Tecnologia, “novos serviços” e direito: reflexões a partir da introdução do Uber no Rio de Janeiro. In: FRAZÃO, Ana (Org.). Constituição, Empresa e Mercado. Brasília: FD/UnB, 2017

May 23, 2017 | Autor: G. Miranda Ribeiro | Categoria: Sharing Economy, Direito regulatório
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Ana Frazão (Org.)

CONSTITUIÇÃO, EMPRESA E MERCADO

Universidade de Brasília Faculdade de Direito Brasília 2017

Universidade de Brasília Faculdade de Direito Grupo de Estudos Constituição Empresa e Mercado (GECEM)

Organização: Ana Frazão Diagramação e Edição: Angelo G. P. Carvalho Revisão: Izabela W. D. Patriota Capa: Angelo G. P. Carvalho.

FRAZÃO, Ana (Org.). Constituição, Empresa e Mercado. Brasília: Faculdade de Direito- UnB, 2017.

ISBN: 978-85-87999-05-4. 1. Direito e poder econômico. 2. Empresa. 3. Concorrência.

SUMÁRIO Apresentação ..................................................................................................................... 1

PARTE I O papel do direito na conformação e regulação da empresa e dos mercados Direito antitruste e direito anticorrupção: pontes para um necessário diálogo .............. 4 Ana Frazão Acordo de leniência no âmbito da lei anticorrupção ...................................................... 30 Arby Ilgo Rech Filho A eficiência da camaradagem: os laços como requisitos da “eficiência” no capitalismo brasileiro ......................................................................................................................... 48 Carlos Eduardo Reis Fortes do Rego Poder compensatório, função social e concorrência: um olhar individualizado sobre o cooperativismo ............................................................................................................... 69 Giselle Borges Alves Análise de impacto regulatório (air) e economia comportamental: novas perspectivas para o Estado regulador ................................................................................................. 94 Guilherme Silveira Coelho Limites da relação entre o direito e a teoria econômica no controle antitruste ............ 114 Luiza Kharmandayan Arbitragem, governança e poder econômico ................................................................. 139 Maria Augusta Rost

PARTE II Empresa, poder econômico e atividade econômica em suas dimensões organizacionais e funcionais

Governança corporativa das distribuidoras de energia elétrica: aportes ao processo de regulação........................................................................................................................ 155 Acácio Alessandro Rêgo do Nascimento Responsabilidade social empresarial ........................................................................... 200 Ana Frazão Angelo Gamba Prata de Carvalho

A tutela jurisdicional coletiva do investidor no mercado de capitais brasileiro: o papel do Ministério Público ........................................................................................................ 224 Fernando Antônio de Alencar Alves de Oliveira Júnior Indicações (a)políticas para os conselhos de administração das estatais? .................. 265 Giovanna Bakaj Rezende Oliveira Algumas questões da utilização de contratos associativos como fuga da regulação ambiental ...................................................................................................................... 280 Jorge Aranda Ortega Fundos de investimentos: a influência nos mercados e os mecanismos de responsabilização dos administradores ....................................................................... 300 José Ricardo Alves Ferreira da Silva Capitalismo de estado brasileiro: análise da transição regulatória no setor petrolífero ...................................................................................................................................... 322 Izabela Walderez Dutra Patriota Benefit corporations: possíveis novas perspectivas para a dimensão prática da função social da empresa no direito brasileiro ........................................................................ 340 Marcos Luiz dos Mares Guia Neto Novas fronteiras da empresa e joint ventures contratuais: perspectivas sobre a partilha de responsabilidade entre as empresas co-ventures .................................................... 358 Natália Lacerda Macedo Costa Multas são suficientes para evitar novos cartéis? Reflexões sobre remédios antitruste e penas no Direito Concorrencial ..................................................................................... 381 Tereza Cristine Almeida Braga

PARTE III Empresa, tecnologia, comunicação e mercado

O Uber e a proteção do trabalhador em face da automação .................................... 408 Frederico Gonçalves Cezar Tecnologia, “novos serviços” e direito: reflexões a partir da introdução do Uber no Rio de Janeiro .......................................................................................................................... 433 Gabriel Miranda Ribeiro A radiodifusão brasileira e o direito à comunicação: características, diagnósticos e possíveis caminhos ....................................................................................................... 467 Luana Chrystyna Carneiro Borges O poder da comunicação e o direito da concorrência: análise da joint venture Newco ....................................................................................................................................... 491 Polyanna Vilanova

TECNOLOGIA, "NOVOS SERVIÇOS" E DIREITO REFLEXÕES A PARTIR DA INTRODUÇÃO DO UBER NO RIO DE JANEIRO Gabriel Miranda Ribeiro Advogado, bacharel em Direito pela Universidade de Brasília

I. INTRODUÇÃO

A introdução do Uber no Brasil foi marcada por uma série de polêmicas, que até mesmo evoluíram do campo discursivo para as agressões físicas. Obviamente, tal debate também se travou no âmbito do Direito, incluindo advogados, cortes, professores e estudantes. Afinal, as semelhanças com o serviço de táxi – regulado em lei e dependente de autorização estatal – levantam dúvidas, em primeiro lugar, sobre a legalidade do serviço e, em segundo, sobre a necessidade ou não de sua regulação. Essa controvérsia não é exclusiva do Uber ou do setor de transporte urbano e tem sido constante nos últimos anos com a introdução dos chamados “novos serviços”, normalmente atividades que se utilizam de uma base tecnológica para se inserir em mercados tradicionais e já regulados, como o de hospedagem (Airbnb), de telefonia (Whatsapp) e de serviços financeiros (Nubank, Paypal). Em todos esses campos, são constantes as defesas de que tais serviços representam produtos essencialmente novos e que não devem se submeter às regras aplicáveis aos seus possíveis concorrentes. O Airbnb, por exemplo, apresenta-se como um intermediário entre imóveis ociosos e possíveis interessados em alugá-los por um curto período. O Uber, por sua vez, utiliza estratégia semelhante e defende que apenas conecta passageiros a motoristas particulares independentes. No entanto, setores tradicionais contestam a possível diferença entre tais serviços e os já consagrados e regulados pelo Estado. O presidente da Vivo, Amos Genish, por exemplo, declarou que o Whatsapp seria “pirataria pura”, comparando-o a uma

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operadora de telefonia sem licença.1 De igual maneira, o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do Rio de Janeiro, Alfredo Lopes, destacou que o “Airbnb é o camelô da hotelaria” e defendeu que o aplicativo deveria sujeitar-se às mesmas taxas cobradas no setor tradicional de hospedagem.2 Apesar da regularidade com a qual tais serviços vêm se desenvolvendo no país, é patente que muitos deles se encontram em uma zona de grande complexidade. Isso porque, a depender de seu enquadramento, é possível cogitar que suas atividades devam se submeter a uma série de normas regulatórias, tributárias e administrativas, que, atualmente, não são seguidas. Essa questão revela-se preocupante pelo fato de que nem todas as startups obtiveram sucesso nesse embate. Talvez o caso mais drástico tenha sido o da empresa americana Aereo, que comercializava tecnologia capaz de reproduzir e gravar programas de diversos canais de televisão. A empresa – apesar de, segundo a mídia, “ameaçar alterar o panorama da TV” no país3 – acabou indo à falência após perder uma disputa judicial travada com gigantes do setor de produção e difusão audiovisual americano, como NBC, Fox e ABC, que a acusavam de violar direitos autorais. Segundo a Suprema Corte dos Estados Unidos, as diferenças tecnológicas criadas pela Aereo pouco importavam ao caso e não poderiam justificar o afastamento da norma aplicável ao setor de TV a cabo, que claramente proibia aquele tipo de atividade: Insofar as there are differences, those differences concern not the nature of the service that Aereo provides so much as the technological manner in which it provides the service. We conclude that those differences are not adequate to place Aereo's activities outside the scope of the Act.4

De fato, a polêmica envolvendo essas e outras novidades tecnológicas, como as derivadas da chamada Sharing Economy, é crescente e parece tratar sempre de um

FOLHA DE SÃO PAULO. Whatsapp é ‘pirataria pura’, afirma presidente da Vivo. São Paulo: 07/08/2015. Disponível em . Acessado em 01/08/2016. 2 O GLOBO. É guerra: Associação de Hotéis vai pedir à prefeitura maior controle sobre o Airbnb. Rio de Janeiro: 02/09/2015. Disponível em . Acessado em 01/08/2016 3 KANG, Cecilia. As Aereo threatens to alter TV ladscape, major networks promise a fight. The Washington Post, 08/04/2013, Disponível em : 4 Caso American Broadcasting cos. v. Aero. Julgado em 25 de Junho de 2014. Disponível em :< https://www.supremecourt.gov/opinions/13pdf/13-461_l537.pdf>. Acessado em 01/08/2016 1

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mesmo ponto: como atribuir a um serviço a característica de novo e, portanto, não regulado. Infere-se da decisão acima citada que essa análise depende sempre de um tratamento de cada caso em face das normas vigentes em um setor específico da economia. No entanto, por trás de todas as discussões jurídicas, é patente a constante disputa em torno do conceito de “novo serviço”. Para as start-ups, ele é fundamental ao seu ingresso em um determinado ramo da economia e significa desde a não submissão a diversas regras administrativas e tributárias a até mesmo sua legalidade frente ao poder público. Já para os agentes consolidados no mercado, ele pode representar a entrada de um perigoso concorrente. O presente artigo, nesse sentido, tem como objetivo analisar, para além da técnica jurídica específica de cada caso, como ocorre a construção desse conceito de “novo serviço”, explicitando, a partir do caso do Uber, quais os discursos que se constroem em torno desses casos, como se dá essa disputa e, por fim, qual o papel da tecnologia em toda a discussão. O artigo, assim, primeiramente fará uma breve análise dos discursos regulatórios sobre esses novos serviços, abordando como acadêmicos e juristas tratam do tema. Posteriormente, será explicada a teoria de Niel Fligstein e Milhaupt e Pistor, de modo a lançar as bases teóricas para o estudo do caso em questão. Feito isso, a pesquisa analisará a introdução do Uber no estado do Rio de Janeiro, buscando levantar possíveis reflexões sobre o tema.

II. O SURGIMENTO DOS "NOVOS SERVIÇOS" E OS ATUAIS DISCURSOS REGULATÓRIOS SOBRE O TEMA

Como já destacado, o surgimento da chamada Sharing Economy e de outros serviços tecnológicos tem causado uma série de questionamentos nos mais diversos campos do Direito, especialmente em áreas sujeitas – em maior ou menor grau – a uma presente regulação estatal, com diversas exigências no que tange à qualidade e à segurança dos serviços prestados. Em alguns setores, inclusive, as atividades tradicionalmente desempenhadas dependem de autorizações e licenças, o que torna a situação ainda mais complexa e conflituosa.

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No entanto, a relação entre Direito e inovação não é completamente recente, tampouco emergiu com o surgimento desses “novos serviços”. Em verdade, conforme demonstra Gary E. Marchant em artigo intitulado “A crescente lacuna entre as novas tecnologias e o direito”, esse tema já levantava preocupações em décadas passadas e somente se intensificou com o acelerado desenvolvimento tecnológico dos últimos anos.5 Como afirmado pelo autor, essa “crescente lacuna” justifica-se, em primeiro lugar, pela própria forma adotada pela legislação, que, ao não problematizar as diversas mudanças sociais e tecnológicas, é normalmente pouco flexível e não possui aberturas para possíveis inovações.6 Além disso, outra questão relatada é a lentidão que os processos legislativo, regulatório e até mesmo judicial exigem para responder com propriedade a tais novidades, sendo comum o surgimento de normas que tomam como base tecnologia já ultrapassada e que, assim, já nascem desatualizadas.7 Não sem razão, as preocupações externadas pelo autor são constantes em textos que tratam especificamente desses novos serviços. Em sua maioria, além de se destacar a importância de atualização e reforma da atual estrutura regulatória, vários estudiosos afirmam a necessidade de se adotar, por exemplo, leis mais flexíveis e abertas à inovação8 ou até mesmo mecanismos autorregulatórios para setores como a economia compartilhada.9 No entanto, especificamente sobre a interação desses serviços com as normas ainda vigentes, a maioria dos textos encontrados são artigos de revistas e jornais que, muito embora elaborados por importantes acadêmicos e profissionais, tendem apenas a

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MARCHANT, Gary E. The Growing Gap Between Emerging Technologies and the Law. In Marchant, Gary E. et. al. The Growing Gap Between Emerging Technologies and Legal-Ethical Oversight. New York: Springer, 2011, p. 19-33 6 MARCHANT, Op. cit., p. 23 7 MARCHANT, Op. cit., p. 23 8 Nesse sentido, destaca Sofia Ranchordás: “In addition, regulators are being confronted with complex innovations in the different fields of emerging technologies and apparently straightforward innovations that challenge existing regulatory paradigms (e.g., Aereo, Airbnb, Uber) about which regulators know very little. Do these innovations bring along risks, and how should they be regulated? In this article, I argue that the “pacing” and “informational” problems could be solved by enacting two highly overlooked regulatory instruments: sunset clauses and experimental legislation. Both of these instruments confer adaptability to the regulatory framework, set the stopwatch on obsolete legislation, and create room for regulatory flexibility and learning. “(RANCHORDAS, Sofia. Innovation-Friendly Regulation: The Sunset of Regulation, the Sunrise of Innovation (November 1, 2014). Jurimetrics, Vol. 55, No. 2, 2015, p. 1. Disponível em :, acessado em 01/08/2016) 9 COHEN, Molly; SUNDARARAJAN, Arun. Self-Regulation and Innovation in the Peer-to-Peer Sharing Economy, 82 U Chi L Rev Dialogue 116, 116–17 (2015). Disponível em: . Acessado em 01/08/2016

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responder se um determinado serviço é ou não regulado, sem analisar, de forma mais profunda, a complexidade dessa relação. Tomando os textos que tratam do Uber como paradigma, a insuficiência das respostas é patente ao se verificar tanto os textos que defendem o aplicativo quanto os que o criticam. No caso dos primeiros, é recorrente uma interpretação que ignora as antigas práticas estatais de criminalizar e repreender iniciativas semelhantes – ainda que mais rudimentares, como os “táxis piratas” –, atribuindo-se, muitas vezes, ao fenômeno tecnológico a criação de algo naturalmente novo e que, portanto, estaria fora do campo regulado.10 Nesse caso, toda a inovação exploraria – quase que por essência – um novo mercado, conforme pode ser exemplificado no seguinte trecho: As leis nunca conseguiram acompanhar a velocidade das inovações tecnológicas. [...] E é justamente essa lentidão nos sistemas regulatórios e normativos que proporciona um ambiente livre de demasiadas amarras burocráticas que por consequência fomenta o ideal inovador da sociedade. É algo sensacional, pois permite não somente a criação de novas soluções para velhos problemas, mas também cria demandas e práticas que a sociedade nem sabia que precisava ou que poderiam facilitar a sua vida e seu dia-a-dia. A verdade é que o Uber não oferece serviços de táxi, muito menos de transporte clandestino e não autorizado de passageiros. O Uber oferece um serviço ainda não regulado pelo ordenamento jurídico brasileiro. E o fato deste não estar regulado não significa que este é ilícito.11

É sintomático, nesse sentido, que nenhum dos textos analisados problematiza a aplicação de normas que, como se verá a seguir, são geralmente utilizadas contra pessoas que fazem transporte ilegal de passageiros (art. 135 e 231 do CTB, por exemplo), olvidando-se, inclusive, de entendimento corrente dos tribunais pátrios, segundo os quais, “sendo remunerada a atividade de transporte individual de passageiros, é indispensável a prévia autorização do Poder Público competente[...], sob pena de se praticar ato punível com multa e retenção do veículo”12

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MACHADO, Charles M. Uber, legal ou ilegal?. Blog Empório do Direito. [S.L]: 30/07/2015. Disponível em . Acessado em 01/08/2016 11 MONTEIRO, Renato Leite. Proibição do Uber: ausência de regulação não significa ilicitude. Blog Huffpost.[S.l]: 08/05/2015. 12 REsp 697.775/PB, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/03/2007, DJ 16/04/2007, p. 170

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Por outro lado, nos artigos que adotam postura desfavorável ao aplicativo, tende-se a afirmar – à semelhança do que ocorreu no caso da Aereo – que a tecnologia não seria capaz de diferenciar o serviço a ponto de torná-lo “não regulado”13, atribuindo unicamente – e negativamente – ao lobby e ao marketing a permanência da empresa, ainda que à margem da lei.14 Essa perspectiva, no entanto, entende a tensão entre o regulado e o nãoregulado a partir de uma visão dualista entre dois campos bem delimitados e estáticos, como se as fronteiras entre um e outro fossem claras e fixas e não estivessem naturalmente sujeitas a uma constante disputa por sua interpretação. Assim, no primeiro caso, a existência de um “vácuo legal” é afirmada sem minimamente se levar em conta o funcionamento das instituições estatais e defendida – via de regra – com base no simples argumento do caráter inovador e inédito dessas tecnologias. Já a segunda perspectiva parece não vislumbrar a possibilidade de as normas que justificam tais práticas serem reinterpretadas e parte do pressuposto de que as pressões políticas seriam completamente não naturais e, inclusive, prejudiciais a esse processo. A insuficiência de tais explicações, para os desafios apresentados na presente pesquisa, no entanto, é parcialmente solucionada por artigos com posições intermediárias, que tendem a aliar a inovação dos serviços do Uber a um comportamento estratégico e ativo da empresa frente ao panorama legal vigente. Por exemplo, Emily Isacc, sem negar a importância das inovações apresentadas pelo aplicativo, destaca que o argumento de que os serviços prestados pela start-up se encontram em um “vácuo legal” obteve êxito graças aos seus esforços argumentativos de se apresentar como uma empresa de tecnologia e não como de transporte.15 A mesma conclusão é apresentada por Niklas Elert e Magnus Henrekson em artigo em que os autores utilizam o Uber – e outros serviços da chamada Sharing

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PEREIRA E SILVA, Igor Luis. Por que o serviço do aplicativo Uber viola a Constituição e as Leis Brasilerias. Blog Direitos humanos, desconstrução e poder judiciário. Disponível em: . Acessado em 01/08/2016 14 DE OLIVEIRA, Patrick Luiz Sullivan. O Uber e o mito da panacéia tecnológica. Portal da Revista Carta Capital.[S.l]:19/07/2015. Acessado em 01/08/2016 15 ISACC, Emilu. Disruptive Innovation: RiskShifting and Precarity in the Age of Uber. Berkeley Roundtable on the International Economy BRIE Working Paper 2014-7. December 7, 2014, p. 8. B. Disponível em: . Acessado em 01/08/2016

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Economy – como exemplo de o que seria o “Empreendedorismo Evasivo”, isto é, uma atividade comercial que se utiliza de inovações para explorar as contradições de uma dada norma e, assim, evadir-se de seu campo de aplicação.16 O interessante, nesse ponto, é que os autores, apesar de colocarem o fator inovador como pressuposto desse tipo de ação, também expressam a importância de um certo esforço argumentativo, reconhecendo que nem sempre as imprecisões da lei ou suas lacunas são latentes.17 Pelo contrário, o texto afirma a necessidade de os empresários trabalharem ativamente na “criação” desses espaços na legislação vigente, como uma forma de lobby, mas, nas palavras dos autores, um “lobby in a new light”.18 No entanto, apesar de o texto reconhecer a complexidade muitas vezes envolvida na introdução desses serviços, inexistem maiores explicações quanto ao que seria esse lobby, como ele seria desenvolvido, de que modo seria a “criação” dessas lacunas e, enfim, qual seria o papel da tecnologia em tal processo e, especialmente, de que maneira ela poderia diferenciar aquele novo serviço de outras tentativas consideradas ilícitas pelo poder público. III. O FIELD DO DIREITO E A SUA TRANSFORMAÇÃO

Uma interessante perspectiva para se entender esse lobby afirmado por Elert e Herenkson e, portanto, a introdução desses novos serviços é por meio dos estudos de Neil Fligstein (2001) e de Milhaupt e Pistor (2008). O primeiro deles analisa os mercados a partir de uma perspectiva políticocultural, na qual esses são compreendidos como campos – fields –, isto é, enquanto espaços dotados de costumes, práticas e normas que estabelecem uma determinada hierarquia – e, portanto, um sistema de dominação – entre os agentes econômicos.19O mercado, assim, engloba uma série de instituições que estruturam as trocas de bens e serviços, como, por exemplo, as práticas comerciais tradicionais de um dado setor, os padrões comuns de contratação e fornecimento de bens e até mesmo as normas formais do Estado. 16

ELERT, Niklas; HENREKSON, Magnus. Evasive Entrepreneurship (March 31, 2016). IFN Working Paper No. 1044, p. 9. Disponível em:. Acessado em 01/08/2016 17 ELERT; HENREKSON, Op. cit., p. 14. 18 ELERT; HENREKSON, Op. cit., p. 14 19 FLIGSTEIN, Neil. The architecture of markets: an Economic Sociology of twenty-first century capitalist societies. Princeton: Princeton University Press, 2001, p. 15/16

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Nessa perspectiva, os atores que mais beneficiam de toda essa estrutura, normalmente as maiores e mais importantes empresas – chamadas de incumbents –, dominam um setor específico da economia e conseguem perpetuar-se em tal posição por um determinado período de tempo, impondo às firmas subalternas – challengers – as condições gerais do mercado.20 Todos esses padrões e regras, segundo Fligstein, decorrem de uma busca dos agentes econômicos por estabilizar suas relações com competidores, fornecedores e trabalhadores, protegendo-os da competição desenfreada e das incertezas típicas do mercado.21Nesse sentido, ao contrário da tradicional teoria neoclássica, o autor afirma que as empresas não buscam o embate direto entre elas a nível de preços, mas, na realidade, tendem a almejar sua sobrevivência, que certamente é colocada em xeque em mercados excessivamente competitivos e com grandes incertezas.22 Essa instabilidade, portanto, é a regra, e os agentes buscam exatamente proteger-se dela, adotando padrões de comportamento e até mesmo se socorrendo ao próprio Estado para criar normas com vistas a garantir o investimento em um ambiente minimamente seguro. Justamente por isso, o autor entende que um mercado estável é aquele em que os papéis de incumbents e challengers estão bem definidos e, assim, permite aos primeiros a sua perpetuação no poder por um dado período de tempo.23 Por outro lado, a perspectiva do autor também permite a compreensão do papel do Estado dentro dos mercados, pois é ele quem muitas vezes estabelece diversas regras que moldam o comportamento dos agentes econômicos. Isso ocorre, segundo Fligstein, porque nem sempre os agentes econômicos são capazes de regular seus conflitos e preferem, assim, atribuir ao Estado esse papel.24 Há, de fato, uma clara demanda de tais atores pela intervenção e regulação do Estado, que passa a dar legitimidade a determinados arranjos privados, ratificando-os e tornando o seu cumprimento obrigatório.25 Em alguns casos, o Estado estabelece diretamente padrões aceitáveis de conduta, regras de competição e até mesmo cria barreiras de entrada a determinados setores.26

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FLIGSTEIN, Op. Cit., p. 69/70 FLIGSTEIN, Op. Cit., p. 18 22 FLIGSTEIN, Op. Cit., p. 17 23 FLIGSTEIN, Op. Cit., p. 30/31 24 FLIGSTEIN, Op. Cit., pp. 27/28 25 FLIGSTEIN, Op. Cit., p. 19 26 FLIGSTEIN, Op. Cit., pp. 19, 36 21

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No entanto, tais normas não são estabelecidas isoladamente por burocratas, tampouco seu cumprimento é determinado por agentes completamente alheios às dinâmicas da sociedade. Como dito, há uma demanda dos agentes econômicos por esse tipo de regulação e é certo que a criação de tais normas e seu enforcement serão influenciados por essa pressão, assim como o são por outros grupos sociais (trabalhadores, consumidores etc.). É que, segundo Fligstein, o Estado deve ser concebido como um conjunto de diferentes campos – fields – que criam normas e entendimentos aos campos não estatais.27 Esses campos do Estado são assim arenas políticas nas quais “agentes burocráticos e representantes das firmas e trabalhadores se encontram para formar e implementar políticas”28. O autor completa que cada um desses campos do Estado “possui organizações, algumas públicas e outras privadas, que fazem, interpretam e aplicam as normas de uma determinada sociedade. ”29 Esse ponto é extremamente relevante ao presente caso porque, para o autor, um exemplo dessas arenas políticas seria o próprio sistema legal de um país, dotado de “juízes, cortes, advogados e escolas de direito” e responsável pela aplicação e interpretação das normas.30Nesse sentido, não é difícil pensar que o problema aqui tratado – como caracterizar um serviço como novo – e o lobby destacado anteriormente se encontram, em grande medida, localizados nesse domínio. Afinal, cuida-se de uma questão umbilicalmente ligada ao momento de aplicação da norma e de determinação de sua abrangência. Inclusive, a pertinência desse ponto para o caso do Uber é ainda mais clara ao se verificar que o próprio autor reporta que os sistemas legais “são vias alternativas para grupos de challengers se engajarem em uma ação política”, destacando a possibilidade de se utilizar as normas para “questionar os direitos e privilégios dos grupos dominantes”.31 É justamente nesse ponto que os estudos realizados por Milhaupt e Pistor são também de grande relevância à análise aqui empreendida, pois é possível compreender a

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FLIGSTEIN, Op. Cit., p., 39 Tradução livre de: “bureaucratic agencies and representatives of firms and workers meet to form and implement policy” (FLIGSTEIN, Op. Cit., p. 39) 29 Tradução livre de: “contain organizations, some public and others private, that make, interpret, and enforce the rules of a given society” (FLIGSTEIN, Op. Cit., p. 19) 30 Tradução livre de: “are alternative ways for challenger groups to engage in political action (…) contest the rights and privileges of dominant groups” (FLIGSTEIN, Op. Cit., p. 39) 31 FLIGSTEIN, Op. Cit., p. 39 28

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disputa sobre a interpretação da norma aplicável a tais serviços a partir das críticas elaboradas pelos autores à chamada “endowed perspective”, que entende o Direito como uma pré-condição imutável dos mercados e não como um produto da interação dos diversos agentes sociais.32 Nesse sentido, é possível entender o fenômeno em análise a partir da ideia dos autores de que há um processo altamente interativo entre os atores econômicos e o Direito – “a rolling relation” –, na qual as mais variadas transformações no mercado exigem novas respostas do Estado, gerando alterações na dinâmica institucional e, assim, novos incentivos aos particulares: Mudanças no mercado de qualquer tipo levantam novas questões sobre, por exemplo, o direito de usar uma nova tecnologia, a habilidade de um entrante participar do mercado ou a necessidade de novas leis para governar a conduta dos mercados. Como forma de mitigar a incerteza e restaurar o equilíbrio no mercado, essas questões devem ser respondidas por alguém. Na maioria dos países desenvolvidos, muitas dessas questões são respondidas por atores legais, sejam eles legisladores, burocratas, juízes ou por alguma combinação deles. Toda resposta legal, por sua vez, cria novos incentivos (e muitas vezes novas incertezas) para os agentes do mercado, que adaptam sua conduta às novas normas e desafiam a nova ordem legal. Essas reações do mercado levantam novas questões por si só e o processo se repete.33

Essa visão é relevante ao caso por apresentar a perspectiva de um sistema jurídico altamente interativo e aberto a transformações – afastando, portanto, o caráter estático anteriormente aludido –, bem como por destacar a constante influência dos agentes econômicos na criação e aplicação das normas pelos reguladores e demais autoridades. No ponto, é especialmente interessante o destaque feito pelos autores quanto ao papel das firmas entrantes, que, segundo eles, “são menos respeitosas à existência de normas no mercado (sejam legais ou não), forçando os atores públicos e privados a

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MILHAUPT, Curti J, PISTOR, Katharina. Law and capitalism: what corporate crises reveal aboutlegal systems and economic develpment arount the world. Londres e Chicago: The University of Chicago Press, 2008. 33 Tradução livre de: “Market change of any type raises new questions about, for example, the right to use new technology, the ability of new entrants to participate in the market, or the need for new rules to govern market conduct. In order to mitigate uncertainty and restore equilibrium in the market, these questions must be answered by someone. In most developed economies, many of these questions are answered by legal actors, be they legislators, bureaucrats, judges, or some combination thereof. Virtually every legal response, in turn, creates new incentives (and often new uncertainties) for market players, who adapt their conduct to the new rules and push at the margins of the new legal order. These market reactions raise new questions of their own, and the process repeats itself.” (MILHAUPT; PISTOR, Op. cit., p. 12)

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reavaliarem o sistema legal ou a adaptar suas condutas à nova realidade. ”34 Como um entrante, não é difícil também se cogitar que o Uber tenha de fato gerado sensível mudanças na dinâmica de interpretação e enforcement da norma aplicável ao setor de transporte de passageiros. A visão dos autores pode, assim, ser utilizada para a compreensão dessa possível mudança interpretativa gerada a partir da entrada do Uber no mercado, podendo representar uma contribuição – ainda que mínima – para se compreender o papel de diversos agentes do field do Direito – como Cortes, advogados e juristas – nesse processo de alteração das leis e de seu enforcement. Com base nessa perspectiva, será analisado como o embate da introdução do Uber no Rio de Janeiro foi travado no âmbito do sistema legal brasileiro, explorando qual foi o papel desempenhado pelos atores econômicos desse campo e como a tecnologia foi utilizada nesse debate.

IV. ANÁLISE DO CASO UBER NO RIO DE JANEIRO:

IV.1 Questões preliminares Em caráter preliminar, cabe esclarecer alguns pontos sobre o presente estudo e o recorte dado ao caso concreto. Isso porque, de fato, diversas poderiam ser as formas de levantar dados e abordar o tema. No entanto, optou-se por realizar uma pesquisa focada no caso do estado do Rio de Janeiro, por ter sido o primeiro local onde o Uber se estabeleceu. Além disso, a opção por analisar o caso a partir de notícias da época – ainda que problemática, diante da possibilidade de abordagens enviesadas – justifica-se por ser um assunto que tomou a mídia e que, assim, tem potencialidade de oferecer uma visão bastante abrangente sobre o tema. Esse fato pode ser comprovado ao se constatar que os jornais à época noticiavam: a opinião de todos os setores envolvidos – taxistas, Uber e até mesmo a população -; os principais acontecimentos, como manifestações, propostas de projeto de

Tradução livre de: “is less respectful of existing rules for market activity (whether legal or nonlegal), forcing both private – and public-sector actors to reevaluate the rule system or to adapt their conduct to the new state of play” (MILHAUPT; PISTOR, Op. cit, p. 207” 34

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lei e decisões judiciais; os pronunciamentos e ações do poder público; e a própria opinião da mídia, sem dúvida um elemento de possível interesse em qualquer debate público. Destaque-se que metodologia semelhante já foi utilizada em artigo da professora de sociologia da UFSCar Fabiana Luci de Oliveira35, e que, igualmente ao empreendido por ela, não se busca uma análise do discurso da mídia, mas, em especial, a recuperação dos debates e dos fatos ocorridos à época, como decisões judiciais e o posicionamento das autoridades. Tanto é assim, que as matérias servirão mais como guia da análise a ser realizada, podendo-se eventualmente levantar, por exemplo, o inteiro teor das decisões citadas diretamente no sítio dos Tribunais. Nesse sentido, optou-se pelo jornal O Globo por ser o de maior circulação no estado do Rio de Janeiro36 e certamente um dos mais importantes do país. Feita a escolha, as matérias foram selecionadas a partir do mecanismo de busca do acervo do jornal a partir do ano de 2010, com as palavras “Uber” e “Taxi”, momento em que se levantou um total de 161 páginas de jornal digitalizadas com esses dois termos, ainda que em matérias diferentes. No entanto, somente foram analisadas as matérias compreendidas entre o ano de introdução do aplicativo no país – 2014 – e a decisão liminar em mandado de segurança que plenamente permitiu a operação do aplicativo – 10/10/2015. Além disso, como forma de complementar o estudo, a presente pesquisa também explicitará quais eram as práticas e os entendimentos já consolidados pelas autoridades públicas locais no mercado de transporte privado de passageiros antes mesmo da entrada da empresa no país. Busca-se, assim, obter um parâmetro mínimo para se comparar a ação do Estado frente ao Uber. Com base nessas informações, a análise do caso em questão tentará interpretar como ocorreu a introdução do Uber no estado do Rio de Janeiro, tendo especial atenção às seguintes perguntas: como era a postura das autoridades antes da entrada do Uber? Havia pressões políticas na interpretação/enforcement das normas? E depois, especificamente em relação ao Uber, como ficou? A interpretação de que o Uber explorou um vácuo legal representa bem a dinâmica dos fatos? Qual foi a estratégia utilizada pelo

35OLIVEIRA, Fabiana Luci de. O Supremo Tribunal Federal no processo de transição democrática: uma análise de conteúdo dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Rev. Sociol. Polit. [online]. 2004, n.22, pp.101-118. 36 Nesse sentido, pesquisa da Associação Nacional dos Jornais: http://www.anj.org.br/maiores-jornais-dobrasil/

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Uber? Qual foi o papel das instituições jurídicas (cortes, advogados, acadêmicos)? Qual a importância da tecnologia nesse ponto? Há outros aspectos relevantes, além do simples caráter inovador? IV.2 O Uber, as barreiras legais no Brasil e a discussão jurídica sobre o tema:

Antes de se analisar especificamente qual era a prática das autoridades brasileiras e como foi a introdução do Uber no país, é importante que se tenha em mente quais normas se encontram em debate. Nesse sentido, a presente pesquisa cingiu-se a analisar as leis que, em tese, proíbem os serviços prestados pela empresa e pelos motoristas a ela vinculados, excluindo-se, assim, eventuais discussões tributárias e trabalhistas sobre o tema. Tendo como base essa perspectiva, os principais argumentos contrários ao Uber são os de que (i) ele desempenha uma atividade de transporte remunerado e, portanto, depende de autorização do Estado e (ii) os motoristas a ele vinculados exercem atividade reservada por lei aos motoristas de táxi. A primeira dessas proibições se encontra nos Art. 135 e 231 do Código Brasileiro de Trânsito, que estabelecem a obrigação de os veículos utilizados para o transporte individual ou coletivo empregados em qualquer serviço remunerado estarem devidamente autorizados pelo poder público: CTB, Art. 135. Os veículos de aluguel, destinados ao transporte individual ou coletivo de passageiros de linhas regulares ou empregados em qualquer serviço remunerado, para registro, licenciamento e respectivo emplacamento de característica comercial, deverão estar devidamente autorizados pelo poder público concedente. CTB, Art. 231. Transitar com o veículo: VIII - efetuando transporte remunerado de pessoas ou bens, quando não for licenciado para esse fim, salvo casos de força maior ou com permissão da autoridade competente: Infração - média; Penalidade - multa; Medida administrativa - retenção do veículo.

Sobre a interpretação do referido artigo, há apenas um precedente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que destaca que qualquer atividade remunerada de passageiros necessita de prévia autorização: ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE REMUNERADA DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS. NECESSIDADE DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO PODER PÚBLICO COMPETENTE. ART. 135 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO.

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1. Hipótese de contrato oneroso de prestação de serviços de transporte firmado entre particulares, com trajeto diário intermunicipal. 2. Falta interesse recursal à recorrente no que tange à alegação de que o impetrante pode ser flagrado efetuando o transporte remunerado de outros passageiros, já que a decisão proferida nestes autos não lhe confere tal prerrogativa. 3. Sendo remunerada a atividade de transporte individual de passageiros, é indispensável a prévia autorização do Poder Público competente, nos termos do art. 135 do CTB, sob pena de se praticar ato punível com multa e retenção do veículo, segundo a norma contida no art. 231, VIII, do mesmo diploma legal. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido, para denegar a segurança anteriormente concedida. (REsp 697.775/PB, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/03/2007, DJ 16/04/2007, p. 170)

O outro argumento contrário decorre da combinação entre os artigos 47 da Lei de Contravenções Penais e 2º da Lei 12.468/2011, que disciplinou a profissão de taxista: LCP, Art. 47. Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis. Lei 12.468/2011, Art. 2o É atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7 (sete) passageiros.

Segundo essa interpretação, os motoristas vinculados ao Uber cometem a contravenção penal de exercício ilegal de profissão, tendo em vista que exercem atividade legalmente reservada aos taxistas. Como se pode atestar a partir dos dois pontos acima expostos, de fato, existem argumentos que possibilitam a proibição das atividades do Uber. Eles, no entanto, dependem em grande medida da interpretação de que o serviço prestado pelo Uber já se encontra regulado e, portanto, depende de autorização do Estado. No caso da contravenção penal em análise, o argumento dependeria, inclusive, de uma identidade desse serviço com os já prestados pelos taxistas. Os defensores do Uber37, por outro lado, tentam diferenciá-lo dos serviços de táxis e, assim, justificar a desnecessidade de autorização para suas atividades. Um 37

Nesse ponto, resumiu-se os argumentos normalmente apresentados nos pareceres, como o de Daniel Sarmento (SARMENTO, Daniel. Ordem Constitucional Econômica, Liberdade e Transporte Individual de Passageiros: O “caso Uber”. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: . Acesso em 01/08/2016) e o da OAB-DF (ORGEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – CONSELHO SECCIONAL DO DISTRITO FEDERAL – COMISSÃO DE ASSUNTOS

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argumento corriqueiro é a caracterização da start-up como uma mera intermediária entre consumidores e motoristas particulares. Estes últimos seriam, assim, figura já conhecida no mercado, ainda que normalmente utilizados apenas por executivos, autoridades e personalidades. Nessa linha de argumentação, os motoristas do Uber, ao contrário dos taxistas, ofereceriam serviço não aberto ao público, não podendo, por exemplo, ser contratados em via pública ou se utilizar dos pontos de táxi. Sua clientela se cingiria àquelas pessoas cadastradas no aplicativo, com as quais firmaria individualmente contratos particulares de transporte de forma autônoma e livre, podendo, inclusive, negarse a levar um passageiro a um determinado local ou a atender uma região específica. O táxi, ao contrário, por ser caracterizado como “serviço de transporte público individual” – em contraposição ao Uber, que se encaixaria na categoria “serviço de transporte privado individual” – estaria submetido a uma série de obrigações – como as regras tarifárias e as que obrigam o taxista a levar o passageiro a todos os locais de uma determinada região -, recebendo, em contrapartida, incentivos fiscais e as prerrogativas de poder ser contratado diretamente em via pública e de se valer dos pontos de táxi. IV.3 Contexto jurídico-institucional: comportamento das autoridades públicas do Rio de Janeiro

Antes da introdução do Uber no país, os tribunais e autoridades públicas brasileiras já haviam enfrentado situação semelhante no mercado de transporte individual. De fato, a utilização de carros privados para transporte de remunerado de passageiros não é nenhuma novidade e já era uma prática existente em diversos locais, como o Rio de Janeiro. No entanto, essa prática encontrava-se, em grande medida, condenada pelas autoridades públicas, que entendiam o seu caráter ilícito e assim tentavam coibir esse tipo de serviço. Apesar de não ter sido possível analisar, a partir do sítio do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, um verdadeiro entendimento consolidado sobre o tema, conseguiu-se

CONSTITUCIONAIS. Protocolo nº 11162-8/2015. Brasília: 2015. Disponível em . Acessado em 01/08/2016), e nas decisões judiciais citadas no tópico 4.4

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minimamente mapear uma possível prática de criminalização desse tipo de atividade, tendo em vista a presença de alguns precedentes afirmando a possível tipicidade da conduta: Art. 47 da Lei de Contravenções penais - transporte irregular de passageiros

exercício ilegal da profissão de taxista. Rejeição da denúncia. Recurso Ministerial. Exigências legais. Lei 12.468/2011 e Decretos Municipais nºs 3.858/70 e 7.716/75. Entendimentos doutrinário e jurisprudencial de que o transporte de passageiros exige requisitos específicos do condutor, que terá as penas agravadas nas hipóteses de crimes praticados na condução de veículos automotores nestas circunstâncias. Provimento do recurso. (TJ-RJ - APR: 00363715920138190209 RJ 0036371-59.2013.8.19.0209, Relator: NEARIS DOS SANTOS CARVALHO ARCE DOS SANTOS, Primeira Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: 23/02/2015 14:57)

Vale destacar que a dificuldade de se encontrar outros exemplos não pode ser atribuída à possível raridade de casos desse tipo. Na realidade, processos que tratam dessa modalidade de crime são normalmente arquivados logo na primeira instância, por meio de transação penal, e, portanto, não são encontrados pelo sistema de busca do Tribunal, que toma como base apenas o universo de casos decididos pela 2ª instância. Não obstante, outras fontes demonstram que os poucos precedentes encontrados, antes de apresentarem uma situação isolada, fazem parte de um entendimento corrente das autoridades públicas sobre o assunto. Isso porque foi possível levantar uma série de forças-tarefa voltadas a coibir esse tipo de prática e que foram organizadas por diversos órgãos público (Secretaria de Transportes, Polícia Civil e Ministério Público). Por meio delas, as autoridades públicas multavam os motoristas e, em alguns casos, até mesmo abriam investigações criminais relativas a crimes como formação de quadrilha. A Operação Táxi Fantasma38, por exemplo, revela esse tipo de ação frente à utilização de carros particulares para o transporte de passageiros em frente a hotéis da zona sul da cidade, aplicando severas multas aos condutores e encaminhando-os à polícia. Por sua vez, a Operação Cobrança Exata39, da Delegacia de Atendimento ao Turista, desmantelou uma suposta rede de "táxi pirata" que agia na mesma região do Rio

38

MACHADO, Mariucha. Rio faz blitz contra táxis fantasmas nas zonas Sul e Oeste. Portal G1. Rio de Janeiro, 06/06/2013. Disponível em : . Acessado em 01/08/2016. 39 O GLOBO. Polícia detém 15 pessoas em operação contra táxi pirata. Portal O Globo. Rio de Janeiro, 13/07/2011. Disponível em: . Acessado em 01/08/2016.

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de Janeiro – a Cooperativa HotCoop. Em entrevista, a delegada responsável destacou que os motoristas eram investigados por exercício ilegal de profissão e que havia ainda indícios de outros crimes, como formação de quadrilha, fraude tributária e crime contra economia popular. Apesar de não ter sido encontrada a respectiva ação penal no âmbito do TJRJ, os jornais da época revelam que a cooperativa alegou que os motoristas tinham “autorização do Ministério do Turismo para fazer o transporte turístico na cidade” e que “a cooperativa não faz serviço de táxi, mas apenas leva turista para os locais previamente combinados”. No entanto, os argumentos – sensivelmente semelhantes aos apresentados pelo Uber – foram prontamente contestados pela delegada da época, que destacou que todos os veículos possuíam placa cinza, isto é, eram particulares e, portanto, não estavam autorizados a realizar o serviço. Outra situação, notadamente mais grave, foi o do chamado “Grupo do Clóvis”, uma organização com mais de 100 integrantes que, segundo o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público do Rio de Janeiro, organizavam um esquema ilícito de táxis clandestinos na Região dos Lagos.40 Como foi possível apurar pela denúncia41, o grupo contava com centrais telefônicas que intermediavam o contato entre consumidores e motoristas. O funcionamento, bastante semelhante ao Uber, também operava com base na ideia de um intermediador – Clóvis – e de motoristas associados, que deveriam pagar uma tarifa para usar esse serviço: O referido esquema delitivo organizado contava com centrais de atendimento telefônico[...]. Através delas, os consumidores solicitavam os serviços de táxi, sendo que Clóvis encarregava-se de intermediar os contatos com os seus associados cadastrados, nas ruas, que o executavam e recebia o valor do transporte, mas, para tanto, pagavam a tarifa diária de R$ 15 (quinze) reais àquele.

Para o Ministério Público, no entanto, cuidava-se de grupo criminoso, que prestava serviço de táxi sem autorização legal. Por isso, durante a Operação Táxi Legal, que foi deflagrada a partir de abaixo-assinado de vários taxistas, duas pessoas foram

40

O GLOBO. MP denuncia 144 taxistas envolvidos em esquema de transporte clandestino na Região dos Lagos. Portal O GLOBO. Rio de Janeiro, 18/08/2011. Disponível> . Acessado em: 01/08/2016. 41 Documento obtidos por meio do Habeas Corpus nº 226.162, que tramita perante o STJ.

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presas preventivamente e 144 denunciadas por diversos crimes, que somavam, para alguns, penas de até 11 anos de reclusão. O caso ainda se encontra em tramitação perante a Justiça do Rio de Janeiro, mas, de toda forma, esse e outros exemplos demonstram uma clara tendência das autoridades públicas do Rio de Janeiro no sentido de multar, combater e até mesmo criminalizar atividades bastante similares à do Uber e de seus “motoristas parceiros”. Isso é especialmente relevante ao se constatar que, em essência, o papel do Uber de intermediário não é muito diferente do exercido pelo Grupo do Clóvis, o que releva que, até então, o contexto da época não era nada receptivo a esse tipo de atividade.

IV.4 A introdução do Uber

Não obstante o contexto acima apresentado, o Uber estreou no Brasil em maio de 2014 e já iniciou suas atividades em meio a discussões que remontavam ao mês anterior. Isso porque, em abril do mesmo ano, um serviço recém lançado já levantava questionamentos perante as autoridades públicas e foi alvo de notícias do jornal O Globo42. Tratava-se do Zaznu, aplicativo desenvolvido por uma empresa brasileira que afirmava que os motoristas nele cadastrados apenas ofereciam caronas gratuitas, sendo uma opção de cada passageiro fazer ou não um pagamento a título de doação. O Sindicato local dos Taxistas, no entanto, desde então já defendia sua ilegalidade, enquanto o presidente da Comissão de Direito dos Transportes da OAB-RJ, segundo o Jornal, afirmou que “a interpretação da legislação permite enxergar irregularidade no aplicativo. ” Na esteira dessas discussões, as polêmicas envolvendo o Uber começaram a ser publicadas no Jornal o Globo a partir de junho daquele ano. Na primeira matéria43 (12/06/2014), percebe-se que as dúvidas existentes sobre a legalidade dos serviços da Zaznu igualmente foram levantadas sobre o Uber e, inclusive, levaram a uma série de movimentações dos Taxistas e pedidos de investigações por parte do Poder Público: Por sua vez, a Secretaria municipal de Transportes, (sic) está convencida que o Zaznu usa 'veículos particulares, realizando serviço irregular de transporte de passageiros sob cobrança’. Por e-mail, o órgão afirma que 'apenas táxis regulamentados pela prefeitura, e com a devida autorização, podem realizar transporte de passageiros sob 42 43

SITTI, Rennan. Depois dos Táxis, as “caronas”. O Globo. Edição do dia 20/04/2014, p. 42 SELMA, Schimidt. Carona Polêmica. O Globo. Edição do dia 12/06/2014, p. 23

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cobrança'. Diante do lançamento, nesta quarta-feira, do Uber, a secretaria informou que tomará a mesma providência adotada em relação ao Zaznu: enviará ofício à DRCI [Delegacia de Repressão aos Crimes Informáticos], solicitando investigação.

Diante desse quadro, o Uber, na mesma matéria, cingiu-se a afirmar que não era uma empresa de transporte, mas sim de tecnologia, e, por isso, não necessitaria de autorização. A empresa, à época, também dava a entender que os serviços prestados por seus motoristas – todos profissionais – eram diferentes dos tradicionalmente oferecidos por taxistas, aproximando-os de um serviço executivo e mais caro: Diferentemente do Zaznu, no Uber o passageiro não faz doações. Simplesmente paga pelo serviço. Segundo Solamon Cruz Estin, lançador do Uber no Brasil, a empresa só cadastra motoristas profissionais - embora não sejam taxistas - e usa carros executivos. - Oferecemos um serviço melhor, mais sofisticado e confortável que o dos táxis - garante Solamon. - O preço é um pouco superior ao dos táxis; em média, 30% A plataforma Uber tem CNPJ e está registrada como emresa de tecnologia e logística digital. Os seus donos, porém não consideram necessário se regularizar junto à prefeitura - Não somos uma empresa de transporte - alega Solamon.

Na matéria do dia seguinte44 (13/06/2014), o Jornal já anunciava a proposta de um Projeto de Lei Estadual proibindo o Uber e serviços similares 45 por parte do Deputado Dionísio Lins, vice-presidente da Comissão de Transportes da Alerj, que, na linha do afirmado do tópico anterior, destacou que a utilização de carros particulares no transporte de passageiros já era prática comum e há muito combatida no Rio de Janeiro: Independentemente de aplicativos, Dionísio lembra uma prática comum: carros particulares, em frente a hotéis da Barra, São Conrado, Ipanema e Copacabana, oferecendo transporte para turistas. A informação foi confirmada à comissão na última audiência pública, realizada na semana passada

Posteriormente a essa matéria, a pesquisa não localizou nenhuma outra notícia até novembro de 2014. Neste mês, um interessante artigo de opinião46 levantou as diferenças entre os serviços de táxis e defendeu a existência de um forte lobby por parte dos taxistas no sentido de proibir o aplicativo. O texto revela, assim, como o Uber se apresentava ao

44

SCHIMIDT, Selma. Projeto proíbe transporte pago em carros particulares. O Globo. Edição do dia 13/06/2014, p. 21 45 Segundo o jornal, o projeto proibia o "transporte remunerado de passageiros por carros particulares, em que motoristas e usuários são cadastrados através de aplicativos" 46 RONAI, Cora. Novos paradigmas, velhas confusões. O Globo. Edição do dia 13/11/2014

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mercado – um serviço de logística que conecta pessoas a motoristas particulares –, explicitando até mesmo a superioridade dele frente ao táxi: Olhando assim por alto, ele se parece com qualquer outro aplicativo de táxi: você diz onde está, pede um carro e pronto, no devido tempo um carro aparece. A diferença é que o Uber não chama táxis; chama motoristas particulares, que tipicamente, têm carros maiores e mais confortáveis do que os táxis comuns.

Essa visão, no entanto, continuava a contrastar com a opinião das autoridades públicas, que seguiam afirmando a ilegalidade do serviço. A ANTT e a Secretaria do Município do Rio de Janeiro, por exemplo, afirmaram a ilegalidade do serviço na edição de 17 de dezembro de 201447. Essa última, inclusive, atribuía a continuidade dos serviços à dificuldade de se fiscalizar os motoristas vinculados à plataforma e à necessidade de se esperar o Ministério Público na análise das investigações anteriormente solicitadas: De acordo com a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), 'aplicativos que estabelecem um valor para o transporte, independentemente da quantia, são ilegais' e 'estão sujeitos às mesmas penalidades aplicadas ao transportador pirata'. É esse também o entendimento da Secretaria Municipal de Transportes do Rio de Janeiro (SMTR), responsável pela fiscalização na cidade. 'Os serviços oferecidos pelo Uber e outros aplicativos similares são ilegais, já que as corridas são pagas', informa o comunicado[...] Contudo, o órgão admite a dificuldade de fiscalização, já que os carros ofertados no Uber não têm identificação. A pedido da secretaria, a Delegacia de Repressão a Crimes de Informática instaurou inquérito para averiguar o funcionamento desse tipo de aplicativo, que foi concluído e agora está nas mãos do Ministério Público Estadual

A mesma matéria, no entanto, trouxe opinião contrária de especialistas na área, que basicamente defendiam a ausência de regulamentação do serviço e, assim, sua legalidade: Com experiência na análise do assunto, Bissoli explica que alguns projetos atuam em lacunas da lei, sem impedimento legal, mas novos desafios jurídicos no que diz respeito às responsabilidades e atividades do serviço. - É nesses casos que o legislador vai atuar futuramente, se houver demanda, para enquadrar esses serviços ou rejeitá-los - diz o advogado - A legislação nunca vai acompanhar a tecnologia, a evolução sempre vai acontecer primeiro. Depois é que a legislação vai trabalhar em cima disso.

47

MATSUURA, Sérgio. Sem regras, Uber enfrenta os tribunais. O Globo. Edição do dia 17/12/2014, p. 30

452

Após esse período do final de 2014, o Uber somente foi alvo de notícias relevantes em abril de 201548, quando um artigo, além de abordar a existência de protestos em São Paulo, noticiou decisão da Justiça paulista, tomada no âmbito de ação proposta pelo Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores nas Empresas de Táxi no Estado de São Paulo, de proibir a operação do Uber em todo território nacional. Segundo se apurou, a decisão, posteriormente revogada por questões formais, afirmava que os serviços do Uber dependeriam de autorização do Estado e, portanto, seriam ilegais. Além disso, o magistrado rejeitou o argumento de se tratar de serviço não aberto ao público e, ainda, fez considerações sobre a importância das tecnologias: Pelo contrário, a tentativa da requerida em apontar diferenças entre a sua atividade e aquela exercida pelos táxis apenas evidencia a semelhança existente entre ambas, ofertando indícios de que o serviço por ela prestado se enquadra como transporte público individual. Afinal, o que mais seria o serviço prestado a partir de um aplicativo disponível para download a qualquer interessado maior de 18 anos (fl. 126), em lojas virtuais de aplicativos de aparelho celular, senão aberto ao público? O mero fato de se exigir um cadastro prévio à utilização do aplicativo, o que se relaciona, por óbvio, a aspectos secundários do negócio, como a necessidade de realização dos pagamentos por meio de cartão de crédito (fl. 126) e a eventual redução da insegurança e incerteza inerentes aos negócios efetuados virtualmente, não torna privado o serviço em questão, já que oferecido à generalidade das pessoas, de modo indeterminado. E nem poderia ser diferente, frente ao porte da empresa. Com efeito, abstraindo-se os fatores secundários mencionados, decorrentes da natureza virtual de parte do serviço oferecido pela requerida, persiste, essencialmente, como serviço idêntico ao ofertado pelos taxistas. [...] Com isso não se está a condenar, em termos sociais, o modelo de negócio promovido pela requerida. Apenas se observa que, neste juízo liminar, tal modelo aparenta carecer de regulação, a qual é condição prévia a seu exercício. O mero fato de, hodiernamente, vivermos em um mundo de novidades mil em todos os seguimentos e a todos os instantes (muitas propagandeando “revoluções sociais” ao clique de um botão e ao passar de um cartão de crédito) não parece, de outro lado, já ter tornado legítimo um oficial desmantelamento das instituições democráticas tal qual temos conhecido.

Outra decisão relevante ao tema foi noticiada em junho49, quando o Ministério Público do Rio de Janeiro solicitou, por duas vezes, o arquivamento do pedido de investigação feito pela Secretaria Municipal de Transportes. Segundo o órgão, o serviço 48

DA COSTA, Mariana Timóteo; GUANDELINE, Leonardo. Justiça de SP determina que Uber suspenda as atividades no país. O Globo. Edição do dia 30/04/2015, p. 27 49 FRANÇA, Renan. Prefeitura diz que não regulamenta Uber porque serviço é ilegal. O Globo. Edição de 30/06/2015, p. 8

453

dos motoristas era superior ao oferecido pelos taxistas e, portanto, não oferecia riscos à segurança coletiva: Após melhor compulsar os autos verifica o MP tratar-se de fato atípico que deve ser resolvido nas esferas cível e administrativa. SMJ os motoristas são cadastrados, habilitados e os usuários do serviço concordam em pagar mais caro por um carro melhor e um serviço considerado de melhor qualidade. O art. 47 LCP diz respeito à preservação da segurança coletiva inexistindo, in casu, risco à incolumidade pública. Face o exposto, r. o arquivamento do presente. (Processo No 0339598-89.2014.8.19.0001 TJ/RJ - 03/07/2015 14:42:23 ARQUIVADO EM DEFINITIVO - MAÇO Nº 3069, em 09/03/2015 Comarca da Capital 1º Juizado Especial Criminal Botafogo)

A decisão, no entanto, apesar de ser uma vitória importante do Uber e de contrastar com a postura do Ministério Público em situações anteriores, não analisa, de fato, as diferenças entre Uber e Táxi. Como expresso, a decisão se baseia em grande medida na ausência de risco à incolumidade pública, o que afastaria a lesão ao bem jurídico tutelado e, portanto, a tipicidade da conduta. Em claro contraste aos períodos anteriores, os meses de julho a setembro de 2015 são marcado por grandes discussões sobre o aplicativo, com diversas manifestações por parte dos taxistas e pelo sensível aumento de matérias discutindo o tema. A título exemplificativo, enquanto nos meses de abril, maio e junho foram encontradas apenas 11 páginas digitalizadas no acervo do O Globo; nos meses de julho, agosto e setembro, somou-se um total de 72:

Número de paginas digitalizadas

35

32

30

25 25 20

15 15

11

10

5 5

3 1

0

0

0

0

0

3

2 0

0

1

3 0

0

Mês

454

Fonte: do Autor

No mesmo sentido, segundo dados do Google, o interesse pelo termo “Uber” em buscas feitas no estado do Rio de Janeiro aumentou sensivelmente a partir do final de junho, atingindo o valor máximo na escala do sítio de buscas (100) exatamente na semana de 19/07/2015 a 25/07/201550:

Interesse com o passar do tempo

120 100 80 60 40 20

05/01/2014 02/02/2014 02/03/2014 30/03/2014 27/04/2014 25/05/2014 22/06/2014 20/07/2014 17/08/2014 14/09/2014 12/10/2014 09/11/2014 07/12/2014 04/01/2015 01/02/2015 01/03/2015 29/03/2015 26/04/2015 24/05/2015 21/06/2015 19/07/2015 16/08/2015 13/09/2015 11/10/2015 08/11/2015 06/12/2015

0

Fonte: do Autor, com dados do Google

De fato, as principais matérias da época demonstram como a situação foi alvo de intensa controvérsia nesse período. A título exemplificativo, somente entre julho e setembro, o jornal contou com pelo menos 11 artigos de opinião sobre o tema, todos eles, de uma forma ou de outra, favoráveis aos serviços da start-up e à necessidade de sua regulação.51

50

A pesquisa foi feita com base na ferramenta "Google Trends", utilizando-se do período entre os dias 01/01/2014 e 01/01/2016. Segundo a empresa, os valores do gráfico indicam "interesse de pesquisa relativo ao ponto mais alto no gráfico de uma determinada região em um dado período. Um valor de 100 é o pico de popularidade de um termo. Um valor de 50 significa que o termo teve metade da popularidade. Da mesma forma, uma pontuação de 0 significa que o termo teve menos de 1% da popularidade que o pico" 51 Nesse sentido: RÓNAI, Cora. Tempos Modernos. O Globo. Edição de 02/07/2015, p. 8; DORIA, Pedro. É preciso falar do Uber. O Globo. Edição de 17/07/2015, p. 24; O GLOBO. Editorial: Os limites dos protestos contra o Uber. Edição do dia 19/07/2015; BOUQUET, Cyril. Uber: um sinal dos novos tempos. O Globo. Edição do dia 26/07/2015, p. 19; VENTURA, Zuenir. O Globo. Edição de 29/07/2015, p. 21; RAGAZZO, Carlos e ZVEITER, Flávio. Por que não melhoram os táxis? O Globo. Edição do dia 30/07/2015, p. 19; ROCHA, Carla. Panorama Carioca: Mega, blaster, uber. O Globo. Edição de 01/08/2015, p. 10; O GLOBO. Editorial: Reação Corporativa. O Globo. Edição de 03/08/2015, p. 14; HELAL FILHO, William. Panorama carioca: Escolhas. O Globo. Edição do dia 15/08/2015, p. 13;

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Em defesa do Uber, foram constantes as referências à era da informática, à inevitabilidade das inovações, à necessidade de se garantir o interesse da sociedade, à importância da concorrência no setor e também à ausência de regulação do serviço. Já ao se referir ao táxi, os principais destaques dos artigos estavam nas críticas à baixa qualidade do serviço, ao corporativismo e ao lobby político. Inclusive, o próprio jornal, em 03/08/2015, publicou editorial sobre o tema.52 Nele, além das referências à importância da inovação para a sociedade e até mesmo ao movimento ludista do Século XIX, fez-se duras críticas aos taxistas e ao suposto corporativismo da classe: As reações ao crescimento do Uber revelam dramas antigos da sociedade brasileira. A começar pelo corporativismo, que contamina o debate sobre o assunto, de forma que os interesses de uma categoria específica parecem mais importantes que os da sociedade. É verdade que a livre concorrência pressupõe que todos disputem clientes em condições de igualdade, e os motoristas que operam pelo novo aplicativo não pagam os impostos nem têm obrigações semelhantes às dos taxistas, uma situação que pode ser revista. Embora não tenham condições especiais para comprar veículos. Mas, quando se trata de serviços de transporte, a prioridade deve ser a conveniência do passageiro. Da mesma forma que o corporativismo, a desconfiança em relação à livre iniciativa e a resistência a novas tecnologias alimentam o preconceito contra o Uber. Mas é inútil tentar conter o avanço natural. Na Revolução Industrial, máquinas foram quebradas por operários na vã tentativa de preservar empregos. Isso sem falar no oportunismo de políticos que veem no movimento dos taxistas um meio de conquistar votos de uma categoria com conhecido poder de mobilização

As justificativas para tantos artigos e tantas discussões pode ser explicada pelos vários eventos que aconteceram à época: desde os primeiros protestos organizados pelos taxistas, que chegaram a fechar o trânsito em importantes vias na cidade 53, até mesmo a discussões e agressões envolvendo motoristas de táxi e do Uber.54Em meio a essa animosidade, no entanto, a start-up parecia ganhar ainda mais popularidade, tanto que, no mesmo dia do primeiro protesto (24/07/2015), o aplicativo registrou uma alta de

CINTRA, Marcos. Inútil resistência. O Globo. Edição do dia 13/09/2015, p. 21; PELLEGRINE, Ana. Lei contra as leis. O Globo. Edição do dia 17/09/2015, p. 21 52 O GLOBO. Editorial: Reação Corporativa. O Globo. Edição de 03/08/2015, p. 14 53 BOTTIARI, Elenice et al. A ‘carona’ da polêmica. O Globo. Edição do dia 25/07/2015, p. 9 54 RESENDE, Dayana. Taxista protestam contra ‘carona remunerada’. O Globo. Edição do dia 28/06/2015, p. 31; OLIVEIRA, Eliane; NASCIMENTO, Rafael. Uber não é ilegal, diz comissão da OAB-RJ. O Globo. Edição do dia 07/08/2015, p. 13

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20 vezes no número de cadastros, graças à oferta de bônus oferecidos em resposta aos protestos. No entanto, enquanto o jornal notadamente apoiava o Uber, inclusive passando a realizar diversas matérias com denúncias à má-qualidade dos serviços de taxis55, à venda ilegal de licenças56 e à alta concentração destas57, as autoridades municipais se posicionavam de forma contrária à empresa, sempre destacando sua ilegalidade e o desinteresse em regulamentá-la, bem como os projetos da prefeitura para melhorar o serviço de táxi.58 Nesse sentido, em artigo do dia 29/07/201559, críticas à postura das autoridades públicas evidenciam até mesmo a participação do Secretário Municipal de Transportes em manifestações: Injustificável foi o gesto de autoridades municipais engajando-se no movimento, como se estivessem em campanha eleitoral - como se estivessem? Sabe-se o quanto o apoio político da categoria é decisivo para candidatos a cargos eletivos. O secretário de Transportes chegou a discursar num carro de som como porta-voz dos manifestantes, vestindo a camisa de militante onde só falou estar escrito "Eu sou taxista". O Uber, no entanto, foi tratado como pirata, "um caso de polícia", como ele disse, indispondo a população contra uma novidade tecnológica bem aceita e sem culpa formada.

Outro movimento interessante à época foi o surgimento de diversos pareceres defendendo a legalidade dos serviços do Uber, conforme atesta matéria do dia 07/08/201560. De acordo com o apurado, além da OAB do Rio de Janeiro – noticiada na matéria em questão –, outros pareceres também foram encontrados, como o elaborado pela OAB-DF e o realizado por Daniel Sarmento a pedido da empresa ainda em julho de 2015.61 Nesse último, basicamente se defende a diferença entre os serviços prestados pelo Uber e os tradicionalmente exercidos pelos taxistas e, portanto, a legalidade da atividade em análise.

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BRISO, Caio Barretto. Problemas nada passageiros. O Globo. Edição do dia 30/07/2015, p. 12 BRISO, Caio Barreto. Autoomia para burlar. O Globo. Edição do dia 17/09/2015, p. 13 57 MAGALHÃES, Luiz Ernestro. Os reis da praça. O Globo. Edição do dia 14/08/2015, p. 10 58 FRANÇA, Renan. Prefeitura diz que não regulamenta Uber porque serviço é ilegal. O Globo. Edição de 30/06/2015, p. 8 59 VENTURA, Zuenir. Vai de táxi ou de Uber.O Globo. 29/07/2015, p. 21 60 OLIVEIRA, Eliane; NASCIMENTO, Rafael. Uber não é ilegal, diz comissão da OAB-RJ. O Globo. Edição do dia 07/08/2015, p. 13 61 SARMENTO, Daniel. Parecer: Ordem Constitucional Econômica, Liberdae e Transporte Individual de Passageiros: O “caso Uber”. Rio de Janeiro: 10/07/2015. Disponível em: 56

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Mesmo em meio a esse debate e às constantes afirmativas por parte da prefeitura de que se tratava de serviço ilegal, o avanço do Uber parece não ter sido abalado, tanto que, em 21/08/201562, noticiou-se o lançamento de sua versão mais barata, o UberX, sob reclamações ainda mais incisivas por parte dos taxistas. Apenas uma semana antes disso, em 15/08/2015, um motorista individual obteve importante decisão do Poder Judiciário local em Mandado de Segurança manejado para impedir a prática, pelo Poder Público, de “quaisquer atos que restrinjam ou impossibilitem que o impetrante exerça a atividade de transporte remunerado individual de passageiros”.63 A decisão, noticiada na edição do dia do jornal64, destacou a legalidade do serviço sob diversos aspectos, dando expresso destaque à superioridade do serviço frente ao tradicionalmente prestado pelos taxistas. No que tange aos pontos levantados pela pesquisa, o magistrado, em primeiro lugar, defendeu que se tratava de serviço diverso do táxi, caracterizando-o “como transporte privado individual de passageiros”: A única interpretação compatível com a Constituição consiste em extrair do art. 2º da Lei Federal nº 12.468/2011 o mero reconhecimento de que determinados profissionais, os taxistas, atuam sob credenciamento do Poder Público, com todas as benesses que essa condição oferece (lastro oficial, obtenção de clientela em logradouros públicos, utilização de faixas exclusivas, desonerações tributárias etc.) – e, por isso, são caracterizados como transportadores públicos de passageiros. Contudo, deve ser resguardada a coexistência de atuação no mercado entre esses profissionais e aqueles que atuam sem os benefícios conferidos pela chancela do Governo, exercendo o transporte privado individual de passageiros.

Em seguida, apesar de não citar o artigo 231 do CTB, a decisão utilizou-se de argumento que certamente afastaria a aplicação do referido artigo nos moldes da jurisprudência do STJ, tendo em vista que destacou a inconstitucionalidade de se exigir autorização ou concessão do poder público para se realizar qualquer serviço remunerado de transporte de passageiros: É também manifestamente inconstitucional e ilegal o Decreto Municipal nº 40.518/2015 do Rio de Janeiro, que “dispõe sobre as penalidades para o transporte remunerado irregular de passageiros no âmbito municipal”. O art. 1º do aludido ato normativo do Executivo fixa punições (multa e apreensão do veículo) para todos aqueles que 62

RONAI, Cora. Uber lança hoje serviço 30% mais barato. O Globo. Edição do dia 21/08/2015, p. 13. Decisão Liminar, Processo nº 0346273-34.2015.8.19.0001, decidia em 14/08/2015 64 O GLOBO. Motorista do Uber consegue liminar para exercer atividade. O Globo. Edição do dia 15/08/2015, p. 13 63

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“estiverem explorando a atividade de transporte de passageiros sem a prévia autorização, concessão ou permissão do Poder Público Municipal”. Ao fazê-lo, cria odiosa restrição de mercado, já que sabidamente não há emissão de “autorização, concessão ou permissão” para qualquer indivíduo interessado em trabalhar no ramo. Evidente, por conseguinte, a ofensa aos princípios da livre iniciativa, da liberdade profissional e da livre concorrência (artigos 1º, IV, 5º, XIII, e 170, caput e IV, da Constituição)[...] Na hipótese, não há qualquer “inviabilidade técnica ou econômica” que justifique a exclusividade dos autorizatários, concessionários ou permissionários na prestação do serviço, pelo que o ato do Prefeito Municipal descumpre manifestamente o preceito previsto no art. 16 da Lei Federal nº 8.987/95, dispositivo que assegura a atuação concorrente da iniciativa privada mesmo nos casos de delegação de serviços públicos. Quanto ao transporte individual de passageiros, que sequer caracteriza serviço público, a exclusividade é ainda mais aviltante às liberdades asseguradas constitucionalmente.

A posição do Tribunal, no entanto, não impediu a continuação da votação de projetos que buscavam proibir o Uber. Nesse sentido, foi noticiado a aprovação de um projeto na Câmara dos Vereadores por 42 votos a 1(edição do dia 26/08/201565) e a continuidade dos debates no âmbito da Assembleia do Estado (edição do dia 10/09/201566). Finalmente, em 30/09/2015, o primeiro desses projetos foi sancionado pelo prefeito Eduardo Paes, muito embora pesquisas publicadas pelo jornal em 27/09/2010 destacassem que 60% dos cariocas achavam que o serviço contribuía para a cidade.67 A proibição, no entanto, não durou muito tempo, pois já em 10/01/2015 uma liminar decidida em Mandado de Segurança impetrado pelo Uber declarou a inconstitucionalidade incidental do referido artigo e, ainda, impediu que qualquer órgão do município obstasse o funcionamento da empresa e os serviços desempenhados pelos “motoristas parceiros”.68 A decisão, igualmente noticiada pelo jornal69, possuía fundamentação bastante semelhante a liminar anteriormente citada e, assim, determinou que as autoridades:

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MAGALHÃES, Luiz Ernesto. Vereadores aprovam projeto que cria punição para o Uber. O Globo. Edição do dia 26/08/2015, p. 13 66 SCHIMIDT, Gustavo. De olho em regulação, Uber propõe pagar taxa. O Globo. Edição do dia 10/09/2015, p. 12. 67 O GLOBO. Vai de táxi ou de Uber? O Globo. Edição do dia 27/09/2015, p. 14 68 Decisão Liminar, Processo nº 0406585-73.2015.8.19.0001. 69 BOERE, Natália; BRISO, Caio Barretto. De carona com a Justiça. O Globo. Edição do dia 10/10/2015, p. 11

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se abstenham de praticar quaisquer atos que restrinjam ou impossibilitem o exercício da atividade econômica dos impetrantes de conexão de provedores e usuários de serviços de transporte individual privado e, em consequência, que obstem a utilização da plataforma tecnológica pelos motoristas "parceiros" na atividade de transporte individual privado remunerado

A partir dessa decisão, as atividades do Uber continuaram normalmente, encontrando-se atualmente em discussão projetos de lei sobre o tema.

IV.5 Reflexões sobre o caso

Conforme foi relatado, percebe-se que o Uber ingressou no Rio de Janeiro em um contexto claramente não receptivo às suas atividades, com diversos casos de ações das autoridades públicas no sentido de criminalizar, multar e repreender agentes que desempenhavam atividades bastantes similares às da start-up, ainda que de uma forma mais rudimentar. Não obstante a interpretação consagrada anteriormente, a pesquisa mostra que era sim possível a defesa da legalidade dos serviços do Uber, ainda que isso dependesse de uma possível declaração de inconstitucionalidade ou de leitura conforme da norma, nos termos das decisões judiciais citadas. Isso revela que o conflito entre o Uber e os taxistas ocorreu no âmbito da interpretação e aplicação da própria norma, conforme já veiculado no Tópico 3 do presente artigo. No entanto, apesar de – na linha da teoria de Fligstein – os advogados, a OAB, os pareceres elaborados e, ao final, o judiciário terem desempenhado função-chave para a permanência da empresa no Rio de Janeiro, a pesquisa revela que essa disputa no campo do Direito vai muito além de um árido debate por um possível “real sentido” da norma, ou algo recluso ao ambiente estritamente jurídico. Na realidade, é patente que esse movimento de reinterpretação depende, em grande medida, de uma elevada força política, poder esse que, certamente, as centrais de táxi “pirata” não possuíam quando eram criminalizadas. Isso pode ser percebido ao se verificar que, antes mesmo da entrada do Uber, os taxistas já faziam pressão para que as autoridades públicas realizassem operações contra esses supostos ilícitos, conforme se apurou no caso do Grupo do Clóvis. Inclusive, a força do setor, além de constantemente relatada nos artigos de jornal, também se mostra 460

patente ao se verificar que a introdução do Uber na cidade do Rio de Janeiro contou com reação contrária imediata do legislativo local, tendo sido aprovada lei por ampla maioria mesmo em um contexto em que grande parte da população era favorável à start-up. Por outro lado, o Uber, apesar de transparecer que apenas passou a exercer seus serviços de forma natural em um setor não regulado, em meio a um vácuo, desenvolveu uma clara estratégia para sua introdução no mercado e para se opor à forte pressão do setor de táxi, mesclando o fato de ser um serviço claramente superior a argumentos jurídicos engenhosos e marketing, desenvolvendo intensa pressão popular e, em concreto, um movimento de reinterpretação das normas aplicáveis. Nesse sentido, percebe-se que uso do nome “carona”, a sua apresentação como “serviço de tecnologia” e a figura dos motoristas particulares individuais – parceiros – não são mero acaso e visavam, justamente, a convencer as autoridades e, especialmente, a própria população da legitimidade e regularidade de seus serviços. É sintomático, nesse ponto, que a empresa, logo em seu primeiro pronunciamento ao jornal, tenha destacado que seu serviço era mais caro e diferenciado, remontando à figura do motorista particular (executivo), a qual, apesar de desempenhar serviço até então restrito a uma pequena parcela da população, tinha sua legitimidade reconhecida pelo grande público, conforme expresso em alguns artigos de opinião citados. Nesse último ponto, percebe-se também uma possível estratégia da empresa de ingressar no mercado com o seu melhor serviço e, somente depois, trazer sua versão mais barata, o UberX. Afinal, esta, além de ser mais próxima do táxi, levantaria reações contrárias mais intensas, o que seria desinteressante num momento em que ninguém conhecia o serviço da empresa e em que, portanto, não tinha amplo apoio. A propósito, é de se destacar que atualmente a empresa tem ingressado no mercado de diversas cidades, como Goiânia e Campinas, apenas com o UberX, o que corrobora com a argumentação de que, no início de tais serviços no país, o elemento fundamental para a empresa era o de não ser confundida como uma espécie de táxi, mas interpretada como um serviço personalizado e diferenciado. Talvez por isso, a empresa tenha se mantido por tanto tempo sem ser alvo de qualquer tipo de operação concreta, fato esse que contrasta com os casos anteriormente citados, em que verdadeiras operações policiais eram montadas. No ponto, vale destacar que o argumento de que a fiscalização era difícil, apesar de possivelmente correto, não 461

afasta a possibilidade de se realizar esse tipo de operação. Afinal, o Uber possuía, desde então, sede e representantes no país e poderia ser alvo de alguma ação similar do poder público. Não obstante, apesar da ausência de indícios nesse sentido, não se pode descartar, por outro lado, que isso também se deu porque os serviços do Uber, ao contrário dos casos anteriores, possuem maiores ares de legalidade, são notadamente superiores ao táxi e são oferecidos por uma grande corporação estrangeira. Em suma, não são serviços que revelavam perigo à população, ainda que fossem possivelmente ilícitos, conforme expresso na decisão do Ministério Público por arquivar o processo de investigação. Esses momentos iniciais, vale destacar, pareceram ser os mais relevantes para a entrada do Uber no mercado, pois seria inimaginável uma reação da população e da mídia tão grande quanto a ocorrida a partir de junho de 2015, quando o aplicativo já estava em atividade no país há um ano e os taxistas e as próprias autoridades passaram a tomar atitudes mais incisivas contra o aplicativo. Afinal, as próprias entrevistas veiculadas na mídia no momento de entrada do serviço no país destacavam as possíveis ilegalidades do serviço, o que mostra a baixa probabilidade desse tipo de reação por parte da população. De toda forma, a intensa mobilização social foi claramente relevante, até porque, à essa época, importantes defesas ao aplicativo surgiam de órgãos como a OAB do Rio de Janeiro e de juristas, que, por exemplo, assinavam artigos publicados no jornal em análise. Nesse sentido, não é demais pensar que, com grande probabilidade, esse debate também passou a ser levantado com a mesma intensidade nas universidades de Direito, em grupos de pesquisa, etc. Obviamente, o elemento tecnológico foi fundamental em todo esse debate, mas, talvez, não da forma que é normalmente levada por alguns artigos. Isso porque os casos anteriormente citados, bem como as posições do STJ e de diversos órgãos públicos não permitem concluir que simplesmente se cuidava de serviço completamente novo, que emergiu em meio a uma lacuna nunca explorada. De fato, como relatado, se há uma lacuna clara atualmente, esta provavelmente decorreu de um grande esforço da empresa e dos demais atores sociais pela reinterpretação da norma, sem a qual o serviço provavelmente estaria condenado ao fracasso. No entanto, não há como negar que a tecnologia representou sim um importante elemento a esse debate, tendo em vista dois motivos principais. O primeiro 462

deles – e o mais óbvio – foi o de ter possibilitado serviço muito superior, fato esse que certamente foi responsável pela rápida confiança adquirida pelo aplicativo junto à população e até mesmo a alguns órgãos do Estado, como o Ministério Público. O outro motivo está no importante elemento argumentativo em que se tornou a tecnologia, tanto nos debates públicos quanto nos acadêmicos. Em todos eles e até mesmo nas decisões judicias contrárias ao Uber – como no caso da Justiça de São Paulo –, a referência à importância das inovações e a necessidade de adequação das instituições jurídicas a elas foi uma verdadeira constante. Assim, ainda que seja difícil afirmar que o Uber tenha criado algo verdadeiramente novo, inédito, e, portanto, não regulado, é inegável que a tecnologia, aliada a um intenso esforço estratégico da empresa, serviu e foi fundamental para um movimento de conformação e reinterpretação do Direito e, assim, à sua caracterização como novo. Logo, é possível concluir que o Uber, ao contrário do normalmente afirmado, não explorou simplesmente um ramo da economia que se encontrava em um vácuo legal. Pelo contrário, ele, de fato, utilizou-se de uma forma diferente de lobby, que se vale do sistema legal e de várias de suas instâncias para provocar verdadeiras mudanças na interpretação e no enforcement das normas.

V.CONCLUSÃO

A partir da análise realizada acima, foi possível levantar importantes reflexões acerca da introdução dos chamados novos serviços em setores tradicionalmente regulados e, em especial, de como se constrói o conceito de novo nesses mercados. Em primeiro lugar, verificou-se que as discussões atuais sobre o tema tendem a se centrar em ramos específicos da economia (transporte, hotelaria, por exemplo), buscando normalmente respostas mais imediatas, isto é, se o serviço é ou não regulado pela legislação atual. Apesar, é claro, da inegável importância desses artigos, reconhece-se que muitos deles acabam por encobrir a complexidade do tema, reduzindo-o ora ao simples argumento do ineditismo dos serviços e da existência de lacunas na lei, ora apenas ao lobby das empresas de tecnologia.

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Não obstante, algumas teorias, em especial a do Empreendedorismo Evasivo, trazem importantes aportes a esse debate, principalmente ao conjugar a inovação tecnológica à necessidade de uma espécie de lobby para até mesmo se “criar” lacunas e imprecisões na lei. Apesar da ausência de maiores comentários sobre o que seria esse lobby na referida teoria, a presente pesquisa buscou nos ensinamentos de Niel Fligstein e de Milhoupt e Pistor base teórica para entendê-lo e analisá-lo no caso da introdução do Uber no Rio de Janeiro. Nesse sentido, foi possível concluir, após o estudo do caso, que, de fato, a caracterização do serviço como novo é elemento fundamental ao sucesso das empresas que exploram tais atividades e que, portanto, é um conceito sujeito a uma ampla disputa com os agentes econômicos já consolidados no mercado. Justamente por isso, a visão de que tais serviços exploram quase que por excelência um novo setor não regulado é inadequada, pois muitas vezes encobrem uma série de relações e conflitos. O caso do Uber, inclusive, demonstra que – antes de se explorar uma lacuna – muitas vezes essas start-ups deverão verdadeiramente criar essas fissuras na norma. Tal processo, no entanto, parece não se cingir a aspectos argumentativos e técnicos, mas exige uma relevante capacidade de mobilização social e acadêmica, de modo a criar um ambiente propício à reinterpretação e readequação da norma. Assim, percebe-se que o lobby referido acima, de fato, desenvolve-se no âmbito do sistema legal, que inclui, como afirmado por Fligstein, cortes, advogados, escolas de direito, etc. No entanto, pelo menos no caso do Uber, essa atuação parece possuir conotação ampla e envolve – além de ações judiciais, uso de advogados e pareceres pagos – uma postura estratégica na apresentação do serviço, bem como no marketing e nos debates públicos sobre o tema. Isso, principalmente nos momentos iniciais da atividade, quando sua presença ainda não está consolidada. Nesse sentido, é também possível concluir que a caracterização de um serviço como novo depende muito mais da exploração argumentativa de possíveis inconsistências das normas e da forte atuação política e estratégica, que propriamente do quão revolucionário ele é ou não. A tecnologia, por si só, claramente não é suficiente.

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Por outro lado, é digno de nota que atualmente as novas tecnologias possuem um poder argumentativo incontestável, bem como que sua capacidade de mobilização social é inegável e, por isso, não deixam de ser elementos centrais nesse debate.

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