Televisão e nazismo

June 16, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Political communication, Comunicação, Historia Contemporánea, Fascismo, Televisão
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TELEVISÃO E NAZISMO por Waldísio Araújo

Felizmente o Fascismo italiano e o Nazismo alemão quase não conheceram a televisão, mas se basearam no rádio. As vozes de Hitler ou de Mussolini eram escutadas frequentemente entre propagandas, palavras de ordem, noticiários manipuladores e música clássica (o Jazz era considerado por esses governos "arte degenerada"). A televisão já existia, é verdade, e as Olimpíadas de Berlin, patrocinadas, hospedadas e manipuladas por Hitler, foram Imagem de aparelho televisivo cedida por Wikipedia. televisionadas mas para um público Montagem com imagem histórica por Waldisio Araujo. muito restrito, pois era algo demasiadamente caro; de modo que a veiculação em massa de imagens à distância dava-se sobretudo pelo jornal(imagem estática) e pelo cinema (imagem em movimento), mas a época era mesmo oral, e o rádio reinava, servindo de modelo inclusive para o desenvolvimento dos primeiros aparelhos de TV. Como seria de esperar, o Estado nazifascista se apoderou das estações e incentivou ainda mais o uso dos aparelhos, chegando a facilitar sua aquisição e mesmo a doá-los. De certa forma tais regimes e a Segunda Guerra Mundial são filhos do rádio e sem este seriam hoje talvez impensáveis. É que o rádio favorece de certo modo a veiculação do autoritarismo, ou seja, a circulação de mensagens que pretendam ocupar nosso pensamento com um único significado e sem possibilidade de questionamento, ao menos no próprio ato de comunicar. Podemos dizer que quanto menos possibilidades tivermos de, no momento da comunicação, negarmos um sentido único, mais perto estaremos do autoritarismo e mais distantes de seu oposto, a liberdade de expressão e pensamento. Nesse sentido, peço licença para usar uns poucos termos técnicos, mas muito fáceis de compreender. Chama-se simplex um dispositivo de comunicação que só pode transmitir informações num único sentido, ou seja, apenas pode enviar ou apenas receber a mensagem. O exemplo mais acabado de tal coisa é justamente o rádio, pelo qual uma estação transmissora que não pode receber mensagens envia estas para aparelhos receptores que não as podem enviar. Na verdade, o pessoal da estação receptora sequer sabe se sua mensagem foi recebida, e os indivíduos que a receberam sequer podem comunicar este recebimento e sua condordância ou não com o conteúdo (exceto por algum outro dispositivo, como o telefone ou mediante pesquisas de opinião etc.). É então fácil percebermos que, por sua própria natureza, os dispositivos simplex são os mais rústicos e limitados que existem, motivo pelo qual tendem a estimular sistemas políticos que visam impor a todos uma visão de

mundo, uma interpretação, uma justificativa ou uma ideologia pretensamente dadas como "naturais", "inquestionáveis", "canônicas", "eternas", "fundamentais" ou "óbvias". Por outro lado, temos dispositivos que podem transmitir informações em ambos os sentidos. Eles se chamam duplex e permitem que as respostas do receptor se deem quer em tempos diferentes (halfduplex) quer ao mesmo tempo (full-duplex). Exemplo interessante de dispositivo half-duplex é o aparelho de rádio-amador clássico ou o walkie-talkie, em que o emissor monopoliza o envio de suas mensagens por um certo tempo, após o que dá um sinal de "câmbio" para que o receptor envie sua mensagem de resposta antes de emitir ele mesmo seu sinal de câmbio, e assim por diante. Já o fullduplex pode ser exemplificado pelo aparelho telefônico e as redes ethernet, pelas quais a emissão e a resposta podem ser simultâneas num certo intervalo de tempo. É fácil inferir-se deste parágrafo que os dispositivos duplex, sobretudo os full-duplex, são os mais apropriados a sistemas verdadeiramente democráticos, em que as mensagens devem poder estar submetidas ao contraditório, à crítica, à contestação, à retificação, ao questionamento. Diante disso, embora de uma forma bem genérica (porque a comunicação não é tudo), podemos relacionar a liberdade dos sistemas de comunicação de massa recentes aos graus de liberdade permitidos por sociedades que usam predominantemente certo tipo de dispositivo. E a televisão? Ora, ela insere-se juntamente com o rádio no grupo dos mais rústicos e autoritários dispositivos de comunicação. Aliás, a TV é ainda mais conformista que o rádio, pois este último pode ser ouvido por toda a casa enquanto o ouvinte pensa, sente e faz outras coisas, ao passo que a TV praticamente exige que o usuário se sente ou deite (nossas máximas imagens do termo "comodismo") e fique atento ao aparelho, a cujas mensagens não tendemos a responder senão mudando para algum dos poucos canais disponíveis. Bem verdade que as emissoras de TV usam largamente de pesquisas de opinião para medir o que os espectadores estão achando da programação e para adaptar esta à conformidade (e conformismo) da maioria dos usuários, mas ainda assim elas submetem tais opiniões latentes à intepretação que a emissora está sempre a sugerir. Um exemplo de manipulação seria um noticiário em que se mostram cenas diferentes de uma manifestação pública: numa tomada um grupo de manifestantes (ou gente disfarçada de manifestantes) depreda uma vidraça ou põe fogo num automóvel; em outra cena a polícia lança bombas de gás lacrimogêneo contra a multidão que grita; em outra, um governante afirma a repórteres estar pronto a "coibir abusos" que comprometam a boa ordem; por todo lado a mesma mensagem lançada a uma pequena burguesia apavorada em seu eterno temor ao desconhecido; por todo lado a retórica que insinua que a polícia bate com razão, que o governo apenas defende o cidadão e que os manifestantes ameaçam a paz pública. Uns espectadores um pouco menos manipulados ainda conseguem esboçar novos significados, digamos que se indignem com a paralização do trânsito causada pela multidão em pleno horário de trabalho, mas eles apenas conseguem disfarçar sob sua retórica o pensamento implicitamente conformista de quem na verdade estaria também reclamando se a manifestação estivesse atrapalhando sua praia ou barzinho em pleno domingo sem trabalho. O importante aqui é que as sugestões da TV são quase sempre seguidas porque elas buscam fazer com que os inúmeros sentidos de suas mensagens sejam resumidos a um só, mesmo que este seja combatido por um ou outro espectador: afinal, dizer "não" a um sentido de mensagem é apenas uma forma de afirmar a universalidade e imutabilidade da

mensagem como tal, e a TV interativa, que hoje apenas se esboça, não tende a modificar isso. O século XX foi o século do rádio e da televisão pelo mesmo movimento em que foi o século do Nazismo, do Fascismo e da Guerra Fria. Ele injetou em nós formas sutis de autoritarismo que só a partir da crítica de intelectuais como Barthes, Foucault ou Derrida nós conseguimos começar a enxergar por trás da fumaça que se adensa entre as palavras e as coisas contemporâneas. Hoje o desafio para nós é justamente o de evitar que as mensagens tenham um único sentido possível, só assim podemos assegurar que as pessoas sejam livres para expressarem suas concepções e preferências políticas, sexuais, científicas, artísticas ou religiosas. Enquanto mantivermos rádio e televisão como origem e critério de validade de nossas opiniões sobre nós mesmos e sobre os outros o Nazismo e o Fascismo permanecerão em sua localização mais perversa: dentro de nós. Nossa maior arma atual contra o autoritarismo latente é a Internet. Claro que os textos, sons e imagens veiculados por ela estão todos carregados de mensagens cuja validade se pretende tão universal quanto as veiculadas pela TV ou pelo rádio (podem procurar neste próprio texto nosso, não nos insentaremos de culpa). Contudo, ao contrário do número ínfimo de canais oferecidos pelo sistema televisivo, a grande rede possui bilhões de sites que envolvem gêneros tão diversos como o blog, o portal, o fórum, a rede social... E na maioria deles os canais full-duplex estão abertos como num gigantesco hipertexto que une entre si as páginas mais díspares, submetendo-as a um turbilhão de opiniões divergentes, efêmeras e mutantes. Assim, podemos dizer que teoricamente não há interpretação encontrada na Internet que não esteja relacionada a uma multidão de interpretações que lhe sejam semelhantes, opostas, complementares ou contraditórias. Isso quer dizer que qualquer tentativa de limitação dos conteúdos da Internet, seja com que argumento for, não passará de autoritarismo disfarçado, motivo pelo qual devemos estar permanentemente atentos a tais manobras. E, acreditem, há projetos de lei aparentemente inofensivos que têm embutidos o efeito de uma manipulação fascista, a exemplo da proposta de criminalização do uso de falsas personagens (fakes) sob pretexto "democrático" de combater-se o anonimato das opiniões, o que para nós resvala subrepticiamente para o direito estatal de vasculhar a vida íntima das pessoas. É importante que a rede mundial permaneça esse virtualmente infinito hipertexto onde a autoridade ou a autoria, o mando ou o desmando, a verdade ou a mentira não prevaleçam de forma exclusivista. Cada clique num link da Internet tende, pois, a reafirmar nossa liberdade. Em contraste, o botão de volume do aparelho de TV gira no mesmo sentido do Nazismo. Desligá-lo, ainda que simbolicamente, é muitas vezes um ato de liberdade.

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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