TEIAS MELODRAMÁTICAS EM O BEM E O MAL E ANÁTEMA DE CAMILO CASTELO BRANCO

May 31, 2017 | Autor: Marisa Henriques | Categoria: Portuguese Literature
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TEIAS MELODRAMÁTICAS EM O BEM E O MAL E ANÁTEMA DE CAMILO CASTELO
BRANCO

Marisa Henriques
(Universidade de Coimbra) [1]


Nem carcereiro de carranca melodramática, nem carrasco, nem padecente
debaixo daquele tecto de rocha, entre aquelas paredes, cuja humanidade
daria a um poeta ultra-romântico ensejo de compará-las às lágrimas
congeladas dos centenares de desgraçados que ali choraram no discorrer de
setenta anos que o edifício tem. O que ele viu foi o escritor sentado à
banca do trabalho... [2]

O homem que assim se apresenta sob o tecto da Cadeia da Relação é
também o escritor que conscientemente desdramatiza uma situação de vida,
desbastando a sua prosa memorialística da vegetação rasteira que cobria a
literatura da época e quebrando as expectativas do incauto visitante. Não
se pense, no entanto, que o corte é radical e absoluto. Camilo Castelo
Branco, escritor prolixo e atento à recepção das suas obras, toca com dedo
certeiro no nervo mais sensível, e em voga, do público – o melodrama –
ervando-o de revigorada seiva.
Admoestado pelo seu excesso, este género literário fica também
conhecido como "dramalhão", inflacionando o sufixo o valor conotativo da
palavra. Bem amado por uns e malquisto por outros, o melodrama vive de
abalos emocionais e de clichés, como lembrará Eça de Queirós:


A dificuldade não está em obter os nomes das personagens. Uma acção
também se alcança: há muitas feitas – a filha perdida e depois achada, o
cofre roubado, o fidalgo arruinado, o homem do povo sublime, etc. o difícil
é fazer falar esta gente. Neste lance, o dramaturgo nacional tudo explora e
tudo aproveita: vai, procura, tira aqui, copia ali, arranca frases dos
Miseráveis, gracejos do Sr. Luís de Araújo, discursos do Sr. Fontes ou de
José Estêvão, tratados de Economia Política, pedaços de artigos de fundo,
sermões (muitos sermões!), recorta, cirze, cose, remenda, cola aqueles
pedacinhos à língua de cada personagem, salpica-os de gestos de desespero,
faz esguedelhar os cabelos, ensaia músicas tristes, para os finais de actos
(puxando assim ao sentimento o arco do rabecão), manda levantar o pano – e
repousa na imortalidade.[3]


E se referimos num só sopro posições tão extremes, é porque nelas
encontramos sedimentos do labor literário camiliano, que preza o "chorar e
rir" ao mesmo tempo.
A análise das estruturas melodramáticas na narrativa camiliana não
viola a fiabilidade do método, quando transposto da sua origem genológica
para o romance e para a novela. Aliás, tanto o romance-folhetim como o
melodrama se inserem num movimento de democratização cultural que nem
sempre soube promover o bom gosto.
Na condição de "camaleão romântico" em Anátema, Camilo assume-se como
observador meticuloso e crítico impiedoso, não abrindo mão da "paródia como
forma de executar a necessária antropofagia cultural, aquela que lhe
possibilitasse extrair do modelo em voga o que lhe parecia
conveniente..."[4] Partindo desta ideia, urge então perguntar o que
conviria a Camilo Castelo Branco, autor prático por natureza, e de que
forma se aplicava o melodrama à tessitura da narrativa camiliana.
Tentaremos perceber ainda que vitalidade é reconhecida ao género para
manter um lugar cativo na sua produção e como se combate o fastio provocado
pela repetição do modelo.
Apesar de o melodrama ter uma estrutura simplista, não significa que
seja simples, uma vez que a sua orgânica se faz da concatenação de
elementos diversos, como nos elucida Julia Przybos.[5] Dessa diversidade e
do polimorfismo nos dará conta o autor de O Bem e o Mal e de Anátema, a
partir de notas metanarrativas. Através destes apontamentos à margem,
podemos compreender até onde vão o seu conhecimento e domínio da gramática
do melodrama e alcançar a terrível irrisão que a acomete. Alguns dos seus
romances vivem precisamente de um jogo de negação / aceitação dos elementos
melodramáticos, tornando-se possível encontrar fertilidade num género tão
pouco dotado e sujeito a fácil e rápida erosão.
Se no melodrama, transposto para o tabuado, a cumplicidade entre
espectador e actores tem de funcionar, porque as exigências do género são
baixas e os comportamentos instigados mecânicos (chora-se com lágrimas
fáceis, ri-se de forma desbragada, pactua-se com os bons...), na narrativa
camiliana também se desenha o perfil do leitor ideal[6]: "... antes quero
me chamem romancista descosido e extravagante, do que me adivinhem o
pensamento. O meu manuscrito, cujos episódios e peripécias constituem um
grande ziguezague da inteligência, é justamente como eu, como a minha
índole, como o meu romance e como eu quisera que fossem os meus
leitores..."[7] Daí que no início do capítulo IX de Anátema surja a
sintomática advertência – Metade do qual é para metade dos leitores, e a
outra metade para todos –, pois o autor conta a priori com a adesão de uma
faixa do público a determinada ideia.
Assegurada a linha dialógica pela co-presença narrador / leitor, o
discurso narrativo permite ao autor instaurar o público ideal e criar a
atmosfera propícia aos passeios inferenciais.[8] Os movimentos do leitor-
espectador estão controlados, diminuindo os riscos de fracasso, isto é, a
compaixão, o alívio e a alegria pedem colaboração no momento certo.
De carne e osso, as personagens que se movem no palco activam na
memória sensorial de cada um cenas da vida semelhantes, que instigam o
espectador à identificação. Se assim não fosse, onde estaria a eficácia
dramática do reencontro de Casimiro de O Bem e o Mal com a mãe ou a do amor
patético de Antoninha, de Anátema, pelo filho do algoz de seu pai?
Entre a evidência e o espanto (a emoção e os breves assomos racionais)
está o sucesso do melodrama, por isso o presente estudo, mais do que
analisar um género, deter-se-á numa estrutura, cuja primazia está na
espectacularidade e nos efeitos cénicos que prendem o espectador às
intrincadas teias melodramáticas. Embora autor e público partilhem o mesmo
guião[9], às vezes, Camilo rejubila ao contrariar o leitor, subvertendo a
aparente linearidade na construção de sentidos:

Pela terceira vez este ente misterioso, carácter surpreendente, capaz
de preencher as funções de quatro dramas no género campanudo, viera
perturbar o entrecho desta emaranhada história. Verdade é que todos
explicamos as idas e vindas do padre sem recorrer às reticências, nem à
magia; mas era talvez mais grato às inteligências pacatas que o irrequieto
sacerdote se tivesse sentado numa cadeira de sola cravejada de botões
amarelos, e falasse de lá quando lhe pertencesse a palavra.
Pois não pode ser assim, sem menoscabo do manuscrito, cuja contextura
respeito.[10]

Ora, a inabalável obediência à verdade serve apenas de pretexto a um
desvio no nosso horizonte de expectativas. Outra das estratégias manuseadas
pelo autor prende-se com a recusa em ilibar as personagens que aos olhos de
quem lê / vê, receberiam o golpe da misericórdia.[11] Arauto da sã moral e
hissopando a instituição familiar e os brandos costumes, Camilo não deixa
de desmistificar algumas das virtudes que compõem o credo ideológico do
melodrama, preservando a sua soberania autoral. Assim, num movimento
ambivalente, o autor publicita a pretensa originalidade (e certa isenção)
do que escreve, repudiando a moda francesa, que, em circunstâncias
oportunas, coloca a seu favor:


Quem quiser voga e fama pinte e salpique de sangue e lama os seus
painéis. Ganhar a curiosa atenção dos leitores somente é permitido a quem
lhes dá notícia de coisas não sabidas nem experimentadas. A virtude é o
ranço destas gordas almas da nossa terra. Relatem-se crimes de cafrarias em
linguagem de cafre.[12]

Parece-nos possível encontrar na estranha relação do autor com o
leitor a fórmula que cava o movimento inverso ao da razão do desgaste do
melodrama nas tábuas do palco: um público vicioso e viciado, facilmente
manipulável, que adivinha o que se seguirá. A adesão do público ao que tem
diante dos olhos não constitui segredo para o nosso autor, como se
constatará sem pudor em Anátema: "Para captar a benevolência da leitora,
precisava-se da história de uns amores trágicos, urgentes e lamentosos.
Para o artista, cumpria ampliar-lhe a órbita do espírito apoucado,
ostentando-lhe no molde do romance a forma real, augusta e humanitária da
arte. O estilo devia ser exagerado como o pensamento..."[13]
A grande qualidade de Camilo Castelo Branco na utilização desenvolta
de modelos gastos reside na lucidez de espírito, na auto-ironia e na
manipulação oscilante de elementos gramaticais de convenção e de relativa
novidade. Mais do que descobrir as teias melodramáticas de O Bem e o Mal e
de Anátema importa reconhecer de que artifícios se socorre o autor para as
caldear com outros subgéneros, livrando-se (ou não) de lugares-comuns.
Veremos como nas duas obras se usam ingredientes comuns, embora o grau de
exigência da leitura seja diferente e a confirmação das expectativas
dissimétrica.




O Bem e o Mal

Esta novela de 1868, inscrita na "família dos livros de bem", de
acordo com António Feliciano de Castilho, anuncia no título a luta
maniqueia que se desenvolverá no decurso dos seus dezoito capítulos. Não
será por acaso que a obra é dedicada ao Padre António de Azevedo, um digno
árbitro de estrénuas virtudes.
Rumando para um ponto de equilíbrio, já assinalado por Jacinto do
Prado Coelho,[14] o autor "pretende que o leitor, invocado a julgar o Bem e
o Mal desta série de biografias, dê sua piedade à desventura culpada, assim
como tem dado suas bênçãos à virtude sem nódoa."[15]
Apesar de Camilo construir um cenário que indicia acontecimentos
funestos (como o carácter ensimesmado e melancólico de Ladislau ou uma casa
erigida sobre um "presídio romano"), no final, o que nos surge "à flor da
terra" é "uma face do bem e outra face do mal", com que se dá cumprimento a
uma visão mais harmónica da vida, inevitavelmente marcada por contrastes.
Aliás, o restabelecimento da ordem e a chegada a um ponto de equilíbrio
encontram eco, numa versão trivial, em várias personagens da novela,
nomeadamente em Casimiro: "Eu amo a mediania, que é o refúgio da paz. As
lições da vida deu-mas o lavrador de Vila Cova."[16]
Antes de falarmos com detalhe desta obra, recordemos os principais
tópicos do seu enredo. Num cenário campestre que quase faz jus à novela
gótica, "nas faldas de uma serra chamada a Castra", Ladislau e Peregrina
(ambos órfãos) vivem um "amor de predestinação", torneado por uma linguagem
excessiva, de rendilhados retóricos, que o autor corta oficialmente no dia
do casamento, já que um amor feliz ocupa muito menos páginas que o mal e as
suas ramificações: "Vamos bosquejar o casamento de Ladislau e Peregrina. Se
a descrição me sair muito florida, não servirá. Guardarei os enfeites para
exornação de outros casamentos, onde as flores sejam empregadas em
disfarçar a míngua do coração e virtudes."[17]
A felicidade deste enlace cede lugar na economia narrativa à
apresentação de "outros amores", desta vez proibidos, entre Cristina de
Nelas e Casimiro de Bettancourt. O oponente é Rui de Nelas, "gótico
solarengo de Pinhel", pai tirano que se recusa a entregar os seus
pergaminhos em mãos plebeias. D. Alexandre de Aguilar, o noivo preterido
por Cristina, representante da nobreza de sangue, também ensombrará o amor
do casal. Todavia, o espaço de tensão social em que esta história romanesca
se movimenta – a cidade de Coimbra e o meio estudantil – é distinto. A
cidade aparecerá conotada negativamente pelas dificuldades de comunicação e
de entendimento que suscita. Ao campo associa-se uma imagem de comunhão, de
lirismo sentimental, não admirando por isso que Casimiro escolha um recanto
sossegado e bucólico para residir quando volta à Faculdade, num decalque do
mundo rural a que pertence:

Depois era o mês no mês de Abril, o Abril de Coimbra, regorjeado de
aves, arrelvado de boninas, copado de sombras, e harmonioso de murmúrios.
E, depois, o amor, a paz, o descanso de tamanhas batalhas, aformosentavam a
vivenda de Santo António dos Olivais, o amor, por sobre tudo, alindava,
encantava, e vestia da inocência e das alfaias do éden aquele silencioso
abrigo de duas almas fugidas ao mundo, e recolhidas em si e em Deus. [18]


Os adjuvantes deste segundo par serão o casal de Vila Cova, o Padre
João (irmão de Peregrina) e José Pastor, pequeno criado de Cristina.
A seu tempo, a união de Cristina e Casimiro introduzirá uma terceira
história de amor na diegese, devidamente contextualizada por uma analepse.
Trata-se da paixão entre Eugénia e Duarte que, sendo pais deste falso
órfão, vêm iluminar o passado misterioso e a verdadeira condição social do
amado de Cristina. Como não podia deixar de ser, depois de vencidos os
obstáculos e a prosápia, a bonança chega e a felicidade distribuir-se-á por
quem a merecer.
À medida que avançamos, vão-se entrosando pólos contrários no fio
narrativo – cidade/ campo; nobreza de sangue / nobreza de carácter; amizade
e sacrifício pessoal / vingança cega e ódio implacável – que fazem de O Bem
e o Mal depositário de várias temáticas caras ao melodrama. São elas: a
exaltação da família, a apologia da honra e da virtude, em suma, dos
valores morais e da justiça social, o amor ao trabalho, a superlativação do
idílio campestre e o alerta para os perigos da civilização, a iminência do
duelo. O "sermão da natureza", a amizade e a fraternidade cultivadas pelas
gentes rústicas servem de pano de fundo à encenação do quadro do Bem.
Ladislau, o órfão de alma incorrupta, que desconhece o que seja um talher,
faz da igualdade o pai-nosso de cada dia e granjeia a simpatia do narrador,
que não deixa de exortar as pessoas do campo: "Ó santos corações do povo!
Mas do povo das montanhas, direi, do povo, que ainda não saiu à praça
vociferando que é rei porque é povo."[19] De coração lavado, e prestes a
obedecer ao chamamento de Deus para ser padre, vê em Peregrina a esposa
fiel, a mulher imaculada e inocente, uma alma-gémea: "Peregrina deu as
flores a Ladislau, e recebeu o ramilhete dele. Qual dos dois tinha o
coração mais feminil? Pelo rubor da face não havia estremá-los."[20]
A pureza de espírito e a rectidão das personagens que circulam entre
Vila Cova e S. Julião da Serra são justificadas pela ausência do código de
leis que dita a organização dos meios urbanos. A caridade ergue-se como
valor máximo[21] em práticas quotidianas e em ocasiões especiais como a
festa a favor dos doze velhos pobres e doentes da freguesia. É a lei do
coração e da justiça dos homens que reina, fazendo ecoar a ideia de uma das
primeiras páginas da obra – é preferível "a virtude sem letras" às letras
sem virtude.
O nome do capítulo IV – "Outros Amores" – anuncia a mudança de cena a
que não é alheia a chegada de uma carta, importante elemento melodramático
que quase sempre altera o rumo dos acontecimentos. Ao abrir a carta,
Peregrina reconhece de imediato a letra de Cristina: "Eu venho fugida, e
comigo vem o homem que amo e a quem meu pai me negou, sem compaixão das
minhas lágrimas."[22] Eis que surge a provável desonra da jovem fidalga e a
infâmia para o amado. O bulício melodramático não tarda a aparecer: " – Eu
não sei senão que V. Ex.ª está amando um homem que seu pai repulsará de
casa, logo que desconfiar de tão estranhas inteligências. A menina será
perdoada como inocente, e ele perseguido e castigado como vilão. Como penso
que assim vem a acontecer, entendo que o seu amor será funesto ao pobre
órfão."[23]
O desfasamento social é o pomo da discórdia, pois um serviçal não
pode casar com a filha de seu amo. Casimiro, órfão à semelhança de
Ladislau, conserva um enigmático documento do seu passado, grão de mistério
essencial nesta fase embrionária da tessitura da rede melodramática.[24]
Semear uma pista intrigante, trazer à luz o segredo semioculto faz parte do
compasso de espera com que se desafia o leitor-espectador. A dolorosa
introversão e a melancolia que acompanham esta personagem ombreiam com um
espírito de "condição muito altiva" e grande nobreza de sentimentos. Será
essa uma das suas armas de arremesso contra D. Alexandre,o rival na
conquista da amada. Alexandre é o nobre que herda a honra, mas que, na
prática, tem apenas a "valentia da garganta" e carrega o desmérito da
fanfarronice.
Se mestre António reconhece que ao sobrinho faltam a linhagem e os
haveres para casar com D. Cristina de Nelas, o narrador ergue a sua voz
contra a difícil convivência entre a "aristocracia das artes" e a
"aristocracia de nascimento."
Enquanto não se legitima a união, as duas personagens vivem sob o
jugo da vergonha, embora não sejam afectadas pela ideia do desdouro
associada a um casamento entre pessoas de classes sociais diferentes. Na
obra, a desigualdade de classes é anulada perante o acometimento do amor
verdadeiro. Nesta matéria, O Bem e o Mal aproxima-se em certa medida do
drama social.[25] Não obstante, somos sensíveis às advertências de Jacinto
do Prado Coelho sobre a escavação de resquícios sociais na obra de
Camilo.[26]
Casimiro é uma das personagens que nos brinda com grandes tiradas
melodramáticas, nomeadamente ao exprimir a mágoa da orfandade. Por seu
turno, quando é interceptado por Rui de Nelas protagoniza uma cena teatral,
com alguma pantomina à mistura: "Desceu Rui de Nelas, de manso, ao jardim,
e ia já em meio, quando a filha deu tento da espionagem. Soltou um ai; mas
de torturada que ficou, nem avisou Casimiro. O pai apertou o passo, correu
impetuosamente ao postigo, e viu o moço quieto, e sereno como se a surpresa
fosse um gracejo de futuro sogro, que se entretém a fazer foscas ao futuro
genro, muito do seu agrado. Não assim Cristina, que, passado o momento do
espasmo, dobrou o joelho, e balbuciou: - Meu pai, eu é que sou
culpada."[27]
Bastava assistirmos no tabuado a este pequeno quadro em que
contracenam a inocente desvalida, o jovem apaixonado e o pai tirano para
percebermos que está subjacente à narrativa de O Bem e o Mal uma
planificação melodramática. Não só o comportamento das personagens no
teatro do quotidiano se aproxima da representação, como a obra comporta
formalmente estruturas do texto dramático com uma funcionalidade
equivalente à das didascálias.
A retórica do excesso é alimentada por frases exclamativas que
solicitam uma curva entonacional afim. Tudo isso tem uma medida exacta nos
cinco sentidos do encenador.[28] O que não se vê em palco imagina-se,
segundo as coordenadas teóricas e os clichés comummente partilhados por
autor e espectador-leitor. Na passagem do teatro para a narrativa assiste-
se a uma reinventada apropriação em que não chega a verificar-se
ruptura.[29]
Os códigos paraverbais valem por si próprios: os amantes combinam
através de sinais discretos a melhor forma de se encontrarem; Eugénia, irmã
de Rui de Nelas, estremece com o beijo daquele que virá a revelar-se seu
filho.
O pico melodramático de O Bem e o Mal atinge-se com o reconhecimento
entre mãe e filho. Porém, há uma cena anterior que pelo seu impacto deve
ser revista: a dupla absolvição de Casimiro — em termos jurídicos, da
acusação de homicídio de Airão e em termos familiares do rapto de Cristina
e do roubo das jóias da família da esposa. De rompante, entra Rui de Nelas
no tribunal e dissipa a calúnia que pesa sobre o genro:

– Meu sogro está vivo para confirmar esta declaração.
– Confirmo! – bradou uma voz dentre as turbas comprimidas na teia. E
logo um gentil ancião de veneráveis cãs, e nobre aspeito, com as faces
arregoadas de lágrimas, entrou na clareira que a multidão lhe abria, e
chegou à beira de Casimiro, e repetiu com a voz quebrada de soluços:
– Confirmo! Confirmo! Honrado moço, meu filho amado! [30]

Finalmente aceite pelo sogro, Casimiro recupera por inteiro a sua
honra e obtém o reconhecimento público da sua dignidade. Por seu turno, o
pai prepotente redime-se aos olhos do leitor ao testemunhar em voz alta a
inocência de Casimiro, reabilitando-o. Apesar de já ter vindo a lume a
prova que o iliba do acto criminoso, através de um documento escrito por
Lira, cabe à instituição familiar repor a ordem.
Passemos, então, à análise do encontro entre mãe e filho, antecipado
pelo espalhafatoso título do capítulo: "Mãe!" As informações que até agora
possuímos são apenas três: Casimiro é órfão; tem documentos que lhe
permitem aceder ao seu passado; as cartas que traz consigo são assinadas
por E.
Esta personagem feminina entra em cena, porque Rui de Nelas, ao
interferir na defesa de Casimiro, pede a D. Eugénia que mova influências em
Lisboa. Assim se intrometerá o "mal cabido" episódio que desoculta o
passado de D. Eugénia de Nelas e explica que a intransigência do irmão tem
raiz hereditária. A história compõe-se dos matizes habituais: um amor
malogrado, a entrega do filho recém-nascido nos braços do amado (um
alferes); a jovem mãe, vítima da repressão familiar e isolada dos que ama,
perde o rasto do filho.
Volvidos alguns anos, quase por "predestinação", o instinto maternal
leva-a à hospedaria onde está reunida a família. O reencontro de D. Eugénia
com o filho oferece-nos instantes melodramáticos, patrocinados pela
revelação de uns pedacinhos que papel:

– Porque não, Sr.ª condessa? Aqui está a velha carteira de meu pai...
A condessa tomou da mão de Casimiro com sôfrega ânsia, a carteira, que
folheou.
– Onde é? – disse ela convulsiva.
– Aqui, minha senhora – respondeu Casimiro, indicando-lhe a página que
a condessa leu:
Meu filho Casimiro...[31]

Para além de sanar a dor da orfandade, o marido de Cristina adquire o
estatuto social que lhe havia sido negado: o seu sangue é tão nobre como o
seu carácter. Vencida a dor da ausência de um abraço materno, recebe o
público, por sua vez, o ponto alto do dramatismo:[32]


De súbito, Casimiro afastou um pouco a face, contemplou o rosto
pálido da condessa, beijou-a na fronte e disse:
– Tenho mãe, meu Deus ! ....Eu sabia que a tinha, e havia de encontrá-
la! ...
Então chorou a torrentes!
Se não chorasse, enlouquecia.[33]

Neste reencontro, as cartas assumem especial relevo, quer no plano
emocional (estreitando os laços de afectividade entre mãe e filho) quer no
plano da acção, como documento que ata as pontas caídas do passado ao
presente. São fragmentos que carecendo de valor poético acrescentam
verosimilhança à história. Camilo tem noção do pendor rocambolesco da
imbricada teia e poupa nos enunciados epistolares para investir nos
momentos de diálogo. Isso é visível no capítulo retrospectivo em que se
fala do afastamento de Eugénia da casa dos tios, para a separarem de Duarte
de Bettancourt.
As duas breves missivas que Casimiro conserva traduzem a promessa de
um noivado no sepulcro ("A minha alma irá identificar-se à tua: viverei
sempre contigo na terra, e amando-te de um mundo melhor."[34]) e alguns
gritos de abafado desespero. A condessa de Azinhoso lê emocionada as cartas
que o filho guarda religiosamente, aquelas que mitigaram a distância
geográfica entre ela e Duarte no passado e que agora lhe permitem
estabelecer um simbólico contacto físico: "leu soluçante, e beijou aquele
papel, que estivera nas mãos de Duarte."[35] Escrevendo direito por linhas
tortas, os secretos papéis unem ainda mãe e filho.
Deixámos para o fim a análise do aspecto que, a nosso ver, aumenta o
interesse de O Bem e o Mal: a amizade de Guilherme Lira em contraposição à
sede de vingança de D. Alexandre. Para prosseguir os seus estudos, Casimiro
vai viver com a mulher para Coimbra, terra que, segundo Mestre António, lhe
trará novas oportunidades. O casal cruza-se com D. Alexandre, também
estudante, que o insulta na rua. A partir daí, o nobre, ferido no seu
orgulho, planeia matar Casimiro, contratando então um mercenário. É o nosso
monstro, "encarregado de fazer as maldades".
Temos, de um lado, os ricos, atolados na baixeza e na disformidade
(física e moral), e, do outro, os pobres, com abundantes proventos morais.
O monstro, incarnado por Airão, era "um homem de cara sinistra, o qual se
escondia no escuro da casa assim que nas janelas fronteiras assomava gente.
(...) gesticulando com aquele especial jeito das feras humanas, vezadas ao
trato da taverna, da feira, da encruzilhada".[36] É "uma besta-fera",
desertor da cavalaria, uma "espécie de molosso da casa", que se intromete
no meio académico sob o disfarce de estudante com ordem para matar.
Alexandre adverte-o: "Vê se me aparas essas barbas, que tens cara de
facínora!"[37] O "sicário assalariado" passa a vigiar os passos de Casimiro
para lhe sentenciar a morte.
Surge então uma figura que, pela sua atitude se agiganta na novela:
Guilherme Lira, que nutre um ódio terrível pelos "poltrões cobardes" e
exercerá a protecção sobre Casimiro: "...desvelava-se e preocupava-se desta
catástrofe, como se a vida de pai, irmão, ou amada corressem perigo!
Sublime doido! Simpática loucura!"[38]
Na "calmaria podre" que se vive, sobretudo no seio da nobreza
hipócrita (Rui de Nelas evoca o escândalo da monja do Lorvão, familiar de
D. Alexandre), fervilha a esperança de um volte-face nos acontecimentos.
Guilherme Lira, na função de libertador, restitui a paz e a concórdia,
fazendo justiça pelas próprias mãos. Toma como causa pessoal salvar
Casimiro, pelo que mata o assassino e fere Alexandre quando estes,
invadindo a propriedade alheia, intentam tirar a vida ao marido de
Cristina. O episódio catapulta Guilherme Lira e Casimiro para um patamar
superior: aquele, pela sua alma abnegada e pela amizade imola-se; este
sofre estoicamente a detenção, as acusações e os impropérios, elevando-se
ao heroísmo. A magnanimidade de Casimiro advém-lhe de uma aprendizagem pelo
sofrimento que, longe de encontrar razão na sua luta pelo amor (Rui de
Nelas é um vilão em ponto pequeno que por curto período de tempo
obstaculiza a relação), nasce da verticalidade. Espera que a sua inocência
seja provada, sem se rebelar ou maldizer o seu destino, na senda do que o
Padre Praxedes afirmara e que é, ao fim e ao cabo, o desiderato do herói
melodramático: "acabar sem remorso nem temor, consolando-me de ter sido tão
moderado em meus desejos, que nem sequer peço a Deus que me dispense mais
um dia de existência."[39] O zénite do Romantismo atinge-se nos
preparativos de Guilherme Lira para morrer melodramaticamente:

No dia imediato, entrou Guilherme no escritório de um tabelião, e
pediu meia folha de papel selado. Assinou-se no fundo da lauda, e fez que o
notário lhe reconhecesse a assinatura.
Recolheu a casa, e deteve-se algum espaço, escrevendo no branco da
folha assinada e reconhecida. Fechou em forma de ofício, lacrou, e escreveu
algumas palavras no invólucro. Depois fez algumas cartas: uma sobrescritada
a D. Joaquina Soares de Lira, sua mãe, residente em Évora; outra a sua
irmã, casada em Estremoz; e ainda uma terceira brevíssima, dirigida a uma
senhora, que tinha o segredo da ferocidade daquele homem. Terminava assim:
«Não te cito para o céu nem para o inferno. Chamo-te diante do teu próprio
remorso. Viste-me um anjo aos dezoito anos; e fizeste de mim isto que sou.
Não te acuso: lá tens dentro da alma o teu algoz. É tempo de acabar.»[40]


Com efeito, vislumbramos na carta a "uma senhora" o incontido
fatalismo e a morte como solução para pôr termo ao amor, isto é, a renúncia
à vida de Guilherme Lira representa também uma desistência do amor.
Portanto, a par do altruísmo, temos um móbil passional. Lira procura de
peito feito a morte, confessando-o na carta[41] que será entregue no dia do
julgamento de Casimiro como prova da sua inocência.
A densidade psicológica desta personagem sobrepõe-se à das demais,
porque a sua obstinação vai para além do vale de lágrimas e da justiça
caseira. Ele mostra a determinação e a coragem que lhe garantem o lugar de
herói trágico.
Os companheiros de Guilherme Lira pedem sangue e vingança. O dia do
funeral abre nova brecha melodramática que vai do discurso de Casimiro aos
comentários do narrador: "Espectáculo para terror era aquele em volta de um
cadáver!"[42]

Paz e contentamento
Este é o título do último capítulo de O Bem e o Mal, que anuncia o
final feliz do melodrama de triunfo camiliano e satisfaz o leitor-
espectador que assiste ao concerto do mundo, principal objectivo do género.
As três mortes (uma social – a de D. Alexandre – uma por imolação –
Lira – e outra por punição do mau carácter da personagem – a de Airão)
repõem os valores morais no lugar certo. A amizade e o amor passam a
desconhecer distinções e preconceitos de ordem social, refreiam-se
sentimentos arrebatadores e violentos. Depois de ter sentido alguma emoção
e de ter sofrido com as personagens, o público anseia por voltar à ilusória
vida em tons garridos e optimistas,[43] reclamando a dissolução do caos e a
crença ingénua num mundo melhor.
Vence o heroísmo da honra contra a vileza, enroupada em hábitos
fidalgos. D. Alexandre cai na ruína e bestializa-se, ao passo que os bons
são resgatados pelo "anjo da felicidade". Casimiro, estudante de Coimbra,
rende-se à utopia rural e torna-se lavrador. A Moralidade (título da última
página da obra), que reenvia claramente para a engrenagem do melodrama,
critica a civilização e deixa-nos um antídoto: "o coração do homem, formado
na ciência e nos costumes antigos, encerra a urna dos bálsamos para as
chagas dos corações formados à moderna."
Nascido num cenário lúgubre (por que não gótico?) e isolado[44] e com
um passado romântico às costas (o pai de Ladislau "vestiu o hábito de frade
mendicante no convento de Vinhais. Assim cuidou ele que dignamente honrava
a memória da sua santa mulher. Escolhera convento pobre como penitência, e
deixara sua casa e filho único..."[45]), Ladislau, que incarna o bom
selvagem, liberta-se da melancolia congénita e vai ao encontro da
felicidade. É um bom exemplo de manipulação das expectativas do leitor.
Em geral, o leitor sofreu poucos sobressaltos ao longo da obra, pois,
nos momentos de maior tensão aparecem sempre personagens que amenizam a
cena ou restabelecem a harmonia. Contexto bastante diferente nos
disponibilizará a obra que analisaremos de seguida, não poupando nas
emoções fortes nem nos quadros de desgraça.

Anátema
O intertexto desta narrativa é a lenda da Torre de D. Chama, contada
pelo tio António da Maria em meia dúzia de linhas e indagada pelo escritor
nos grossos manuscritos da História, onde o melodrama gosta de ir buscar
raízes. Tudo radica num crime hereditário a expiar, num "vínculo moral de
perversidade" que sonda a família: "No dia em que o primeiro Veiga recebeu
a cruz de cavaleiro abriu o Demónio um reservatório de fogo para todos os
Veigas."[46] Inês, a jovem inocente, filha de Cristóvão da Veiga, senhor
feudal, será o bode expiatório de um crime herdado.
A narrativa começa com uma prolepse, assinalada ao estilo camiliano
("Este começa por onde acabam os outros".) e que se resume em breves
linhas: "Pedro da Veiga e D. Custódia de Mesquita casaram com todas as
cerimónias do santo sacramento, aos dezessete dias de Janeiro de 1750".[47]
Da união resulta um filho – Manuel – arrogante e bilioso. Para fechar o
parêntesis, só nos falta conhecer a família dos sapateiros que vive nos
sótãos de Pedro da Veiga, cuja fealdade se assemelha à das figuras do
quadro Os comedores de batatas de Van Gogh, mas que funcionam como hábil
pretexto para chegarmos a Micaela. Esta personagem, irmã de Jacinta Rosa, a
mulher do sapateiro, fora vítima de desonra na mocidade. Por enquanto,
ressoará apenas nos nossos ouvidos o nome do algoz – Timóteo de Oliveira.
Passados estes alinhavos iniciais, o "editor" da história adverte-nos
no capítulo V para o necessário "esforço de mnemónica, para encaixar estas
personagens de retrocesso, esta dispersão de caracteres duvidosos e
imperscrutáveis! referindo-se-lhe como se se tratasse de uma espécie de
"caranguejo literário".[48] Calcorrear as veredas do enredo e as suas
analepses e digressões exige vigilância e aclimatação ao terror (sobretudo
psicológico) que se vai gerando.
Anátema tem elementos melodramáticos muito fortes, que provêm da
novela gótica ou de terror. O cenário sombrio e apocalíptico em que a
natureza é cúmplice tétrica do mistério, vai sendo depurado à medida que se
adensa o dramatismo. O castelo do Conde de Távora[49] é o maior ícone
gótico deste romance. O castelo recebe Inês, a raptada e torna-se no palco
de infortúnio e de desgraça dos dois amantes. Será como que uma prisão, que
asfixia os seus desejos e quimeras de felicidade. Aquele que deveria ser o
recanto de amores de Inês e Manuel de Távora transforma-se na armadilha de
Vulcano a Vénus e Marte. O amor contrariado por Cristóvão da Veiga ditará
um processo de ruína inexorável sobre a sua linhagem, ateando o adormecido
fogo da expiação.
O Diabo tem uma capa e um chocalho, isto é, encobre aqui e descobre
impiedosamente além, inclusive o fruto nascido do ventre da mulher
desonrada. As forças malignas e benignas confundem-se numa só figura que,
representante de Deus na terra, age com ímpetos demoníacos – o abade de
Vila Marim, falso adjuvante do casal. Com efeito, Bem e Mal conhecerão um
tratamento diferente do que vimos na novela anterior, pois em Anátema é
difícil definir onde começam e acabam os seus limites. Joel Serrão
aprofunda a questão:

O bem e o mal que, com algum maniqueísmo, no pó da terra se
defrontavam, seriam reflexo ou consequência de outro combate não só
transcendente, mas também escatológico, entre «a consolação do anjo de Deus
e a maldição do anjo das trevas». Deus e o Diabo, bem e mal seriam os
aspectos apreensíveis pelo homem de uma complexa trama de teor
providencialista acerca dos encontros e desencontros dos seres humanos no
pó da terra…[50].

Cristóvão da Veiga recusa-se a dar a mão de sua filha em casamento ao
conde de S. Vicente, porque ele colocara dúvidas quanto à sua genealogia.
Contra esta decisão está o direito ao amor, livre de contingentes sociais e
do pertinaz orgulho da velha nobreza.
A obra é indicada como estudo de caso, por isso, de escalpelo em
riste, o romancista mostra a "fisiologia da dor", a dilecta da
sensibilidade romântica e a mais adequada à educação da mulher. O romance
surge quase como uma variante de O Toucador: "... dar-lhe [à mulher] um
espelho, sujeitá-la a um compêndio, mandá-la estudar naquela D. Inês, que
tão linda e requestada nos ficou no capítulo anterior."[51] A queda de D.
Inês, uma das primeiras mulheres românticas de que há memória, deverá ser
uma lição para as mulheres recatadas e virtuosas:

É justamente neste instante que acaba a independência senhoril de D.
Inês: abdica da sua coroa de orgulho, converte-se mulher flexível e sente a
precisão de ser grata a um marido que lhe é roubado por seu pai. Daí em
diante dou de conselho às leitoras que não a imitem.
D. Inês principia a ser romântica ou desgraçada, que é quase sempre o
mesmo.[52]


Soarão estas linhas como um aviso às mulheres para que não sonhem vir
a ser como este "anjo dos salões"? Apesar do punho cerrado dos homens,
veremos que no romance prevalece um ponto de vista feminino, pelo relevo
das mulheres na história e pelas elucubrações produzidas a respeito da sua
psicologia. Camilo dedica o capítulo VI a falar de mulheres e rejeita
incorrer, tanto quanto possível numa obra como Anátema, na retórica
amorosa, deixando-a para Carlos, que não é mais do que porta-voz e vingador
de sua mãe, para Antónia Bacelar e Rita da Santíssima Trindade.
O autor-narrador iliba-se de cair nas pechas do Romantismo, servindo-
se de um hábil artifício: a narrativa dentro da narrativa[53]. Delegando
noutras personagens o excesso, o autor livra-se da responsabilidade de
quaisquer ousadias linguísticas e de estilo que se cometam, quer
desmistificando o amor,[54] quer negando-se a presentear-nos com os
habituais clichés.
Porém, munindo-se de diversas técnicas, Camilo prova que sabe a
cartilha melodramática de cor, nomeadamente pelo uso da linguagem exagerada
e pelo empolgamento do capítulo XI, onde os amantes se debatem pela vida.
Quando Inês e o conde se apercebem de que é difícil lutar contra a vontade
de Cristóvão da Veiga decidem fugir. Durante a viagem abate-se sobre eles
uma terrível tempestade, tão ao gosto do melodrama.[55] É numa atmosfera
wagneriana que os dois amantes se defrontam com a natureza em fúria, que
parece avisá-los de que o seu amor é nefasto. Vale a pena revermos a
espectacularidade alcançada com esta fantástica descrição:

A faixa negra da noite cinge o véu dos horizontes. A lâmpada mortiça
do crepúsculo não a ergueu ainda a mão invisível do Eterno, por detrás das
cumeadas do Levante. Cruzam-se os tufões, que rolam dos visos penhascosos
das serras de Santa Bárbara, Mesio, e Marão. Ao fundo, na balça escura dos
povoados, vai passando o vórtice do desbarate. Lascam-se as florestas
vergadas pelos braços flexíveis da tempestade movediça. É o gigante da
destruição, que finca um pé sobre as açoteias do castelo dos Távoras, outro
nos torreões de Vila Real, e fustiga com o látego do destroço aquela
natureza, que geme, estorcendo-se nos braços da procela.
Debaixo deste céu passa uma virgem débil, mimosa, e resignada. É como
o arcanjo, no dia final, por entre as ruínas do mundo! [56]

As personagens, que já nos cativaram, correm perigo de vida. O
sobressalto do espectador intensifica-se, porque ele viu nas últimas linhas
do capítulo anterior um mau presságio. Durante a fuga, Inês perde "o anel
dos desposórios" e o narrador desabafa: "A garantia do juramento estava
perdida! O que eles sentiram ninguém o sabe... Pensamentos amargurados,
recônditos na escuridade do coração, como o anel nas trevas da noite.
Avante, nobres desgraçados!"[57] A partir daqui, fica-se de sobreaviso, mas
por pouco tempo. O siso do leitor-espectador não chega a assentar, pois ele
assiste à ressurreição do conde, "vulto arrastado na esteira da corrente",
que um "raio alumiou à flor da água". O jogo luminotécnico, neste romance,
reveste-se de uma enorme importância, ajudando o espectador a ver e a
reconhecer as cenas mais dramáticas e patéticas. Se as personagens
sobrevivem a uma contrariedade deste fôlego, por que razão não hão-de ser
felizes? É com base neste raciocínio que dizemos que o siso do espectador
ingénuo do melodrama é fugaz. Perante tamanho episódio, espera-se a acalmia
e o triunfo do amor. São as "inteligências míopes" que caem nestes poços
sem fundo, como sublinha o narrador.
Porém, à revolta natural vai suceder a perturbação e a laceração
psicológica das personagens, num crescendo emocional, que só termina com a
sua morte. A figura do Diabo começa a pairar sobre a cabeça dos Veigas.
Senão vejamos: a fuga de Inês é vista pelo povo como obra do demo; o
fidalgo parece "coisa ruim" quando sabe do desaparecimento da filha. E o
diabo, que a gente crente do povo teme pôr na boca, está ligado ao pai de
Cristóvão da Veiga, conhecido pelo pacto que fez com o demónio para seduzir
jovens raparigas. Desde cedo, nota-se a presença de uma força superior,
avassaladora, que se apodera despoticamente das criaturas. O castelo,
"grave e carrancudo" antropomorfiza-se, tal como acontecera com a
tempestade que devasta tudo, com os seus terríveis braços. Inês vê-o como
má sombra:


Era negro o pensamento que voejava do coração de D. Inês para os
miradouros angulosos do castelo! Com a vista túrbida e perplexa, a amante
de Távora parara diante daquelas paredes, como se a negridão, que as
entretecia, fosse a enorme crepe do gigante levantado em seu sarcófago.[58]


Subitamente, parece que a tensão provocada pelas contas do passado, e
pelos actos presentes, se desanuvia. O pai tirano volta atrás com a sua
palavra, assomando com um falso volte-face:


– Honra lhe seja feita, senhor D. Cristóvão, isso é que é ter coração
de pai... Eu logo disse à minha Bernarda que V. Ex.ª tarde ou cedo chamava
os dois esposos para a sua companhia...
– E chamo, porque não posso viver sem ela... Não quero estas
vergonhas, que me matam... É preciso segui-los, e não tenho alma de pedir a
algum dos que por aí estão nessa sala o encargo de os chamar...[59]

O leitor está familiarizado com o rebate de consciência do vilão. Rui
de Nelas passou por semelhante turvação de espírito, acabando por permitir
o casamento de sua filha. Esta é aparentemente uma solução também viável
para o romance em estudo.
No entanto, a entrada de uma nova personagem em cena – Pedro da Veiga
– que vem de Itália, precipita a inversão dos acontecimentos.[60] O pai vê
reforçada a sua posição com a chegada do filho e pede-lhe que vá no encalço
da irmã para lhe anunciar a permissão do casamento. O uso que fazemos da
palavra encalço não é inocente: ela sintetiza bem os verdadeiros intuitos
da partida de Pedro da Veiga.
Subsiste a hipótese de um final feliz até ao momento em que Pedro se
aproxima do castelo dos Távoras: "Nas raízes da montanha, Pedro da Veiga
esporeou açodadamente o seu ginete. Por detrás das agulhas pardacentas do
Monte de Ordens levantava-se o lindo sol de Fevereiro com a face
desassombrada de nuvens."[61] O bom tempo é, em geral, sinal de esperança e
pólo positivo que se segue ao tumulto. A missão do irmão de Inês era,
aliás, devolver a conciliação e a paz às duas famílias. Só que a personagem
vai sofrendo mudanças bruscas que alteram inexoravelmente a sua decisão.
Primeiro, confia no gracejo de um dos lacaios de Manuel de Távora, segundo
o qual as intenções do conde ao raptar Inês não seriam as mais honestas.
Depois, incompatibiliza-se com o noivo da irmã, porque este o censura por
ter matado o seu criado.
Desta feita, Pedro da Veiga inicia a destruição: é o nosso primeiro
vingador. O narrador encarrega-se de o conduzir ao proscénio: "– Senhor
conde! – bradou o Veiga, avançando um passo para Manuel de Távora, que se
não moveu uma linha. D. Inês, ajoelhada e de mãos erguidas, embaraçara o
segundo passo ao irmão, que tremia de cólera, e contorcia uns olhos de
tirano melodramático."[62]
Quando os amantes chegam ao castelo, Távora manda chamar o abade de
Vila Marim para realizar o seu matrimónio e legitimar a união, ainda que
sem o aval do pai. Inês não esconde os seus receios pela escolha feita:

– Porque não hei-de eu dizer-te, se tu vens a sabê-lo? É um filho
bastardo de meu pai...é um homem que nos odeia, a mim e a meu irmão, por
termos nascido de outra mãe...Vês, conde, se este meu terror é
pânico?!...[63]

O mau augúrio não é infundado e estas impressões são preciosas para
construirmos o nosso juízo de valor sobre o bastardo de Cristóvão da Veiga,
pois esta personagem, com a função de oponente no esquema actancial, ditará
o fim da esperança de felicidade do jovem casal. Além disso, a ideia de
maldição que regurgita no título sonante da obra surge aqui de novo num
acto religioso, como indício trágico.
Estão finalmente reunidas as condições para o Padre Carlos da Silva
exercer a expiação: as vítimas encontram-se uma situação de enorme
fragilidade e de dependência da bênção de Deus. O padre monopoliza a
narrativa e as personagens, por isso, a partir do capítulo XVI,
assistiremos a um longo compasso de espera e às manobras de diversão do
abade. Segundo os esquemas do género, representará o monstro, já que os
seus esgares, a gargalhada sádica e o sorriso cínico apontam para uma
figura demoníaca[64]. Recusando-se a consumar o casamento, o padre cerceia
a felicidade da irmã, deixando-a à margem dos preceitos de Deus. Fora da
lei humana e divina, Inês e Manuel ficam condenados à solidão e ao
desamparo.
A manipulação de Padre Carlos relativamente à consciência de Inês e do
Conde de S. Vicente deve-se à sua capacidade de engrandecer uma história
trivial, provocando o pathos em quem ouve (o leitor e Manuel de Távora): "O
homem estava aterrado, e sucumbia como criança às funestas consequências de
uma tragédia, cujo remate ainda não sabia".[65] Uma dramaturgia de
admiração e espanto é o que o seu testemunho nos coloca diante dos olhos.
Lentamente, as vítimas vão cedendo a uma vontade exterior, deixando de
medir os seus actos, sendo levadas ao sabor da corrente melíflua do filho
de Antónia Bacelar. A alienação advém da sua mestria como contador da
história que tudo faz para determinar o desfecho unívoco da história de
Inês: "Nesta expressão única do padre vinha o desabafo íntimo de uma
vingança risonha, passada, tremenda e irrevogável. Ali juiz, algoz, lei,
era o padre, só e livre, na sua consciência."[66] Num rompante, o
espectador ouve o tinir de nova avalanche melodramática: a intervenção,
exaltada, do padre abre, a golpes, um passado doloroso:

– Vingança mesquinha! não me faleis em vingança, senhores! – retorquiu
o padre Carlos da Silva. – É necessário que me ouçam... – continuou ele com
uma exaltação imprevista e colérica – é necessário que me ouçam, porque eu
sou um enigma infernal entre todos. Sou um delegado de uma mulher que jaz
no túmulo com uma ferida rasgada no peito. Há um sangue inocente, que
transuda a pedra do túmulo! Há um grito de vingança, que quer uma longa
expiação de lágrimas! Há um Anátema de conjuração diabólica, que vai até à
última geração de uma família como um rastilho de sangue![67]

São momentos como este que, alternando com palavras hipócritas ou
agridoces, enformam a personagem. O padre mais romântico de que há notícia
(segundo palavras do editor) cruza-se com a primeira mulher romântica numa
relação de fatal consanguinidade.
A morte de Antónia Bacelar "às mãos" de Cristóvão da Veiga traz à
colação documentos que são um signo forte do melodrama – as cartas – e um
diário escrito pela melhor amiga. As cartas introduzem-nos na história de
Antónia; amarguradas, são a confidência de um amor, infeliz e fatal, de um
crime sem culpa ("Abandonou-me a Virgem, que nunca me abandonara, quando eu
fui pura como as mais dignas da sua protecção e do seu amor. Nem uma
esperança...Eu estou triste como ninguém esteve no mundo."[68]).
Ao ouvir estes fragmentos eivados de sentimentalidade, o conde
percebe que as duas missivas são uma gota de água num prolixo espectáculo
de lágrimas: "Já adivinho que há amargura muito grande no desenlace, não é
verdade?..."[69] A história da amante de Cristóvão da Veiga impõe um
abrandamento na intriga principal. Valida-se, numa outra dimensão que não
apenas a temporal, a admoestação do narrador: "Se está decidido que os
caranguejos não andam para diante, nem são estacionários, este romance é
uma espécie de caranguejo literário."[70]
As sucessivas quebras prendem-se com o plano de adiamento do
desenlace, a que obedece o reconto do drama de Antónia. Esta morosidade
entretece-se das cartas incriminatórias escritas pelo padre, do desvio das
missivas de Manuel de Távora e do diário de Antónia Bacelar.
A mãe de Carlos da Silva fica a viver na companhia de uma amiga, sua
protectora e segunda mãe. A fim de mitigarem as agruras da vida, as duas
mulheres entregam-se à vida religiosa. Aí, procuram consolo e a
reconciliação interior e não tanto o serviço a Deus. Por mais do que uma
vez, a justiça de Deus é posta em causa, por não atender a estas almas
penitentes.[71] Uma estranha debilidade física leva Antónia a procurar nos
ares do campo a cor que a sua face perdeu. São já as partidas do destino.
Sai o anjo do seu nicho protector e coloca-se o Diabo diante dela, sob a
figura de Cristóvão da Veiga. Torna-se Antónia Bacelar desgraçada, como
Inês, porque ama. Mais tarde ou mais cedo, cumprir-se-á o sonho mau de
Antoninha:


– Tive um sonho mau, tristíssimo e aterrador...Foi logo em seguida. Eu
curvei a face marcada pelo anjo, e adorei a vontade do Senhor.
Nisto o céu escureceu-se; o ar enegreceu como o interior de um
esquife; e eu tremia como a flor das montanhas açoutadas pela tempestade.
Orava, e as palavras crestavam-me os lábios, como se eu respirasse fogo.
Queria fugir, e os joelhos sentia-os estalar, quando tentava erguê-los de
uma pedra que era o sepulcro de meu pai. Depois ouvi o reboar dos trovões
que rolaram, rolaram desde os confins do céu até rebentarem sobre a minha
cabeça. Vi um raio. Ao seu clarão negrejava o anjo das trevas, que alumiava
os olhos da face, e cegava os do entendimento. Desceu, desceu até mim, e
com uma vara de fogo infernal escreveu-me na fronte esta palavra –
Anátema!»[72]

Nesta altura, o autor está ciente da contiguidade entre o destino de
uma e de outra: "Ambas mães, ambas abandonadas, o vilipêndio, a desonra, e
a perdição principia para D. Inês como um ponto escuro no horizonte
alvíssimo das suas esperanças, qual vinte e seis anos antes negrejava para
D. Antónia Bacelar."[73] Picado pelo remorso, Cristóvão da Veiga irmanará
amante e filha: "Desde o momento que achou sua filha pervertida,
prostituída, e desonrada, o desventurado pai recorda-se muitas vezes de
Antónia Bacelar, e o espectro desta mulher volteia-lhe nos seus pesadelos
de velhice lacerada pelo remorso!"[74]
Os sucessivos desencontros, artimanhas e equívocos (cartas falsas,
acusações enviadas ao Santo Ofício) são os instrumentos de tortura usados
por Carlos da Silva para vingar a morte da mãe. A sua intimidade com o
espírito do mal é cada vez mais forte e a desgraça da irmã maior. Abate-se
sobre ela a ironia trágica, quer na falsa esperança de felicidade
alimentada pelo padre, quer no retorno ao castelo do Conde de S. Vicente,
que deveria ser palco de alegrias. Pelo contrário, será o local onde
suporta as dores do parto e, em desespero de causa, na presença do pai e do
irmão, se suicida.
No final, o "editor" investe todos os recortes retóricos da linguagem
passional para falar da morte de Inês:

Era tarde... Inês precipitou-se do balcão ao fosso da torre, e deixou
um pedaço da sua túnica alva e ensanguentada na mão do pai...
Eis aqui o seu tálamo, as suas esperanças, os seus amores! Tanta
formosura, tamanho coração, e no fim de tantas agonias, vede-a é um cadáver
despedaçado na rocha! Buscai naquelas faces laceradas a pele mimosa onde se
colaram os beijos ferventes da paixão! Pedi àqueles lábios, embaciados pela
crusta do sangue, um sorriso alegre para a vida, que ali se esvaeceu com
tantas esperanças mortas! Pedi àqueles olhos estorcidos um olhar imperioso,
uma ternura fascinadora, uma lágrima de alegria, ou aquele pranto de sangue
que devera, aos olhos de Deus, remi-la de um morrer tão aflitivo![75]

O "editor" convida o leitor a apiedar-se da infeliz rapariga e talvez
a libertar-se da tensão acumulada nos últimos capítulos. Já que não pode
pedir lágrimas a Carlos da Silva, que salpicaria de sangue o altar de Deus,
"se fosse preciso enterrar o punhal no seio do matador de sua mãe!",[76]
incita os leitores a fazê-lo.
Timóteo de Oliveira, que desonrou Micaela e surge abruptamente no
início do romance, é o filho de Inês e de Manuel de Távora. Desconhecendo
os seus pais, recebe no Tribunal do Santo Oficio Padre Carlos, acusado de
"crimes misteriosos". O Diabo tem uma capa e um chocalho, acima o dissemos.
Agora é o narrador quem o afirma ao explicar a desventura do padre: "O
crime seguia-o, e a face marcada pelo demónio, que o comprara, acusava-
o."[77]
Descartamos, por ora, a hipótese de identificar Anátema com o
melodrama de triunfo. Pelo desgaste psicológico e moral que causa nas
personagens principais, inclinamo-nos provisoriamente a rotulá-lo como
melodrama de derrota. Inês e Manuel de Távora suicidam-se, fiéis ao
protótipo dos heróis do melodrama, marcados pela incomensurabilidade do
destino.[78] Carlos da Silva sucumbe ao excesso de fel e de ódio. Timóteo
de Oliveira sofre "aos quarenta e oito anos também ervados de desgosto pela
orfandade, e de remorso pelo crime de sedução."[79]
Só os feios de corpo, os títeres da festa, triunfam. Esta é uma lição
irónica. Os sapateiros que habitam nos sótãos de Pedro da Veiga melhoram a
sua sorte, porque quem vê caras não vê corações. A "feia, mas honrada"
mulher de João enriquece, e assim termina o romance: "Os netos do sapateiro
são actualmente barões, e esperam sair viscondes na primeira fornada."[80]



Moral da história

A diferente gestão do pathos, da euforia, do pranto, do remorso e do
perdão, à luz do melodrama, proporciona uma análise comparativa das duas
obras que, apesar das diferenças assinaláveis, partilham notações
genológicas comuns. Tanto uma como outra apresentam dilemas lineares,
personagens insufladas pela generosidade e figuras mirradas pelo seu baixo
carácter.
Porém, Anátema convoca o leitor para um nível mais árduo e exigente de
leitura. Ao invés de um público desoprimido, imerso num universo de utópica
felicidade, sentimos um travo amargo, consentâneo com o melodrama de
derrota. A lógica binária quebra-se simultaneamente e a evidência é
obnubilada pelo excesso melodramático e por uma lentidão diegética penosa.
Consciente disso, o narrador pede um último esforço, já que o peso do mal
prevalece na balança desequilibrada da obra: "Há-de saber-se, se tiverem a
paciência de deglutir para o estômago moral mais alguns indigestos
capítulos".[81]
Por seu turno, em O Bem e o Mal, a prepotência de Rui de Nelas não
dura mais do que setenta páginas e os seus rebates de consciência levam-no
a reparar o mal que fez. Consentir a boda da filha é já uma cedência
significativa que o narrador se permite comentar: "Arrependimento que por
um cabelo, pouco depois, ia dando de si um feito vil!"[82] Ao longo da
obra, a amizade atinge uma dimensão inusitada, contrapondo-se ao ódio e à
vingança que, em crescendo, são inoculados pelo Pe. Carlos do romance de
1851. O binómio aparência / essência, conforme à espectacularidade destas
narrativas, actualiza-se na denúncia da vileza, enroupada em hábitos
fidalgos e no aplauso à bondade e autenticidade dos simples.
Não obstante, em Anátema detectamos uma teia melodramática mais
complexa. A sucessão de factos negativos confunde o leitor, que "farta o
seu coração de horrores". Depois da inquietação de Manuel de Távora,
expressa pelo narrador, numa inflexão teatral que adivinha a da audiência –
"Padre Carlos cravaria um punhal no peito da infeliz? Seria ela a expiação
do pai? O assassino morrerá de remorso e terror salpicado do sangue da
inocente?!"[83] – chega a vez de o leitor se interrogar acerca dos limites
da malvadez. O "caranguejo literário" não abandona facilmente a intriga,
por isso os últimos meses de vida de Inês estão contidos nesta metáfora,
através da qual a própria heroína atrasa, sem o saber, o seu resgate.
Talvez comece a desenhar-se aqui uma das principais linhas de
divergência entre as duas obras. Na novela de 1868, onde surgem paliativos
para a agitação, o leitor-espectador recebe em doses moderadas os reveses
da história e mantém-se na expectativa de um desfecho feliz, uma vez que a
desventura é compensada pela esperança, pela intervenção de um adjuvante,
pela negligência ou incúria momentânea de uma personagem má. Rimo-nos, por
exemplo, do equívoco protagonizado por Rui de Nelas, ao ser padrinho de
baptismo da neta, tomando-a por uma menina desvalida.
Em Anátema, a sobrecarga de estímulos negativos atenua o impacto do
castigo e da destruição dos vilões e do monstro. É necessário relativizar a
queda dos heróis para valorizar a peculiar reposição da ordem, isto é,
solicita-se, mais do que nunca, um olhar racional. Se pelos elementos
aduzidos teríamos de repensar a nossa provisória classificação de Anátema
como melodrama de derrota, acrescentemos-lhe ainda o triunfo das
personagens secundárias e a sua importância no restabelecimento do
equilíbrio. Esta "gente feíssima, encardida, molenga, reles, amarelada,
acabrunhada" actua profilacticamente, matando o galho de uma família com
terríveis antecedentes, e conquistando uma posição económica e social. Em
boa verdade, o primeiro romance camiliano é também um melodrama de triunfo,
ainda que os seus predicados se afastem das convenções óbvias para o leitor
que, fatigado de acompanhar a via crucis de Inês e Manuel de Távora,
despreza o secreto braço da ironia trágica.
Acabámos de ver como a aplicação da receita melodramática pode ter
efeitos distintos e surpreender de maneira original e satisfatória o leitor-
espector. Este é o primeiro ancoradouro da nossa conclusão.
Ambas as obras se revestem de um certo eclectismo, que evita a
monocordia. Lado a lado, encontramos traços góticos[84] e românticos. De um
olhar sobre a performance à detecção de laivos românticos nas falas das
personagens, o caminho é curto. A procura do sublime, mesmo tratando-se do
melodrama, é um dos desafios que Camilo coloca a si próprio. Como realça
Maria de Lourdes Ferraz, "Será sempre na busca da melhor convivência entre
retórica e sentimento que a escrita de Camilo se expandirá e se
interrogará, sem cessar, apesar da sua forma aparentemente espontânea,
rápida, incisiva, excessiva."[85] Nesse sentido, Carlos da Silva (ou
Camilo) diz a Manuel: "As cores tristes do sentimento que dou à minha
história, senhor, não são figuras de retórica para comover..."[86] A
negação dos "lugares-comuns do amor idealizado, perfumado e doudejante"
obriga o autor a vigiar o que diz e como diz. Se em O Bem e o Mal
escasseiam as reflexões metaliterárias, existem, no entanto, claras
invectivas à retórica amorosa, que compõe a história de Ladislau e
Peregrina (cap. II) e de Eugénia e Duarte (cap. XIV).
Nessa atitude vigilante e autocrítica reside o sucesso do género
melodramático em Camilo, ou porque conserva o sentido da proporção, ou
porque glosa e delata o modelo. Booth considera que umas das formas de
estabelecer a conivência entre leitor e narrador é a partilha de uma comum
experiência dos géneros literários. Camilo faz desse saber partilhado uma
forma de paródia do melodrama e das expectativas do leitor. A lucidez de
que a ironia romântica o investe afasta-o da alienação. Antes de alguém
estabelecer o hiato entre realidade e ficção, o narrador camiliano assume-o
abertamente. As intrusões do narrador desmistificam o fazer literário e
autodestroem-no, se for preciso. Esse é dos raios de vitalidade do
melodrama camiliano. Reclamando a proximidade do narratário, Camilo brinca
com a (in)competência do seu leitor, invertendo a previsibilidade
alimentada pelo melodrama. Despista-o do trilho habitual e das expressões
linguísticas cristalizadas:

... é que aí está o romance, mais de meio do seu primeiro volume, sem
nos falar de uma tremenda sova de pau, como é de uso lá por cima; ou de
duas punhaladas, em noite de cerração, atraiçoadas no medonho de sombria
viela; ou, ao menos, e para maior realce do copista, se, no embrulho destas
ensossas filosofias, tivéssemos uma vista de cárcere, com o seu preso
pálido e arripiado, afora a bilha de água e as palhas e o carcereiro de
vesga olhadura, e depois... (isto era bonito!) um encapotado a surdir de um
alçapão com uma lâmpada de furta-fogo e uns bigodes tiranos, e aquele homem
tétrico bater no ombro do preso, que treme nas suas carnes maceradas, e,
este, que reconhece o seu rival, gritar inferno! Maldição!... e rir, e rir
de um riso enfurecido, e vibrado de todo o rancor das suas entranhas, e...
finalmente, fechar assim o capítulo, para começar o outro por: Era alta a
noite!... Isto é que era romance, palavra de honra! [87]

Iniciámos esta reflexão com um carcereiro sem carranca melodramática.
Acabamos com a imaginação do narrador a pedir um carcereiro de vesga
olhadura. Segunda conclusão: a versatilidade de Camilo não o deixa cair nas
malhas laças da sintaxe melodramática, porque o autor tem pernas mais
compridas e, num ápice, dá o salto que lhe garante a superação da matriz.
No final, os leitores "sentem-se possuídos da romântica alegria que vem
sempre consolar-nos da ingrata leitura de cenas amarguradas."[88]


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[1] Membro do Centro de Literatura Portuguesa. Este trabalho foi orientado
pela Professora Doutora Maria Helena Santana, a quem agradecemos todas as
sugestões e pistas de leitura.
[2] Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, Lisboa, Parceria António
Maria Pereira, 2001, p. 217.
[3] Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre, Porto, Lello e Irmão Editores,
1980, p. 20-21.
[4] Vide José Édil de Lima Alves, A Paródia em novelas-folhetins
camilianas, Lisboa, ICALP, 1990, p. 41.
[5] Julia Przybos, L'Entreprise Mélodramatique, Paris, Librairie José
Corti, 1987, p. 19 : "Mélodrame. Ce mot ne désigne pas même le caractère de
ce genre de spectacle, qui tient du Tragique, puisqu'on peut y faire
paraître des Rois et des Princes; du Comique, puisqu'on y présente les
vices ordinaires de la société, et les petites passions de la classe du
peuple; du Lyrique, puisque tous les personnages, n'y parlent et n'y
s'agissent qu'au son des instruments de music. Il aurait donc fallu
employer quatre mots pour définir cette espèce de Monstre (…) regarder le
Mélodrame comme un chef-d'œuvre de l'esprit humain; c'est, dans la force du
terme, une superfétation dramatique…"
[6] Maria de Lourdes Ferraz, em A Ironia Romântica, Lisboa, INCM, 1987,
debruça-se sobre a questão: "a perspectiva teatral ou dramática que o
narrador imprime à história que conta, representa, afinal, o tempo superior
– o da orientação da história e da leitura –, tal como se o sujeito
enunciador velasse constantemente pela sorte dos seus heróis, tanto quanto
pelo entendimento dos seus leitores." (p. 39)
[7] Camilo Castelo Branco, Anátema, Porto, Caixotim, 2003, p. 57-58.
[8] Vide Umberto Eco, Seis Passeios nos Bosques da Ficção, trad. de Wanda
Ramos, Lisboa, Difel,1997, onde o autor se refere à "gestão do tempo" (o
suspense, o crescendo de tensão alimentam o melodrama), designando a
técnica por delectatio morosa. (p. 56)
[9] Julia Przybos, em L'Entreprise Mélodramatique, op. cit., esclarece-nos:
"L'ignorance qui règne sur le plateau contraste avec l'omniscience du
public. L'énorme disproportion entre le nombre d'informations accessibles
aux personnages et celui que reçoivent les spectateurs est une des
stratégies essentielles du mélodrame. (p. 125) É precisamente destes
mecanismos que Camilo se serve para interagir com o narratário e para
aperfeiçoar / mudar o jogo a seu bel-prazer.
[10] Camilo Castelo Branco, Anátema, op. cit., cap. XIX, p. 229.
[11] Veja-se o seguinte trecho de A Mulher Fatal, Lisboa, Parceria A. M.
Pereira, 1968, p. 243: "Bravo Cassilda! Este livro acabaria mais ao gosto
moderno, se tu morresses de saudade ou de fome."
[12] Prefácio de O Bem e o Mal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1976, p. 5.
[13] Introd. a Anátema, op. cit., p. 27.
[14] Jacinto do Prado Coelho, Introdução ao Estudo da Novela Camiliana,
Lisboa, IN-CM, 1983, vol. II, p. 20.
[15] Camilo Castelo Branco, O Bem e o Mal, op. cit., cap. XV, p. 183.
[16] Camilo Castelo Branco, O Bem e o Mal, op. cit., cap. XIX, p. 224.
[17] op. cit., cap. III, p. 33.
[18]op. cit., cap. VII, p. 91.
[19] op. cit., cap. VII, p. 89.
[20] op. cit., cap. III, p. 45.
[21] Cf. op. cit., cap. VIII, p. 105, onde o Padre João a ergue bem alto: "
– Louvemos o Altíssimo porque nos deu coração para sentirmos as alegrias da
caridade. Esta virtude, que comove até aos prantos consoladores é a sombra
dos contentamentos da bem-aventurança."
[22] O Bem e o Mal, op. cit., cap. IV, p. 48.
[23] O Bem e o Mal,op. cit., cap. IV, p. 55.
[24] Vide op. cit., cap. IV, p. 52.
[25] Maria de L. Lima dos Santos, Para uma sociologia da cultura burguesa
em Portugal no século XIX, Lisboa, Editorial Presença, 1983, p. 74-76.
[26] Vide Introd. ao Estudo da novela camiliana, op. cit., pág. 43, onde o
autor localiza o espaço da questão social em Camilo: "Com efeito, o eixo
temático da novela camiliana padrão não é um problema social; é sim, um
problema psicológico, moral ou «filosófico», em que obviamente pode haver
incidências de ordem social..."
[27] op. cit., cap. IV, p. 58.
[28] José Édil de Lima Alves, em op. cit., p. 93, lembra que "são fartas as
exclamações e as reticências que causam um estado de expectativa
angustiante, tudo recheado pela linguagem pungente, como era natural a um
romancista que pretendesse pintar cenas fortes, dramáticas ou trágicas,
enfim, teatrais..."
[29] José Oliveira Barata, em "O Teatro de Camilo ou a perdição de amores",
Actas do Congresso Internacional de Estudos Camilianos, Coimbra, 1994, vai
ainda mais longe no seu juízo crítico: "O melhor teatro de Camilo não está
em nossa opinião, no seu teatro; os mais eficazes mecanismos e estratégias
dramáticas não se revelam nas tábuas do palco; o grande palco camiliano
prolonga-se nas páginas romanescas por onde deambulam personae (máscaras)
que agem, as personagens que o titereiro Camilo sabiamente manipula,
fazendo, desfazendo, refazendo um sempre sedutor jogo com o real, quase
aportando na efemeridade do palco de ilusão que tanto aproxima a narrativa
do espectáculo." (p. 151)
[30] O Bem e o Mal, op. cit., cap. XV, p. 199-200.
[31] op. cit., cap. XVIII, p. 218-219.
[32] Peter Brooks, em "Une esthétique de l'étonnement : le mélodrame",
Poétique, 19, Paris, Seuil, 1974, acredita que a recuperação da identidade
é um dos momentos de maior intensidade no melodrama: "Les péripéties et les
coups de théâtre si caractéristiques du mélodrame dépendent souvent de
l'acte de nomination ou de son équivalent, car le moment où l'identité
morale est établie est en général un moment d'intensité dramatique ou de
renversement de situation." (p. 351)
[33] O Bem e o Mal, op. cit, cap. XVIII, p. 220.
[34] op. cit., cap. XVIII, p. 230.
[35] ib., id.
[36] op. cit., cap. XI, p. 141.
[37] op. cit., cap. X, p. 119-120.
[38] op. cit., cap. XI, p. 142.
[39] op. cit., cap. I, p. 18.
[40] op. cit , cap. XVII, p. 192-193.
[41] Vide op. cit , cap. XV, p. 197-198.
[42] op. cit, cap. XVII, p. 207.
[43] Como sublinha Anne Vincent-Buffault, em História das Lágrimas, op.
cit., "Pixérécourt, autor de melodramas com o maior sucesso (com 30 000
representações) dizia escrever para os que não sabiam ler. Nodier, que
prefaciou as suas obras, explica o seu sucesso pela adequação entre a
intensidade dramática dos seus melodramas e o vivido pelos homens da
Revolução que representaram na rua «o maior drama da história». Aos
espectadores que cheiravam a pólvora e a sangue, eram necessárias emoções
análogas àquelas de que a reposição da ordem os privara." (p. 243)
[44] Vide O Bem e o Mal, op. cit., cap. I, p. 12-13.
[45] op. cit., cap. I, p. 1.
[46] Anátema, op. cit., cap. XVII, p. 181.
[47] op. cit., cap. I, p. 30.
[48]op. cit., cap. V, p. 57.
[49] op. cit., cap. V, p. 58: "Numa aldeia distante de Vila Real um quarto
de légua, chamada Lordelo, outrora elevada à categoria de vila, existiu uma
grande casa de arquitectura manuelina, com alguns destroços de gótica, cuja
serventia era armazenar os foros, rendas, pensões e laudémios que se
pagavam à casa dos Távoras pela sua comenda de Panoias. Perto daí erguia-se
um castelo gigante com seus adarves, ameias e seteiras, conquanto a
irregularidade da sua construção, actualmente, nos afiance que tal
fortaleza, colocada numa baixa, e dominada pelos cabeços das montanhas, a
custo poderia defender-se de uma agressão de pastores de ovelhas, que bem
soubessem tanger uma pedra de funda. Este castelo existe ainda: o povo
chama-lhe a Torre de D. Chama."
[50] Introd. a Anátema, Lisboa, Parceria A. Maria Pereira, 1971, p. XVIII.
[51] op. cit., cap. VI, p. 69.
[52] op. cit. cap. VI, p. 74.
[53]"Agora, cumpridas as leis do romance moderno, fastidiosamente
localista, não há nada que se intrometa na história do padre mais romântico
de que há notícia. Atenção. É ele que fala: (...)" op. cit., cap. XVII, p.
189.
[54] op. cit., cap. VII, p. 80: "E assim começam todos os amores: assim vai
até ao altar a menina que se casa; acompanham-na até lá quiméricas legiões
de espíritos lúcidos, cujas asas se enlaçam, para a embalarem num coxim
ideal de aspirações e santos desejos. E, depois, é muito triste vê-la,
passados dois meses, a fazer um rol de roupa suja, a acertar a gravata do
marido, que vai ver o câmbio, ou, oh essência do materialismo! a pregar um
botão nas calças conjugais!"
[55] Serafina Martins, em «Viagens e Paixão Funesta no Romanesco
Camiliano», Apud Camilo. Leituras Críticas, op. cit., refere que "... nos
antecedentes de uma paixão funesta está justamente uma viagem, que se
concretiza, no plano factual, num afastamento da casa e do local onde se
nasceu, e no plano simbólico, num rompimento da redoma, protectora e
cerceadora, que essa casa e esse local constituem."
[56]op. cit., cap. XI, p. 115.
[57] op. cit., cap. X, p. 114.
[58] op. cit., cap. XIII, p. 144.
[59] op. cit., cap. XIII, p. 137.
[60] op. cit., cap. XIII, p. 140.
[61] op. cit., cap. XIV, p. 151.
[62]op. cit., cap. XVIII, p. 209 (O itálico é nosso.)
[63]op. cit., cap. X, p. 166.
[64]op. cit., cap. XXIV, p. 350.
[65]op. cit., cap. XVIII, p. 201.
[66] op. cit., cap. XX, p. 272-273.
[67] op. cit., cap. XVI, p. 186.
[68] op. cit., cap. XVII, p. 193.
[69] op. cit., cap. XVII, p. 192.
[70] op. cit., cap. V, p. 57.
[71] op. cit., cap. XIX, p. 239.
[72] op. cit., cap. XIX, p. 260.
[73] op. cit., cap. XXIV, p. 344.
[74] op. cit., cap. XXIV, p. 340-341.
[75] op. cit., cap. XXIV, p. 353.
[76] op. cit., Cap. XXIV, p. 338.
[77] op. cit., cap. XXV, p. 357.
[78] James Smith, em Melodrama, London, Methuen, 1973, desmonta a natureza
do herói melodramático e o (estéril) resultado do seu sofrimento em termos
práticos: "In the melodrama of defeat, by contrast, the hero is no master
of his fate; always sinned against and never sinning, he does nothing to
deserve the suffering which outside agents thrust upon him, and
consequently learns from it nothing but existencial despair, stoic
resignation or Christian fortitude." (p. 64)
[79] Anátema, op. cit., cap. XXV, p. 358.
[80] op. cit., cap. XXV, p. 362.
[81] op. cit., cap. XVIII, p. 226.
[82] O Bem e o Mal, cap. VI, p. 81.
[83] Anátema, cap. XXIV, p. 347.
[84] Da riqueza de elementos góticos em Anátema, dá-nos conta Maria Leonor
Machado de Sousa em O «Horror!» na Literatura Portuguesa, Lisboa, ICALP,
1979, p. 63-64.
[85]"Camilo e o Romantismo: a retórica do sentimento", in Actas do
Congresso Internacional de Estudos Camilianos, Coimbra, 1994, p. 243.
[86] Anátema, cap. XVII, p. 197.
[87]Anátema, cap. XIV, p. 149-150.
[88] Anátema, op. cit., cap. XIII, p. 143.
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