Tecnologia e Religião

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Tecnologia e Religião Alguns aspectos antropológicos

A tecnologia digital, o advento de aparatos eletrônicos governados por programas matemáticos nas sociedades industriais fez esquecer dimensões que outrora eram centrais na vida de um indivíduo, como a religião. Durante um longo período da sociedade as práticas religiosas eram ordenadoras das proteções e mobilidades do indivíduo em sua relação com os deuses, os objetos sagrados, o sentido da morte. As sociedades teocráticas europeias se industrializaram e se secularizaram e a religião de um indivíduo passou a ser uma identidade menos importante que sua cidadania. Isso significa que rituais, símbolos, textos, hábitos, o movo de viver sofreu uma transformação, assim como as demandas por significado desses elementos. A razão teológica localizava o sujeito diante do coletivo de uma confissão particular foi confrontada com a razão critica que o colocava diante de todos os homens, iguais e identificados. A influência da religião diminui ao mesmo tempo em que a presença dos artefatos tecnológicos cresce, no sec XX. Herbert Marcuse no texto algumas implicações sociais da tecnologia moderna expõe um novo conflito que se inicia para a racionalidade crítica do sujeito: as exigências de eficiência da racionalidade tecnológica. A razão crítica, para ele, tinha se configurado justamente na vitória sobre a razão teológica empregada até o século XVIII, que legitimava entre outras coisas a monarquia e a educação religiosa. O sujeito, liberto e reconhecido pelos estados modernos, reconhece racionalmente seus direitos, suas capacidades e sua responsabilidade pelas suas ideias, sem o auxílio dos padres e pastores e autoridades religiosas. Para Marcuse essa libertação da razão crítica ficou ameaçada pelo advento através dos aparelhos eletrodomésticos da racionalidade tecnológica, resultado do habituação ao uso eficiente das máquinas. A pesquisa de Marcuse foi sobre o rádio, então grande aparato da evolução humana. Para ele Ao manipular a máquina, o homem aprende que a obediência às instruções é o único meio de se obter resultados desejados. Ser bem-sucedido é o mesmo que adaptar-se ao aparato, não há lugar para a autonomia. A racionalidade individualista viu-se transformada em eficiente submissão à sequência predeterminada de meios e fins. Esta última absorve os esforços libertadores do pensamento e as várias funções da razão convergem para a manutenção incondicional do aparato1

A razão teológica sobreviveu à crise de sua popularidade. As formas de trabalho, as rotinas, os hábitos de conviver em centros urbanos cada vez maiores também ampliou as dificuldades da coesão da razão teológica, e favoreceu a razão individualista. O sincretismo religioso, os amalgamas e simbioses mantiveram instituições e práticas religiosas. A racionalidade crítica desenvolveu formas democráticas, totalitárias, e fez evoluir o direito. Mas eis que a evolução progressiva das máquinas domésticas humanas e das estruturas de produção de conteúdo midiático gera a razão tecnológica, que passa a ser importante para a sobrevivência nesses centros urbanos imensos e produtivos, e atinge em sua forma digital sua maior capacidade de penetração e influência na vida cotidiana. No início do século XXI a racionalidade tecnológica ocupa cada vez mais lugar na vida das pessoas A massificação do acesso às novas tecnologias digitais transformou a vida de bilhões de seres humanos pelo planeta, a partir da década de 1950 com o desenvolvimento dos imensos computadores. Que décadas depois se tornariam menores, mais poderosos e mais inteligentes se metamorfoseando em celulares, pcs, notebooks, videogames, ipads, de milhares de formas e formatos, adentrando a vida íntima de bilhões de pessoas, numa simultaneidade de trocas de informações jamais vista na 1

MARCUSE, Herbert. Tecnologia guerra e fascismo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, pág. 80

experiência humana. Efeitos cognitivos a longo prazo da relação entre homens e máquinas ainda estão sendo estudados, e a incorporação dessas práticas parece deixar de lado a necessidade de significado religioso para as peças e práticas tecnológicas. Mas e a razão teológica? Foi afetada em seu significado? A razão teológica, a religiosidade, o pertencimento e promoção da religião sofreu desdobramentos internos desde os conflitos institucionais das Religiões mais importantes no fortalecimento da modernidade, e sofreu também transformações, como por exemplo a teologia da libertação que se apropriou das concepções ecológicas, das lutas contra a colonização e contra a desigualdade econômica para propor uma ontologia renovada. Mas qual seria a teologia da tecnologia? Como os discursos eclesiais, e quais discursos eclesiais reconhecem e refletem a presença de Deus no fenômeno digital? Que espelhamento tem sido possível do divino na máquina? A eficiência da razão tecnológica parece descartar a necessidade de um pensamento teológico, será que a teleologia da tecnologia digital encontrará a realização de certas finalidades que o homem coloca para si mesmo, como a abertura total do conhecimento? No texto como aparece Deus dentro do mundo técnico-científico? Leonardo Boff desenvolve uma série de aforismas conduzindo poeticamente argumentos interessantes, e místicos sobre o sentido de deus no mundo técnico científico O sentido presente na cientificidade de nosso mundo enquanto tarefa do saber científico e do poder técnico implica um sentido realizado pelo homem, significa, na sua profundidade, a presença do Sentido por excelência, isto é, a presença, retraída e silenciada, de Deus. É essa presença do sentido dentro do nosso modo próprio de sentir o mundo que impossibilita uma linguagem do absurdo radical ser. (…) o mundo científicotécnico é a concretização da abertura do homem; é o homem mesmo. Mas o homem está aberto ao mundo assim como o animal? (…) que motor é esse que aciona o homem para uma abertura total? Se o homem é uma abertura infinita que alcança para além do mundo e da cultura, qual é seu correspondente adequado? Só o infinito sacia uma ânsia infinita. A palavra deus exprime o infinito da abertura infinita do homem 2

A atenção ao silenciar de Deus é uma atitude da passagem do homem de um estágio completamente animal para a pergunta sobre o infinito. A velocidade das transformações sociais promovidas pela produção de novos e diversos aparatos tecnológicos sempre foi um fator de desenvolvimento da produção material. Com a tecnologia digital novas formas de sociedade humana são criadas, comunidades virtuais dinâmicas. Esses novos fenômenos não são assimiladas pelo discurso religioso com a mesma velocidade que são criados. O discurso das religiões se refere muito mais à moralidade do uso das mídias do que uma abordagem da ontologia da tecnologia. Há pouca necessidade de tratar dos assuntos filosóficos da tecnologia por parte das instituições religiosas, e pouca utilidade prática de uma constante epistemologia dos objetos tecnológicos em termos da espiritualidade devotada a eles pelos usuários, ou mesmo se o usuário produz qualquer tipo de sentido religioso para seus bens digitais. A pouca importância da reflexividade, o foco na eficiência são as duas questões que Marcuse diz corromperem a razão tecnológica, reflexividade que é a grande virtude da racionalidade crítica. Na utilização do aparato, do objeto, não há um discurso religioso implementando espiritualidade a ele. No aspecto ontológico, a relação entre tecnologia e religião possui poucos conceitos partilhados, poucas palavras descritivas são comuns; conceitualmente parecem ser fenômenos não associáveis. Jacques Derrida após 11 de setembro de 2011, esteve em Nova York e numa entrevista fez uma reflexão sobre a relação entre religião e tecnologia. Segundo ele não há um padrão de adesão à vida tecnológica por parte das várias religiões, mas o islamismo, ou, as sociedades islâmicas envolvidas no conflito demonstraram que a tecnologia pode ser incorporada pragmática e ontologicamente no 2 BOFF, Leonardo. Atualidade da experiência de Deus. São Paulo: Conferência dos Religiosos do Brasil, 1974. pág 30-31

discurso religioso. A associação que Derrida faz entre tecnologia e religião, entre racionalidade teológica e racionalidade tecnológica é muito interessante, e o cuidado que ele parece possuir com as palavras, com a origem e historiografia dos termos comuns desses dois domínios apresenta a possibilidade de tratar temas comuns, e uma aproximação significativa. A atualidade da associação derridiana entre Religião e tecnologia, e/ou Tecnologia e religião pode ser problematizada em virtude de uma contribuição conceitual, temática. Um dificultador é a extensão da obra de Jacques Derrida, um escritor de muitos artigos e livros, e também um filósofo que viveu com presença a experiência tecnológica digital, tanto pela reflexão quanto pela participação em documentários, filmes, programas de TV, como se pode no Youtube, e outros portais. Segundo a filósofa Giovanna Borradori Desconstruir o sentido familiar de religião e responsabilidade tem uma urgência política determinada pelo que Derrida descreve como casamento infeliz entre a religião e a tecnologia digital. Não se trata, segundo Derrida, do fato de que a religião se afirme globalmente graças à sua aliança com as infovias digitais (no caso dos grupos islâmicos envolvidos no 11 de setembro). Mas ele não tem dúvida de que essa é uma aliança cheia de tensões e contradições. Todos os componentes constitutivos da religião – o respeito pela sacralidade da colheita, um sentido de obrigação com Deus e a promessa de absoluta honestidade – falam à sua profunda cautela com relação ao deslocamento, à fragmentação e à desincorporação que, em contrapartida, são as condições de existência da tecnologia digital 3

Ha instituições religiosas que por outro lado utilizam a tecnologia digital para propósitos internos de suas práticas, como as gravações psicofônicas para os espiritualistas. Um dos fenômenos científicos contestados pela falta de universalidade de suas proposições é a psicofonia. O espanhol Eto Morales desenvolveu pesquisas e argumentos para demonstrar a viabilidade de gravações digitais de vozes de espíritos de pessoas mortas. Os fenômenos que causam a realização do artefato tecnológico são de razões diferentes dos fenômenos realizadores da vida espiritual, e da experiência cultural da religião? Durante dois anos Eto reuniu gravações de vozes de espíritos em dezenas de locais abandonados como hospitais psiquiátricos, presídios, fazendas antigas, cemitérios e recolheu horas de fotografias, filmagens e áudios. Sua pesquisa poderia ser considerada arqueológica, pelo ensaio fotográfico, pelo estudo da história dos vários locais em que ele e sua equipe estiveram, mas não reside ai a cientificidade do laboratório de psicofonia, mas sim na possibilidade de um artefato tecnológico captar uma experiência metafísica. Muitos acadêmicos podem considerar válido os argumentos de reconstituição de identidade cultural que os capítulos do banco de psicofonias vai oferecendo; os locais pesquisados são grandes estruturas abandonadas pelo povoamento e sistemática das comunidades históricas. Em um mosteiro em ruínas, hotel abandonado, em locais que foram sendo despossuídos pelas formas de viver humana aprisionaram o espírito de uma época, de concepções de sociedade, como os enormes hospitais psiquiátricos da década de 1940 que se espalharam pelo mundo como forma de resolução sanitária das massas de adoecidos e que, na década de 1990 foram simplesmente abandonados com as resoluções constitucionais de muitas nações em favor de novas abordagens psiquiátricas. Os mortos são consultados através de microfones, mesas de sons, filmadoras, softwares e placas de sons de computadores, que captam sua manifestação sonora, segundo crê a psicofonologia. Mas os fatos relacionados à constituição dos fenômenos espirituais seriam capazes de provocar interfaces decodificadas nos aparelhos tecnológicos? É possível realmente gravar o som da voz de pessoas mortas? Esta última pergunta pode ser respondida dentro do contexto de reflexão das imbricações entre tecnologia e religião? Os objetos sagrados da religião podem ser registrados pelas máquinas digitais humanas? O banco de psicofonias de Eto Morales pode ser uma montagem ideológica e vazia 3 BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. pág 166

de coisa alguma, no máximo poesia, assim como pode ser uma descrição densa de experiências psíquicas e antropológicas humanas. Entretanto, a ontologia das máquinas utilizadas por ele, objetos tecnológicos é questionada em termos de sua possibilidade de realizar matematicamente a apreensão de um fato não-matemático. Os filósofos gregos que ajudaram a desenvolver a matemática, como Pitágoras, pensavam estar através da prática daquela linguagem vivendo uma atitude religiosa. A proposição de Galileu sobre a linguagem matemática do universo também aproxima matemática da religião. Sendo a matemática a base da linguagem tecnológica digital, talvez os elos antigos possam também significar a delimitação do problema. O estudo das relações entre o saber tecnológico, e o saber religioso vai revelar pontos concordantes e discordantes entre esses campos, principalmente em termos das reduções ontológicas, mas também com relação aos conceitos, finalidades, pessoas, objetivos. A diferença de termos, de conceitos empregados nas várias sistemáticas dessas duas áreas parece existir, mas o que a experiência de Eto Morales parece perturbar é uma passividade entre os dois domínios provocando uma pouca relevância dos fenômenos intermediários, as imbricações entre religião e tecnologia, os fenômenos tecnológicos, ou produtos digitais que são apropriados nos discursos religiosos, ou nas práticas religiosas, como a mediunidade da psicofonia. Ao mesmo tempo várias grandes instituições religiosas utilizam os aparatos tecnológicos para criarem relacionamento com seus fiéis, como missas pela internet e outros rituais que podem ser vivenciados coletivamente por meios virtuais. Como essas tensões, as argumentações sobre a validade científica, empírica, cultural desses fenômenos intermediários é realizada? A vida tecnológica ocupa grande tempo de viver humano nos grandes centros urbanos. Os ambientes em que os humanos vivem estão repletos de máquinas digitais, principalmente na esfera da produção; a cada vez a interiorização dos hábitos digitais é referencial de adequação identitária, e constitui a subjetividade. Esse aspecto íntimo, a profundidade do significado dos artefatos digitais e das redes internacionais de convivência, em sua associação com a religião pode ser observado na utilização da internet para bençãos, milagres, cultos e missas, por parte das instituições religiosas. Os tecno-cientistas, tecnólogos, filósofos, desenvolvedores e usuários de artefatos tecnológicos, da vida tecnológica concebem os elementos envolvidos no desenvolvimento da linguagem tecnológica e do aparato como resultado do labor materialista da ciência. Não há causalidade mistica, espiritual, religiosa para os objetos tecnológicos. No livro A estrutura do conhecimento tecnológico do tipo científico , Ricardo Takarashi refletindo sobre a ontologia dos fatos e fenômenos que envolvem a concepção, desenvolvimento e experiência do artefato tecnológico nos diz que No domínio do conhecimento tecnológico, poderia parecer a princípio bastante plausível a possibilidade de sucessivas reduções ontológicas até que todas as entidades descritas pelo conhecimento pertencesse ao domínio das ciências naturais. O próprio processo intrinsecamente constitutivo da gênese dos artefatos tecnológicos, necessariamente partindo de recursos pertencentes ao meio natural, pareceria sugerir tal possibilidade. No entanto, a existência de entidades especificamente tecnológicas, dotadas de uma ontologia suficientemente interessante para justificar o estudo filosófico do conhecimento tecnológico, tem sido apresentada como conjectura 4

Os dois campos de saber possuem ontologias significativas e objetos especificamente religiosos ou tecnológico, e o casamento infeliz apontado por Derrida precisa ser melhor analisado, e também a busca por outras formas desse casamento.

Msc. David José Tierro Ramos

4 TAKAHASHI, Ricardo. A estrutura do conhecimento tecnológico do tipo científico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. pág 108

Bibliografia

–-ARMSTRONG, Alison. A criança e a máquina: como os computadores colocam a educação de

nossos filhos em risco. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001 –-BOFF, Leonardo. Atualidade da experiência de Deus. São Paulo: Conferência dos Religiosos do Brasil, 1974 –- BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques

Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004 –- MARCUSE, Herbert. Tecnologia guerra e fascismo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999 –-TAKAHASHI, Ricardo. A estrutura do conhecimento tecnológico do tipo científico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009

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