Tele-solidariedade: uma análise dos programas Teleton, Criança Esperança e do quadro Lata Velha, de Luciano Huck

June 24, 2017 | Autor: Mariana Gomes | Categoria: Television Studies, Reality television, Solidarity, Semiology
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Tele-solidariedade: uma análise dos programas Teleton, Criança Esperança e do quadro Lata Velha, de Luciano Huck1 Mariana de Souza Gomes2

Resumo Televisão é um veículo de informação de utilidade pública e a serviço da população; esta é a primeira razão para que um dos temas mais abordados e utilizados pelos programas televisuais seja a solidariedade. Entretanto, esta última vem travestida através da televisão, que por sua vez cria uma narrativa própria ao meio, produzindo a tele-solidariedade. O objetivo do presente estudo é mostrar como a televisão utiliza a solidariedade para fins lucrativos de audiência e da construção virtual de uma sociedade onde há heróis e valores civis. Palavras-Chave: Tele-solidariedade. Semiologia. Comunicação.

Abstract Television is a public service medium of information and at the service of the population; this is the first reason why one of the topics discussed and used by televisual programmes is solidarity. However this latter aspect is disguised through television, which in turn creates a narrative as well as the concerns about the medium, producing tele-solidarity. The aim of this study is to show how television uses the solidarity for an audience profit and for a virtual construction of a society in which there are heroes and civil values. Keywords: Tele-solidarity. Semiology. Communication.

1. Parte deste artigo (16.000 caracteres) foi apresentado na Terceira Jornada de Ciências Sociais da UFJF, em setembro de 2014. 2. Doutoranda em Ciências da Informação e da Comunicação na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e membro do CEISME – Centro de Estudos sobre a Imagem e os Sons Midiáticos. Bolsista de Doutorado Pleno no Exterior da CAPES. E-mail : [email protected]

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Introdução Todos os dias conectamo-nos à Internet, escutamos o rádio e vemos televisão. Os meios de comunicação fazem parte de nossa rotina e nos fornecem informações que nos permitem posicionarmos perante o mundo. É necessário afirmar que a mídia nos oferece dados e informações sobre o mundo, porém cabe a nós, espectadores e agentes transformadores, utilizarmos as mensagens recebidas de forma reflexiva. Possuindo um papel importante para um indivíduo, a mídia tem a capacidade de ensinar sobre o mundo, a como se socializar através do mesmo, mas também constrói uma realidade social. É importante ressaltar que há vários estudos sobre os efeitos nocivos psicológicos da tele3 visão , porém não se trata, neste presente artigo, de reforçar este discurso unilateral e simplista; seria ingênuo acreditar que os telespectadores são passivos diante da televisão; eles reagem e interagem com a obra audiovisual. Desta forma, para entender a mídia é necessário analisá-la de forma caleidoscópica, desmembrando-a em discurso e imagem. Distrair, informar e educar, estes foram os objetivos primários da televisão, que atualmente se cruzam em diferentes e múltiplos formatos audiovisuais. É nesta panóplia de programas audiovisuais que se insere um gênero que ganha espaço na televisão: a tele-solidariedade. A televisão é um veículo de informação de utilidade pública a serviço da população, o que argumenta a favor do crescimento da solidariedade como tema e mote para alguns programas. A televisão é um espelho da sociedade e fomenta o imaginário coletivo da mesma na qual se insere. Assim, em um país que tenta afirmar-se socioeconomicamente, como o Brasil, a telesolidariedade tem seu lugar. Pretendo, neste artigo, circunscrever minhas análises a partir do que denomino tele-solidariedade, bem como sua complexidade formada pelos seus espectadores e seus heróis, criando uma narrativa própria ao gênero. Para tal, em um primeiro momento discursarei sobre televisão e solidariedade separadamente, e em seguida, sobre este conceito de tele-solidariedade. A fim de ilustrar o que proponho como tele-solidariedade, analisarei neste artigo de que forma opera este gênero na televisão brasileira através do quadro Lata Velha do programa Caldeirão do Huck e os programas Criança Esperança e Teleton, sendo este último exibido pelo SBT e os anteriores, pela Rede Globo, ambos canais privados da televisão brasileira. Foram selecionadas cenas específicas destes programas/quadros de televisão, que por sua vez são analisadas através da semiologia (François Jost, Marie-France Chambat-Houillon) e da análise do discurso (Catherine Kerbrat-Orechionni).

3. O neurocientista francês Michel Desmurget publicou em 2011 um livro chamado TV Lobotomie, onde acusa a televisão de ser a razão pela qual existe o fracasso escolar e inibe o desenvolvimento das crianças ; com o mesmo argumento o jornal Archives of Pediatrics & Adolescent Medicine television publica o artigo Association of television viewing during childhood with poor educational achievement em 2005.

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Solidariedade A solidariedade é mais presente em nosso discurso enquanto adjetivo: iniciativas sociais de organizações (ação solidária), discurso de políticos (economia solidária), chamadas de projetos sociais (seja solidário). Este adjetivo apela para a ideia de participação coletiva e gratuita, ligada à caridade. O Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2009) nos lembra e confirma esse caráter coletivo: “Dependência mútua entre os homens. / Sentimento que leva os homens a se auxiliarem mutuamente. / Relação mútua entre coisas dependentes. / Direito Compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas pelas outras”. Etimologicamente, a palavra solidariedade vem do latim solidum, que evoca a totalidade, solidez, inteiro. Por sua vez, a expressão latina obligatio in solidum provém do conceito jurídico romano e expressava a obrigação comunitária, que evoca os deveres de um indivíduo perante uma grupo social. Ainda acerca de coletividade, o sociólogo francês Robert Castel discute sobre a solidariedade como uma “construção coletiva garantida pelo Estado sob a forma de direitos, [...] onde os indivíduos gozam de uma lógica de contrapartida a fim de beneficiar de recursos” (CASTEL, 2013, p.5). Essa coletividade pode ser formada por uma família, como a solidariedade entre os membros da mesma, ou entre um grupo ligado a uma afinidade em comum, uma comunidade religiosa, ou em prol dos pobres. A este último grupo a solidariedade se traduz por direitos sociais, o que nos remete à expressão latina obligatio in solidum. Estes direitos sociais são delegados aos pobres por instituições públicas ou organizações humanitárias. Com o intuito de diminuir as consequências da desigualdade social, a solidariedade opera a favor dos mais necessitados de forma a diminuir estas diferenças nas mais diversas camadas da sociedade. É a partir deste anseio de correção que Westphal (2008, p.45) cita Gide ao afirmar que a solidariedade desejada (solidarité-devoir) ou necessária se dá quando indivíduos reconhecem que a solidariedade é uma ferramenta com a qual se pode criar movimentos preventivos para a efetivação de liberdade e humanidade. Gide (Ibid.) também afirma que para que a solidariedade desejada seja eficaz, ela deve ser articulada pelo Estado enquanto formulador da legislação social. Acerca do binômio crise econômica e Estado, Bresser Pereira (2001, p.4) afirma que diante da crise, que se acentua pelo processo de globalização, torna-se prioritário reformar ou reconstruir o Estado, ao mesmo tempo que se amplia o papel do mercado na coordenação do sistema econômico. Mas quem será o agente da reforma? Ainda o próprio Estado ou a sociedade civil?

O autor cita Castells (BRESSER PEREIRA, 2001, p.25) ao afirmar que “a administração deve ser flexível, de forma a permitir que o Estado deixe de ser apenas o normalizador para ser negociador e inventor”. Bresser Pereira continua a citar Castells para propor uma “participação

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cidadã e transparência” que podem se caracterizar como duas condições para compreender a “reforma gerencial do estado que está em curso em diversos países da OCDE e nos países em desenvolvimento, principalmente no Brasil, nos anos 90” (Ibid.). A reconfiguração do papel do Estado é uma discussão de nível mundial, entretanto ela tem um papel decisivo no Brasil devido à crise socioeconômica vivida neste país nos anos 80. A partir dos meados dos anos 90, constata-se uma vontade de reagir à crise, que perdurava por mais de dez anos até o momento, e repensar o Estado, que organizaria uma espécie de parceria com a sociedade para enfrentar a crise. Desta forma, podemos afirmar que nos anos 90 que há uma forte discussão sobre o papel que deve desempenhar o Estado em relação direta com a sociedade. São criadas então as organizações sociais (OS), que exemplificam o modelo de cooperação entre o Estado e a sociedade. O Estado fomenta estas instituições, de interesse público, e as regulariza através de um contrato de gestão. Este contrato permite um acordo entre a qualidade dos serviços oferecidos ao público, visto que as organizações sociais podem receber bens e administrar equipamentos do Estado. Essas organizações sociais são feitas e elaboradas através da própria sociedade, que por sua vez pode exigir doações e serviços por parte desta mesma sociedade. Estas organizações sociais possuem certos benefícios, como a rapidez com a qual os bens e serviços podem ser adquiridos pela mesma. A esta vantagem soma-se a ausência de normas que regulam os recursos humanos. É desta solidariedade, a favor dos mais pobres e portanto excluídos da sociedade, que trataremos neste estudo.

Televisão Apesar da multiplicidade de telas e de novas tecnologias que nos permitem não perder o programa favorito, o evento esportivo ou as informações, vê-se televisão majoritariamente em um contexto familiar. É algo tão comum que a televisão faz parte da decoração de uma sala, ou regula nossas atividades cotidianas. Por exemplo, jantar durante o telejornal, sair de casa depois do programa favorito, chegar antes de a novela começar. Devido ao caráter homogêneo da televisão, o conceito de programa é amplo e variado; segundo Machado (2000, p. 27), “programa é qualquer série sintagmática que possa ser tomada como uma singularidade distintiva, com relação às outras séries sintagmáticas da televisão”. Há de se considerar que a dificuldade em uma definição precisa do que é um programa é o fato de que a televisão possui diferentes formatos que se entrecruzam, de forma mais densa ou dilatada, em relação ao tempo e à narrativa. Entretanto, Machado (Ibid., p. 29) afirma que ainda que haja esta falta de consenso, “os programas e os gêneros continuam sendo os modos mais estáveis de referência à televisão como fato cultural”. Por vezes, ligamos a televisão como uma companhia, como um ato já consolidado em nosso cotidiano. Ao mudarmos de canal, constatamos a existência de uma multiplicidade de pro-

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gramas televisivos. Entre eles observamos, segundo o semioticista francês François Jost (2004, p. 41-42), três gêneros televisivos: os real, fictício e lúdico. Lúdico

Real

Fictício Figura 1: Os mundos real, fictício e lúdico segundo François Jost (2004, p.42)

Todavia, não se trata de um gênero imutável, pelo contrário, Jost (2004, p. 42) afirma que o mundo lúdico transita entre o real e o fictício. Desta forma, os programas de entretenimento conjugam a veracidade da informação e dos fatos, que pertence ao mundo real, com o universo fictício composto por imagens. Por sua vez, essa heterogeneidade pode ser caracterizada por uma nomadização entre os mundos real e fictício, segundo a produção audiovisual. Contrariamente ao rádio, a televisão possui uma dupla enunciação: a verbal e a visual. Desta forma, estudar a televisão à luz da semiótica faz-se necessário para que a análise deste meio seja completa. Burguett & Girard citam Charaudeau (In: MARCHAND, 2004, p. 234) ao afirmar que se a televisão é dotada da dicotomia imagem e som, é necessário dar importância à relação que complementa e une essa dupla característica. De acordo com Jost (2004), os meios de comunicação, mais precisamente a televisão, se comunicam com os telespectadores através de seu conceito de promessa. Essa noção engloba as relações estabelecidas pelo transmissor (o canal de televisão) e seu respectivo público. A promessa é estabelecida pelo gênero televisivo, estabelecendo uma reação esperada pela produção da obra audiovisual. O telespectador se compromete em assistir à TV através da promessa realizada. O programa de entretenimento promete fazer entreter, o telejornal promete informar, por exemplo. A ligação entre a televisão e o telespectador é estabelecida pelo conceito de promessa, que se traduz como um meio entre os dois comunicantes. A publicidade também diz respeito à promessa, visto que é através dela que se descreve e, sobretudo, que se promete o que será transmitido pelo programa. Desta forma, podemos afirmar que a televisão funciona como um espelho de sua sociedade, visto que para fidelizar um telespectador, é necessário fazer a promessa de revelar o que é socialmente estabelecido como comédia, ou como entretenimento, ou ainda o “ao vivo”, que promete a instantaneidade do momento transmitido pela televisão. Essa promessa é estabelecida unilateralmente, ou seja, no momento em que uma promessa é realizada pelo gênero televisivo, há a esperança de que a promessa seja realizada pela parte do

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telespectador, entretanto esta última ainda não ocorreu. Assim, a promessa é feita a partir da consideração das consequências ocasionadas no lugar da recepção. Segundo Jost (2004, p. 10), “esse modelo exige do espectador uma contribuição ativa, embora ela não se dê no momento da promessa”. Considerando a liberdade do telespectador para mudar de canal, ou não prestar atenção no que está sendo mostrado, cabe ao telespectador exigir que o modelo de promessa seja cumprido pelo programa. Desta forma, Jost (2004, p.11) reforça a ideia de que a televisão pode ser construída para e pelo telespectador, através da exercitação de sua criticidade.

Tele-solidariedade “Vamos abrir as Portas da Esperança!” Essa frase nos remete ao quadro Porta da Esperança, que ficou no ar durante doze anos interruptos no Programa Silvio Santos, de apresentador homônimo. O telespectador enviava uma carta e, se fosse sorteado pela produção, poderia participar do quadro e ter ou não seu pedido realizado. As histórias eram diversas e os pedidos, dos mais variados: poderia ser uma boneca ou reencontrar um membro da família. Vale dizer que em suma maioria, a produção do quadro mencionado contratava uma empresa que poderia realizar o pedido do participante. Assim, não somente o participante selecionado tinha o benefício de ser contemplado com o pedido, como em contrapartida o quadro concedia um espaço de publicidade à empresa que realizava o desejo do participante. Por fim, o telespectador concedia ao programa o necessário para continuar no ar: a audiência. Esse quadro ilustra como a solidariedade está presente em nossa memória televisiva e nos mostra também como a presença de atos solidários como mote para a televisão são presentes e inspiram outros programas. Acerca da tele-realidade, Jost (2009, p. 18) explica o que poderia ser categorizado como realidade através deste programa: a imagem televisiva de realidade não é efetivamente uma ilusão por si própria[...]. Dizer que os documentos nos remetem ao nosso mundo, este no qual nós vivemos, enquanto outros constroem mundos inventados, mundos ficcionais [...], não quer dizer que estas representações do mundo são puramente apresentações que poderiam de uma forma ou de outra ser tão parecidas que se confundiriam com ele.

À luz desta definição, proponho que a solidariedade contida em programas como Teleton e Criança Esperança seja uma espécie de solidariedade televisiva, onde existe uma narrativa que atende ao personagem principal da história, um mediador e um fim, que é duplo: a audiência dada pelo telespectador em contrapartida do benefício concedido ao personagem principal.

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Assim como a realidade do termo tele-realidade não pode ser caraterizada como a realidade do mundo no qual nós vivemos, pois trata-se de um conjunto de imagens mediatizadas, a solidariedade contida no termo tele-solidariedade também é travestida de linguagens emprestadas da televisão. Opto por utilizar o termo solidariedade ao invés de caridade pois este último termo, em latim charitas, significa compaixão com o próximo e designa um sentimento de doação e serviço ao próximo sem exigir uma troca. Ora, antes de mais nada, um programa é um produto audiovisual e tem seu valor econômico. No âmbito da tele-solidariedade, a “boa ação” feita pelo programa exige do telespectador a audiência em contrapartida. Segundo Resweber (1998, p. 232), programas como o Teleton e Criança Esperança têm uma lógica de contrapartida que é estabelecida pelos dois comunicantes: existe a doação que fazem os organizadores de tempos em tempos [...] e evidentemente a contrapartida imediata que o telespectador reenvia, primeiro ao reconhecer o artista que participa de um evento beneficente e em seguida, tentando lhes imitar.

Não somente a televisão apresenta esse interesse pelo “outro social”. Segundo Bentes (2007, p. 248) o cinema também é mensageiro de uma marginalidade que “ascendeu à mídia e que aparece na mesma de forma ambígua”. Assim, a tele-solidariedade tem sua audiência garantida na medida em que há uma narrativa que será concedida a esse tipo de programa; pois os personagens que integram a tele-solidariedade apresentam as mesmas mazelas que um telespectador comum. Segundo Jost (2007, p.12), a televisão não hesita em mostrar o público como um reflexo, construindo narrativas de personagens anônimos, de lugares desconhecidos e pedem ainda a reação do público. Esta representação provoca uma reação de proximidade e de igualdade do programa em relação ao telespectador. A fim de sustentar o argumento da doação e de provocar o sentimento de solidariedade nos telespectadores, os programas recorrem à compaixão espectatorial (JOST, 2007, p. 13). O público é convidado a participar da história contada pelo personagem principal. Este, por sua vez, conta sua história e aos poucos o telespectador descobre o seu problema, ou revive com ele suas necessidades. Não somente o público pode ser convidado à compaixão como há uma espécie de voyeurismo, pois sabe-se que o personagem principal da narrativa em questão tem, a curto ou ou longo prazo, um fim ou destino trágico. (cf. MEYER, 1998, p. 148). Quanto à escolha de imagens que são veiculadas por estes programas, Meyer (Id., p. 149) afirma que para estes produtores não basta fazer um apelo ao dom, é necessário “um reflexo de solidariedade ou de tomada de consciência, ser impressionado ou abalado por uma imagem difícil de ver”. Meyer, em seu artigo sobre os agentes sociais e o dom, explica que nestes programas “existe o risco de ver este tipo de evento [o Teleton] limitar o intervencionismo estatal” (MEYER, 1998, p. 153), à medida que uma soma muito importante de dinheiro é obtida em pouco tempo. As-

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sim como as organizações sociais já mencionadas neste artigo, o Teleton e o Criança Esperança conseguem quase sempre obter a meta de fundos a serem arrecadados e isto ocorre em alguns dias de campanha, ao passo que o Estado pode demorar mais tempo, às vistas de aspectos burocráticos ou de aquisição de verba destinada a tal setor da sociedade. Como já foi mencionado no presente trabalho, a solidariedade, advinda da expressão obligatio in solidum, evoca o social e o público e sobretudo nos remete a uma ajuda para algo que se encontra fora da ordem, quer dizer, uma ajuda a um grupo marginal à sociedade. Em entrevista, o diretor do canal público francês France 5, Pierre de Friberg, afirma que “o papel de um canal público é acompanhar a população em períodos difíceis e mostrar que há iniciativas positivas e variadas que permitem conceder um ganho”. Assim, os produtores da telesolidariedade argumentam o fato de cumprir seu papel social e se igualam ao público proporcionando uma identificação com o mesmo, lembrando que a solidariedade é, etimologicamente, solidificar-se, unir-se em um todo. Os programas de entretenimento se entrecruzam com a tele-solidariedade, caracterizandose por apresentadores, cantores e personagens conhecidos que apresentam um show em prol de crianças. Segundo a semioticista e especialista da televisão Marie-France Chambat-Houillon (2014, p. 25), o entretenimento fornece números importantes à audiência e confirmam a “função do entretenimento aos meios de comunicação: o canal [francês] TF1 obtém por anos a sua melhor audiência anual (mais de 50% dos telespectadores) com o programa Les Enfoirés”. Este programa consiste em um show beneficente de personalidades do esporte, da música e da televisão em prol de uma associação que combate a pobreza. Pode-se então afirmar que os programas de tele-solidariedade transitam entre os mundos lúdico (presença de jogo, show, animações) e real (a história contada pelo personagem principal, seus desejos e necessidades), afastando-se do mundo real. Consequentemente a solidariedade apresentada nestes programas também se afasta da realidade, o mundo no qual nós vivemos. Assim, os programas que apresentam a tele-solidariedade se travestem sobretudo de programas de entretenimento para conquistar o seu público através das lágrimas, do sentimento de integrar um ato solidário e de identificação com a narrativa que lhe é própria ou com a história do personagem principal. De acordo com Pierron (1998, p.216), o nível discursivo é considerado como sério pelos produtores de programas como Teleton e Criança Esperança. Há uma dupla intervenção que consiste em duas questões: por que doar? e como doar?. A primeira é de caráter didático e permite ao telespectador compreender o motivo da mobilização, seja ela em prol da cura de uma doença, seu tratamento ou a escolarização de crianças etc. A segunda questão é relativa às informações práticas, sobre a modalidade das doações, telefone etc. A primeira pergunta pretende suscitar uma tomada de consciência de maneira racional e afetiva, o que pretende ocasionar uma reação prática, proposta pela segunda questão. Pierron exemplifica ainda que a narrativa própria à tele-solidariedade é constituída de actantes coletivos, citando Greimas para caracterizá-los como “seres ou coisas que de qualquer

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maneira que seja, mesmo a título simples figurantes e de forma passiva, participam do processo” (PIERRON, 1998, p. 218). Estes atuantes, ainda que interpretem o papel deles mesmos que é real, executam seu papel diferentemente, pois sabem que estão sendo filmados. A televisão os institucionaliza, transformando a imagem deles mesmos (Ibid.).

Teleton Originalmente estadunidense, o nome do programa é a contração em inglês de televisão e maratona e consiste, como o nome diz, em uma programação contínua e interrupta de um programa de entretenimento com o objetivo de arrecadar fundos para uma obra caritativa. Atualmente presente nas Américas, Europa e Oceania, o Teleton surgiu nos anos 50 para ajudar crianças atingidas pela paralisia infantil. No Brasil, o programa foi exibido pela primeira vez em 1998 pelo canal privado SBT, onde tem seu lugar até hoje e já foi transmitido pela Rede Brasil, Rede Gazeta e o canal público TV Cultura em 2011. O dinheiro arrecadado durante o programa é transferido à AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente). Em outubro de 2013, mais uma edição do Teleton vai ao ar. Apresentado por várias personalidades do entretenimento emblemáticas do canal, como Adriane Galisteu e Eliana, convidados também participam do programa. O apresentador e jornalista José Luiz Datena é um dos convidados desta edição. Considerado um dos jornalistas mais influentes da televisão brasileira atual e mantendo um contrato com o canal Rede Bandeirantes, o apresentador participou do Teleton enquanto convidado, começando obviamente por um agradecimento ao Silvio Santos, proprietário do canal. Posicionando-se premeditadamente ao lado da tela que mostra o quanto em reais foi arrecadado durante o programa, o jornalista eleva o tom de voz e orquestra a mudança para seis bilhões de reais: “vai passar, vai passar”, é repetido várias vezes, acompanhado de gritos de incentivo do público, mudança da iluminação e música para celebrar a mudança de algarismo. O programa muda o tom e fornece a ideia de vitória, uma conquista do povo, para o povo, através da solidariedade intermediada pela televisão. Datena faz um apelo aos telespectadores para que façam a doação através do programa: “Isso aí vai passar de seis bilhões, vocês tão de brincadeira comigo. Daqui a pouco vem aqueles caras com a carteira cheia e tal”. Essa informalidade, contraditoriamente pronunciada por um jornalista, é proposital e estratégica; segundo Kerbrat-Orecchioni, citada por Maingueneau (2014, p. 116), uma conversa comum é caracterizada, entre outros elementos, pelo imediatismo (proximidade dos participantes, contato direto) e pelo caráter familiar, improvisado e descontraído. Com este tipo de discurso, o apresentador convidado consegue se aproximar do público e estabelecer uma identificação com o mesmo. A comunicação entre os telespectadores e seu

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comunicante ocorre então de forma igualitária. Em seguida ele continua: “É importante mostrar ao povo brasileiro que ele depende dele mesmo”. Ao dizê-lo, uma música de fundo obviamente triste, em ré menor, acompanhada da mudança de expressão de Adriane Galisteu – que rapidamente mostra um semblante sério – podem ser observados pelo telespectador, que testemunha a aprovação de Datena por parte da plateia ao ser ovacionado pelo público presente no momento da gravação.

Criança Esperança O programa Criança Esperança é exibido desde 1986 pelo canal privado Globo, inicialmente em parceria coma UNICEF e em seguida com a UNESCO. A característica principal deste programa é um show, onde artistas de vários tipos de música apresentam sucessos populares atuais e o elenco da emissora participa enquanto apresentadores; sendo o principal apresentador o humorista Renato Aragão. Conhecido pelo seu personagem principal Didi Mocó, imortalizado no programa Os Trapalhões (criado nos meados dos anos 60), Renato Aragão apresenta o programa Criança Esperança onde ator e personagem se confundem. As frases conhecidas pelo personagem Didi como “Ô da poltrona” e “Ei psit” são ditas como se o verdadeiro apresentador fosse realmente Didi. Um dos programas humorísticos mais emblemáticos dos anos 80, Os Trapalhões foi um programa conhecido do grande público e cuja audiência tinha sucesso sobretudo com o público infantil. Assim, os telespectadores (e possíveis doadores) podem se identificar com um personagem que fez parte da infância do público. Na edição de 2004, Renato Aragão recebe Dedé Santana, seu ex-colega de gravação do programa Os Trapalhões. Em uma cena visivelmente premeditada, Dedé sai de uma caixa fechada e é recebido com um abraço por Renato. A cena é acompanhada por frases que evocam a longa amizade dos dois: “[...] peço que a nossa amizada jamais seja interrompida, e sim, cada vez mais”, diz Renato que não termina sua frase, debulhando-se em lágrimas, seguidas de aplausos e gritos do público. Desta forma, o telespectador é testemunha de algo que não lhe diz respeito mas que vem a público com a função emotiva: provocar lágrimas ‘além-tela’. Em seu livro sobre tele-realidade, François Jost (2009, p. 71) explica que “os pequenos filmes [...] mostrando a vida cotidiana ou os psicodramas [...] são uma vontade do produtor de organizar a realidade em vista da emoção do telespectador”. As lágrimas de Renato Aragão e Dedé Santana cumprem seu papel consolador perante ao público, que por sua vez vê-se presenciar uma cena solidária entre ex-colegas que fazem as pazes.

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Lata Velha Lata Velha é um quadro de sucesso do programa semanal Caldeirão do Huck, de apresentador homônimo, transmitido também pela emissora Globo desde 2000. O bloco consiste em atender ao pedido de um participante, que enviou uma carta argumentando por que ele(a) merece ter seu carro renovado. Se escolhido pela produção do quadro, Luciano Huck apresenta o participante (por vezes também sua família) e o mesmo deve realizar uma prova, se conseguir realizá-la e se obtiver a aprovação da plateia, ele tem o carro renovado pela produção do programa. A diferença entre este quadro e os outros exemplos de tele-solidariedade, citados anteriormente, é a presença do jogo enquanto fator sine qua non para obter a realização do pedido. Não basta ser escolhido pela produção, é necessário integrar um jogo ou um desafio, que pode ser cantar, dançar, ou aprender um instrumento, por exemplo. O entretenimento e bom humor são extremamente notáveis no quadro e no programa em sua totalidade. Exibido aos sábados à tarde e de audiência jovem, a solidariedade é travestida pelo divertimento e positivismo. Não se julga um participante pela sua precária condição social, mas pela sua bravura. “Vocês foram morar juntos muito cedo, sem nenhum tostão furado, estão juntos até hoje, com os filhos bem criados, só na correria”, diz o apresentador Luciano Huck à família contemplada pelo quadro. Ao mesmo tempo, vê-se os dois filhos, o contemplado, no presente caso, Mc Gaguinho e sua esposa. Para que a audiência continue a favor do programa, é necessário evidenciar a coragem dos participantes e mostrar o cotidiano deles de forma otimista, afinal, vale lembrar que este quadro se insere em um programa de entretenimento. No caso presente, as lágrimas seriam a quebra do contrato estabelecido entre a promessa do programa e o telespectador. Segundo Jost (2007, p. 107), “a televisão entra no espaço público não mais para reivindicar um estatuto de meio de comunicação – intermediário entre o mundo e nós – , mas para ter e reivindicar o lugar do autor. Até mesmo um lugar prioritário”. É neste contexto que se insere o quadro Lata Velha; através deste bloco alimenta-se a ideia de que a solidariedade – ou seja, a população unida – em si pode ser mais eficaz que o Estado. A mesma edição do quadro em questão, com o participante Mc Gaguinho, exibida em 2013, começa com um humorista que faz uma paródia da presidente Dilma Rousseff; no quadro ela telefona ao Luciano Huck e pede ajuda, pois ela está ocupada com CPI, Bolsa Família e não tem tempo para ajudar o então futuro participante. Com esta paródia, ocorre uma heroicização do apresentador, que vem ao auxílio dos menos favorizados e de forma particular, contrariamente ao Estado, aqui representado pela atual presidente Dilma Rousseff durante a paródia que abre o quadro.

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Considerações finais Em períodos de crise, a solidariedade é um dos recursos de uma comunidade para que uma solução seja realizada a fim de estabelecer a normalidade. Como um meio de comunicação, a televisão pode apresentar o discurso de que, por ser popular, ela deve se inscrever em um combate à pobreza, ou em alguma causa. Daí advém a tele-solidariedade. Vimos que as organizações sociais operam com rapidez e agilidade a partir do momento em que bens podem ser adquiridos e que devido à sua autonomia, alguns casos podem ser solucionados com maior rapidez. Assim agem os programas de tele-solidariedade em relação ao seu público: o espetáculo da doação cria uma narrativa onde o público sente-se identificado com os problemas apresentados e sente-se impulsionado, através da identificação, a doar ou a se compadecer com os personagens. Como toda comunicação, espera-se que haja uma reação provocada no telespectador. Essa reação se traduz por aspectos emocionais, como as lágrimas e a simpatia com o apresentador junto ao público – ele ajuda as pessoas, ele faz doações – e obviamente, a fidelização do telespectador, proporcionando à emissora sua audiência necessária. Vale lembrar que todos os programas aqui estudados são transmitidos em uma maioria esmagável (a TV Cultura já exibiu o Teleton) por canais privados, que têm uma forte concorrência pela audiência. Os programas das emissoras são, antes de tudo, produtos do mercado audiovisual. Estes produtos saciam uma comunidade que precisa de um consolo em relação à sua condição social e/ou econômica e ao mesmo tempo alimentam a indústria audiovisual, que na busca pela audiência estetizam e reconstroem a pobreza e a marginalidade, estabelecendo uma realidade virtual ideal, onde todos podem se ajudar e buscar conforto através da televisão. Em todos os três exemplos de tele-solidariedade no artigo, constatamos que os programas – à exceção do Caldeirão do Huck – começam a ser exibidos nos anos 80 e 90, durante crise econômica e no Brasil e consequente reorganização estatal, com o advento das organizações estatais. Assim, a televisão, através do mote da solidariedade e do apelo à participação de organizações e da sociedade em si, cria a tele-solidariedade, com suas narrativa e linguagem próprias. Por sua vez, a tele-solidariedade obviamente cria uma expectativa por parte do telespectador e divulga a ideia de que é necessário estabelecer uma unidade com a televisão para enfrentar problemas como a crise ou outras mazelas da sociedade. Unidade exibida, prometida e mediada pela televisão, em nome da audiência.

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