Tecnologia e debate sobre alquimia na Baixa Idade Média

May 31, 2017 | Autor: Bruno Godinho | Categoria: History of Science, Alchemy, Middle Ages
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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2.

TECNOLOGIA E DEBATE SOBRE ALQUIMIA NA BAIXA IDADE MÉDIA TECHNOLOGY AND ALCHEMICAL DEBATE IN THE LATE MIDDLE AGES William Newman Departamento de História da Ciência, Harvard University Tradução Bruno Sousa Silva Godinho ______________________________________________________________________ Resumo: Trata-se de tradução para a língua portuguesa do artigo “Technology and Alchemical Debate in the Late Middle Ages”, de William Newman, publicado originalmente em 1989, pela Revista Isis, A journal of the History of Science Society. Esta tradução visa oferecer ao público de língua portuguesa referência bibliográfica crítica sobre a alquimia no período medieval; o estudo de Newman propõe a prática da alquimia, na Idade Média, conectada com os desenvolvimentos técnológicos, isto é, com a atividade artesanal compreendida como processo de ação humana sobre o mundo e, por esta razão, profundamente relacionada com a área do conhecimento ciêntífico. Como explica o autor, os alquimistas medievais compreendiam o seu ofício não como imitação dos processos naturais, mas como atividade tecnológica em que a arte humana seria capaz de elevar-se acima da própria natureza; por essa razão, os alquimistas tornaram-se grandes inovadores do campo ciêntífico medieval. Palavras-chave: Ciência na Idade Média, Alquimia, Tecnologia.

Abstract: This is a translation into Portuguese of the article: “Technology and Alchemical Debate in the late Middle Ages”, by William Newman, originally published in 1989 by the magazine Isis, A journal of the History of Science Society. This translation aims to provide the Portuguese speaking public a critical bibliographic reference on Alchemy in the mediaeval period; Newman’s study proposes that the practice of alchemy, in the Middle Ages, is connected to technological developments, that is, with artisanal activity, understood as the process of human action over the world, and, therefore, deeply related to scientific knowledge. As the author explains, mediaeval alchemists understood their office not as imitation of natural processes, but as technological activity in which the human art would be able to rise above nature; for this reason, the alchemists have become great innovators in the mediaeval scientific field.. Keywords: Science in the Middle Ages, Alchemia, Technology.

______________________________________________________________________ Recebido em: 13/03/2015 Aprovado em: 13/03/2016

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A atitude medieval em relação à tecnologia é um dos mais interessantes tópicos disponíveis para historiadores preocupados com a transição da antiguidade para a modernidade. Um debate considerável se concentrou nas reivindicações arrebatadoras feitas por Lynn White sobre o impacto social e cultural de mudanças tecnológicas feitas na Idade Média. 1 Outros, como Guy Beaujouan e James Weisheipl, olharam para as classificações escolásticas das artes e ciência e encontraram uma apreciação maior pelo papel do artesão na sociedade do que fontes mais antigas revelam. 2 A despeito do crescente consenso que a Idade Média forneceu fértil terreno para desenvolvimento tecnológico, um significativo debate contemporâneo tem sido ignorado, a saber, a disputa tardo-medieval sobre a importância da alquimia – se ela se encaixava em áreas legítimas do conhecimento e se suas alegações eram possíveis e mesmo legais.3 Por que deveríamos considerar este tópico dentro do contexto da tecnologia medieval? Como demonstrarei neste artigo, a alquimia forneceu um foco natural para a questão do poder artesanal do homem no mundo natural. A visão de mundo medieval era marcada por uma profunda divisão entre arte e natureza. Originando em parte de Aristóteles, e em parte de outras fontes gregas, latinas e árabes, essa visão colocou limites estritos nos limites conceituais da inovação técnica. O escritor monástico do século XII, Hugo de São Vitor, famoso por sua influente inclusão da tecnologia no campo das ciências, escreveu que “os produtos de artífices, embora não naturais, imitam a natureza, e no esboço através do qual imitam, eles expressam a forma de seu

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WHITE JR., Lynn Medieval Technology and Social Change. Oxford: Oxford Univ. Press, 1962. Uma avaliação em geral positiva do trabalho de White pode ser encontrada em STOCK, Brian. Science, Technology, and Economic Progress in the Early Middle Ages. In: David C. Lindberg (org.). Science in the Middle Ages. Chicago: Univ. Chicago Press, 1978, p. 1-51. Para uma abordagem geral da tecnologia medieval, cf. GILLE, Bertrand, DAUMAS, Maurice (org.). Histoire générale des techniques. 5 vols. Paris: Presses Universitaires de France, 1962-1979, v. 1, p. 427-598, e v. 2, p. 2-139; e GIMPEL, Jean. The Medieval Machine. Nova Iorque: Holt, Rinehart & Winston, 1976. Sobre a aura mágica envolvendo a tecnologia na Idade Média ver EAMON, William. Technology as Magic in the Late Middle Ages and the Renaissance, Janus 70, 1983, n. 3-4, p. 171-212. Ver também HANSON, Bert. Science and Magic. In: LINDBERG, David C. (ed.). The book Science in the Middle Ages. Chicago: University of Chicago Press, 1976, p. 483-506. 2 BEAUJOUAN, Guy. L’interdépendence entre la science scolastique et les techniques utilitaires (XIIe, XIIIe, et XIVe siécles) (Conférence faite au Palais de la Découverte, ser. D, 46). Paris: Université de Paris, 1957; WEISHEIPL, James. The Nature, Scope, and Classification of the Sciences In: LINDBERG, David C. (ed.). The book Science in the Middle Ages. Chicago: University of Chicago Press, 1976, p. 473-474, 480; e WEISHEIPL, James. Classification of the Sciences in Medieval Thought. Mediaeval Studies, v. 27, 1965, p. 54-90. Ver também LEGOWIZC, Jan Le problème de la theorie dans les artes illiberales et la conception de la science au moyen âge. In: UNIVERSITÉ DE MONTRÉAL. Arts libéraux et philosophie ay moyen âge: Actes du quatrième congrès international de philosophie médiévale. Montreal: Institut d’Etudes Médiévales, 1969, p. 1057-1061. 3 Sobre a questão da legalidade neste contexto, ver JOHANNES CHRISIPPUS FANIANUS. De iure artis alchemiae... In: MANGET, J.J.. Bibliotheca chemica curiosa, v. 1. Genebra: s. e., 1702, p. 210-216.

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. exemplar, que é a natureza”. Aqui, Hugo está apenas ecoando a convicção da antiga filosofia grega que os vários ramos das “artes mecânicas”, o que nós chamaríamos de tecnologia, foram originalmente aprendidas copiando processos naturais. Como ele também escreve, “o trabalho humano, por não ser a natureza, mas apenas imitação dela, é adequadamente chamado mecânico, isto é, adulterado”.4 A visão pejorativa de que as artes mecânicas derivavam seu nome da palavra grega para adultério (moicheia) foi, por sua farsa, evidentemente difundida no ocidente latino.5 Embora o homem pudesse copiar a natureza através da arte, seus produtos – apesar de atrativos – jamais poderiam ser idênticos aos seus modelos naturais. Hugo de são Vitor foi um dos escritores apreciativos a considerar as “artes adúlteras”, entre as quais agrupou “confecção de tecidos, armamento, comércio, agricultura, caça, medicina, e teatro”6, mas ele também considerava que elas nasciam de – e estavam limitadas a – imitações da natureza. Alquimistas latinos geralmente nem sempre se preocupavam em invalidar o princípio enunciado por Hugo de São Vitor; pelo contrário, poucos trabalhos alquímicos medievais falham em fazer deferência à noção de que “a arte imita a natureza”. Mas autores alquímicos,

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HUGO. The Didascalicon of Hugh of Saint Victor, org. e trad. Jerome Taylor. Nova Iorque: Columbia Univ. Press, 1961, p. 51, 55-56 (todas as citações do Didascalicon de Hugo são da tradução inglesa de Taylor). Taylor sugere que a representação de Hugo da relação entre arte e natureza é retirada do comentário de Calcídio sobre o Timeu. Ver também, e.g., Aristóteles, Meteorologica, 381b6-7; Phisycs, 199a15-17. Demais fontes são exploradas em FLASCH, Kurt. “Ars imitatur naturam”. In: HIRSCHBERGER, Johannes (ed.). Parusia: Studien zur Philosophie Platons und zur Problemgeschichte des Platonismus. Frankfurt: Minerva, 1965, p. 265-306. Stock encontrou a inclusão de Hugo de São Vitor das sete artes mecânicas entre as tradicionais liberais “em um primitivo Ysagoge in theologiam, em uma explicação de Marciano Capella, e num comentário da Eneida atribuído a Bernardo Silvestre”: STOCK, Brian. Science, Technology, and Economic Progress in the Early Middle Ages. In: David C. Lindberg (org.). Science in the Middle Ages. Chicago: Univ. Chicago Press, 1978, p. 45-48. Ver também OVITT JR., George. The Status of the Mechanical Artes in Medieval Classifications of Learning, Viator, v. 14, 1983, p. 89-105, e WHITE JR., Lynn. Cultural Climates and Technological Advance in the Middle Ages, Viator, v. 2, 1971, p. 171-201, esp. p. 196-197, onde a influência positiva do Didascalion de Hugo é discutida. 5 A crença de Lynn White que essa etimologia espúria “deveria ter tão pequena influência no ocidente” (“Cultural Climates”, cit. n. 4, pp. 192-193) é contrariada pelos vários exemplos coletados por STERNAGEL, Peter. Die artes mechanicae im Mittelalter, vol. II de Münchener Historische Studien, Abteilung Mittelaterliche Geschichte. Kallmünz über Regensburg: Michael Lassleben, 1966. Dentre estes encontramos o escritor monástico do século IX, Martim de Laon, que provavelmente originou essa derivação de mechanica, a figura dos séculos IX e X, Remígio de Auxerre; a classificação anônima de Bamberger das ciências datando do início do século XII; os escritores do século XII, Ricardo de São Vitor, Bernardo Silvestre, e o canonista Hugúcio; um comentário anônimo de Perihermeneias, de Aristóteles; e autores do século XIII como Rodolfo de Longo Campo (c. 1216), Vicente de Beauvais, Alberto Magno, Johannes Balbi (c. 1286), Engelbert de Admont (fl. 1250-1331); ver pp. 45-46, 89-91. Sternagel mantém que a sociedade erudita gradualmente desvalorizou as artes mecânicas entre o começo do século XII e meados do século XIII; os próprios artesãos estavam, é claro, fazendo progressos tecnológicos reais. 6 HUGO. The Didascalicon of Hugh of Saint Victor, org. e trad. Jerome Taylor. Nova Iorque: Columbia Univ. Press, 1961, p. 74.

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diferentemente daqueles da tradição escolástica, estavam dispostos a argumentar que a arte humana, mesmo que aprendida pela imitação de processos naturais, podia reproduzir com sucesso produtos naturais ou até mesmo superá-los. Desta forma, os alquimistas da Idade Média desenvolveram uma articulada filosofia da tecnologia, na qual a arte humana é elevada a um nível de apreciação difícil de ser identificado em outros escritos até o Renascimento. O grau até o qual os alquimistas medievais e seus adeptos foram forçados a desenvolver suas visões positivas sobre o poder da tecnologia em função de salvaguardar sua arte do cada vez mais hostil público da Baixa Idade Média é realmente impressionante. Esse artigo tentará traçar o debate sobre alquimia desde sua concepção na segunda metade do século XII até uma crise definitiva no primeiro quartel do século XIV.7 Debate sobre Alquimia no século XIII A alquimia apareceu pela primeira vez no ocidente latino por volta de meados do século XII, quando Roberto de Ketton traduziu De compositione alchemiae de Morienus do árabe para o latim. Entre o tempo da tradução de Roberto e o fim do século XIV, uma enorme quantidade de literatura alquímica apareceu em latim, muito dela de caráter original. Apesar disso, o currículo universitário da Idade Média escolheu não incorporar a alquimia, assim como ela não foi ensinada em nenhuma instituição de ensino até o início do século XVII.8 Embora muitos trabalhos alquímicos medievais tenham sido escritos por autores escolásticos, usando seu estilo caracteristicamente seco e ordenado de exposição, os escolásticos efetivamente relegaram a alquimia à categoria de marginalidade ao negarem status universitário.

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Esse tópico foi abordado de forma breve e um tanto a-histórica por HOOYKAAS, Reijer. Religion and the Rise of Modern Science. Edimburgo: Scottish Academic Press, 1972, p. 55-58. Uma sinopse mais útil ignora a influência de Avicena: CRISCIANI, Chiari. La ‘quaestio de alchimia’ fra duecento e trecento, Medioevo: Rivista di Storia della Filosofia Medievale, v. 2, 1976, p. 119-168. O útil estudo de Crisciani sobre um sistemata alquímico dos anos 1330 encontra-se fora do recorte temporal deste artigo: CRISCIANI, Chiari. The Conception of Alchemy as Expressed in the Pretiosa Margarita Novella of Petrus Bonus of Ferrara, Ambix, v. 20, 1973, p. 147-162. 8 Para Roberto de Ketton, ver HALLEUX, Robert. Les textes alchimiques: Typologie des sources du moyen âge occidental. Turnhout, Bélgica: Brepols, 1979, fasc. 39, p. 49, 70; este trabalho contém, de longe, o melhor tratamento disponível sobre a historiografia da alquimia medieval como um todo. Alguma controvérsia ainda existe sobre a genuinidade do texto de Morienus e sua atribuição a Roberto; ver RUSKA, Julius. Zwei Bücher de compositione alchemiae und ihre Vorreden, Archiv für die Geschichte der Mathematik, der Naturwissenschaften, und der Technik, v. 11:, 1928, p. 28-37; e STAVENHAGEN, Lee. The Original Text of the Latin Morienus, Ambix, v. 17, 1970, p. 1-12. Sobre a integração da alquimia nas universidades alemãs durante a Revolução Científica, ver HANNAWAY, Owen. The Chemists and the Word: The Didatic Origins of Chemistry. Baltimore, Md.: Johns Hopkins Press, 1975.

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As razões para isso são complexas. Não é suficiente dizer que as universidades medievais eram bastiões do aristotelismo e que Aristóteles nada tinha a dizer sobre alquimia. A despeito de ambas estas afirmações serem verdadeiras de uma perspectiva moderna, elas são enganosas. Primeiro, escritores escolásticos mergulhados em Aristóteles, como Alberto Magno e Roger Bacon, definitivamente acreditavam na possibilidade de transmutação alquímica, como irei elaborar. De fato, a alquimia da Baixa Idade Média era uma razoável e sóbria ramificação da teoria da matéria de Aristóteles. Nisto devemos cuidadosamente distinguir alquimia medieval da eclética, neoplatônica alquimia do Renascimento, impregnada de teosofia e cabala. Em segundo lugar, era crença comum da Baixa Idade Média que Aristóteles teria escrito sobre alquimia. Pelo menos dezoito diferentes trabalhos pseudônimos sobre alquimia atribuídos a Aristóteles durante a Baixa Idade Média sobrevivem em bibliotecas modernas. Um escrito alquímico do fim do século XII ou começo do XIII atribuído a Aristóteles existe hoje em mais de trinta e cinco manuscritos, muitos deles medievais.9 Similarmente, uma longa seção do Book of the Remedy de Avicena que atacava alquimia foi normalmente atribuído a Aristóteles por autores medievais. Alguns, confrontados com o aparente apoio de Aristóteles sobre alquimia em um texto enquanto a atacava em outro, chegaram ao ponto de criar uma hipótese em que o jovem estagirita era altamente crítico, mas mudou seu ponto de vista com a sabedoria da velhice.10 Tampouco é suficiente argumentar que a alquimia teve negado o status universitário por sua caracterização como tecnologia (arte mecânica). Na verdade, a alquimia ocupava uma posição intermediária entre as artes e as ciências, posição também ocupada pela medicina. Como a medicina, a alquimia consistia de um corpo teórico sobre certos aspectos do mundo natural; essa teoria foi, então, utilizada para suportar uma miríade de práticas manuais. Tomás de Aquino, para citar um exemplo, se refere a alquimia variadamente como uma “ciência operativa”, uma “arte mecânica”, e uma “arte operativa”. No primeiro caso, ele elenca “medicina, alquimia e [filosofia] moral” juntas, posto que elas possuem um 9

Schmitt, Charles B., Knox, Dilwyn. Pseudo-Aristoteles Latinus: A Guide do Latin Words Falsely Attributed to Aristotle before 1500 (Warburg Institute Surveys and Texts, 12). Londres: Warburg Institute, 1985, entrada 58; para textos de conteúdo primeiramente ou exclusivamente alquímico, ver as entradas 1-5, 10, 21-22, 25-26, 54-56, 58, 73-74, 85, e 93. Outros textos, como o Secretum secretorum, contêm seções substanciais sobre alquimia. 10 BONUS, Petrus. Margarita Pretiosa. In: MANGET, J.J.. Bibliotheca chemica curiosa, v. 2. Genebra: s. e., 1702, p. 76, 80.

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uso prático e são mais pertinentes a assuntos específicos do que campos como a metafísica, física e matemática. No segundo e terceiro casos, Tomás agrupa a alquimia com a agricultura e medicina como atividades tecnológicas subordinadas à física. 11 Mas o currículo universitário medieval frequentemente incluía disciplinas como medicina e filosofia moral, apesar delas dada por Tomás como, respectivamente, “mecânica” e “operativa”. Não podemos, portanto, ver o desdém dos eruditos pelo prático e tecnológico como causa suficiente para a exclusão da alquimia da universidade medieval, embora isto possa ter sido um fator contribuinte. Explicações muito mais convincentes da falta de sucesso institucional da alquimia do que as mais gerais, como as do silêncio do verdadeiro Aristóteles ou o desdém dos eruditos pela tecnologia, podem ser encontradas examinando documentos medievais específicos. Torna-se claro que entre o começo da alquimia em meados do século XII e o fim do século XIII gradualmente se desenvolveu um rechaço generalizado contra esta disciplina, com as principais autoridades científicas e religiosas concordando em denunciá-la. Em tal contexto, teria sido academicamente desvantajoso, para dizer o mínimo, para um mestre universitário ensinar alquimia publicamente. O resultado é que os autores alquímicos se tornaram “marginais”. Qualquer um que consultar seriamente a bibliografia alquímica da Idade Média latina não deixará de ficar impressionando com o grande número de pseudepigrafia. 12 A seguinte discussão não se limitará a uma recapitulação dos pontos de vista escolásticos acerca da alquimia, mas também examinará algumas destas literaturas pseudônimas. Veremos que, no processo de justificar esta disciplina frente a seus oponentes, os alquimistas e seus adeptos elaboraram uma consciente e articulada defesa da tecnologia, deveras, uma das mais antigas e minuciosas na cristandade latina. Os textos a serem discutidos compõem uma literatura de disputa que pode ser chamada, com justiça, o “debate sobre alquimia” da Baixa Idade Média, Ver Tomás de Aquino, em seu comentário sobre De trinitate de Boethius: “Et ideo etiam quanto alia scientia magis appropinquat ad singularia, sicut scientiae operativae, ut medicina, alchimia, et moralis, minus possunt habere de certidudine”. TOMÁS DE AQUINO. S. Thomas Aquinatis opera omnia, curante Roberto Busa S.I. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1980, v. IV, p. 536, col. 3. Na página 532, col. 1, Tomás classifica agricultura, alquimia, e “aliae artes quae dicuntur mechanicae” juntas, novamente como “artes operativas”, e na página 533, col. 1, ele explicitamente subordina medicina, alquimia e agricultura à física. 12 Mais de 30 trabalhos alquímicos medievais são atribuídos a Alberto Magno: KIBRE, Pearl Alchemical Writings Ascribed to Albertus Magnus, Speculum: A Journal of Medieval Studies, v. 17, 1942, p. 499-518. Recentemente provei que o Semita recta, por muito tempo considerado como o mais autêntico escrito alquímico albertino, é uma falsificação: NEWMAN, William. The Genesis of the Summa perfectionis. Archives Internationales d’Histoire des Sciences, v. 35:, 1985, p. 240-302, esp. p. 246-260. 11

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embora este debate não tenha sido realmente resolvido até que a universidade da Revolução Científica incorporou a química em seu currículo. O princípio do século XIII Nossa história começa com o tradutor inglês Alfredo de Sarashel, que por volta de 1200 traduziu uma seção meteorológica de Kitab al-Shifa (O livro da cura) e a inseriu no quarto livro da Meteorologica de Aristóteles, que já havia sido traduzido por Henricus Aristippus. 13 Esse pequeno texto, que veio a ser conhecido em latim como De congelatione et conglutinatione lapidum, imediatamente adquiriu a autoridade de uma legítima produção de Aristóteles, já que parecia ser a conclusão do quarto livro da Meteorologica.14 O texto se tornou o locus clássico para todos os ataques subsequentes à alquimia, e virtualmente todo autor alquímico – fosse filosoficamente sofisticado ou não – sentiu-se na obrigação de responder aos argumentos de “Aristóteles” (i.e., Avicena). No processo, o De congelatione de Avicena tornou-se um ponto fundamental para a discussão do poder artesanal humano em geral. O De congelatione contém uma descrição de processos geológicos, incluindo a formação dos metais conhecidos – ouro, prata, cobre, estanho, chumbo e ferro. Seguindo as doutrinas da alquimia árabe, Avicena afirma que estes seis são compostos de mercúrio (o mercúrio é considerado não como um metal específico, mas sim como componente dos metais em geral) e enxofre em variadas quantidades e graus de pureza. Logo, ocorre um baque quando ele prossegue a uma denúncia da doutrina da transmutação metálica, na qual a prática alquímica é baseada. Os principais pontos de Avicena podem ser resumidos em dois: 1. Produtos artificiais e naturais são intrinsicamente diferentes, pois a arte é inerentemente inferior à natureza e não pode almejar igualá-la. Assim, artífices não podem transformar um metal inferior em um melhor, embora possam produzir imitações aceitáveis dos metais preciosos induzindo características superficiais.

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OTTE, James .The Life and Writings of Alfredus Anglicus, Viator, v. 3, 1972, p. 275-291. AVICENNAE. De congelatione et conglutinatione lapidum. ed. e trad. E.J. Holmyard e D.C. Mandeville Paris: Geuthner, 1927, p. 1-11. Infelizmente, estes editores não forneceram uma edição crítica do texto latino. Preparei uma edição temporária da seção conhecida como Sciant artifices (discutida abaixo) em NEWMAN, William. The Summa Perfectionis and Late Medieval Alchemy, 4 vols. Tese de Ph.D., Harvard Univ., 1986, v. 1, p. 59-62. 14

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2. As verdadeiras características determinantes da espécie dos metais não podem ser conhecidas, visto que elas subsistem abaixo do nível sensível. Uma vez que estas diferenças específicas são desconhecidas, será impossível realizar a transmutação de um metal em outro, pois o alquimista não pode manipular aquilo que desconhece. O argumento de Avicena pode parecer, à primeira impressão, óbvio ao leitor moderno, mas os termos “espécie” e “diferenças específicas” são algo nuançados. A terminologia de Avicena tem uma base lógica. Quando ele usou o termo nau, traduzido por Alfredo de Sareshel como species, ele quis principalmente se referir ao grupo de características que definem um tipo de coisa em particular. Para Avicena, existem seis de tais espécies entre os metais: ouro, prata, cobre, ferro, estanho e chumbo. Todas as seis pertencem ao mais geral genus dos metais, que ele informalmente define como corpos “maleáveis”, “fundíveis”, “minerais” (ou seja, “minerados”).15 Logo, cada tipo de metal compartilha um conjunto de propriedades que define o gênero16: qualquer corpo que seja maleável, fundível e encontrado em minas será um metal. Mas os metais não todos idênticos: ouro, prata, cobre, ferro, estranho e chumbo, ainda que metais, possuem suas próprias características específicas que fazem com que cada um cada um deles pertença a uma espécie particular. A força da conclusão de Avicena é que as diferenças específicas que fazem os metais serem de diferentes espécies não são propriedades facilmente percebidas como ponto de fusão, maleabilidade, densidade e cor. Em vez disso, as diferenças específicas são subjacentes e imperceptíveis: nós não podemos conhecê-las e, portanto, não podemos mudá-las. Pode ser tentador ao leitor moderno ver a rejeição da alquimia por Avicena como um evento pioneiro que pressagiou a separação da química das doutrinas “irracionais” ou “pseudocientíficas” da alquimia. Um olhar mais atento revelará, no entanto, que era Avicena, e não os alquimistas, que possuía uma visão reacionária. Avicena começa seu

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AVICENA. De congelatione, p. 32-33. Nau é uma versão árabe do grego eidos, usado por Aristóteles para denotar “espécie” ou “forma”. Em De congelatione Avicena utiliza o latim species primariamente para distinguir os tipos individuais de metal (como chumbo e estanho) do genus dos metais em geral. Ver MADKUR, Ibrahim. L’organon d’Aristote dans le monde Arabe: Ses traducions, ses études, et ses applcations (Etudes Musulmanes, 10). Paris: Vrin, 1969, p. 70, 299. Para o termo em si, ver AVICENA, De congelatione, p. 24. Minha discussão deste tópico é devida a conversas com John Murdoch e A.I. Sabra. 16 N.T.: no original, foi utilizado o termo latino genus. No entanto, neste caso ele diferencia-se do contexto da utilização anterior em que o autor quis contrapor a utilização de species por Alfredo de Sareshel com a categorização feita por Avicena.

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. ataque com a afirmação “óbvia” de que produtos naturais são intrinsecamente superiores às suas contrapartes artificiais e que estes últimos não podem igualar-se aos exemplares naturalmente decorrentes dos quais eles são cópias. Como dois comentadores modernos do De congelatione apontaram, Avicena concordaria com “o público geral [hoje], que normalmente imaginam que o anil sintético, por exemplo, não é um anil autêntico, mas apenas uma imitação muito boa”.17 Avicena, embora se baseando num antigo preconceito, de fato adquire uma posição consideravelmente mais forte sobre a separação entre produtos naturais e artificiais do que a de Aristóteles. Na Física (2.2, 199a), este último permite à arte ou imitar a natureza ou levar alguns de seus trabalhos a um nível mais alto de perfeição do que eles normalmente teriam: “Um tipo de arte aperfeiçoa aquilo que a natureza não pode completar, enquanto outro tipo imita a natureza”.18 Pode-se chegar a impressão de que uma experiência pessoal com falsificadores alquímicos levou Avicena ao seu desdém pela arte humana como expressado em De congelatione. Quaisquer que sejam suas fontes, a proposição universal de que a arte é inferior à natureza, junto com a crença de que as espécies naturais são intransmutáveis, constituiu um ataque não apenas à alquimia, mas à totalidade da tecnologia e ciências aplicadas. O argumento de Avicena não era apenas de que a tecnologia humana não poderia superar a natureza, mas que o que o homem sequer pode esperar imitar a natureza de forma bem-sucedida. Avicena, então, traveste o antigo desdém filosófico pela tecnologia na forma de uma enunciação “oficial”, e depois explana as razões específicas para o fracasso da alquimia em termos da filosofia natural aristotélica. Mais tarde encontraremos alegações variadas como a impotência de demônios de realizar milagres e a inabilidade de horticultores de produzir novas espécies de plantas suportadas com referência à resolução de Avicena que os alquimistas não podem transmutar espécies. Os efeitos do De congelatione não foram, de forma alguma, restritos à alquimia, mas serviram para cristalizar uma tendência antitecnológica em várias áreas. Em resposta à resolução de Avicena que espécies são intransmutáveis – que veio a ser referida de forma abreviada pelo incipit Sciant artifices – os alquimistas desenvolveram contra-argumentos adotando uma visão radical da tecnologia na qual o

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Holmyard e Mandeville, in AVICENNA, De congelatione, p. 41, n. 5. ARISTOTELES. De physico auditu, in Aristotelis opera cum Averrois commentariis, vol. IV, Veneza, 1562, fol. 78r, col. 2: “Et omnino ars alia quidem perficit que natura non potest efficere, alia vero imitatur”. 18

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homem assumia poder extraordinário sobre a natureza. Séculos antes da filosofia da natureza de Francis Bacon com sua decisão draconiana de “colocar à natureza abaixo”, nós encontramos protagonistas da alquimia afirmando que a habilidade do homem de transformar o mundo natural é virtualmente ilimitada. Sua justificação da arte humana não era baseada em um vago otimismo, todavia; era suportada por observação prática, raciocínio analógico, e um aristotelismo neoplatonizante. Um dos primeiros conjuntos de contra-argumentos ao De congelatione pode ser encontrado em um pseudônimo Book of Hermes escrito na primeira metade do século XIII ou antes. Esse livro contém uma série de ataques elípticos à alquimia, cada um com uma refutação a altura. O primeiro argumento, que metais são produtos naturais e, logo, não podem ser replicados por meios artificias, contém implicitamente o axioma de Avicena que produtos naturais são sempre melhores que os artificiais. O autor de Hermes refuta isto dizendo que a tecnologia humana frequentemente sucede em melhorar a própria natureza, uma vez que verdete, vitriol, óxido de zinco, e sal amoníaco artificiais são todos melhores que suas formas naturais, “fato que ninguém que entende de metais contradiz”.19 Similarmente, o horticultor melhora a natureza fazendo enxertos bem-sucedidos. Nós temos aqui uma espécie de manifesto proclamando o poder da tecnologia em geral e da tecnologia química em particular. Curiosamente, “Hermes” não nega que a arte aprende imitando a natureza: para enfraquecer a proposição de Avicena que a arte é mais fraca que a natureza, é suficiente para ele apontar para o fato empírico de que certos produtos são mais eficientes quando preparados artificialmente. Quando o autor do Hermes chega à afirmação de Avicena que espécies não podem ser transmutadas, ele adota uma abordagem lógica: ele responde que os metais pertencem a uma definição única, qualquer metal sendo um “corpo composto, fundível, incombustível e maleável”.20 Logicamente, não há razão convincente para que isso seja chamado um gênero em vez de uma espécie, uma vez que tal diferenciação é apenas questão de grau (um gênero é 19

Liber Hermetis, citação da edição parcial de trabalho in NEWMAN, William. The Summa Perfectionis and Late Medieval Alchemy, 4 vols. Tese de Ph.D., Harvard Univ., 1986, v. 1, p. 63-67, na p. 65, II, 36-40: “Sal vero viride et dragantum et thutia et sal armoniacus et naturalia et artificialia sunt. Immo et artificialia naturalibus potiora sun, quod qui de mineriis sciunt non contradicunt”. O Liber Hermetis nunca foi impresso, ou sequer analisado. Eu o encontrei nos seguintes manuscritos dos séculos XIII-XIV: Cambridge, Trinity College 1400, fols. 131r-133r; Oxford, Bodleian Library (BL), Bodley 679, fols. 20r-21r; Londres, British Museum (BM), Add. 41486, fols. 218r222r; Paris, Bibliothèque Nationale (BN), Latin (Lat.) 6514, fols. 135r-v; e nos seguintes manuscritos do século XIV: Londres, BM, Sloane 1754, fols. 60r-62r; Palermo, Biblioteca Communale, 4QqA10, fol. 37v (incompleto). 20 Ibid., p. 66, II, 57-61: “De speciali vero differentia cui dubium est metalla specialiter non difere, cum in uma diffinitione conveniant. Verbi gratia, corpus compositum, in igne fusibile, non combustibile, sub malle extendibile”.

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apenas compreendido por uma definição mais geral que uma espécie). Provendo uma única definição para todos os metais, o autor do Hermes pode, doravante, argumentar que todos eles pertencem a uma única “espécie”, e que as “espécies” a que Avicena se refere são por consequência apenas “espécies mais específicas” (species specialiores). Portanto o The Book of Hermes não necessita da transmutação de espécies. Essa abordagem puramente lógica para minar o Sciant artifices logo abriu portas no ocidente a uma tendência mais hilemórfica. Como veremos, Alberto Magno – entre outros – tomou a species de Avicena como uma forma que “inere” fisicamente na substância de um metal de modo a determinar seu conjunto particular de características. Embora permissível dentro da estrutura da filosofia aristotélica (em que eidos significa tanto “espécie” quanto “forma”), a interpretação de Alberto teria o efeito de transformar a discussão de Avicena de genera e species em uma disputa sobre matéria e forma. Meados do século XIII: Vicente de Beauvais, Alberto Magno e Roger Bacon O Book of Hermes, embora oferecesse uma sucinta e primitiva defesa da alquimia, aparenta não ter sido conhecido pelos três autores escolásticos de meados do século XIII mais preocupados com alquimia, Vicente de Beauvais, Alberto Magno e Roger Bacon. Os escritos destas três autoridades fornecem uma noção do grau de controvérsia que a alquimia causou na época. Irei dispor de Vicente rapidamente, considerando que ele dá uma interpretação desconexa da alquimia, desprovida de originalidade. Vicente escreveu seus Speculum doctrinale e Speculum naturale entre 1244 e 1250. 21 Levando em conta que estes dois trabalhos contêm muito do mesmo material sobre alquimia e sobre mineralogia em geral, focarei no algo mais organizado Speculum doctrinale. O Speculum doctrinale situa alquimia entre as artes mecânicas. Alquimia, diferente das ciências per se, é útil apenas de um ponto de vista prático – para o ferreiro, visto que ensina “o exame, mistura, separação e transmutação” dos metais, e para o médico, porque ajuda no isolamento dos componentes saudáveis dos nocivos, que “são normalmente encontrados misturados em remédios simples”. Vicente acrescenta que alquimia é descendente da “ciência dos minerais” (abi lla parte naturalis philosophie que est de mineris) da mesma forma que a agricultura é derivada da “ciência das

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WALLACE, William A. Vincent of Beauvais. In: GILLISPIE, Charles C. (ed.). Dictionary of Scientific Biography, 16 vols. Nova Iorque: Scribners, 1970-1980, vol. XIV, p. 35.

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. plantas”. Para Vicente, portanto, alquimia “é propriamente a arte de transmutar corpos minerais, como metais e afins, de suas próprias espécies para outras”.22 Até agora, Vicente é razoavelmente consistente: ele considera alquimia como uma simples arte prática, completamente despida de conteúdo teórico. Mas o Speculum doctrinale aqui começa a se contradizer, pois a seção introdutória é diretamente seguida de passagens de escritos alquímicos dando longas descrições teóricas da geração de minerais a partir do enxofre e mercúrio dentro da terra. Claramente esta é uma forma especulativa de alquimia, não só uma arte mecânica. Uma confusão paralela domina na descrição de Vicente do ataque de Avicena à alquimia. Ele cita o ataque de Avicena sem dar seu próprio ponto de vista, e então replica com uma passagem do pseudo-Avicena contendo uma série de argumentos deturpados em favor da alquimia.23 A interpretação um tanto complacente e confusa da alquimia de Vicente é seguida cronologicamente pelo De mineralibus de Alberto Magno. Aqui encontramos uma avaliação consideravelmente mais coerente. Entre 1250 e 1254 Alberto iniciou a tarefa de escrever um abrangente estudo de mineralogia como parte de sua empreitada em explicar a totalidade da ciência natural.24 Posto que Alberto não encontrou nenhuma obra aristotélica sobre minerais para comentar, ele teve de se voltar aos textos dos alquimistas. No curso de sua investigação, Alberto viu a necessidade de responder aos argumentos do De congelatione, que ele sabia ser um trabalho de Avicena. Alberto começa sua análise da transmutação com um ataque a autores prévios que propuseram que os metais compartilham uma única forma, a do ouro, em diferentes estágios de acabamento. Argumento a partir do senso comum, ele diz que os metais parecem ser “estáveis” (permanens); em circunstâncias normais eles não se tornam outros metais. Logo, cada um deles deve ter sua própria forma substancial pela qual são “aperfeiçoados”. Similarmente, cada metal tem seu próprio grupo de propriedades, assim seus acidentes25

VICENTE DE BEAUVAIS. Speculum doctrinale, Veneza, 1494, livro II, cap. 105: “Ad fabrilem quidem propter metallorum examinationem, commixtionem, disgregationem, transmutationem. Ad medicinum itidem propter substantiarum vel qualitatum salubrium a noxiis que frequenter etiam in medicinis simplicibus permite sunt separationem. (...) Alkimia proprie est ars transmutandi corpora mineralia a propriis specibus ad alias, ut sunt metalla et huiusmodi”. 23 Ibid., livro 8, caps. 42, 84. 24 HALLEUX, Robert. Albert le grand et l’alchimie, Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, v. 66, n. 1, 1982, p. 58. 25 N.T.: “acidentes” refere-se ao uso aristotélico da palavra. 22

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. não são comuns. Como resultado, “as substâncias e forma específica [species] [de diferentes metais] devem ser diferentes”.26 Dado que Alberto acredita que os metais diferem em suas espécies, podemos esperar que ele suporte o ponto de vista do De congelatione. Este não é o caso, contudo. Em um capítulo especial ele ataca diretamente o Sciant artifices, em que Avicena havia argumentado que os alquimistas não podem transmutar espécies. Neste capítulo fica claro que Alberto entendeu o latim species como “forma específica".27 Esta substituição de “forma específica” por “espécie” permite que Alberto contorne o Sciant artifices, posto que agora ele pode se inspirar em uma bem-definida teoria escolástica acerca da corrupção física de uma forma preexistente seguida da indução de uma forma subsequente. Assim, Alberto acredita que species podem ser de fato transmutadas, na medida em que uma forma específica seja destruída e substituída por outra. A interpretação de Alberto, porém, levemente distorce o uso de Avicena da palavra árabe nau, ou species, em De congelatione. Por species Avicena quis dizer primariamente uma entidade lógica, da mesma forma que o termo é contrastado com genus pelos lógicos. Em De congelatione, Avicena não fala de espécie como “inerente” à matéria, ou como sendo corrompida e induzida. Ao invés, suas espécies estão acima de todas as categorias abstratas que existiam na mente do Criador quando ele criou o mundo natural. Dizer que tais espécies lógicas são transmutáveis seria de fato estúpido, levando em conta que elas representam os distintos conceitos subjacentes pelos quais Deus criou os diferentes metais.28

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ALBERTUS MAGNUS. Book of Minerals. trad. Dorothy Wyckoff. Oxford: Clarendon Press, 1967, p. 172-173. Aqui, como em outros em outros casos, Wyckoff utiliza a expressão “forma específica” para o latim species. A tradução de Wyckoff, porém, obscurece o fato de que o argumento de Alberto é motivado pelo Sciant artifices de Avicena. Como Avicena, Alberto utiliza o termo latim species em vez de forma specifica, embora o que ele queira dizer esteja mais próximo deste último. 27 Ibid., pp. 177-179. Para o original em latim ver ALBERTO MAGNO. Mineralium libri quinque. In: B. ALBERTI MAGNI. Opera omnia.. Auguste Borgnet ed, vol. V. Paris, 1890, p. 70-71. Para maiores evidências de que Alberto confunde species e forma specifica ver as seguintes passagens: “Experimenta autem alchimicorum graves duas nobis hic ingerunt dubitationes. Videntur enim elli dicere quod sola auri species est forma metallorum” (68a); e “Quod si forte concederetur quod substantiam auri inducat, adhuc non est sufficiens probatio ad hoc quod non sit rusi uma species metallorum: quoniam calcinando et sublimando et distillando et cacteris operationibus quibus elixir per materiam metallorum faciunt penetrate, corrumpere potest species metallorum quae primitus infuerunt materiae metallorum” (69a). 28 Avicena atacou a transmutação em pelo menos um outro texto: o R. fi ibtal ahkam al-nujum ou R. al-lshara ila ilm fasad ahkam al-nujum. Georges C. Anawati parafraseia como segue: “É um absurdo [transmutação específica]; pois para tudo que Deus criou mediante a força da natureza, a imitação artificial é impossível; como ao contrário, as produções artificiais e científicas não pertencem de forma nenhuma à natureza”. ANAWATI, Avicenne et l’alchimie, in Oriente e Occidente nel Medioevo: Filosofia e scienze Convegno internazionale, Roma, 9-15 aprile 1969, Roma, Academia Nazionale di Lincei, 1971, p. 285-341, e em pp. 300-301.

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. De qualquer forma, munido de sua interpretação hilemórfica de “espécies”, Alberto afirma que os alquimistas honestos agem com os metais como os médicos agem com seus pacientes.29 O alquimista primeiro limpa e purifica o velho metal, assim como o médico utiliza eméticos e diaforéticos para purgar seu paciente. Então ele reforça os “poderes elementais e celestiais” na substância do metal, aparentemente adicionando componentes similares a medicamentos e observando “julgamentos” astrológicos. Como resultado, o metal purgado recebe uma nova e melhor forma específica das virtudes celestiais dos astros. Portanto, o alquimista não transmutou nenhuma espécie: ele apenas removeu uma forma específica e preparou o caminho para outra ser recebida. A visão benigna de Alberto sobre alquimia não testemunha o acalorado debate sobre este tópico. Ele não está respondendo a nenhum moderni, mas apenas a Avicena e outros autores árabes. A tranquilidade de seu tom, além disso, parece refletir um período em que a transmutação alquímica não era um objeto de disputa irascível. Quando voltamos a Roger Bacon, a atmosfera muda radicalmente. Roger escreveu seu Opus tertium por volta do ano 1266, como parte de uma trilogia que incluía também seus Opus maius e Opus minus. Os três livros foram concebidos como propaganda para reforma, e como tais foram enviados por um emissário especial para seu amigo Clemente IV.30 No Opus tertium Roger propõe que alquimia ensina coisas sobre as quais Aristóteles era completamente ignorante, como a geração precisa de minerais, pigmentos, pedras preciosas, e humores dos elementos. Ademais, como alquimia é a ciência dos elementos per se, enquanto a filosofia natural e medicina concernem a coisas feitas a partir dos quatro elementos, como os quatro humores, alquimia é a forma mais básica das ciências. Assim, a aprovação da alquimia por Roger excede em muito a de Vicente ou de Alberto: ao passo que estes veem a alquimia primariamente como uma arte prática cujos mestres forneceram exemplos empíricos para os verdadeiros filósofos explicarem, aquele que torná-la a fonte de todo conhecimento médico e natural. Embora historiadores modernos tenham enfatizado a matemática de Roger (para o derradeiro infortúnio do pobre frade), nós devemos notar que na passagem

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ALBERTUS MAGNUS. Book of Minerals. trad. Dorothy Wyckoff. Oxford: Clarendon Press, 1967, p. 178-179. A.C. Crombie e J.D. North, Roger Bacon. In: GILLISPIE, Charles C. (ed.). Dictionary of Scientific Biography, 16 vols. Nova Iorque: Scribners, 1970-1980, vol. I, p. 378. 30

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. acima ele explicitamente enaltece a alquimia como “maior que todas [as ciências] anteriores”, das quais a ciência matemática era uma.31 É igualmente significante que Roger não menciona o ataque do De congelatione em nenhuma de suas três Opera dedicadas a Clemente IV. Por que, afinal de contas, ele deveria ter introduzido as visões de um duvidoso Tomás em seus ataques promocionais? Mas Roger claramente conhecia o Sciant artifices desde cedo, já que apoiou a perspectiva da obra em seu comentário escrito por volta de 1245 sobre o De plantis do pseudo-Aristóteles. 32 Ali ele universaliza a proposição de que “espécies não podem ser transmutadas”, tomando esta suposta visão aristotélica como aplicável à planta assim como a metais. Claramente Roger teve uma brusca mudança de ideias entre 1245 e os anos 1260. Se examinarmos seu Communium naturalium de 1266, a razão para seu novo desprezo pelo Sciant artifices aparece. Aqui ele ataca sua atribuição a Aristóteles.33 A despeito da visão dos “tolos”, ele diz, o Sciant artifices é apenas um comentário de segunda linha por Alfredo de Sareshel. Ao trocar a autoridade de Aristóteles pela de Alfredo, Roger torna fácil repudiar a proposição de que espécies não podem ser transmutadas. No Communium naturalium Roger vai muito mais longe que seus predecessores na rejeição da validade teórica do Sciant artifices. Ao passo que Vicente escolheu não tomar partido algum, e Alberto contornou a questão interpretando espécie como forma específica, Roger simplesmente afirma que a proposição “espécies não podem ser transmutadas” não é verdadeira. Ademais, ele diz que “tolos” abusam da autoridade de Aristóteles atribuindo esta noção a ele, aparentemente atacando a alquimia. Posto que autores islâmicos não atribuíram o De congelatione a Aristóteles, depreende-se que os tolos a quem Bacon se refere são tolos latinos. A disputa de Alberto limitava-se aos árabes, e Vicente não viu necessidade em tomar partido algum. Fica, então, evidente que o debate sobre alquimia cresceu em magnitude desde os anos 1240 e 1250, quando Vicente e Alberto estavam preocupados com mineralogia. Mais uma prova é o grande espaço dado à disputa em

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ROGER BACON. Opus tertium, in Opera quaedam hactenus inedita, ed. J.S. Brewer, vol. I. Londres, 1859, p. 39-40. 32 “Item, quarto Metheorum, ‘sciant artifices alkimie species metallorum transmutari non posse’, quare similiter nec species plantarum”: ROGER BACON, Questiones supra de plantis. In: ROGER BACON. Opera hactenus inedita Rogeri Baconi, ed. Robert Steele et al. Oxford: Clarendon Press, 1911-1940, vol. XI (1932), p. 253; ver também p. 241. 33 ROGER BACON. Communium naturalium. In: ROGER BACON. Opera hactenus inedita Rogeri Baconi, ed. Robert Steele et al. Oxford: Clarendon Press, 1911-1940vol. II (1911), ed. Steele, p. 7.

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trabalhos alquímicos escritos depois de 1250. Um trabalho desses foi escrito por um alquimista praticante, provavelmente no último terço do século XIII. Debate sobre alquimia no fim do século XIII: Paulo de Taranto Recentemente provei que Paulo de Taranto, um franciscano do século XIII, era o provável autor de um famoso texto alquímico, a Summa perfectionis, apocrifamente atribuído ao árabe Jabir ibn Hayyan.34 Mais pertinente, porém, ao nosso presente argumento é a defesa da alquimia que Paulo apresenta em outro texto, o Theorica et practica. O Theorica et practica, como o título sugere, é um texto didático compreendendo tanto as bases teóricas quanto práticas da alquimia. Contém uma longa defesa desta disciplina, na qual Paulo tenta desconstruir o Sciant artifices do pseudo-Aristóteles. Paulo prefacia seus comentários alquímicos, todavia, com uma defesa da arte humana. Ele começa com um proêmio, altamente dependente no pseudo-aristotélico Liber de causis, no qual ele tenta justificar o poder do homem sobre a natureza. Ele faz isso identificando a hipóstase plotiniana intellectus com o intelecto humano, uma junção não tão incomum entre os pensadores do século XIII. Porque a natureza é inferior e sujeita ao intelecto, o homem deve então estar em posição de manipular e dominar a natureza. Paulo então procede a um capítulo especial sobre a relação da arte com a natureza (cf. Apêndice). Visto que o intelecto humano domina a natureza, ele diz, artesãos como “escultores, pintores, horticultores e médicos” tem a natureza sujeita a eles como “matéria e instrumento”. Baseando-se na Física de Aristóteles, Livro 2, Paulo divide a arte humana em duas categorias – aquela que gera uma forma “extrínseca”, como no caso de pintar e esculpir, e aquela que termina em uma “forma intrínseca”, como a medicina e a agricultura.35 Estas artes que produzem uma forma intrínseca utilizam as qualidades primárias aristotélicas – quente, frio, úmido, seco – como instrumentos. Artes que induzem uma forma extrínseca dependem de qualidades secundárias, como cores e gostos.

NEWMAN, William. New Light on the Identity of ‘Geber’, Sudhoffs Archiv, v. 69, 1985, p. 76-90; e NEWMAN, William. The Genesis of the Summa perfectionis. Archives Internationales d’Histoire des Sciences, v. 35, 1985, p. 240-302. 35 TARANTO, Paulo de. Theorica et practica. Paris: BN, Lat. 7159, fols. 1r-55r, em fols. 1r-v, 2v, II, 17-18. Como o Theorica et practica nunca fui impresso, citações são de uma edição que preparei, disponível em NEWMAN, William. The Summa Perfectionis and Late Medieval Alchemy, 4 vols. Tese de Ph.D., Harvard Univ., 1986, vol. III, p. 1-237. (Ver também o Apêndice, para uma edição e tradução parciais, e outros manuscritos.) 34

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Artes como agricultura e medicina que agem nas qualidades primárias podem realmente transmutar a substância, enquanto escultura, pintura, carpintaria, e outras artes que trabalham com qualidades secundárias podem apenas induzir acidentes em seus objetos. O genuíno médico, horticultor, ou alquimista, portanto, produz reais alterações na essência e na substância, porque ele manipula as qualidades primárias da matéria. Falsos artesãos, no entanto, produzem apenas a aparência de mudança; eles atacam o sintoma no lugar da causa. Quando Paulo fala do Sciant artifices, ele usa esta bifurcação das artes para remover sua força, dizendo, “Nós não consideramos a opinião de Aristóteles no fim de seu Meteorologica – ‘Os alquimistas deveriam saber que espécies não podem ser transmutadas’ – como verdadeira, a menos que seja entendida na seguinte forma, [isto é, ocorrendo] através de agentes puramente artificiais”.36 Em outras palavras, o Sciant artifices sustenta-se apenas se o artesão utilizar qualidades secundárias, “artificiais”, já que estas não afetam a substância de um determinado objeto. Caso contrário, se ele utilizar qualidades primárias, é realmente possível induzir mudança substancial e, por isso, alterar a espécie. O argumento de Paulo de Taranto, embora direcionado principalmente à alquimia, é inegavelmente uma justificativa da tecnologia em geral, visto que sustenta que o poder dessas artes é capaz de manipular qualidades primárias para induzir verdadeiras mudanças em produtos naturais. Em outras palavras, Paulo consistentemente afirma o poder do homem de realmente alterar e melhorar produtos naturais. Ao mesmo tempo, sua argumentação implicitamente contém mais que uma apologia para a habilidade técnica per se. Ao dividir as “artes” em duas categorias ele implicitamente distingue entre tecnologia pura (e.g., esculpir, pintar e carpintaria) e ciência aplicada (e.g., medicina, agricultura e alquimia). A diferença entre estas duas categorias articula-se no segundo argumento do Sciant artifices, em que Avicena, ressaltando que as diferenças entre os metais não são conhecidas, pergunta: Quando a diferença [específica] é desconhecida, como será possível saber se ela foi retirada ou não ou até mesmo se ela pode ser retirada?

TARANTO, Paulo de. Theorica et practica. Paris: BN, fol. 4r, II, 12-15: “Non putamus igitur esse verum verbum Aristoteles quod in fine sui libri scribit in methauris – ‘Sciant artifices species se transmutare non posse’ – nisi hoc predicto modo per pura artificialia intelligatur”. 36

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Remoção de acidentes, porém, como gosto, cor e peso, ou pelo menos sua diminuição, não é impossível, pois a razão é não oposta a isso.37

O argumento de Avicena depende da impossibilidade de que o artífice manipule aquilo que ele não reconhece, nomeadamente, a diferenças essenciais ocultas que fazem um metal diferente do outro. A parte teórica do Theorica et practica de Paulo de Taranto, logo, é precisamente uma tentativa de familiarizar-se com esses princípios essenciais dos diferentes metais. Estes são percebidos por meio de testes realizados em laboratório ou fundição. Sabemos, por exemplo, que metais contêm enxofre pela seguinte razão: quando minérios metálicos são “calcinados” – oxidados por calor intenso – eles liberam uma fumaça sulfúrea, fedorenta.38 Alguns metais, contudo, contêm mais enxofre que outros. Chumbo, por exemplo, contém mais enxofre que o estanho e de um tipo mais forte. Paulo determina isso pelo fato que duas calcinações do chumbo deixam um resíduo amarelo e sulfúreo, enquanto duas calcinações de estanho deixam um resíduo branco, embora a fumaça do metal ainda seja amarela.39 A presença de mercúrio nos metais é provada por meios similares. Mercúrio rapidamente forma uma mistura com ouro, prata, cobre, estanho ou chumbo, simplesmente ficando em contato com qualquer um dos metais mencionados. Os escritores medievais chegavam mesmo a afirmar que eram capazes de misturar mercúrio com ferro, embora esta afirmação fosse provavelmente o resultado de um erro de observação de sua parte. Como Paulo diz, essa notável afinidade entre mercúrio e os metais então conhecidos “deve-se a uma

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AVICENA, De congelatione, edição em NEWMAN, William. The Summa Perfectionis and Late Medieval Alchemy, 4 vols. Tese de Ph.D., Harvard Univ., 1986, p. 61-2: “Differentie metallorum enim non sunt cognite et cum diferencia non sit cógnita, quomodo poterit sciri utrum tollatur nec ne, vel quomodo tolli possit? Sed expoliacio intus accidentium ut saporis, coloris, ponderis, vel saltem diminucio non impossibilis, quia contra hoc ratio non est”. 38 TARANTO, Paulo de. Theorica et practica. Paris: BN, fol. 8r, II, 20-24: “Demonstrat etiam sulphuris cum mercurio secundum naturam esse admixtionem pro substantia et tinctura cum ad calcinationem metalla funduntur, maxime si fuerint imperfecta, mollia vel dura, fumus eorum et fetor sulphureus et etiam color in calcibus eorum”. 39 Ibid., sobre o chumbo, fol. 25r, 11, 24-30: “Probatur [autem] in eo sulphureitas esse duplex, quarum uma est adustiva et fixa parum[que], altera(que) magis fixa ex eo – quod uma eius sulphureitas cito in fumum resolvitar, cuius probatio est sulphureus eius fetor et color; et facit deperditionem corporis in se ipso. Alia vero sulphureitas eius non nisi per difficilem maximum magisterium transit, que quidem remanet etiam in calce eius, cuius etiam probatio est sulphureus fetor et color citrinus”. Sobre o estanho, fol. 26v, II, 20-22: “Nam licet post primam calcinationem iovis et reductionem ad ignem magne sue ignitionis, apparet adhue fumus eius citrinus, quod etiam sicut in saturno est necesse contingere ex resolutione in evolatione partis sulpheree in eo non fixe, tamen quoniam remanet eius calx alba, scilicet in saturno citrina, manifestum est ex hoc sulphureitatem in iove non ita profundatam esse in intimo suo substantie, nec tantam esse, nec taliter fixam sicut est in saturno”. Em citações na língua original (notas e Apêndice), exclusões editoriais estão em colchetes e interpolações editoriais estão entre parênteses. (Nas traduções, as interpolações estão em colchetes.)

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que cientista aplicado [applied scientist, no original], uma categoria já utilizada neste sentido por Lynn Thorndike.42 Com efeito, portanto, Paulo fez a distinção entre cientista aplicado, que entende e emprega as verdadeiras causas das coisas, e o simples artesão, que trabalha para produzir um efeito sem verdadeiro conhecimento de suas causas. Como Avicena disse em De congelatione, tal artesão não pode mudar a espécie, pois se a diferença específica – a causa da espécie – é desconhecida, “como será possível saber se ela foi retirada ou não ou até mesmo se ela pode ser retirada?”43 O cientista aplicado, de acordo com Paulo, entende as causas das espécies e pode, por isso, alterá-las. Dos três escolásticos estudados anteriormente, apenas Roger Bacon iguala o pedestal colocado para a tecnologia, ou ciência aplicada, por Paulo de Taranto. É possível, contudo, que o próprio sucesso de argumentos como os de Paulo e Roger tenham levado à condenação de suas visões. No Theorica et practica, Paulo vai ao limite insistindo que “nada menos que as coisas animadas ou a alma em si pode ser feito naturalmente de qualquer outra coisa no que diz respeito à forma elementar... como corpos compostos dos quatro elementos, como por exemplo pedras e metais”.44 Em outras palavras, os poderes da arte estão limitados apenas pela inabilidade humana de fazer e infundir outra alma. Roger Bacon, em uma similar demonstração de arrogância, vai tão longe quanto dizer que o ouro alquímico, por conter os quatro elementos em uma proporção ainda melhor que a do ouro natural, pode restaurar o corpo humano à uma condição de equidade elementar como a de Adão e Eva e os ressuscitados no fim dos tempos. As visões entusiásticas de Roger podem ter contribuído ao seu aprisionamento nos últimos quinze anos de sua vida.45 42

Ver o termo ciência aplicada in THORNDIKE, Lynn. History of Magic and Experimental Science, 8 vols. Nova Iorque: Columbia Univ. Press, 1923-1958, passim; e.g., in vol. 1, cap. 5, sobre a engenharia mecânica antiga de Vitrúvio e o Herói de Alexandria; in vol. II, p. 81, da scientia de naturis do pseudo-Farabi; e no vol. II, p. 663, sobre a Epistola de secretis operibus de Roger Bacon. Tentativas como as feitas nestes trabalhos de aplicar princípios filosóficos ou científicos para fins tecnológicos deve ser distinguida de tradições de ofícios não cientificamente orientados nas quais nenhuma tentativa de utilizar princípios científicos é feita. 43 AVICENA, De congelatione, edição em NEWMAN, William. The Summa Perfectionis and Late Medieval Alchemy, 4 vols. Tese de Ph.D., Harvard Univ., 1986, p. 61: “... cum differentia non sit cognita, quomodo poterit sciri utrum tollatur nec ne, vel quomodo tolli possit?” 44 TARANTO, Paulo de. Theorica et practica. Paris: BN, fol. 6v, II, 18-20: “... probaverimus in prefato de libelo de causatis et causis naturaliter fieri posse ex quolibet quidlibet citra animatum et animan, scilicet quantum ad formam elementarem, sive mixtorum sive simplicium, ut sunt quatuor elementorum corpora ac lapides et metalla”. 45 ROGER BACON. In libro sex scientiarum…, In: ROGER BACON. Opera hactenus inedita Rogeri Baconi, ed. Robert Steele et al. Oxford: Clarendon Press, 1911-1940, p. 183-184. Ver também os comentários de THORNDIKE, Lynn. History of Magic and Experimental Science, 8 vols. Nova Iorque: Columbia Univ. Press, 1923-1958, vol. II, p. 628-629.

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Sentimento anti-alquímico no fim do século XIII e o resultado do debate O que, então, o campo oposto estava fazendo enquanto Paulo e Roger estavam criando seus manifestos alquímicos? O primeiro contra-ataque direto por um autor latino que pude localizar está contido em um trabalho pelo tomista Giles de Roma (Aegidius Romanus), escrito entre 1286 e 1291.46 Antes de nos voltarmos a Giles, todavia, será útil resumir rapidamente as visões de seu professor, Tomás de Aquino. Determinar as opiniões de Tomás sobre alquimia não é tão fácil quanto parece, considerando que seus trabalhos genuínos foram em algumas ocasiões completados postumamente por outras pessoas. Este parece ser o caso com seu comentário sobre a Meteorologica de Aristóteles: as porções do texto que dão uma visão positiva da transmutação alquímica foram na verdade escritas por outro autor. A Suma teológica, concluída ou cessada em 1272, refere-se várias vezes à alquimia, mas apenas brevemente.47 Felizmente, os comentários de Tomás nas Sentenças de Pedro Lombardo, provavelmente escritas entre 1252 e 1256, contêm um revelador tratamento sobre demonologia na qual a alquimia – embora não seja o tópico central – é discutida.48 Ao comentar o Livro 2 das Sentenças, Tomás questiona “se demônios podem induzir um efeito corpóreo em matéria corpórea”. Ele então lista cinco autoridades que negam a possibilidade de tal poder demoníaco. A última dela é o Sciant artifices: Demônios não podem trabalhar exceto pelo método da arte. Mas arte não pode dar uma forma substancial, por isso é dito no capítulo sobre minerais que os autores de alquimia deveriam saber que espécies não podem ser transformadas. Logo, tampouco os demônios podem induzir formas substanciais.49 46

AEGIDIUS ROMANUS. Quodlibeta revisa, correcta, et varie illustrato, studio M. F. Petri Damasi de Coninck. Lovaina: s. ed., 1646, p. 147-149 (= Quaestio 3, Quodlibeti 8, Membri 3). 47 TOMÁS DE AQUINO. In meteorologicorum continuatio. In: TOMÁS DE AQUINO. S. Thomas Aquinatis opera omnia, curante Roberto Busa S.I. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1980, v. VII, p. 627, cols. 1 e 2; e TOMÁS DE AQUINO. Summa theologiae. In: TOMÁS DE AQUINO. S. Thomas Aquinatis opera omnia, curante Roberto Busa S.I. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1980, v. II, p. 623, cols. 2, 3; p. 873, cols. 1, 2. Ver também MIGLIORINO, Francesco. Alchimia lecita e illecita nel Trecento: Oldrado da Ponte, Quaderni Medievali, v. 11, Jun. 1981, p. 33. 48 TOMÁS DE AQUINO. In quatuor libros sententiarum. In: TOMÁS DE AQUINO. S. Thomas Aquinatis opera omnia, curante Roberto Busa S.I. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1980, v. 1, p. 145, cols. 1-3. Sobre a provável data de composição, ver WALLACE, William O., WEISHEIPL, James. Thomas Aquinas. In: The New Catholic Enyclopedia, v. XIV, p. 104. 49 TOMÁS DE AQUINO. In quatuor libros sententiarum. In: TOMÁS DE AQUINO. S. Thomas Aquinatis opera omnia, curante Roberto Busa S.I. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1980, p. 145, col. 1: “Utrum daemones possint inducere in materia corporali verum effectum corporalem. (...) Praterea, daemones non operantur nisi per modum artis. Sed ars non potest dare formam substantialem; unde dicitir in cap. de numeris: sciant auctores alchimiae, species transformari non posse. Ergo nec daemones formas substantiales inducer possunt”.

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Tomás, em seguida, define arte legítima como um procedimento que meramente junta produtos naturais passivos a poderes naturais ativos de modo a produzir um efeito necessário. Um bom exemplo, Tomás diz, é o acender de uma fogueira. O artesão conjuga a forma do fogo (o agente natural) e a madeira (o material passivo) de modo a produzir o efeito do fogo. Demônios agem da mesma forma: eles “não podem produzir novos efeitos por criação”, como o próprio Deus; eles podem apenas aplicar agentes naturais a pacientes naturais. Quando os demônios parecem ter ressuscitado os mortos ou outros atos sobrenaturais, eles estão agindo apenas por meio de ilusão; os efeitos de tal ilusão são falsos e efêmeros. Tomás retorna à alquimia no final desta distinção, para reforçar seus comentários anteriores. Arte, por seu próprio poder, não poder conferir uma forma substancial, mas pode fazê-lo por meio de um agente natural, como fica claro no seguinte [hoc], que a forma do fogo é produzida em toras através da arte. Há formas substanciais, no entanto, que a arte não pode induzir de forma alguma, pois não pode encontrar os sujeitos ativo e passivo apropriados. Mesmo nestes casos a arte pode produzir uma similitude, como quando alquimistas produzem algo similar ao ouro no que concerne a acidentes exteriores. Mas, ainda assim, não é ouro verdadeiro, levando em conta que a forma substancial do ouro não é [induzida] pelo calor do fogo – que os alquimistas utilizam – mas pelo calor do sol em um determinado local no qual o poder mineral desenvolve-se. Logo, tal ouro [alquímico] não opera de acordo com a espécie [do ouro verdadeiro], e o mesmo é verdadeiro para as outras coisas que eles [alquimistas] produzem.50

Assim, é impossível ao alquimista juntar a forma de um metal precioso à substância de um metal comum da mesma forma que o fogo é juntado à madeira, pois isto deve ser feito no interior da terra, onde o poder mineral ou virtus é sujeitado a um fortalecimento especial. Pela mesma razão, Tomás acrescenta, “as outras coisas que eles [alquimistas] produzem” devem ser deficientes quando comparadas às suas contrapartidas naturais. Tomás rejeita, portanto, não apenas a criação alquímica de metais, mas a síntese artificial de qualquer produto químico. Substâncias “alquímicas” 50

TOMÁS DE AQUINO. In quatuor libros sententiarum. In: TOMÁS DE AQUINO. S. Thomas Aquinatis opera omnia, curante Roberto Busa S.I. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1980, p. 145, col. 1: “Ad quintum dicendum, quod ars virtute sua non potest formam substantialem conferre, quod tamen potest virtute naturalis agentis; sicut patet in hoc quod per artem inducitum forma ignis in lignis. Sed quaedam formae substantiales sunt quas nullo modo ars inducere potest, quia propria active et passive invenire non potest, sed in his potest aliquid simile facere; sicut alchimistae faciunt aliquid simile auro quantum ad accidentia exterior; sed tamen non faciunt verum aurum: quia forma substantialis auri non est per calorem ignis quo utuntur alchimistae, sed per calorem solis in loco determinate, ubi viget virtus mineralis: et ideo tale aurum non habet operationem consequentem speciem; et similiter in aliis quae eorum operatione fiunt”.

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como cloreto de amônio, produzida pela decomposição destrutiva do cabelo, ou acetato de cobre feito com vinagre deixado em um cantil de cobre, são implicitamente rejeitados como “falsos” porque não foram gerados nas entranhas da terra, onde “o poder mineral desenvolve-se”. Uma forma deste argumento já tinha sido rejeitada pelo Book of Hermes, onde o autor pseudônimo fiava-se em testes empíricos de reagentes artificiais para confirmar sua equivalência às formas naturais. Ademais, o Book of Hermes usou a incubação artificial de pintos para refutar diretamente a necessidade de um virtus loci especial (um poder ligado a um certo local).51 No trabalho de Giles de Roma estes um tanto incidentais comentários de Tomás são incrementados para se tornarem um ataque completo à alquimia. Como Tomás, Giles baseia-se no Sciant artifices e no argumento que a geração de metais requer um virtus loci específico, um poder mineralizador encontrado apenas no fundo da terra. Similarmente, Giles, como Tomás, não considera a alquimia no contexto da filosofia natural – embora ele também tenha escrito comentários sobre De generatione et corruptione e Meteorologica – mas em seu Quodlibeta, um tratado preocupado primariamente com teologia. Além disso, a questão “se o homem é capaz de fazer ouro” pertence à subseção do Quodlibeta dedicada ao tópico do homem, e aqui o homem é tratado “em relação a sua arte”, não “em relação à natureza”.52 A quaestio de Giles na verdade contêm duas questões: primeira, “se o homem é capaz de fazer ouro pela arte”, e segunda, “se ele puder fazer ouro, é lícito vender tal ouro”. Fiando-se no Sciant artifices, Giles parafraseia o argumento de Avicena de que a natureza é melhor que a arte, dizendo que a arte é apenas um princípio de coisas artificiais, ao passo que ouro não é artificial e sim natural.53 Então Giles introduz o argumento do virtus loci. Admitindo que alguns animais, como abelhas geradas espontaneamente de gado morto, não necessitam de um local específico de geração, mas apenas um “princípio material” (matéria em putrefação), ele 51

Liber Hermetis, citação da edição parcial de trabalho in NEWMAN, William. The Summa Perfectionis and Late Medieval Alchemy, 4 vols. Tese de Ph.D., Harvard Univ., 1986, v. 1, p. 66: “Loci oppositio cassatur quia sicut ex ovo in ventre animalis nascitur, sic etsi sub amamilla vel in fumario ponitur, animalis nascetur”. 52 AEGIDIUS ROMANUS, Quodlibeta revisa, correcta, et varie illustrato, studio M. F. Petri Damasi de Coninck. Lovaina: s. ed., 1646, p. 147. 53 AEGIDIUS ROMANUS, Quodlibeta revisa, correcta, et varie illustrato, studio M. F. Petri Damasi de Coninck. Lovaina: s. ed., 1646.

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argumenta que outras coisas, como vinho feito de uvas, necessitam tanto deste princípio material e de um local específico de geração, pois vinho é produzido apenas no “interior da uva” (in ventre vitis). Similarmente, Giles diz, “é também crível” que metais devem ser gerados no interior da terra. A segunda questão, “se o homem puder fazer ouro, é lícito vendê-lo”, Giles recusa-se a levar a sério levando em conta que ele está inequivocamente convencido de que ouro artificial não pode ser feito. Neste ponto, ele revela a verdadeira natureza de seu argumento, dizendo que mesmo que o ouro que resistisse ao processo de copelação do ensaiador pudesse ser criado, ainda assim não seria válido como moeda, posto que não teria todas as propriedades médicas do ouro natural.54 Segue-se que tal produto não seria ouro real, apesar do julgamento do ensaiador. Sem dúvidas, Giles diria o mesmo ainda que o ouro artificial tivesse o mesmo peso específico que o ouro natural, pois para ele, ouro mineral e ouro artificial jamais podem ser o mesmo, independentemente de suas propriedades. Como Avicena, Giles adotou o princípio imutável de que produtos artificiais nunca serão o mesmo que seus modelos naturais. As últimas três décadas do século XIII registraram uma crescente hostilidade das autoridades religiosas para com a alquimia que culminou, eventualmente, na condenação Contra alchymistas, escrita pelo famoso inquisidor Nicolas Eymeric em 1396. O ataque de Giles foi precedido, por exemplo, por um número de interdições lançadas por ordens religiosas; os dominicanos sozinhos apresentaram condenações da alquimia em 1272, 1287, 1289 e 1323. O movimento para proibir a alquimia teve autoridade papal em 1317, quando João XXII lançou sua conhecida bula “Spondent quas non exhibent” – depois de realizar uma disputa pública entre alquimistas e seus detratores, de acordo com Eymeric. Esse documento papal é direcionado especificamente contra alquimistas que empregam seu ouro artificial para falsificações; foi motivada por questões puramente fiscais, pois o aviltamento da moeda pelos falsificadores, alquimistas ou outros, apresentava um sério problema para a comunidade medieval. Contém, pois, pouca justificação teórica. Não obstante, a bula diz que alquimistas

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AEGIDIUS ROMANUS, Quodlibeta revisa, correcta, et varie illustrato, studio M. F. Petri Damasi de Coninck. Lovaina: s. ed., 1646, p. 149.

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. forjam “aquilo que não está na natureza das coisas”, indicando que João não acreditava que a transmutação alquímica fosse fisicamente possível.55 Qual foi a razão para essa grande repercussão contra alquimia que parece ter começado por volta da época que Paulo de Taranto estava escrevendo seu Theorica et practica? Nós já sugerimos que os proponentes alquímicos foram eles mesmos em parte responsáveis, arrogando poder demais às aclamações de sua arte. Porém, causas mais profundas estavam em jogo. Estas estão evidentes em um bem conhecido consilium pelo jurista consistorial Oldrado da Ponte, provavelmente escrito na primeira década do século XIV. O consilium de Oldrado, de fato, inclui passagens que apoiam a alquimia. A abertura contém uma citação do Canon episcopi do século IX ou X, um documento planejado para proibir a crença em bruxas, que, de acordo com certas crenças pagãs antigas, podiam assumir formas monstruosas.56 Primeiro Oldrado cita a parte do Canon episcopi que ele pretende refutar: [Parece] que a arte da alquimia deveria ser proibida, pois o Canon episcopi, questão 26, 1, diz que ‘quem quer que acredite que qualquer coisa criada [creaturam] pode ser ou mutada ou transferida para outra espécie ou para outra similitude, exceto o próprio Criador, é um infiel, e pior que um pagão’.57

É curioso que Oldrado tenha utilizado um documento que originalmente não dizia respeito a alquimia para aplicar diretamente àquela arte. Será possível que outros, percebendo uma semelhança de linguagem entre o Canon episcopi e o De congelatione, tenham antecipado ele nesta questão? Se a passagem acima é inspecionada sem considerar seu contexto original, poderia parecer uma forma de decreto oficial da mensagem proposta pelo Sciant artifices. A passagem explicitamente afirma que apenas Deus pode transmutar espécies, e quem quer acredite o contrário não é cristão. A resposta de Oldrado ao Canon episcopi também é reveladora. Em vez de replicar que este edita nada tem a ver com alquimia, ele responde da seguinte maneira:

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HALLEUX, Robert. Les textes alchimiques: Typologie des sources du moyen âge occidental. Turnhout, Bélgica: Brepols, 1979, p. 124, 126-127, 126 n. 30; NARBEY, C. Le moine Roger Bacon, et le mouvement scientifique au XIII siècle, Revue des Questions Historiques, v. 35:, 1884, p. 157; e MIGLIORINO, Francesco. Alchimia lecita e illecita nel Trecento: Oldrado da Ponte, Quaderni Medievali, v. 11, Jun. 1981, p. 16, n. 32 (sobre Eymeric). 56 COHN, Norman. Europe’s Inner Demons: An Enquiry Inspired by the Great Witch Hunt. Londres: Chatto, Heinemann: Sussex Uni. Press, 1975, p. 210-211. 57 OLDRADO DA PONTE, Consilium 74, de sortilegia, num. I. JOHANNES CHRISIPPUS FANIANUS. De iure artis alchemiae... In: MANGET, J.J.. Bibliotheca chemica curiosa, v. 1. Genebra: s. e., 1702, p. 211.

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. “[Alquimistas] não dizem que uma espécie é mutada em outra (como é atribuído a eles), pois isto não é possível. Mas eles dizem que uma espécie de metal (como o ouro) pode ser produzida a partir de outra espécie de metal (como o estanho)”.58 A réplica de Oldrado não sustenta que a transmutação específica é possível; ele aponta, em vez disso, que a espécie do metal não é transmutada, apenas o metal em si. A origem deste estranho argumento foi provavelmente um trabalho alquímico do fim do século XIII falsamente atribuído a Roger Bacon, o Breve breviarium. É bastante provável que o autor do Breve breviarium criou esta defesa ele mesmo, visto que parece ter sido desenvolvida em maior extensão aqui do que em qualquer outro texto alquímico medieval. Ao afirmar que as espécies dos metais não são transmutadas, mas apenas os próprios metais, o Breve breviarium entende que o grupo de características que faz a prata ser prata (sua “argentinidade”) e o ouro ser ouro (sua “auriginosidade”) não mudam se uma peça individual de prata for transmutada em uma peça individual de ouro.59 Ouro ainda será definido, por exemplo, como um “corpo branco, suave, maleável, fundível, de peso moderado”. Não obstante, uma peça individual de prata pode ser transmutada para que sua matéria se conforme com a definição do ouro. Logo, as características físicas da peça individual de prata terão sido mudadas ao grau de agora pertencerem à espécie do ouro. O consilium de Oldrado, embora tenha a mesma abordagem do Breve breviarium, difere desse último em sua motivação. Enquanto o argumento do Breve breviarium parece ser direcionado apenas ao De congelatione, Oldrado está respondendo ao Canon episcopi, que especificamente dizia que apenas Deus poderia transmutar espécies. A réplica de Oldrado é, portanto, pensada para suportar o ônus da correção doutrinária, enquanto o Breve

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OLDRADO DA PONTE, Consilium 74, de sortilegia, num. I. JOHANNES CHRISIPPUS FANIANUS. De iure artis alchemiae... In: MANGET, J.J.. Bibliotheca chemica curiosa, v. 1. Genebra: s. e., 1702. 59 PSEUDO-ROGER BACON. Breve breviarium, in Sanioris medicinae magistri D. Rogeri Baconis Angli de arte chymiae scripta. Frankfurt: s. ed., 1603, p. 123-126, nas p. 125-126: “Sic reverá species non mutantur, sed individua: et sic illud intelligitur (...) species ergo argenti, quae est argenteitas non permutatur in speciem auri, quae est aureitas; quoniam species vere permutari non possunt, quia non sunt subiectae per se accretionibus [sic códex: MS Oxford, BL, Digny 119, fol. 66r, leg. Actionibus ut vid.] sensibilibus, nec in se compositione partitam habet, vel contrariam, quae sit causa permutationis vel subiectum. (...) Ex hoc argentum vel aurum factum est subiectum alterius speciei, quam alia complevit et induxit materiae purgatio atque digestio”. O texto do Breve breviarium existe de forma fragmentada em um manuscrito que, de acordo com a comunicação de M.-Th. d’Alverny, deriva do fim do século XIII (MS Paris, BN. Lat. 6514, fols. 126-129). A inautenticidade da atribuição para assegurada pela dependência do texto do De mineralibus de Alberto Magno, por conta da teoria de que o enxofre e outros reagentes contém umidade tripla (pp. 110, 165, etc.). Para uma descrição desta teoria, e a fonte de Alberto, ver NEWMAN, William. The Summa Perfectionis and Late Medieval Alchemy, 4 vols. Tese de Ph.D., Harvard Univ., 1986, vol. III, pp. vii-xi.

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. breviarium – pelo menos demasiadamente – não é. Nós já vimos Tomás de Aquino e Giles de Roma tratarem a alquimia num contexto teológico, onde Tomás chega a mencionar alquimistas na mesma ocasião em que fala de demônios. Como Tomás e Giles, Oldrado vê a alquimia sob uma luz teológica, enquanto os defensores da alquimia focaram meramente nas implicações naturais. Essa crescente tendência de teologizar a alquimia, eu proponho, fornece a principal razão para o crescente número de condenações apresentadas contra ela no fim do século XIII e século XIV. Não devemos esquecer que Inocêncio III e Gregório IX já haviam instaurado a Inquisição papal na primeira metade do século XIII, e que pela segunda metade aquela temida instituição já estava “completamente organizada”.60 A necessidade de Oldrado de responder ao Canon episcopi não era necessariamente uma anomalia: ela pode ter muito bem refletido a obsessão com a heterodoxia que começou com a Cruzada Albigense e que eventualmente resultou na caça às bruxas dos séculos XVI e XVII. Apesar dos esforços de Giles, João XXII, e mais tarde Nicolas Eymeric, a alquimia latina não pode ser eliminada por proclamação ou outros meios oficiais. A visão do poder humano no reino da tecnologia levantada pelo Book of Hermes, Roger Bacon e Paulo de Taranto era sedutora demais para ser reprimida por muito tempo. O papel da literatura hermética na mensagem de propagandistas da “dignidade do homem” como Pico della Mirandola é agora bem documentado. O papel da alquimia na lapidação do pensamento reformador de Paracelso (m. 1541) não pode ser exagerado. O mesmo pode ser dito do “arquimago” do século XVI, Cornelius Agrippa von Nettesheim, enquanto o apologista da tecnologia John Dee, cujo Mathematicall Preface de 1570 demonstrou a aplicação prática dos Elements de Euclides, devia muito ao corpus de Roger Bacon, incluindo um número de trabalhos alquímicos espúrios.61

COHN, Norman. Europe’s Inner Demons: An Enquiry Inspired by the Great Witch Hunt. Londres: Chatto, Heinemann: Sussex Uni. Press, p. 24. 61 YATES, Frances Giordano Bruno and the Hermetic Tradition. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1964; PAGEL, Walter. Paracelsus: an Introduction to Philosophical Medicina in the Era of the Renaissance. Basel: Karger, 1958; NEWMAN, William. Thomas Vaughan as an Interpreter of Agrippa von Nettesheim, Ambix, v. 29, 1982, p. 125-1; CLULEE, Nicholas. John Dee’s Mathematics and the Grading of Compound Qualities, Ambix, v. 18, 1971, p. 178-211; a Clulee, Nicholas. Astrology, Magic and Optics: Facets of John Dee’s Early Natural Philosophy, Renaissance Quarterly, v. 30, 1977, p. 362-680. Ambos os artigos de Clulee dão ampla afirmação da influência de Roger Bacon. Dee também possuía uma série de importantes manuscritos alquímicos, como Oxford, BL, Digby 119, e Glasgow, Hunterian 253. Dos manuscritos listados em SINGER, Dorothea Waley, Catalogue of Latin and Alchemical Manuscripts in Great Britain and Ireland, Bruxelas: Maurice Lamertin, 1928, pelo menos um contém trabalhos atribuídos a Bacon com notas feitas por Dee: London, BM, Sloane, fols. 30r-v e 36r-38r. 60

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Meu propósito neste ensaio não foi provar a continuada influência da alquimia no desenvolvimento da ciência aplicada e da tecnologia durante a Revolução Científica, mas meramente mostrar que aqui, nestes obscuros tratados do século XIII, uma literatura propagandística do desenvolvimento tecnológico foi criada. Durante este período inovador, escritos alquímicos e seus aliados produziram um corpo literário que estava entre os primeiros em latim a promover ativamente uma doutrina de que a arte pode igualar ou superar os produtos da natureza, mesmo que a arte humana seja aprendida pela imitação de processos naturais. Similarmente, estes propagandistas alquímicos – ou pelo menos os mais corajosos entre eles – não se furtaram da conclusão de que o homem pode até mesmo mudar a ordem do mundo natural ao alterar as espécies destes produtos. Esse sonho tecnológico, embora prematuro, teria um efeito duradouro na direção tomada pela cultura ocidental.

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APÊNDICE: TEXTO DA DISCUSSÃO DE PAULO DE TARANTO SOBRE OS TIPOS DE TECNOLOGIA HUMANA [2r10]

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Que naturalia etiam dicuntur materia intellectus vel artis et que artis instrumenta dicuntur Primum Capitulum Cum igitur sub arte sumantur naturalia entia ut nove forme per artificium imprimantur in eis, tunc ipsa naturalia / que transmutantur ac formas ipsas recipiunt dicuntur materia intellectus vel artis. Entia vero quibus mediantibus aut aliquo modo agentibus imprimuntur ipse forme in id quod cas suscipit artis instrumenta dicuntur. Terminatur autem sic opus artis ad formam duplicis generis, nam aliquando ad / formam extrinsecam ut in arte pingendi, sculpendi, domificandique et similibus, et hec forma dicitur proprie forma artis, et aliquando terminatur opus artis ad formam substantialem intrinsecam, ut agricultura et medicina, et hec forma dicitur forma nature. Hec autem differentia surgit a / differenti modo sumendi naturam ut instrumentum, cum enim instrumentum sit de genere activorum, activum autem in natura sit aliqua virtus eius, necesse est ut natura dicatur sumi per aliquam suam virtute, cum sit instrumentum operationis sub arte. Et quoniam virtus nature que sit sumi // potest se habere duobis modis, ideo contingit per eam dari formam duobus modis dictis alterius nature subjecte. Est enim omnis virtus in natura quedam qualitas. Qualitates autem naturales quedam dicuntur prime, que sunt differentie / naturales in quatuor corporibus simplicibus primis scilicet elementis. Et hec forme sunt ille quatuor qualitates principales ad omnia nature opera, videlicet calidum, frigidum, siccum, et humidum, que sunt in secunda specie qualitatis, que dicitur potencia naturalis. Alie vero naturales / qualitates dicuntur qualitates secunde, a primis scilicet causate, ut álbum, nigrum, dulce, amarum, durum, molle, acutum, obtusum, que sunt in tertia et quarta specie qualitatis, per passibilem qualitatem et per figuram. Cum igitur ars sumit pro instrumento nature virtute que de genere / est secundarum qualitatum, et se habet color in picturis vel figura anguli vel scabelli durities vel dolabre in sculpturis et dolacionibus sive similibus, tunc necesse est extrinsecus formam accidentalem induci, cuius ratio ista est: ars et artifex ex extra se habent ad patientem naturam in quam agunt. / Secunde autem qualitates predicte de se proprie active non sunt in naturam aliquam nisi per accidens, proprie enim de se sunt active in sensum per suas species secundum esse spirituale et intentionale quod habent, et non secundum eorum esse naturale, nisi per accidens. Color enim movet visum / secundum esse intentionale quod habet in perspícuo et non secundum esse naturale quod habet in re nature, et sapor ut sapor movet sensum et non naturam de se ex simili ratione, neque et sapor nutrit sed cibus et potus, scilicet aliqua substantia cuius // est sapor, unde sapor in naturam non agit nisi per aliud – scilicet calidum, frigidum, siccum, et humidum – que sun in re saporosa. Neque aliqua secundarum qualitatum agere potest intra naturam et essentiam alicuius, nisi per qualitates / primas. Igitur quoniam ars et artifex sunt extra res patientes, et natura que sumitur ut instrumentum de se non est transmutativa substantie, nec ista accidentia sunt per se sed per accidens, nunquam ars opus terminare poterit nisi ad formam accidentalem ex extra. Cum vero ars sumit pro / instrumento nature virtute que est de dictis qualitatibus primis, necesse est

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opus ad substantiam vel ad substantialia terminari, quoniam calidum, frigidum, siccum, et humidum sunt quase manus nature et principales eius virtutes, per quas natura cuncta generabilia transmutat et facit. Et ars tunc / est proprie solum in ratione moventis et dirigentis, adminiculantis atque regentis, non autem in ratione facientis. Ipsa vero natura tunc se habebit ratione moventis, facientis, sice causantis, secundum quod Aristoteles in libro de generatione innuit distinctionem moventis, cuius est influere / formam motus, et facientis, cuius est influere formam rei per formam motus. Hinc est igitur quod in medicina terminatur ars ad formam nature que est disposition complexionis intra, et in agricultura similiter ut est germen et fructus, quid non habentur nisi per cultum, sicut in hortis et in insertionibus / arborum et in agriculture similibus. Quoniam autem hi sumumt ipsa naturalia agentia et non solum nature materiam et passive accidentia pro instrumento – sumit enim agricultor pro instrumento terram, aquam, aerem, calorem, et semina, et medicus similiter specierum virtutes – ideo essentialia // faciunt tales et non solum accidentalia, per virtute et operationem nature. Et in omnibus quodiam natura facit, et ars solum ministrat coaptatque regitque, debet quidem effectus tribui potius nature quam arti, vel nature sub arte.62

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Folheação e delineamento do texto latino são derivados de MS Paris, Bibliothèque Nationale, Latin 7159, fols. 1-55r, e replicados in NEWMAN, William. The Summa perfectionis and Late Medieval Alchemy. Tese de Ph.D., Harvard University, 1986. Para descrições dos manuscritos e suas famílias ver ibid., vol. III, pp. 1-7. As siglas dos manuscritos são as que seguem (esta seção não aparece em Z = Paris, Bibliothèque Nationale, Latin 14005): P = Paris, Bibliothèque Nationale, Latin 7159. A = Londres, British Museum, Additional 10764. M = Manchester, John Rylands Library, Latin 65. 10-12 Que … capitulum om. A 10 vel) tractatus vel P 12 Primum ego; Primo PM 13 entia) etiam P 14 ipsa om. M 17 id) his A 18 suscipit) recipit A 23 agricultura) in agricultura MA 25 sumendi) resumendi M 28 suam) sui M 29 que sit) sicut M que sic A 2 subjecte) subjectis M 4 prime) proprie que sunt) proprie quedam M 6 hec om. M 7 videlicet) scilicet M 9 potencia passio P 10-11 scilicet causale) quatuor causari M 12 specie proprie A 16 scabelli) scapelli MA 17 sive) vel M est om. P 19 ex om. M 20 proprie) prime M 20-24 proprie ... accidens om. A 24 post naturale add. naturaleque PM 28 neque et) neque enim M 29 aliqua substantia) a quod substantiatus M 2 calidum] per calidum MA 3 Neque] atque P 7 per se sed] nisi M 8 nunquam] non quam A 9 ex om. A 10 de] ex M 13 et principales] principalesque M 15 solum] sola A 15-17 et ... moventis om. A 16 adminiculantis] adminiculi M 18 sive causantis] causatis P 19 distinctionem] distinctionis P n 20 facientis] faciens A 24 et in insertionibus] et insertionibus MA 25 agriculture] agricultura M similibus] et similibus M 27 enim] ergo M 29 virtutes] virtutes pro primo esse M ideo essentialia] naturalia M 4 nature] melius nature MA

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APÊNDICE: TRADUÇÃOi Quais coisas naturais são chamadas a matéria do intelecto ou arte, e quais são chamadas instrumentos da arte Logo, se coisas naturais são apropriadas pela arte para que novas formas lhes sejam imprimidas através do artífice, as coisas naturais que são transmutadas e recebem novas formas são elas mesmas chamadas a matéria do intelecto ou arte. Porém as entidades cuja mediação ou ação imprimem estas formas naquilo que as recebem são chamadas de instrumentos da arte. Mas o trabalho de arte está restrito a uma forma de duplo gênero como segue: por vezes [está restrito] a uma forma acidental, extrínseca, como na arte da pintura, escultura, construção de casas, e afins, e esta forma é devidamente chamada uma “forma de arte”; e outras vezes o trabalho de arte está restrito a uma forma substancial, intrínseca, como na agricultura e medicina, e esta forma é chamada uma “forma de natureza”. Porém esta distinção surge das diferentes maneiras de tomar a natureza como instrumento, pois como um instrumento é do gênero das “coisas ativas”, mas uma coisa ativa com relação à natureza é alguma virtude dela [i.e. natureza], é necessário dizer que a natureza deve ser tomada mediante uma virtude dela mesma, já que é o instrumento de operação sob a arte. E posto que a virtude da natureza a ser tomada [2v] pode existir de duas maneiras, tão longo acontece por causa dela [a virtude] que a forma da outra natureza submetida [i.e., natureza como matéria] exista nas duas maneiras mencionadas. Pois toda virtude na natureza é uma certa qualidade. Mas certas qualidades naturais – que são as diferenças naturais nos quatro primeiros corpos simples, nomeadamente, os elementos – são chamadas “primárias”. E estas formas são aquelas quatro qualidades principais [satisfazendo] a todos os trabalhos da natureza, a saber, quente, frio, seco, e úmido, que estão na segunda espécie de qualidade, que é chamada “capacidade natural”.

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As outras qualidades naturais são chamadas qualidades

secundárias, isto é, aquelas causadas pelas primeiras, como branco, negro, doce, azedo, duro, mole, afiado, obtuso, que estão nas terceira e quarta espécies de qualidades, através

i

N.T.: para a tradução deste segundo apêndice, que consiste originalmente na tradução do texto latino para o inglês, optamos por não aderir ao delineamento do original (em função de problemas como separação de sílabas incompatíveis entre o inglês e português, etc.) para uma leitura mais fluida. 63 A segunda “espécie de qualidade” (potencia naturalis) pertence uma divisão quadripartite de qualidades que é derivada de Aristóteles, Categories 8b26-10a16.

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 2. de sua habilidade de produzir uma afeição,64 e através [de elas terem] figura [e forma].65 Logo, quando a arte toma por instrumento uma virtude da natureza que é do gênero das qualidades secundárias, da maneira que a cor [é] considerada em pinturas, ou a figura de um ângulo, ou a dureza de uma faca, ou picareta, em esculturas e gravuras e afins, então é necessário que uma forma acidental seja extrinsecamente induzida. A razão é a que se segue: arte e artífice [neste caso] são extrinsecamente relacionados à coisa passiva, natureza, na qual eles agem. Mas as qualidades secundárias supracitadas não agem apropriadamente elas mesmas sobre qualquer natureza exceto acidentalmente, pois por elas próprias elas apropriadamente agem apenas no sentido, através de sua própria espécie, de acordo com o ser espiritual e intencional que elas têm, e não de acordo com seu ser natural, exceto acidentalmente. Pois a cor move a visão de acordo com o ser intencional que ela tem no perspicuum66, e não de acordo com o ser natural que tem na matéria da natureza; e o sabor enquanto sabor move o sentido e não a própria natureza, por uma causa similar, nem o sabor alimenta, mas sim comida e bebida, a saber, alguma substância que [3r] tenha sabor. Por isso o sabor não age na natureza exceto através de outra coisa – nomeadamente, quente, frio, seco, e úmido – que estão na coisa saborosa. E nenhuma das qualidades secundárias pode agir na natureza e essência de nada, exceto pelas qualidades primárias. Logo, posto que arte e artífice são [neste caso] externos às coisas passivas e a natureza que é tomada por instrumento não é ela mesma transmutativa da substância, nem são estes acidentes [transmutativos] per se mas per accidens, a arte só será capaz de realizar seu trabalho apenas como uma forma externa acidental. Porém quando a arte toma por instrumento a virtude da natureza que pertence às ditas primeiras qualidades, o trabalho deve se estender à substância ou coisas substanciais, dado que quente, frio, seco, e úmido são como se fossem as mãos da natureza e suas principais virtudes, através das quais a natureza transmuta e faz todas as coisas que vêm a ser. Arte, logo, apropriadamente age apenas movendo, direcionando, ajudando, e coordenando, mas não criando. Mas a própria natureza se comporta movendo, criando, [e] causando, sobre o que Aristóteles sugere, em De generatione et corruptione, a distinção do mover, cuja [tarefa] é infundir a forma do movimento, e do criar, cuja [tarefa] é infundir a forma da Traduzi per passibilem qualitatem como “através de sua habilidade de produzir uma afeição”. Ver Roy J. Deferrari et al., A Lexicon of Thomas Aquinas (Baltimore: John D. Lucas, 1948), em “Passibilis” e “Qualitas”. 65 Ver Aristóteles, Categories, 10a11-16. 66 O perspicuum é o meio transparente postulado por Aristóteles em De sensu et sensibilibus (Veneza, 1572), p. 8. 64

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coisa através da forma do movimento. Consequentemente é, portanto, que na medicina a arte é limitada à forma da natureza que é a disposição de uma compleição interior, e similarmente na agricultura, como é [no caso de] sementes e frutas que não são tidas exceto por cultivo, em jardins, e no enxerto de árvores, e em similares assuntos agrícolas. Mas posto que estes homens tomam agentes naturais por instrumentos, e não apenas os acidentes materiais e passivos da natureza – pois o agricultor toma por instrumento a terra, água, ar, calor, e sementes, e o médico da mesma forma as virtudes das drogas – logo [3v] tais homens fazem [mudanças] essenciais e não apenas acidentais, [embora] através da virtude e operação da natureza. E já que a natureza em todas as coisas cria, e a arte apenas administra, ajuda, e coordena, o efeito deve ser certamente atribuído à natureza em vez de à arte, ou à natureza sob a arte.

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