Tecnologias didáticas digitais no ensino de Língua Portuguesa e Lingüística Aplicada: algumas reflexões 1

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Tecnologias didáticas digitais no ensino de Língua Portuguesa e Lingüística Aplicada: algumas reflexões1 Ynah de Souza Nascimento [...] Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. [...] In: Rosa, Guimarães. A terceira margem do rio. p.32 1. Paradigma científico e estudos lingüísticos na década de 70 Fiz Faculdade de Letras- Português/Literaturas Brasileira e Portuguesa na década de setenta, entre os anos de 1974 e 1979. Lembro bem das disciplinas do primeiro ano da faculdade de Letras na UFRJ – Português, Latim, Grego, Língua estrangeira instrumental, Teoria Literária e Lingüística. Foi uma surpresa descobrir que havia uma disciplina cujo objeto de análise era a língua. Até então, tudo o que eu havia ouvido de estudos tinham como lugar de análise as aulas de Gramática. (Quer dizer, isso se se puder chamar de “análise” as aulas de gramática em que o professor Abrãao usava os versos de Camões para exercitar sintaxe...) Foi nessas aulas de Lingüística que descobri muitas coisas, inclusive a existência da GGT – Gramática Gerativo-Transformacional – e de seu criador, Noam Chomsky. Na época, o que havia de mais inovador na área. O professor Humberto Peixoto levava-nos à loucura com aqueles esquemas de transformação da estrutura superficial das frases para a estrutura profunda... Passávamos horas naqueles exercícios... e não importavam as críticas de alguns alunos da turma, mais preocupados com o caráter social da linguagem, da língua e do ensino de língua portuguesa. Humberto afirmava que não era função da lingüística fornecer ajuda nessa área... “isso vocês vão ver quando

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Trabalho final apresentado à professora Roxane Rojo na disciplina “Introdução à lingüística aplicada”, programa de Pós-graduação em LINGÜÍSTICA Aplicada do IEL, Unicamp, primeiro semestre de 2007.

estiverem fazendo as disciplinas pedagógicas na Faculdade de Educação”... (o que não aconteceu...) Era como se o mundo real da linguagem não existisse. Hoje, analisando a minha formação, vejo que teria sido mais simples entender todos aqueles conteúdos se os professores tivessem situado o objeto de estudo em seu paradigma científico da época. Assim, eu não teria levado tanto tempo para entender que a orientação estruturalista - e saussuriana – que norteava as pesquisas buscava garantir a cientificidade dos estudos lingüísticos a partir do modelo de racionalidade surgido a partir da revolução cientifica do século XVI e desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. (Santos: 2006: 21) Segundo

esse

modelo, o

conhecimento

científico avança pela

observação descomprometida e livre, sistemática e tanto quanto possível rigorosa dos fenômenos naturais. Nesse paradigma, o que não é quantificável é cientificamente irrelevante, por isso, as qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas – em seu lugar passam a valer as quantidades em que eventualmente esse objeto se pode traduzir (Santos, 2006:27). Além disso, diante da impossibilidade de se compreender a complexidade do mundo, ao cientista cabe dividir e classificar para só depois determinar relações sistemáticas entre o que se separou. Assim, o objeto a ser analisado deve ser isolado das condições iniciais relevantes para que o resultado se produza independentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condições iniciais. (Santos, 2006). Quando compreendi isso, entendi também as aulas de gramática do professor Abrãao (e de outros com os quais convivi na minha estrada acadêmica).

Entendi, também, a distribuição dos conteúdos da gramática

tradicional: partir das partes menores, como os fonemas (fonética e fonologia), passando pela organização destes em palavras (morfologia) e em frases (sintaxe); a língua na sua totalidade (literária escrita, diga-se de passagem), estava no final da gramática, em um apêndice, onde estudávamos os recursos estilísticos... (“Iracema, a virgem dos lábios de mel...” o exemplo clássico de metáfora). Sim, eu entendi: dividir para compreender melhor... Mas levei um tempo muito grande para chegar lá...

2. O mundo contemporâneo ou “Ambulo ergo sum2”... Muitas coisas mudaram no mundo nessas trinta décadas como resultado,

principalmente,

da

intensificação

dramática

das

interações

transnacionais, e conseqüente ruptura em relação às formas de interações anteriores (Santos, 2005). Esse fenômeno multifacetado – globalização ou, como prefere Santos, “globalizações” - acaba interligando de modo complexo as dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas da sociedade, ao combinar a universalização e a eliminação de fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro (Santos, 2005: 6). Vários são os efeitos desse processo de globalização. As fronteiras – políticas, econômicas, culturais – se diluem porque as distâncias espaciais – sejam elas geográficas, culturais ou informacionais- e as distâncias temporais – fruto de uma quase instantaneidade - ficaram diminuídas. Ao mesmo tempo em que há uma universalização e as fronteiras nacionais caem (globalização ou coligação hegemônica), a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo surgem (globalização ou coligação contra-hegemônica) (Santos, 2005: 26). 3 Que efeitos essas mudanças trouxeram para o cenário da Lingüística Aplicada no Brasil? 2.1 - Lingüística Aplicada no Brasil: um pouco de história 2

Frase de Pierre Gassendi (1592-1655), filósofo, cientista e matemático francês, que tratou de uma

infinidade de assuntos. Opunha-se à filosofia cartesiana e propunha a construção de uma filosofia atomista, baseada nas leis do movimento, de uma ética baseada na inclinação natural do prazer, esforçando-se para demonstrar que todas as idéias vêm dos sentidos. Para ele, a ciência deveria voltarse para a realidade dos fenômenos. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_Gassendi, acessado em 30.08.2007. 3

Há movimentos que podem ser melhor compreendidos a partir dessa idéia de coligação contra-hegemônica. O movimento “slowfood”, por exemplo: “Somos escravizados pela rapidez e sucumbimos todos ao mesmo vírus insidioso: Fast Life, que destrói os nossos hábitos, penetra na privacidade dos nossos lares e nos obriga a comer Fast Foods” http://www.slowfood.com/about_us/img_sito/pdf/Companion_POR.pdf, acessado em 30.08.2007.

Na década de 50, há dois marcos importantes para entendermos os estudos da LA: em 1956, a abertura da Escola de Lingüística Aplicada da Universidade de Edinburgo e, em 1959, a criação do Centro de Lingüística Aplicada nos Estados Unidos (Grabe, 2002). Nessa época, ainda segundo o autor, o lingüista aplicado poderia ser chamado de aplicador de saberes, na medida em que o termo refletia insights de lingüistas com abordagens estruturais e funcionais que poderiam ser diretamente aplicados ao ensino de uma segunda língua e da língua materna. Essa fase “aplicacionista” (Signorini, 1998) pode ser explicada a partir do paradigma estrutural da época que privilegiava o sincrônico sobre o diacrônico, as relações estruturais internas sobre a internas. E, além disso, adotava uma dicotomia entre o indivíduo e a sociedade, desconsiderando a importância das relações entre o poder e a cultura. Assim, fazer LA naquela época era fazer pesquisas desvinculadas das questões históricas, sociais, culturais ou políticas. Na década de 60, a LA toma novos rumos na busca por novos pólos de estudo. Em 1964, houve a fundação da Associação Internacional de Lingüística Aplicada (AILA); em 1966, da Associação Britânica de Lingüística Aplicada (BAAL); e, em 1967, do TESOL Quartely. O estabelecimento do Centro de Lingüística Aplicada em São Paulo representa em março de 1966 é um primeiro passo na direção da entrada formal da disciplina em solo brasileiro: em 1970, é fundado na PUC-SP o primeiro programa de Pós-Graduação stricto-sensu em Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas (LAEL), reconhecido como centro de excelência pelo CNPq em 1971 e credenciado, em 1973, pelo Conselho Federal de Educação. É importante, também, registrar que, em janeiro de 1969, fundou-se em São Paulo a ABRALIN – Associação Brasileira de Lingüística – em cujo quadro de sócios estavam vários lingüistas aplicados. Apenas na década de 80, as fronteiras da LA começaram a se expandir. Ou, nas palavras de Rojo (1999), os lingüistas aplicados deixaram de lado sua fidelidade aos princípios básicos do positivismo e do estruturalismo – e uma visão de linguagem a-política e ahistórica. Muito dessa expansão aconteceu graças aos trabalhos publicados ao longo dos dez primeiros anos do Journal of Applied Linguistics e do Annual Review of Applied Linguistics (ARAL) fundado

em 1980. As pesquisas começaram a tratar de questões e problemas de linguagem à medida que elas ocorriam no mundo real (Grabe:2000). E, graças a esse foco de pesquisa, o lingüista aplicado estendeu as fronteiras de seus estudos e passou a englobar questões de política e planejamento educacional; uso

da

linguagem

em

contextos

profissionais;

tradução;

lexicografia;

multilingualismo; linguagem e tecnologia; e corpus lingüístico. No entanto, ainda nessa época, a LA era olhada como dependente da Lingüística, como uma aplicação de sucessivas teorias ao estudo de contextos de uso, um mero consumo de aplicação dos estudos lingüísticos ao ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras e língua materna. Nesse contexto, a LA ocupava uma posição subserviente, sem foro próprio para o desenvolvimento de pesquisa e de teorização. Uma vocação aplicacionista – talvez motivada pelas necessidades urgentes de solucionar problemas, principalmente na área de educação em um país pobre como o Brasil - pode ainda ser encontrada, hoje, mesmo em programas de pós-graduação em Lingüística. É interessante notar que mesmo um programa de pós-graduação que não oferece pós graduação em LA, como é o caso do da UFPE, acolhe em seu bojo uma linha de pesquisa em Lingüística, com esse perfil “aplicacionista”: Linguagem, tecnologia e ensino - Estudos da linguagem e de sua relação com o ensino-aprendizagem de línguas (materna, estrangeira, segunda língua, indígenas) mediados por recursos tecnológicos, impressos, eletrônicos, digitais e por recursos didáticos tradicionais, contemplando-se também comunidades especiais. Vários trabalhos recentes4 em LA apontam que o pensar e o fazer do lingüista aplicado brasileiro têm mudado substancialmente nos anos recentes. Mudanças que não impedem a sedimentação das práticas de pesquisa, mas acabam, de uma certa maneira, abrindo discussões a respeito do que, afinal, caracteriza o interesse primário (Eversen, 1996) dessa área de conhecimento. 4

Ver, em especial, as coletâneas organizadas por Signorini & Cavalcanti (orgs) (1998) e Moita-Lopes (org) (2006).

Rojo (s/d) procura definir interesse primário a partir da análise dos títulos dos nos trabalhos apresentados no 16º InPLA – Intercâmbio de Pesquisas em LA – neste ano de 2007. Segundo ela, 39% (211 títulos) voltam-se para aplicações, 187 para processos que são objetos e interesses de pesquisa clássicos ou um pouco menos clássicos no campo da educação lingüística, e outros 147 se voltam para objetos e interesses de pesquisa bastante inovadores no campo aplicado. Esse

resultado

ratifica

a

existência,

hoje,

de

um

movimento

contemporâneo da LA em ampliar suas fronteiras teóricas e metodológicas na busca pela solução de problemas. Assim, não satisfeita em adotar uma visão interdisciplinar multifacetada do objeto, a LA passa a buscar a reconstituição do objeto de investigação em campo próprio, buscando não destruir as teias de relações que o constituem como objeto complexo. Essa nova exigência faz com que a LA construa um olhar novo e original sobre os objetos, a partir de teorias e métodos próprios. (Rojo, s/d) A análise comparativa de dois sumários da revista “Trabalhos em Lingüística Aplicada”, separados no tempo por trinta anos, não esgota essa discussão, mas pode ratificar a afirmação de Rojo. Trabalhos em Lingüística Aplicada – no. 9, 1º semestre de 1987 Carlos Franchi – Criatividade e gramática Angela B. Kleiman – Aprendendo palavras, fazendo sentido: o ensino de vocabulário nas primeiras séries NOTAS, RESENHAS E COMENTÁRIOS Terezinha Machado Maher – O adjetivo... quem diria? Apontamentos para um trabalho em sala de aula Ynah de Souza Nascimento Abejdid – E os alunos gostam de ler e de escrever José Carlos Paes de Almeida Filho – Luft, Celso Pedro. Língua e Liberdade

John Robert Schmitz – Perini, Mario A. Para uma nova gramática do Português. Trabalhos em Lingüística Aplicada – no 45 – 2007 APRESENTAÇÃO ARTIGOS Vanderlei José Zacchi – Discursos da globalização nas vozes de professores de língua inglesa. Rosely Perez Xavier & Everlaine da Luz Weber Urio – O professor de inglês e o livro didático: que relação é essa? Daniel Fernando Rodrigues – Um olhar crítico sobre o ensino de vocabulário em contextos de inglês como língua estrangeira. Rosane

Rocha

Pessoa



Reflexão

interativa:

desvendando

e

transformando teorias práticas sobre os ensino de inglês na escola pública. Marília Oliveira Vasques Callegari – Reflexões sobre o modelo de aquisição de segundas línguas de Stephen Krashen: uma ponte entre teoria e prática em sala de aula. Laura Miccoli Freudenberger & Marília dos Santos Lima – A correção de erros como co-construção de conhecimentos na aula de Língua Estrangeira (inglês). Cosme Batista dos Santos – Ensinar não é empurrar o conteúdo de goela a baixo: a construção da definição da pedagogia progressista pelo alfabetizador em formação. Flaviane Faria Carvalho & Maria Carmem Aires Gomes – Desvendando as implicações político-ideológicas na construção discursivo-textual do Jornal Nacional.

Na década de 80, período “aplicacionista” da LA, podemos constatar que a preocupação era fornecer elementos para facilitar a atividade pedagógica de ensino/aprendizagem de língua através da composição de uma gramática formal e pedagógica com base em diferentes teorias lingüísticas e psicológicas (Rojo, s/d) É o que propõe Franchi no seu artigo “Criatividade e gramática” – fornecer uma proposta pedagógica alternativa e eficiente para as atividades de ensino/aprendizagem da gramática. A preocupação com o pedagógico também move as propostas didáticas do tratamento do vocabulário explicitadas no artigo de Kleiman: tomando por base estudos da cognição, propõe em seu artigo “Aprendendo palavras, fazendo sentido: o ensino de vocabulário nas primeiras séries” que o vocabulário seja tratado pedagogicamente a partir de sua dimensão discursiva. O sumário da revista, trinta anos depois, comprova que houve tanto uma mudança social quanto no perfil da LA, voltada agora para objetos complexos, como os textos e discursos em sua circulação social, com todas as implicações que isso possa representar. “As vozes da

globalização no discurso dos

professores” e “as implicações político-ideológicas na construção discursiva de um telejornal do Jornal Nacional” – temas do primeiro e do último artigo – são evidências disso. Parece que a LA de agora não se preocupa mais em transpor objetos ou problemas já constituídos por uma tradição disciplinar de referência e segundo o aparelho teórico-metodológico dessa tradição, como podemos constatar a partir da leitura do sumário da TLA de 1987. Vai em busca da criação de novos conceitos e novas alternativas metodológicas a partir e em função de uma redefinição do objeto de estudo, considerado no seu espaço social, produzido a serviço de uma nova correlação de forças, e dentro de uma ética de impacto social. Caminho para favorecer uma coligação contrahegemônica. 2.2 – Tecnologias digitais na escola como objeto da LA As novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TCIs) digitais, ao permitirem a reorganização e transnacionalização da difusão de informações e discursos, podem funcionar como arma básica na dissolução das fronteiras das nações. Essas tecnologias se configuraram como mais democráticas que as

analógicas principalmente pelo seu caráter interativo e ainda sem muito controle. Na rede digital, todo mundo pode ter voz através das diferentes possibilidades interativas – blogs, Orkut, fotologs – podem criar suas comunidades,

interagir

de

maneira

síncrona

ou

assíncrona.

(Rojo,

apontamentos de aula, s/d) Essas características sustentam a afirmação da autora de que essas tecnologias digitais funcionam – junto com a escola – como uma das armas a favor da construção da coligação contra-hegemônica. Ainda segundo ela, para entender melhor como funcionam essas novas tecnologias no espaço escolar é necessário avaliar, do ponto de vista teórico e educacional, esse novo modo de produção/recepção/circulação dos textos/discursos que emerge da introdução dessas tecnologias. A introdução dessas novas tecnologias na escola vai obrigar o pesquisador a analisar as mudanças geradas a partir dessa introdução. Uma delas é que, ao disponibilizar novos recursos expressivos (Braga, 2003: 65), as TICs afetam as formas como entendemos e experienciamos o letramento (Braga e Busnardo, 2004) e acaba fazendo com que os atos de ler e escrever, fundamentais nas interações cotidianas, fiquem ainda mais complexos, e exijam um novo tipo de letramento, o digital. A inscrição do texto eletrônico na tela cria uma nova distribuição, uma nova organização, uma nova estruturação do texto e outras características que justificam a afirmação de Chartier(1999:13) de que a revolução do livro eletrônico é uma revolução nas estruturas do suporte material do texto escrito assim como nas maneiras de ler. No entanto, embora poderosas, isoladamente, essas tecnologias não podem ser responsabilizadas pelas alterações nem determinações de novas formas de práticas letradas. É a interação de fatores sociais, econômicos e políticos que acaba determinando novas formas de práticas letradas (Warschauer, 1999, apud Braga, 2004; Braga, 2004). Ou, nas palavras de Chartier: o historiador diante da revolução eletrônica deve sustentar um discurso que apreenda em conjunto, mas cada um em seu lugar, todos os

atores e todos os processos que fazem com que um texto se torne livro, seja qual for a sua forma. (Chartier, 1999:18). Esse “objeto tecnológico”, complexo e híbrido5 (Latour, 1994), não pode ser, sob investigação, transformado – com a justificativa de se manter a integridade do aparato conceitual e teórico-metodológico - em um resíduo6. Nas últimas décadas, esse tratamento residual dado ao objeto de pesquisa, característica da fase aplicacionista da Lingüística Aplicada acaba cedendo espaço – claro que não sem disputas internas e externas - a uma investigação que busca a criação de novos conceitos e novas alternativas teóricometodológicas a partir e em função de uma redefinição dos objetos de estudo. Trata-se, então, de estudar esse objeto – tecnológico, complexo e híbrido – no seu uso situado da linguagem, nas práticas de linguagem em que funciona garantindo a visão da trama, da multiplicidade e da complexidade desse objeto em suas práticas – nas práticas de letramento digital em atividades escolares. 3. LETRAMENTO DIGITAL E LA Uma pesquisa em LA que pretenda analisar esse objeto a partir de sua didatização precisa considerar algumas facetas desse objeto. Uma primeira reflexão que precisa ser feita diz respeito às características bastante peculiares desse material didático hipermidiático, que rompe com a linearidade característica do texto escrito: a integração de diferentes mídias amplia as possibilidades de leitura e construção de significados, ampliando as opções de navegabilidade para o leitor. Ao mesmo tempo, para que esse leitor construa significados precisa ser mais ativo na construção da coerência e da coesão textual (Braga, 2004). Essas mesmas possibilidades várias de navegação podem complicar a busca de significados por parte do leitor, caso ele tenha pouca experiência em letramento digital (Braga, 2004).

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Latour (1994) considera que o mundo é feito de um “tecido inteiriço das naturezas-culturas”, isto é, os elementos híbridos em que se entrelaçam o mundo dos objetos e o mundo dos sujeitos, agenciados (ou envolvidos) numa mesma trama ou rede através de um fio frágil (apud Signorini, 1998, p.101) 6

Signorini, 1998: 101-103.

Por essa razão, é importante considerar que todo texto, mesmo que pareça apenas fornecer informações, sempre impõe e produz demandas sobre o leitor em relação ao significado, buscando manipular, convencer e controlar os significados produzidos pelo leitor a cada escala textual, incluindo suas ações para operar a tecnologia do meio (Lemke, 2002). Além disso, quem pretende analisar a didatização desse objeto precisa ter clareza do papel retórico e ideológico que essas diferentes possibilidades de construção de significados

podem desempenhar e de que modo tais

possibilidades afetam, na escola, o uso desse material hipermidiático, que pode, graças a suas características particulares, funcionar como uma arma contra-hegemônica. Além disso, deve, também, considerar a função da linguagem visual na construção desses significados (Kress e van Leeuwen, 1996). A disposição dos elementos e a sua relação com os demais objetos empregados em cada página podem alterar totalmente o significado geral de um programa, bem como facilitar ou dificultar a usabilidade dos hipertextos. A produção em hipermídia vai se diferenciar de outros gêneros multimodais tradicionais como jornais e revistas impressos porque conta com recursos das ferramentas e suportes tecnológicos para estabelecer conexões de diferentes naturezas - entre unidades de textos diferentes e entre unidades de texto e elemento visuais. Isto é, cada elemento produz significado na sua relação com os demais elementos empregados, na integração de todos esses elementos no todo e os caminhos para acessá-los. (Lemke, 2002). Características que impedem um tratamento disciplinar ou estritamente lingüístico, convocando abordagens transdisciplinares (Rojo, s/d)

4. LA e PARADIGMA EMERGENTE Não é difícil constatar que a teoria hoje enfrenta dificuldades em encontrar prestigio e autoridade que lhe permitiam legislar sobre a sociedade, a cultura e a natureza, enunciando sistemas globais de explicação do mundo e da sociedade (Santos, 2006: 302). Hoje, a teoria, mais do que um objeto definitivamente associado a uma modernidade em crise, pode ser definida como uma arena em que se jogam as tensões entre os impulsos regulatórios e

emancipatórios, entre as dinâmicas hegemônicas e contra-hegemônicas e entre a globalização e a localização – características da atual fase de transição entre paradigmas. Se antes, o objeto da LA podia ser tratado desparticularizado e deslocalizado, isto é, desterritorizalizado, nessa teoria crítica pós-moderna que se caracteriza pelo seu poder interrogativo e não pelo seu poder legislativo (Santos, 2006: 339) isso não é mais possível. Assim como também não se pode mais confinar a análise à objectividade do conhecimento pela imposição de protocolos de pesquisa pré-definidos de acordo com critérios de validade e confiabilidade consagrando a estrita separação entre sujeito e objeto, facto e opinião, prova e valores, epistemologia e estética, ciência e política (Santos, 2006: 306). Fazer ciência nesse novo paradigma emergente – total e local ao mesmo tempo – implica construir um conhecimento não dualista, que se funda na superação das distinções dicotômicas tão familiares e óbvias (Santos, 2006: 64), através de uma pluralidade metodológica – conseguida através de uma transgressão metodológica (Santos, 2006: 78). No caso específico da LA, fazer ciência nesse novo paradigma emergente implica tanto escolher o objeto de pesquisa quanto o tratamento teórico adequado a esse objeto. Ele precisa apresentar relevância social suficiente para exigir resposta teórica que traga ganhos a práticas sociais e a seus participantes, num sentido ecológico. (Rojo, 2006). É isso que, segundo Rojo, constitui o ponto de partida para que a LA funde seu(s) objeto(s) de investigação e, principalmente, busque configurações teórico-metodológicas próprias, autônomas não só da lingüística inaugural, mas também das outras disciplinas de referência, que serão re-articuladas a partir de um ponto de vista próprio. (Rojo, 2006) No entanto, uma coisa é concordar com essa afirmação, outra é enfrentar os desafios que emergem da prática de pesquisa em LA. Para Santos (2006: 92), nenhum de nós pode neste momento visualizar projetos concretos de investigação que correspondam inteiramente ao paradigma emergente delineado por ele. E isso é assim precisamente por estarmos numa fase de

transição. Como diz o autor: “duvidamos suficientemente do passado para imaginarmos o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para podermos realizar nele o futuro. Estamos divididos, fragmentados. Sabemo-nos a caminho, mas não exatamente onde estamos na jornada”. Talvez estejamos querendo construir, uma terceira margem do rio... As pesquisas a respeito da inserção, no espaço escolar, das novas TICs digitais em situações de interação podem constituir um estimulante desafio teórico-metodológico para a LA. Sua primeira tarefa será compreender como se dá a reinserção desse objeto nas redes de práticas, instrumentos e instituições que lhe dão sentido no mundo social. Na medida em que esse processo de reinserção é compreendido como um mecanismo de neutralização e deslocamento

de parte das reduções impostas pelos aparelhos teórico-

metodológicos das disciplinas de referência (Signorini & Cavalcanti, 1998, p.13) e de criação de novos modos de produção/recepção/circulação dos textos/discursos, os desafios criados pela sua inserção certamente implicarão na discussão do que, na verdade, constitui o objeto de pesquisa da LA. Esse debate pode começar a partir da reflexão de

Marcuschi:

“A

pergunta final é a seguinte: de que novo tipo de lingüística estamos precisando para dar conta de tudo o que as novas tecnologias produzem? Não sei. Mas sei que a lingüística tal como está definida hoje não serve a esses propósitos” (2004: 66)

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAGA, Denise Bértoli. A natureza do hipertexto e suas implicações para a liberdade do leitor e o controle do autor nas interações em ambiente hipermídia. Revista da Anpoll 15, São Paulo, jul/dez 2003, pp 65-85. BRAGA, Denise Bértoli e Busnardo, Joanne. Digital Literacy for autonomous learning; designer problems anda learner choices. In: Snyder, Ilana e Beavis, Catherine (orgs). Doing Literacy Online; teaching, learning, and playing in na eletronic world. New Jersey, Hampton Press, INC, 2004, pp 45-68

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo, Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. EVENSEN, L. S. A Lingüística Aplicada

a partir de um arcabouço com

princípios caracterizadores de disciplinas e transdisciplinas. In: SIGNORINI, I. & M. Cavalcanti (Orgs.) Lingüística Aplicada e transdisciplinaridade. Campinas: Mercado de Letras, 1998 [1996]. pp. 81-90. GRABE, W. Applied Linguistics: An Emerging Discipline for the Twenty-First Century. In: KAPLAN, R.B. (Org.). The Oxford Handbook of Applied Linguistics. Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 3-12. KRESS, G. & VAN LEEUWEN, T. Reading images: The grammar of visual design. London: Routledge, 1996. LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro, ed., 34, 1994. LEMKE, Jay L. Travels in hypermodality. In: Visual Communication 2002; 1; 299, acessado em http://vcj.sagepub.com/cgi/content/abstract/1/3/299 MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais emergentes no context da tecnologia digital. In: Marcuschi, L. A. & Xavier, A. C. dos S. (orgs). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. Rio de Janeiro, Lucerna, 2004. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Por uma lingüística indisciplinar. São Paulo, Parábola, 2006. ROSA, Guimarães. A terceira margem do rio. In: Rosa, G. Primeiras estórias. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1988. ROJO, R.H.R. Perspectivas para os estudos sobre a linguagem na Virada do Milênio: o caso da Lingüística Aplicada. Mesa Redonda. V Seminário de Teses em Andamento. IEL/UNICAMP, 28/10/1999. 1999. ROJO, R. H. R. (s/d) O texto no ensino-aprendizagem de línguas hoje: desafios da contemporaneidade. In: http://www.cchla.ufpb.br/proling/pdf/rojo/rojo_3.pdf, acessado em 30.08.2007. ROJO, R. H. R. Fazer lingüística aplicada em perspectiva sócio-histórica: privação sofrida e leveza de pensamento. In: Moita-Lopes, L. P. da (org). Por uma lingüística aplicada Indisciplinar. São Paulo, Parábola, 2006.

SANTOS, B de Sousa. A globalização e as ciências sociais. São Paulo, Cortez, 2005. SANTOS, B. de Sousa. Um discurso sobre as ciências. São Paulo, Cortez, 2006. SIGNORINI,

I.

&

Cavalcanti,

M.

(Orgs.)

Lingüística

Aplicada

e

transdisciplinaridade. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

6. ANEXO LINHAS DE PESQUISA DA PÓS-GRADUAÇÃO LETRAS/UFPE Área de concentração: Lingüística • Análise sócio-pragmática do discurso Estudo do funcionamento da linguagem, em contextos de uso, investigando os aspectos lingüísticos, discursivos e filosóficos tais como a enunciação, a produção de sentido, os atos de fala e a argumentatividade. • Linguagem, tecnologia e ensino Estudos da linguagem e de sua relação com o ensino-aprendizagem de línguas (materna, estrangeira, segunda língua, indígenas) mediados por recursos tecnológicos, impressos, eletrônicos, digitais e por recursos didáticos tradicionais, contemplando-se também comunidades especiais. • Organização lingüística da produção oral e escrita Investigação da produção discursiva dos pontos de vista etnográfico, cognitivo e semântico-discursivo do texto oral e escrito, envolvendo problemas de organização, desenvolvimento, compreensão, tipologia, morfologia, sintaxe e léxico e fenômenos prosódicos. • Linguagem, trabalho e sociedade Estudos das práticas discursivas em sociedade, dialogando com os aportes teóricos de diversos campos do saber aplicado a domínios midiático, jurídico, literário, artístico, clínico, educacional, de saúde, ciência e tecnologia nas relações sociais de trabalho. • Aspectos estruturais e históricos na descrição de línguas

Descrição histórica e estrutural do português brasileiro e de línguas indígenas, e aspectos interculturais

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