Telejornalismo e Cultura Nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

July 25, 2017 | Autor: L. Cristina | Categoria: Teorias Do Jornalismo
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Telejornalismo e Cultura Nacional: um diálogo teórico interdisciplinar


Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa[1]



Resumo: Este artigo apresenta as discussões teóricas iniciais de uma
pesquisa de doutorado em andamento. O objetivo principal é debater o papel
do telejornalismo para a construção daquilo que chamamos de cultura
nacional, a partir da identificação de núcleos culturais e ideológicos que
servem de base para a articulação do discurso sobre a cultura nacional.
Tais núcleos ainda não foram identificados nesta etapa da pesquisa, porém,
trabalho com a perspectiva de que aspectos culturais de uma cidade
sinédoque – o Rio de Janeiro – são transformados em representações
culturais nacionais por meio dos critérios de noticiabilidade aplicados
pelo telejornalismo para a seleção do que vai ser publicizado, tendo em
vista a constituição sociológica dos grupos que, em última instância,
decidem o que é notícia – produtores e editores nas organizações
jornalísticas.

Palavras-chave: Telejornalismo; Cultura Nacional; Noticiabilidade;
Representação; Nação



1. Introdução

Este artigo, parte de minha pesquisa de doutorado[2], é a
expressão de uma inquietação nascida no dúbio ambiente em que me movimento
na sociedade midiatizada como consumidora e produtora de conteúdo
jornalístico: a inquietação de tentar compreender como um dado cultural
específico de uma parte do país é transformado em representante da cultura
nacional, reconhecível por toda a comunidade formadora do Estado-Nação.
A pesquisa é motivada pela necessidade de investigar o processo de
hegemonização cultural, potencializado através da mídia, que torna possível
a sociedades internamente tão diversificadas – como a brasileira –
partilharem um repertório cultural mínimo comum. Aqui, apresento as
inquietações teóricas que balizam a condução da pesquisa em andamento.
A importância de se compreender como um determinado elemento
cultural é escolhido para representar, para significar a cultura de uma
nação está no fato de que, no atual estágio do desenvolvimento da
sociedade, há a tendência a naturalizar-se o que não passa de uma
construção simbólica: a cultura nacional. Tão simbólica e construída quanto
a própria nação que, conforme Anderson (2008), é, em todos os casos, uma
comunidade imaginada. Acredito que produtores e editores de conteúdo de
telejornais partilham uma cosmologia do que seja a nação e sua cultura, uma
espécie de nós-ideal (Elias: 2006), sedimentado no senso comum das redações
(Sousa: 2002) e operacionalizado a partir das rotinas jornalísticas
(Traquina: 2004; Tuchman: 1983; Alsina: 1996) que permitem a seleção de
determinados elementos culturais regionais em detrimento de outros e, desta
forma, contribuem para o processo de produção de hegemonia cultural.
Os núcleos culturais e ideológicos escolhidos pelos produtores e
editores de conteúdo televisivo como sendo representativos da cultura
nacional são aqueles relacionados ou identificados com aspectos culturais
das cidades sinédoques (Ribeiro: 2002) do País, especialmente a cidade do
Rio de Janeiro. A cidade é o centro de produção televisiva do Brasil, onde
estão localizados os maiores complexos midiáticos brasileiros. As emissoras
geradoras, conhecidas como cabeças-de-rede, encontram-se, majoritariamente,
ali e centralizam a produção de todo o conteúdo exibido em rede nacional,
mesmo quando produzido pelas afiliadas espalhadas pelos estados.
O sistema de televisão em rede favorece a homogeneização porque há
o caráter integrador próprio do meio televisivo, aquele de reunir públicos
os quais as circunstâncias – sejam elas geográficas, econômicas, sociais ou
mesmo culturais – tendem a separar (Wolton: 1996). O Brasil logrou um nível
de integração cultural elevado graças ao sistema de transmissão do sinal
televisivo em rede via satélite. Não podemos esquecer que essa tarefa foi
facilitada pelo fato de a língua da transmissão ser a mesma falada pela
virtual totalidade dos receptores.
A possibilidade de uma pessoa ver, a milhares de quilômetros de
distância dos grandes centros, os mesmos programas ao mesmo tempo foi o
elemento capaz de produzir essa homogeneidade. As particularidades
regionais tendem a ser suprimidas do espectro televisivo, exceto quando
podem ser reduzidas a estereótipos e veiculadas como curiosidades culturais
de países imensos. A cultura das redações torna possível a padronização da
cultura nacional por meio do conteúdo das notícias e do senso comum
partilhado por produtores e editores dos telejornais de rede.
Cabe pontuar que não trabalho com a idéia de um maquiavelismo
simplista, o qual leva a crer que esses processos são pensados e executados
de forma deliberada por alguma figura orwelliana, um Big Brother
homogeneizante sentado em uma cadeira cumprindo burocraticamente a rotina
de determinar o que uma sociedade deve pensar. Acredito, pelo contrário,
que exista influência – e não manipulação – e que a influência opera a
partir das expectativas e aberturas do próprio público que recebe o
conteúdo televisivo. Se existe algo parecido com esse Big Brother, ele não
age no vazio.
É preciso que o público encontre naquele conteúdo algo com o qual
se identifique minimamente para que possa ser operado o "milagre" da
construção de uma cultura nacional a partir de segmentos culturais
regionais. Algum elemento catalisador esses núcleos culturais e ideológicos
devem possuir para, por meio da repetição, serem aceitos pelo público
consumidor como sínteses do nacional. Não acredito em imposição de
identidade simbólica, embora concorde com Bourdieu (1997; 2010) a respeito
do poder de exercício de violência simbólica que aparatos como a televisão
são capazes de exercer em determinados contextos.

2. Televisão e cultura nacional: influências múltiplas


Os meios de comunicação de massa desempenham um papel importante
não apenas para uma construção social da realidade cultural nacional, mas
principalmente para assegurar a noção de pertencimento e de reconhecimento
dentro de um contexto de elevada heterogeneidade. Bird (2010:2) considera
que a antropologia da notícia e do jornalismo não pode ser excluída de um
debate tão rico e provocante, afirmando que "anthropology today can no
longer dismiss media as external forces acting upon distinct 'cultures',
but rather that they are inextricably embedded in culture, reflecting and
reshaping it in an ongoing process".
Como processo, a construção da cultura nacional, em países cuja
televisão oferece um repertório cultural comum, propicia a ocorrência de
fenômenos como aquele que Bucci identifica no caso do Brasil, País em certa
medida integrado via Embratel. Nas palavras do autor,


a televisão é muito mais do que um aglomerado de produtos
descartáveis destinados ao entretenimento da massa. No
Brasil, ela consiste num sistema complexo que fornece o
código pelo qual os brasileiros se reconhecem
brasileiros. Ela domina o espaço público (ou a esfera
pública) de tal forma que, sem ela, ou sem a
representação que ela propõe do país, torna-se quase
impraticável a comunicação – e quase impossível o
entendimento nacional (BUCCI, 1996:9).


Ribeiro (2000: 27) chama a atenção para o fato de que a televisão
não tem conseguido "visibilidade", nem "centralidade" nos estudos
antropológicos e questiona o motivo dessa lacuna: se por não conseguirmos
vê-la ou se por não podermos interpretá-la como "objeto fundamental para a
socialização dos atores sociais". Meu interesse de pesquisa parte do
pressuposto de que a televisão é sim esse objeto de socialização e, também,
de homogeneização de processos socioculturais e precisa ser analisada como
tal. Não apenas a televisão, mas os meios de comunicação de massa em geral,
têm a capacidade de "criar estados emocionais coletivos" (Ortiz: 2001) e
demandam um esforço analítico mais interdisciplinar.
No campo teórico da Comunicação, a televisão é interpretada a
partir de enfoques mercadológicos (Marcondes Filho: 1989; Caparelli: 2004),
jornalísticos (Alsina: 1996; Vilches: 1996) e até mesmo filosóficos (Jost:
2004). Falta, porém, aprofundar a discussão pelo viés antropológico,
perceber, conceber e problematizar a televisão como locus privilegiado de
produção e circulação de cultura. A televisão "é uma técnica, um
eletrodoméstico, em busca de necessidades que a legitimem socialmente"
(Sodré: 1984). Ela é parte de um aparato social que permite a integração
cultural via satélite de uma nação.
Obviamente não se exclui aqui outros canais de difusão cultural,
mas acredito que a noção de brasileiro como "contrafação de carioca"
(Ribeiro: 2000:15) é acentuada graças aos discursos reiteradamente
veiculados pelo meio televisivo que é, afinal, aquele de maior penetração
territorial em nosso País[3]. O Brasil é pensado de maneira homogeneizante
em várias esferas (ibdem), especialmente no campo jornalístico, no qual a
simplificação é a regra. As notícias e o jornalismo, de acordo com Bird
(2010:18), "play a significant role in the construction and maintenance of
culture at the local and global levels". "Construir" e "manter" cultura é
parte do processo de hegemonização que aqui nos interessa.
Para que haja simplificação, é preciso que haja socialização dos
processos produtivos dos conteúdos que serão veiculados. Vários estudos já
foram realizados nesse sentido (Tuchman:1983; Gans: 2004; Pereira: 2003;
Alsina:1996; Sousa: 2002; dentre outros), os quais mostram que os
jornalistas formam uma comunidade que compartilha um código comum, definido
como senso comum das redações. Esses estudos, porém, centram-se na
Sociologia do Jornalismo, com a preocupação de descobrir por que as
notícias são como são. Os jornalistas formam comunidade interpretativa
(Zelizer:1993; Traquina: 2005) que não é mera produtora de notícias, mas
também produtora de símbolos culturais nacionais.
Embora os telejornais não sejam os programas mais vistos da TV – as
telenovelas o são –, eles têm o diferencial de lidar com fatos que afetam o
cotidiano das pessoas com a chancela do real, reconhecível na experiência
do telespectador mesmo que, paradoxalmente, essa experiência seja apenas
midiática. Os telejornais são produtos que veiculam símbolos e signos,
"entidades sociais" (Ribeiro: 2000), constituídas por meio de narrativas
que, conforme Souza (2007: 17), são "atos socialmente simbólicos e
múltiplos que se disseminam por meio de formas escritas e orais, elaboram
modos de ver e viver no mundo e se articulam em campos de disputa. Nas
configurações socioculturais das nações, algumas narrativas preponderam e
se disseminam hegemonicamente."
A imprensa, no século XIX, foi o veículo por excelência de difusão
de idéias homogeneizantes que contribuíram para a construção simbólica do
Estado-Nação com seu caráter de sociedade imaginada. Atualmente, os
modernos meios de comunicação de massa continuam a desempenhar o papel do
denominado "capitalismo editorial" (Anderson: 2008). No Brasil, a TV aberta
é a que detém a maior parcela de audiência e de participação no mercado. A
própria configuração socioeconômica do País, aliado ao alto custo da TV por
assinatura, faz com que o modelo de televisão aberta ainda não enfrente, no
Brasil, a crise de audiência e de arrecadação que já alcança vários países.


3. Interdisciplinaridade: o telejornalismo e a cultura nacional em diálogo
com a Antropologia e as Teorias do Jornalismo


A compreensão da influência múltipla que televisão e cultura
nacional exercem entre si, inevitavelmente, leva o pesquisador a se
movimentar em um campo interdisciplinar, mobilizando conceitos e
metodologias de vários campos em uma interface teórica que, em último caso,
contribui para a riqueza da construção teórica do campo da Comunicação e do
Jornalismo como áreas do saber. A pesquisa na qual este ensaio se insere,
inevitavelmente, dialoga com vários campos disciplinares. O objeto de
pesquisa - processos de homogeneização cultural - está inserido na tradição
antropológica que tem na cultura seu motivo mais básico. O corpus -
produção televisiva sobre cultura nacional e o senso comum das redações
sobre o que vem a ser essa cultura - pede que se dialogue, ainda, com
conceitos caros à sociologia em geral e à sociologia do jornalismo, em
particular, requerendo também o reforço da antropologia da notícia e do
jornalismo.
Uma noção basilar com a qual trabalho é a de núcleo cultural e
ideológico, desenvolvida por Elias (2006), que parte do pressuposto de que
há, em toda sociedade, núcleos conformadores de sua identidade como grupo
diferente de outros grupos e suas particularidades. As pessoas que se
identificam como membros de certas sociedades compartilham uma visão de
"nós-ideal" como forma de diferenciação. Nas palavras do autor,
na Alemanha, na Itália, na França, assim como na
Inglaterra, há algo como um 'nós-ideal', algo que alguém
como alemão, francês, italiano ou inglês gostaria de ser
ou não gostaria de ser, de fazer ou de não fazer; uma
exigência que alguém coloca para si e para o outro como
inglês, francês, italiano ou alemão. Algo assim ocorre em
qualquer Estado nacional (ELIAS: 2006:119).


A constituição, disseminação e aceitação de qualquer que seja o
caráter do "nós-ideal" depende de uma base comum, embora com nuances, que
se coloca acima das diferenças individuais, em menor escala, e regionais,
em maior escala, dentro da sociedade. Se nações são comunidades imaginadas
(Anderson: 2008), culturas nacionais são artefatos igualmente imaginados a
partir de culturas locais. A composição social dos indivíduos – ou habitus,
como define Boudieu (2010) – é determinada pela cultura compartilhada e
pela ideologia que sedimenta a forma como os indivíduos identificam-se como
grupo. Neste trabalho, a noção de habitus é incorporada para ajudar a
compreender quem são as pessoas que decidem o que é a cultura nacional
disseminada no conteúdo dos telejornais.
Produtores e editores de conteúdo compartilham um habitus,
compartilham uma visão de mundo e têm no processo de socialização que torna
possível o senso comum das redações (Pereira Jr: 2003; Tuchman: 1983;
Sousa: 2002) o elemento que faz com que as escolhas individuais desses
atores sociais sejam, em essência, escolhas coletivas. Kunczik (1997)
afirma que notícia é aquilo que os jornalistas escolhem como notícia e
podemos, seguindo esse raciocínio que se assenta no poder individual e
coletivo de decisão sobre que aspecto da realidade privilegiar, afirmar que
o que constitui a cultura nacional é, em parte, aquilo que os produtores e
editores de conteúdo decidem como tal. A cultura nacional, ou aspectos
relevantes dela, seria aquilo que alguém que vive certas experiências
culturais determina e dissemina para o restante da sociedade.
Bird (2010) argumenta que vivemos em um mundo em que a mediação de
experiências vividas por outros acaba por determinar as nossas próprias
experiências e nossa percepção da realidade – percepção esta que seria
individual, mas transforma-se em coletiva. Para a autora,


we live in a mediated world: much of what cultures 'know'
about each other is learned from media, with news being a
key conduit. News is unique among media forms in that it
purports to be (and is often received as) an accurate
reflection of reality, even though we know that news is a
cultural construction that draws on narrative conventions
and routine practices (BIRD: 2010:5).


A notícia é indicador cultural, e não apenas produto de uma rotina
industrial. Bird (2010:10) argumenta que os textos midiáticos guardam
valiosos significados simbólicos e são, eles mesmos, importantes narrativas
culturais. Logo, o contexto de produção e circulação das notícias é um item
decisivo para análises que se propõem a dar conta da construção de
realidades sociais a partir de produtos midiáticos. Esta consciência tem
balizado a realização de inúmeros estudos em antropologia e sociologia da
notícia e do jornalismo, prática que remonta aos estudos das rotinas
produtivas da mídia da década de 1970 e que ganhou sofisticação teórico-
metodológica ao longo dos anos. As notícias, como produtos midiáticos, não
dizem respeito apenas a acontecimentos transformados em textos e imagens;
as notícias, em última instância, dizem respeito a processos sociais e
culturais.
É importante deixar claro o conceito de cultura utilizado neste
trabalho. É fato que não existe uma definição ao mesmo tempo abrangente e
incontroversa do que venha a ser cultura. Williams (1979) nos lembra que o
termo passou a ser identificado com civilização a partir do último quartel
do século XVIII, indicando a mudança estrutural de uma sociedade que
deixava de ser agrícola para torna-se, cada vez mais, urbana. Cultura, aos
poucos, passou a significar conhecimento erudito para, com a crise da
"civilização européia" após duas grandes guerras mundiais e o advento dos
meios de comunicação de massa e sua consolidação a partir da década de
1960, ganhar um novo caráter e uma denotação plural: não se pensa mais a
cultura, mas as culturas que emanam de uma sociedade.
Cultura não é algo estanque, nem apartado da realidade social. A
construção de um conceito abrangente deve levar isso em consideração. A
proposta de conceituação de cultura em Williams articula língua, literatura
e ideologia e, para o autor, o que chamamos de cultura é uma força
produtiva essencial para a "produção de nós mesmos e de nossas sociedades".
Nesse sentido, cultura não é reflexo, mas parte constituinte de toda e
qualquer realidade social. Assim, podemos defender que o conteúdo dos
telejornais que "vendem" uma idéia de cultura nacional não é mero reflexo
do senso comum das redações – redação entendida agora como uma sociedade.
Esse conteúdo é, antes disso, parte tanto da sociedade mais restrita da
redação quanto da sociedade mais ampla do Estado-Nação.
Cultura é como a língua: uma atividade social prática (Bakhtin:
1999), que depende de interações sociais para se estabelecer. Cultura,
assim como a língua, é igualmente consciência social prática. Articulando
essa noção que recebe contribuições da teoria marxista da linguagem e com o
conceito de hegemonia em Gramsci (2006), Williams apresenta uma definição
tão abrangente quanto factível de cultura, ao afirmar que


é todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a
totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de
energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É
um sistema vivido de significados e valores –
constitutivo e constituidor – que, ao serem
experimentados como práticas, parecem confirmar-se
reciprocamente (WILLIAMS:1979: 113).


Elias (1994) não nos deixa esquecer ainda que cultura representa
necessidade coletiva de expressão, como história coletiva cristalizada em
um rol de elementos simbólicos que identificam um determinado grupo social.
Wolf introduz a problemática da cultura como ideologia em produção. O autor
sustenta que a cultura é "matéria-prima a partir da qual as ideologias são
construídas e ganham influência" e alerta para o fato de que "a ideologia
seleciona do plano mais geral da cultura aquilo que lhe é mais adequado, o
que pode atuar como marcas, símbolos ou emblemas de relações que se quer
destacar" (citado em Ribeiro & Feldman-Bianco 1998: 156).
Discutir ideologia, nesse sentido, tem a importância de clarear a
adjetivação inseparável da noção de núcleo que norteia a pesquisa mais
ampla no qual este artigo está inserido: ao me debruçar sobre núcleos
culturais e ideológicos que constituem a cultura nacional, não posso deixar
de tecer considerações sobre a ideologia como conceito e como prática
discursiva. Em Wolf (1999:4), encontramos uma abordagem que pluraliza o
fenômeno – não existe uma ideologia, mas várias – e o associa
indiscutivelmente ao aspecto político da sociedade, pois ideologias
"sugerem esquemas unificados ou configurações desenvolvidas para subscrever
ou manifestar poder". Estes esquemas ou configurações são parte
constituinte do fenômeno da hegemonização cultural entendido como processo
de transformação de aspectos de cultura localmente enraizados em
nacionalmente compartilhados.
Para continuar este diálogo teórico é preciso introduzir aqui uma
discussão conceitual sobre hegemonia, cuja teorização clássica amplamente
aceita no campo das Ciências Sociais é uma proposta do pensador comunista
Antonio Gramsci (2006), que fundou toda uma tradiçãensador comunista
Antonio Gramsci, que fundou toda uma tradiço de interpretação da realidade
social a partir da relação entre consenso e força para a estabilização das
relações sociais. Hegemonia, de acordo com a proposta gramsciana, é a
direção, o domínio, a liderança de um grupo sobre os demais, através da
persuasão e do consenso, perpassados pela ideologia.
Hegemonia é o exercício da capacidade de unificar blocos e posições
por meio de dois mecanismos complementares: a força e o consenso. A força,
de acordo com o autor, é o pilar principal das relações hegemônicas, já que
por meio dela seria possível conservar as estruturas sociais em meio à
contestação. E para que não haja contestação ao poder hegemônico, a
liderança busca apoio no consenso, nas grandes narrativas unificadoras, na
ideologia.
Estou interessada no segundo elemento, o consenso, apoiado nas
grandes narrativas e na ideologia. Claramente, a cultura nacional e a
própria noção de identidade nacional é uma grande narrativa unificadora
amplificada, entre outros meios, pelos aparatos de comunicação de massa. As
grandes narrativas se apóiam nos núcleos culturais e ideológicos formadores
da cultura nacional e tornam-se pilares para a construção da hegemonia
interna protagonizada por regiões ou cidades sinédoques (Ribeiro:2002)
dentro dos Estados nacionais. Cidades sinédoques são aquelas que
concentram, no imaginário coletivo, a síntese da representação cultural,
social, política e/ou econômica de uma determinada nação.
O Estado-Nação, aliás, é uma comunidade simbólica, imaginada
(Anderson: 2008) e que funciona, culturalmente, a partir do reconhecimento
entre as partes que o compõem de que existe um substrato simbólico-
discursivo comum. É interessante postular que esse substrato, arbitrário em
princípio, compartilhado pelos membros da sociedade como fio condutor que
dá sentido ao imaginário coletivo sobre a nação, pode ser construído –
embora não unicamente – a partir de escolhas individuais de um grupo
reduzido de atores dessa comunidade. Jornalistas são atores que
compartilham sensos comuns sobre vários assuntos pertinentes à realidade
social.
O chamado senso comum das redações (Traquina: 2004; Tuchman: 1983;
Sousa: 2002, dentre outros) é um denominador do que a comunidade
jornalística reproduz como sendo o "mundo possível" (Alsina:1996),
enquadrado em categorias que o público irá reconhecer como parte integrante
de seu próprio mundo. Os acontecimentos sociais passam assim pelo crivo dos
produtores midiáticos que tipificam os fatos em quadros de referência
preestabelecidos. Wolton (1996:6) defende que o público sabe assistir às
imagens que recebe e não é "jamais passível, nem neutro. O público filtra
as imagens em função dos seus valores, ideologias, lembranças,
conhecimentos".
Os produtores e editores de conteúdo do telejornal não lançam,
simplesmente, idéias soltas do que será aceito como representativo da
cultura nacional, como se a audiência fosse uma massa anônima e atomizada
de pessoas que aceitam manipulações simplórias. O que existe é certa
influência, potencializada pela repetição e por fórmulas de simplificação
da realidade que só funcionam porque a própria audiência está presente no
momento da produção daquele conteúdo. Esse fenômeno é chamado de "audiência
presumida" (Alsina: 1996; Sousa: 2002; dentre outros).
A audiência presumida é um fator importante, portanto, na
construção da realidade noticiada porque os produtores — jornalistas nas
mais variadas funções, e emissoras em geral — levam em consideração o que
pode ir ao encontro das expectativas de quem assiste à televisão. A partir
do perfil médio dos telespectadores (traçado por meio de pesquisas
qualitativas periodicamente encomendadas pelas emissoras), é possível aos
produtores "colocarem-se no lugar de quem assiste" e selecionar assuntos e
abordagens que, acreditam, interessem ao telespectador.
Os critérios de noticiabilidade – que atuam como guias que os
jornalistas usam para determinar que acontecimentos merecem ser
publicizados, como uma forma de emprestar ordem a um caos de ocorrências da
vida cotidiana – agem como fatores de seleção cultural. A noticiabilidade
empresta legitimidade àquilo que compõe o noticiário e, para os jornalistas
que a utilizam, é uma forma também de garantir a sensação de isenção em uma
atividade que tem pouco de isenta. Quando o material a ser selecionado e
publicizado diz respeito a aspectos do que constitui a – suposta e
construída - essência cultural de uma nação, temos uma faceta pouco
compreendida de um processo mais amplo: aquele que diz respeito à
homogeneização cultural em um país de elevada diversidade cultural, porém
apresentado aos olhos do público interno e externo como homogêneo,
insuspeito e acima de qualquer possibilidade de contestação.

4. Considerações finais

Vilches (1996:15) afirma que a televisão é uma forma de expressar
experiências culturais e estéticas diversas que acabam por relativizar o
conceito de realidade e, por isso, o autor comenta que a televisão não é
boa nem má em si: é apenas um meio que "expone el mito de la sociedad
actual a través de lo narrativo, de lo fantástico y del ritual de la
cotidianidad, sin buscar la objetividad de la realidad al modo en que lo
hacen las ciencias". Sendo assim, os processos de construção e disseminação
de uma narrativa sobre o que venha a ser representativo da cultura nacional
no âmbito dos meios de comunicação de massa não seguem critérios
científicos nem tem a pretensão de dar conta de todos os aspectos que,
antropológica e sociologicamente, deveriam constituir essa narrativa.
Tudo aquilo que é específico demais, particular demais, tende a ser
suprimido da grande narrativa televisiva – sobre qualquer assunto – porque
a televisão é um meio de comunicação destinado a um público imenso, anônimo
e heterogêneo. O Estado-Nação assenta-se na "homogeneização das diferenças
– somos todos um só, uma só língua, uma só cultura", assim, "conjuntos de
feitios e intenções diferentes são agrupados e impelidos a portar
características gerais que são, em um sentido, uniformizadoras" (Souza:
2007, 41).
A diversidade controlada de experiências partilhadas, mediadas
pelas ondas hertzianas, ajuda a construir não apenas os laços sociais, o
sentimento de povo em comunidade, mas também a própria realidade. No caso
da televisão brasileira, por exemplo, ela foi capaz de contribuir para a
criação de um elo entre os indivíduos de todas as partes do País, forjando
uma idéia de identidade nacional, entendendo por identidade a definição de
Castells (1999:22) como sendo "a fonte de significação e experiência de um
povo". Identidade esta talvez não nacional, mas midiática.






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[1] Professora Assistente do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do
Maranhão, Campus II. Doutoranda do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre
as Américas da Universidade de Brasília. [email protected]
[2] O artigo é parte das reflexões teóricas iniciais da pesquisa intitulada
"Mídia, Cultura e Identidade nacional: processos de hegemonização cultural
em perspectiva comparada", com orientação de Gustavo Lins Ribeiro.
[3] No Brasil, o sinal da maior emissora, a Rede Globo, cobre 98% do
território nacional e alcança, segundo dados da própria Globo, a totalidade
da população hoje calculada em quase 200 milhões de habitantes.
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