TELEVISÃO E TELEJORNALISMO NO BRASIL: a notícia como ficção espetacular

July 25, 2017 | Autor: L. Cristina | Categoria: Telejornalismo, Teorias Do Jornalismo
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TELEVISÃO E TELEJORNALISMO NO BRASIL: a notícia como ficção espetacular
Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa(

RESUMO: Neste artigo analisamos as estratégias discursivas utilizadas em
três reportagens sobre a guerra do Iraque para a mobilização da audiência
brasileira. Utilizamos as noções de metáfora e interdiscursividade com o
objetivo de apontar os elementos de cultura, presentes nos textos, que
criam elos de ligação entre dois povos e duas realidades diferentes.
Trabalhamos a idéia do Jornalismo e da notícia em televisão como ficção
espetacular. Discutimos o papel do futebol como grande metáfora do Brasil,
assim como a guerra enquanto grande metáfora do Iraque tal como mostrado
pela televisão. Outras metáforas que permeiam o discurso midiático sobre os
dois países são apontadas e discutidas ao longo do artigo. Utilizamos como
corpus deste trabalho reportagens exibidas no Jornal Nacional, da Rede
Globo, escolhidas por terem sido produzidas por uma equipe de jornalistas
brasileiros, para uma audiência brasileira.




Palavras-chaves: Jornalismo – Televisão – Identidade – Metáfora –Discurso





Introdução


Por que o futebol está presente em uma matéria sobre a guerra do
Iraque? Aparentemente, seria um intruso em uma editoria de política
internacional esse tal futebol que aparece em três matérias analisadas
neste trabalho. Por que, ou para quê, ele está lá pode ser respondido
através da hipótese aqui levantada: para fornecer um elemento de
identificação a um público que recebe informações diárias sobre uma guerra
em um país distante geográfica e culturalmente, com poucas conseqüências
diretas na vida cotidiana do brasileiro, mas que, por meio de elementos
facilmente reconhecíveis e aceitos pelo telespectador, faz com que este
tenha um mínimo de interesse sobre a desventura de um país o qual muitos
mal sabem localizar no mapa.
O objetivo deste artigo é discutir as estratégias discursivas
utilizadas pelo telejornalismo para mobilizar uma audiência que, a
princípio, tem interesse apenas secundário sobre o que acontece fora das
fronteiras de seu país. O jornalismo, concordamos com Alsina (1996: 87),
adotou uma postura mais ativa que vai além do recebimento, da transmissão e
do comentário de informações. Agora ela procura descobrir estórias e, em
último caso, construí-las através de um sofisticado trabalho de produção de
sentidos. É este trabalho que buscamos analisar nas páginas que se seguem.
O artigo pretende mostrar ainda que o futebol é a grande metáfora
do Brasil trabalhada durante a cobertura da guerra, assim como a guerra e o
Islã são a grande metáfora do Iraque apresentadas para o público
brasileiro. Para atingir nosso objetivo, procuramos apontar e discutir as
estratégias discursivas levadas a efeito em três reportagens veiculadas no
Jornal Nacional durante a segunda Guerra do Golfo. O material foi exibido
nos dias 28 de março, 18 e 24 de abril do ano de 2003. Noções como
interdiscursividade, intertextualidade, dialogismo e metáfora serão
norteadoras no processo de análise dos textos escolhidos.
O governo brasileiro não participou dos esforços de guerra
capitaneados pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha para depor o ditador
iraquiano Saddam Hussein e encontrar as alegadas armas de destruição em
massa em seu poder. A atitude brasileira foi de se manter ao lado dos
países contrários à intervenção. Mesmo assim, a imprensa trabalhou numa
lógica de cobertura consoante com a linha adotada pelos grandes veículos
internacionais. Aliás, a maior parte do noticiário disponível para o
público brasileiro era constituída por material reproduzido de agências de
notícias e televisões norte-americanas, britânicas e árabes, em especial
CNN, BBC e Al-Jazeera.
Na mídia impressa a maior exceção foi a Folha de São Paulo, que
enviou correspondente para a região antes mesmo que o conflito fosse
iniciado. Entre as redes de televisão, a Rede Globo mobilizou seus
correspondentes nos Estados Unidos e Europa e enviou uma equipe para o
Oriente Médio para reduzir a dependência do material das agências. Mas isso
não impediu que a maior parte das notícias, nesses dois veículos, fosse
proveniente delas. De qualquer forma, o telespectador pode ver reportagens
diárias com o filtro do olhar brasileiro em alguns acontecimentos marcantes
da guerra.
A política editorial da Rede Globo no tocante à cobertura
internacional é de que as reportagens devem refletir focos de suposto
interesse para a audiência brasileira, incluindo-se nas matérias aspectos
que, de alguma forma, criem alguma identificação entre o telespectador e o
assunto reportado. Na recente guerra do Iraque tal pressuposto foi uma
constante, especialmente no material produzido pela equipe destacada para o
Oriente Médio, formada pelo repórter Marcos Uchôa, pelo repórter
cinematográfico Sérgio Gilz e pelo produtor Eric Hart.
Os textos escolhidos para análise dialogam com o grande texto da
cultura brasileira em um de seus aspectos mais característicos: o futebol.
Todo o interdiscurso nos textos está em relação contratual com o grande
discurso definidor da identidade nacional. A recorrência do tema mostra a
necessidade de identificar o outro que nos reflete no noticiário. O outro,
no caso, o iraquiano que se assemelha discursivamente ao brasileiro porque
ostenta uma camisa da seleção brasileira de futebol ou porque sabe os nomes
dos mais famosos jogadores de nosso país.
O processo de referenciação e identificação entre o Brasil, a
guerra e o Iraque perpassa também por outros aspectos culturais que serão
apontados ao longo deste trabalho através dos textos selecionados. A
própria representação da guerra reflete, como será visto, as metáforas e
estereótipos cultivados no Ocidente sobre o Oriente Médio, em um exercício
de reafirmação de conceitos e pré-conceitos mútuos que o telejornalismo
pratica através da construção das narrativas que dão suporte ao discurso.



Telejornalismo: o Brasil vai ao Iraque


Neste trabalho propomos uma abordagem do Jornalismo enquanto uma
atividade intelectual que reúne um conjunto de técnicas, objetivas e
subjetivas, de publicização de acontecimentos que mobilizam a sociedade e
ajudam a construir uma realidade para o público, através de relatos de
estórias — as notícias — que contemplam todos os aspectos da vida social. O
telejornalismo deve ser pensado como mais um produto da grade de
programação das emissoras, que deve obedecer a um padrão identitário comum
a todos os outros programas, guardadas as especificidades relativas ao
gênero e ao status de cada um.
Para compreender os mecanismos discursivos empregados nas matérias
em análise, é necessária uma prévia caracterização da televisão e do
telejornalismo praticado no Brasil. Aqui, a televisão se institucionalizou
como veículo de delimitação do espaço público nacional. Nas palavras de
Bucci (1996:9),


a televisão é muito mais do que um aglomerado de produtos
descartáveis destinados ao entretenimento da massa. No
Brasil, ela consiste num sistema complexo que fornece o
código pelo qual os brasileiros se reconhecem brasileiros.
Ela domina o espaço público (ou esfera pública) de tal
forma que, sem ela, ou sem a representação que ela propõe
do país, torna-se quase impraticável a comunicação – e
quase impossível o entendimento nacional.


Mais adiante (p.15-16), o autor acrescenta que


foi a televisão que forneceu ao brasileiro a sua auto-
imagem a partir dos anos 70. Não foi o cinema, não foi a
literatura, não foi a imprensa, nem o futebol, nem a
religião. Foi a TV (...). O projeto de integração nacional
pretendido pela ditadura militar, um projeto levado a
efeito por uma política cultural bem desenhada, uma das
mais ambiciosas e bem sucedidas da história do país,
alcançou êxito graças à televisão. Em outras áreas houve
trapalhadas (como a Transamazônica), mas, na área das
telecomunicações, o Estado militarizado conseguiu o que
pretendia. Espetou antenas em todo o território brasileiro
(logo depois, em meados dos anos 80, viriam os satélites)
e ofereceu a infra-estrutura para que o país fosse
integrado. Integrado via Embratel. O resto do serviço foi
executado pelas grandes redes, com a Globo na primeira
fila.




As grandes narrativas discursivas que mostram o que é o Brasil aos
brasileiros são, em sua maioria, aquelas construídas e disseminadas através
da televisão. E o telejornalismo se constitui como a arena legitimadora
desses discursos abrangentes que pontuam a identidade nacional e a
percepção sobre aquilo que o brasileiro sabe de si mesmo e do mundo
exterior.
O telejornal é o espaço legitimado onde histórias são contadas e
realidades construídas através das imagens, dos textos, dos discursos
unificadores e reprodutores de uma estrutura social solidificada
culturalmente. A notícia é, em essência, uma história que se conta. E cada
contador o faz à sua conveniência, utilizando-se de gêneros narrativos que
sejam mais adequados aos seus propósitos e ao gosto da audiência que irá
ouvi-lo.
Allen e Seaton (1999:3) afirmam que o fim da Guerra Fria colocou um
novo desafio para o jornalismo internacional. Nas palavras dos autores,


news value depends on contingency. The public in Western
countries is, or is believed to be, interested in what
affects them directly. The collapse of the Cold War means
that it is harder for journalists to explain the
relationship of things happening to people far away from
domestic audiences.[1]


Assim, a cobertura internacional precisa desenvolver novas maneiras
de explicar, por exemplo, porque guerras em lugares distantes afetam os
interesses da audiência de suas emissoras. Na falta de interesses
atingidos, uma alternativa é mostrar o que as populações em guerra têm em
comum com o público que recebe as informações sobre o conflito.
O telejornalismo no Brasil se organiza como um melodrama
informativo, com mocinhos e bandidos, e a busca por um final feliz que,
porém, nem sempre é possível. E isso, de acordo com Bucci (p.30) é uma das
constantes[2] que podem ser identificadas na televisão brasileira. Nas
palavras do autor, "o telejornalismo no Brasil é muito mais melodramático
do que factual. Organiza-se como uma ficção, e uma ficção primária: tem
suspense, tem lição de moral, tem mocinhos e bandidos, os 'do bem' e os 'do
mal', como desenho animado de super-herói" (p.49).
No caso da guerra do Iraque, o ditador Saddam Hussein era sempre
retratado como o vilão[3], embora a posição de heróis que naturalmente
seria reservada aos soldados americanos nem sempre fosse realmente
verificada. Mas, em geral, a mídia brasileira "comprou" o discurso
reproduzido pela mídia americana e, se os americanos não eram retratados em
algumas matérias como heróis, pelo menos o papel de vilões explícitos não
lhes foi atribuído[4].
As histórias divulgadas pela mídia se dirigem a um público amplo e
heterogêneo que, de acordo com Wolton (1996), tudo tende a separar. É
preciso então encontrar um mecanismo discursivo que faça com que o
indivíduo se identifique como "público brasileiro" ao ver uma matéria
destinada a esse público. O telespectador, isolado, se identifica enquanto
tal ao reconhecer os elementos de brasilidade incluídos nas matérias.
Discini (2003:118-119) diz a respeito que


um destinador, então, manipula um destinatário, seduzindo-
o e tentando-o, para que este queira e deva entrar em
conjunto com os saberes, com as informações sobre uma dada
realidade, a fim de que possa se incluir nessa mesma dada
realidade. Assim se ancora narrativamente a ilusão
discursiva de auto-inclusão numa certa identidade, de
pertencimento a um determinado corpo, de auto-
reconhecimento concomitante ao reconhecimento de um modo
de fazer, de um estilo.


Na reportagem 1, exibida no dia 24 de abril de 2003, sobre a luta
que os iraquianos enfrentam para conseguir dólares, o esforço em
contextualizar a matéria em um universo cognitivo com paralelo ao do
brasileiro fica evidente quando o redator inclui a informação de que, entre
tantos iraquianos, encontrou um que fala português e outro que trabalhou em
firma brasileira no Iraque. Seguem dois trechos selecionados:

"Texto (1) "Imagem "
"Conhecemos um senhor que "Repórter entrevistando "
"estudou em Portugal. Eram "iraquiano sorridente "
"tempos difíceis para ele e "falando em português no "
"para o Iraque. (pergunta do "meio da rua, fundo neutro."
"repórter) E agora? (resposta " "
"do entrevistado) "Não posso " "
"dizer se foi bom Saddam sair " "
"ou não". (Diante do receio do " "
"iraquiano, o repórter " "
"argumenta que a entrevista vai" "
"sair no Brasil) " "
"Texto (2) "Imagem "
"Um homem mostra orgulhoso a "O homem e sua família numa"
"família dele, e lembra com "ponte. Imagem sugere ainda"
"saudade do tempo em que "que o sol começa a se pôr."
"trabalhava em uma firma " "
"brasileira no Iraque. Ele " "
"ainda lembra os nomes dos " "
"colegas e manda lembranças. (o" "
"personagem começa a falar o " "
"nome deles) " "

Essas duas inserções narrativas já seriam suficientes para criar um
laço identitário entre o público e o assunto reportado para sustentar a
audiência. Mas, entre o primeiro e o segundo personagem, foi incluído um
outro que é a personificação da metáfora sustentadora da identidade
nacional nas matérias-corpus deste trabalho:
" Texto (3) "Imagem "
"Eles também sabiam pouco do "Imagem sai de um carro com"
"que acontecia lá fora. Mas não"iraquianas usando o véu "
"tão pouco. A camisa da seleção"islâmico para um garoto "
"brasileira desfila em Bagdá. "que aparece atravessando a"
"Tem cinco estrelas e até o "rua com a camisa da "
"nome do capitão. (entra som do"seleção brasileira de "
"garoto pronunciando o nome do "futebol. "
"jogador Cafu) " "


O trecho 1 evidencia a tentativa do repórter em confirmar para seu
entrevistado outro estereótipo de Brasil: o de país da liberdade de
expressão e opinião, país onde as diferenças são respeitadas por um povo
pacífico e acolhedor. No trecho 3, o percurso é inverso: a frase "eles
também sabiam pouco do que acontecia lá fora" reforça a idéia preconcebida
de que o Iraque, país árabe, seria mesmo, por definição, um lugar fechado
tanto para o que fosse originário do Ocidente quanto para o que poderia lhe
interessar. A exceção, claro, seria o futebol brasileiro, produto ocidental
sem contra-indicações mesmo para o mundo árabe-muçulmano.


Memória discursiva e a aproximação do "eu" com o "outro"

As construções cognitivas apontadas nos exemplos acima nos remetem
a duas metáforas: o Brasil como o país do futebol e o Brasil como país
pacífico e generoso. A relação de aproximação do "eu", identificado com o
público brasileiro, com o "outro", o Iraque e os iraquianos que desfilam na
tela do telespectador do Jornal Nacional, é toda construída a partir do uso
de figuras metafóricas principais (futebol e generosidade, por um lado, e
sociedade fechada e reprimida, por outro) e secundárias[5] (todo mundo
gosta de brasileiros e iraquianos estão satisfeitos com a queda do ditador.
[6]).
Tais figuras denunciam construções cognitivas simplificadas de uma
realidade complexa como a de um país em guerra. Mas esta simplificação
encontra respaldo em uma audiência que não dispõe de elementos para
contestar a história que lhe está sendo oferecida, já que seu conhecimento
de mundo é aquele do discurso midiático, especialmente o televisivo.
Gartlan (2003:88) explicita a posição comum entre os brasileiros no
tocante ao noticiário da guerra ao afirmar que "como o resto do mundo, os
brasileiros acompanharam a guerra do Iraque pela televisão. Mas o público
nunca se entusiasmou com ela. Para o brasileiro comum, a guerra tinha tanta
importância quanto uma Copa do Mundo sem o Brasil". Se a guerra não tinha a
participação do Brasil, a televisão encontrou um pouco de Brasil no lugar
do conflito.
Na segunda matéria analisada, veiculada no dia 18 de abril de 2003,
a simplificação metafórica da realidade começa quando o texto transmite a
idéia de que tudo no Iraque de antes da guerra tinha apenas um dono e uma
vontade: Saddam Hussein. No mesmo texto o telespectador é posto em contato
com um cenário de guerra dramatizado a partir das histórias dos personagens
escolhidos: uma pessoa que teve um braço atingido por tiros americanos e
que perdeu o amigo, uma família que sobreviveu a cinco bombardeios em cinco
guerras diferentes, um policial que afirma que Saddam para ele é um herói.
A estrutura desta reportagem é a de uma crônica de guerra com sofrimentos e
personagens entrelaçados.
No primeiro trecho selecionado, lê-se:


"Texto (1) "Imagem "
"O Shopping Center Saddam."Construções danificadas pelos "
"A torre de comunicações "bombardeios "
"Saddam. Tudo foi " "
"destruído. " "

É a confirmação textual do discurso que afirma que o ditador era o
dono do Iraque e que, depois da intervenção militar estrangeira, tal
realidade agora é passado. A narrativa serve de introdução para a história
do primeiro personagem da crônica: um homem que perdeu um amigo e um braço.
É o primeiro drama de guerra apresentado nesta matéria:


"Texto (2) "Imagem "
"Ali aparece na porta de "Homem sem um braço e com o "
"casa. Mora na rua ao lado."semblante carregado conversando"
"Ele e um amigo tentaram se"com o repórter. "
"aproximar de um soldado " "
"ferido, que estava pedindo" "
"ajuda. Um tanque americano" "
"atirou neles. O amigo " "
"morreu. O braço de Ali foi" "
"quebrado. Ele mal sente os" "
"dedos. " "


O telespectador é compelido a se solidarizar com o sofrimento
mostrado na tela. O drama contado revela também a confirmação de um outro
discurso diluído no trecho: o de que os soldados americanos não têm
sensibilidade para primeiro verificar o que está acontecendo, antes de
atirar.
Depois de se solidarizar com o drama do homem iraquiano, o
telespectador é levado, mais uma vez, a confirmar a universalidade do
futebol e dos ídolos brasileiros no exterior ao conhecer outro personagem,
um homem que trabalhava na polícia especial do Ministério da Defesa:


"Texto (3) "Imagem "
"Primeiro, ele não quer "Homem com a camisa da seleção "
"falar. Ele veste a "brasileira. "
"camisa da Marca Zico e " "
"diz que gosta de " "
"futebol, mas confessa " "
"que o herói dele é mesmo" "
"Saddam. " "


Uma curiosidade nesta reportagem é que ela foi toda construída a
partir da idéia do pentacampeonato, com referência a uma família que
sobreviveu a cinco guerras, dialogando com a memória discursiva do
brasileiro que é pentacampeão no futebol. A referência ao pentacampeonato é
um recurso que demonstra o quanto esta memória está incorporada ao discurso
do que é mais representativo na história recente do país e que pode ser
transposto como parâmetro comparativo com uma outra realidade histórica.


"Texto (4) "Imagem "
"A hospitalidade árabe é "Equipe fazendo a refeição "
"tradicional e essa família "com a família. "
"iraquiana não é uma exceção."Repórter entrega a camisa "
"O agradecimento vem de um "amarela ao iraquiano que a "
"jeito bem brasileiro: uma "veste em seguida. "
"verdadeira camisa da seleção"Imagem da família "
"com as cinco estrelas. "sorridente. "
"Ismail bota a camisa com " "
"gosto, com as cinco estrelas" "
"de nossa sorte. Mas esses " "
"iraquianos têm a deles. " "
"Bagdá foi bombardeada em " "
"cinco anos diferentes e " "
"todos estão vivos. São " "
"pentacampeões da " "
"sobrevivência. " "


O discurso do futebol com o discurso da guerra se confunde com o
discurso sobre o Brasil e sobre o Iraque num jogo de implicitude-
explicitude entre os elementos textuais do trecho em que os estereótipos
ganham status de verdade comprovada: árabes-hospitalidade, brasileiros-
generosidade, Brasil-futebol, Iraque-guerra.




Guerra, sofrimento e clichês



A terceira reportagem aqui analisada dialoga com o grande clichê
das coberturas de guerra: exibição de sofrimento. Mas não o sofrimento
direto representado através de imagens de pessoas feridas, corpos, sangue e
coisas do gênero, porque a guerra do Golfo foi um conflito pobre em imagens
consensualmente classificadas como de "guerra", especialmente pela censura
por parte dos militares e pelas dificuldades que a mídia teve para
acompanhar as operações, pelo lado da Coalização, e pela impossibilidade de
cobrir a defesa das forças iraquianas.[7]


A fome é o tema explorado na reportagem "Desespero e Fome", exibida
no dia 28/03/2003. Tema que dialoga com o brasileiro que conhece o
sofrimento desse flagelo, embora por motivos obviamente diferentes. O
telejornalismo que incorpora uma linguagem melodramática encontra expressão
explícita nessa reportagem que também não deixa de citar o futebol como
esperança por um dia melhor, tal como no discurso amplamente difundido no
Brasil de que o esporte é uma saída para a pobreza e o sofrimento. Foram
selecionados três trechos que dialogam com os discursos dominantes nesta
cobertura.


"Texto (1) "Imagem "
"O caminhão traz caixas de "Caminhão do Crescente Vermelho "
"mantimentos. Todos ali são "escoltado por tropas britânicas."
"pobres, gente que vive da "Muita gente ao redor. "
"terra. E a falta d'água e a "Foco da câmera nos rostos "
"guerra só tornaram mais graves "desesperados. "
"os problemas de todos. " "
"Texto (2) "Imagem "
"Miséria e fome levam todos a se"Iraquianos se acotovelando na "
"espremer às portas da salvação."porta do caminhão. "
"O caminhão se rende. E começa e"Soldados jogando as caixas. "
"entregar, jogar as caixas para "Pessoas desesperadas tentando "
"a multidão. O empurra-empurra "conseguir uma caixa. "
"toma conta. É cada um por si. " "
"Alguns mais ágeis ou espertos " "
"conseguem logo o prêmio. " "
"Texto (3) "Imagem "
"Ele descobre que a equipe é "Repórter tentando entrevistar um"
"brasileira. "garoto que não queria falar. "
""Ronaldo", ele exclama e sorri."Garoto sorrindo e dizendo o nome"
"Futebol. Um assunto alegre que "de Ronaldo. "
"traz um pouco de paz. Quem dera"Mulheres se afastando com as "
"que na caixa carregada pelas "caixas de mantimentos na cabeça."
"mães iraquianas tivesse também " "
"uma bola. " "


No primeiro trecho, o telespectador é apresentado a uma situação
que encontra reflexo na experiência cotidiana de parte dos brasileiros, que
vêem naquelas imagens um diálogo com o flagelo da fome causado pela seca no
Nordeste e pela miséria das grandes cidades. O primeiro impacto, então, é o
despertar de um sentimento de solidariedade. Identificação e solidariedade
por parte de um público que se descobre em uma situação de aproximação
entre sua própria experiência e a experiência do outro, guardadas as
devidas ressalvas.
Já o segundo trecho revela ao público uma situação mais grave por
causa da guerra. E o laço discursivo que une brasileiros e iraquianos vai
se estreitando até o clímax da reportagem. No último trecho, futebol e
esperança são lançados para os iraquianos com a mesma conotação que se faz
no dia-a-dia do brasileiro. Uma mudança de vida através do esporte seria
possível até mesmo em um país em guerra. Porque, nesse país e nessa
situação extrema, há pessoas que conhecem o exemplo brasileiro. Esperança
tipo exportação, é o que o Brasil produz com o sucesso dos jogadores em
qualquer parte do mundo. Até no Iraque.

Considerações finais


Trabalhar as metáforas e os discursos que sustentam a identidade
comum de sua audiência é uma estratégia discursiva que se evidencia na
construção de narrativas nas reportagens que foram trabalhadas neste
artigo. São elementos comuns ao repertório do grande público e amplamente
utilizados pela mídia nas mais variadas ocasiões. Despertar o interesse de
cada telespectador por um drama que diretamente não lhe diz respeito é um
desafio renovado em época de conflito geográfica e politicamente distante
do cidadão comum.
O desafio do telejornalismo no Brasil ao reproduzir o material das
agências era maior. A partir do momento em que um brasileiro conta o que
está acontecendo do outro lado do mundo para os compatriotas, a tendência é
que se crie um laço de interesse. Para o público do Jornal Nacional que
mostrou o futebol brasileiro no Iraque, o elo entre um país em guerra e um
país que exporta alegria e esperança através de sua cultura, estava
firmado. Porque mesmo sendo bombardeado com notícias de um outro país, o
público nunca deixou de focar a si mesmo em sua relação com o mundo. Ou,
como afirma Milz (2003:64),


cada observador é prisioneiro do seu próprio mundo de
pensamentos e conceitos. Para poder digerir as
informações, a mente precisa ajustá-las às próprias idéias
e interpretações. Mesmo estando tão perto do outro,
ficamos sempre conosco, não deixamos de ser nós mesmos. A
decodificação de informações sobre culturas estrangeiras e
a transformação para nosso sistema de códigos resultam
numa interpretação das ações dos outros com base nas
nossas próprias experiências.


E algumas das experiências mais significativas para um público
integrado via satélite, identificado através das imagens televisivas, são
aquelas exploradas nas reportagens analisadas. Futebol, generosidade,
alegria, solidariedade: o brasileiro se define por estes discursos e
procura no outro marcas ou, pelo menos, o reconhecimento destes.
Encontrando, senta-se em frente ao televisor e acompanha o noticiário à
espera de mais confirmações discursivas de sua identidade tal como ela é
percebida, inclusive num país em guerra, entre um bombardeio e outro.















































REFERÊNCIAS

ALSINA, Miguel Rodrigo. La Construción de la Noticia. Barcelona:
Paidós:1996.

ALLEN, Tim, SEATON, Jean (eds). The Media of Conflict: war reporting and
representations of ethnic violence. London and New York: Zed Books, 1999.

BERGER, Peter L, LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade:
tratado de Sociologia do Conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1995.

BUCCI, Eugênio. O Brasil em Tempo de TV. São Paulo: Biotempo Editorial,
1996.

COUTINHO, Iluska. 2003. A Busca por Critérios Editoriais em Telejornalismo:
notas sobre a exigência de conflito nas notícias televisivas. In: Anais do
XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – INTERCOM: Belo
Horizonte, 2 a 6 de setembro.

DISCINI, Norma. O Estilo nos Textos: história em quadrinhos, mídia,
literatura. São Paulo: Contexto, 2003.

JOHNSON, Mark, LAKOFF, George. Metáforas da Vida Cotidiana. São Paulo:
Mercado das Letras, 2002.

GARTLAN, Kieran. À Espera do Apito Final. In Guerra e Imprensa: um olhar
crítico da cobertura da Guerra do Iraque. São Paulo: Summus, 2003.

MILZ, Tomas. Longe demais, Perto Demais: a guerra do Iraque e a mídia
alemã. In Guerra e Imprensa: um olhar crítico da cobertura da Guerra do
Iraque. São Paulo: Summus, 2003.

XAVIER, Antonio Carlos, CORTEZ, Suzana (orgs). Conversas com lingüistas:
virtudes e controvérsias da Lingüística. São Paulo: Parábola, 2003.

WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da
televisão. São Paulo: Ática, 1996.



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( Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco.
[1] "O valor da notícia depende da eventualidade. O público nos países
ocidentais está, ou acredita-se que esteja, interessado naquilo que o afeta
diretamente. O colapso da Guerra Fria significa que está cada vez mais
difícil para os jornalistas explicarem a relação de coisas acontecendo a
pessoas distantes de suas audiências domésticas".
[2] O autor identifica cinco constantes que organizam o funcionamento do
veículo no Brasil: telejornalismo organizado como melodrama; a telenovela
como uma síntese do país; a televisão reproduz a exclusão social e o
preconceito de classe; dependência da ocorrência regular de eventos que
tenham a pátria por objeto; e a necessidade de transgredir os próprios
limites (p.30-34).
[3] Exemplos desse discurso estão nos trechos "O medo de dar uma opinião
ainda é um traço comum em Bagdá. A paranóia era uma necessidade nos tempos
de Saddam" (matéria A batalha dos iraquianos para conseguir dólares,
24/04/2003) e "Saddam, as sanções, a guerra, tudo faz com que todos em uma
casa estejam desempregados" (matéria Pentacampeões da sobrevivência,
18/04/2003).
[4] Um exemplo da caracterização dos americanos como heróis está no trecho
"Não é fácil conviver com engarrafamentos de tanques e carros, ou ver
incêndios misteriosos que aparecem no horizonte. Mas em Bagdá tem muita
gente feliz com a mudança e otimista com o futuro", em oposição à
caracterização aí implícita de vilania do ex-ditador (A batalha dos
iraquianos para conseguir dólares).
[5] Segundo Lakoff e Johnson, na obra Metáforas da Vida Cotidiana, os
sentidos que perpassam os discursos cotidianos são todos construídos a
partir de metáforas, num sentido amplo para o termo que passa a ser
entendido não apenas como figura de comparação, mas como figura de
significação que organiza conceitos institucionalizados discursivamente.
[6] A matéria 1 oferece um exemplo desse discurso: "mas os iraquianos, em
pequenos gestos, parecem mais relaxados e felizes". A imagem aqui é de uma
criança sorrindo e acenando para a câmera e iraquianas, de véu, também
sorrindo.
[7] O exército americano instituiu os chamados jornalistas "embedded"
(incorporados). Os profissionais foram incorporados aos batalhões, devendo
comportar-se, na medida do possível, como membros das equipes militares.
Todo o material produzido pelos repórteres deveria passar antes pela
censura dos comandantes, para só então ser enviado para as redações. Com
esse modelo de cobertura, a maior parte das reportagens desta guerra foram
produzidas pelos embedded e retratavam a vida das tropas no dia-a-dia da
guerra, em comparação com pouca visibilidade dos combates em si.
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