Tecnography ed: Vestígios

July 8, 2017 | Autor: Irie Salomao | Categoria: Art History, Visual Arts
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Descrição do Produto

Iriê Salomão e Alexandre Rese

VESTÍ GIOS e d. nº # 1

VESTÍGIOS

Nesta Edição

vestígios 1. “OPENING issue” 2. o recado do passado - TECNOGRAPHY 3. a obra de arte como vestígio 5. passado: fragmentos e identidade 7. timeline: vestígios na arte 8. o caos e o pessimismo de MAX KAUFFMAN 9. a forma do vazio (Franco Rella) - Davi Pessoa C. Barbosa 14. palacete fellet - YUSSEF CAMPOS 15. caverna geométrica - JOÃO BRAGA 17. artista ativador da subjetividade - RODRIGO BRAGA 20. o corpo nu em detalhes - VIVIANE RODRIGUES 21. o palco e os vestígios em cena - LEONARDO BRÍCIO (video entrevista) 22. lâmpada: ULISSES EVANGELISTA

ed. VESTÍGIOS n˚ #1

escultura de JAVIER MARÍN

http://javiermarin.com.mx

VESTÍGIOS

OPENING the issue

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Assim como aqueles que viviam nas cavernas e às pintavam, criando representações de um período, Banksy utiliza-se de muros, paredes, postes entre muitas outras superfícies do cenário urbano para imprimir suas obras. Através de técnicas como o estêncil, o artista elabora imagens com forte apelo político-social, sempre instigando a reflexão de forma sátira sobre a vida moderna e os comportamentos sociais dos indivíduos contemporâneos. Banksy é um pseudônimo. A verdadeira identidade do pintor, grafiteiro, ativista e diretor de vídeos, permanece um mistério. A nacionalidade de Banksy é inglesa sabe-se que começou suas atividades voltadas às intervenções urbanas em Bristol, Inglaterra. Atualmente, seus trabalhos podem ser vistos em dezenas de cidades do mundo, provocando as mais diferentes reações daqueles que cruzam com uma obra sua. Questões universais são tratadas por personagens por vezes comuns, mas boa parte é baseada em ícones da cultura pop, gerando as tão famosas e controversas imagens. São mostras do nosso tempo espalhadas pelas metrópoles.

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http://banksy.co.uk/

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Assista o vídeo apresentação desta edição, clicando aqui.

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CRIATURA

arte e reflexão # № 1

o recado do passado Escrevemos este texto no fundo do mar. Sem o repouso, ou conforto necessário. Não estamos embaixo de uma árvore, nem mesmo nos nossos quartos de estudos cobertos de livros e ideias, já a muito espalhadas em letras. Preferimos estar no fundo do mar, contendo o ar nos pulmões, subtraídos de qualquer capacidade de movimentos bruscos, numa economia completa de energia poupando-me de um desgaste corporal extremo. Estamos aqui, apenas nos concentrado no silêncio abissal dos habitantes dos oceanos. Quanto mais afundo, menos nos resta de humano, e todas as imagens que aparecem a nossa frente são vestígios. A cabeça estala, o ar implora para sair. Sem mais me reconhecer, chega a voz de Pablo Neruda, poeta, outro homem marítimo, não sei de onde surgem suas palavras, se do peito, da garganta, ou da fresta de luz que resolve encarar o oceano, apenas escutamos “tudo em ti foi naufrágio”. Como navios antes potentes, também caímos, e nos ajustamos ao solo do oceano, de forma suave, diferente dos choques da superfície. O mar por dentro é suave. Mentira! O mar por dentro é denso, como Neruda, um falso suave, como o vestígio que é um recado do passado para o presente. Surge suave, mas agarra em nosso peito, submersos no presente. Do fundo do mar nasce esta edição. Imagens-vestígios, sobras, lembranças, naufrágios, que fazem parte de nós, e que sem eles não estaríamos vivos na ilha de nossas existências, reinventando nossa maneira de viver. Alexandre Rese

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Iriê Salomão Jr.

expediente:. este é um projeto experimental, um “ensaio” reflexivo e visual, baseado nas novas formas de disseminação e interação através da tecnologia:. № 1 - VESTÍGIOS:. distribuição/ download gratuito:. ISSN: 2358-8667::.

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VESTÍGIOS

a obra

de ARTE como VESTÍGIO

iriê salomão jr.

montaParece algo complicado, ou uma proposta que nos resomente às obras do passado, aos craquelados dos

afrescos, aos vitrais das igrejas góticas, às figuras das cavernas, ou à estatuária grega já partida pelo tempo. Todas estas obras são vestígios de arte, isso não deixa de estar correto. Agora nós que estamos no séc. XXI, com diversas possibilidades de encontrar obras inteiras, ou pelo menos reconstituições de como era antes da passagem do tempo através do 3D, por que resolvemos buscar o vestígio, a sobra?

A arte nos afunda num espaço cheio de lembranças. Basta chegarmos numa cidade como Ouro Preto (obra de arte de Aleijadinho e do tempo) para puxarmos de dentro de nós, lembranças, ou mesmo uma imaginação, sobre como pensamos a Vila Rica de antigamente, como dormiam os escravos, e em meio a esse pensa-

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Vale saber, antes de qualquer resposta, que todas as obras são vestígios, ela traz em si um fragmento do artista, um rastro do apagamento do artista no processo de realização da obra. Vestígio é a sobrevivência do que se foi. O artista não está mais na obra, mas algo dele está presente; por isso uma obra de arte não tem um único significado, porque nela reside presenças contraditórias de algo que já se foi, como, a mão do artista, a memória do artista, um rastro daquilo que o inspirou, e não podemos esquecer que quando um observador para em frente a obra lança mão de algo que sobrevive dentro dele, e que surge logo no momento que se depara com um trabalho artístico.

O artista francês Hubert Robert (1733-1808), pintou “A Grande Galeria do Louvre em Ruínas” em 1796 e é uma referência à Antiguidade, apontando a transitoriedade das obras realizadas pelo homem. Esta é uma das muitas obras de Robert, que tratam de demolições causadas por catástrofes naturais, acontecimentos extraordinários, ação do tempo ou descaso. --A Grande Galeria do Louvre em Ruínas (1796), óleo sobre tela - Hubert Robert

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VESTÍGIOS mento poderemos nos pegar chorando em defesa dos escravos do tempo do ouro. A obra de arte rasga a separação existente, entre razão e emoção. O mesmo acontece frente a um quadro de Caravaggio, ou numa instalação do Tunga. Devo este texto a diversas referências, todas elas me fizeram enxergar um lado de uma obra de arte, sei que ainda tem diversos lados a conhecer, talvez nunca descubra todos. Como disse antes, o vestígio é que rasga os significados da obra de arte, é ele que dá a graça nos levando acima do óbvio. Quando você acredita que tudo está explícito na obra, você olha algum detalhe que te remete a uma sensação completamente oposta àquela que vc criara anteriormente. A arte é assim. Alguns se enfurecem com essa impossibilidade de delimitar, de pegar nas mãos o significado e dominá-lo, outros se divertem e dançam com os sentidos, e sentem muito mais de perto tudo que a obra tem a oferecer, porque acompanha o gingado, como se dançasse à dois com a obra de arte, sentindo a curva da cintura, a pele quente; não, ele não viu a obra nua, e nunca verá, mas teve intimidade, porque se aproximou sem receios e soube dançar conforme a obra. Não digo aqui que qualquer palavra pode ser tida sobre uma obra de arte, primeiro porque ela não admite ser qualquer coisa; ela é maior que isso, mesmo quando é um urinol do genial piadista (ou piartista) Duchamp. Sem tolices; é contra a arte imaginar que se pode dar qualquer significado a uma obra. Quem fizer isto está tão distante da obra de arte, como aquele que recusa ver qualquer sentido. Busque os vestígios, nela e em você, e por aí comece a ouvir a sua música, mesmo que ainda num volume baixo. Espero que um dia vejam também os vestígios na TECNOGRAPGY, então tudo fará sentido, ou sentidos... sos e transportam ao pensamento junções de signos, que se tornam em narrativas capazes de justificar uma época histórica, um “descobrir” filosófico ou um despertar religioso, conduzindo quem quer que seja rumo a um portal inexato e com capacidade de “falar de outro modo”, já que esta expressão alimenta a raiz da palavra alegoria (allegoreno, em grego). Se o falar de outro modo é capaz de produzir material intelectual, as artes e a cultura, de uma maneira geral, também estão permeadas de ideias abstratas e cheias de sentimentos? Sim, talvez seja a resposta mais coerente. E nas palavras do autor português e vencedor do Nobel de Literatura José Saramago – “A alegoria chega quando descrever a realidade já não nos serve. Os escritores e artistas trabalham nas trevas e, como cegos, tateiam na escuridão”.



O iminente fim, o trágico, em cores robustas nos roubam pensamentos e olhares. O homem forjado por crenças e dogmas perpetua através do drama o espetáculo do qual nos enchem os olhos, como um mundo dentro do outro, como uma janela que mostra quem somos e quais as consequências desta fatídica sina da reflexão, que por algum motivo não nos abandona.

A ARTE NOS AFUNDA NUM ESPAÇO CHEIO DE LEMBRANÇAS”.

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VESTÍGIOS

passado:

fragmentos e alexandre rese

A arte nos envolve com muitos véus. Alguns destes véus são delicados e de fina transparência. Mas existem outros, aqueles densos e de tramas complexas. Abandonando as metáforas - se é que isso é possível neste contexto -, pensamos agora diretamente nas pinceladas que se sobrepõe no fazer artístico, ou então, nas inúmeras lascas retiradas de um monolito até que a rigidez se desfaça e surjam formas, linhas. São ações que sobrepostas, uma a uma, repetidas vezes, que resultam em representações, por vezes a imitar vidas, acontecimentos, mas por outras, a promover o inventar de uma realidade desejada. Neste mosaico de influências e informações, o que dissipa-se? O que nos permeia? Algo permanece?

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Os homens precisam de uma certa “linearidade” histórica para entenderem por onde passaram os que nos precederam. E por um bom tempo, a arte se utilizou desta lógica para recriar épocas e idealizar os caminhos trilhados até aqui. Fossem nos poemas épicos, cantados aos quatros ventos ou nos mitos da criação do mundo, pintados, esculpidos ou escritos em longos séculos por pagãos e cristãos.

A pintura “A Jangada da Medusa” foi inspirada por um trágico naufrágio, que comoveu boa parte da Europa no século XIX e buscou apontar através da dramaticidade o peso do acidente causado por erros humanos na costa da África Ocidental. A “Jangada da Medusa” causou ainda, burburinho entre os espectadores, que apesar de elementos do Neoclássico - o uso de sombras (claro e escuro) e dos físicos modelados dos náufragos -, não apresentava nenhum elemento edificante e nem descrevia qualquer memória do clássico. --A Jangada da Medusa (1818-1819), óleo sobre tela - Théodore Géricault

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VESTÍGIOS A história e a arte parecem ter trocado alianças há muito tempo. Juntas construíram um universo de infinitas imagens, alimentando-se uma da outra com certo fervor. O que abriu espaço para que a veracidade do que representavam fosse questionada, detalhes importantes são relegados neste caso. A interpretação e a liberdade do criar não se sujeitam às pequenas convenções da realidade. E artistas, por mais que sintam-se influenciados pelo que veem, presenciam, acabam depositando em seus trabalhos o próprio olhar. O compromisso com o literal passa a margem e se faz presente em nuances de um tema abordado.

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Michelangelo Pistoletto, ligado ao movimento italiano “arte povera”, apropria-se de imagens clássicas, da Roma e Grécia Antiga para criar atmosferas que tratam do passado, mas que ecoam na atualidade. A obra “Vênus dos Trapos” está de costas para o espectador e parece olhar para a pilha de roupas velhas coloridas, desconstruindo o símbolo cultural e icônico de perfeição. --Vênus dos Trapos (1967), escultura/ instalação - Michelangelo Pistoletto

A exatidão na construção pictórica, por exemplo, com perspectivas perfeitas em afrescos e telas, são revistas de tempos em tempos e de uma maneira ou de outra, buscam no passado, vestígios de uma grandeza humana, quando heróis vagavam pela terra e a glória poderia ser imortalizada por artistas atentos e de imensa destreza sobre o que queriam que parecesse ser palpável.

O filósofo, escritor e historiador de arte suíço Heirich Wölfflin, certa vez escreveu que não havia uma maneira objetiva dos artistas verem as coisas, que as formas e as cores sempre seriam captadas

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Quando a arte permeou o mundo, também passou a criar registros visuais. Registrar visualmente “ocorrências” tornou-se uma das “vertentes” artísticas. Os novos continentes, guerras, coroações, costumes, culturas exóticas, tornaram-se fonte de inspiração e a arte uma aliada da propaganda política e religiosa. Documentos visuais foram criados, apreciados como fontes de informação. A verdade é que a arte continuou envolvida nas interpretações de artistas e fragmentadas em pequenas “verdades”, manipuladas pela estética e o apreço da idealização. Academicismos, regras rígidas de composição e virtuosismo ainda compunham cenas que tentavam atender ao real. Uma ilusão que ainda gostamos de nos alimentarmos. Imperadores altivos, generais corajosos, princesas delicadas, opulências palacianas, índios selvagens, negros escravizados, noites cortesãs, arranjos políticos, pobres moribundos e mitos ressuscitados são apenas alguns dos muitos elementos que nos constroem, que nos inspiram. O poder desta herança visual que a arte nos faz acreditar é fundamento para a identidade de grupos, convertendo-se em “provas cabais” de relevância, de imortalidade, de legado.

O artista holandês Albert Eckhout (1610-1666), chegou ao Brasil em 1637, acompanhando a comitiva do Conde Johan Maurits van Nassau-Siegen (1604-1679), enviada para administrar parte do Nordeste brasileiro, sob domínio da Holanda. Durante os anos em que permaneceu no Brasil colônia, dedicou-se a pintar os habitantes dos trópicos, numa tentativa de registrar visualmente os tipos “exóticos”, pintando oito telas de tamanho real. Entre os retratados estão índios Tupis, Tapuias, escravos e mestiços. --Mulher Africana (1641-1643), óleo sobre tela - Albert Eckhout

de maneira diferente, dependendo do temperamento destes mesmos artistas. E arrematava: “Há muito sabe-se que todo pintor ‘usa seu próprio sangue’ para pintar. A distinção que se faz entre os mestres, entre as ‘mãos reside’, em última análise, no reconhecimento desses tipos de criação individual”. Somos uma construção de subjetividades, que tomamos como direção certa e que deixamos nos inebriar. Partindo de telas a óleo, “recosturamos” lacunas da memória que nos faltam. Analisando esculturas, nos projetamos e revivemos o ontem. Lendo, nos teletransportamos para ocasiões descritas. Tal qual os artistas, nos deixamos tocar, seja pela história, pela arte e toda sua beleza, remontando na privacidade da reflexão o que éramos, o que somos e incansavelmente elaboramos memorandos para a nossa própria iden- 6 tidade.

VESTÍGIOS

vestígios

na ARTE

Os fragmentos de outras épocas, sonhos e desejos são materiais virtuosos para a arte. Imagens, lembranças e sensações se sobrepõem e o artista delega ao espectador as interpretações e as experiências em observar os registros inegáveis do belo, do poder, da propaganda, do crer e do idealizar. Por mais que se possa indicar caminhos, a arte presta-se a provocar e confundir certezas.

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VESTÍGIOS Poderíamos colocar lado a lado a obra de Max Kauffman e de Comarc Mcharthy e pensar no destino humano, como um tempo já em construção, afinal somos as pegadas de amanhã.

o caos

pessimismo

O mundo pós-apocalíptico de Max Kauffman tem a sombra como predominância, o lado obscuro da realidade que nos aguarda está presente, e ao mesmo tempo as cores sutis que começam a surgir, mostram que Max Kauffman está longe dos pessimistas, como também Comarc Mcharthy, o artista acredita na soberania do bem e no vigor da vida. As cores não são poderosas, estão longe da abundância. Elas aparecem como recomeço da vida, um princípio, mas já é uma luz diferente, não mais as cores básicas exploradas na Renascença, e sim cores que começam a esquentar, que resolvem reviver e por isso ainda não estão presente em todo o seu esplendor. O artista americano não se queda diante da sombra, algo no homem o motiva a continuar, mesmo com outras luzes , com outras cores o homem estará lá.

de Max Kauffman iriê salomão jr.

mistas,Nãoacredito falta ao mundo membros da classe dos pessiaté que a crença no pessimismo esteja se espalhando com maior vigor, graças a exemplares excêntricos da nossa humanidade. O pensamento apocalíptico existe a milênios, no entanto na modernidade, ele deixa de lado seu caráter religioso, para assumir um posicionamento profano e técnico.

O trabalho de Max Kauffman é assim, um vestígio do futuro.

A obra do artista Max Kauffman, consegue olhar com devida distância o lado sombrio de nossa história, ela aborda o que há de negativo em nós, os suportes são os restos, aquilo que não serve, como latas de refrigerantes, shapes quebrados de skate, e tudo mais que se tornou inutilizável.

>> Cthonic Tribesman - Max Kauffman --http://www.kauffmanartistry.com/

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Atento, o norteamericano explora em suas obras os nossos possíveis futuros, um mundo após o nosso, e que ainda terá nossos vestígios. Ao fazer isso Max Kauffman aproxima-se da narrativa maravilhosa do escritor Comarc Mcharthy no livro “A Estrada”, a história se passa em um mundo vazio, como um escombro, novamente posso dizer como um vestígio do nosso mundo. Fica a sugestão de que ocorreu uma catástrofe e poucos restaram vivos, dentre os sobreviventes estavam o pai e o filho, protagonistas da história. Eles andam por ruas com gangues que querem comer carne humana.

>> Mural - Max Kauffman

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VESTÍGIOS

A FORMA

DO VAZIO - Franco Rella

1.

traduzido por DAVI PESSOA C. BARBOSA http://traduzirfantasmas.wordpress.com

Antes de iniciar o percurso que me propus, farei um desvio para falar do quanto me ocupei nos últimos meses desenhando uma espécie de horizonte teórico no qual se situaram temas e problemas que cruzaram ou que talvez delinearam o conjunto das questões que decidi enfrentar neste texto. Há algum tempo venho pensando nas fraturas que a escritura poética e a arte incorporam em si, e que se tornam evidentes naquela que gostaria de definir como linha de desfiguração que atravessa o século XX, a qual se estende ao lado da história da literatura e da arte tal como se codificaram. Para exemplificar, poderia lembrar Giacometti, Bacon, Fontana, Kafka, Artaud, Beckett e o Pasolini de Petrolio. Há uma imagem que usei algumas vezes e que resume e evidencia esse percurso. É a imagem do “Violino” de Picasso, na leitura que Gottfried Benn faz dela. Benn fala de “cosmos explodidos”. Picasso vibra como uma machadada o seu violino no mundo, o faz em pedaços e depois recompõe seus estilhaços, criando assim seu violino de sangue, que é, de fato, uma nova imagem do mundo. [1] Uma imagem do mundo que incorpora o gesto violento, fazendo emergir dela a verdade. O gesto do artista é um gesto cosmogônico. Cria um mundo, mas essa criação traz uma violência implícita no seu gesto. O artista o sabe. É o risco que deverá sempre enfrentar: desconstruir para construir. Ou, para usar uma expressão extraordinária de Kafka, o artista está empenhado numa zerstörende Aufbau der Welt [2]: uma destrutiva construção do mundo. Essa fratura também passa pela escritura ensaística. Benjamin sempre esteve consciente disso, desde o seu ensaio “Afinidades eletivas” de Goethe, de 1922, até a Premissa gnosiológica do Drama barroco alemão, de 1926. [3]  

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Segundo Benjamin, o ensaio é uma filosofia que faz agir a violência da forma contra o imperialismo do conceito. Como se movimenta essa estranha filosofia? O ensaio é arte: “A arte de interromper-se contra o fluir da cadeia dedutiva” (p. 8). O ensaio não leva a “coincidência o homogêneo, pois os extremos chegam à síntese” (p. 14). Essa filosofia é, de fato, “a forma que, dos extremos mais remotos (...) faz emergir a configuração da ideia como totalidade determinada pela coexistência dos opostos. A representação de uma ideia não pode, em nenhum dos casos, se considerar vitoriosa até que não se faça virtualmente uma análise do círculo dos extremos nela possíveis” (p. 21). E, portanto, “para a filosofia da arte são os extremos que são necessários” (p. 13).

Violino com Uvas (1912), óleo sobre tela - Pablo Picasso

Tradutor: Davi Pessoa Carneiro é professor adjunto de língua e literatura italiana da UERJ, autor de Terceira Margem: Testemunha, Tradução (Editora da Casa, 2008). Atua também como tradutor de filosofia e literatura italiana, tendo já traduzido A razão dos outros, Ou de um ou de nenhum (Lumme Editor, 2009), de Luigi Pirandello, Georges Bataille: filósofo (Edufsc, 2010), de Franco Rella e Susanna Mati, Desgostos e Ligação Direta (Edufsc, 2010 e 2011), de Mario Perniola e Nudez (Autêntica, 2014) de Giorgio Agamben.

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VESTÍGIOS O ensaísta se move, assim, nas fraturas que a obra esconde em si. Move-se nas fraturas que ele próprio abre na obra. Revela as cesuras, o vazio, em que, como ele afirmou no ensaio sobre Goethe, o que está até então desprovido de expressão, das Ausdrucklose, se manifesta. Por isso, o ensaísta abre o texto a tensões e a dissonâncias inconciliáveis e inconciliadas: no texto pelo qual atravessa, mas também no texto que ele próprio escreve, nascido talvez como comentário, e que se torna uma aproximação ao conteúdo de verdade da obra e à sua própria verdade. Isso até chegar ao conceito de dialética im Stillstand, dialética suspensa e detida, a qual se repete continuamente nas suas notas sucessivas, no livro das Passagens [4].

que é familiar, e un, que é a sua negação. Mas paradoxalmente a negação do que é familiar o conserva, o protege na própria palavra que o nega, na ambiguidade de uma experiência desconcertante.

Portanto, eine zerstörende Aufbau: uma construção destrutiva. Um oxímoro: uma construção que destrói e que incorpora em si, no seu ato construtivo, a destruição. Uma construção ou um construtor que leva à ruína, que produz escombros, que ama os escombros, mas os ama – como escreveu Benjamin num ensaio de 1931, o Caráter destrutivo – pela vida presente neles [5]. Percorrendo esse caminho me confrontei com alguns problemas, os quais eu considero muito insólitos: problemas de arquitetura, embora não seja nem mesmo capaz de ler uma planta de um simples projeto. É verdade que venho aos poucos me ocupando do conceito de projeto e de construção histórica, e é verdade que o meu interesse pela estrutura e pela cultura da metrópole, a saber, a cultura metropolitana, interagiu com reflexões relativas à arquitetura que se moviam nas minhas paragens, tanto que, além de ter ensinado toda uma vida numa Faculdade de Arquitetura, comecei a escrever para várias revistas de arquitetura, tal como “Domus”, “Lotus international”, “Casabella”, “Assemblage”, “Shadow” e “Topos”, e a participar de algumas aulas do Mestrado em “Archiettura, Storia e Progetto” da Universidade Roma 3.

Anthony Vidler escreveu que “o museu judaico é uma leitura arquitetônica de Benjamin” [9]. O próprio Libeskind falou de sua obra como uma espécie de guia arquitetônico benjaminiano. E, efetivamente, o projeto – ele disse – foi inspirado na leitura dos capítulos de Rua de mão única de Benjamin, que representam uma montagem extraordinária e que levam à exploração sempre interrompida e sempre retomada da metrópole. Assim, Rua de mão única de Benjamin envolve, de fato, uma parte considerável do projeto. O livro é “um aspecto incorporado no interior da sequência contínua de suas seis camadas ao longo de um zigue-zague, cada uma dessas camadas representa uma estação da estrela descrita no texto do apocalipse berlinense de Benjamin” [10].

2.

Para mim, a arquitetura é a vibração de uma cidade ou a experiência de um espaço. É, por exemplo, a experiência da vertigem no interior de uma catedral gótica. A projeção em direção ao alto não é para mim uma elevação, mas um lançarse na escuridão, naquela escuridão à qual se referiram os místicos, de Angela da Foligno ao Mestre Eckhart. Pensemos no espaço escuro sobre nossas cabeças. Pensemos em quando tal espaço era lambido pela chama das velas, pela chama das tochas, quando os monges iam à igreja para rezar, mesmo às três da madrugada. Vertigem. Vivi a experiência das vertigens visitando, nesse verão, o Museu Judaico de Berlim, o museu de Daniel Libeskind. Uma vertigem. Um outro tipo de vertigem.

3.

Berlim. A exposição universal da arquitetura, quase criando a suspeita de uma espécie de fetichismo, como nas exposições universais do século XIX: Piano, Rossi, Gehry, Rogers, Moneo, Sharoun, Novel, Ungers, Koolhaas. Depois, a alegoria do cemitério judaico de Peter Eisenman, e, completamente distinta em relação a tudo isso, a obra de Libeskind [6]. Vertigem, estorvo. O vazio. Justamente por causa de minha formação sinto necessidade de movimentar-me usando palavras e referências extra-arquitetônicas, por exemplo, as palavras de Kafka, pois, desse modo, podemos descobrir o quanto o autor de O Castelo estava presente em Libeskind. Kafka, numa narrativa de sua juventude, Diálogo com o orador (escrita entre 1904 e 1909), escreveu: “Tenho uma experiência e não brinco quando digo que me sinto mareado em terra firme”. E mais adiante, em 1917, nos Aforismos de Zürau: “O caminho verdadeiro segue por sobre uma corda, que não está esticada no alto, mas se estende quase rente ao chão. Parece mais determinada a fazer tropeçar do que a facilitar o trânsito”. E ainda, nos aforismos, Kafka fala do terreno sobre o qual apoiamos os pés, o qual não é maior do que os dois pés que o pisam [7].

4.

O holocausto é, de algum modo, uma cesura e um fim na história. Acredito que Libeskind tentou aquela que poderíamos definir de uma arquitetura do fim, provocando incertezas e desorientação. E desorientação é o que Freud definiu das Unheimliche [8]. A palavra Unheimliche contém heim, que significa aquilo que é relativo à “casa”, aludindo, portanto, ao

Como dizia, a experiência do museu foi para mim estranha e, ao mesmo tempo, familiar. Porém, em que sentido foi familiar?

Trata-se, como fez Benjamin em Rua de mão única, de realizar “uma viagem na substância de uma cidade e da sua arquitetura [que] comporta um realinhamento de pontos arbitrários, de linhas desconexas e de nomes fora de lugar” (Libeskind, “Radix-matrix”, p. 18). Só assim se pode reagir ao “apagamento da história”, apenas dessa forma se abre ao futuro “delineando o invisível em base do visível” (ibidem, p. 10). Como se vê há uma continuação de inspiração com Benjamin, seja na valorização que este fez da montagem em Rua de mão única, seja onde encontramos em Benjamin das Ausdrucklose, o indizível que se manifesta nas cesuras do visível. Também há continuidade com as fraturas que Benjamin caracterizou na estrutura do ensaio. No entanto, a continuidade é ainda mais forte lá onde Libeskind escreve: “Berlim pode ser considerada uma capital espiritual do século XXI, mas que ao mesmo tempo foi o símbolo apocalíptico da queda do século XX. A identidade de Berlim não pode ser refundada nas ruínas da história ou na “reconstrução” ilusória de um passado arbitrariamente selecionado”.  Estamos, aqui, é evidente, próximos às teses de O conceito de história. Não pode existir reconstrução, não é possível “recompor a cesura”. Os conflitos “não podem ser resolvidos reconstruindo um passado vazio, mas colocando novas fundações e novas imagens que estejam abertas a dinâmicas concretas” (“Radix-matrix”, p. 20). Estamos, como se vê, muito próximos às teses sobre o Conceito de história [11] de Benjamin, sobretudo, à IX tese, com o anjo que surge ali, que deseja recompor a cesura, mas que é arrancado dali pela própria cesura. Não se pode recompor, não se pode reconstruir, porém, segundo Benjamin, se destrói para abrir caminho, para abrir ao Messias, ao futuro no qual se estende um passado que nele deve ser levado em consideração. 10

VESTÍGIOS

5.

Todavia, a experiência para mim decisiva foi a experiência do vazio. As fraturas, os “fragmentos quebrados”, os farrapos abrem ao vazio no qual o invisível torna-se aparente enquanto invisível, como Libeskind escreve em alguns momentos. Vem à tona Georges Bataille quando afirma que o fim do fundamento sobre o qual se baseavam a filosofia e sua linguagem nos coloca diante de algo impensável, irrepresentável, mas também acrescentava: “O que significa a verdade (...) se não vemos aquilo que excede a possibilidade de ver (...)? Se não pensamos aquilo que excede a possibilidade de pensar?”[12] O vazio no Museu é concreto. É arquitetado, seja aquele que está fechado e inalcançável, seja aquele que é intersticial entre os cantos, e entre as linhas (between the lines) – o título que Libeskind deu ao seu projeto – que continuamente vêm ao nosso encontro e nos questionam. O vazio, portanto. Confesso que pensei e que ainda penso que o Museu seria perfeito se estivesse completamente vazio. Se tal vazio não fosse de algum modo aliviado pelos testemunhos que nele estão depositados. São coisas e testemunhos dilacerantes, porém não podem sê-lo assim como o invisível e o indizível que respiram e sopram no vazio. Um dos aspectos constitutivos do projeto, escreveu Libeskind, é a obra incompleta de Arnold Schönberg, Moisés e Aarão. No fim, Moisés não canta mais, não pode cantar. Fala, mas só fala para evocar a palavra ausente. “Ó palavra, tu palavra”. “Quando canta” – escreve Libeskind (“Radix-matrix”, p. 34) – “não conseguimos entender as palavras, mas quando não há mais canto, entendemos a palavra perdida de Moisés: o apelo à palavra”. Esse, conclui Libeskind, é um aspecto do projeto. O vazio que se abre na palavra que finda, que se torna impronunciável. É também a palavra impronunciável que conclui O Castelo de Kafka: “A sala na cabana de Gestäcker estava iluminada fracamente só pela chama do fogão e por um toco de vela, sob cuja luz alguém, inclinando num nicho debaixo das traves do teto, que ali se projetavam oblíquas, lia um livro. Era a mãe de Gestäcker. Ela estendeu a K. a mão trêmula e o mandou sentar-se ao seu lado; falava com esforço, era preciso se esforçar para entendê-la, mas o que ela disse” [13]. O que ela disse nunca saberemos. O que está escrito no livro que a mulher está lendo nunca saberemos. Mas o romance de Kafka não é incompleto, como já afirmaram tantos estudiosos. O romance se realiza na ausência da palavra, na sua extinção, no seu vazio. O vazio na trama da escritura, na trama da arquitetura. É o tema de um debate que, num certo momento, animou a cena teórica mundial, envolvendo departamentos de filosofia e arquitetura e de filosofia na Europa e, sobretudo, na América. A questão da desconstrução. A questão de Derrida, Eisenman e Libeskind [14]. Derrida pensava ter encontrado a linguagem e a teoria da nova arquitetura. Como veremos, a pedra no meio do caminho, que o distanciará do auge da discussão sobre arquitetura é precisamente a questão do vazio. O vazio não está realmente vazio, diz Derrida na Réplica a Daniel Libeskind (Derrida, “Maintenant l’architecture”, p. 281 – Rella faz referência, no entanto, à edição italiana “Adesso, l’architettura”, 2008). Ele é, ao contrário, a tentativa de subtrair-se à

“disseminação política”. A réplica de Libeskind é peremptória (ibidem, p. 284): “O que um arquiteto deve fazer, nesse caso, é impedir que o vazio seja preenchido. Uma das características desse vazio peculiar é que é muito fácil de ser preenchido, com o objetivo de terminar o edifício”. Sobre ele há uma pressão política e social. Está sendo construído um espaço, e, portanto, dizemos: “por que não preenchê-lo? Por que não usá-lo? O projeto é [pensado], pelo contrário, para torná-lo inacessível”. Libeskind tentou, assim, projetar o vazio, o vazio intersticial, between the lines, através de fraturas, e tentou propor, paradoxalmente, o vazio como espaço, o vazio exatamente como coisa, pois o “museu é uma sequência de vazios concretos, dois dos quais manifestam a sua concretude com a sua completa impenetrabilidade. Ninguém pode entrar neles” (Trauma, p. 57).

6.

O que tem a ver Derrida com tudo isso? Como se fez presente?

Em 1982, Bernard Tschumi obtém o cargo para projetar o “Parc de la Villette”, em Paris. Propõe um projeto com estruturas de ferro e pontos de interseção que ele chama de “folies”. Em 1985, convida Derrida para se ocupar juntamente com Peter Eisenman de um projeto para um pequeno lote de terra, uma parte do jardim. Tratava-se de unir a escritura filosófica à escritura arquitetônica, porque para Eisenman, e, sobretudo, para Derrida, a arquitetura também é um texto. Antes, porém, é necessário fazer aqui algumas observações preliminares. A arquitetura feita de cantos, transgressões, grades, pontos de interseção, como a de Tschumi e de Eisenman, parecia poder ser reconhecida ou ser realmente refletida no pensamento da desconstrução de Derrida, que estava se tornando central no debate europeu e americano. Derrida publicou nos anos 60 um livro fundamental, A escritura e a diferença, no qual traduz o ataque à metafísica realizado por Heidegger num ataque ao logocentrismo que está no coração da civilização ocidental. É um ataque ao logos, como palavra e como pensamento, que se move insinuando uma diferença que Derrida propõe numa dupla articulação: différence/ différance, que vai além – diferindo-se continuamente – não só da centralidade do logos, mas também da tensão conflituosa do pensamento da contradição. Esse diferimento torna-se, ao poucos, disseminação, que é o título de um livro de Derrida de 1972 [15]. O logos é, por fim, um texto, e este é desconstruído ao infinito, transformando-se em pré-texto, sobre o qual se constrói um outro texto, que, por sua vez, se torna pré-texto. Ao infinito e nunca se chega à densidade rugosa do sentido. Por outro lado, eram os anos em que o pensamento de Lacan privilegiava o significante em detrimento do significado. Até mesmo os movimentos de contestação daqueles anos também se basearam em Derrida, lendo o ataque ao logocentrismo como ataque ao poder. Os movimentos feministas o leram como ataque ao falogocentrismo: o domínio do logos identificado com o falo, com a lei do pai, ou seja, com o domínio do masculino.

Mas voltemos à arquitetura.

Derrida celebra esse seu encontro com uma série de textos: Point de folie – maintenant l’achitecture  dedicado ao projeto de Tschumi, depois Pourquoi Peter Eisenman écrit de si bons livres, e  Cinquante-deux aphorismes pour un avant-propos (avant-propos porque é a introdução de um livro coletivo sobre filosofia e arquitetura), todos publicados em 1986. Além disso, há o texto Khôra que Derrida leva como dote ao projeto feito com Eisenman, que antes se chamou, de fato, Choral work (obra coral), e depois Choral L Works, no qual o primeiro significado é, por assim dizer, desfeito [16]. Que a relação com Eisenman e com Libeskind – que Derrida equivocadamente lê como protagonistas de uma solidariedade arquitetônica e teórica absoluta – passaria a ser problemática é evidente na leitura do aforismo 50, um dos aforismos conclusivos da série dos 52: “O sem fundo de uma arquitetura “desconstrutiva” e afirmativa pode provocar vertigens, mas não 11 é vazio, não é o resto aberto caótico, o hiato da destruição”.

VESTÍGIOS A arquitetura pode dar uma sensação de vertigem, porém, para Derrida, essa não é o vazio. Não é o negativo. Não é destruidora. Tudo o que é disseminado constitui, aliás, no texto literário ou filosófico, uma rede que cobre todos os espaços. Não diferentemente deve atuar o texto de arquitetura nas suas desconstruções. Derrida realiza tal procedimento aos poucos numa série de intervenções futuras, quando afirma, por exemplo, que a “desconstrução é afirmativa (...) não é niilista”, ou quando reforça a sua hostilidade voltada à collage, ou seja, à montagem que Benjamin havia recebido do surrealismo como método construtivo, porque “a collage implica o fragmento (...) e isso implica que há um corpo ao qual esse fragmento pertence. É uma espécie de desintegração (...). Muitos pensam a desconstrução como algo próximo a tal desintegração. Este não é o significado de desconstrução”[17]. Essas são as ideias que estão na base do texto Khôra que Derrida doa a Eisenman para o projeto deles. É um texto de filosofia escrito em homenagem a Jean-Pierre Vernant, o qual se torna um texto canônico para a arquitetura e ao qual Derrida se refere continuamente nas suas discussões.

7.

Platão avança o conceito khôra no Timeu. É o lugar em que as ideias tomam forma no mundo, mas que é em si desprovido de forma, e que é, portanto, uma “ideia que não é ideia”, um pensamento “bastardo”, afirma Platão, como aqueles que surgem em nossos sonhos (52b). Platão precisa de um informe que seja desde o início – portanto, ab aeterno – capaz de absorver formas sem, por assim dizer, fazer resistência. A khôra é eterna como as ideias e as formas, porém não é nem ideia nem forma. Derrida segue Platão com grande maestria filosófica. Também nomeia Aristóteles que irá se referir ao conceito platônico traduzindo khôra por hule, “matéria”, mas que é também, originalmente, o termo que designa a madeira com a qual, por exemplo, se construíam os navios. O que Derrida não diz é que o conceito se move através de Plutarco e depois, por Numênio, para chegar à tradução latina do Timeu por obra de Calcídio, no IV século depois de Cristo. Calcídio procura manter juntas tanto a lição aristotélica de húle, no significado originário de madeira, como o conceito de “informe” ligado à khôra platônica, desse modo, traduz khôra por silva dando a este termo o valor daquilo que é móvel e informe, como o movimento ondulatório e inextricável das folhas, que encontra também um correspondente no movimento das ondas e no escorrer das águas. “Khôra-selva” é algo “fluido e sem qualidade”. É um informe, portanto, disponível a toda forma. Assim, khôra é precisamente o movimento caótico que Derrida recém negou. Mas é esse – e não a khôra de Derrida – que atravessa todo o ocidente, de Giovanni Scoto Eriugena a Dante Alighieri, e, passando pelo Renascimento, até chegar à cidade selva de Balzac, às calçadas nas quais se move a multidão-floresta de Baudelaire. Até a introdução de O Homem sem qualidades de Robert Musil [18]: “Não dou maior importância ao nome da cidade. Como todas as metrópoles, era feita de irregularidade, mudança, avanço, passo desigual, choque de coisas e acontecimentos, e, no meio disso tudo, pontos de silêncio abissais, de uma grande pulsação rítmica e do eterno desencontro e dissonância de todos os ritmos”. A desconstrução não conhece, então, colisões, não conhece desencontro e discordância. A khôra de Derrida é um vazio que não é um vazio. A sua preocupação se torna agora aquela de diferenciar esse seu vazio do vazio “ruim” de Eisenman e Libeskind, que ele vê, de todo modo, unidos, como está claro na carta enviada por ele a Peter Eisenman, a 12 de outubro de 1989, o ano em que, além do mais, Libeskind vence o concurso para o museu judaico de Berlim.

8.

Não se compreende se a presença ausente no congresso “Sobre o pós-modernismo e além de: a arquitetura como a arte crítica da cultura contemporânea” [19], ocorrido em Irvine, tenha se dado pelo impedimento real ou por uma dissidência que Derrida queria manifestar na sua carta, que foi publicada em 1990, pela revista “Assemblage” e que depois ganhou várias publicações. O título do congresso torna explícita a vontade de potência que a arquitetura exprimia não como uma, mas como a arte crítica por excelência, portanto, contrastando necessariamente com a mesma vontade de potência que desde sempre animou a filosofia. Derrida critica o recurso ao conceito de ausência que – escreve – “vocês, Eisenman e Libeskind, evidentemente, “apreciam e encorajam”. O equívoco de Eisenman é justamente a má interpretação da khôra de Derrida, que “não é nem o vazio, como às vezes sugerem, nem a ausência e nem a invisibilidade”. E, assim, o projeto comum, transformando-se de obra coral, de Choral work, a Chora L Works, é ainda a mesma coisa? “Quando começamos a trabalhar juntos, embora não o tenhamos realizado, nesse “Choral Work” que ainda não está construído, mas que se vê e se lê em todos os lugares? Quando deixamos de fazê-lo?”. Eisenman precisou explicar aos congressistas, na Universidade da Califórnia, em Irvine – onde Derrida ensinou por um longo período – a sua khôra, que não é mais a khôra de Derrida. Cabe-lhe a tarefa de explicar o que desviou do projeto originário. Derrida, nesse ponto, como uma espécie de promotor de acusação, leva o texto de Walter Benjamin, Experiência e pobreza [20]. Segundo Derrida, Benjamin, nesse texto, fala de uma “nova pobreza”, fala ou profetiza um conjunto errante de pobres, de homeless absolutamente “irredutível às classificações e às localizações antigas da marginalidade ou da escala social, os baixo-salariados, o proletário, os desocupados etc.” No entanto, Benjamin não fala disso. Fala da pobreza de experiência comunicável dominante precisamente depois que a Grande Guerra colocou em campo um acúmulo de experiência que até então não havia comparação na história da humanidade. Uma experiência imensa não comunicável, uma pobreza de experiência que induz a fazer com muito pouco, a iniciar a partir do novo. É isso que fazem os bárbaros, é isso que fazem os grandes criadores. Os “implacáveis que, em primeiro lugar, eles eliminaram. Eles queriam ter uma mesa para desenhar”. Entre eles, Descartes, Newton, Einstein, o cubismo e Paul Klee. Entre eles, Adolf Loos, Paul Scheerbart, a arquitetura de vidro, ou seja, a arquitetura sem aura. Como se vê, Benjamin não fala de homeless, ou de uma pobreza que vai além de toda classificação, diante da qual o niilismo intelectual da arquitetura deveria recuar. Derrida cita, modificando-o amplamente, o Drama barroco alemão, afirmando que no passado a arquitetura organizava a fragilidade das coisas que construía como uma resistência à destruição. No entanto, vimos que o Caráter destrutivo “reduz o existente em ruínas, não por amor das ruínas, mas pelo caminho que as atravessa”. Também a arte de Baudelaire, lemos num fragmento das Passagens: “é útil na medida em que é destrutiva. Sua ira destrutiva visa particularmente o conceito fetichista de arte. Desta forma, ela serve à arte “pura” no sentido de uma arte purificada” (J 49, 1).

 ”Deixo entre uma pincelada e outra um espaço interstício”.

- Giovanni Segantini -

12

VESTÍGIOS Derrida, ganhando força com Benjamin, convoca Eisenman a responder aquilo que Libeskind afirma numa entrevista, na qual fala de um vazio que se materializa, de fragmentação, de “invisibilidade que” – diz Libeskind – “procurei levar à visibilidade. A nova extensão é concebida como um emblema no qual o invisível, o vazio, se manifesta como tal” [21]. Portanto, “ainda o vazio, a ausência, a negatividade, tanto em Libeskind como em vocês”, escreve Derrida. “Deixo-os se desenredarem sozinhos com essas palavras, caro Peter, caro Hillis [22], mais uma vez lhes direi o que penso disso, mas o sugeri começando”. A carta termina com dois post-scriptum. O primeiro é uma refutação enfurecida de uma entrevista em que Eisenman tomava distância da desconstrução, afirmando que ela é um termo literário e não arquitetônico. “A desconstrução aborda a arquitetura como uma metáfora e nós tratamos a arquitetura como uma realidade”, havia declarado Eisenman, provocando o ressentimento de Derrida.

9.

Está claro que o disseminador não pode suportar nem um vazio no qual a poeira do sentido se dispersa, nem uma plenitude de significado que forçaria a arrastar o diferimento ao infinito. O que parece escapar completamente a Derrida é que o holocausto é, sim, uma plenitude de sentido, mas de um sentido irrepresentável. É o indizível absoluto. Um pensamento que, nesse ponto, não se move contra si mesmo, que não vai em direção ao extremo é, como disse Adorno, cúmplice “daquela música de entretenimento com a qual as SS amavam abafar os gritos das suas vítimas” [23]. O vazio do Museu de Libeskind alude, a meu ver, justamente a esse vazio, a esse irrepresentável. É por isso que, como disse antes, teria ainda um sentido mais forte um museu que ao invés de acolher rechaçasse as coisas que surgem para habitá-lo e preenchê-lo. Percebo que aqui estamos numa contradição dificilmente sanável. Paradoxalmente, para chegar à palavra muda que possa testemunhar o holocausto é necessário remover os seus testemunhos. Dentro dessa contradição, precisamos nos mover, assim como no aforismo de Kafka, sempre no instante de tropeçar. Referências:

Libeskind não é Eisenman. O vazio de Libeskind não é o vazio de Eisenman, como ele mesmo irá reforçar (Derrida, “Adesso l’architettura”, p. 274) na réplica ao texto de Derrida, Réplica a Daniel Libeskind, presente em Radix-Matrix, publicado em 1997, no ano em que é realizado o Museu de Berlim. Diversidade – se me permitem um deslizamento pessoal – que me afastou de Eisenman. Distanciamento que mais ou menos coincidiu também com o meu afastamento de Derrida. Acredito, sobretudo, que a carta enviada a Peter Eisenman seja uma tomada de distância de Derrida do perigo no qual havia pensado sobre uma intervenção direta nas questões arquitetônicas. Acredito também que naquele momento houve um direcionamento alhures dos arquitetos à procura, no melhor dos casos, de uma filosofia (as “Heterotopias” de Michel Foucault, os “Não-Lugares” de Marc Augé), ou, no pior dos casos, da escolta de um filósofo.   No centro de sua réplica a Libeskind, escrita quando o afastamento havia ocorrido, ainda se encontra a questão do vazio. Um vazio historicamente determinado, escreve Derrida, “não é, por exemplo, o lugar indeterminado no qual tudo tem lugar”, ou seja, na khôra. “É um vazio que corresponde a uma experiência que em algum lugar você chamou de o fim da história – o Holocausto como fim da história”. O fim é uma borda. O vazio que Libeskind criou “foi determinado por um acontecimento – o Holocausto, que é também o fim da história”. A minha “ansiosa questão – prossegue Derrida – tem a ver com a relação entre esse vazio determinado, totalmente investido pela história, pela plenitude de significado, pela experiência, e o próprio lugar, o lugar como uma não-antropológica, não-teológica possibilidade para esse vazio ter lugar. A lógica da khôra, portanto. É um desafio à lógica da exemplaridade” (Ibidem, p. 270-272). Como se vê, para Derrida, tudo volta a girar ao redor da khôra, o vazio sem fraturas, sem fragmentos, uma espécie de vazio pleno, contraposto ao vazio determinado e investido pela história, pela plenitude de significado. Um vazio que não é um vazio, segundo Derrida, assim como também não é um vazio neutro, ou neutral, celebrado por Blanchot.

[1] G. Benn, “L’io moderno”, in: Lo smalto sul nulla, a cura di L. Zagari. Adelphi: Milano, 1992, p. 25. [2] Nachgelassene Schriften und Fragmente II, a cura di M. di J. Schillermeit, in F. Kafka, Kritische Ausgabe, a cura J. Born, G. Neumannn, M. Pasley und J. Schillermeit, Fischer Taschenbuch Verlag, Frankfurt a.M. 2002 tr. it. In: Il silenzio delle sirene. Scritti e frammenti postumi, a cura di A. Lavagetto, Feltrinelli, Milano, 1994, p. 83. [3] W. Benjamin, Il dramma barocco tedesco, tr. it. di F. Cuniberto, Einaudi, Torino 1999. O ensaio sobre Goethe in: W. Benjamin, Opere complete, ed. it. a cura di E. Ganni, vol. I, Einaudi, Torino, 2008. [4] In: Opere complete cit. vol. IX, Einaudi, Torino, 2000. [5] In: Opere complete cit. vol. IV, Einaudi, Torino, 2002. [6] As reflexões de Libeskind e o debate relativo são referentes a D. Libeskind, radix-matrix, Prestel, Munich-New-York, 1997; “Trauma” in: Image and Remembrance: representation and the Holocaust, Indiana University Press, Bloomington, 2003. Alguns dos textos de Derrida, mas também de Eisenman in: J. Derrida, Adesso l’architettura, a cura di F. Vitale, Libri Scheiwiller, Milano, 2001. [7] F. Kafka, La metamorfosi e tutti i racconti pubblicati in vita a cura di A. Lavagetto, Feltrinelli, Milano, 1991; Aforismi di Zürau, a cura di R. Calasso, Adelphi, Milano, 2004, aforismos 1 e 25. (Citado, aqui, na tradução brasileira, in: F. Kafka, 28 desaforismos. Tradução de Silveira de Souza. Edufsc: Florianópolis, 2010, p. 11). [8] S. Freud, Das Unheimliche (1919), in: Studienausgabe, S. Fischer Verlag, Frankfurt a. M., vol. IV, 1970, tr. it. di S. Daniele, in Opere, Boringhieri, Torino, 1966-1980, vol. IX. [9] A. Vidler, Warped Space: Art, Architecture and Anxiety in Modern Culture. Mit Press, Cambridge MA, 2000, p. 238. [10] “Radix-Matrix”, p. 34. Strada a senso unico se encontra in: W, Benjamin, Opere complete cit. vol. II (2002). Na página 26 Libeskind também lembra, entre as figuras que estão acima de seu projeto, Franz Kafka, Walter Benjamin, Primo Levi, Osip Mandelstam, Paul Celan. [11] W. Benjamin, Sul concetto di storia, a cura di G. Bonola e M. Ranchetti, Einaudi, Torino, 1997. [12]  G. Bataille, Préface à Madame Edwarda, Œuvres complètes, vol. III, Gallimard, Paris, 1971, p. 12. [13] F. Kafka, Il castello, tr. it. di P. Capriolo, Einaudi, Torino, 2002, p. 347. (Citado, aqui, na tradução brasileira in: F. Kafka, O Castelo. Tradução Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 351-352). [14] Parte desse debate, naquilo que nos interessa, está presente in: Derrida, Adesso l’architettura. Outros textos de Derrida: Chora tr. it. di F. Garritano in: Il segreto del nome, a cura di G. Dalmasso e F. Garritano, Jaca Book, Milano, 2005; Point de folies - maintenant l’architecture (1986), in: Psyché, Galilée, Paris, 1987; Pourquoi Peter Eisenman écrit de si bon livres (1986) in: Psychécit.; Cinquante-deux aphorismes pour un avant-propos (1986) in: Psyché cit. [15] J. Derrida, L’écriture et la différence, Seuil, Paris, 1967, tr. it. di G. Pozzi, Einaudi, Torino, 1972; La dissémination, Seuil, Paris, 1972, tr. it. di S. Petrosino e M. Odorici, Jaca Book, Milano, 1989. [16] J. Derrida – P. Eisenman, Choral L Works, a cura di J. Kipnis, Monacelli, New York, 1997. [17] Frammenti di una conversazione con Jacques Derrida in: Adesso l’architettura, p. 108-109. A conversa ocorreu em 1987. [18] R. Musil, L’uomo senza qualità, tr. it. di A. Rho, Einaudi, Torino, 1996. [19] Postmodernism and Beyond: Architecture as the Critical art of the contemporary Culture, University of California,Irvine 26-28 out. 1989 in: Adesso l’architettura, p. 201-217. [20] In Opere complete cit. vol. VI, Einaudi, 2004. [21] Interview with Daniel Libeskind. Winner: the Berlin Museum Competition, publicada em “Newsline” (revista da escola de arquitetura da Columbia). [22] Daniel Hillis, entre os organizadores do congresso. [23] S. Friedlander (ed.), Probing the limits of representation. Nazism and the “Final solution”, Harvard University Press, Cambridge, Mass. 1992 e P. Ricœur, “Quelques réflexion sur l’intitulé du séminaire”, in AA.VV., Travail dé mémoire 1914-1998. Une nécessité dans un siècle de violence, Autrement, Collection Mémoires, Paris, 1999. Th. W. Adorno, Dialettica negativa, a cura di S. Petrucciani, Einaudi, Torino, 2004, p. 328.

* Agradecimento especial a Franco Rella por nos ter autorizado a tradução e publicação deste ensaio. [N. T.]

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VESTÍGIOS

palacete

FELLET yussef campos 21 de junho de 2014

Palimpsesto, traço apossado, Arresto do passado, indício! Resquício admoestado. Paço outrora, por ora suplício. Veste imunda, herança maldita. Corcunda nem te habita! Falsete, nódoa, troça genuína. Amaldiçoado palacete-ruína. Mas mostra-te vestígio! Fóssil, documento Argumento do contágio, dócil e insolente, Que provocas no mais débil descrente De que és pegada, sinal, baluarte. Da tentativa do mais vil abate Ressurge patrimônio, antônimo de destruição Estandarte, presságio, adágio da arte.

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VESTÍGIOS

caverna

GEOMÉTRICA com JOÃO MACHADO www.joao-machado.com

Na natureza existem vários seres que, no decorrer de suas vidas, deixam para traz vestígios físicos de sua evolução. Insetos deixam casulos e cobras trocam de pele. Entre nós humanos, as transformações ocorrem de forma diferente pois possuímos a memória que nos permite a identificação e a comparação com aquilo que já fomos um dia. Graças à memória, carregamos internamente um pouco desses casulos, peles secas e outras carcaças fruto de nossas transformações. Além disso, a natureza inquieta do homem faz com que ele queira materializar para além da memória as suas transformações.

As constantes mudanças que pontuam nossa existência somam-se no que pode ser chamado de nossa história de vida. Porém, a nossa memória é ainda mais ampla e carrega também vestígios de gerações passadas, formando assim a história da humanidade. Indissociável da nossa evolução como espécie, está a história da arte, que nos acompanha desde os tempos pré-históricos. Talvez a arte seja o que mais se assemelhe a estes vestígios de transformação encontrados na natureza. No seu rastro, se encontram tudo aquilo que fomos, que somos e que queremos ser. A série de gravuras “Caverna Geométrica” foi concebida a partir de fotografias que tirei de moldes de esculturas em bronze na extinta fundição Fonderie Godard, situada nos arredores de Paris. Assim como os casulos para os insetos, o molde de silicone é uma membrana feita à imagem do corpo que abrigou e ajudou a gerar em seu ventre. A forma côncava dos moldes também se assemelha às cavernas, o que vai de encontro ao tema da evolução do homem desde seus primeiros registros nas paredes das cavernas. 15

VESTÍGIOS estética de vídeo games de 8 bits e das aberturas psicodélicas de programas de televisão vistos na infância. Na experiência desse projeto, pude ver os pontos digitados em tinta ocre nas cavernas pelos primeiros humanos assim como as minhas próprias digitais, marcando em pixels a superfície de uma tela. Entre esses dois pólos está a história de nossa passagem pela terra e a batalha obsessiva do homem em marcar sua presença num universo que a todo momento o lembra da sua insignificância.

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com JOÃO MACHADO, clique aqui

Recentemente, a antropóloga Geneviève Von Petzinger liderou um estudo e criou um acervo visual dos símbolos geométricos encontrados em diversas cavernas pelo mundo. Além das célebres imagens de caça, existe um grupo de símbolos não-figurativos como o espiral, o triângulo e o círculo, entre muitos outros. Talvez nunca iremos decifrar essas formas de comunicação gráfica de nossos antepassados. Incorporei alguns desses misteriosos símbolos do acervo de Von Petzinger às fotos dos moldes, mas não fiquei feliz com o resultado. A idéia estava lá mas faltava alguma coisa. Faltava o tempo. O efeito do tempo que funde uma escultura em bronze, uma borboleta ou a história da humanidade. Precisei criar o tempo artificialmente e me lembrei do que acontece com o vídeo quando se faz uma cópia da cópia. O nome disso é perder uma geração de imagem. Achei a técnica da “geração perdida” perfeita não só simbolicamente como também no resultado estético. A cada geração que eu perdia, a imagem se transformava em aberrações de cores e perdia sucessivamente mais detalhes até se tornar uma vaga lembrança da imagem inicial. O resultado final se parece menos com algo pré-histórico do que com algum vídeo ou imagem de computador antigo. A pré-história do digital, talvez. Essa estética da imagem digital antiga tem um peso maior para mim do que dez cavernas de Lascaux porque esse foi um passado que eu vivi. A

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VESTÍGIOS

artista

ATIVADOR DA SUBJETIVIDADE com RODRIGO BRAGA www.rodrigobraga.com

Rodrigo Braga calca sua obra em questões fundamentais dos tempos atuais: a busca por uma identidade para o homem moderno através do resgate do primitivo, de rituais da ancestralidade humana e dos laços com a natureza. A TECNOGRAPHY conversou com o artista, que contou um pouco sobre o processo envolto, da criação de seres híbridos, mordazes e instigantes, que muitas vezes apropriam-se do seu corpo. Nas páginas que seguem, ainda há espaço para que Rodrigo conte sobre as plataformas que usa para criar a sua arte, duas galerias com alguns dos seus trabalhos e um vídeo-performance. TECNOGRAPHY: quais os conceitos que cercam o seu trabalho? Quais as influências, se elas existem, que atingem você?

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RODRIGO BRAGA: As influências do meu trabalho vem de uma relação muito pessoal do meu envolvimento com a biologia, com a ecologia, com as ciências de uma forma geral. E muito através dos meu pais, eles são biólogos e a partir daí, eu e minha irmã, um ano mais nova que eu, a gente começou a ter muito contato com isso e desde o início da década de 1980, fomos absorvendo muitos destes conteúdos. Tanto que minha irmã virou ecologista, e tanto ela quanto meu pai e minha mãe, presidem cada um, ONGs ambientalistas. E eu não... eu fui ser artista, porque eu já gostava muito de desenhar, já desde muito criança. E fui desenhar a partir dos livros que tinha em casa, que muitos eram, claro, de biólogos. Enquanto me formava artista, fui me misturando, me formando neste interesse, neste foco específico, e acabei trabalhando com elementos naturais, que tenho um grande apreço em estar em contato com esse mundo.

Sentinela do Rio

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VESTÍGIOS

TECNOGRAPHY: a sua proximidade com a natureza possibilita o surgimento de seres híbridos, primitivos e até ancestrais, pelo menos aos olhos do espectador. Como você entende isso? RODRIGO BRAGA: Essa relação de proximidade que tenho com esse universo, sempre me despertou muito interesse, desde cedo até hoje, eu tenho muito gosto de estar em contato com a natureza. Então, de vez em quando eu preciso me retirar da cidade grande e ir para a zona rural ou fazer uma viagem e isso me suscita muitas ideias. É um processo que vai sendo elaborado e tento trazer para o meu trabalho uma relação que temos perdido, que esquecemos que temos, na verdade. Acho que boa parte da minha obra vai no sentindo de nos lembrar que somos animais e que esse lado orgânico e animal que está na natureza a gente tem porque também somos natureza. E isso é fundamental dentro do meu pensamento. Tento também, ver as coisas nesta relação de forma cíclica, são ciclos naturais de de vida e de morte, de transformação natural... e eu sou artista e lido com isso, de uma outra forma. Eu produzo a minha própria intervenção, introduzo minha mão nesse meio natural, introduzo minha ação e desta maneira, altero essa natureza. Às vezes eu a enalteço, mas às vezes causo desordem. O que de certa forma é uma metáfora do que é a nossa relação humana com a natureza, que é conflitante, mas tende ser idílica, que nos faz esperar por uma natureza para contemplar, intocada e muitas vezes eu toco nesta natureza, a alterando. Diferente dos meus pais e da minha irmã, eu não faço uma defesa ecológica no meu trabalho. Mas eu penso na ecologia através destas transmutações, que nem sempre são tão agradáveis. TECNOGRAPHY: as suas obras lançam ao espectador um incômodo. Instigam os sentidos... RODRIGO BRAGA: Foi citado a ancestralidade, né?! Esse incomodo é gerado porque a gente tem também a forma animal e até violenta de lidar com o outro e com o que nos rodeia, então acaba que o meu trabalho muitas vezes desperta esse lado mais subjetivo das pessoas. Nas imagens, em cada uma, você pode tirar uma narrativa específica ou você pode juntar as 17 imagens (....) e fazer uma única história sobre as mesmas imagens, como o “ser ermitão” que está ali. Mas eu costumo não fechar nenhuma história, eu tendo deixar o mais aberto e quando a pessoa vê, ela terá que lidar com a espe-

culação em relação as imagens, o que leva a se perguntar: o que é isso? Como aconteceu isso? Por que ele está ali? O que veio antes? O que veio depois? Esse animal está morto, está vivo? Esse tipo de questionamento acaba ganhando espaço na cabeça das pessoas. TECNOGRAPHY: as suas obras se utilizam muito do seu corpo como ferramenta e causam intervenções no ambiente onde as “ações” acontecem. Qual o papel do corpo no seu processo criativo? RODRIGO BRAGA: Eu me formei como a maioria dos artistas, nas técnicas e suportes tradicionais: desenho, pintura, gravura, escultura... E fiz tudo isso por algum tempo, mas depois de um tempo fui tendo um contato maior com a tecnologia, com a fotografia, com o vídeo e também através da universidade, que também me formei em Artes Visuais e eu vinha tendo contato com a performance, com arte conceitual dos Anos 60/ 70 e isso me instigou muito, então eu já tinha essa base de formação, que é muito mais estética, que fica claro nos meus trabalhos, porque são muitas posições, muito elaborados... TECNOGRAPHY: além do corpo, a preocupação com a estética é clara... RODRIGO BRAGA: É, eu não consigo fugir disso, porque está na minha base de formação. Penso muito quanto imagem, sabe?! Quando eu vou criar, por mais que vou fazer uma ação, parte do meu pensamento vai para a lente, no que vai estar naquele quadro. Há uma elaboração estética, cromática, textura, relevo... Eu sou muito convidado para evento de fotografia, mas sempre me coloco... Sim, como fotógrafo também, porque quase 70% da minha obra é fotografia, mas me coloco como um fotógrafo que altera a paisagem e com isso acabo criando uma relação com a pintura e com a escultura, porque eu coloco tijolo por tijolo, madeira, ossos... Há uma situação escultórica, cavando buraco na terra e com a ação performática. Eu não sou um performer assim, nunca fiz performance em museu ou galeria, mas eu faço pequenas ações para serem registradas. Então assim, são fotografias são, são vídeos são, mas muito híbridos enquanto linguagens. TECNOGRAPHY: sobre as tecnologias que você usa no seu trabalho - a fotografia e o vídeo - como se dá essa relação entre “você artista” e esses mecanismos?

RODRIGO BRAGA: Isso é histórico... cada artista, em sua época trouxe no trabalho o que tem de mais recente das tecnologias. Desde Da Vinci até qualquer outro artista... das tintas acrílicas à fotografia, o vídeo. Eu não sou um cara que lido diretamente com as novas tecnologias. Não no sentido de tecnologia de ponta, mas me absorvo de tecnologias disponíveis nos dias de hoje, digamos assim. O que quero dizer é que não tenho uma ânsia pela busca das descobertas tecnológicas, mas sim, eu quero usar o que tem de melhor, como por exemplo os vídeos em HD. Na fotografia, tenho tentado trabalhar com bons equipamentos, que me possibilitem criar com mais qualidade. É uma relação que está sempre presente, mas não é uma ânsia. TECNOGRAPHY: e como você vê o cenário das artes dentro deste contexto tecnológico, das multi-plataformas? RODRIGO BRAGA: Bom, o cenário é muito amplo e se tem de tudo na arte contemporânea. Tem uma gama de artistas muito grande e com muitos perfis. Existem os materialistas, os desmaterializados, os mais estéticos, os mais figurativistas, os pictóricos, os conceituais, os performáticos e estão todos dentro deste caldeirão e tudo é possível. E dentro de tantas possibilidades, é preciso distinguir o que é interessante sob o ponto de vista da artisticidade, de pensarmos no artista como um ativador de subjetividades, de pensamentos, de questionamentos. Podemos falar em mil formas de representar, de linguagens e de conduzir a arte, mas é preciso olhar para aqueles artistas que conseguem dialogar com o mundo de uma forma a instigar novas formas de visões sobre este mundo. Enfim, não tenho pretensão nenhuma de que a arte irá transformar o mundo diretamente, nosso papel é muito pequeno e acabamos sendo meio que invisíveis, mas aqui e acolá vamos conseguindo introduzir novas células do pensar e de sentimentos, que aí sim, vai contribuindo de indivíduo em indivíduo... TECNOGRAPHY: ainda sobre as suas obras, pode-se dizer que elas também apresentam fragmentos. Quais vestígios você acredita se apoderar na criação e quais pensa deixar para o público? RODRIGO BRAGA: Tem um cara que eu li, que me influenciou muito, o Phillippe Dubois, que escreveu “O Ato Fotográfico”. Neste livro ele fala da fotografia quanto vestígio, índice... você tem um objeto a frente, a câmera captura e o que você vê é um fragmento do que aconteceu, um indício de passagem, de presença. E eu acho que tem sim, um vestígio material nos meus ambientes, os ossos, as pedras, as folhas... mas acho também importante pensar nos vestígios da minha ação, quer dizer, no rastro da minha presença. O que eu faço, produz algo... esse algo

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marca, por mais que o meu corpo não esteja na fotografia, percebe-se que houve alguém ali. Percebe-se a minha presença naquele espaço. Então, dentro deste tema, acho interessante pensar no papel do artista alterando a obra. TECNOGRAPHY: a arte liberta? RODRIGO BRAGA: Claro, a arte liberta... a mim libertou... TECNOGRAPHY: mas alguns artistas dizem que são reféns dela... RORDIGO BRAGA: É... pode ser as duas coisas. Eu entendo quando eles dizem isso. É que o artista começa a entrar nesse universo, pelo menos a maioria e sobretudo os da minha geração, de uma maneira despretenciosa e que não vai viver disso, hoje acredito que sim, em São Paulo existem jovens artistas que logo que começam já pensam em mercado. Mas a gente é acometido por essa “doencinha” e vai levando a vida, daqui a pouco o negócio cresceu e fica inescapável... Então, na verdade liberta e aprisiona, porque não se consegue mais fazer outra coisa na vida. Porém, liberta do ponto de vista emocional e até psicológico e por que não espiritual?! TECNOGRAPHY: na arte existe limites? RODRIGO BRAGA: Eu não gosto de limites... Existe responsabilidades, sim. Eu acredito que o artista deve ser muito sério por mais que ele queira transgredir limites. Ele deve ter muita responsabilidade, o que não é fazer o que quiser, mas fazer o que se quer, sabendo o que está sendo feito ou descobrindo o que está fazendo. Eu gosto de pensar em arte, não que o artista seja alguém especial, extrapolando limites, mas pensando sobre ele, investigando e assim levar a fronteira adiante.

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Broto Osso

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o corpo NU EM

detalhes

com VIVIANE RODRIGUES www.fotografiaorganica.com.br

O projeto “a e s t h e s i s” trabalha - não com os corpos domesticados, dóceis, tão belamente enunciados por Foucault, - mas com corpos humanos, libertos, iguais e diversos. Sobre a realização dos ensaios, a fotógrafa - jornalista e professora universitária, com 20 anos de experiência no fazer-pensar corpo/fotografia - diz que são uma tentativa de retomada do corpo: uma reapropriação no intuito de naturalizá-lo, de conhecê-lo.

Para isto, a fotógrafa capta, desnuda e confunde, recorta e humaniza, na esperança de se apropriar das condições que ele oferece para mostrar todas as relações que media. A fotógrafa acredita que “na diluição de tantas identidades que vivem no mesmo espaço geográfico de nós mesmos, aquilo que nos individualiza é também o que nos irmana.

Em planos, frequentemente fechados Viviane vê com outros olhos. Menos discretos. E mais benignos, “sem culpa, constrangimento ou vergonha pelos vestígios de humanidade que o corpo traduz nas formas de se ser humano”. Por isto ela acredita que Merleau-Ponty sabia das coisas. Ele pensava que o corpo é uma obra de arte e a linguagem que fala, é poética.

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VESTÍGIOS

o palco e os VESTÍGIOS em cena

A arte da interpretação é subjetiva e repleta de variantes, absorvidas por diversos “canais”. Estes canais podem ser o dramaturgo, o diretor, os atores que encenam ou o público, que assiste tudo e de alguma maneira vive situações, medos, prazeres e conecta-se com memórias. A TECNOGRAPHY, traz na video entrevista desta edição uma reflexão do ator Leonardo Brício sobre o ato de encenar e os vestígios que isso deixa no ator através dos personagens e como atinge o espectador, que não deixa de ser elemento importante no transcorrer de qualquer história.

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Assista a Video Entrevista do ator Leonardo Brício, clicando aqui

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lâmpada

acenda a luz: novos olhares, novas propostas e formas de interpretação

com ULISSES EVANGELISTA

O artista Ulisses Evangelista é mineiro e autodidata. Começou a desenhar ainda na infância e mais tarde descobriu novos e variados materiais, identificou-se com a tinta acrílica e associou-a ao lápis pastel. Como apreciador da gastronomia, uniu temperos e alimentos não perecíveis, de onde surgiram novas cores e diferentes texturas, formando assim, um universo criativo com materiais que o possibilitam ampliar a potência do seu trabalho além do habitual. Na galeria de imagens ao lado é possível acompanhar algumas obras criadas por Ulisses.

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Confira outros trabalhos do artista 22

CRIADORES

:.iriê salomão jr.

nascido na educação física, apadrinhado da arte tem saído com a filosofia. esteve presente no dia que Fernando Pessoa gostou do perfume de Basquiat. mineiro de pedra-sabão, gosta de ficar calado falando. acredita em espíritos e maremotos.

:.alexandre rese

formado em comunicação social, pós-graduando em arte e cultura - ênfase em artes visuais, com experiência em relações públicas e um passado no mundo da moda, atualmente, acredita que a arte pode salvar vidas! frequentemente é raptado para os mundos da mitologia e do design gráfico. pisciano com ascendente em peixes, luta todos os dias para não ficar perdido no mundo da lua.

agradecimentos: João Machado Rodrigo Braga Leonardo Brício Davi Pessoa c. Barbosa Ulisses Evangelista Yussef Salomão Viviane Rodrigues Sonia Mara Viero IriêSalomão: Juliana Acácio, Juan Salomão, Alda Salomão, Iriê (o pai), Leon Salomão, Vó Isabel, Alan Salomão e Iano Salomão. Aos amigos de sempre, Ximene Rodrigues, Carlos Eduardo Pereira, Rômulo Correa, Iano Salomão, Alessandro Arbex, Yussef Salomão, Bruno Gomes, Eridan Leão, Thaís Acácio, Jonathan Pereira, Hussam  , Lívia Maia || Alexandre Rese: Guilherme Rios de Faria, Olga Viero, Lucas Viero, Bisa Selá, Lizi Hoppen, João Paulo Savi, Camilla Hilgert, Tânia Essabbá, Raphael Freitas, Martha Gama, Zaira Thezolin||

n˚# 1 ed. VESTÍGIOS

2014

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