conseguiram atingir o resultado mínimo proposto, que era o desenvolvimento de um trabalho colaborativo em que demonstrassem ter compreendido o tema e utilizado as diferentes fontes apresentadas nas pistas da investigação, produzindo um texto coerente e,de modo geral,criativo. Com isso, atingimos um duplo resultado: (i) por um lado, avanço na verificação e na utilização da metodologia, assim como dos recursos tecnológicos a serem disponibilizados aos professores da rede pública de ensino; (ii) por outro, a boa recepção por parte dos estudantes nas escolas e seu aproveitamento na atividade desenvolvida. As novas metodologias a partir do uso da tecnologia para o ensino de História podem ajudar, desde que contextualizadas com a realidade escolar, sendo necessária a conscientização de que a tecnologia não

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traz apenas benefícios, pois, quando não mediada adequadamente, surte efeito oposto, gerando consumo de informações instantâneas, sem gerar aprendizagem. Essa dificuldade de mediação adequada é, sem dúvida, ainda um grande desafio docente, pois, sem essa competência educacional, de nada adianta a tecnologia instalada nas escolas. Quanto à instalação dessa tecnologia, também ali encontramos uma séria dificuldade na utilização dos computadores e da internet nas escolas. Não fossem os inconvenientes corriqueiros que prejudicam o trabalho com a metodologia (como a falta de manutenção dos computadores, lentidão e instabilidade da conexão com a internet), também a escola não dispõe de nenhum profissional habilitado para dar suporte nesse espaço de formação, o que, aliás, não é nenhuma novidade para os que já conhecem um pouco da realidade das escolas públicas. Essa situação, entretanto, revela um elemento agravante ao pensarmos no atual contexto tecnológico em que vivemos:a distância do ensino nas escolas em comparação com a realidade contextual dos estudantes. É difícil falar em uso das tecnologias na Educação Básica quando ainda vivenciamos dificuldades primárias.Pouco avançamos na forma de ensinar História ao longo das últimas décadas. Justificável seria mantermos o formato de ensino se os resultados de aprendizagem fossem satisfatórios, mas infelizmente também estamos distantes dessa meta. Isso não quer dizer que a utilização das tecnologias educacionais no ensino de História seja a solução na formação dos estudantes. Certamente não é, mas pode ser um caminho de mudanças. É difícil, no entanto, avaliar o que contribui e o que não contribui quanto ao uso dos recursos tecnológicos educacionais. Isso acontece pelo simples fato de encontrarmos poucos estudos testando possibilidades mais robustas nessa área para podemos emitir um parecer melhor fundamentado. O laboratório de informática na escola precisa fazer parte efetiva das aulas de História, desde que planejadas e desenvolvidas com metodologia e ferramentas apropriadas de modo que seja possível avaliar os impactos. É inegável que a disciplina de História está presente na internet, e com muita força, basta falar de redes sociais como Café História, que já possui mais de 54.000 participantes e que, atualmente, é a maior rede social de História da internet e que, ao longo de seis anos, já ultrapassou a marca de 20 milhões de acessos (FAGUNDES; HAHN, 2014).Temos conteúdo de História

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qualificado na rede, basta fazer a triagem do que é útil. Ao professor não basta ter conhecimento técnico básico sobre computadores, mas precisa estar preparado para criar condições para a construção do conhecimento, perceber as perspectivas educacionais e as diferentes aplicações possíveis. Por fim, a escola,de modo geral,precisa se adequar às mudanças contextuais, mas, para que isso ocorra, é preciso de investimento mais sólido em pesquisas e na formação do professor. Essa realidade, infelizmente, parece cada vez mais distante. * A proposta desta investigação conta com apoio do CNPq. As primeiras experiências com a metodologia WebQuest foram desenvolvidas e aplicadas nos projetos de extensão do Programa Universidade Sem Fronteiras (USF) em 2013/2014 e do Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) em 2014.

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Sugestões de leituras: ALMEIDA, Anita; GRINBERG, Keila. Detetives do passado no mundo do futuro: divulgação científica, ensino de História e internet. Revista História Hoje, v. 1, nº 1, p. 315-326, 2012. BOTTENTUIT JUNIOR, João Batista; COUTINHO, Clara Pereira. Recomendações de qualidade para o processo de avaliação de WebQuests. Ciências & Cognição, v. 17, nº 1, p. 73-82, 2012. BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. CAIMI, Flávia Eloísa. História escolar e memória coletiva: Como se ensina? Como se aprende? In: MAGALHÃES, Marcelo; ROCHA, Helenice; GONTIJO, Rebeca (Org.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 65-79. DODGE, Bernie. WebQuests: a technique for internet – based learning. The Distance Educator, v. 1, nº 2, 1995. FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra; HAHN, Fábio André. História e realidades on-line: colocações sobre produção, difusão e ensino Bruno Leal. Revista NUPEM (on-line), v. 6, p. 11-25, 2014. MARTINS, Hugo Manuel Oliveira. A webquest como recurso para aprender história: um estudo sobre significância histórica com alunos do 5º ano. 262 f. Dissertação (Mestrado em Educação – Supervisão Pedagógica em Ensino de História) – Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, Braga/Portugal, 2007.

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VALENTE, José Armando. A espiral da aprendizagem e as tecnologias da informação e comunicação: repensando conceitos. In: JOLY, M. C. Tecnologia no ensino: implicações para a aprendizagem. São Paulo: Casa do Psicólogo Editora, 2002. p. 15-37. ZUIN, Vânia Gomes; ZUIN, Antônio Álvaro Soares. Professores, tecnologias digitais e a distração concentrada. Educar em Revista, Curitiba, n. 42, p. 213-228, out./dez. 2011.

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DESENHANDO O PERFIL DE UM BOM PROFESSOR/UMA BOA PROFESSORA DE ENSINO DE HISTÓRIA: FAÇA A CRÍTICA DA LISTA DE CRITÉRIOS QUE SEGUE, E ACRESCENTE SUAS OPINIÕES Fernando Seffner UFRGS Mas afinal, o que é ser um bom professor ou professora de ensino de história? É possível fazer uma lista de itens, um perfil, um modelo, do que é ser bom professor ou professora de História? E onde fica a originalidade de cada um? E onde fica o aspecto pessoal que cada um imprime no seu fazer docente? E existem diferenças entre homens e mulheres no desempenho da profissão? Neste texto, ora falamos em professores, ora em professoras, para lembrar que existem homens e mulheres que dão aulas de História. Mesmo ciente dos problemas desta tarefa, vou arriscar alguns tópicos que a meu ver são importantes quando penso em um bom profissional de ensino de história. Dou os primeiros lances do jogo, fruto da experiência de muitos anos (aliás, décadas), supervisionando estágios, assistindo aulas de estagiários de ensino de história junto ao curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De tanto assistir aulas de ensino de história, terminei montando uma lista de quesitos que me parecem importantes quando penso no chamado “bom professor de história”. Está aberta a discussão sobre o tema, sinta-se à vontade para acrescentar elementos na lista, propor a retirada de elementos da lista, criticar elementos da lista. Enfim, o simpósio é para debate, e estamos entre colegas, é aqui o lugar para fazer a crítica, a autocrítica, avançar nossos conhecimentos e percepções sobre o tema. Melhor que nos critiquemos entre nós, do que deixar os outros nos criticarem. Os ítens não estão em ordem de importância, mas você pode sugerir uma hierarquia de importância em seu comentário. 1) A pessoa tem que gostar de história, gostar de ler histórias, ter curiosidade pelo que aconteceu no passado, gostar dos detalhes de certas histórias, ser até um pouco fofoqueiro com a vida privada na História. É bom também ter preferências em certos temas. Os alunos gostam quando se dão conta que o professor é apaixonado pelo Egito Antigo, e consegue falar sobre o tema por muito tempo. Ou quando conhece muito sobre o amor romântico na Idade Média, e se põe a

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falar sobre isso. Não adianta, uma boa professora de história é também uma contadora de histórias. E para isso tem que gostar. Qual seu jeito de gostar da História? Qual sua opinião sobre este ítem? Você se enxerga sendo professor de outra disciplina? 2) Tem que se ligar nos acontecimentos do presente. É no presente que vivem os alunos, e nós mesmos vivemos no presente. Tem que saber discutir questões atuais, mas não deve transformar a aula de história em reportagens eternas do contemporâneo. Mas é muito bom quando, a partir de alguma coisa que está incomodando no presente (por exemplo, as denúncias de corrupção dos políticos), o professor consegue trazer modos em que povos do passado enfrentaram o tema (por exemplo, as estratégias que os romanos criaram para controlar os governadores das províncias distantes). A História é uma das disciplinas escolares mais propícias ao debate dos temas contemporâneos, e isso implica que professores e professoras de História precisam acompanhar de modo pelo menos razoável o que se passa no mundo, em particular o que diz respeito as culturas juvenis.

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3) Um bom professor de História evita opiniões apressadas. Ele sabe que diferentes povos mostram costumes diferentes. E ele sabe que cada cultura deve ser entendida em suas particularidades no tempo e no espaço, evitando julgamentos apurados. A boa professora de História toma cuidado em lidar com o particular (cada povo, cada cultura, cada época, os costumes próprios dos grupos sociais ao longo do tempo), e ao mesmo tempo em ligar com o geral (trazer elementos do passado para ajudar a pensar situações do presente, mas evitando comparações apressadas e anacronismos). Depois de estudar um certo costume em muitos povos (por exemplo, os modos como se celebravam contratos de casamento em diferentes culturas, mesmo reconhecendo que isso pode ter tido valor diverso em culturas diversas), apenas então o professor de História sabe que os alunos estão prontos para reflexões de ordem mais abstrata e genérica. Enfim, um bom professor de história sabe quão complicado é entender o humano, a humanidade. 4) Uma boa professora de História não esquece em momento algum que há conexões muito fortes entre conhecer a história e reivindicar seus direitos de cidadania no presente. Boa parte da história da humanidade é uma história de luta de grupos sociais por direitos, por reconhecimento, por legislação de proteção, pela possibilidade

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de viver com dignidade. Não é possível deixar de perceber que ao estudar revoltas camponesas no período da Reforma da Igreja estão presentes elementos que tem a ver com a luta pela terra nos dias de hoje. Não se trata de pensar que a história é sempre igual, mas claro está que certos enfrentamentos entre grupos sociais guardam semelhanças no tempo e nos diferentes espaços, e um bom professor de história é atento a isso. Se por um lado devemos evitar comparações apressadas e frases que matam a história (do tipo “pobre sempre existiu na história”), por outro lado não devemos deixar de discutir com os alunos a persistência de lutas, reivindicações, conflitos, estratégias de paz, de dominação. Pensar as ações acontecidas ao longo da história como experiência da humanidade, que não pode ser desperdiçada, e precisa ser aprendida e reconhecida. 5) Um bom professor de história se preocupa em fazer com que seus alunos não apenas aprendam fatos do passado, mas busquem se posicionar frente a eles. Não se trata de apenas ensinar que existiu o holocausto dos judeus durante a segunda guerra mundial, ou o extermínio de povos indígenas no momento da colonização das Américas. Também se trata de pensar estas questões do ponto de vista ético e político. Não se trata apenas de estudar que o Brasil passou por uma ditadura militar que praticou a tortura de modo brutal, mas se trata também de discutir isso do ponto de vista das relações humanas. Não estamos apenas ensinando história, estamos tentando produzir sujeitos sensíveis ao sofrimento humano, sujeitos que lutem para viver em regimes democráticos, onde a injustiça seja combatida, onde cada um possa viver sem ser discriminado por suas ideias e opiniões. Uma aula de história é muito mais do que acumular conhecimentos, e um bom professor se dá conta disso, e busca provocar que os alunos se sensibilizem com estes temas. Claro está que isso pode dar origem a grandes debates em sala de aula, pois alguns vão dizer que não há problema em torturar alguém ou aplicar a pena de morte, e outros vão dizer que não se deve fazer isso. O professor vai então conduzir o debate, trazendo elementos históricos para ajudar na reflexão. Porque o bom professor de história sabe que em sua aula a história abre janelas para pensar projetos políticos e projetos pessoais. Cada aluno ou aluna está ali também enfrentando sua própria condição humana, colocando em xeque seus valores políticos, comparando o que pensa (e que muitas vezes traz a marca do pensamento da família) com o que os colegas pensam.

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6) Em conexão com o ítem acima, um bom professor de História organiza sua aula de modo que cada um se sinta respeitado nos debates. A prática de uma sala de aula democrática é muito importante para os professores das ciências humanas, e da História em particular. Os alunos poderão esquecer tópicos que foram estudados, mas se lembrarão que tiveram a oportunidade de dar sua opinião, foram respeitados nisso, e foram ensinados a respeitar a opinião dos colegas. A aula de história não é uma doutrinação, ela é um momento de debate sobre experiências do passado. Claro está que um professor pode sofrer por perceber que um aluno tem posturas políticas muito conservadoras, machistas, preconceituosas com raça ou religião. Mas ele sabe que não será através de uma estratégia autoritária que se conseguirá a mudança. O bom professor de história aposta no debate, e traz elementos para ajudar a pensar.

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6) Uma boa professora de História sabe do valor das parcerias com as demais disciplinas. Há muitas possibilidades de bons estudos de história com a Literatura, com a Geografia, com as Ciências, com os estudos da religião, e até mesmo com a Matemática, vale lembrar que o algarismo zero tem uma história das mais interessantes em diferentes povos e culturas. Mais do que ficar dizendo aos alunos que a história é a disciplina mais importante do mundo, o bom professor de história estabelece parcerias e mostra que a história está presente em muitos lugares, inclusive nas demais disciplinas escolares. 7) Gostar de museus históricos, conhecer a história de sua cidade, saber sobre os monumentos, tradições, nomes de ruas do local onde se vive, conhecer pessoas e fatos que foram marcantes para criar a cidade ou o bairro onde se mora, tudo isso distingue também um bom professor de História. É o sujeito que sabe que a história não está apenas no distante, no longe, mas que o mundo que nos cerca está completamente lotado de objetos, jeitos de ser, tradições, ditos populares, costumes políticos, alimentos preferidos, modos de lidar com a higiene, a saúde e a doença, e que tudo isso é história. Se encantar com isso, se divertir com isso, são marcas de um bom professor. A história também serve para a gente se divertir, para ter assunto em conversas sociais, para falar de curiosidades do local onde vivemos, de nossa família mesmo. Não tenha dúvidas, um bom professor de história tem algo de fofoqueiro, gosta de saber das relações humanas, de povos e de países, e inclusive do que está ali, logo ao alcance do ouvido e do olhar. Isso ajuda a desenvolver nos

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alunos uma curiosidade sobre o passado, e evita que fiquemos reféns do presentismo, mergulhados em um eterno presente, sem espessura para reflexões. Quem acha que o mundo é apenas o que vemos, quem não se dá conta da presença da história na estruturação do mundo, é definitivamente um alienado, e um bom professor de história luta para que seus alunos não sejam assim, e para que ele mesmo não viva num presentismo. 8) Numa aula de história não se ensina apenas história, mas se ensina a pesquisar o passado, e a reconhecer a presença da história no presente. Desta forma, um bom professor de história ensina que se deve ter atenção a detalhes, a vestígios dos antepassados (que podem estar presentes de modos muito diversos na estruturação do nosso presente). Há na pesquisa histórica conjuntos de métodos e de estratégias, e isso se ensina também na aula de história, evitando que os alunos fiquem com a impressão de que “cada cabeça é uma sentença”, e que podem dizer o que bem entenderem acerca do passado, como infelizmente lemos muitos nos jornais e vemos muito nos programas de televisão. Sabemos que não há como reconstruir o passado na sua exatidão, essa é uma posição positivista já superada. Mas também sabemos que é possível se guiar por métodos e estratégias que garantem a qualidade da pesquisa histórica. 9) Por fim, ficam algumas provocações. O bom professor de história é necessariamente de esquerda? Ele é progressista? Existe possibilidade de um bom professor de história ser de direita? O bom professor de história sempre faz greves e sempre se posiciona politicamente? O bom professor de história é sempre contra o capitalismo? Fica aqui o convite para cada um se posicionar frente aos tópicos da lista, para acrescentar ou retirar. E fundamentalmente para dizer de si, dizer como se sente sendo professor de História, o que lhe passa pela cabeça, quais os bons professores que admiramos em nossa área? O que definitivamente não podemos admitir como marca de um professor de história? O que já foi considerado muito bom em um professor de história (por exemplo, saber toda a história de cor e salteado) e hoje não é mais uma característica apreciada? O bom professor de história participa das redes sociais? Tem um blog onde registra suas opiniões? Qual a função de ter facebook na estruturação de um bom professor de História? Vamos ao debate!

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VOLTA GEOGRAFIA, VEM VIVER OUTRA VEZ AO MEU LADO... Itamar Freitas UNB Em 2017, data prevista pelo Plano Nacional da Educação (2014) para a implantação da Base Nacional Curricular Comum, comemoraremos os 70 anos do divórcio ou o fim de uma separação pouco conhecida: a da História e da Geografia como curso unificado de formação de professores. Ela se deu aos poucos, em diferentes territórios institucionais, iniciando-se em São Paulo e no Rio de Janeiro. Observando “estratos do tempo”, podemos atribuir algum valor ao fim desse matrimônio. Não sei como os catedráticos de História e Geografia percebiam e concebiam seus espaços de atuação. Não sei se tais espaços foram vivenciados harmonicamente, entre as décadas de 30 e 50 do século passado, pelos historiadores e geógrafos pais e padrinhos dos Annales (a revista e a “escola), onde alguns de nós vão buscar o “pedegree” da licenciatura em História no Brasil. Não sei também a quem serviu o deslocamento dos atores e a instituição de limites entre a História e a Geografia, logo após as “bodas de prata” do referido curso. Os professores universitários devem tê-la comemorado bastante. O currículo de História ampliou-se. Novas cátedras foram criadas, empregando mais profissionais. A ocupação do ensino superior pela História, em parâmetros idênticos às demais ciências, proporcionou a criação de cursos de pós-graduação, que reproduziram em escala o número dos confrades de Clio (Eu me incluo no rol de beneficiados). E os alunos da licenciatura em História-Geografia, como reagiram à criação desses novos domínios? Que benefícios e mazelas devem ter criado a separação aparentemente consensual em campos que, agora, reúnem professores universitários de História e professores universitários de Geografia?

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Sabemos que o currículo daquele curso superior não era um primor de projeto acadêmico. José Honório Rodrigues (1913-1987), mirando o Brasil desde o seu lugar de aluno de metodologia histórica, na Universidade de Colúmbia (1944), foi um dos primeiros a torpedeálo. Dizia que não passava de um secundário ampliado: História geral, História do Brasil, Geografia geral, Geografia do Brasil, etnologia brasileira e didática. Uma opinião fora do tempo pode afirmar que o historiador carioca tinha e não tinha razão; (1) “Sim, era um curso carente de disciplinas teórico-metodológicas” (Mas não se tratava de um curso de licenciatura?). (2) “Não, Rodrigues exagerava. O currículo prescrito, sozinho, não provê uma boa iniciação profissional, pois são os catedráticos, como Braudel, Taunay, no curso de São Paulo, por exemplo, quem agregam qualidade à um curso de formação” (Então, a que serve a prescrição curricular?).

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Um comentador sensato, por outro lado compreenderia melhor a situação. O ensino secundário estava restrito a meia dúzia de gatos pingados (gatos angorá) e os alunos da primeira década do curso (230 em 1935 e 474 em 1945, ou 3% do total de discentes no ensino superior, em 1943) não eram recrutados nos mais baixos níveis sócio-econômicos, como hoje ocorre. Além disso, os interesses de Rodrigues (germanófilo via EUA) e de grande parte dos catedráticos alvos da sua crítica (germanófilos via França) convergiam para a formação de um tipo novo de historiador. Um tipo distante do amador que frequentava os institutos históricos (Mas os membros dos institutos históricos não comandaram cátedras no curso superior de História e Geografia?). Fazendo as contas, a licenciatura em História-Geografia não poderia ser a principal preocupação dos professores universitários (“de” História e “de” Geografia) nem de outsiders entre os quais se enquadra José Honório. E os alunos, que pensaram da separação? (Reponho a questão). Na paisagem imaginada dos cursos de História brasileiros, louvamos o caráter interdisciplinar dos Annales, a historicização dos objetos da Geografia e a espacialização dos objetos da História. A Geografia espraiou-se: das ciências humanas às físico-naturais. A História misturou geologia e cronologia sofisticada para fundamentar uma

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nova ciência humana (a clássica contribuição fornecida por Braudel). Na escola básica contemporânea, entretanto, ceder uma hora-aula de História (no currículo) à matemática ou à língua portuguesa é até aceitável, mas perder terreno para Geografia é escandaloso! O caminho percorrido pelo ensino secundário brasileiro, entre meados do século XIX e meados do século XX, revela também revela esse comportamento. Catedráticos “de” História e “de” Geografia vigiaram uns aos outros a cada reforma curricular. Os horários destinados ao ensino sobre o passado brasileiro, americano ou mundial e aqueles reservados ao estudo do cosmos, das camadas da terra e dos deslocamentos populacionais não poderiam ser confundidos. Opa! Sem querer, deixei escapar uma informação importante: a separação (ou a autonomia) das disciplinas escolares História / Geografia é anterior à criação dos cursos de licenciatura. Com esse dado, podemos concluir que a autonomização da História e da Geografia ou a segregação espacial do aprendizado dos modos de produção/retenção do conhecimento histórico e do conhecimento geográfico, na condição de licenciaturas, atenderia, então, a demandas da escolarização básica? Mas, desde quando, no Brasil, a maioria dos catedráticos ou professores universitários de licenciatura trabalhou efetivamente pensando na “formação” de crianças e adolescentes? Aí está outra pergunta que deve continuar sem resposta por vários lapsos de tempo. Quem estiver interessado em respondê-las de modo plausível pode começar questionando a si próprio: (1) “Como posso justificar a autonomia das disciplinas História e Geografia nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio?” (2) “Como posso justificar a manutenção dessa autonomia, diante do fato de a História e Geografia serem geridas por um só professor, na escola primária, desde o século XIX?”(3) “Como defenderei a manutenção da área controlada por licenciados em História nos concursos públicos, diante de uma provável integração provida pela base nacional curricular comum nos anos finais e no ensino médio?”

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Se você, professor de História, excluir a hipótese de que a autonomia da História-disciplina-escolar é uma barreira ao retorno dos estudos sociais – supostamente criados no cenário da recente ditadura militar –, não será fácil persuadir os mudancistas, pois o argumento carece de provas. Se “repassar a questão aos universitários”, a resposta demorará ainda mais. E se “os universitários” solicitarem o auxílio de alguns pesquisadores do ensino de História eles vão aconselhá-lo a revisitar os princípios que sustentam a transformação da História em campo que produz conhecimento científico – de Kant a Droysen e de Bloch a Braudel. Eles também vão convidá-lo a observar a aula de um qualificado professor dos anos iniciais do ensino fundamental.

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Seguindo tais conselhos, entenderão perfeitamente as razões do meu canto: “Volta [Geografia], vem viver outra vez ao meu lado”, na doce interpretação de Gal Costa, que nada tem de passadista. Compreenderão porque empreguei conceitos “típicos” da Geografia em cada parágrafo deste texto. Mas como o que vale, no nosso ambiente, na maioria das situações comunicativas, é o discurso da autoridade, perpetro minha posição, encerrando com aspalavras daquele historiador de historiadores – Reinhart Koselleck (1923-2006) – que justificou a adoção de Estratos do tempo (2000) como título da sua última obra: O historiador precisa servir-se dessas metáforas retiradas da noção espacial se quiser tratar adequadamente as perguntas sobre diferentes tempos. A História sempre tem a ver com o tempo, com tempos que permanecem vinculados a uma condição espacial, não só metafórica, mas também empiricamente [...]. Os espaços históricos se constituem graças ao tempo, que nos permite percorrê-los e compreendê-los, seja do ponto de vista político ou do econômico. Mesmo quando a força metafórica das imagens temporais têm origem em noções espaciais, as questões espaciais e temporais permanecem entrelaçadas” (Koselleck, 2014, p. 9). Bom fim de semana!

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Referências RODRIGUES, José Honório. História corpo do tempo. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 16-17. CUNHA, Luiz Antônio. A universidade temporã. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 270, 276, 301-303. KOSELECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-RIO, 2014.

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'EU, TU, ELES' OS QUADRINHOS E A AUTOBIOGRAFIA: ESCRITA DE SI DENTRO DA SALA DE AULA Jefferson Lima UDESC A proposta deste ensaio visa problematizar, e levantar a ponderação sobre as Histórias em Quadrinhos como ferramentas autobiográficas. Não apenas a proposta de uma autobiografia ficcional, mas sim de um conjunto de impressões, representações, no tempo e espaço, além de sua utilização dentro do espaço de sala de aula. Tal ponderação surgiu a partir através de uma inquietação junto aos meus alunos que, surpresos, descobriram que eu também lia quadrinhos. Em tal experiência foram separados os seguintes quadrinhos para análise e leitura: Hadashi no Gen (Gen – Pés descalços) criado por Keiji Nakazawa, que narra à história de um sobrevivente da bomba atômica de Hiroshima; Palestine (Palestina) do jornalista Joe Sacco, apresenta a experiência do autor de Jerusalém até a Faixa de Gaza; E por fim Los Três Amigos, trio fictício de personagens que são, na verdade, caricaturas de seus criadores (Angeli, Laerte e Glauco) e apresenta o cenário underground de uma forma estereotipada crítica. Para uma melhor compreensão serão separados em quatro momentos. O primeiro deles fará um levantamento sobre o conceito de autobiografia e escrita de si, num segundo passo será proposto uma análise entre a escrita de si/autobiografia e os quadrinhos. Em sequência faço, brevemente, uma reflexão sobre os quadrinhos como ferramenta didática. Concluindo será realizada a análise dos três quadrinhos em questão, visando apresentar as especificidades de cada um. Escrita de si ou autobiografia – ponderações cautelares Primeiro deve ficar clara a diferenciação entre escrita de si e autobiografia. Entendo a escrita de si a partir das ponderações de Michael Foucault que apresenta a escrita de si adquire como uma ação determinante na elaboração sobre si. Ao apresentar o processo de escrita no período da Antiguidade Clássica e nos primeiros anos do Império Romano. Para Sêneca, por exemplo, era preciso ler, mas

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também escrever (FOUCAULT, 1992. p. 146). Foucault ressalta a relevância da escrita para o “cuidado de si” no seguinte trecho: A escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende a askêsis: ou seja, a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de ação. Como elemento de treinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma expressão que se encontra em Plutarco, uma função etopoiéitica: ela é a operadora da transformação da verdade em êthos (FOUCAULT, 1992. p. 147). Ou seja, para o autor o processo de escrita de si não é apenas um suporte da memória, mas devem ser pensados, também, como exercícios que serão utilizados constantemente, reverberando nas ações diárias dos indivíduos. Tais processos também não devem ser vistos como diários, mas sim como objetos que possuem um aparato de informações constantes, que trazem um conjunto de seleções de discursos.

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Para escrita autobiográfica, tomo de empréstimo as considerações de Philippe Lejeune, para o autor a narrativa autobiográfica inspira-se sempre, ao menos em parte, na preocupação de atribuir sentido, de encontrar a razão, de descobrir uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva. No artigo intitulado 'O Pacto Autobiográfico', Lejeune começa apontando o questionamento sobre a possibilidade de se definir o que é autobiografia. Para o autor, autobiografia deve ser entendida como uma narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade. É como se o autor criasse, a todo tempo, um autorretrato de si mesmo, sendo a autobiográfica uma continuidade de autorretratos adaptados a cada aspecto próprio das representações conjugadas à ação do narrador no momento de sua retrospectiva. Lejeune afirma que a passagem da individualidade pela escrita “não significa de modo algum eu ela seja uma ficção” (LEJEUNE, 2008, p. 104), sendo a escrita apenas um prolongamento do trabalho de criação de identidade narrativa.

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Entendo que dentro das escritas de si podem ser inseridas as autobiografias, e no caso dos quadrinhos analisados elas são representadas de diversas maneiras, mas antes de adentrar as especificidades dos objetos propostos é importante apresentar os próprio género dos quadrinhos, e suas particularidades. Histórias em quadrinhos – especificidades do objeto numa escrita de si autobiográficas Ao pensar nesse processo de escrita de si, é vital entender o processo de permanência dos objetos estudados. Nesse ponto entendo que “Só se pode estudar a intimidade daqueles que deixaram algum tipo de escrita de si ou que foram objeto de minuciosa descrição” (CONCEIÇÃO, 2013,p.37). E a partir disso compreendo que as Histórias em quadrinhos, por serem objetos impressos, que tendem a perdurar durante determinado tempo, e são vinculados a um processo de distribuição, partem dessa escolha, dessa “permanência”. As Histórias em quadrinhos podem ser analisadas no mesmo diapasão das pesquisas historiográficas voltadas para a imprensa e o impresso. A historiadora Maria Helena Rolim Capelato define que “todos os jornais procuram atrair o público e conquistar seus corações e mentes. A meta é sempre conseguir adeptos para uma causa, seja ela empresarial ou política, e os artifícios utilizados para esse fim são múltiplos.” (CAPELATO, 1988, p.15). É possível estender essa lógica para as publicações de histórias em quadrinhos. No processo de confecção de uma publicação em quadrinhos, alguns elementos acabam se diferenciando, como por exemplo: público alvo, núcleo editorial, autores, proposta de conteúdo, entre tantas outras possibilidades. Para que tais elementos sejam compreendidos dentro de uma publicação como as HQs,é importante que, primeiramente, estes pontos sejam pensados junto às especificidades do documento quadrinho. As principais especificidades dos quadrinhos, que devem ser levadas em conta são: “gênero discursivo” específico das histórias em quadrinhos, ou seja, se as HQs têm a intencionalidade de serem vistas como “quadrinhos de super-heróis” ou “quadrinhos infantis”, cada uma delas demanda uma ponderação específica sobre qual público alvo ela se destina;qual a inclinação ideológica/política do(s) autor(es) ou núcleo editorial da publicação detém, e se esses pontos são latentes, ou não, na publicação; se a proposta da

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revista pode ser “encaixada” em algum seguimento social – grupos urbanos, identidades, representações e afins. E é a partir desse ponto que os quadrinhos autobiográficos devem ser pensados, em sua especificidade e diferenciação. O processo de confecção de um quadrinho que lida com a escrita de si autobiográfica, a meu ver, se vale não apenas do processo de criação de outras formas de HQs, mas sim de uma ponderação pontual, e de uma pesquisa “histórica” para sua construção. Como aponta Bernard Lahire, sobre as escritas de si: “En forçant à expliciter l'implicite et à mettre en ordre l'experiénce, la mise en forme écrite (de la simple liste aux récits les plus fournis) tranforme le flux constant des événements vécus, dont on n'aqu'une maitrise pratique, en événements détachés de la réalité continue de l'experiénce, explicités dans un langage et analyspes par l'opération même de sélection des traits pertinents de leur description et des modalités de leu narration” (LAHIRE, 2008, p. 171).

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Assim sendo, esse processo de explicitar a linguagem, o processo de mergulho no objeto narrado/narrativa, dos autores, trazem um conjunto de contágios muito pertinente as reflexões historiográficas. A partir disso, acredito, que os três exemplos a seguir dão conta de apresentar, ainda que de forma breve, três situações dos quadrinhos autobiográficos em específico. O quadrinho “histórico”, o jornalístico, e o cartunesco. HQs e Sala de aula – Pontos de reflexão Ao entender que vivemos em uma sociedade plural, que se utiliza de diversas formas mídiaticas na sua confecção, trazer estes cenários para a sala de aula vai de encontro as demandas e posturas diferenciadas para o ensino de história. Novas abordagens, e métodos, são parte culminante da aproximação entre professores e educandos. Nesse sentido o professor deve assumir o papel de criador, e viabilizador, de possibilidades distintas para a aprendizagem. E é nesse ponto que vejo as HQs, como aponta Vergueiro(2010), tem se tornado importante ferramenta didática no processo de ensino e aprendizagem. Além disso, a própria utilização das HQs como ferramenta de apoio pedágio está assegurada tanto na LDB (Lei de Diretrizes e Bases, quanto nos PCNS (Parâmetros Curriculares Nacionais).

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Utilizar os quadrinhos como ferramenta pedagógica agregam na construção do senso crítico, político e estético. Como cita Mendonça: Reconhecer e utilizar histórias em quadrinhos como ferramenta pedagógica parece ser fundamental, numa época em que a imagem e a palavra, cada vez mais, as associam para a produção de sentido nos diversos contextos comunicativos (MENDONÇA, 2007, p.207) Ora, entendendo a importância das HQs, que muito já foram estudadas dentro das pesquisas acadêmicas, como ferramenta pedagógica. Juntando a proposta de representação realizada pelos autores das HQs, pensados num processo autobiográfico, me proponho a adentrar na especificidade dos objetos apresentados aqui. Gen, Joe Sacco e Los três amigos – diferentes autobiografias nos quadrinhos O primeiro trabalho apresentado aos educandos foi a produção japonesa Gen – pés descalços. Criado pelo autor Keiji Nakazawa a obra conta sua experiência como sobrevivente a bomba atômica lançada sobre Hiroshima. Inicia a narrativa a partir dos dias que antecederam o trágico incidente até o início do “renascimento” da cidade. Embora claramente Nakazawa esteja sujeito às subjetividades de seu lugar de fala e de suas “cicatrizes”, é possível encontra um testemunho que visa mostrar o que aconteceu naquela pequena cidade japonesa. Já o projeto de Joe Sacco segue na linha do jornalismo em quadrinhos, dentre vários trabalhos Palestina foi primeiro lançado como uma série de nove gibis nos anos 90. Transformou-se em dois livros e, cada história, num capítulo. O primeiro volume da HQ Palestina: uma nação ocupada foi publicado em 1993 e, no Brasil, em 2000. Vencedor do prêmio American Book Award , em 1996, divide-se em cinco capítulos em que são tratados diferentes assuntos: campos de refugiados, prisões, torturas eas mulheres palestinas. O segundo, Palestina, na Faixa de Gaza, foi publicado no Brasil em 2004 e dedica-se a mostrar a maneira como vivem os palestinos nesse local. Já as publicações Los três amigos dos cartunistas Laerte, Angeli, Glauco e depois Adão, foi um conjunto de história publicadas nas revistas Chiclete com Banana,

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Geraldão e Piratas do Tietê da editora Circo durante a década de 1990, e que foram, posteriormente, compiladas e lançadas em uma revista em quadrinhos intitulada Los três Amigos. As histórias, com temática western, fazem uma crítica a diversos stocks da sociedade, além de apresentar, de maneira ficcional “pero no mucho” espaços da cidade de São Paulo - como a Vila Madalena, Centro e afins – e “mazelas” sociais. Fazendo uma análise do cenário brasileiro dos anos 1990, com sua reabertura política, processos neoliberais, e reverberações de uma geração impregnada de uma senso de “globalidade”, as histórias vertem pelos mais diversos assuntos do cotidiano brasileiro. Finalizando este ensaio, apresento as multiplicidades dos quadrinhos em uma perspectiva da autobiográfica, e a utilização desse material em sala de aula, além de suas especificidades. É obvio que existem muitas outras HQs a serem abordadas, mas este é um breve ensaio, e espero que aguce os futuros licenciados sobre o tema e a aplicação no cotidiano escolar.

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REFERÊNCIAS CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e história do Brasil. Contexto, Editora da Universidade de São Paulo, 1988. CONCEIÇÃO, Adriana Angelita. A prática epistolar e suas sensações: sentir, escrever (falar) e ler (ouvir). In:_____. A prática epistolar moderna e as cartas do vice-rei d. Luis de Almeida, O Marquês do Lavradio: sentir, escrever e governar 17681779. São Paulo: Alameda, 2013. P. 33-134 FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ____. O que é um autor?. Lisboa: Passagens, 1992, p. 129-160. LAHIRE, Bernard. De La réflexicité dans la vie quotidienne: journaul personnel, autobiographie et autres écritures de soi. Sociologie et sociétes, vol 4, no.2, 2008, p. 165-179 LEJEUNE, Philippe. Autobiografia e Ficção. In: _______.O pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet. Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2008, p. 103-109 MENDONÇA, M. R.S. Um gênero quadro a quadro: a história em quadrinhos. In: DIONISIO, A. P.; A. R. Machado e BEZERRA, M. A. Gêneros textuais & ensino. 5. ed. Rio de Janeiro: Lucena, 2007. RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Org.). Como Usar As Historias em Quadrinhos na Sala de Aula. São Paulo, Ed: Contexto, 2010

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ELECTRA, A VINGADORA (1962): TEATRO, CINEMA, HISTÓRIA E OS INSONDÁVEIS OLHOS DE IRENE PAPAS José Maria Gomes de Souza Neto UPE Uma das grandes cenas da peça Electra, de Eurípides (escrita na primeira metade da década de 410 a.C.) é o confronto final entre duas poderosas mulheres: a personagem-título, cuja obsessão em vingar o assassinato do pai Agamênon, herói da guerra de Troia, sobreviveu décadas sem mácula, e Clitemnestra, sua mãe, rainha de Micenas, mentora do homicídio, e que uma vez morta a vítima, casou-se com o autor do feito, o vil Egisto, a quem entregou o trono. Para ser preservado do morticínio, o único herdeiro masculino do monarca, o menino Orestes, foi rapidamente levado para destino incerto, enquanto Electra permaneceu no palácio, memória incômoda dos terríveis acontecimentos. A jovem é dada em casamento para um camponês – e sua prole, desta feita, não terá direito algum de reclamar herança real – mas o casal de homicidas jamais descansou, pois com o paradeiro de Orestes incerto, um dia ele poderia emergir das sombras do desconhecido para clamar a devida vingança à memória paterna – algo que de fato ocorre, e o sangue de Egisto tinge a espada do jovem príncipe. Faltava, porém, o castigo à mentora, e coube a Electra armar o bem-sucedido estratagema que atraiu a mãe-assassina à cabana onde vivia; o encontro entre as duas antagonistas é marcado por contundente troca de acusações, e Clitemnestra justifica ousadamente o impulso que a moveu: (...) Na fala da mulher de má fama/ há quem veja um travo de amargor,/ o que não é meu caso. Sabedora/ do que fiz, se o que fiz te parecer/ nefasto, odeia-me; se não teu ódio/ é nulo (...) Quando Agamêmnon levou ao porto de Áulis Ifigênia,/ foi para desposá-la com Aquiles, mas lhe segou o rosto lindo lá,/ no altar. Tivesse sido pelo bem/ da pólis, se o solar corresse risco,/ fosse para salvar os filhos, ainda/ faria sentido alguém morrer por muitos./ Mas foi pela consorte de um sem fibra/ que a imolou, foi por Helena, a lúgubre![EURÍPIDES. Electra, p.120.]

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Após a queda, o coice: além de sacrificar a própria filha em prol de causa vã, Agamêmnon, narra a mentora, ainda trouxe à casa outra mulher como sua concubina (ninguém menos que a desditada Cassandra, princesa de Troia e profetisa de atrozes futuros), dupla ofensa à qual foi incapaz de relevar. Electra ouve as palavras da mãe. O relato lhe encrespa a juba, mas antes de revidar, pergunta: posso levar a sério o que disseste/ sobre eu poder falar de peito aberto?[idem, p.121] A resposta é positiva, e ela ataca:

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Sei mais do que ninguém quem és. Sequer/ cogitavam de eliminar tua filha/ nem bem o rei partiu, e as tranças louras/ penteavas, admirando-se no espelho./ A esposa que esmera em produzir-se,/ quando o homem parte, traça um mau perfil. (...) Que outra grega/ se extasiava ao êxito dos troicos,/ ensombrecia o cenho se recuavam/ torcendo contra a volta de Agamêmnon? (...) Se meu pai, como dizes, trucidou/ tua filha, onde erramos eu e Orestes?/ Por que, depois de assassiná-lo, não/ nos deste o que era nosso, o paço, em vez/ de comprar um amante com dinheiro/ alheio? [idem] A acre troca de acusações não cessa... “Nasceste para amar teu pai. A vida/ é assim: há quem prefira o sexo másculo/ e há quem ame a mãe mais do que o pai”, acusa Clitemnestra, ao que Electra redargue: Tardias lágrimas de crocodilo.../ meu pai não vive mais. Por que não trazes/ ao lar teu filho, um erramundo? [idem, p.123] Esta angustiante altercação nada mais é que a sala de visitas para o ponto máximo da tragédia: a morte de rainha pelas mãos dos próprios filhos. Ler a tragédia é fundamental, mas vê-la sendo representada é experiência única, de vivência cultural e de exercício do olhar histórico, pois somente a encenação nos faz capazes de compreendêla em sua completude. Logo, partindo desta perspectiva, encontramos no cinema aliado valioso, oportunidade para a análise visual do teatro grego, e neste particular, poucas obras são tão fortuitas quanto Electra, a vingadora [Ilektra/Ηλέκτρα. Grécia, 1962] do cineasta Mihalis Kakogiannis (1922-2011).*

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*Almejando uma carreira internacional, este diretor adotou um nome artístico mais próximo do inglês: Michael Cacoyannis. Como tal, dirigiu sua película mais conhecida internacionalmente: Zorba, o grego (1966), pelo qual foi agraciado com várias indicações a prêmios importantes, como o Oscar (melhor filme, diretor e roteiro adaptado), o Bafta e o Globo de Ouro. Neste filme, a figura imodesta de Clitemnestra ganha vida através da ateniense Aleka Katselli, de porte altivo e olhar diamantino, contraponto à sublime Electra criada pela atriz Irene Papas, “sóbria como o silêncio, envolta na mais autêntica revolta (...) maior que a vida, os sentimentos e nossas fragilidades”, nas palavras do cineasta Rodrigo Grota [2012]. A arrogância de Clitemnestra é recriada na película, e se Eurípides escreveu que se fazia acompanhar por escravas bárbaras, nobres troianas aprisionadas pelo finado marido, no filme a rainha ostenta aparato semelhante ao delas: maquiagem pesada, cintilante, contraste com a simplicidade esperada de uma helena digna; pesados brincos pendentes, coroa raiada, amplo colar, que envolve todo o pescoço e desce ao colo – embora o filme seja em preto e branco, a impressão áurea deixada nas retinas não deixa dúvidas quanto ao material de que são feitos.

Veste-se, ela própria diz, em rico vestido, tão fino que pede à própria filha que evite tocá-lo ao descer da carruagem, ornamentado com riquíssima borda e listras ondulantes. A origem bárbara de suas vestes e adereços evoca a barbaridade de sua vida infame.

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O esplendor real salienta ainda mais a indigência da filha: Electra, mulher de um pobre agricultor, veste roupas grosseiras, escuras, não usa maquiagem, braceletes brincos ou colares, e seus cabelos, contrariamente aos da mãe, não são cuidadosamente arrumados e cobertos pelo véu, mas tosados bem curtos, corte feito de próprio punho ainda no início do filme, como forma de luto não apenas pela memória aviltada do seu pai, mas também pelo casamento indigno ao qual fora designada.

114 Os olhos de Irene Papas, salientados pela sombra negra, são de abissal profundidade, e cada expressão revela novos aspectos da tragédia: por vezes vislumbram, vazios, o horizonte, como que prenunciando os horrores que estão por vir; noutras são desafiadores, conscientes da obrigação moral que deve ser cumprida, a vingança, e empurram o jovem e titubeante Orestes ao encontro com o destino. Por fim, diante da monstruosidade do assassinato da mãe que a tinha gerado, exprimem dor e desconsolo irremediáveis. O encontro dessas duas mulheres incendeia a tela; altiva Clitemnestra diz à filha: Falar-te-ei com serenidade E quando houver dito a verdade frente aos aqui presentes Serás a primeira a admiti-la. Nos momentos seguintes, o roteiro de Kakogiannis repete os argumentos criados por Eurípides mais de dois milênios antes; da

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mesma forma, ao fim do discurso, repete a reação do coro, representado no filme por um grupo de mulheres gregas vestidas em negras vestes, voz inclemente do povo: ‘Tem razão, mas seus motivos não são honestos; Uma mulher sensata deve perdoar o seu marido, essa é a verdade’. Kakogiannis, como Eurípides, não perdoou Clitemnestra, e Electra expõe os pecadilhos do seu passado, acusa-a de vaidade, dissimulação, prevaricação, confronta sua falta de misericórdia em relação a si mesma e ao irmão, e ainda que por vezes fraqueje em seus propósitos, não deixa de atrair a mãe ao casebre, onde Orestes se encarregou de por-lhe termo à vida. A obra cinematográfica ilumina a literária e salienta as emoções descritas, e ao fazê-lo, traz para junto do mundo contemporâneo a Antiguidade, pretensamente distante e carente de sentido, sendo, pois, riquíssima oportunidade para a reflexão do profissional de História. É nessa perspectiva que exploraremos o filme Electra, a Vingadora. Como bem nos ensina Maria Regina Cândido (2009), três realidades mais significativas vem estimulando os estudos de História Antiga no país, a saber, a internet, os núcleos universitários e uma considerável produção cinematográfica; no conjunto, “tais fatores tornaram visíveis os setores de História Antiga e Medieval assim como despertaram os interesses dos discentes da graduação, possibilitando a pesquisa e o ensino de sociedades antigas no Brasil” [Cândido, 2009, p.281-82]. Estas três instâncias, longe de navegarem em paralelo, se entrelaçam a alimentam: a internet tornou possível o acesso a filmes e legendas amiúde inacessíveis em outros momentos, e esse rico acervo vem sendo apropriado pelos investigadores da História, ampliando o campo de pesquisa sobre Antiguidade. Nem sempre foi assim: tão recentemente quanto os anos 2000, orientávamos um grupo de graduandos numa apresentação da ANPUH regional cuja comunicação versava sobre utilizações do cinema no ensino de história, e um dos presentes regalou a audiência com um comentário espirituoso (ao menos para os próprios ouvidos): a única forma que concebo de utilizar filmes com meus alunos é levando-os ao cinema com bastante pipoca. Tal impostura, por extemporânea que fosse, ecoava profunda rejeição

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com que nossa disciplina recebeu a nova forma de arte nas primeiras décadas de sua vida. De fato, enquanto outros conhecimentos, como as Ciências Sociais e a Filosofia*, exploravam suas possibilidades, para as mais importantes correntes do pensamento historiográfico da época as películas não constituíam objetos válidos para pesquisa, uma vez que nem se caracterizavam como fontes escritas e oficiais e tampouco revelavam informações de cunho econômico. *Tardia quando comparada às demais Ciências Humanas. Décadas antes de Ferro, Walter Benjamin já refletia sobre a importância do cinema, e em seu ensaio ‘A obra de arte na época de sua reprodutiilidade técnica’, datado dos anos 1930, afirmava: “as tendências evolutivas da arte nas atuais condições é tão evidente na superestrutura quanto na economia. Por isso, seria equívoco subestimar o valor destas teses para a luta de classes (...) utilizáveis na formulação das exigências revolucionárias na política da arte”. [Apud Lima, 1982, p. 210].

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Desta feita, conquanto amplamente difundidos, os filmes eram considerados “diversão de quermesse para indivíduos iletrados” [Ferro, 1992, p.29] e produção anônima, pois segundo “os juristas, as pessoas instruídas, a sociedade dirigente e o Estado, aquilo que não é escrito – a imagem – não tem identidade: como os historiadores poderiam ser referir a ela e mesmo citá-la?” [idem]. Com a espada de Tântalo da verdade* pendendo sobre a cabeça, a historiografia resistia à sétima arte por ser uma inovação técnica recente, declaradamente ficcional, ideológica e, acima de tudo, academicamente suspeita, que distorcia o passado e escamoteava a veracidade dos fatos. *“Estudantes de todas as áreas tem que tomar decisões sobre como responder ao desafio da dúvida, mas, para os historiadores, o dilema é particularmente grave. Seu ethos profissional sempre foi fundamentado em algumas famosas palavras de Cícero: Quem não sabe que a primeira lei da história é a de que o historiador deve ousar dizer apenas a verdade? E que a segunda lei é a de ter a audácia para dizer a verdade em sua totalidade? E que sua obra não deve levantar suspeitas de parcialidade?” [Fernández-Armesto, 2000, p. 220, 221].

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Mais do que acesso à fonte, foi necessário modificar o instrumental teórico e metodológico da disciplina, e o marco inicial dessa transformação foi o artigo O filme: uma contra-análise da sociedade? de Marc Ferro, que compunha o volume História: Novos Objetos, organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora em 1974, no qual o autor discorria sobre as várias potencialidades e técnicas necessárias à abordagem das obras fílmicas, e afirmava que embora os filmes se constituíssem em jogos de câmera e roteiros amiúde tendenciosos ou ufanistas, era precisamente através destes elementos que se poderia estudar um determinado movimento, cultura e sociedade – assim sendo, valiam muito mais pelo que continham intrinsecamente que pelo que exibiam abertamente, abordagem seguida por Cristiane Nova, para quem limitar-se ao mise-em-scène – a autenticidade do figurino ou do cenário – não era suficiente, mas antes indagar os porquês das escolhas narrativas: A primeira questão a ser levantada diz respeito exatamente à relação passado-presente contida no filme. Qualquer representação do passado existente no filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico e a forma como ele é representado em uma película são sempre ditadas por influências do presente. [idem] Ambas as visões convergem no seguinte aspecto: assistir um filme é conhecer a sociedade que o produziu; se se trata de um drama contemporâneo ou de um capa-e-espada é incidental, pois o que aparece na tela é uma narrativa disfarçada daquela contemporaneidade. Perspectiva um tanto diversa – e que nos interessa diretamente nesse texto – é adotada por Maria Wyke em seu livro Projecting the past: Ancient Rome, Cinema and History, no qual deixa bem clara a “profunda função” que o cinema possui na constituição de uma consciência histórica, uma visão de estudos clássicos que objetiva não somente revelar a Antiguidade, e sim: mais e mais em expor, ao invés de ocultar, os interesses ideológicos locais – as várias misoginias, etnocentrismos, elitismos e imperialismos – tanto da Antiguidade quanto das suas apropriações subseqüentes [Wyke, 1997, p.7]

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Longe de compor uma narrativa de feitos e realidades dadas e acabadas, o estudo da Antiguidade, reflexo da nossa compreensão contemporânea do passado, busca o contrapelo, os conflitos, e não se exime em “definir e debater nossa relação com aquele mundo”, contexto que converte o cinema em local privilegiado para a reflexão histórica.

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Filmes, os mais fidedignos como os nem tanto, ao recriar o passado são sempre agentes de construção de cultura histórica, fato claramente perceptível nas produções dos circuitos comerciais, geralmente dotadas de elencos estelares, pesados investimentos econômicos, ostensiva reconstituição de época e efeitos visuais impressionantes. Poderíamos citar vários exemplos desse grupo, majoritariamente norte-americano, do recentíssimo Êxodo: Deuses e Reis [(Exodus: Gods and Kings. Ridley Scott, 2014) que retomou os fiapos da história de Moisés em prol de um espetáculo agressivo] ao pouco mais recuado, embora mais próximo ao nosso tema, Troia [(Troy, Wolfgang Petersen, 2004) cuja representação urbana de Ílion reproduz impressões das megalópoles modernas] – ambos, não obstante imprecisões claras (muitas das quais propositais), possuem a capacidade de tornar verídico o inverossímil, e ao fazê-lo, dizem muito da concepção de História contemporânea e dos olhares lançados à Antiguidade [“filmes históricos, mesmo quando sabemos que são representações fantasiosas ou ideológicas, afetam a maneira como vemos o passado". ROSENSTONE, 2010, p. 18.]. A importância do filme para a historiografia é levada à última potência pelo historiador norte-americano Robert Rosenstone em seu livro A história nos filmes, os filmes na história: amplamente influenciado pelo escritor Hayden White, equipara o filme à produção historiográfica, e o diretor ao historiador, pois tanto a película quanto os livros não só elaboram e rearranjam os vestígios legados pelo passado* quanto, quando necessário, se permitem inventar fatos para compor suas narrativas. *'Podemos realmente representar o passado, de maneira factual ou ficcional, como ele era? Ou sempre apresentamos apenas alguma versão de como ele possivelmente era ou poderia ter sido? E, em nossas representações, não alteramos inevitavelmente o passado, fazendo-o perder parte do seu sentido pra si mesmo, ou

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seja, para os seus atores históricos e, ao mesmo tempo, impomos outros significados (os nossos significados) aos acontecimentos e momentos que talvez sejam muito difíceis de reconhecer para aqueles que os vivenciaram? (...) sempre violamos o passado, mesmo quando tentamos, a despeito da mídia usada, preservar a sua memória (...) esta violação é inevitável, faz parte do preço de nossas tentativas de entender a palavra extinta dos nossos ancestrais’. [idem, p.199]. E ainda que não abracemos tal proposição, não nos parece possível negar que: (...) as ricas imagens e metáforas visuais que nos fornecem contribuem para que pensarmos historicamente’ (...) o objetivo não é fornecer verdades literais acerca do passado (como se a nossa história escrita pudesse fazê-lo), mas verdades metafóricas que funcionem, em grande medida, como uma espécie de comentário, e desafio, em relação ao discurso histórico tradicional. [idem, p.24] Nestas construções metafóricas, há que se perguntar: qual o interesse do retorno ao passado? Será, aquele período, mera “ambientação exótica” para o romance ou aventura, ou interação “com aquele discurso, fazendo e tentando responder perguntas que, há muito tempo, circundam um determinado tópico”? [idem, p.74]. No primeiro grupo, situamos boa parte das grandes produções hollywoodianas, sendo o já citado Êxodo: Deuses e Reis o exemplo mais recente dessa escola: não apenas o Antigo Egito é um mero pretexto para cento e cinquenta minutos de violência e velocidade, como, ainda pior, a própria tessitura da narrativa exsuda racismo e preconceito. No segundo grupo, podemos situar o igualmente recente [Noah. Darren Aronofsky, 2014]: grande produção, dispendiosa como as demais de seu gênero, mas que traz em seu bojo preocupações filosóficas infinitamente mais abrangentes que o épico sobre Moisés, e que nos confronta não apenas com questões de ordem prática que a história do dilúvio colocava (como poucas pessoas poderiam tomar conta de tantos animais? Simples, eles dormiram), mas indagações sobre a vida, o destino, a relação entre o humano e o divino, a ética das ações humanas e o papel da religião estabelecida.

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Fora do circuito do cinemão norte-americano, Robert Rosenstone situa um outro gênero de recriação histórica, à qual denomina ‘drama inovador’, as “obras criadas para contestar as narrativas perfeitas de heróis e vítimas que constituem o longa-metragem comercial” [Rosenstone, 2010, p.81], e é precisamente neste universo que situamos as recriações do passado empreendidas por Mihalis Kakogiannis, um cipriota de origem grega, cuja obra se insere no movimento pan-helênico de meados do século XX e voltou-se para temas próprios da realidade da Grécia: dramas contemporâneos (Stella, 1955, Eroica, 1960), uma visão quase folclórica das raízes mais profundas daquele povo (Zorba, o grego, 1964), e três produções que retornavam à Hélade – Electra, a vingadora; As troianas [The Trojan Women, 1964] e Ifigênia [Ifigeneia / Ιφιγένεια, 1977]– não como objeto fetichista de busca pelo momento áureo de sua gente, mas antes como complexas construções históricas, elaboradas tanto através de elementos visuais – figurino, maquiagem e cenário – como narrativos.

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Kakogiannis percebeu que as verdades e inquietações expressas por Eurípides dois milênios antes continuavam válidas em pleno século XX, e sua trilogia buscou nas tragédias a força das mulheres contra exercícios de poder tirânico e violência, algo particularmente perceptível n’As Troianas, filme no qual uma plêiade de fortíssimas personagens femininas orbita a volta de Hécuba, rainha vencida da arrasada cidade, e resistem às supremas indignidades impostas pelos vitoriosos. Uma intérprete, em especial, destacou-se nesse universo de diálogo trágico-fílmico: Irene Papas, amiga e musa inspiradora do diretor, presente em suas maiores produções, e intérprete de algumas das personagens mais marcantes da tragédia clássica*: Electra, Helena e, finalmente, Clitemnestra. *Além das três colaborações com Kakogiannis, Irene Papas encarnou outras célebres personagens gregas sob a batuta de outros diretores: o papel título em Antígona (Antigoni /Αντιγόνη), de Yorgos Javellas (1961), e Penélope, na minissérie italiana L’Odissea, de 1968. Quem senão esta grega de Corinto poderia representá-las com tanta propriedade? Quem se disporia a, como fez n’As Troianas, despir-se defronte às enfurecidas mulheres troianas, e banhar-se como um

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cavalo premiado, objeto da cobiça dos helenos vencedores? Que outro olhar, tão belo quanto insondável, poderia exprimir ódio e pesar, desespero e determinação, com um simples arquear de grossas sobrancelhas? Suas performances, transbordantes de existencialismo, ligaram as angústias do V século AEC à contemporaneidade do século XX. O roteiro de ‘Electra, a vingadora’, assim como a direção, foi trabalho de adaptação do próprio Kakogiannis, e para realizá-lo entabulou interessante diálogo com o teatrólogo, pois qualquer um que vá diretamente à tragédia perceberá que houve mudanças; preferimos não usar o termo “atualização”, pois deixaria implícito que o texto euripidiano seria, de um modo ou de outro, ultrapassado. Preferimos, pois, a transcriação, o ato de co-autoria que o cineasta empreendeu para transpor a distância temporal que o separava do original e traduzi-lo a uma outra mídia – não pretendia teatro filmado, e sim uma tragédia fílmica [“acercar las tragedias antiguas al público actual mediante un realismo que podríamos denominar trágico”. GARCÍA, s/d.], algo totalmente diferente. E foi bem sucedido. Eurípides dá início à sua obra com um monólogo declamado pelo camponês que acolheu Electra; Kakogiannis, por sua vez, conjurou um prólogo próprio, no qual apresenta à audiência (certamente menos afeita às histórias que o público ateniense) todas as informações necessárias para a compreensão da narrativa: vemos o nobre Agamêmnon chegando à sua capital, Micenas, e a alegria com que é recebido pelo povo, flagrante contraste com a frieza com a qual Clitemnestra mira o horizonte. Ao chegar ao palácio, os únicos abraços amigos que recebe são dos filhos, verdadeiramente alegres com o retorno do pai; sua espada, dá ao menino, penhor de sua futura ascensão ao trono, e desarmado, segue para a banheira, onde é preso por uma rede e assassinado, embora não sem luta, pela mulher e o amante [“sucesión frenética de planos que provoca vértigo, y, de esta forma, con su sello personal enriquece el texto de Eurípides empleando sus propios recursos artísticos para aumentar la tensión dramática”. Idem.]. A menina Electra pressente o ocorrido e desmaia, enquanto um velho servo leva para longe o pequeno Orestes, e enquanto o horror inicial se desenrola, pássaros negros voam no céu.

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Outro elemento dissonante entre a peça e o filme é a presença do religioso; seria impensável a um autor da Antiguidade a ausência de tais elementos, e Eurípides não é exceção, algo que fica particularmente claro ao fim da peça, quando se utiliza do recurso do deus ex machina (aparição fortuita de divindade para solucionar questões em aberto da narrativa) para trazer o que poderíamos chamar de final feliz à sua obra, quando os deuses gêmeos Cástor e Pólux instruem os personagens: culpado pela morte da mãe, Orestes não pode assumir sua herança real, mas dirige-se à Atenas onde clamará por misericórdia junto ao templo, enquanto sua irmã casase com seu fiel acompanhante, Pílades, que se torna rei de Micenas.

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Kakogiannis apresenta uma percepção diversa da tragédia: há, indubitavelmente, a mão pesada do destino, que impulsiona as vontades tal e qual um manipulador de marionetes, mas toda a ação se passa no plano horizontal, do ser humano e dos deveres que sente em relação a si e aos demais, mulheres e homens visceralmente vivos, repletos de ódio e angústia individuais. Por mais que o túmulo raso e sem identificação de Agamêmnon fosse um crime de impiedade (desrespeito aos mortos), é, antes de mais nada, causa de sofrimento para a filha, impossibilitada de demonstrar sua devoção e seu amor ao falecido como sentia necessário. De forma semelhante, a obsessão pelo reencontro com o irmão e a vingança final alimenta Electra ao longo de todo o filme, não como o empuxe transcendental divino, e sim como dever filial e como rancor pessoal [“Tanto o ódio quanto a violência fazem com que seus agentes atuem movidos pela emoção e, por vezes, busquem realizar a vingança com suas próprias mãos. Para Aristóteles, o tempo pode amenizar e até curar a raiva, porém, o ódio é um sentimento incurável e tem por princípio prejudicar, vingar e destruir o oponente”. CÂNDIDO, 2009, p. 205.], especialmente em direção a Egisto, misturado com o desamparo de odiar/amar a própria mãe – o ódio floresce na ausência materna, mas no encontro final (e principalmente após o crime), o amor transparece claramente e alimenta a culpa, aumentando ainda mais o conflito interno vivido pela personagem.* *É mister citar, ainda que brevemente, a discussão que Manfredo Araújo de Oliveira (1995, p. 107) empreende sobre o sentido do ser humano: “O homem se distingue de tudo mais por uma fundamental abertura, seu ser ainda não está aí, a plenitude de seu existir não está assegurada, ele é fundamentalmente ‘intencionalidade’, ou seja,

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orientação para uma realização para qual ele está a caminho, mas que, em princípio, pode não vir. O homem é, assim, risco: um ser a caminho de si mesmo (...) um ser que tem que conquistar seu ser”. Electra possui essa abertura, por mais que esteja aguilhoada pelo destino; o seu final não é inevitável, mas escolhido: ela optou pelo horror final do matricídio. Nessa perspectiva, o final proposto por Eurípides não poderia existir no filme, pois os autores trilharam caminhos diversos na construção de suas narrativas. Após a morte de Clitemnestra, Electra remói a culpa mortal do matricídio, mas solitária do que nunca, pois o homem que a acolhera e as mulheres que a cercaram e protegeram ao longo da exibição agora a rejeitam, sem tolerar o crime horrível que cometera. Quanto a Orestes, vaga perdido pelas montanhas, e seu paradeiro nos é desconhecido – apenas o olhar vazio de sua irmã parece segui-lo, mas ambos desaparecem em fade out, antes mesmo do fim da projeção [“En sus rostros vemos miedo, vergüenza, incertidumbre y una tristeza infinita, como si alguien les hubiera arrebatado el alma. No hay por tanto justificación posible para su acto de venganza”. GARCÍA, s/d.]. Esta solidão final dos irmãos é significativa, pois como ensina Neyde Theml, (...) o cidadão [ateniense] convivia com um conjunto de regras não-escritas, reconhecidas por todos, ligadas à tradição, à moral e à religião. Essas regras de conduta estabeleciam uma relação social de honra, cuja sanção se materializava na vergonha e na exclusão social. Honra (timé) e vergonha (aidós/ aischós) regulavam, de certa forma, o comportamento coletivo (...) definiam o que era bem social, fortalecendo os compromissos coletivos e a pertença à mesma sociedade. (...) A tradição expressava uma série de valores, de hábitos, de normas morais e religiosas que se ligavam diretamente à consciência do homem, o qual controlava seu comportamento e se autopunia pelo receio do constrangimento do seu grupo, por medo da perda do seu status ou do seu lugar na sociedade, ou mesmo, da sua morte social. Essas normas referiam-se à organização das relações quotidianas e aos valores da sociedade, tais como, por exemplo: o respeito e

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proteção aos pais; sepultar os mortos; permitir o inimigo proceder os seus ritos funerários; ser moderado em suas ações, ou seja, ter o controle de si (sophrosýne) (...) Quaisquer atos contrários a esses princípios eram considerados crimes (adikéo significa: ser injusto, não ter razão, prejudicar, molestar) e, neste sentido, era uma violência, à medida que produzia um dato novo que modificava a rotina da sociedade. [Theml, 2009, p.176-77] Num momento como este percebemos como o filme é um espaço notável da análise histórica: o autor de Electra, a vingadora não seguiu à risca as palavras de Eurípides – e nem pretendeu fazê-lo; todavia, ao arranjar o roteiro adaptado às interpretações dos atores, ao cenário grego, à música, etc., construiu uma metáfora visual extremamente válida para a compreensão da Antiguidade e de sua recepção no mundo contemporâneo.

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Os valores sociais presentes na citação estão presentes no filme: vingar o pai, mais do que um direito, era um dever dos irmãos, e ambos se agarraram a ele ao longo da vida; na primeira oportunidade, Orestes mata em duelo o assassino Egisto, e o ato é recebido com festa, tamanha que pode ser ouvida através dos vales, e tochas acesas tornam em dia a noite – a honra familiar estava limpa. Situação diametralmente oposta ocorre quando da morte de Clitemnestra: sua chegada é seguida pelos olhares apreensivos do camponês e do coro de mulheres, pois todos sabem o que vai ocorrer, mas expressam pelo seu semblante o desejo íntimo de que algo impeça o matricídio. Os próprios irmãos percebem o diante, presente tanto na peça quanto no filme: Electra: Certamente sente lástima por ela, agora que a viu. Orestes: é horrível! Como posso matar a quem me deu a vida? Electra: como ela matou nosso pai. Electra: nossa mãe está por chegar em sua magnífica arrogância. Orestes: o deus se equivocou no oráculo! Electra: se os deuses se equivocam então ninguém mais tem razão! Orestes: devo eu matar a minha mãe e me manchar com o seu sangue? Electra: se não vingar o crime contra o nosso pai, terá a

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maldição eterna. Orestes: talvez fosse um demônio falando! Electra: um demônio no santuário divino? Não, irmão meu. Orestes: nossos destinos estão malditos. Qual o maior direito: vingar o pai ou preservar a vida da mãe? Como escolher entre duas normas tão arraigadas? Kakogiannis leva o espectador para dentro da cabana, onde um relutante Orestes e uma (aparentemente) decidida Electra duelam suas dúvidas e certezas; coube ao homem a mão armada, e à mulher a artimanha, e pouco antes de entrar no cenário de sua morte iminente, Clitemnestra é avisada pela filha já arrependida: cuidado para não sujar seu manto na fuligem da cabana. A audiência sabe, tanto quanto o povo, que o homicídio é inevitável, mas torce até o último momento por uma redenção que não chega, e diante do fato consumado, o coro de mulheres vestidas de negro entra em pânico e se contorce, e não mais oferece a Electra o conforto de seu apoio. Ela e o irmão estão sós, criminosos, e como tais não merecem acolhimento. O final contundente do filme, como bem colocou Alejandro Valverde García, permite ao mesmo efeito de catarse que Eurípides havia alcançado, numa forma artística diversa, com intensidade igual ou até mesmo maior. Kakogiannis, com seu texto preciso e direção apurada, logrou algo maior do que a simples filmagem de uma antiga peça de teatro: ele foi um tragediógrafo moderno, que bebeu na fonte de Eurípides com respeito e perspicácia, e fez da obra dele, sua, incorporando as angústias e preocupações do seu próprio tempo sem mutilar o material recebido. Assistir ‘Electra, a vingadora’ é observar a natureza agreste do campo grego, dos vales breves e das montanhas pedregosas; é encontrar ecos de humanidade que viajam da Hélade antiga ao século XX, necessitando apenas de bons tradutores. BIBLIOGRAFIA Fonte Primária: EURÍPIDES. Electra. In SÓFOCLES; Eurípides. Electra(s): tradução Trajano Vieira. São Paulo: Ateliê, 2009. Fontes Secundárias: BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica.In LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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A REFLEXÃO DIDÁTICA NO ENSINO SUPERIOR – A EXPERIÊNCIA DE PRÁTICA DE HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL NA UEPG Luis Fernando Cerri UEPG Os historiadores estudam, discutem e escrevem história. Ao fazê-lo, uma série de operações está posta, e normalmente não são autoconscientes. É preciso parar e pensar sobre essas operações que subjazem à historiografia para que possam ser definidas e submetidas a exame. Mesmo o historiador mais entusiasta de uma postura científica a posteriori, mesmo aquele que rechaça completamente o fazer do saber história como ato de razão e ciência, traz consigo uma concepção teórica que se reproduz e modifica-se ao longo da experiência da historiografia. A teoria da história é pressuposto e consequência da historiografia, e nesse trânsito de um a outro polo, pode gastar-se, agregar, crescer, transformar-se. A teoria pode estar subjacente e até mesmo não ser reconhecida como tal – quando o historiador identifica os fatos e documentos à própria história, que resta apenas escrever, por exemplo – mas também pode ser reconhecida e considerada, e neste caso estamos diante da reflexão teórica relativa ao fazer historiográfico. Isso é comumente reconhecido na comunidade dos historiadores. Menos conhecido ou reconhecido é o elemento didático. Tanto as facetas teórica e didática do trabalho do historiador já foram elididas por vertentes da historiografia que procuraram colar seu trabalho à ciência em suas concepções mais tradicionalmente modernas, ou seja, ganhar um espaço na constelação das ciências reconhecidas dentro do paradigma moderno, cartesiano, newtoniano e/ou metódico. Nesse paradigma, a teoria não merecia espaço por aproximar-se demasiadamente da atividade especulativa da filosofia, por distrair ou desfocar o nexo central da cientificidade da historiografia, que era o seu método, e por recolocar uma questão vencida, a da verdade histórica e das condições de sua produção e enunciação. Também a didática não deveria merecer espaço, pois aproximava perigosamente a atividade do historiador de gabinete, isolado do vulgo e da voragem do contemporâneo e suas paixões, da atividade do professor, envolvida com demandas ideológicas e educativas imediatas, e com a lida a puerilidade dos seus interlocutores. A teoria há várias décadas já passa pelo porteiro dos salões da cultura histórica acadêmica sem deter-se, é recebida com um aceno afável e

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chamada pelo nome. A didática por vezes é barrada na porta. Quando entra, é após longo e detido exame do porteiro, olhada de alto a baixo, e não poucas vezes se pede que ela sacuda o pó de giz e limpe os pés sujos de barro, e ainda que se comporte ao entrar no sagrado recinto, e de preferência que use outro nome. Lá dentro, entretanto, tem encontrado progressivamente mais amigos entre os convivas, que reprovam as humilhações que o clube ainda a faz passar até que seja reconhecida.

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Tanto a reflexão teórica quanto a reflexão didática são, portanto, inerentes à historiografia. Nesse texto, destacaremos a segunda. Para Klaus Bergmann (1990), a reflexão didática na história se caracteriza pelo objeto (referido ao ensino e à aprendizagem), pela preocupação com os conteúdos de ensino enquanto tema de análise e por investigar seu objeto do ponto de vista da prática da vida real. Esse movimento reflexivo essencial é o âmago da disciplina da didática da história, que é uma das frentes da teoria da história que investiga o que é, o que poderia e o que deve ser transmitido no que se refere à história, do ponto de vista da ciência (BERGMANN, 1990, p. 29). Ao pensar em ensino e aprendizagem, Bergmann não se restringe às paredes da sala de aula ou aos muros da escola, mas pensa em ensino e aprendizagem como todas as situações em que o conhecimento histórico é produzido, transmitido e assimilado. Como a teoria da história, portanto, a reflexão didática é inerente ao trabalho do historiador, e pode ou não ser consciente, e receber a devida atenção. Não há profissional de história sem reflexão didática, o que há é profissional inconsciente de suas concepções nesse campo, e geralmente, nesse caso, as concepções são bastante tradicionais e superadas. O padrão dessa perspectiva obsoleta é o esquema biunívoco em que, na divisão social de tarefas, o historiador/ academia produz o conhecimento que o professor/ escola transmitirá, e a comunicação se da por um canal (deferente) de simplificação e adaptação da linguagem. Esse esquema não encontra nenhuma correspondência empírica na pesquisa educacional contemporânea, e ainda menos nos estudos atuais de historiadores sobre o ensino da história. A escola não é ensino, a sala de aula não funciona assim, os professores e estudantes imaginados assim não existem, entretanto essa representação segue firme numa expressiva parcela da academia e do próprio sistema educacional. O profissional de história envolvido nessa representação concebe que a reflexão e a ação didática são delegadas a um profissional específico;

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assim, historiador historia e professor professa, o primeiro isolado das lides de comunicar-se com os não especialistas, e o segundo isolado das lides de perscrutar documentos e bibliografia técnica em busca da compreensão do real. O primeiro, aqui, fornece o sentido, enquanto o segundo fornece a comunicação. Ao invés, a comunicação da pesquisa acompanha o historiador em todo o seu trabalho. O que acontece é que o partidário (geralmente silencioso) dessa concepção tem como dialogante prévio, estimado, imaginado, carregado consigo em seu trabalho cotidiano, no arquivo, no gabinete ou nas reuniões, geralmente é um arquétipo apenas dos companheiros de corporação, partícipes de suas referências e jargão. O esquema descrito acima é confortável e conveniente, mas ilusório. Em termos de proficiência do historiador, é relevante ter consciência dos parâmetros da própria reflexão didática, dada a dimensão comunicativa que está posta no seu trabalho. A pesquisa é feita para ser comunicada. Ela tem destinatários mesmo antes de ser executada, que aparecem como potenciais dialogantes, e o historiador, em seu trabalho, prepara-se para comunicar com os destinatários que conhece ou que imagina, nas palestras, entrevistas, publicações, que são (ou deveriam ser) ambientes naturais para o historiador. Mas também é relevante a autoconsciência dos próprios padrões de reflexão didática porque a ampla maioria dos profissionais de história alberga-se no ensino, básico ou superior, em que exerce a docência, como condição contratual e trabalhista para que também pesquise, financiado pela sociedade, diretamente ou através do poder público. Se os profissionais da história forem conscientes da reflexão didática, tem mais chances de ser atentos à própria prática pedagógica e comunicativa em geral. É nesse ponto que deveremos nos deter sobre o aspecto propedêutico da reflexão didática, situando-a na formação profissional. Os cursos de formação de professores de história, as licenciaturas, são a ampla maioria dos cursos de história no Brasil, e neles existem diversos modelos de inserção da reflexão didática (por sua vez também concebida diferentemente conforme o caso). Defendemos, em trabalhos anteriores (FERREIRA; CERRI, 2012 e CERRI; FERREIRA, 2012) que o componente da reflexão didática deve estar disseminado por todas as disciplinas e eixos curriculares nos cursos de licenciatura, mas também precisa ter um lugar estabelecido nos cursos de bacharelado em história (CERRI, 2008). Variados modelos e propostas são verificados nos currículos

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universitários de história no Brasil, sobretudo a partir de 2001, em que a legislação pertinente impulsionou o eixo da prática como componente curricular.

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Elementos da reflexão didática com exemplos da história antiga e medieval O modelo de currículo da licenciatura em história da UEPG procura mesclar a existência de um eixo de disciplinas dedicadas à reflexão e ao exercício didático (prática de ensino e estágio supervisionado) com a disseminação de tarefas de reflexão didática por todo o currículo. Diante das avaliações que foram desenvolvidas ao longo da caminhada de implantação dessa proposta (ver FERREIRA; CERRI, 2012), surgiu a proposta de aproximar os conteúdos curriculares específicos da tarefa de reflexão didática, e assim surgiram disciplinas, para além das atividades gerais em prática de ensino (Oficinas de História I a III) e estágio (Estágio Supervisionado em História I e III), as Práticas de História Antiga e Medieval, Prática de História Moderna e Contemporânea e Prática de História do Brasil. A disciplina de Prática de História Antiga e Medieval teve seu primeiro programa e execução sob responsabilidade do autor, ao longo de 2013, e novamente em 2014. A disciplina é destinada aos estudantes da segunda série (terceiro e quarto semestres) da licenciatura em história da UEPG. Na sequência, procuraremos detalhar alguns elementos, formas e conteúdos que a reflexão didática pode assumir, a partir das experiências desenvolvidas na formação de novos profissionais em história. A didática da história é reivindicada como uma disciplina da teoria da história por Klaus Bergmann, mencionado acima. Esse postulado é corroborado quando se defende que a reflexão didática, trabalho da didática da história, é uma reflexão sobre a natureza do conhecimento em tela, sobre seu surgimento e suas condições de validade. Nesse sentido, a didática da história perfaz um esforço epistemológico distinto, que em vez de dirigir-se à ciência, dedica-se às condições de produção, disseminação e assimilação dos enunciados fora dos espaços acadêmicos, na plena luz da vida prática, atenta ao fenômeno humano da aprendizagem e do ensino, ou seja, o fenômeno didático (vide CHEVALLARD, 2009). Não é incomum encontrar conteúdos escolares que tenham sido motivados e sistematizados primeiramente entre não especialistas, em vez dos eruditos. Nesse sentido, a reflexão didática da história percorre os

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caminhos da história da educação, mais especificamente a história das disciplinas escolares (CHERVEL, 1990), articulada com os caminhos da história da ciência, no nosso caso, a análise historiográfica. Cumpre destacar que, neste sentido que buscamos, a história da disciplina está em sua maior parte por fazer-se, já que o foco específico da constituição e da tradição seletiva dos conteúdos não tem sido privilegiado nas pesquisas atuais. Esses debates tornam propício que o profissional em formação reflita, por exemplo, sobre o que oportunizou o surgimento da disciplina de história, acadêmica e escolar. Parte das respostas, poderá encontrar em “A oficina de História”, de François Furet (s.d.), que identifica a aproximação das tradições filosófica e antiquaria, confluindo para a constituição de um objeto e, a partir daí, a possibilidade de seu estudo e ensino. Mais especificamente, discutir-se-á de onde vem o nosso interesse por história antiga, como ela aparece como tema relevante para a escola. Acompanhando a ascendência cultural francesa sobre o Brasil imperial, Circe Bittencourt fornece importantes pistas de como os conteúdos da antiguidade se tornaram relevantes desde o momento em que a história sagrada rivalizava com a história profana (BITTENCOURT, 1992/1993). Pode-se discutir como a história antiga interessava aos conservadores brasileiros de então, por suas referências bíblicas e pelo ensino católico (oficial) da história sagrada, e ao mesmo tempo aos liberais, por meio de seu discurso classicista de negação da idade média, por exemplo. Os trabalhos da disciplina conduzem a problematizar também, por exemplo, como surge, se expande e por fim se estabelece como área de ensino e pesquisa o interesse pelo Egito antigo. Isso implica discutir o próprio o contexto do século XIX, com expansão imperialista europeia para o norte da África, a famosa campanha de Napoleão no Egito, as narrativas dos achados arqueológicos decisivos de Champollion e a egitomania de princípios do século XX, no embalo da descoberta da tumba de Tutancâmon por Howard Carter. A crítica aos usos sociais conservadores da história antiga também estão presentes (FUNARI, 1998, 2008). Em sentido parecido, acompanhamos o debate pedagógico sobre a representação da Idade Média como idade das trevas, superada na historiografia, mas persistente no ensino (OLIVEIRA, 2010; SILVA, 2011). Todos esses percursos formativos acima visam desnaturalizar o conteúdo histórico escolar. Se o conteúdo não for desnaturalizado

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para o futuro professor (quais os sujeitos, grupos, contextos, condições de produção do conhecimento, etc., explicam a transformação de um determinado conhecimento histórico em conteúdo escolar), jamais o será com o seu futuro aluno, e enquanto isso não ocorrer, ele estará perdido para um efetivo repensar dos conteúdos históricos escolares a partir de uma profunda análise coletiva, de especialistas e não especialistas interessados na educação pública, das demandas atuais sobre o conhecimento. Tenderá a continuar pensando que a educação pública deve servir ao conhecimento histórico primeiro para depois servir a si mesma, e não o contrário. A legitimidade da história ensinada é primeiro social, para depois ser científica.

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A reflexão didática é ainda uma reflexão sobre os temas e conteúdos da disciplina de história no universo cultural que o aluno partilha e participa: livros, discussões em blogs e redes sociais, cinema, jogos de computador (cada vez mais se configurando como filmes interativos). Debruçar-se sobre esses elementos é uma dupla vantagem para o professor: permite a vislumbrar quais são os pressupostos com os quais se defrontará na sala de aula. Permite ainda, desde a clareza de que o aluno não é um recipiente vazio, reconhecer a urgência de identificar o que já há no estudante, o que ele já traz, sob pena de, não sendo miscível ou reagente com o que já lá está, transbordar e ser descartado. A reflexão didática na história também se configura como uma reflexão sobre as correlações entre os avanços da disciplina de história, nas temáticas específicas em foco, e sua relação com as perspectivas do ensino, expressas nas dimensões da escola: o currículo, o material didático, a prática de ensino. Esse trabalho deve superar a visão simplista que enxerga “currículos atrasados” ou “atualizados” e dotar o profissional, a um tempo, de respeito e de disposição para agir sobre a complexidade do fenômeno educativo em história. Por fim refletir didaticamente exige o esforço para conhecer, discutir e pensar a situação atual do efetivo ensino de história nas escolas: o que os professores ensinam e o que os alunos aprendem, e quais os meios para que isso seja verificado. Análises dos resultados dos vestibulares e do ENEM, por exemplo, são um conteúdo/ uma atividade que não deveria faltar nos cursos de história. Apenas com um diagnóstico atualizado desses elementos se constituem propostas relevantes de melhoria educacional.

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Últimas palavras A reflexão didática desmistifica o currículo escolar de história, abrindo amplas avenidas para a sua crítica e revisão. O profissional de história assume papéis, então, de assessoria à sociedade, em busca de melhores configurações para o ensino da história na educação, concebida como tarefa social e regulada no espaço público. Ao contextualizar tanto o currículo quanto o mundo da vida prática em que os conteúdos e conceitos são e serão colocados em ação, possibilita pensar o ensino como prática dialógica, e antecipar as estratégias e objetivos desse diálogo. Sem reflexão didática, o profissional de história resume-se a um passageiro da transposição didática, cujas dinâmicas ignora. REFERÊNCIAS BERGMANN, K. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 19, p. 29 - 42, fev. 1990. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história profana. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 13, n. 25/26, p. 193-221, set.92 / ago.93. CERRI, Luis Fernando; FERREIRA, Angela Ribeiro. A formação do profissional de história na Universidade Estadual de Ponta Grossa. In: MOLINA, Ana Heloísa et. al. (orgs.). Ensino de história e educação: olhares em convergência. 1ed. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2012, v. II, p. 155-176. CERRI, Luis Fernando. Os historiadores precisam de formação pedagógica? Algumas reflexões a partir da Didática da História. In: TRAVERSINI, Clarice; EGGERT, Edla; BONIN, Iara. (orgs.). Trajetórias e processos de ensinar e aprender: lugares, memórias e culturas - Livro 2. 1. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008, p. 342-358. CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Porto Alegre, Teoria & Educação, v. 2, p. 177-229, 1990. CHEVALLARD, Yves. La transposición didáctica. Del saber sabio al saber enseñado.Trad. Glaucia Gilman. Buenos Aires: Aique, 2009. FERREIRA, Angela Ribeiro; CERRI, Luis Fernando. A prática de ensino como elemento articulador na formação de professores: a experiência da Oficina de História. In: GOES, Graciete Tozetto; CHAMMA, Olinda Thomé. (Org.). Arquitetura da Prática:

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FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA NO BRASIL: EMBATES E DILACERAMENTOS EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO Maria Auxiliadora M.S.Schmidt UFPR Pois o historiador que pesquisa, é um não-professor? E o professor que ensina, é um não historiador? As indagações que dão origem a esse texto têm constituído parte de minha trajetória como historiadora, professora e pesquisadora. Desde os percursos cotidianos na escola básica e na Universidade e nessa última, em face das múltiplas indagações de colegas historiadores sobre se eu havia desistido de ser historiadora, quando, ao mudar do Departamento de História para o da Educação, passei a me dedicar, exclusivamente, às temáticas do ensino de História. Já como professora universitária, em 1996, durante o 2º. Encontro Perspectivas do Ensino de História, realizado na USP, participei de uma mesa redonda onde levantei algumas questões sobre o trabalho do professor. Essa apresentação foi publicada com o título A formação do professor de história e o cotidiano da sala de aula (BITTENCOURT, 1998). Nesse texto estão registradas ressonâncias dos dilaceramentos e embates das discussões que, à época, se faziam sobre a formação do historiador professor e que envolvem experiências relacionadas à sua profissão, ao mesmo tempo que se anuncia um horizonte de expectativas, quando é assumido o pressuposto de que ciente do conhecimento que possui, o professor de história pode oferecer a seu aluno a apropriação do conhecimento histórico existente, por meio de um esforço e de uma atividade com a qual ele retome a atividade que edificou esse conhecimento. É também o espaço em que um embate é travado diante do próprio saber: de um lado, a necessidade do professor ser o produtor do saber, de ser partícipe da produção do conhecimento histórico, de contribuir pessoalmente. De outro lado, a opção de tornar-se apenas um eco do que os outros já disseram. (SCHMIDT, 1998, 57). Em síntese, requeria-se à formação do historiador professor, um sólido conteúdo científico, um consistente preparo de pesquisador, teórico e prático, envolvendo o compromisso político de transformá-lo significativamente na relação com a práxis, não com a prática em si mesma, mas com o mundo real, concreto e histórico de si mesmo e dos seus alunos.

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No entanto, faltava a essa reflexão, tomá-la na objetividade da própria história. Ou seja, a pergunta ausente foi – por que a construção dessas tensões e dilaceramentos ressoava na experiência e na formação do historiador professor? Uma década e meia após, arriscaria algumas hipóteses e uma pequena tese. As hipóteses poderiam iniciar-se com: a - Os dilaceramentos existentes na formação do historiador/professor são produtos históricos da divisão do trabalho existente na sociedade capitalista e que redundam na existência daquelas que produzem e daqueles que transmitem a própria ciência. Como decorrência, historicamente, a produção do conhecimento histórico tornou-se privilégio de determinados sujeitos e espaços, como a academia, promovendo a dicotomia ensino e pesquisa. Assim, torna-se imperativo entender a forma concreta e não abstrata pela qual a formação do professor, centrada na profissionalização se apresenta. Isso pressupõe ir “além do capital” (MESZÀROS,2007), num movimento de contraposição crítica à natureza dessa profissionalização, fundamentada na epistemologia da prática e não da práxis, que delega ao historiador a função de pesquisador e produtor do conhecimento histórico e ao professor a de produtor de um tipo diferenciado de conhecimento, pautado na e voltado para a prática. A dicotomia pesquisa e ensino no contexto específico da formação do historiador professor No interior do quadro de referências explicitado pode-se levantar a hipótese da existência de um processo de descolamento no interior da dimensão cognitiva da cultura histórica, devido ao processo de especialização da História como ciência, provocando a separação entre quem pesquisa – os historiadores; e quem ensina – os outros. Segundo Rüsen (2010), a consolidação da História como ciência excluiu a Didática da História do centro da reflexão do historiador sobre sua própria profissão, sendo substituída pela metodologia da pesquisa histórica, provocando uma separação entre o ensino da História e a sua pesquisa. Durante o processo de ‘cientifização’ da História o ensino passou a ser visto como atividade de menor valor, secundária, de mera reprodução do saber acadêmico, com objetivo de cumprir as finalidades pressupostas nos processos e formas de escolarização de cada sociedade. Ao ato de ensinar História e ao produto de tal ato não se atribuía o status de ciência pois, enquanto o conhecimento científico era produzido exclusivamente pelos profissionais da História, a tarefa da didática da História era

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transmitir este conhecimento sem participar da criação do discurso (RÜSEN, 2010: 27). Essa separação acabou deixando um vazio para o conhecimento histórico acadêmico, o vazio de sua função, pois a partir do século dezenove, quando os historiadores constituíram sua disciplina, eles começaram a perder de vista um princípio importante, qual seja, que aquela História precisa estar conectada à necessidade social de orientação da vida dentro da estrutura temporal (RÜSEN, 2010: 31). Justificava-se a existência do conhecimento histórico erudito para que esse servisse como base para o ensino, todavia não se justificava o ensino da História, porque sua função para a vida prática havia se perdido. Essa desconexão da disciplina História de um sentido prático, se por um lado ofereceulhe o status de disciplina erudita, por outro, gerou o vazio da função do ensino de História na escola. Tal ponto de vista chegou ao ápice em meados do século XX, momento em que a História formal não se direcionou diretamente a essência do conhecimento histórico escolar. Os historiadores consideraram que sua disciplina podia ser legitimada pela mera existência e comparou-se os estudos históricos e sua produção de conhecimento a uma árvore que produz suas folhas. ‘A árvore vive contanto que tenha folhas e é seu destino viver e ter folhas’. Recusou-se a dar para História qualquer uso prático ou real função nas áreas culturais onde a História pode servir como um meio para fornecer explicitamente uma identidade coletiva e para uma orientação para vida” (RÜSEN, 2010:34). Gradativamente, a separação entre a Didática da História e a História acadêmica foi contribuindo para a formação de um “código disciplinar” próprio da História (FERNANDEZ, 1998), o que empurrou as questões do ensino e aprendizagem da História para o âmbito da cultura escolar. A partir desse reajustamento a dimensão cognitiva da história passou a se articular com a dimensão política da cultura histórica. Nesse processo, as questões relacionadas à aprendizagem histórica e, portanto, ao seu ensino, saíram da pauta dos historiadores e entraram, prioritariamente, na pauta das teorias e políticas educacionais e, portanto, das formas e funções da escolarização. Em decorrência, o elemento político da cultura histórica passa a ser orientado pelas finalidades das políticas educacionais e, portanto, crivado essencialmente pelos interesses e determinações das relações de poder hegemônicos. Com relação ao significado da função do historiador professor, a divisão do trabalho já se encontra explicitada desde os primeiros

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documentos oficiais relacionados à sua formação, como se observa no Parecer 292, de 14 de dezembro de 1962, conhecido também como Parecer Valnir Chagas (nome do seu relator). Nesse documento, aparece a separação entre as disciplinas de conteúdo específico e as disciplinas pedagógicas destinadas à formação do professor. Foi atribuído um cunho notadamente instrumental às disciplinas pedagógicas e a natureza do ensino foi pensada como uma tarefa de aplicação dos conteúdos específicos, para a qual o futuro professor deveria ser treinado, por meio da prática de ensino e do estágio A Prática de Ensino deve ser feita nas próprias escolas da comunidade, sob a forma de estágios, como “internatos” dos cursos de Medicina. Só assim poderão os futuros mestres realmente aplicar os conhecimentos adquiridos, dentro das possibilidades e limitações de uma escola real, e ter vivência do ato docente (BRASIL, 1962, apud URBAN, 2009:.54).

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Segundo Urban (2009) os aspectos mais ressaltados nesse Parecer são: a preocupação com um ensino focado no aluno, perspectiva muito presente na teoria pedagógica do período, que tem como referência o ideário escolanovista; o grande valor atribuído à Didática, pensada em termos de métodos e práticas de ensino, Nesse sentido, aluno e método são as palavras chave que nortearam essa legislação pertinente à formação do professor, em que a prática de ensino, aliada à Didática e somada à Psicologia, constituíram um tripé fundamental (...) (URBAN, 2009:54-55). Em 1986, portanto, praticamente 25 anos após a implantação do Parecer Valnir Chagas, a Secretaria de Ensino Superior – SESUMEC solicitou a um grupo de historiadores que fizesse um diagnóstico dos cursos de história no Brasil. O relatório destaca, com ênfase, a importância da prática de ensino se localizar nos Departamentos de História. Constatada a dicotomia entre a formação do historiador professor e o historiador pesquisador, os autores sugerem, como solução 1. Não é suficiente que a prática de ensino seja lecionada por professores com licenciatura em História; é preciso uma presença real e permanente do Departamento nessa matéria;

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2. Há necessidade de maior entrosamento entre os Departamentos de História e os Departamentos ou Faculdades de Educação (debates, encontros, seminários, presença recíproca de docentes nos Departamentos), pois há um longo caminho a percorrer ainda em função do conflito entre as concepções de História vigentes entre os historiadores e os pedagogos.(MEC/SESu, 1986, Apud Urban,2009:.57). Nesses documentos se observa a manutenção da divisão do trabalho que foi instituída no e pelo processo histórico de constituição da História como conhecimento científico, no contexto da expansão da escolarização nas sociedades capitalistas ocidentais. Sendo lacunar a esse respeito, principalmente no documento diagnóstico, se observa uma saída pragmática, com a assunção das disciplinas relativas ao ensino pelos próprios historiadores nos Departamentos de História. Esse diagnóstico foi um dos documentos que alimentou o Parecer 492/2001, que propôs a reformulação curricular para os cursos de formação de professores no Brasil. É preciso levar em conta que o Parecer 492 faz parte de um conjunto de leis, diretrizes curriculares, programas de governo (como o PNLD) brasileiro onde estão embutidas reformas educacionais iniciadas na década de 1990 e que Tais reformas se articulam com base em interesses comuns, com proposições de Organizações Multilaterais (OM) que se tem destacado na coordenação e formulação de um conjunto de políticas educacionais para o mundo (...) Partilhando interesses burgueses com diversos países, as OM, via diferentes táticcas, estabelecem metas, definem setores prioritários e estratégicos e organizam a execução de sua agenda a médio e longo prazo (OEI, UNESCO, CONSED, BANCO MUNDIAL) (EVANGELISTA/TRICHES, 2013). O documento do Banco Mundial Education Sector Strategy Update (ESSU): achieving Education For All, broadening our perspective, maximizing our effectiveness, publicado em 2006, atualiza as orientações e prognósticos para a relação educação e desenvolvimento nos países emergentes, particularmente como fator de redução da pobreza, já publicizados por esse Banco, em 1990. Além de defender uma política de resultados e a cultura da

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avaliação, um dos problemas apontados nos estudos realizados pelas OM (Organizações Multilaterais) foi o do déficit de professores. Assim, uma das metas estabelecidas para 2015 foi a de atrair mais professores e formá-los a baixo custo, isto é, profissionalizar o professor. Nesse mesmo contexto, e conforme o trabalho publicado com o título “Agenda Globalmente Estruturada para a Educação” de Roger Dale (2004) a categoria da profissionalização foi eleita como um dos pilares das reformas educacionais e ganhou muitos adeptos. Segundo Shiroma e Evangelista (2011), acolhia reivindicações relacionadas, não só à formação profissional baseada no desenvolvimento de competências para exercer um ofício, auferidas por instituições credenciadas e de ensino superior, como também aquelas relacionadas à carreira, salários e formação de conselhos que confeririam o direito ao exercício profissional. A perspectiva da profissionalização está presente na LDB 9394/96, quando cria a denominação “profissionais da educação” e orientou diretrizes e reformas educacionais a partir da década de 1990. Os reformadores

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Os reformadores insistiam na necessidade de adequar o currículo e o professor à realidade, alegando-se o anacronismo de ambos, destacando a sua inadequação às exigências do mundo moderno, às demandas de novas habilidades e competências demandas pelo mercado de trabalho. Desqualificavam os cursos universitários de formação docente, apontados como longos, essencialmente teóricos e pouco flexíveis. (SHIROMA / EVANGELISTA, 2011:130). Na perspectiva apontada por Dale (2004), no contexto da globalização que hipervaloriza os dispositivos articulados à manutenção do sistema capitalista, em detrimento de outras possibilidades e princípios, não é descartada a construção do consenso, em nome da governabilidade e a política educacional é transvestida como solução para a democratização dos bens culturais, ao acesso ao conhecimento e à informação e isso demanda a reconversão profissional do professor – de um professor tradicional, para inovador; de acomodado, para criativo; de desmotivado, para aprendiz contínuo, de teórico para competente na prática.

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A profissionalização centrada na competência prática encontra-se explicitamente demarcada no Parecer 492/2001, com a expansão do número de horas exigidas para a formação prática do historiador professor, provocando interrogações e contestações em alguns membros da academia. Na mesma perspectiva da centralidade na profissionalização pela prática, estão os Referenciais Curriculares Nacionais dos Cursos de Licenciatura e Bacharelado, divulgados pela SESu/MEC em abril de 2010. De início, em sua Introdução, o documento (BRASIL, 2010), propõe uma relação orgânica entre a educação da população brasileira e o desenvolvimento tecnológico do país A elevação da escolaridade, para qualquer país contemporâneo, representa elevação dos padrões sociais, pela consolidação cultural, melhoria da qualidade de vida, inclusão social e maior liberdade de construção dos destinos de cada cidadão. No Brasil isto não é diferente. À medida que a elevação da escolaridade se consolida, todos os indicadores sociais se elevam. O ensino superior, por seu turno, tem duplo papel no desenvolvimento social: além da construção da cidadania pela formação de profissionais bem qualificados, para os desafios da crescente complexidade tecnológica presente em todas as áreas da atividade humana, deve também buscar soluções inovadoras. (BRASIL, SESu/MEC, 2010). Tendo em vista o contexto em que foi proposta, bem como os princípios da profissionalização nelas inerentes, a dicotomização bacharelado e licenciatura é assumida como proposta oficial, sendo que a licenciatura pode ser reduzida à uma formação de 3 anos (o bacharelado é 4). À moda do historiador, podem ser construídas perguntas a essas diretrizes, no sentido de se procurar entender, informar, descrever, seja que objetivo for proposto,no que tange à questões como: que historiador se pretende formar? Para que? Qual ou quais os compromissos do historiador bacharel e/ou licenciado? Para essas perguntas não há respostas, a não ser aquelas de ordem instrumento do tipo – o bacharel serve para atuar em... o licenciado serve para atuar em....Assim, não se consegue nem deduzir qual é a concepção de “historiador pesquisador” e que “historiador professor” e para que sociedade, com que finalidades ele é formado. No entanto,

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parecem estar explícitas concepções de “historiador pesquisador e historiador professor” bem diferenciadas. Para um, uma formação num tempo maior, com mais conteúdos específicos da ciência; para outro, uma formação num tempo menor, apesar de com mais horas e com uma diversificação de disciplinas de cunho instrumental, mostrando, como afirmam Evangelista e Shiroma (2007) uma restrição nos conteúdos da formação docente, centrados numa perspectiva de saber instrumental, e um alargamento das funções docentes (...) Manifesta-se a preocupação com a eficiência e eficácia do trabalho docente, inseridas numa lógica racionalizadora, técnica, pragmática. (2007, p.536). Essa perspectiva instrumental, baseada na lógica racionalizadora, técnica e pragmática tem imposto a primazia da docência como ação em detrimento do professor como sujeito. (EVANGELISTA / SHIROMA, 2007). É nessa lógica que a prática encontra seu lugar e conquista a adesão, pelo consenso, por meio de propostas curriculares, projetos de avaliação e de cursos de formação de professores de História ou, como afirmam, ainda, Evangelista e Shiroma As providências concretas para o exercício do controle político-ideológico sobre o magistério envolvem sua formação e sua atuação profissional. Ou seja, a reforma dos anos 1990, e seu prosseguimento no novo século, atingiu todas as esferas da docência: currículo, livro didático, formação inicial e contínua, carreira, certificação, lócus de formação, uso das tecnologias da informação e comunicação, avaliação e gestão.(2007: 537). Epistemologia da prática e o lugar do historiador professor: que história é essa? A análise das fontes documentais relacionadas às propostas de orientações das políticas educacionais, no período 1990/2010, tem permitido aferir a presença da ideia de profissionalização com ênfase na prática. Tal perspectiva pode ser antevista em situações específicas que envolvem, inclusive, concepções de aprendizagem que fundamentam as diferentes esferas da cultura escolar, como indicado por Evangelista e Shiroma (2007). Nesse contexto e tendo como norte as considerações apresentadas, realizou-se a análise da Resolução 03/1998, do Conselho Nacional de Educação,que tem fundamentado as diretrizes curriculares, inclusive as de História. Entre outras questões, esse documento, de autoria da conselheira Guiomar Namo de Mello, propõe a

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contextualização como princípio pedagógico que define a maneira de organização e tratamento dos conteúdos curriculares O tratamento contextualizado do conhecimento é o recurso que a escola tem para retirar o aluno da condição de espectador passivo. Se bem trabalhado permite que, ao longo da transposição didática, o conteúdo de ensino provoque aprendizagens significativas que mobilizam o aluno e estabeleçam entre ele e o objeto de conhecimento uma relação de reciprocidade (...) (BRASIL, CNE/CEB, 1998, p.37) A adoção desse princípio, segundo a própria relatora Guiomar Namo de Mello (BRASIL, 1998) deve-se à inadequação histórica dos programas e manuais didáticos, no caso específico, do Ensino Médio, à realidade dos jovens, às suas experiências cotidianas – O contexto que é mais próximo do aluno e mais facilmente explorável para dar significado aos conteúdos da aprendizagem é o da vida pessoal, cotidiano e convivência (BRASIL,CNE/CEB, 1998:40). Opondo-se à ideia de contextualização sugerida no documento, Kuenzer (2000) aponta algumas considerações. Em primeiro lugar, segundo essa autora, o cotidiano não se explica em si, mas através da história que é feita por homens e mulheres reais, que estabelecem relações entre si e com o mundo através do trabalho em sua dimensão de práxis humana; relações que são de exploração ou de solidariedade, de submissão ou de dominação, em face da diferente distribuição dos meios responsáveis pela produção da riqueza e, em consequência, do conhecimento.(p.74). Assim, continua Kuenzer, torna-se necessário precisar de que cotidiano se fala, bem como do significado que terá, em função dos lugares sociais contraditórios ocupados pelos diferentes sujeitos. Em segundo lugar, para Kuenzer Da mesma forma, nem tudo o que precisa ser aprendido pode ser contextualizado, em face do caráter histórico da produção científica. Se tomarmos esse conceito com relação à realidade imediata ou à praticidade, essas formas de conceber a educação a reduziria a uma versão utilitarista. (...) O que e como ensinar de forma contextualizada, portanto, definem-se antes pelas finalidades a atingir do que pelo imediatismo ou pelas necessidades práticas postas por um contexto supostamente neutro. Essas finalidades

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dizem respeito a pessoas concretas que vivem em situações reais que precisam ser compreendidas em si e em suas articulações com a totalidade da vida social. (KUENZER, 2000:74-75). O entendimento relativo ao princípio pedagógico da contextualização como a capacidade do aluno relacionar e/ou aplicar o conhecimento às situações da vida cotidiana, presente no documento orientador dos parâmetros curriculares nacionais para o ensino médio, tem como fundamento, como explicitado pela relatora do documento, a concepção de “aprendizagem situada”. Segundo Lopes (2002),

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O documento oficial afirma explicitamente que esse conceito se fundamenta em David Stein e sua idéia de uma aprendizagem situada (Brasil, 1999, v. 1, p. 141-142), com base na vivência de situações do dia-a-dia, segundo os interesses dos alunos, e no desenvolvimento de atividades desvinculadas da pura transmissão de conceitos. Para Stein (1998), situar uma aprendizagem significa colocar o pensamento e a ação em um lugar específico de significado, envolver os aprendizes, o ambiente e as atividades para produzir significado. Todo conhecimento é construído de forma situada, em determinado contexto, de maneira a ser transferido para situações similares. (p.7). Com relação a esses pressupostos, são elucidadoras as reflexões de Boron (2001) sobreo “artificial pratiquismo”, caracterizado pela presença de um certo entrave antiteórico do saber convencional, potencializado pelas exigências do mercado de trabalho e que premia atitudes pragmáticas e realistas, e castiga o espírito crítico e a inclinação teórica. Ao marco teórico baseado na concepção de aprendizagem situada e no princípio da contextualização, presente na proposta para o Ensino Médio, agrega-se a orientação para o ensino baseado no desenvolvimento de competências. Essa perspectiva foi introduzida no Brasil na década de 1990, por meio da chamada “Pedagogia das Competências” e está bem explicitada nos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio, anunciada por meio de diferentes tipos de competências, como as competências cognitivas complexas (autonomia intelectual, criatividade, solução de problemas, análise e

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prospecção); competências de tipo geral (capacidade de continuar aprendendo) e competências cognitivas básicas (raciocínio abstrato, capacidade de compreensão de situações novas). Destacam-se, também, as competências de caráter geral para a inserção no mundo do trabalho. Ao mesmo tempo, a implantação do ensino por competências, veio acompanhada da imposição da avaliação de resultados, o que acabou por instalar uma lógica burocrática nos sistemas de ensino, voltada para tais aferições e comparações com padrões internacionais. (ALMEIDA, 2009:88). Um dos maiores problemas causados pela adoção da pedagogia das competências, é o fato de que o conhecimento específico deixa de ser referência para a aprendizagem e o ensino, acabando por serem valorizadas determinadas atividades destinadas a desenvolver competências estabelecidas a priori, e elas constituem modalidade de governo político das práticas de ensino, desqualificando as dimensões formativas dos saberes constituídos (ALMEIDA, 2009:97). Na mesma direção, concorda-se com Kuenzer (2002) que são essas dimensões formativas que constituem o centro do processo de escolarização o que a diferencia de outros espaços, como aqueles adstritos ao trabalho profissional e que respondem às demandas de determinadas práticas específicas. Foi isso que a autora constatou em sua pesquisa com trabalhadores de plataformas de petróleo. Nos resultados dessa investigação,Kuenzer apreendeu a importância que estes dão ao desenvolvimento de determinadas competências necessárias ao mundo do trabalho. No entanto, diz a autora A escola é o lugar de aprender a interpretar o mundo para poder transformá-lo, a partir do domínio das categorias do método e de conteúdos que inspirem e que se transformem em práticas de emancipação humana em uma sociedade cada vez mais mediada pelo conhecimento. O lugar de desenvolver competências, que por sua vez mobilizam conhecimentos mas que com eles não se confundem, é a prática social produtiva(...) Cabe às escolas, portanto, desempenharem com qualidade seu papel na criação de situações de aprendizagem que permitam ao aluno desenvolver as capacidades cognitivas, afetivas e psicomotoras relativas ao trabalho intelectual, sempre articulado, mas não reduzido ao mundo do trabalho e das relações sociais (...) Atribuir à escola a função de desenvolver competências é desconhecer sua natureza e

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especificidade enquanto espaço de apropriação do conhecimento socialmente produzido e, portanto, de trabalho intelectual com referência à prática social(...).(KUENZER, 2002:8).

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Configura-se, assim, uma perspectiva pragmática de conhecimento em que o conhecimento individual é reduzido à percepção imediata e a saberes tácitos. Estamos perante uma teoria do conhecimento como fenômeno cotidiano, particular, idiossincrático e não assimilável pela racionalidade científica. (Duarte, 2000, apud Scalcon, 2008) e os documentos que têm fundamentado as propostas de formação do historiador professor, bem como de sua atuação profissional, são indiciários desse “pragmatismo epistemológico” (Scalcon, 2008). Da mesma forma, essa perspectiva tem encontrado guarida em determinados autores, considerados referências para a formação de professores no Brasil. Nessa direção, cabe citar os conceitos de “epistemologia da prática profissional – um conjunto dos saberes realmente utilizados pelos profissionais (professores) em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas. (TARDIF, 2002:225), bem como o de “prática reflexiva” (PERRENOUD, 2002) – segundo o qual os professores, a partir de sua própria prática, são capazes de realizar reflexões e produzir saberes relacionados à sua profissão, indicando a centralidade na aquisição de competências e não de conhecimentos científicos e teóricos que, no afã de sobrevalorizar a experiência cotidiana dos professores em seu espaço de trabalho, as imprecisões e incongruências peculiares a tal epistemologia da prática os tolhe em sua capacidade de capturar as relações funcionais dos fenômenos empíricos.(MORAES, 2004:10). Em artigo publicado no ano de 2007, com o título “Propuestas para el nuevo paradigma educativo de la historia”, o historiador e pesquisador da Universidade de Santiago de Compostela, Carlos Barros anuncia que está se impondo, “a partir de cima”, a formação de um novo paradigma para a formação do professor de História, convergente em vários aspectos e específico a partir de sua adequação em cada país. Para esse autor, esse novo paradigma tem tido uma acolhida explícita em muitos setores acadêmicos latinoamericanos e também implícito de ordem administrativa na Europa, como mostra o polêmico e importante projeto para o Ensino Superior “Tuning Educacional Structures in Europe e a recomendação categórica da União Européia a favor da educação

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por competências. (BARROS, 2007: 3). A consolidação de propostas para formação do historiador professor em mestrados não acadêmicos é uma das tônicas desse projeto, constituindo um braço do chamado Acordo de Bolonha, de 1999. Trata-se de documento produzido pela Confederação Européia das Conferências de Reitores e pela Associação Européia de Universidades que propõe, entre outros, a organização de um sistema educacional que permita a mobilidade de professores e estudantes, como também a empregabilidade, para tanto pressupõe uma organização de cursos superiores compatíveis em todas as universidades (...).(URBAN, 2009:129). Na Espanha e em Portugal, as orientações do Projeto de Bolonha causaram, de forma concreta e explícita, a criação dos mestrados profissionais a partir dos quais os historiadores são gabaritados a atuarem como “docentes” na escola básica. Nesses dois países, esses mestrados apresentam uma base comum e uma base diversificada, para atender às especificidades locais. Considerações Finais Inscrito nas determinações históricas que construíram objetivamente os percursos da História como ciência e os diálogos entre a cultura histórica e a cultura escolar, a unidade necessária entre a teoria e a prática, a ciência e a vida, constitutiva da formação do professor historiador foi sendo desconstruída e rompida, enredada em processos muitas vezes contraditórios aos próprios desígnios da ciência da História. Explicitar os embates e dilaceramentos que habitam a profissão do professor historiador possibilita compreendê-los em seus limites e possibilidades, negatividade e positividade de uma utopia como desassossego que, de um lado evoca uma inquietação, uma irritação com o historicamente dado e determinado; de outro evoca um movimento em direção a um horizonte pleno de vitalidade. Poderia, como afirmou Marc Bloch, terminar essas reflexões dizendo – Caros Amigos – Como sabeis, sou professor de história, o passado constitui a matéria do meu ensino (1998:21). Sim, esse seria uma boa resposta à problematização inicial. Mas, como a história nos mostra, vivemos momentos de manifestações e inquietações e precisamos construir o presente, perspectivando o futuro com cuidado, evitando o perigo de que os elementos da utopia deixem de ser pervertidos em instrumentos de poder e violência, para

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transformá-los em elixir de nossa visão crítica das atuais condições de desenvolvimento do mundo. Sendo assim, poderia revisitar Bloch, buscando responder a pergunta – professor de história, que historiador é esse? -dizendo - Caros amigos sou um professor de história desassossegado. Se o tempo passado é minha matéria de ensino, a ele recorro para suprir as carências do presente e perspectivar o futuro, utopicamente.

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JOVENS, CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E VIDA PRÁTICA: AS MANIFESTAÇÕES DE RUA E SEU SIGNIFICADO PARA JOVENS BRASILEIROS Maria Auxiliadora M.S.Schmidt UFPR Uma das questões pertinentes às preocupações do campo da Educação Histórica tem sido investigar possíveis relações existentes entre a vida prática dos jovens e as suas ideias históricas. Nesse particular é pertinente elucidar o conceito de vida prática e seu significado para a aprendizagem histórica. No âmbito da teoria da consciência histórica (RÜSEN, 2001; LEE, 2006) há uma interlocução orgânica entre a ciência da história e a vida prática e é nessa última que são produzidas e detectadas as carências e interesses que podem ser explicitados pelas ideias, métodos e formas de representação da disciplina história. É também à vida prática que o conhecimento histórico retorna a cumprir sua função de orientação temporal. Essa interlocução produz-se e reproduz-se na e pela cultura histórica. Segundo Rüsen (2009), a cultura histórica é uma categoria de análise que permite compreender a produção e usos da história no espaço público na sociedade atual. Trata-se de um fenômeno do qual fazem parte o grande boom da História, o sucesso que os debates acadêmicos têm tido fora do circulo de especialistas e a grande sensibilidade do público em face do uso de argumentos históricos para fins políticos. Desse processo, fazem parte também os embates, enfrentamentos e aproximações entre a investigação acadêmica, o ensino escolar, a conservação dos monumentos, os museus e outras instituições, em torno de uma aproximação comum do passado. Assim, para Rusen (2009), a cultura histórica articula os diferentes elementos e estratégias da investigação acadêmica, da estética, da política, do lazer, da educação escolar e não escolar e de outros procedimentos da memória histórica pública. Segundo este autor, ela é quinta-essência das atividades e instituições sociais, pelas quais e nas quais acontece a consciência histórica (RÜSEN, 2014:101). Isto é, no âmbito da cultura histórica da qual faz parte a vida prática, é que acontecem os modos de atuação da consciência histórica. Nessa direção, a categoria da cultura histórica teorizada por Rüsen aponta a consciência histórica como uma realidade elementar e geral da explicação humana do mundo e de si mesmo,

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com um significado inquestionável prático para a vida, propondo que da consciência histórica há somente um pequeno passo à cultura histórica. Se se examina o papel que tem a consciência histórica na vida de uma sociedade, aparece como uma contribuição cultural fundamentalmente especifica que afeta e influi e quase todas as áreas da praxis da vida humana. Assim, a cultura histórica pode ser definida como a articulação prática e operante da consciência histórica na vida de uma sociedade. Como praxis da consciência tem a ver, fundamentalmente, com a subjetividade humana, como uma atividade da consciência, pela qual a subjetividade humana se realizada na prática, cria-se, por assim dizer. (RÜSEN, 2009, p.4).

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Na perspectiva ruseniana, a intrínseca relação entre consciência histórica e vida prática remete, necessariamente, à compreensão de como a ação humana no presente está matizada pelas determinações das diferentes dimensões da cultura histórica: a dimensão cognitiva, estética, política, ética e moral, dependendo da abrangência dessas dimensões na formação da consciência histórica dos agentes. Assim, uma análise da relação entre a formação da consciência histórica com a vida prática de jovens pode levar em consideração o significado que tem determinados acontecimentos, como as manifestações de rua, nesse processo, particularmente quando estas manifestações têm como horizonte reivindicações de direitos básicos relacionados à vida prática dos sujeitos. Manifestações de rua e vida prática dos jovens As manifestações de rua que ocorreram no Brasil, em junho de 2013, fazem parte do conjunto de manifestações que vem acontecendo desde 2011 em vários países do mundo. Apesar de suas peculiaridades, essas manifestações apresentam formas de luta semelhantes e consciência de solidariedade mútua, particularmente sob forma de uma catarse política protagonizada pela juventude, ocorrendo uma sincronia cosmopolita febril e viral com uma sequência de rebeliões quase espontâneas surgidas na margem sul do Mediterrâneo e que logo se manifestaram na Espanha, com os Indignados da Puerta del Sol, em Portugal, com a Geração à Rasca,e na Grécia, com a ocupação da praça Syntagma. Em todos os países houve uma mesma forma de ação: ocupação de praças, uso de redes de comunicação alternativas e articulações políticas que recusavam o espaço institucional tradicional. (CARNEIRO, 2013:8).

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O filósofo Michael Löwy entende que a presença dos jovens nas diferentes manifestações contemporâneas é fruto de um sentimento de injustiça e insatisfação que existe na sociedade e os jovens são os primeiros a se organizar e protestar porque eles são mais influenciados pela indignação com a ordem das coisas no mundo, o começo de qualquer movimento ou mudança social sempre se dá com um estado de espírito indignado, a começar na juventude. É fácil de entender o porquê de tanta indignação. Estamos numa situação em que a ordem social parece cada vez mais irracional, promovendo desigualdades gritantes, promovendo os excessos do mercado financeiro, a destruição do meio ambiente. (LÖWY, 2011:14). Em uma sociedade em que a representação política está nas mãos de setores mais tradicionais, os jovens não se sentem representados e manifestam grande desconfiança em relação aos partidos e instituições políticas existentes. Ademais, decepcionados com as formas de protesto tradicionais, os jovens buscam novas formas de organização como a comunicação através dos meios eletrônicos, como o Facebook e o Twitter, que permitem uma mobilização mais rápida. Apesar de semelhanças com os movimentos de outros países, o junho brasileiro de 2013 teve características próprias, podendo ser considerada uma insurgência democrática em favor do reconhecimento de novas identidades sociais e de direitos de participação na vida pública, pela juventude. Nesse movimento, vários fatores se entrelaçaram durante as semanas que trouxeram perplexidade a sociedade brasileira. Do início até meados de junho de 2013 houve várias manifestações com reivindicações claras: contra o aumento das passagens dos transportes públicos, liderada pelo MPL (Movimento da Passagem Livre) e contra os gastos com a copa do mundo. No dia 13 de junho, a forte repressão policial que ocorreu em diferentes cidades brasileiras, despertou uma empatia em grande parte da população, que se transformou em desejo de participação e a oportunidade de tomar as ruas aparecia como uma maneira de afirmar o direito à manifestação e à liberdade de expressão. O slogan “Vem prá rua, vem” cuja apropriação de uma campanha publicitária gerou controvérsias nos meios de comunicação, tornouse a palavra de ordem dos jovens. Como afirma Brant (2014:34), foi sensação de tomar a história nas mãos e de gritar para ser ouvido que levou a população às ruas. E os gritos foram

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representados em palavras contra a corrupção, a defesa da saúde e da educação pública de qualidade, como o slogan “Queremos educação e saúde padrão FIFA”, numa alusão às exigências que a FIFA estava fazendo com relação à qualidade dos estádios de futebol para a copa do mundo no Brasil. Do dia 14 até 21 de junho, a esses temas se somou um discurso cívico, representado pela afirmação dos símbolos nacionais, particularmente a bandeira brasileira, utilizada como representação da afirmação das diferentes identidades presentes nas manifestações, nas quais, uma das ausências mais expressiva foi a da representação dos grandes partidos políticos, além das reivindicações de cunho econômico, como afirma Brant é notável, por exemplo, que as questões econômicas que deflagraram manifestações em outros países tenham ficado de fora da pauta no Brasil. De maneira geral, a situação econômica era boa, a democracia predominava, o que torna ainda mais surpreendente o volume que as manifestações ganharam. (BRANT, 2014:35).

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Segundo sociólogos brasileiros, a juventude que participou dessas manifestações pode ser considerada, em sua maioria, como ‘os filhos da geração inserida”, os mais de 40 milhões de brasileiros que passaram a ter poder de consumo e cobram mais direitos, Os adolescentes crescem com acesso ao consumo e a um volume de informações inédito por conta da internet. E a elite continua presa às categorias do passado. Tivemos mudanças na economia, mas não alteramos a nossa mentalidade. Um exemplo são os jovens dos rolezinhos, que não acionam os partidos políticos, mas agem politicamente ao invadirem os templos de consumo, antes vedado a eles. Esses adolescentes vindos das comunidades não são vistos como legítimos em alguns espaços. A elite reage horrorizada aos rolezinhos, que são apenas a entrada dos jovens das periferias urbanas nos shoppings. (JARDIM, 2014:28). Entende-se, dessa forma, que buscar conhecer a consciência histórica dos jovens pode ser uma forma de ouvir o que eles têm a dizer e também procurar entender como, da juventude, pode estar nascendo uma reinvenção da categoria política.

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Percurso Metodológico Optou-se pela metodologia da pesquisa de cunho qualitativo, recortada a partir do estudo de um caso específico. Trata-se de um grupo de jovens estudantes de uma escola secundária pública, localizada na periferia da cidade de Curitiba, Paraná. Essa escola tem cerca de 930 alunos, distribuídos entre o 6º. e o 9º ano do ensino fundamental e os três anos do ensino médio. O ensino fundamental funciona nos períodos da manhã e tarde e o ensino médio, no período noturno. Assim, a investigação foi realizada durante o mês de abril de 2014,em uma classe com 38 alunos do 3º. Ano e 20 alunos do 1º. Anodo ensino médio noturno, o que aponta uma das características dos alunos investigados que é o fato de serem alunos trabalhadores, na faixa etária entre 16 e 22 anos. Esses alunos trabalham, principalmente, em atividades de prestação de serviços, tais como atendentes de supermercados, ajudantes de obras na construção civil e também no ramo da informática. Quadro 1: Identificação dos sujeitos da investigação: 3º ANO DO ENSINO MÉDIO 1º ANO DO ENSINO MÉDIO IDADE No. DE ALUNOS N. DE ALUNOS 22 01xx 21 03xx 19 01xx 18 06xx 17 07 02 16 14xx 15 xx 04 14 xx 09 Não Responderam 07 05 TOTAL 38 20 Fonte: as autoras (2014) O instrumento de investigação foi aplicado pelo professor da turma e tinha uma abertura com os seguintes dizeres Caro jovem, estamos realizando uma pesquisa sobre como os jovens de vários países estão compreendendo as manifestações e os conflitos que elas têm produzido. A nossa parte é saber como os jovens brasileiros pensam isso. E escolhemos você para dar sua opinião. Agradecemos muito a sua colaboração para a nossa pesquisa. A primeira parte do instrumento, com questões fechadas, constava de perguntas sobre a identificação do jovem,uma questão sobre sua participação em manifestações e uma indagação sobre o que ele

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achava do conhecimento histórico: Acha importante aprender História para......O objetivo principal era detectar a relação dos jovens com a participação nas manifestações e o que significava aprender História para ele. Quadro 2: Relação dos jovens com a participação nas manifestações. PARTICIPA:07 NÃO PARTICIPA: 46 NÃO RESPONDEU:01 TOTAL:58 Fonte: as autoras (2014) É importante destacar que alguns jovens complementaram suas respostas com algumas considerações:

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- Não participei pois meus pais não deixaram, gostaria muito de ter participado, mas eles disseram que poderia ter tumulto e poderiam me machucar. (Jovem do 3º.ano, 16 anos) - Não participei porque tenho que trabalhar (jovem, 3º. Ano, 18 anos).- Não tive chance, mas gostaria (jovem, 1º. Ano, 14 anos)- Não participei, mas participarei. (jovem, 1º ano, 14 anos) As considerações apresentadas são indiciárias de que, mesmo respondendo que não participaram, alguns jovens tinham ou têm intenções de participar de manifestações. Há também evidências de que o fato de não terem participado das manifestações não impediu que, em suas narrativas, os jovens apresentassem opiniões favoráveis à sua realização. Apenas um, entre os 58 jovens participantes, apresentou de maneira explícita em sua narrativa, uma indiferença à realização de manifestações, afirmando que - Não estou nem aí para as manifestações, mas gosto que as passagens baixem. (jovem, 1º. Ano, 14 anos). Com relação à pergunta Para você, aprender História é importante para...., os resultados mostraram um equilíbrio entre aqueles que respaldam a importância da aprendizagem no conhecimento do passado pelo passado, do passado para interpretar o presente, para interpretar o presente e projetar o futuro, para interpretar a

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mudança e a importância de se conhecer o passado para trazer exemplos para o presente e o futuro. Quadro 3 – Significados da aprendizagem histórica para os jovens SIGNIFICADO DA HISTÓRIA NÚMERO Estudo do passado pelo passado 12 Estudo do passado para entender o presente 09 Estudo do passado para explicar a origem e 05 evolução Estudo do passado para explicar as mudanças do 07 presente Ex. Para lembrar o passado que foi muito difícil e refletir sobre as mudanças que aconteceram no decorrer do tempo. (s/id) Estudo do passado para tirar exemplos para o 09 presente Estudo da relação passado/presente e futuro para 07 entender a mudança e orientar a ação. Ex. Entender toda a garra de nossos antepassados para seguir lutando para que lá na frente a gente tenha feito pelo menos um pouco de diferença.(jovem, 16 anos, 3º.ano) Sem nexo ou não responderam 09 Fonte: as autoras (2014) Uma das inferências a serem feitas é a de que na perspectiva da orientação temporal no fluxo do tempo, o “presentismo” não se destaca como expressão da consciência histórica desse grupo de jovens. Observa-se um equilíbrio na presença de uma orientação situada no próprio passado (12 jovens); na relação passado/presente- seja em torno da compreensão do próprio presente, na explicação das mudanças, em tomar o passado como exemplo para o presente ou para entender a evolução – 30 jovens. Finalmente, observa-se que 7 jovens expressam uma orientação temporal mais complexa, ao identificarem a importância de se aprender História para compreender as relações entre passado/presente e futuro. A segunda parte do instrumento solicitava aos jovens a produção de uma narrativa a partir da seguinte orientação, seguida da

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apresentação de fotos das manifestações que foram publicadas em jornais do período. Em junho de 2013 ocorreram várias manifestações em diferentes cidades brasileiras. Observe e analise as imagens e textos que aparecem nos cartazes. Escreva uma narrativa sobre esses acontecimentos. A principal finalidade era, tendo como suporte o referencial proposto neste trabalho, responder à problemática – que argumentações os jovens poderiam construir sobre as manifestações a partir de imagens que representavam esses acontecimentos e como, por meio de suas narrativas, eles expressariam significados de orientação temporal? Assim, foram propostas as seguintes imagens:

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IMAGEM 1 – Jornal O Estado de São Paulo, segunda feira, 17 de junho de 2013 Legenda: Dicas: Cartilha diz para manifestante não ser violento e usar tênis confortável para correr IMAGEM 2 – Jornal Gazeta do Povo, quarta feira, 19 de junho de 2013 Legenda: saques e van queimada: vandalismo marcou o sexto dia de protesto IMAGEM 3 – Jornal O Estado de São Paulo, sexta feira, 14 de junho de 2013 Legenda dos cartazes: “ Protesto não é crime” e “Sorria, você está sendo explorado IMAGEM 4 – domingo, 16 de junho de 2013 Legenda do cartaz: Nossos sonhos valem mais que 0,20 centavos. Resultados Para análise dos dados buscou-se a referência na Grounded Theory. As categorizações foram construídas em um movimento de mão dupla. De um lado, elas foram inferidas a partir dos resultados obtidos, por meio de um processo analítico em que os conceitos foram identificados e analisados a partir de suas próprias dimensões e propriedades. De outro lado, na esteira do referencial teórico adotado, as categorizações foram afinadas e aprofundadas.

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Quadro 4 – Significados atribuídos pelos jovens às manifestações de Junho de 2013 SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS NÚMERO Forma de luta no passado, presente e 07 futuro Forma de luta do protagonismo dos jovens pelas mudanças 08 Forma de luta histórica da população Forma de luta da população pelos seus direitos e pelas mudanças Movimento de cidadania Movimento contra o governo do PT (Partido dos Trabalhadores) Nem liga para as manifestações Fonte: as autoras (2014)

05 34 01 01 01

O saldo das narrativas produzidas pelos jovens indica uma adesão às manifestações como um movimento legítimo e justo, sendo que em nenhuma das narrativas apareceu uma rejeição a esse tipo de participação política. A perspectiva da relação presente/passado/futuro apareceu de forma relativamente expressiva, podendo ser exemplificada pela ideia contida nesses trechos -Muitos sofreram e muitos sofrerão mas o que importa é a luta que dura dia a dia. O governo sobe a tarifa dos transportes mas nosso salário não sobe.(s/id.18 anos, 3º. Ano)-As manifestações têm significado para o passado, o presente e o futuro do meu país porque vamos saber nossos direitos e correr atrás do que é nosso. O transporte coletivo, o valor da tarifa está muito caro e ainda precisa ser reajustada para menor ainda. As manifestações vão continuar porque a população é maior que muitos políticos. (...) A presidente Dilma contratou médicos de Cuba para trabalhar no Brasil, muitas coisas têm que mudar no Brasil, tem muito roubo dos políticos. (André, 17, 3º ano) Além de serem consideradas legítimas, as manifestações também foram vistas como formas históricas de luta do povo brasileiro, cujo

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significado na vida da nação é considerado maior do que o de muitos políticos. Ademais, elas representariam uma forma de protagonismo dos jovens na realização das mudanças necessárias ao país Foi uma coisa que mexeu com todo o país. Essas manifestações, na minha opinião, mexeram tanto com o país de uma forma que mobilizou o país todo. Ninguém imaginava que poderia ter a proporção que acabou tendo. Essas manifestações cresceram de uma forma tão grande que em cada estado do Brasil as pessoas reivindicaram uma coisa e mostrou o tamanho do jovem no Brasil. Na minha humilde opinião isso irá ser lembrado por muito tempo e nunca se esquecerão que o jovem tem voz. (William, 16 anos, 3º ano)

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A ênfase nas manifestações como forma de luta para mudança e reivindicação dos direitos predominou em 34 das narrativas produzidas. Cabe ressaltar que, quando os jovens falam em direitos, indicam determinadas carências da vida prática, como transporte público de qualidade, educação, saúde pública e contra a corrupção. Não há nenhuma referência a demandas relacionadas com direito à democracia, liberdade ou participação política, o que leva a concluir que, no atual contexto da sociedade brasileira, esses direitos estão acessíveis aos jovens O povo está reivindicando os seus direitos, como cidadãos brasileiros, contra a corrupção, para uma melhoria na saúde, segurança etc. Isso irá refletir no ensino das futuras gerações. Afinal, estamos vivendo um momento histórico de nosso país. Muitos acham que esses protestos não tem validade, mas isso é um pensamento tolo, pois nosso país acordou para a realidade, pena que muitos não saibam protestar e acabam fazendo vandalismo e com isso acabam dando outra cara para as manifestações. Enfim, em minha opinião, as manifestações vão ter muitos retornos bons e nossos filhos vão saber que um dia nosso povo é um povo que corre atrás e faz acontecer. (Luiz Fernando, 16 anos, 3º. ano). Apesar das imagens que foram mostradas aos jovens apresentarem evidências da violência policial contra os manifestantes, o que foi um

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dos fatores presentes em todos os dias de manifestações, apenas 05 narrativas fazem referência a esse fato, exemplos -As manifestações que ocorreram em 2013 foram muita violência. Muitos sabiam protestar adequadamente mas muitos não sabiam fazer protestos, queriam levar na grosseria, querendo tudo que viam pela frente, maltratando e machucando muitas pessoas, como os PM. (...) Daqui para frente vai haver mais protestos sim e vão se repetir as cenas de violência no povo e com as pessoas, ou até coisa pior. (s/identificação) -Na verdade, boa parte da história tem indícios de manifestações e toda manifestação tem um porquê. No caso das manifestações que ocorreram no Brasil, boa parte dos jovens saíram às ruas para reivindicar os seus direitos e eles pediram coisas relativamente simples para o governo. Apenas o reajuste das passagens do transporte público, mais investimento na saúde e na educação e também que o governo parasse de usar o dinheiro público indevidamente. Como, por exemplo, investir na Copa do Mundo de 2014, enquanto o país inteiro estava precisando de hospitais, escolas e transporte público de qualidade. Como pode um país sediar a Copa do Mundo, um evento tão grandiosa, com tanta criminalidade, transporte insuficiente, enquanto estão investindo em coisas banais. Sem contar que, quando ocorreram as manifestações, muitos dos nossos policiais militares abusaram do seu poder e começaram a atirar e tentar paralisar as manifestações com spray de pimenta, isso é um absurdo. E como nós queremos sediar a Copa sem um treinamento específico dos policiais? Deter jovens por porte de vinagre? Em que país nós vivemos? (Jennifer Souza, 14 anos, 1º. ano) -As manifestações mostram que o povo está tentando mudar a cara do nosso país, para ter mais direitos porque nosso país só dá direitos para os políticos eu roubam dinheiro do povo brasileiro, dinheiro que deveria ser usado para construir mais hospitais, mais escolas, e esses políticos não são presos ou são presos mas conseguem sair muito rápido da cadeia. Isso é uma vergonha para o país.. E a polícia deveria proteger o povo que vai para manifestar seus direitos, não, eles batem em que está

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ajudando a garantir os direitos deles também, como mostram as imagens dos dias 14/06/13 e 21/06/2013. Acho que essas manifestações vão ajudar muito no futuro do nosso país. (s/id.) Finalmente, cabe destacar que, embora no próprio enunciado do instrumento que foi entregue aos jovens constasse indicação para que eles observassem as imagens relativas às manifestações de Junho de 2013, somente 09 narrativas indicaram uma referência à essas fontes, como pode ser observado em alguns exemplos

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-Bom, porque o passado já foi muito corrupto e isto está acontecendo no presente, no agora, ainda mais no agora. Pois não podemos mudar o passado, mas podemos mudar o presente e o futuro. Como diz uma das fotos, não era por “20 centavos”, mas sim pela dignidade, direitos e outras coisas. Chega de corrupção, nós queremos um novo Brasil, uma nova história e eu acho que as manifestações significam que podemos mudar é só lutarmos por nossos direitos, para um país melhor. (s/id.) -No passado, muitas coisas mudaram com a luta do povo e essas manifestações só são uma continuação do que está acontecendo e do que está por vir. Não prática não mudou muita coisa, mas fez com que o povo expressasse seus pensamentos e opiniões. Podemos ver nas imagens que a maioria dos manifestantes são jovens querendo um futuro melhor. E alguns pais querendo mudar o futuro para os filhos, como mostra a imagem do dia 21/06/2013. O povo havia acordado. E começaram a ver que havia muito dinheiro sendo gasto em coisas desnecessárias, e o que é prioridade estava ficando muito para trás. Na minha opinião, na prática, não mudou nada com as manifestações, somente na teoria. E o governo continua rindo de nossa cara e sambando nos nossos bolsos. Mas acho as manifestações de extrema importância, nós povo, somos a maioria, uma hora ou outra “eles” vão ter que ceder. (Juliana, 17, 3º ano) -Porque as manifestações acabam por ser marco na história do Brasil, como a busca pelos direitos sociais que despertaram de maneira surpreendente o povo brasileiro, sendo a maioria jovens que buscavam melhores condições de educação, saúde e infraestrutura. (...) Foi o estopim

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porque já tinha tanta reclamação principalmente do governo pela sua má administração do dinheiro público. Na frase do dia 20/06/2013 fala assim: O GIGANTE ACORDOU, mas logo voltou a dormir com o calmante que os políticos deram na forma de promessas e mal cumpriram algumas e o povo já ficou satisfeito. (Claudio, 16, 3º. ano) Algumas questões podem ser inferidas, analisando-se a forma pela qual estes jovens interpelaram as imagens propostas. Apesar de têlas utilizado como referência para justificar suas opiniões, eles o fizeram indicando contradições que se seguiram após as manifestações, como se observa na fala de um jovem:em minha opinião, na prática não mudou nada.....mas acho as manifestações de extrema importância. Ou, O Gigante Acordou, mas logo voltou a dormir com o calmante que os políticos deram na forma de promessas. Conclui-se que, ao produzirem inferências a partir das fontes, os jovens o fizeram seletivamente e criticamente. Considerações No que diz respeito às manifestações como expressão da relação da consciência histórica dos jovens com a sua vida prática, uma primeira consideração a fazer é que, independentemente de terem ou não participado das manifestações do Junho de 2013 ou de optarem ou não pela participação em manifestações, os jovens do caso analisado aprovam, em sua maioria, as manifestações como uma forma legítima de participação política. Essa perspectiva indica uma semelhança entre as manifestações brasileiras e aquelas que vêm ocorrendo em outros países desde 2011, ou seja, uma revolta e recusa às formas de participação política tradicionais, nas quais os jovens já não se sentem mais representados. Assim, a ocupação de ruas e praças é uma das características encontradas nesses movimentos, inclusive no Brasil, em que o slogan “Vem para a rua. Vem!” foi amplamente utilizado. Outro aspecto indiciário da semelhança entre as várias manifestações são os sentimentos de injustiça e insatisfação, que podem ser inferidos das narrativas dos jovens brasileiros e tem estado presente também nas outras manifestações. É válido afirmar que, em sua quase maioria, os jovens manifestantes brasileiros podem ser considerados “filhos da geração incluída” no consumo e no acesso à informação pela internet. Essa inclusão não tem sido

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acompanhada, na sociedade brasileira, pelo acesso a direitos como transporte público, saúde e educação pública de qualidade. A esse sentimento pode ser somado uma revolta contra a violência policial que tem transformado as manifestações em verdadeiras praças de guerras, fato recorrente nas manifestações brasileiras. Por outro lado, as narrativas dos jovens minimizaram referências a reivindicações de cunho econômico, como o direito ao emprego e o combate à crise econômica, corroborando a análise feita por Brant (2014) de que as questões econômicas que deflagraram manifestações em outros países tenham ficado de fora da pauta no Brasil.

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Na análise das narrativas históricas como expressão da consciência histórica dos jovens, no que tange ao significado das manifestações como função de orientação temporal na sua vida prática, algumas considerações merecem destaque. Quando se faz o cotejamento entre o significado que eles dão à aprendizagem histórica e o significado histórico atribuído às manifestações, deduz-se uma certa contradição. Em uma grande maioria de narrativas, 34 no total, as manifestações são forma de lutas reivindicatórias por mudanças que fazem parte do passado, do presente e farão parte do futuro do povo brasileiro. No entanto, quando inqueridos sobre o significado da aprendizagem histórica, apenas 07 a articularam com a necessidade de se conhecer a relação passado/presente e futuro, evidenciando uma desarticulação entre o conhecimento histórico aprendido e as demandas ou carências da vida prática. Essa contradição pode ser indicativa do que Rüsen (2014) chama do modo funcional de atuação da consciência histórica, em que a consciência histórica está embutida na própria realidade social, nos procedimentos e instituições, nos quais os seres humanos recebem seu cunho cultural ou – recorrendo a uma das metáforas prediletas das atuais ciências culturais – nos quais ele é “construído”. (RÜSEN, 2014:100). Ao narrarem um acontecimento que vivenciaram num passado próximo, os jovens expressaram sua consciência histórica muito mais a partir de experiências de vida do que a partir da sua articulação com as ideias e métodos da ciência da história. Revelador disso é o fato de que apenas 09 jovens recorreram às fontes (imagens) para elaborar argumentações e opiniões. Esses jovens interpelaram e problematizaram as fontes, o que pode ser considerado um modo reflexivo de atuação da

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consciência histórica em que há um posicionar-se consciente em relação à experiência do passado. (RÜSEN, 2014:101). À guisa de consideração final, conclui-se que a investigação permitiu conhecer elementos da consciência histórica dos jovens, bem como fazer uma avaliação preliminar de formas de atuação de sua consciência histórica em relação às demandas da vida prática. Ao ouvir os jovens, pode ser inferido que, ao contrário das forças policiais, para quem as manifestações são uma forma de guerra e, por isso, devem ser duramente reprimidas, para os jovens, as manifestações são uma forma de reinventar a política e recriar a sociedade, solidária e libertariamente. REFERÊNCIAS BRANT, João. (2014) Um ano depois de junho. In. Jornal Le Monde Diplomatique Brasil. Ano 7, N.83, p.34-35. CARNEIRO, Henrique Soares. (2013) Rebeliões e ocupações de 2011. In. OCCUPY. Movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, p.7-14 JARDIM, Maria Chaves (2014). Entrevista ao Jornal Caros Amigos. São Paulo: Jornal Caros Amigos. A política em xeque. Ano XVII, n.207, p.24-28. LEE, Peter.(2006) Em direção a um conceito de literacia histórica. In. Educar em Revista. Dossiê Educação Histórica. Curitiba: Editora da UFPR, número especial. LÖWY, Michael. (2011) O transbordo do copo de cólera. In. Jornal O Estado de São Paulo. Suplemento Aliás. Domingo, 13 de novembro, p.14 RÜSEN, Jörn. (2009). "¿Qué es la cultura histórica?: Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia". [Unpublished Spanish version of the German original text in K. Füssmann, H.T. Grütter and J. Rüsen, eds. (1994). Historische Faszination. Geschichtskulturheute. Keulen, Weimar and Wenen: Böhlau, pp. 326]. RÜSEN, Jörn.(2001) Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora da UnB.

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ENSINO DE HISTÓRIA E SITES DE PESQUISA ESCOLAR Nucia Alexandra Silva de Oliveira UDESC Considerações iniciais Qual o conteúdo de história do Brasil tem sido publicado em sites de pesquisa escolar? Foi esta a pergunta motivadora do projeto de pesquisa que iniciei no ano de 2012 como parte de minhas atividades como docente na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Mais especificamente esta pesquisa cujo título é “www.história.com: uma investigação sobre marcos históricos brasileiros tematizados em sítios eletrônicos” tem sido desenvolvida junto ao Laboratório de Ensino de História – LEH, onde professores e acadêmicos do curso de História se dedicam a estudos sobre a área do Ensino de História. Para dar conta de tal reflexão, partimos de alguns questionamentos e pressupostos [Escrevo no plural para dividir as reflexões da pesquisa com os bolsistas de Iniciação Cientifica que nela têm trabalho (Matheus Silveira entre 2012 e 2013 e Bárbara Donini em 2014 e 2015) e com os colegas do LEH que também participam do processo de pesquisa]. Por um lado, assumimos a importância da internet como ferramenta de pesquisa e sociabilidades e por outro, indagamos que tipo de conteúdo tem sido apresentado, bem como refletimos sobre os modos pelos quais ela pode ser mobilizada no ensino. Não há dúvidas de que hoje a internet representa uma transformação singular nas formas de comunicação e também no modo de lidar com a informação. Diferentes pesquisas, incluindo investigações da área de educação têm apontado para tal fenômeno relatando questões diversas como o tempo gasto pelos internautas para “navegar” na rede, ou ainda a dificuldade desses mesmos em estabelecer críticas aos conteúdos. Como professora de estágio supervisionado e acompanhando as atividades de meus alunos junto a estudantes da educação básica pude perceber tal movimento – os sites de pesquisa escolar aparecem de fato como um dos principais recursos de investigação no processo de aprendizado de crianças e jovens. Eles ajudam portanto a formar a cultura histórica (RÜSEN, s/d) desse público e como tal precisam ser investigados e mobilizados para o processo de desenvolvimento do aprendizado histórico (RÜSEN, 2012). Nesse sentido, vislumbramos a necessidade de dar visibilidade e problematizar que narrativas têm

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sido dadas à leitura daqueles/as que pesquisam em tais sites e dialogamos portanto com as perspectivas da Didática da História (RUSEN, 2010. BERGAMANN, 1989).Por outro lado, entendemos também ser importante trazer reflexões sobre o fenômeno representado pela internet para o trabalhos dos/das historiadores/as. Tal questão, a propósito tem sido observada em diversos textos nos últimos tempos e em sua maioria tais debates entendem e propõem que mais seja dada mais atenção à textualidade eletrônica. Roger Chartier que é um dos maiores referenciais em História da Leitura lembra que o surgimento da internet acarretou em novas modalidades de construção, publicação e recepção dos discursos históricos. Além do que também transformou a maneira de organizar as argumentações e os critérios de aceite ou rejeição dos leitores (CHARTIER, 2010). Dentro desta perspectiva estamos considerando que a publicação dos conteúdos em sites de pesquisa escolar é um outro modo de trazer saberes históricos para jovens e de, portanto estabelecer influência no desenvolvimento do pensamento históricos desses estudantes.

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Este texto pretende trilhar tais caminhos oferecendo portanto possibilidades de debates que relacionam ensino de história, didática da história e a internet como elemento constituinte da cultura histórica e como fonte de pesquisa para a reflexão historiográfica. Informo que para dar conta dessa discussão apresento alguns dos dados da pesquisa que temos realizado, bem como aponto algumas de nossas reflexões sobre eles, depois coloco em questão breves reflexões relacionadas as implicações que as narrativas apresentadas pelos sites podem exercer sobre o aprendizado histórico e por fim lanço questões para o debate sobre tais temas. Considerações sobre a pesquisa: metodologia, sites pesquisados e dados investigados Para desenvolver esta pesquisa estamos construindo uma metodologia onde um novo tipo de documento (sites de pesquisa escolar) é dado a ler e desse modo nossas estratégias de investigação têm sido permeadas por constantes debates sobre os modos como devemos escolher e analisar os dados coletados. Começamos o trabalho de investigação com uma grande “sondagem” do material a ser pesquisando, ou seja, navegamos pela rede através da palavra chave: história do Brasil. A partir deste primeiro “enter” foi realizada a sistematização de 15 endereços eletrônicos para uma consulta mais

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detalhada e posterior coleta dos dados. Desse modo realizamos a leitura desses sites e optamos por eliminar alguns deles do corpus investigativas ficando apenas com 8 deles para a realização da coleta de dados. São eles: www.historiadobrasil.net; www.historiadobrasil.com.br; www.brasilescola.com/historiab; www.suapesquisa.com/historiadobrasil/; www.educacao.uol.com.br/historia-brasil; www.bussolaescolar.com.br/historia.htm; http://www.mundoeducacao.com.br/historiadobrasil; http://www.alunosonline.com.br/historia-do-brasil Após estas etapas de sondagem e escolha passamos então a uma caracterização dos sites, pois entendemos que é necessário conhecer o “lugar” onde as informações que estamos analisando estão depositadas. A ideia então foi percorrer atentamente cada um deles buscando mapear questões como a existência ou não de autoria nos textos; a definição de um público alvo, as finalidades e demais políticas apresentadas pelos mesmos. Neste sentido descobrimos que a maioria traz muitas informações sobre o modo como foram organizados. Ou seja, procuram informar como o conteúdo é construído, quem são seus autores e quem se destinam; bem como também se preocupam em apresentar quais são suas políticas de uso e de privacidade. Certamente que, no que diz respeito a tais dados alguns deles são mais completos do que outros, mas é possível dizer que uma das característica comum aos sites de pesquisa escolar é buscar legitimar o seu conteúdo. É importante dizer que tal cuidado não é uma regra e que a mesma não significa ou ainda não garante a qualidade para esses textos, nem evita outros problemas graves como plágios entre eles, e mesmo a total inexistência de referências ou ainda a citação de imagens sem qualquer indicação de quem seja o seu autor. Vale dizer que esta legitimação não perpassa necessariamente critérios formais, como o uso de referências. Roger Chartier (2010) aponta que existe uma diluição dos elementos que atestam a veracidade em plataformas de texto não tradicionais, que, no caso da história, fogem daquele pacto de confiança autor-leitor, imerso em referências bibliográficas e citações. Portanto, essa relação autorleitor sofre mudanças no mundo mais dinâmico da internet, mas que

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não deixam de ser dependentes da confiabilidade no caso em tela, visto que o conteúdo disponibilizado pelos sites é oferecido para pesquisas escolares. Aquele que acessa a textualidade eletrônica – como a dos sites escolares – está sujeito a uma nova ótica de leitura e compreensão de dados, com práticas costumeiras se adaptando ou desaparecendo. Dito isso, acredito ser importante trazer alguns exemplos sobre como esta construção de legitimidade se dá nos sites. Observando o “www.suapesquisa.com” percebemos que este se preocupa em apresentar elementos que atestem a seriedade do site sobretudo informam sobre seus objetivos e preocupações. De acordo com eles, o site “foi criado com o propósito de divulgar conhecimentos científicos, históricos, artísticos e culturais. (...) estamos colaborando para ampliar o desenvolvimento intelectual dos brasileiros, que acessam a Internet em busca de informações de qualidade.” Em outra parte do texto, é possível ver a preocupação com a originalidade de seus textos:

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Os textos são elaborados por nossa equipe, que é formada por especialistas em diversas áreas do conhecimento. Todos os nossos textos são originais e não simples cópias de enciclopédias ou de outros sites. Optamos por utilizar um design simples e agradável e uma linguagem didática para que todos possam entender corretamente as informações. (www.suapesquisa.com acesso em 10 de abril de 2013.) Contudo ainda neste texto fica bastante explícita a função informativa dos conteúdos e que há uma preocupação em “simplificar” e tornar o texto “mais agradável” e fácil aos leitores. Fica a pergunta de por que explicitar tal preocupação? Qual a implicação deste cuidado? Os textos apresentados e que são chamados de mais “fáceis” e “agradáveis” também serão ao mesmo tempo problematizadores? Ou são apenas reprodutores de conhecimentos enciclopédicos que o próprio texto crítica? Aliás, este é um ponto que nos interessa pontuar e analisar – voltaremos a ele, mais a seguir. Continuando a apresentação de nossa metodologia de trabalho cabe dizer que após a classificação dos sites, realizamos a etapa de coleta dos dados. Neste momento temos procedido do seguinte modo:

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elegemos alguns dos principais fatos históricos brasileiros e buscamos em cada um dos 8 sites relacionados para a pesquisa.Procuramos localizar o tema, sua presença dentro do site e demais links que aparecem associados a ele. Em tal busca montamos um banco de dados onde textos e imagens ficam armazenados para futuras pesquisas. Além de selecionar o texto também realizamos a leitura desse material onde a tarefa é colocar nossas impressões sobre o mesmo. Neste sentido a intenção é classificar que tipo de informação é dada: se esta é resumida, se tem problematização ou não, se potencializa o estudo ou se simples é informativa. No estágio atual de nossa pesquisa já fizemos a leitura de diversos marcos históricos: Descobrimento do Brasil, Independência, Inconfidência Mineira, Movimentos sociais no período regencial, Primeiro e Segundo Reinado, Golpe Militar de 1964, entre outros. Também fizemos buscas por figuras históricas tais como Tiradentes, D. Pedro I e II, Princesa Isabel, etc. Como se vê são temas relativos a questões políticas e relacionadas a nossa história mais “tradicional” e foram selecionados com intencionalidade e buscando perceber justamente como esses temas fundantes e já muito debatidos têm sido narrados nos sites. Na análise da temática do Descobrimento do Brasil – que aliás foi nosso primeiro tema de pesquisa – pudemos perceber importantes questões sobre os modos de narrativa da nossa história. E uma dessas questões é o modo fragmentado pelo qual as narrativas são apresentadas na estrutura do site – algo que faz parte do design desses mas que pode deixar o conteúdo literalmente “solto” para aquele que lê. Afirmo isso pois quando lançamos o tema Descobrimento do Brasil foi possível encontrar diferente links para leitura: Pedro Alvares Cabral, Carta de Caminha, Tratado de Tordesilhas. Além disso cada um desses temas era discutido em texto geralmente curtos. Devo dizer que isso não se trata de uma estrutura comum aos sites mas sim de observação geral sobre eles. Não entrarei em questões especificas de cada um dos sites para respeitar os limites dessa proposta de comunicação! Fica assim uma questão para debates posteriores, se for de interesse dos que dialogam comigo! Como exemplo do que falei sobre o modo de tematização do Descobrimento podemos analisar o texto apresentado no site “suapesquisa”:

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O Descobrimento do Brasil ocorreu no dia 22 de abril de 1500. Nesta data as caravelas da esquadra portuguesa, comandada por Pedro Alvares Cabral, chegou ao litoral sul do atual estado da Bahia. Era um local onde havia um monte, que foi batizado de Monte Pascoal. No dia 24 de abril, dois dias após a chegada, ocorreu o primeiro contato entre os indígenas brasileiros que habitavam a região e os portugueses. De acordo com os relatos da Carta de Pero Vaz de Caminha foi um encontro pacífico e de estranhamento, em função da grande diferença cultural entre estes dois povos. (suapesquisa.com. Acesso em 18 de outubro de 2012)

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Pelo exposto é possível perceber que o site faz apenas uma sequência de fatos em intenções, sem problematizações e que se trata portanto de um grande resumo onde o estudante apenas recebe o mínimo para saber quando aconteceu o fato e quem esteve envolvido. Reforço: não há problematização! Pelo contrário: temos sim a naturalização do fato sobretudo na expressão de que se tratou de um “encontro pacífico” entre povos diferentes que apenas se “estranharam”! Outro tema investigado: a independência do Brasil. No site suapesquisa.com o tema aparece a partir de uma grande lista sobre temas da história brasileira e clicando se clica no item – Independência – somos levados a uma série de outros links que sugerem buscas mais especificas. São eles: História da Independência do Brasil, D. Pedro I, Grito do Ipiranga, 7 de setembro, História do Brasil Império, Dia da Independência, transformações políticas, econômicas e sociais, dependência da Inglaterra no Brasil. Nesta página encontramos o quadro Independência ou Morte de Pedro Américo como uma ilustração – não há maiores informações sobre o mesmo. O texto que introduz o assunto é o seguinte: A independência do Brasil é um dos fatos históricos mais importantes de nosso país, pois marca o fim do domínio português e a conquista da autonomia política. Muitas tentativas anteriores ocorreram e muitas pessoas morreram na luta por este ideal. Podemos citar o caso mais conhecido: Tiradentes. Foi executado pela coroa

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portuguesa por defender a liberdade de nosso país, durante o processo da Inconfidência Mineira. (www.suapesquisa.com/independencia. Acesso em 14 de abril de 2014) Como podemos ler, a independência é apresentada como uma ruptura do domínico português e como o início imediato da autonomia no país. Não se faz - como no exemplo anterior do Descobrimento – maiores problematizações sobre o tema e o que é apresentado é um resumo de eventos. Além disso, é feita uma alusão igualmente não problematizada a Inconfidência Mineira e aquele que é considerado o seu mártir, Tiradentes – que no texto aparece de certa forma, heroicizado por ser sido morto por defender a “liberdade do país”. Neste site também encontramos outros exemplos de “personificação” dos feitos e das decisões políticas da história do país. Ainda na pesquisa sobre o fato histórico da independência localizamos tal tendência no link que faz referência a D. Pedro I. Vejamos alguns textos: Em 9 de janeiro de 1822, D. Pedro I recebeu uma carta das cortes de Lisboa, exigindo seu retorno para Portugal. Há tempos os portugueses insistiam nesta ideia, pois pretendiam recolonizar o Brasil e a presença de P. Pedro impedia este ideal. Porém, D. Pedro respondeu negativamente aos chamados de Portugal e proclamou “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico”. (www.suapesquisa.com/independencia. Acesso em 14 de abril de 2014) Após o Dia do Fico, D. Pedro tomou uma série de medidas que desagradaram a metrópole, pois preparavam caminho para a independência do Brasil. D. Pedro convocou uma Assembleia constituinte, organizou a Marinha de Guerra, obrigou as tropas de Portugal a voltarem para o reino. (...) Além disso, o futuro imperador do Brasil conclamava o povo a lutar pela independência. (www.suapesquisa.com/independencia. Acesso em 14 de abril de 2014)

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Tais narrativas, como podemos ler, apresenta os atos políticos e administrativos como iniciativas de D. Pedro e o faz portanto protagonista do processo de independência, glorificando-o como herói dessa história. Esta abordagem fica ainda mais evidente quando acessamos o link da biografia do imperador que diz: Desde criança apresentou forte espirito de liderança. Quando, aos 22 anos, assumiu o governo brasileiro na condição de príncipe regente, agiu como brasileiro visando os interesses do nosso povo. Também por este motivo, decidiu ficar no Brasil quando a corte portuguesa o chamou de volta a Portugal. Nessa ocasião, conhecida como Dia do Fico (9 de janeiro de 1822), ele demonstrou ter grande amor pelo Brasil, levando-o a proclamar nossa independência em 7 de setembro de 1822. (www.suapesquisa.com/independencia. Acesso em 14 de abril de 2014)

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Esta tendência à heroicização, bem como os realces aos atos de bravura e amor de tais “heróis” têm sido sistematicamente problematizada na área de ensino de história pois como se sabe, buscamos outros caminhos para trabalhar as figuras públicas relacionadas aos fatos históricos, bem como buscamos inserir outros personagens em tais estudos. Contudo ao perceber nos sites tais narrativas notamos que é necessário enfatizar cada vez a problematização dessa história criada a partir dos feitos dos grandes heróis. Considerações para o debate Encerrando este texto, mas projetando os futuros debates sobre ele no simpósio, opto aqui por não fazer considerações finais, mas sim em projetar questões para discussão. Uma das constatações de nossa pesquisa está no fato de que os sites trazem, em sua maioria, textos que pouco diferem daqueles publicados em manuais didáticos tidos como “conteúdistas”. Aliás, muitos deles se assemelham a grandes enciclopédias digitais. Enfatizo que nem todos fazem tal escolha mas a característica é mesmo muito presente nos sites. Assim penso ser muito importante refletir sobre as maneiras como tais narrativas são apresentadas aos navegadores-estudantes para que sabendo que este o acesso a tais

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textos possamos problematização!

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Nesse sentido, cabe retornar ao conceito de cultura histórica de Jörn Rüsen entendendo que o mesmo é extremamente relevante para pensarmos os processos de educação histórica nos quais nossos estudantes estão inseridos. No entender do teórico alemão, a cultura histórica é parte essencial do aprendizado histórico e como tal precisa ser compreendida, bem como precisa mediar o processo de aprender. De acordo com ele, “A expressão ‘cultura histórica’ articula sistematicamente o aspecto cognitivo da elaboração da memória histórica, cultivado pela ciência, com o aspecto político e estético dessa mesma elaboração” (RÜSEN, 2007). Buscando a compreensão de tal conceito e relacionando-o como as formas de aprendizado podemos inferir que os sites de pesquisa escolar fazem parte desse processo de formação e elaboração histórica sobre o qual o citado autor dedica. E nesse sentido justamente encontramos espaço para reflexão. Afinal: como essas narrativas podem estar presentes no processo de aprendizado histórico dos estudantes? Como mobilizar tais narrativas e lhe dar um sentido histórico para além das datas e dos heróis? Considero muito significativo que professores e professoras de histórica articulem este conhecimento “acessado” por seus estudantes. Assim fica a proposta para pensarmos e projetarmos: que usos podem ser feitos dos sites de pesquisa escolar? Como propor interações dos estudantes com esses textos? Como dito no início deste texto, navegar pela internet e utilizá-la para as atividades escolares são realidades postas em nosso tempo, assim os sites analisados aqui são referências para nossos estudantes. Se percebemos isso e entendemos que eles passam a compor o arsenal de saberes dos estudantes não podemos negar sua atuação no processo de aprendizado. Pelo contrário, repito: cabe como nunca, indagar que tipo de informação está sendo colocada em evidência! Lançando o espaço para o debate e a proposição retomo uma reflexão conhecida de Rüsen e que tem muito sentido para os envolvidos nesse projeto: Somente quando a história deixar de ser aprendida como a mera absorção de blocos de conhecimentos positivos, e surgir diretamente da elaboração de respostas e perguntas que se façam ao acervo de conhecimentos acumulados, é

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que poderá ela ser apropriada produtivamente pelo aprendizado e se tornar fator de determinação da vida prática humana” (RÜSEN, 2010. P.44)

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Referências BERGMANN, Klauss. A História na reflexão didática. Dossie História em quadro-negro: escola, ensino e aprendizagem. Revista Brasileira de História. São Paulo: vol. 9, no. 19, p. 29-42. CHARTIER, Roger. A história na era digital. In: A história ou a leitura do tempo. 2ª ed. Autêntica: Belo Horizonte, 2010. P. 5968 RÜSEN, Jörn. Que és la cultura histórica?: reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia. Tradução de F. Sanchez Costa e Ib Schumacher. Disponível em: www.culturahistorica.es/rusen.english.html RÜSEN, Jörn. História Viva: Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasilia: UNB, 2007. RÜSEN, Jörn. Aprendizado histórico. In: Jörn Rüsen e o ensino de História.Curitiba: UFPR; Braga: Uminho, 2010.

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A HISTÓRIA NOS FILMES DE FICÇÃO E SEU USO EM SALA DE AULA Maytê Vieira UEPG Cada filme é um primeiro rascunho. Levanta questões e inspira os estudantes a aprenderem mais. (Oliver Stone) Oliver Stone é um renomado cineasta norte-americano, responsável pela direção de sucessos como Platoon (1986); Nascido em 4 de julho (1989); JFK – A pergunta que não quer calar (1991); Alexandre, o Grande (2004) entre outros. O próprio Oliver já disse em diversas ocasiões que tem prazer em fazer filmes históricos e muitas vezes já foi criticado por suas escolhas e pela forma como descreve os personagens e suas narrativas. Muitos diretores usam as narrativas históricas para fazer filmes. Tanto quanto a literatura, a História é uma fonte de inspiração constante, principalmente para Hollywood, de seus estúdios saem inúmeros filmes históricos desde que se iniciou o cinema de ficção. Mas qual a influência e importância do cinema, como estes filmes históricos que representam fatos e pessoas podem ser utilizados pelo ensino de História e como sair do lugar comum de usá-los somente para apontar o que não corresponde aos fatos? Esta é a intenção do debate inicial que propomos neste texto utilizando as ideias de alguns filmes e discutindo com alguns autores. No século XIX quando a história se afirma como disciplina acadêmica, as fontes consideradas confiáveis se restringiam aos documentos escritos, visto que, de acordo com Janotti (2005. p. 11), permitiam a reconstituição da história em suas relações de causa e efeito. A partir da década de 1930, a chamada École des Annales, pregou a interdisciplinaridade e, contestando os estudos históricos que privilegiavam somente o político, os historiadores passaram a rever o que consideravam fonte para a história. Em 1949 é publicado Apologia da História ou O ofício do historiador, no qual Marc Bloch diz o que entende por história e documento histórico: Como primeira característica, [do conhecimento histórico] o conhecimento de todos os fatos humanos no passado, da maior parte deles no presente, deve ser, segundo a feliz expressão de François Simiand, um conhecimento através

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de vestígios. Quer se trate das ossadas emparedadas nas muralhas da Síria, de uma palavra cuja forma ou emprego revele um costume, de um relato escrito pela testemunha de uma cena antiga ou recente, o que entendemos efetivamente por documentos senão um "vestígio" quer dizer, a marca, perceptível aos sentidos, deixada por um fenômeno em si mesmo impossível de captar? (BLOCH, 2002. p. 73) Décadas depois para Foucault (2000. p. 7-8) o documento não poderia mais ser visto pela história como “matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros”; a história deveria entender o documento como algo construído pelos homens que o deixaram apontando “formas de permanências, quer espontâneas, quer organizadas”. Ou seja, o documento não poderia mais ser visto como algo objetivo.

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“[...] o historiador tomou consciência de que o documento é um monumento, dotado de seu próprio sentido, a que não pode recorrer sem precaução. Cumpre então restituí-lo ao contexto, apreender o propósito consciente ou inconsciente mediante o qual for produzido diante de outros textos e localizar seus modos de transmissão, seu destino, suas sucessivas interpretações, graças à lingüística, à psicologia, à sociologia...” (DUMOULIN, 1993. p. 244) Em 1974, Jacques Le Goff e Pierre Nora – historiadores que já faziam parte do quadro da revista dos Annales – lançam uma obra, em três volumes, intitulada Faire de l'Historie, que no Brasil foi denominada História: Novos problemas; Novas abordagens; Novos objetos. O volume dedicado aos novos objetos relacionou uma série de vestígios – nas palavras de Bloch – que poderiam ser usados como fontes de análise das mais variadas naturezas, entre eles as imagens, que “são representações de ideais, sonhos, medos e crenças de uma época.” (SILVA; SILVA, 2006. p. 199). Para Chartier (1993), a imagem, que era considerada material de análise somente para a história da arte ou especialistas nela é, há alguns anos, fonte para o historiador independente de seu campo, pois ela tanto pode ser usada para doutrinar, para convencer, quanto para expor idéias e modos de pensar compartilhados por

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determinados grupos ou culturas. Entretanto, de acordo com Meneses (2003), as disciplinas afins da História lidam com as imagens de forma muito mais completa; [...] estamos ainda longe do patamar já atingido na Sociologia e na Antropologia: o objetivo prioritário que os autores propõem (como, aliás, no tradicional comentário de texto à francesa) é iluminar as imagens com informação histórica externa a elas, e não produzir conhecimento histórico novo a partir dessas mesmas fontes visuais. [...] Corroborando isto Cardoso e Vainfas (1997. p. 378) dizem que qualquer vestígio deixado pelo homem se reverte em trabalho para o historiador decifrar e buscar compreender os “discursos que exprimem ou contêm a história [...]”. Com estas novas concepções, o cinema foi incorporado no conjunto de documentos utilizados pelo historiador através de filmes “mudos, sonoros e coloridos, plantas de salas de exibição de filmes, letreiros, legendas, técnicas de filmagem, filmes de propaganda política [...].” (JANOTTI, 2005. p. 15). Na opinião de Napolitano (2005), os filmes, quando representam um momento ou um ambiente histórico em seus cenários, figurinos ou ornamentos, passam a impressão de realidade, como se fossem uma representação fiel do passado. Para analisarmos um filme, temos que “entender o porquê das adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas [...].” (NAPOLITANO, 2005. p. 237). Em escala menor e também reproduzindo o que ocorre em escala internacional, o cinema, seja documental, seja de ficção, é um segundo domínio que vem crescendo na atenção dos historiadores, embora com material mais disperso (o vídeo ainda está num patamar imediatamente anterior). Mas a reflexão sobre as relações entre o cinema e a História tem-se multiplicado sensivelmente em seminários, mostras, cursos, coletâneas, monografias. (MENESES, 2003. p. 20-22) Os estudos referentes ao cinema estão avançando ao considerá-lo como uma legítima fonte histórica, embora na opinião de Meneses (2003, p. 28) os trabalhos existentes sejam um tanto superficiais, precisando aprofundar ainda mais as perspectivas de análise histórica. A imagem deve ser tratada como instrumento e a sociedade como objeto das pesquisas que devem partir sempre da

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“formulação de problemas históricos, para serem encaminhados e resolvidos por intermédio de fontes visuais, associadas a quaisquer outras fontes pertinentes.” (MENESES, 2003. p. 28). Pesquisas pioneiras envolvendo o cinema foram feitas pelo historiador Marc Ferro, que publicou um dos artigos que constituem a obra História: novos objetos (1974). Intitulado “O filme: uma contra-análise da sociedade?” [original de 1971], o artigo discute a importância da película fílmica como fonte e as formas como pode ser tratada e analisada pelos historiadores.

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Contudo, a história ainda tem um longo caminho a percorrer até conseguir desenvolver os estudos com as imagens em todas as suas possibilidades. Prova disto são as atuais contestações à metodologia de Ferro. Conforme Napolitano (2005), sua visão privilegia o documentário como fonte de análise, argumentando que sofre menos manipulação em sua produção, enquanto pesquisadores como Pierre Sorlin (sociologia) e Eduardo Morettin (história) defendem que isto pouco importa: o que importa é o discurso do filme e a análise de sua narrativa. Quando foi apresentado pelos irmãos Lumiere no final do século XIX, o filme era considerado divertimento de feira, produto de quermesse, atrativo somente para os iletrados, miseráveis, populacho inculto. A primeira intenção deles era filmar a vida, numa correspondência entre a imagem animada e o real posto que a imagem tem um efeito marcante sobre a memória e o filme, por sua vez, tem um efeito de guardar os momentos para a posteridade. De acordo com Le Goff (2003) a memória tem a função de conservar informações para atualizá-las e às impressões do passado que representa. Sendo assim, o cinema, como a música, faz parte da memória involuntária que suscita sentimentos e lembranças, momentos e acontecimentos, “experiências fixadas que, no entanto, não estão estáticas, mas sempre relidas no presente.” (PEREIRA, 2007. p. 158-169). O cinema pode ser utilizado como lugar de memória, como o local que transmite as memórias ocultadas e sua capacidade de demonstrar, através das imagens, os relatos e os sentimentos que não são tão óbvios no documento escrito. A análise das manipulações que são feitas nas narrativas e imagens cinematográficas pode demonstrar a fragilidade das certezas e seus limites.

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[...] o cinema é fonte de história, não somente ao construir representações da realidade, específicas e datadas, mais fazendo emergir maneiras de ver, de pensar, de fazer e de sentir. Ele é fonte para a história, ainda que como documento histórico, o filme não produza, nem proponha nunca um "reflexo" direto da sociedade, mais uma versão mediada por razões que dizer respeito à sua função. Entretanto ele é fonte sobre a história, tal qual ela se constitui, na medida em que existem processos de escrita cinematográfica comparáveis àqueles da história mesma. (LAGNY, 2009. p. 105-106) Em seu início, o cinema era desprezado pelos intelectuais e pela elite que se proclamava culta, sendo até 1960, desprezado também pela academia, mas as mudanças no conceito de fonte histórica mudaram esta visão e “hoje, o filme tem direito de cidadania, tantos nos arquivos, quanto nas pesquisas.” (FERRO, 2010. p. 9). Sendo assim o cinema, mais que fonte ou objeto, é também agente da História, haja vista as possibilidades de compreensão da sociedade que produz e recepciona os filmes, no entendimento das mudanças sociais. Cada época entende de forma diferente o mesmo filme e o que produz significado para uns, não representa nada para outros. E a leitura histórica do filme e a leitura cinematográfica da História permitem atingir pontos nem sempre claros nas análises históricas. Pertencente ao campo de estudos da História Cultural, as imagens – parte da composição de um filme – são representações dos homens sobre si próprios e sua época, seus valores, sonhos, medos, estando repletos de conteúdos simbólicos nem sempre óbvios que são entendidos de forma diferente em cada sociedade. “Da pintura ao cinema, da história em quadrinhos à fotografia, do desenho à televisão, tais imagens povoam a vida a vida e a representam, oferecendo um campo enorme às pesquisas dos historiadores.” (PESAVENTO, 2005. p. 89). Na esteira do trabalho de Ferro, surgiram inúmeros outros que discutem as relações entre a história e o cinema visto que, o filme, imagem em movimento, tem o poder de transportar o público para outra realidade, por passar a impressão de as imagens terem sido capturadas do acontecimento, do real. Por este prisma o cinema é,

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por excelência, uma fonte histórica de importância inquestionável na história contemporânea por sua capacidade de atingir a todos, de moldar mentalidades, sentimentos e emoções além de alcançar, com grande facilidade, parcelas variadas de todas as camadas sociais e culturais. Entretanto, como qualquer outro documento, ele só se torna fonte quando é utilizado por um historiador na busca por uma resposta, por um sentido para sua existência e sua importância. Sem um objetivo para sua busca o documento, seja ele textual ou imagético, perde seu sentido e torna-se apenas um vestígio de outro período.

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São muitas as possibilidades de interpretação de um filme, como qualquer documento histórico, o cinema é influenciado pelo seu tempo, pelo meio onde está inserido, evidenciando a marca de seus produtores - estes também impregnados dos conceitos, acontecimentos e modo de ver a vida de sua época. Segundo Nova (1996), a maior parte do conteúdo de um filme, especialmente os comerciais, é ditada pelos gostos do público que, por sua vez é influenciado pelo filme, numa relação de troca constante. Sendo assim, podemos entender um determinado momento através do que é passado nas narrativas dos filmes. Neste sentido, Lagny (2009) chama atenção sobre o cuidado que se deve ter no trabalho com o cinema como fonte histórica. Primeiro porque ele não é somente um testemunho isolado, faz parte de um conjunto de interações sociais e representações. Cada grupo lê o filme conforme seu conhecimento anterior e o pesquisador deve estar atento para o fato de não considerar óbvio o que não o é. Além disto, é fundamental saber encontrar o filme que responda suas questões. Depois há de se saber ler e interpretar os filmes levando em consideração todo o contexto que o envolve, para ela Fazer do cinema uma fonte histórica determina evidentemente para começar avaliar a significação do filme no seu contexto sócio-econômico e político, localizado, muito freqüentemente, no quadro nacional, e, é claro datado. As estruturas de produção dos filmes têm sua história própria. [...] Análises precisas são, portanto, necessárias sobre a história dos próprios filmes no contexto histórico geral, para avaliar as significações possíveis da produção de um período, assim como estudar as formas de representações que eles utilizam. (LAGNY, 2009. p. 124).

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O cinema no século XX tem relação com a história e a historicidade, a idéia é que não só se use o cinema como fonte da história, mas se faça história sob a influência do cinema e da imagem. Se a história escrita está condicionada pelas convenções narrativas e lingüísticas, o mesmo ocorre com a história visual, ainda que neste caso sejam as próprias do gênero cinematográfico. Se aceitarmos que as narrações escritas são "ficções narrativas", então as narrações visuais devem ser consideradas "ficções visuais"; ou seja, não como espelhos do passado, mas sim como representações do mesmo. (ROSENSTONE, 1998. p.7) Para Rosenstone (1998), as imagens trazem à história o desafio de trabalhar o audiovisual com o escrito e de passar a considerar a validade da história em imagens da mesma forma que a história escrita, sendo apenas sua forma de apresentar e representar diferente, basta para isto quebrar o cânone escrito em razão de outras formas de apresentação da narrativa histórica. O cinema como fonte para a história já é uma certeza, mas ainda temos que entender e superar as dificuldades em seu uso. Uma das dificuldades apontada por Lagny (2009) é que o filme não é feito para ser arquivado como documento, mas para ser vendido como entretenimento. Desta forma ele tem classificações que são especificas de seu meio e podem causar confusão. Os historiadores tendem a dar mais ênfase aos documentários, considerados como filmes mais próximos da realidade, que buscam a transmissão do real, mesmo em suas montagens. Porém os filmes de ficção também podem ser considerados como fontes por suas representações nas imagens. Além disto, os limites entre os documentários e os filmes de ficção são difíceis de traçar. Toda esta discussão é mais latente em torno dos filmes de ficção que retratam acontecimentos históricos. Esta vertente é o foco da atenção de Rosenstone (2010) ao comparálos. [...] o pensamento histórico envolvido nos dramas comerciais é, em grande parte, o mesmo [do documentário histórico]: indivíduos (um, dois ou um pequeno grupo) estão no centro do processo histórico. Através de seus olhos e vidas, aventuras e amores, vemos greves, invasões,

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revoluções, ditaduras, conflitos étnicos, experiências científicas, batalhas jurídicas, movimentos políticos, genocídios. Mas fazemos mais do que apenas ver: também sentimos. (ROSENSTONE, 2010. p. 33)

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A grande dificuldade está em vermos a história como escrita, e acreditar que esta escrita é a expressão da verdade enquanto os filmes, como imagens construídas não tem o mesmo estatuto de verdade. O mesmo Rosenstone (2009) faz uma análise de algumas obras do cineasta Oliver Stone e sua visão da história dos Estados Unidos em Nascido em 4 de julho (1989), Platoon (1986) , JFK, a pergunta que não quer calar (1991) como uma representação da história. Nele, eventos são inventados e modificados, momentos chaves são retratados conforme a visão do diretor, mas eles estão lá. A questão é que tanto o filme, quanto a escrita são manipulados. E este é o ponto do autor, a narrativa cinematográfica, assim como a narrativa histórica são construções, o que não tira o mérito e não invalida o uso dos filmes como fontes para o conhecimento da história, desde que, esteja clara e o historiador leve em conta está manipulação, analisando não somente as imagens, mas a forma como são montadas e desencadeada a ação juntamente com o texto, os diálogos, os sons, a narrativa cinematográfica. Um bom exemplo destas questões é o filme O retorno de Martin Guerre (1982) adaptado do livro da historiadora Natalie Zemon Davis que faz a análise historiográfica do caso do camponês Martin Guerre, que em pleno século XVI, após casar-se com a jovem e bela Bertrande de Rols fora declarado impotente, abandonara a esposa e a aldeia, e teve o seu lugar ocupado por um impostor, que lhe roubara o nome e a posição. A autora utilizou materiais retirados da literatura ficcional, das narrativas populares junto com uma farta documentação cartorial, de inventários, testamentos, cartas pessoais, listas de óbitos para compor a narrativa. A própria Davis, menciona no prefácio, que muitos pontos da vida de Martin Guerre e da aldeia eram obscuros e que para manter uma narrativa concisa ela preencheu algumas lacunas de acordo com sua interpretação dos documentos. Isto é inventar, pura e simplesmente, embora sejam raros os casos em que os historiadores admitem este “preenchimento de lacunas”. O ponto onde queremos chegar é que os filmes, sejam de ficção ou documentários, são tão válidos para a história quanto os documentos escritos e em todos há manipulação

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para a reconstrução do passado. Esta mais que superada a idéia de “verdade histórica”. O fato é que os filmes, as imagens são necessárias para a criação do imaginário social, neles podemos observar os valores e comportamentos cotidianos. A escrita da História, com seus cânones e suas regras, sua forma de linguagem conceitual afasta o público geral dos livros, este espaço é preenchido pelo audiovisual que, através das imagens torna a História mais fluida e quase um divertimento, desta forma, o imaginário social se prende ao que é visto nos filmes e toma suas representações como expressão da verdade histórica. Isto desperta a desconfiança de grande parte dos historiadores em relação ao audiovisual, de acordo com Hagemeyer (2012). Isto é ainda mais evidente quando se tratam de produções hollywoodianas, do cinema industrial e comercial. Com seu objetivo claro de divertir e entreter, nem sempre preso a qualquer metodologia histórica, o cinema usa personagens e fatos históricos mesclados à narrativa ficcional e geralmente o público toma o que vê na tela como uma expressão da verdade. É o caso de muitos filmes já analisados por este prisma, Gladiador (2000),Cruzada (2005), entre outros. Filmes que utilizaram ambientes e personagens históricos e acabaram por dar a entender que os fatos ali ocorridos foram reais ou que aquela era a história real dos personagens. As desconfianças em relação ao cinema norte-americano são ainda maiores Embora criticada por sua “superficialidade”, “repetição de clichês”, bem como suas “implicações ideológicas” no amortecimento da consciência das massas, as produções hollywoodianas se mantiveram ao longo do século XX como as maiores bilheterias. [...] De qualquer forma, se aceitamos o jogo proposto no cinema clássico como válido (álias, como boa parte do cinema internacional fez ao imitar seus procedimentos), devemos reconhecer a maestria atingida pelos estúdios norte-americanos na produção de efeitos narrativos com a câmera e a maneira como através deles consegue prender nossa atenção. (HAGEMEYER, 2012. p. 85)

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Apesar das críticas e reservas em relação ao cinema hollywoodiano de grande escala, não podemos ignorar seu alcance e seu poder de criar imaginários. Em nossa pesquisa histórica, optamos por trabalhar com dois filmes hollywoodianos, dramas comerciais sem nenhuma intenção de ser históricos. São eles Drácula de Bram Stoker (1992) eEntrevista com o vampiro (1994). Ambos tem como personagem principal um vampiro e narram sua história, em Drácula, do ponto de vista de terceiros, em Entrevista com o vampiro, do ponto de vista do próprio vampiro. Entretanto o que nos chama atenção são as várias questões históricas que fazem parte da trama e que podemos analisar.

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Partindo de Drácula, um dos pontos diz respeito exatamente a questão discutida anteriormente sobre a vinculação entre ficção e história. Adaptado do romance de Bram Stoker escrito em 1897, o filme produzido por Francis Ford Coppola criou um prólogo com a intenção de contar a história do conde Drácula. O filme inicia com uma introdução informando que esta se passa no ano de 1462 após a queda de Constantinopla quando os turcos otomanos tentavam dominar a Europa através das fronteiras orientais pela Transilvânia (atual Romênia). Para combatê-los surgiu um cavaleiro da Ordem do Dragão chamado Draculea. Saindo em combate ele deixa à sua espera a noiva, Elisabeta. As cenas que se referem à batalha mostram os inimigos sendo empalados, numa clara alusão à Vlad Tepes, o Empalador, personagem histórico mencionado de forma sutil por Stoker. Vencendo a batalha, ele se ajoelha e agradece à Deus por seu sucesso. Para se vingar da vitória os turcos atiram uma flecha no castelo dando a falsa notícia da morte de Drácula. Elisabeta, em desespero, se atira no rio cometendo o maior dos sacrilégios, o suicídio. Ao retornar ele encontra a noiva morta e é informado pelos padres ortodoxos que sua alma não encontrará descanso, conforme os preceitos da tradição católica ortodoxa. Drácula se revolta e crava sua espada na cruz, renunciando a Deus e bebendo o sangue que começa a jorrar do corte feito no objeto sagrado, assim se autocondenando às trevas. Esta seqüência de cenas faz a conexão definitiva de Coppola entre Drácula, o vampiro e Drácula, o personagem histórico fundindo-os em um só personagem. A vinculação feita pelo filme Drácula de Bram Stoker com Vlad Tepes criou a idéia que a história ocorreu daquela forma abrindo questionamentos sobre a verdadeira natureza de Drácula e sua

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história ao mesmo tempo que os acontecimentos retratados na película foram tomados como uma biografia, revigorando uma série de lendas sobre ele, inclusive lendas que dizem ser ele um mortovivo. Em Entrevista com o vampiro (1994), Louis de Pointe du Lac, o protagonista, é um vampiro solitário com cerca de 200 anos, considera-se vazio e sem propósito. Ao encontrar um repórter em um bar, decide lhe contar sua história para reviver seu passado e refletir sobre suas decisões. Ele inicia sua narrativa pelo ano em que foi transformado em vampiro, 1791; fala de sua existência como um morto-vivo, suas angústias e apreensões, demonstra ser uma criatura sempre em busca de entendimento de si e do mundo a sua volta. Foi transformado por Lestat de Liancourt, um vampiro tipicamente literário, que não tem moral, nem qualquer preocupação, vive apenas para satisfazer seu desejo por sangue e diversão. Em seu caminho, eles encontram Claudia, uma órfã que transformam numa criança vampiro. Louis, Lestat e Claudia têm finais diferentes e sua convivência se passa entre amor e ódio, frustrações e tentativas de fazer parte do mundo passando despercebidos entre os mortais através dos séculos, vendo a sociedade modificar-se e buscando seu espaço nela. Nele podemos analisar através do protagonista as angústias e os medos do mundo pós moderno, da sociedade cada vez mais individualista e solitária, em sua fala final ao repórter ele diz ser uma criatura vazia e sem propósito. Todas estas questões, que discutimos de maneira breve e simples, não se esgotam. Ainda há muito a ser esclarecido e modificado no que diz respeito ao uso de fontes audiovisuais na história, entretanto um longo caminho já foi percorrido e a validação de estudos, como o nosso, depende da adequação às regras metodológicas do processo de pesquisa histórico, como adverte Lagny (2009) o filme, como qualquer outro documento, deve responder às questões do historiador. Ser considerado e analisado em seu contexto, trabalhado junto à outras fontes complementares que também devem ser analisadas, como sua produção e recepção, sua narração e sua organização para que possa produzir sentido sendo utilizado e analisado visando questões além do campo cinematográfico, visto que, ele não é uma produção isolada, ele é parte da cultura em que está inserido. Ele é um produto situado num contexto cultural e

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ligado à imagem, à arte, à música, à literatura principalmente, pois a maioria dos filmes são adaptações literárias. Além disto, para trabalhar com cinema o historiador deve ter conhecimento da história do cinema e saber ler as imagens, da narração e suas construções, a questão do ponto de vista abordado no filme e o que ele pretende demonstrar com isto. Mesmo sendo uma fonte ainda com grandes dificuldades metodológicas, o cinema é um rico documento histórico e ainda há muito a ser explorado pelos historiadores. Postas estas questões, nos arriscamos em propor algumas questões e metodologias pensadas por Jorge Nóvoa (2009) o historiador ou o professor não precisa ter um conhecimento profundo da estética, técnicas e linguagem cinematográficas para fazer uma boa análise dos filmes, basta saber usá-lo como documento visto que, como já dissemos anteriormente, ele é um modelador de mentalidades, sentimentos, emoções e registro de imaginários e ações dos homens independente de seu local geográfico.

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Um gesto, as pessoas nas ruas, o estilo dos edifícios, o interior das casas, a indumentária dos personagens em um bar, a expressão de seus rostos, tudo tem a sua importância exatamente porque constituem a matéria de outra história, distinta da história narrada. [...] as crenças, as intenções, ou seja, o imaginário humano, faz parte da história. (NÓVOA, 2009. p. 30) Para este autor uma sugestão de metodologia para o uso em sala de aula seria realizar um planejamento prévio definindo qual e porquê determinada temática; o que pretendemos ensinar com ela; fazer um levantamento das películas disponíveis; estabelecer a conexão entre seu conteúdo e a temática a ser tratada; pesquisar os processos e fatos históricos abordados pelos filmes e o período em que a produção foi realizada; pesquisar a biografia dos autores e as condições de produção; analisar, criticar e problematizar o conteúdo das películas, somente assim poderemos transforma-las em fontes documentais, independentes de seu gênero ou narrativa, se é uma ficção, um documentário, um filme épico ou mesmo de terror como aqueles que são objeto de nossa pesquisa. O que importa é saber utilizar e aproveitar a riqueza de recursos que temos em mãos ao trabalhar com imagens cinematográficas.

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CONSCIÊNCIA HISTÓRICA, NARRATIVA HISTÓRICA E ENSINO Rodrigo Otávio dos Santos [Rodrigo Scama] OPET O presente artigo pretende ser uma breve introdução a alguns conceitos formulados por Jörn Rüsen e demais pesquisadores que de alguma forma se debruçaram sobre a questão da História em nosso cotidiano. Esperamos que este texto não seja usado apenas por pesquisadores e historiadores, mas também por entusiastas leigos da história e também aqueles que jamais se interessaram em pesquisar o tema. Tentamos dissertar, de forma deveras branda, sobre dois conceitos apresentados por Rüsen e Koselleck e que são caros aos historiadores. Estes conceitos, porém, serão apresentados de forma simples, para que não se restrinja apenas ao círculo de historiadores e que, esperamos, possam se utilizar deste artigo alunos em seus primeiros meses de academia, tentando elucidar e explicar de forma tranquila consciência histórica e narrativa. Ao final do texto, tentaremos mostrar como ambas formulações ajudam no desenvolvimento do professor e, principalmente, no entendimento do aluno em sala de aula acerca da história e do mundo que o rodeia. Consciência Histórica Afinal, qual é a razão de estudarmos história? Gostaríamos de começar com as ideias de Jörn Rüsen, pensador e historiador alemão. Sua principal contribuição para a teoria da História e mesmo para a pesquisa histórica é o conceito de “consciência histórica”. A partir deste conceito Rüsen define como e por que devemos estudar coisas que ocorreram no passado dos seres humanos. Qual a razão de estudarmos metodologicamente os feitos já acontecidos? Lembrando que sempre pode-se voltar ao passado por meio de memórias de pessoas conhecidas, relatos e até mesmo fofocas. Por que, então, estudar isso com o caráter de ciência? Há, nos estudos de Rüsen, uma matriz conceitual que é primordial para o estudo da história e para a discussão da relação entre o saber histórico e a vida prática. Para o pensador alemão, não há como dissociar a História da vida prática. Quando este erro é cometido, descola-se a História do interesse dos indivíduos. Marc Bloch, notório historiador francês que foi fundador da escola dos Annales já

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informava que a História deveria ser, mais do que útil, divertida e motivadora. Do contrário, não restariam pesquisadores. A curiosidade deve estar sempre aflorada, e esta surge sempre relacionada a algo presente no cotidiano do pesquisador. A matriz que Rüsen desenvolve procura entender a noção da consciência histórica, que é a forma como “utilizamos” a História para entendermos nosso mundo atual e tentamos forjar um melhor para o dia seguinte:

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Pela matriz aqui posta, percebemos que há uma divisão clara entre a ciência especializada – que é feita por profissionais historiadores – e a vida prática – que é vivenciada por todas as pessoas, historiadoras ou não. Com esta divisão, Rüsen explicita que a história é uma ciência que escapa do “laboratório” ou dos entusiastas e afeta todos os homens em todos os tempos. A consciência histórica parece ser inerente, portanto, a todos os seres humanos. A consciência histórica é um elemento chave na orientação individual, dando à vida prática uma matriz temporal, um marco,

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uma concepção da passagem do tempo, necessária e fundamental à vida, já que perpassa todos os assuntos na vida cotidiana. A ideia de Rüsen é uma operação intelectual para tentar apreender todo o contexto que o cerca, já que a História é um nexo significativo entre passado, presente e futuro, entre o ontem, o hoje e o amanhã. A partir da consciência histórica o “ser” e o “dever” humanos são misturados e adquirem significado. É com ela que forja-se a parte prática da História, que dirige os homens, que os move nesta ou naquela direção. A consciência histórica de Rüsen deve ser utilizada para aprender o passado, compreender o presente e tentar moldar o futuro. A consciência histórica age para melhorar nosso modo de orientação em situações reais da vida presente e cotidiana. É por meio deste conceito que buscamos compreender o que aconteceu para entender o que está acontecendo neste momento e tentar modificar, melhorar, o que acontecerá daqui a instantes. Além disso, a face palpável da consciência histórica, que é a narrativa que nos fala Paul Ricoeur (e que veremos a seguir), tem o poder de ensinar os elementos básicos dos acontecimentos não apenas para o leitor, aquele que lê ou ouve a narração, mas também para o escritor, para o criador desta. O senso histórico como orientação espacial une o passado ao presente para que consigamos compreender o que está acontecendo no momento em que fazemos este exercício mental. Mas também implica na própria referência ao tempo futuro, já que pensamos nas nossas maneiras de atuar em relação àquilo que ainda não chegou, possivelmente facilitando as decisões vindouras. Rüsen fala que “a história é o espelho da realidade passada, na qual o presente aponta para aprender algo sobre seu futuro” (RÜSEN, 2011 p. 56). A consciência histórica trata o passado como experiência, e a história tem uma função tão significativa que consegue abranger ao mesmo tempo presente, passado e futuro. A história, não nos enganemos, é uma tradução do passado. E como tradução, possui, além de um tradutor com nome e sobrenome, uma intenção, uma forma de olhar e abordar o passado com vistas sempre para o futuro. Ao fazermos história, estamos traduzindo um passado com o olhar direcionado para a nossa própria vida e, mais do que isso, com o olhar direcionado para o nosso futuro. Nenhuma narrativa histórica – em verdade, nenhuma narrativa, de nenhuma forma – é isenta.

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Não existe historiador, matemático, bombeiro, médico ou qualquer tipo de profissional ou ser humano isento. Todos desejam um futuro melhor e mais auspicioso. Por isso mesmo a consciência histórica deve fazer o presente decifrável e conferir uma perspectiva de melhoria em relação ao futuro. Esta intencionalidade da ação é uma das principais funções da consciência histórica, já que ela proporciona uma direção temporal, uma orientação para intencionalmente guiar a ação. E esta orientação tem lugar em duas esferas da vida: a vida prática e a subjetividade interna dos atores. A dimensão temporal da vida prática, cotidiana, é o aspecto externo da orientação histórica, já que se consegue perceber a atividade humana ao longo do tempo. Já o aspecto interno diz respeito à subjetividade humana, ou seja, a autocompreensão e conhecimento das características que acabam por formar a identidade histórica, ou, como diz Rüsen (2011, p. 58), “a consistência constitutiva das dimensões temporais da personalidade humana”.

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Com isso, o homem consegue ampliar seu limite temporal para além da sua vida, além dos anos em que passa no planeta Terra e da sua própria mortalidade. Por meio da consciência histórica, o indivíduo faz parte de um todo maior do que sua própria vida. Narrativa Histórica A forma com a qual a História se apresenta ao seu “consumidor” é a narração. A consciência histórica se manifesta por meio do relato de uma história. Koselleck e Dosse explicam que a disciplina História pode ser encarada como uma sequência de fatos ao mesmo tempo que pode ser vista como a narrativa destes fatos. Ao mesmo tempo que a história é o que ocorreu, também é a forma como este acontecimento foi narrado. Apoiando-se em Bakhtin, podemos dizer que sempre há o dialogismo na escrita, assim, ao mesmo tempo que o historiador escreve, ele também está lendo e re-lendo suas fontes e estudos prévios, bem como o leitor, que também está, no momento da leitura, forjando conexões entre suas leituras prévias, seu contexto e seu cabedal anterior de informações e vivências. E, aumentando o conceito dialógico, podemos constatar, ainda apoiados em Bakhtin, que tanto escritor quanto leitor (sejam eles historiadores ou não) estão cerceados pela sociedade, que de certa forma coloca algumas imposições na leitura e na escrita, como já informou Foucault.

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François Dosse diz que a narrativa é a medição, e que não pode haver transmissão de conteúdo sem a presença de um “objeto” mediador. Quem faz este papel mediador do tempo passado para o tempo presente almejando o tempo futuro é a narrativa, que faz a ponte entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas, que são duas categorias muito bem descritas por Reinhard Koselleck. Este autor diz que Espaço de Experiência e Horizonte de Expectativas são equivalentes ao Espaço e o Tempo, tamanha sua importância e sua cumplicidade. Não há espaço de experiência sem horizonte de expectativas e vice-versa. A experiência é o passado atual, que o indivíduo consegue se lembrar e cujos acontecimentos foram incorporados. Nesta categoria mesclam-se tanto as elucubrações racionais, quanto os pensamentos inconscientes, que não estão efetivamente postos no conhecimento. Além disso, na experiência de cada ser humano, transmitida por instituições e gerações, sempre permanecem as experiências alheias, que constituem cabedal de conhecimento ao indivíduo. Já a expectativa é – ao mesmo tempo – ligada à pessoa e ao interpessoal, mas com suas vistas apontadas para o futuro próximo, a expectativa do que se realiza no hoje, mas que de fato ainda não ocorreu e que pode apenas ser previsto. Por isso podemos, em conjunto com Koselleck, dizer que pertencem a esta categoria a esperança e o medo, a inquietude, a vontade e os desejos, mas também as análises racionais, a visão receptiva e a curiosidade. Apoiados pela expectativa e pela experiência, pessoas escrevem, diariamente, suas histórias e histórias de outrem. A história é a narração de uma ação. Por isso podemos caracterizar a competência específica e essencial da consciência histórica como “competência narrativa”, ou seja, a capacidade de utilizar procedimentos que dão sentido ao passado, relacionando-o ao presente por meio da recordação do que já aconteceu. Com isso, dá-se sentido ao passado. Para dar sentido ao passado, são necessárias, de acordo com Rüsen, três elementos da narrativa histórica: forma, conteúdo e função. Em relação ao conteúdo, podemos pensar em uma “competência para a experiência histórica”; em relação à forma, podemos falar de uma “competência para interpretação histórica”; e por último, em relação à função, uma “competência de orientação histórica”. Ou seja, experiência, interpretação e orientação.

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A primeira parte, ou seja, a competência de experiência supõe uma capacidade de olhar as experiências temporais. Diz respeito a habilidade de olhar para o passado e resgatar sua qualidade temporal, mostrando-o diferente do presente. Na segunda parte, sobre a competência de interpretação, deve-se diminuir as diferenças de tempo entre presente e passado e também entre presente e futuro, almejando uma concepção de um todo temporal significativo que compreende todas as dimensões do tempo. A temporalidade da vida humana talvez seja o principal instrumento desta interpretação, que nada mais é do que a tradução de experiências da realidade passada a uma compreensão do presente e a expectativas em relação ao futuro. A terceira e última parte, ou seja, a competência de orientação, supõe ser capaz de fazer uso do todo temporal, com toda experiência adquirida com propósito de orientação da vida. Neste ponto é necessário guiar a ação por meio das noções de mudança temporal, fazendo a articulação entre o conhecimento histórico e a identidade humana, criando uma trama complexa do conhecimento histórico.

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Consciência Histórica, Narrativa Histórica e Educação Um dos pontos principais, enquanto professor de História, é fazer com que ambas as características vistas anteriormente acabem por se transformar em novas formas de enxergar o mundo, por parte dos alunos. Perceber o cotidiano que o cerca a levando em consideração a consciência histórica é algo deveras interessante tanto para o professor quanto, naturalmente, para o aluno. A ideia da História enquanto ciência para chegar ao futuro é praticamente desconhecida de alunos no ensino médio e fundamental. Notadamente, quando o professor de História não se preocupa com as funções da sua disciplina, acaba por ter uma aula vista como modorrenta, chata ou pior: inútil. Cabe ao professor, como informa Rüsen e Bloch, trazer para seus alunos uma História instigante, provocadora, que o faça refletir sobre seu futuro a partir do seu passado. Tentar fazer com que aqueles alunos percebam o passar do tempo enquanto processo no qual ele e sua comunidade fazem parte. Cabe ao docente instigar, motivar e mostrar aos alunos que a sua vida cotidiana influencia na História da “humanidade”, bem como a História até aqui vivida influenciou seu presente e influenciará seu futuro. Rüsen (2011 p.43) diz que “o aprendizado histórico pode, portanto, ser compreendido

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como um processo mental de construção de sentido sobre a experiência do tempo através da narrativa histórica”, e este processo mental deve ser capitaneado pelo professor durante todo o processo de ensino da disciplina. É este processo – e até mesmo sua explicitação – que deixam a aula instigante. O processo da narrativa também ajudará o processor a transformar esta disciplina em algo interessante para o aluno. Afinal, a própria narrativa pode ser vista como aprendizado, já que com ela o aluno pode vir a perceber que a História é um fator de orientação cultural da vida prática humana, como já apontava Rüsen. Encontrar e “dar um nó” nas narrativas do passado, do presente e do futuro é o que gera a identificação do aluno com a disciplina, e o que faz com que esta deixe de ser enfadonha e passe a ser admirada, estudada e, principalmente, compreendida. Ao promover e explicitar a consciência histórica nos alunos, o professor está possivelmente gerando cidadãos mais conscientes, e ao utilizar-se da narrativa para ambientar e fomentar o lugar no mundo de cada aluno, o professor está criando cidadãos críticos. E, a partir da consciência e da crítica, conseguimos promover reais mudanças, possivelmente alterando o status quo e as possibilidades de melhoria da sociedade vigente. Bibliografia BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Editora da UFPR, 2011. RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Brasília: Editora da UNB, 2010. RÜSEN, Jörn. Razão Histórica. Brasília: Editora da UNB, 2010.

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OBJETOS ANTIGOS NO ENSINO DE HISTÓRIA: CONTRIBUIÇÕES PARA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO HISTÓRICO DOS ESTUDANTES Zuleide Maria Matulle UNESPAR O presente texto é uma reflexão sobre o ensino de História a partir das discussões sobre Educação História, corrente que se propõem a entender como ocorre o desenvolvimento do pensamento histórico e a formação da consciência histórica de crianças e jovens. Para tanto, nos orientamos através das investigações realizadas pelos cursos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná, relacionados ao LAPEDUH, Laboratório de Investigação em Educação Histórica, que investiga as ideias históricas de crianças e jovens. Nessa linha de raciocínio sobre o ensino de História vemos a necessidade de realizar uma intervenção adequada, utilizando-se de fontes históricas, da análise e produção de narrativas históricas, “[...] tendo como objetivo uma progressão do saber histórico nos jovens e nas crianças, à luz do conhecimento científico e articulado as necessidades de compreensão da realidade social” (SCHMIDT; BARCA, 2009, p. 12). Em contato com materiais construídos pelas pesquisadoras dessa corrente como, por exemplo, Maria Auxiliadora Schmidt, Isabel Barca e Marlene Cainelli, percebemos que o ensino de História não pode ser desvinculado da teoria da História. É primordial que os estudantes compreendam como o conhecimento do passado chega até nós. Eles precisam ter uma noção dos métodos, dos procedimentos que o historiador utiliza para produzir o conhecimento histórico. Esses autores apontam a necessidade de se trabalhar no sentido de ajudar nossos estudantes a pensarem o mundo historicamente. Quer dizer, entender um mundo plural, além de si e de seu tempo, bem como o entendimento de que a História não está pronta, ela é produzida, aperfeiçoada, reformulada constantemente com base em evidências históricas e métodos específicos. No cotidiano da sala de aula verificamos que é comum os estudantes do Ensino Fundamental terem dificuldades em compreender, por exemplo, como o passado chega até nós, como se dá a escrita da História. Acredito que ainda estejamos sofrendo com os resquícios

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de um ensino linear dos acontecimentos, de uma visão eurocêntrica da história, da informação ao invés do conhecimento, e principalmente, da ideia de que o conhecimento do passado é algo fixo - que não muda nunca. A história, muitas vezes, é ensinada e entendida pelos estudantes como um evento estanque e distante do sujeito que aprende, sendo que o que precisa ser considerado é a noção de processo, de múltiplas interpretações. É importante destacar que professores e estudantes discutem uma história “polida”, uma história que é produzida pelos historiadores, o passado não muda, mas o conhecimento sobre o passado é alterado constantemente.

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Para um ensino que favoreça o pensamento histórico dos estudantes é necessário fugir das simplificações. Analisando o desenvolvimento do pensamento histórico dos estudantes Marlene Cainelli, por exemplo, argumenta sobre a “[...] existência de uma cognição histórica que seria a possibilidade de a criança ser capaz de desenvolver raciocínios de forma elaborada, no momento em que são criadas condições de aprendizagem significativas, em relação com suas vivências prévias” (CAINELLI, 2008, p. 99). Assim, entendemos que é importante criar situações significativas de aprendizagem aos nossos estudantes, situações desafiadoras que contribuam para o desenvolvimento do pensar historicamente, ao invés da quantidade de informações soltas, muitas vezes sem sentido. Assim, resolvemos pensar sobre a utilização de objetos antigos como instrumentos para contribuir com o desenvolvimento do pensamento histórico dos estudantes do ensino Fundamental. Nossa proposta é estabelecer um diálogo sobre a necessidade de oportunizar aos estudantes experiências que relacionem o passado e o presente, que possibilitem novas leituras sobre o passado, leituras plurais. Mais que isso, que sirvam para orientar a vida prática, como destaca Rüsen (2001), quando explica que a História tem uma função didática, ou seja, ela deve orientar a vida prática, ajudar os sujeitos a se relacionar com o passado de forma a dar sentido as suas vidas no presente e perspectivar o futuro. É nosso objetivo pensar: de que forma podemos contribuir para que o estudante aprenda a ler historicamente o mundo que o rodeia? De que forma podemos ajudar na formação da consciência histórica dos estudantes? Como colaborar na transformação de informações em

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conhecimentos significativos para a vida? Nesse sentido, é interessante a perspectiva de Marlene Cainelli (2006) quando destaca que é urgente que o professor do “[...] ensino fundamental pare de tentar levar o aluno para o passado, como se fosse possível embarcar em uma máquina do tempo”. A autora entende que “[...] cabe ao professor demonstrar aos alunos que conhecer o passado só é possível se conseguimos distinguir seus rostos, falas e sentimentos no presente”, ou seja, os estudantes, assim como os historiadores, estão no presente, estudar o passado pelo passado não tem sentido. É importante que os estudantes façam conexões entre o passado e o presente, que manipulem e interpretem evidências históricas, que o conhecimento possa orientar os sujeitos no presente. Uma proposta de investigação: trabalhar com objetos antigos para contribuir no desenvolvimento do pensamento histórico dos estudantes Diante do quadro teórico que esboçamos, ainda que rápida e superficialmente, fica evidente a necessidade de desenhar experiências educativas concretas para os nossos estudantes. Entendemos que trabalhar com objetos antigos em sala de aula pode ser uma forma interessante de contribuir para ampliar os horizontes no ensino de História, optando pela investigação e desenvolvimento do pensamento histórico dos nossos jovens, pois esses materiais, ou melhor, essas evidências históricas são fruto das ações dos seres humanos no tempo e no espaço. Lembremos rapidamente da clássica obra de Marc Bloch “Apologia a História ou O Ofício de Historiador”, publicado pela primeira vez em 1949. O autor destaca que o objeto da História é por natureza o homem, melhor dizendo, as pessoas, e suas ações no tempo. Para o autor, por detrás das paisagens, dos utensílios ou das máquinas e dos documentos escritos são exatamente os homens que a história pretende apreender. Assim, entendemos que objetos são importantes ferramentas de investigação da história na sala de aula, pois nos informam sobre o modo de vida das pessoas no passado e no presente. Horta, Grunberg e Monteiro (1999, p. 12) destacam que cada objeto traz em si uma multiplicidade de aspectos e significados. Os objetos mais comuns de uso doméstico ou cotidiano podem oferecer uma gama de informações “[...] a respeito de seu contexto históricotemporal, da sociedade que o criou, usou e o transformou, dos

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gostos, valores, preferências de um grupo social, do seu nível tecnológico e artesanal, de seus hábitos, da complexa rede de relações sociais”. De acordo com os autores a observação, manipulação e a investigação de objetos podem revelar informações que permitem aos estudantes fazer conexões entre o passado e o presente, compreendendo com maior profundidade o mundo em que vivemos.

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Uma opção é organizar uma aula de campo em um museu, cujo potencial de aprendizagem é significativo. No museu temos, entre outras, a oportunidade de empreender uma investigação histórica a partir dos objetos, ou seja, explorar um museu para além dos dados cronológicos e seu conteúdo temático. Helena Pinto (2009, p. 282), utilizando as ideia de Uzzell (1999) e Nakou (2001), destaca que os museus contribuem para o aprendizado em todas as idades, pois “[...] alimentam a curiosidade, reforçam a motivação e avivam o sentido de identificação do indivíduo com o lugar e o passado”. Isso é bastante significativo para determinadas áreas do conhecimento como, por exemplo, a História, pois “[...] o pensamento histórico dos alunos é estimulado, uma vez que se rodeiam de evidencias materiais da vida de uma comunidade humana no passado”. Os objetos dos museus, utilizados de forma adequada, estimulam a interpretação histórica. Mas, que tal levar objetos antigos para a sala de aula, promovendo sua utilização como documento histórico? Para Bittencourt (2009, p. 355), objetos como mesas, vasos de cerâmica, roupas, tapetes, cadeiras, automóveis ou locomotivas, armas e moedas, podem ser transformados de simples objetos da vida cotidiana, em documentos ou em material didático, dotados de sentido, que servirão como fonte de análise, de interpretação e de crítica por parte dos estudantes. Sendo assim, como conduzir uma atividade de interpretação de objetos antigos? Certamente a atividade precisa ser planejada de acordo com as características de cada turma. Os professores devem observar o contexto escolar e organizar a atividade de forma que os objetivos sejam alcançados. Inicialmente, o professor pode levar um objeto antigo para a sala de aula, que podemos chamar de objeto gerador. Um objeto, de preferência, que não seja familiar aos estudantes e que possibilite refletir sobre questões do cotidiano de quem o utilizava, no passado, e suas semelhanças com os objetos dos dias de hoje.

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Uma boa sugestão é formar um circulo com os estudantes, colocar o objeto no centro do circulo para que todos o observem e pedir que respondam algumas questões sobre o referido objeto. Importante destacar que nessa perspectiva de pensar o ensino de História, entendemos que a pessoa em situação de aprendizagem tem uma bagagem cultural, conhecimentos específicos, que devem ser utilizados pelo professor. Muitas vezes esses conhecimentos podem ser baseados no senso comum, baseado nas suas experiências, do seu ambiente cultural, e o que os estudantes precisam é saber que há outras ideias. A historiadora portuguesa Isabel Barca, pesquisadora da Educação Histórica, em entrevista a revista Nova Escola, em março de 2013, aposta na utilização de objetos antigos em aulas de História. Ela explica que o professor deve “[...] propor uma observação cuidadosa do objeto. Depois disso, ele tem de fazer perguntas para os alunos sobre o passado”. No trabalho com objetos é importante convidar os estudantes a imaginar a vida das pessoas a quem ele pertencia. Podemos investigar o objeto questionando: que é esse objeto? De que material é feito? Como foi feito (técnica artesanal ou fabril)? Qual a sua finalidade? De que maneira era usado? Quem utilizou esses objetos (homens, mulheres, crianças)? Que idade tem esse objeto? Ainda é utilizado? Para a autora a análise dessas respostas ajuda a entender “[...] até que ponto as crianças ultrapassam a simples materialidade dos exemplares, se os relacionam com uma comunidade e um estilo de vida e de que forma o fazem” (BARCA, 2013). Para a autora é o início de um pensamento histórico. Julgamos importante que o professor extraia vida desses objetos. Devemos situar o objeto no tempo e no espaço a qual pertence. É fundamental estabelecer pontes com o presente, ou seja, que se discuta as mudanças e permanências a partir do objeto em observação, sempre pontuando a ação das pessoas na movimentação e na escrita da História. Se for possível, é interessante utilizar o objeto com os estudantes para que eles percebam o seu funcionamento e possam fazer comparações com os objetos de hoje em dia, nossas formas de viver atualmente, bem como a compreensão do que significava esse objeto para as pessoas que o utilizaram. Depois, cada aluno pode ser convidado a trazer um objeto que pertenceu a sua família - juntamente com uma pequena pesquisa

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sobre o referido objeto. Na sala de aula, cada aluno expõe seu objeto e socializa com a turma a sua história. Nesse momento, é importante o diálogo entre professores e estudantes, para que haja aprendizado significativo. Assim, “[...] fazer perguntas, ouvir respostas, completar informações expressa a relação necessária para a descoberta e a interpretação dos objetos” (BITTENCOURT, 2009, p. 360). Essa é uma atividade que tem a promessa de ser muito produtiva, pois a diversidade das peças reunidas pelos estudantes permite colocar em apreciação outros tempos. Quando falamos em tempos na História, estamos fazendo uso de Bloch (2001), quando afirma que o tempo da História é, por natureza, contínuo e em perpétua mudança, trata-se de um tempo aberto. Além disso, o trabalho com objetos permite apreciar outras formas de viver e múltiplas vozes, ou seja, múltiplos sujeitos e suas experiências numa perspectiva de diversidade.

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Assim, trata-se de uma abordagem que tem a possibilidade de levar os estudantes a pensar historicamente através da investigação da história dos objetos. Entendemos que essa atividade tem a possibilidade de generalizar situações e conceitos. Muito diferente daquele ensino de História linear, pautado na valorização da história política, factual, personificada em heróis, excluindo a participação de outros sujeitos da História. Um ensino que se limitava a “[...] descrição de causas e consequências, que não problematiza a construção do processo histórico, uma vez que a História é tida como verdade a ser transmitida pelo professor e memorizada pelos alunos”, como explica as Diretrizes Curriculares de História (2008), que orientam a educação básica no estado do Paraná. Entendemos que uma aula de campo em um museu, por exemplo, pode ser extremamente significativa. Porém, na dinâmica que propomos os estudantes investigam objetos de família. Isso possibilita que os estudantes relacionem a vida deles com a história, geral. Esses objetos, de pessoas comuns e próximas, mostram aos estudantes que na história não existem somente as versões dos reis, heróis e políticos. Essa atividade permite aos estudantes o entendimento de que todas as pessoas são sujeitos da história, todas as pessoas movimentam a história. Concluído esse processo, é possível, por exemplo, dar continuidade a essa atividade organizando com os estudantes uma exposição de

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objetos antigos, na própria sala de aula, na qual eles mesmos fazem a apresentação dos objetos aos outros estudantes da escola. É interessante convidar também os familiares para prestigiar o “pequeno grande evento” realizado pelos estudantes. Nesse momento da atividade eles já são capazes de relacionar passado e presente, de identificar permanências e mudanças, bem como entrelaçar o objeto com aspectos econômicos, sociais e culturais no contexto ao qual pertence, pois trabalharam dessa forma em sala com ajuda do professor nas etapas anteriores. É como se os estudantes se tornassem “pequenos historiadores”, entre aspas, porque não é objetivo do professor transformar estudantes em historiadores. Mas, proporcionar o entendimento de como o conhecimento do passado chega até nós, que a história que discutimos nas aulas, a partir da historiografia, que encontramos nos livros didáticos, é uma interpretação dentre várias possíveis. Observando as Diretrizes Curriculares de História (2008), percebemos que é preciso recorrer aos vestígios e fontes históricas, bem como aos métodos de trabalho do historiador, para que os estudantes compreendam como se dá a construção do conhecimento histórico. Já realizamos algumas experiências nesse sentido com os acadêmicos do primeiro ano do curso de História da UNESPAR, campus de União da Vitória, na disciplina de Patrimônio Cultural, e foi bastante produtivo. Os acadêmicos quando chegam ao curso têm dificuldades de entender as primeiras ideias, teóricas, sobre História, uma vez que elas são abstratas. Assim, o trabalho com a materialidade, ou seja, com os objetos antigos ajuda os acadêmicos a entender esse processo. Abaixo disponibilizamos algumas imagens de “Exposições de Objetos Antigos” que realizamos nos anos letivos de 2013 e 2014. Trabalhamos no sentido de alargar o campo de visão dos acadêmicos sobre a História, bem como a importância e o potencial dessas evidências históricas nas escolas, em suas atividades enquanto professores.

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206 Imagem 01: “Exposição de Objetos Antigos” Acadêmicas (o): Morgana Lourenço, Janaine de Kássia Dias, Anselmo Lima, Daniele Gluszczak e Welinton L. Giovanoni. Acervo: Zuleide Maria Matulle. Além de contribuir para o desenvolvimento do pensamento histórico, ou seja, pensar historicamente, além de si e de seu tempo, pensar um mundo plural, esse trabalho permite, segundo Gaspari (2010, p. 38) que outras necessidades sejam contempladas como, por exemplo, a “[...] oralidade, observação, investigação, escrita, e, principalmente, a valorização da cultura material e a preservação da memória local”. Acrescentemos ainda, a essa lista, o respeito pela diversidade cultural, pois os objetos trabalhados pelos estudantes são portadores das mais diversas culturas. Bem, para finalizar, é importante dizer que essa atividade sozinha não é capaz de produzir resultados satisfatórios. Entendemos que o trabalho com objetos antigos em sala de aula pode contribuir para ao desenvolvimento do pensamento histórico dos estudantes do ensino Fundamental. Para surtir o efeito que tanto desejamos é

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interessante que o professor incorpore essas ideias no cotidiano da sala de aula, ou seja, que planeje cuidadosamente tarefas que estimulem a interpretação histórica, relacionem presente e passado, orientem a vida prática dos estudantes e que dialogue com a teoria da História. Reafirmamos que essas páginas expressam apenas algumas ideias, que podem estar equivocadas, para um ensino de História mais significativo aos nossos estudantes. O trabalho com objetos antigos tem suas fragilidades, no entanto, se essas páginas forem capazes de gerar diálogo teremos avançado no debate sobre o ensino de História, pois acreditamos que é discutindo nossas carências nossos problemas com a comunidade acadêmica que encontraremos soluções adequadas. REFERÊNCIAS BARCA, Isabel. Ensinar História de modo linear faz com que os alunos se lembrem só de marcos cronológicos. Entrevista. In: Nova Escola. Edição 260, março de 2013. Disponível em: http//reistaescola.abril.com/fundamental-2/isabelbarca-fala-ensino-historia-743165.shtml Acesso em 04.04. 2015. BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens. O saber histórico na sala de aula. Edição São Paulo: Contexto, 2002. _______. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2009. BLOCH, Marc. Apologia a História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CAINELLI, Marlene. Educação Histórica: perspectivas de aprendizagem da história no ensino fundamental. In: Educar, Curitiba, Especial. Editora UFPR, p. 57-72, 2006. ______. A construção do pensamento histórico em aulas de História no ensino fundamental. In: Tempos Históricos. Vol. 12, p. 97-109, 2008. GASPARI, Leni Trentim. Ensinando a história da cidade: construindo ideias e entrelaçando práticas. União da Vitória: FAFIUV, 2010. HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN, Museu Imperial, 1999.

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