Telejornalismo e Fait Divers: uma nova maneira de narrar a notícia

May 26, 2017 | Autor: Adriana Pierre Coca | Categoria: Noticia, Entretenimento, Fait Divers, Folhetim, Telejornal
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Telejornalismo e Fait Divers: uma nova maneira de narrar a notícia?

Adriana Pierre Coca

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RESUMO O presente artigo pretende investigar a parceria entre o discurso ficcional e o discurso jornalístico na televisão. Em discussão: os fait divers (termo francês introduzido por Roland Barthes no livro Essais Critiques de 1964) que remota da imprensa popular francesa do século XIX e é associado às temáticas sensacionalistas, como escândalos, bizarrices e casos policiais. Pretendemos aqui relacionar como se dá a fusão entre os fait divers e os fatos narrados nos programas jornalísticos, em especial os telejornais, já que atualmente constata-se que os fait divers ganham a cada dia mais espaço na televisão brasileira.

Palavras-chave: Folhetim; Notícia; Fait Divers; Entretenimento; Telejornal.

Abstract This article investigates the partnership between fictional discourse and media discourse on television. Under discussion: the fait divers (the French term introduced by Roland Barthes in his book Essais Critiques, 1964) that the remote French popular press of the nineteenth century and is associated with the sensational topics such as scandals, bizarre and police cases. We intend here to relate how is the merger between fait divers and the facts narrated in the news programs, especially news programs, as currently it appears that the fait divers earn increasingly more space on Brazilian television.

Keywords: Feuilleton; News; Fait Divers; Entertainment, TV News.

1 Especialista em Técnicas e Teorias da Comunicação pela Fundação Cásper Líbero, MBA em Gerenciamento de Projetos, segundo as Práticas do PMI pela Faculdade de Informática Paulista. Jornalista. Radialista graduada pela UNESP. Trabalhou nas redações da TV Cultura e SBT, onde também dirigiu e produziu programas sob o comando de Silvio Santos. Leciona as disciplinas de Telejornalismo do Curso de Jornalismo e Produção Publici-tária em TV I e TV II do Curso de Publicidade e Propaganda.

Telejornalismo e Fait Divers: uma nova maneira de narrar a notícia?

Introdução Imprensa popular francesa, século XIX, época em que as notícias extraordinárias estampadas nas páginas dos jornais aparecem entre os folhetins. O público feminino era o principal leitor/consumidor desse tipo de “literatura” que já naquele tempo era garantia de sucesso. A notícia romanceada conhecida como fait divers – é um gênero informativo, irmão próximo da chamada Nouvelle ou Chronique, a crônica de jornais. É comum ouvirmos falar da crônica dos fait divers ou apenas fait divers. Alguns autores usam a tradução – fatos, assuntos ou casos diversos, mas não há tradução satisfatória em português e para evitar reducionismos ou diferenças de significação convém usar sempre a grafia original em francês. Nos principais manuais de redação, aqui no Brasil, os fait divers são lembrados apenas no Manual de Redação do Jornal Folha de S.Paulo. Nele o termo aparece como uma “expressão usada para designar notas e notícias com alto potencial de atração para o leitor. Exemplos: crime envolvendo família de classe média ou alta; casamento de personalidade; morte de pessoa famosa.” (NOVO, 1992, p.142.) Roland Barthes o definiu como:

(...) uma informação total, ou mais exatamente imanente; ela contém em si o seu saber; não é preciso conhecer nada para consumir um fait divers, ele não remete formalmente a nada além dele próprio, evidentemente o seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, a seus sonhos, a seus medos. (BARTHES, 2009, p.216)

Esse tipo de notícia que traz na essência a busca pelo extraordinário, pelo fantasioso e pelo que choca é cada dia mais presente na narrativa da TV, na ficção, no jornalismo e também na publicidade, mas o que nos interessa aqui é como o discurso ficcional e como o discurso jornalístico se misturam no processo da construção da notícia. Visto que a fronteira entre ficção e realidade nunca foi tão próxima, embora há muito tempo o sincretismo entre elas já faça parte da linguagem televisual, em setembro de 1969 o então diretor global Walter Clark estreiou o Jornal Nacional entre duas telenovelas, recurso que estimulou a briga pela audiência e que funciona até hoje, exatos 41 anos depois. Com esse breve artigo queremos levantar a reflexão sobre como se alicerça nos dias de hoje essa fusão tão antiga. Será que o nosso telejornalismo é mesmo ancorado em fait divers? Até que ponto o discurso ficcional está presente na narração dos fatos? Para isso vamos dividir o texto em três partes: as características dos fait divers, a fusão narrativa entre o discurso ficcional e a o discurso jornalístico e os reflexos dessa interação nos programas jornalísticos de televisão, sobretudo nos telejornais.

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1. A Estrutura do Fait Divers O fait divers apresenta características bem definidas, a principal delas é a imanência. Segundo o Dicionário da Comunicação, organizado por Ciro Marcondes Filho, imanência é “aquilo que está contido num ser, que lhe pertence, independentemente da interferência de fatores externos”. (MARCONDES FILHO, 2009, P.178) Associando esse conceito a notícia, imanente quer dizer que um fato narrado como fait divers dispensa o contexto da informação para ser entendido e isso o diferencia da construção de qualquer outra notícia. Vejamos o que diz a reportagem de abertura do “Jornal Hoje” da TV Globo em 30/08/2010. A apresentadora Sandra Annenberg começa a edição com o seguinte texto: Sandra Annenberg: “O Jornal Hoje começa mostrando imagens impressionantes feitas por caçadores de redemoinhos. Eles são cinegrafistas e fotógrafos que se aventuram registrando fenômenos formados pelo fogo e pela poeira nesses dias quentes. No interior de São Paulo não chove há cem dias.” A reportagem entrou no ar com imagens de canudos de fogo atingindo até 10 metros de altura também trazia sonoras/entrevistas com depoimentos empolgados sobre o fenômeno, nada exigia do telespectador para ser compreendida. (JORNAL HOJE, TV GLOBO, 30/08/2010) De outra parte a mesma edição do telejornal exibiu uma reportagem sobre a indústria têxtil que no segundo off (texto narrado coberto por imagens) já pressupõe um conhecimento mínimo do telespectador para que a informação seja completa: OFF: “O setor têxtil emprega engenheiros, químicos, técnicos em máquinas, operadores, modistas, designers, costureiras, são 30 mil empresas no país.” (JORNAL HOJE, TV GLOBO, 30/08/2010) Podemos dizer, então, que os temas dos fait divers são tratados sem qualquer preocupação com as relações que os cercam. Logo, pautas sobre ecomonia, política, artes ou história não permitem o tratamento da notícia como fait divers, que tem o surpreendente como traço. Um dos fatores que garantem a invasão desse recurso sensacionalista na telinha é o imediatismo característico das mídias de hoje que nos conduzem a querer as informações prontas e que, infelizmente, muitas vezes não nos permite a reflexão sobre aquilo que estamos consumindo. Guilherme Jorge Rezende diz que: A TV procura atender às necessidades de entretenimento do público. Essa satisfação se processa por meio da elaboração de mensagens homogeneizadas destinadas a um consumidor médio ideal, em função de ingredientes que padronizam produtos da indústria cultural: ação, aventura, amor, felicidade, finalfeliz, erotismo, violência, o pitoresco, as relações maniqueístas, o culto às personalidades (as “vedetes”, os “olimpianos”), a trivialização da vida privada, o jogo-lúdico e o jogo-competição, a exaltação de valores juvenis e outros

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arquétipos que constituem o imaginário coletivo. (REZENDE, 2005, p.3)

O fait divers fala diretamente a esse público porque como esclarece Barthes (2009) traz a informação na sua totalidade, não há necessidade de conhecimento prévio sobre nada para entender o que nos conta um fait divers e por tratar de temas do imaginário coletivo dá ao telespectador/receptor uma sensação de satisfação. A temática repetitiva é outra característica marcante. Embora destacados como inéditos, os assuntos são sempre os mesmos, giram em torno de acidentes, catástrofes, mortes, personalidades e do inusitado. Michel Foucault acrescenta que “de outra parte, é preciso que todas estas listas de acontecimentos - apesar da sua frequência e sua monotonia – apareçam como singulares, curiosas, extraordinárias, únicas ou quase, na memória dos homens.” * (FOUCAULT, 1973, P.269) Podemos relacionar a repetição temática apontada por Barthes com a reflexão sobre a serialização feita por Umberto Eco no texto “A Inovação do Seriado” publicado em “Sobre os Espelhos e outros Ensaios” (1989) quando o autor explica que: produzir em série é criar algo com o mesmo padrão, ou seja, sempre igual, da mesma forma e afirma que a serialidade dos meios de comunicação de massa pode ser mais nociva do que a industrial, porque não é um objeto que está sendo produzido em grande escala e sim conteúdos e expressões, que aparentemente são distintos. O perigo está no tratamento da notícia, tratar a informação de forma seriada é “fingir” que algo inovador está sendo contado e continuar trabalhando “o mesmo conteúdo básico” como alerta Eco. (ECO, 1989, p.121) A proposta contida nos fait divers é essa, os temas se repetem e são conduzidos como se fossem únicos, serializando a notícia. Isso torna o fait divers sempre atual e essa atualidade é o que buscamos quando selecionamos os fatos/as pautas que vão ocupar nossas mídias. * Tradução livre da autora.

Vamos a alguns exemplos: • Polvo da Copa, quem não ouviu, ou melhor, viu o polvo Paul morador do aquário da cidade alemã de Oberhausen dar seu palpite antecipado sobre qual time venceria as partidas do mundial? A Copa do Mundo de Futebol da África do Sul teve um profeta eleito pela mídia e torcedores. Inusitado, não? (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 07/07/2010) • Duas catástrofes naturais que mereceram o tratamento sensacionalista da mídia televisiva no início desse ano de 2010 também se enquadram no gênero fait divers de reportar. São eles: o deslizamento de 01 de janeiro em Ilha Grande, Angra dos Reis, litoral do Rio de Janeiro e o terremoto no Haiti, quinze dias depois. Seguem alguns trechos da reportagem que foi ao ar no mesmo dia do acidente em Angra, pelo Jornal Nacional da TV Globo. • OFF: “A imagem impressiona. Terra, pedras e árvores desceram em cima de pelo menos três casas e parte de uma pousada. A Praia do Bananal ficou

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debaixo de galhos e lama. E o mar, tingido de marrom. (...) Durante o dia, a água da chuva ainda descia da encosta como cachoeira – um cenário de destruição. O trabalho de resgate do Corpo de Bombeiros é muito difícil. Eles tentam encontrar, no meio de toneladas de terra, vítimas da tragédia.” Na edição de 16/01/2010 do mesmo telejornal, a pauta do dia era a destruição no Haiti e a cabeça/lead (texto lido pelo apresentador para chamar a reportagem) começou assim: Carla Vilhena: “As Nações Unidas consideram o terremoto no Haiti o pior desastre em 60 anos de história da instituição.” (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 16/01/2010) Caso Isabela Nardoni - espetacular também foi a imagem de comemoração com fogos de artifício repetida muitas vezes em nossos telejornais em 27/03/2010, quando saiu o resultado do julgamento de Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá, condenados há 31 e 26 anos de prisão respectivamente, pela morte da menina Isabela Nardoni. Nesse dia, o telejornal de maior audiência no país abriu a reportagem sobre o assunto dessa forma: Chico Pinheiro: “Foi feita justiça à menina Isabela Nardoni quase no dia do segundo aniversário do assassinato dela - esganada e jogada do sexto andar pelo pai e a madrasta.” (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 27/03/2010)

Os exemplos são do Jornal Nacional, por se tratar do principal telejornal do país, com a maior audiência registrada, em comparação com os demais telejornais de emissoras abertas. O que nos propomos nessa discussão não é dar conta de analisar a fundo como essas notícias foram ao ar, apenas exemplificar como a emoção é o fio condutor desse tipo de narrativa como afirma Barthes. O autor sinaliza ainda que os fait divers são ancorados nas relações de causalidade e coincidência e apresenta para o que chama de problemas da causalidade dois viés possíveis: • causa perturbada, mais um caso recente pode servir de exemplo, o caso Bruno, o ex-jogador do Flamengo acusado de mandar sequestrar e matar a amante Elisa Samudio, em junho de 2010. O motivo (causa) que teria levado ao crime pouco importa, o que surpreende é o efeito (resultado), o fato da moça ter sido provavelmente esquartejada e ter os pedaços jogados aos cães. A violação do que o entendemos como “normal” no senso comum é o que choca; • causa esperada, nesse aspecto a excepcionalidade do fato se inverte, não é a causa/efeito que chama a atenção, o foco recai sobre os personagens envolvidos, em geral, idosos, crianças, mães. Não precisamos de um esforço muito grande de memória para relembrar a notícia de maio desse ano sobre a senhora de 77 anos que vestida de freira tentou sacar um título de dívida pública de quase dois milhões de reais em um banco de Niterói, região metropolitana do Rio de

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Janeiro. Em 25/08/2010, durante o período em que o Jornal Nacional estava sendo observado para a redação desse artigo (De 23/08/2010 a 30/08/2010), destaque para a notícia do bebê de 20 dias que, sobreviveu a um assalto seguido de acidente de carro, em São Paulo. • As relações de coincidência também se alicerçam na emoção e se apresentam dentro da estrutura que forma os fait divers de duas maneiras: • repetição - associada aos casos sem uma explicação razoável, como o personagem da reportagem da revista eletrônica, o “Fantástico” da TV Globo exibida em 02/05/2010, um morador de Brasília que ganhou duas vezes na mesma semana na loteria, mas não foi só isso, o homem não costumava jogar e o bilhete premiado teria sido encontrado no para-brisas de seu carro. Como isso foi possível, o ganhador não teve o nome revelado e atribuiu tamanha sorte a mão divina, não há outra explicação, segundo ele; • antítese - quando a situação está vinculada a noção de cúmulo - conceito vindo da tragédia grega e associado as coincidências inexplicáveis, um exemplo é a queda do voo 1907 da Gol em setembro de 2006, algo aparentemente inacreditável aconteceu, dois aviões se chocaram no ar. A sequencia de falhas cometidas serviram de amarração para a narrativa do docudrama intitulado “A Tragédia do voo 1907” da Discovery Channel em uma série especial sobre acidentes aéreos. Logo no início do programa a narração e trechos de entrevistas editados introduzem o assunto: • Off: “Foi uma sucessão de erros. (...) Coincidências inacreditáveis. (...) O Discovery Channel reúne todas as peças deste quebra cabeça assustador. (...) Descubra a história real por trás da tragédia do voo 1907.” (DISCOVERY CHANNEL, 10/06/2007). Além do tema: acidente, as coincidências dão o tom da narrativa que promete logo no início do programa dar conta da verdadeira história por trás da tragédia, ou seja, toda a informação que precisamos ter sobre o assunto. • E por fim, as surpresas dos números, outro elemento dos fait divers, nesse caso os nossos telejornais são enfáticos, vemos todos os dias notícias que surpreendem pelos números. O Jornal Nacional de 27/08/2010 nos traz mais um exemplo, • Fátima Bernardes: “Foram divulgadas, ontem à noite, as primeiras imagens dos trabalhadores presos há 22 dias numa mina, no Chile. Os mineiros descreveram a rotina 700 m debaixo da terra: dividem o tempo entre orações e jogos de dominó.” (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 27/03/2010, grifo nosso) A essa notícia vale acrescentar que a operação de retirada dos trabalhadores da mina deve durar quatro meses. Na edição anterior do mesmo telejornal, destaque para os números tendo uma personalidade como destaque, Fátima Bernardes: “O piloto brasileiro Rubens Barrichello vai completar 300 corridas na F1 neste domingo”. (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 26/03/2010,

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grifo nosso). Portanto, a natureza intrínseca dos fait divers fisga o telespectador pela emoção, com pautas associadas ao espetáculo e ao divertimento, estamos no terreno do entretenimento, que nos carrega ao mundo da fantasia, do sonho como sinalizado por Barthes. O problema é que essa narrativa está diretamente associada ao jornalismo que tem o compromisso com a verdade, pelo menos, a busca dela. A esse respeito Sodré nos esclarece que o interesse maior dessa reflexão consiste na associação que se pode fazer entre o fait divers e o jornalismo como prática social da narrativa. Assim é que Barthes sublinha a predileção da imprensa pelo cúmulo, entendido como algo que ultrapassa as medidas habituais, como um inaudito: “É precisamente quando são chamados à reconciliação que o marido mata sua mulher”. Ou seja, a informação é estruturada – assim como a narrativa folhetisnesca ou melodramática.” (SODRÉ, 2009, p.229)

2. A Fusão Narrativa A informação nos chega pela televisão em diferentes formatos: revistas eletrônicas, reality shows, documentários e telejornais, entre outros programas, o que nos interessa nesse artigo é pensar a narração do fato com vertentes ficcionais nos telejornais, que é o principal meio de divulgação de informações na TV e se destaca porque conta com a vantagem da transmissão ao vivo, poder mostrar os fatos na hora em que acontecem. Fazendo um breve histórico de alguns dos nossos telejornais sensacionalistas é possível perceber a presença do fait divers e com ele a garantia de audiência em alta, talvez assim possamos entender o avanço sutil dessa narrativa nos telejornais clássicos da TV brasileira. Vinte de Maio de 1991 entra no ar pelo SBT – Sistema Brasileiro de Televisão o “Aqui Agora” telejornal com câmera nervosa, repórteres-personagens que cobriam fatos policiais explorando o plano-sequencia, o sucesso da fórmula é estrondoso e a emissora de Silvio Santos atinge em pouco mais de um ano vinte pontos de audiência no Ibope, na grande São Paulo. Na rasteira do “Aqui Agora” surgem o “190” pela CNT, o “Cidade Alerta” na Record, “Repórter Cidadão” na Rede TV e o “Brasil Urgente” na TV Bandeirantes. Em uma tentativa frustrada, uma segunda versão do “Aqui Agora” voltou para a grade do SBT, em fevereiro desse ano, mas dessa vez mais brando e por pouco tempo, durou menos de dois meses no ar. Segundo o que foi divulgado pela imprensa, porque não atingiu a audiência desejada de 8 pontos no Ibope. Só que quem achou que o dono do baú desistiu de ter um telejornal que exemplifica os fait divers em sua essência se surpreendeu mais uma vez, e pode conferir todos os dias edições de 20 minutos do B.O programa que segue o mesmo estilo sensacionalista e rende bons pontos na audiência da emissora. Essa trajetória dos elementos dos fait divers no telejornalismo sensacionalista na TV Brasileira sempre esteve associada à audiência, consequentemente ao lucro das emissoras. Portanto, não é de se estranhar o avanço dessas características nos

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telejornais tradicionais. Para o jornalista e crítico de TV Eugênio Bucci esse sincretismo impossibilita a busca pela verdade factual que deve ser o objetivo principal do fazer jornalístico, Bucci argumenta: “Onde quer que a notícia esteja a serviço do espetáculo, a busca pela verdade é apenas um cadáver. Pode até existir, mas, sempre, como um cadáver a serviço do ‘dom de iludir’” (BUCCI, 2004, p.129) Bucci completa seu raciocínio de forma assustadora quando diz que É por isso que, hoje, o telejornalismo no Brasil dificilmente pode ser compreendido como resultado de um esforço autêntico pela busca da verdade. Há exceções, por certo. Há emissoras de TV pública que desafinam o coro comercial das grandes redes. Há momentos ou coberturas de excelência jornalística mesmo nas redes comerciais – mas não constituem a regra. O negócio do telejornalismo não é jornalismo. Seu negócio é outro. Seu negócio não é sequer a veiculação de conteúdos. As grandes redes de televisão aberta têm como negócio a atração dos olhares da massa para depois vendê-los aos anunciantes.” (BUCCI, 2004, p.130)

Esse olhar apocalíptico reforça a ideia de que o telejornalismo é ancorado somente em fait divers, mas cabe aqui outra reflexão que merece atenção. As considerações de Arlindo Machado que entende o telejornal como um gênero de caráter polifônico, quer dizer que tem em seu discurso várias vozes (editores, repórteres, cinegrafistas) envolvidas na construção da notícia. E aponta certa ingenuidade de analistas e críticos que dizem que os telejornais não são neutros. Para Machado, se a televisão coloca no ar duas opiniões contra e um a favor, não significa que o telespectador vai necessariamente endossar a majoritária. (2000) E afirma que A televisão não se resume a uma única emissão: ela consiste num fluxo ininterrupto de imagens e sons, que progride diariamente diante de nossos olhos e ouvidos, perfazendo, portanto, um processo, ao longo do qual o espectador pode formar uma opinião. A diferença em relação aos outros meios, é que a reflexão do telespectador, pode se dar ao vivo, ou seja, num processo que ainda está em andamento, pode tomar a forma de ação política e, em alguns (mas não poucos) casos, resultar em mobilização.” (MACHADO, 2000, p.129)

Será?

Conclusão São evidentes as características folhetinescas dos fait divers no telejornalismo. Os elementos que compõem essa narrativa são facilmente identificados e remetem a emoções que criam com o telespectador uma ilusão de proximidade. A fusão do

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discurso ficcional e do discurso jornalístico também é preocupação entre os teóricos de televisão que em sua maioria tem uma visão pessimista em relação ao meio. Sem dúvida toda construção da notícia, na TV ou em qualquer outro veículo deve ser realizada levando em conta o compromisso que temos com o público, com a busca pelos fatos tais quais eles se apresentam. Como jornalistas, nossa missão é contribuir para o enriquecimento cultural, social, político e econômico da sociedade, parafraseando aqui a missão do curso de jornalismo da UP. Não queremos, portanto, com esse artigo endossar as afirmações que na televisão não é possível fazer jornalismo, e sim, levantar a reflexão para que nossos alunos possam estar atentos as fronteiras do real e do ficcional, pois acreditamos que podemos usar recursos da ficção para narrar notícias, sem com isso, tornar nossas coberturas fictícias ou espetaculares como muitos preferem chamar a linguagem da TV.

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REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Ensaios Críticos. Lisboa: Edições 70, 2009. BUCCI, Eugênio, KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004. ECO, Umberto. Sobre os Espelhos e outros Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. FOUCAULT, M. Ces meutres qu’on raconte. Moi, Pierre Rivière ayant égorgé ma mére, ma souer et mon frére. Paris: Julliard, 1973. LAGE, NILSON. Linguagem Jornalística. São Paulo: Ática, 2006. MACHADO, Arlindo. A Televisão levada a Sério. São Paulo: Senac, 2000. MARCONDES FILHO, Ciro. A Saga dos Cães Perdidos. São Paulo: Hackers Editores, 2000.

________________________ (org.). Dicionário da Comunicação. São Paulo: Paulus, 2009. NOVO Manual da Redação Folha de S.Paulo. São Paulo: Folha de S.Paulo, 1992. REZENDE, Guilherme Jorge de. O Discurso Jornalístico e o Discurso Ficcional na Televisão Brasileira. Trabalho apresentado na Mesa Temática “Análise do Discurso e Estudos Midiáticos: fronteiras e diálogos”, no XXVIII Congresso da INTERCOM, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, em setembro de 2005. SODRÉ, Muniz. A Narração do Fato: Notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

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