Temas para a compreensão do atual quadro linguístico de Timor-Leste

July 14, 2017 | Autor: Regina Pires Brito | Categoria: Sociolinguistics, Timor-Leste Studies, East Timor, Lusofonia, Estudos Culturais, Timor Leste
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Temas para a compreensão do atual quadro linguístico de Timor-Leste Regina Helena Pires de Brito*

Resumo Colonizada pelos portugueses, Timor-Leste vivenciou, entre 1975 e 1999, uma política de “destimorização”, aplicada pelo dominador indonésio, que, no plano linguístico, representou a inclusão de uma nova forma, manifestada na imposição da língua indonésia, na minimização do uso da língua nacional, o tétum, e na proibição da manifestação em português. Em 1999, a ONU chega a Timor-Leste a fim de garantir o restabelecimento da paz e de iniciar a reconstrução do país. Com a independência e a constituição da República Democrática de Timor-Leste, em maio de 2002, a língua portuguesa assume o estatuto de oficial, ao lado da língua tétum. Acrescente-se a esse painel, as outras dezenas de línguas locais ali faladas. Partindo do conceito de lusofonia, este estudo apresenta aspectos da situação atual do português em Timor-Leste e perspectivas para a sua reintrodução, ilustrada com a experiência do Projeto Universidades em Timor-Leste. Palavras-chave: Lusofonia. Timor-Leste. Língua portuguesa.

1 Para introduzir: lusofonia e Timor-Leste [...] a lusofonia só poderá entender-se como espaço de cultura. E como espaço de cultura, a lusofonia não pode deixar de nos remeter para aquilo que podemos chamar o indicador fundamental da realidade antropológica, ou seja, para o indicador de humanização, que é o território imaginário de paisagens, tradições e língua, que da lusofonia se reclama, e que é enfim o território dos arquétipos culturais, um inconsciente colectivo lusófono, um fundo mítico de que se alimentam sonhos. (Moisés Martins, 2006)

Neste artigo, centrado em aspectos da questão linguística lestetimorense no escopo do denominado “espaço lusófono”, vale sintetizar algumas informações acerca do que se entende por lusofonia. A ideia da “lusofonia” ter-se-ia iniciado com a expansão marítima portuguesa a partir do século XV, que espalhou e que, em certa medida, * Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, pós-doutora pelo Instituto de Ciên-

cias Sociais da Universidade do Minho (Portugal). Docente do Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010 Disponível em:

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difundiu sua língua e cultura, pela atuação de missionários e colonos diante de povos contatados. Como primeiros “teorizadores” desse ideal de “lusofonia”, é comum a referência ao Padre Vieira (por exemplo, nos Sermões de S. Francisco Xavier, 1694), com o projeto messiânico do Quinto Império, e a Fernando Pessoa, que o teria retomado e reformulado séculos depois (em Mensagem, 1934, e, em especial, no Livro do Desassossego), ao conceber a língua portuguesa como um espaço do futuro império espiritual, caracterizado pela universalidade: “a minha pátria é a língua portuguesa.”1 Tratar do tema traz também aspecto de natureza semântica e etimológica que subjaz ao substantivo abstrato lusofonia – que não pode ser desprezado –, pois a forma luso remete tanto a lusitano, quanto ao que é relativo a Portugal (além da alusão à Lusitânia, província romana pertencente à Hispânia, habitada pelos lusitanos). Nesse sentido, [...] fora do espaço ‘Portugal’, esse fator semântico acarreta, por vezes, certo desconforto pela evocação que faz à centralidade da matriz portuguesa em relação aos sete outros países [de língua oficial portuguesa] (BRITO; BASTOS, 2006, p. 65).

Falar de lusofonia evoca, ainda, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), criada em 1996 e definida como “foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua, para a concentração político-diplomática e da cooperação entre os seus membros,”2 com o intuito de uniformizar e difundir a língua e aumentar o intercâmbio cultural entre os países de língua portuguesa. Em torno disso, Eduardo Lourenço (2001, p. 182) – intelectual português que tem analisado criticamente a temática lusófona – afirma que a “Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa, tal como existe, ou queremos que exista, seria um refúgio imaginário” e que os ideais da lusofonia seria um “projeto, uma aposta, na qual deve residir alguma “verdade” uma vez que foi “imaginada” (LOURENÇO, 2001, p. 176). As colocações que o autor faz ao longo de sua obra não deixam dúvidas sobre a viabilidade da lusofonia; no entanto, entrevê-se a inviabilidade da instituição de uma ideologia lusófona que nasça e corra por conta de interesses político-econômicos da chamada globalização.

1

A esse respeito, analisa Lourenço (2001, p. 183): “Creio que não terá escapado a ninguém que fale português, ou se reclame de uma mítica lusofonia, o uso e o abuso que, a partir de um dado momento – digamos, o da revolução de Abril –, tem sido feito da famigerada frase de Pessoa ‘a minha pátria é a língua portuguesa’. Só podia ter inventado esta frase, destinada a tanto sucesso, quem imaginasse como hipótese viável – e era o seu caso – que também teria outra pátria se noutra língua se exprimisse.”

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CIMEIRA CONSTITUTIVA DA COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA. Estatutos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Lisboa, 17 de julho de 1996.

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A lusofonia deve, na nossa perspectiva, ser compreendida como um espaço simbólico linguístico e, sobretudo, cultural no âmbito da língua portuguesa e das suas variedades lingüísticas, que, no plano geosociopolítico, abarca os países que adotam o português como língua materna e oficial (Portugal e Brasil) e língua oficial (Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau – que constituem os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) – e Timor-Leste. Entretanto, não se pode restringir a lusofonia ao que as fronteiras nacionais delimitam. Nesse modo de conceber a lusofonia, há que se considerar as muitas comunidades espalhadas pelo mundo e que constituem a chamada “diáspora lusa” e as localidades em que, se bem que nomeiem o português como língua de “uso”, na verdade, ela seja minimamente (se tanto) utilizada: Macau, Goa, Ceilão, Cochim, Diu, Damão e Málaca. Além disso, a lusofonia é inconcebível sem a inclusão da Galiza (LOURENÇO, 2001). Somam-se a isso outras regiões de presença portuguesa no passado e/ou onde, relativamente, se fala português ainda hoje: na África – Annobón (Guiné Equatorial), Ziguinchor, Mombaça, Zamzibar; na Europa – Almedilha, Cedilho, A Codosera, Ferreira de Alcântara, Galiza, Olivença, Vale de Xalma (Espanha). Essa síntese do mundo lusófono – que se procura reunir na noção de lusofonia (mesmo que miticamente) – pretende conciliar diversidades e afinidades linguísticas e culturais com a unidade que estrutura o sistema linguístico do português. Tem-se, nessa breve descrição, a dimensão geográfica da língua portuguesa a espalhar-se por espaços múltiplos, numa área extensa e descontínua e, que, como qualquer língua viva, se apresenta internamente caracterizada pela coexistência de várias normas e subnormas. Essas divergem de maneira mais ou menos acentuada num aspecto ou noutro, numa diferenciação que, embora não comprometa a unidade do sistema linguístico, possibilita-nos reconhecer diferentes usos dentro de cada comunidade. Assim se reconhecem, por exemplo, o “Português Europeu” e o “Português Brasileiro” (e os muitos falares dentro de cada um), da mesma forma que já se esboçam, felizmente, estudos descritivos acerca do português nos demais espaços da CPLP: “se queremos dar algum sentido à galáxia lusófona, temos de vivê-la, na medida do possível, como inextricavelmente portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, cabo-verdiana ou sãotomense” (LOURENÇO, 2001, p. 112). Desse modo, é necessário ter clareza quanto aos papeis distintos que a língua portuguesa forçosamente cumpre em cada localidade; pensar a lusofonia é, igualmente, pensar na função que o português desempenha em cada um dos contextos de sua “oficialidade” – é, por exemplo, língua materna no Brasil, mas, ao mesmo tempo, é totalmente desconhecida em muitos espaços moçambicanos ou timorenses. Assim sendo, do lado africano há considerações que concebem a lusofonia “como um conceito vago, uma estratégia política e cultural sem qualquer correspondência com a alma e o sentir dos povos africanos” (PACHECO, 2000); outros entendem Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010 Disponível em:

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que “o fato de Angola pertencer à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) poderia reforçar essa presença [do português no território] se uma política linguística clara e consequente fosse aplicada perante o ensino da língua portuguesa dum lado e das línguas autóctones do outro” (KUKANDA, 2000, p. 112).3 A fim de compreender a situação atual da língua portuguesa no que se denomina “espaço lusófono”, é preciso recorrer a informações acerca da entrada do português nas diferentes colônias. Como se sabe, ao contrário do que fizeram outros colonizadores europeus, nunca houve por parte de Portugal uma relação entre expansão marítima e expansão linguístico-cultural. A história é transparente nesse sentido, revelando a ausência de uma “política de implantação linguística” e mostrando que a difusão que a língua portuguesa alcançou deveu-se, sobretudo, à presença de mercadores, marinheiros, navegadores, aventureiros, deportados e missionários, os quais, por motivos e circunstâncias dos mais diversos, chegaram às novas terras. Os compêndios relatam sobre a grande massa emigratória de portugueses (principalmente a partir da conquista de Ceuta) para as terras recém-descobertas, mas que ocorreu de modo um tanto assistemático. Foi de tal forma intensa a dispersão dos portugueses pelo mundo que há referências preocupadas com o esvaziamento populacional do reino português – Garcia de Resende (poeta e cronista do Humanismo), por exemplo, demonstrou-se apreensivo com a saída em larga escala dos portugueses do reino, que, dificilmente, regressavam, acarretando em entraves para o desenvolvimento interno de Portugal. Apesar disso, indicações oficiais quanto à atividade de colonização de terras africanas apenas ocorrem no século XIX, às vésperas da Independência do Brasil: “nas críticas circunstâncias em que nos achamos, é necessário dar uma particular atenção aos nossos estabelecimentos de África e ilhas adjacentes a Portugal” – assinala o Relatório sobre o Estado e Administração do Reino, de Fernandes Tomás, apresentado às Cortes em 1821. Com iminente ruptura com o Brasil, “recomendava-se uma concentração de todos os esforços e de todos os meios em Portugal e nas possessões da África e Ásia que lhe restariam” (ALEXANDRE, 1998, p. 61). O início do século XX será marcado por divergências acerca de um “programa” a ser adotado nas províncias de ultramar, que culminará com a elaboração de um novo projeto de política colonial. É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhes é adstrita pelo Padroado do Oriente (ACTO COLONIAL – Art. 2º).

3

Outros comentários sobre lusofonia e percepções da lusofonia pelos diferentes povos: Brito e Bastos (2006); Martins (2006); Namburete (2006); Fiorin (2010); Brito e Hanna (2010).

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Assim determina o artigo 2º do Acto Colonial (1930), no qual Salazar apresenta o projeto político para as colônias e recupera a ideia da vocação e do direito histórico de Portugal às atividades colonialistas: os “domínios ultramarinos e Portugal denominam-se colônias e constituem o Império Colonial Português” (art. 3º). De maneira centralizadora, as colônias passam a estar totalmente integradas e subordinadas às necessidades, às decisões administrativas e aos interesses da metrópole. No aspecto educativo e cultural, o artigo 24º do Acto considera como instituições de ensino as missões religiosas, que atuariam como instrumento de civilização e de influência nacional. Essas colocações ajudam a ilustrar o fato de que apenas nesta altura é que preocupações (especificamente de ordem econômica) da metrópole para com as colônias não americanas começam a delinear-se.

2 Timor-Leste e a questão linguística Foi a Língua Portuguesa que os nossos dirigentes usaram para contactar um ao outro, no interior e no exterior; isto é, nos países amigos da língua oficial portuguesa para convocar a SOLIDARIEDADE. Por isso, não há razão nenhuma de rejeitar a adopção da Língua Portuguesa como nossa língua oficial porque não estamos a andar sozinhos.4 (TIMORENSE, 45 anos, 2001)

A ilha de Timor, dividida em Timor Oeste (parte legítima da Indonésia) e Timor-Leste, situa-se entre o sudoeste asiático e o Pacífico sul, a 500 km da Austrália, e é uma das mais orientais do arquipélago indonésio, no grupo das ilhas Sunda. Com cerca de 480 km de comprimento e 100 km de largura no seu ponto mais extenso, Timor-Leste tem em si uma área de quase 19.000 km2, constituído pelo enclave de Oe-Cusse (na costa norte de parte ocidental), pela ilha de Ataúro (a 23 km de Díli), o ilhéu de Jaco (separado por canal da ponta leste) e a metade oriental da ilha de Timor. Historicamente, o território foi colônia portuguesa desde o século XVI; esteve ocupado pelo Japão durante três anos, na altura da 2ª Grande Guerra Mundial, e foi invadido pela Indonésia em 7 de dezembro de 1975, numa incursão que se prolongou até 1999. Ao longo desses 24 anos, com a tolerância da comunidade internacional, a população foi vítima de repressão, como tortura e assassinatos, e exploração, como trabalho escravo e semi-escravo; em decorrência disso, calcula-se que cerca de 300 mil timorenses foram mortos – o que, proporcionalmente ao número de 4

Os depoimentos de cidadãos timorenses datados de 2001 são transcrições exatas dos originais manuscritos. Material coletado in loco durante atividades por nós desenvolvidas no âmbito do Programa Alfabetização Solidária em Timor-Leste, nos meses de junho e agosto de 2001. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010 Disponível em:

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habitantes, corresponde ao maior genocídio depois do holocausto nazista. Além disso, como parte estratégica de sua dominação, os invasores indonésios forçaram o ensino da língua indonésia, proibiram o uso da língua portuguesa e desprezaram o ensino da língua de coesão nacional, o tétum. Somente em maio de 1999, instalou-se no território a Missão de Assistência das Nações Unidas ao Timor-Leste (UNAMET) e em 30 de agosto realizou-se um plebiscito junto à população, que votou majoritariamente à favor da independência: 78,5% (do total de 97% de eleitores que compareceram às urnas). As milícias pró-anexação à Indonésia, inconformadas com o resultado da consulta popular, executaram timorenses, incendiaram casas, perseguiram e mataram funcionários do órgão de representação da ONU em Timor-Leste. O relato de Forganes (2002, p. 11), primeira jornalista brasileira a lá chegar, ainda em setembro de 1999, impressiona: O resultado foi a destruição quase total do país. Durante dias e noites sem fim, o exército indonésio e as milícias – formadas e pagas pelos generais – mataram, violaram, pilharam, queimaram. A violência, que tinha começado muito antes das eleições, ficou incontrolável a partir do dia 4 de setembro, quando os estrangeiros começaram a ser evacuados. Os últimos funcionários das Nações Unidas saíram no dia 14. Até 23 de setembro, quando as tropas internacionais desembarcaram em Díli, todo o país ficou entregue à violência. Sem testemunhas.

Logo depois, entraram em ação no país as forças multinacionais da ONU para restabelecer a paz, tendo sido instituída uma administração transitória (UNTAET – United Nations Transitory Administration East Timor), chefiada pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello,5 a fim de propiciar, na medida do possível, uma agenda segura de independência e de reconstrução para o país. Inúmeras são as preocupações de uma terra totalmente destruída, na qual se busca a reconstrução: habitação, saúde, alimentação, emprego, economia, educação. No caso de Timor-Leste, ainda há outro detalhe − o português uma língua adormecida: Durante o 24 anos de ocupação de imperialistas Indonésia aqui em timor Leste, durante nestes tempos que nós não falamos a língua portugues. Portanto que nós podemos recoperar outra vez com esta lingua de portugues como a língua oficial para este novo país de Timor Leste, é óptimo para o nosso futuro. (TIMORENSE, 43 anos, 2001)

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Sérgio Vieira de Mello foi morto em atentado ao escritório das Nações Unidas no Iraque, no dia 19 de agosto de 2003, enquanto desempenhava suas funções como representante da ONU.

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Nesse sentido, não se pode, também, ignorar que a língua portuguesa não é a língua da maioria da população timorense (em algumas localidades, como no enclave de Oe-Cusse e Lautem há quem não a conheça). Pode-se afirmar que é a segunda língua (depois do tétum, língua nacional e veicular), e até, para alguns, a terceira língua, depois da local e do tétum (além, é claro, da língua indonésia). Contudo, na perspectiva do linguista Luiz Filipe Thomaz (2002, p. 143), é a língua portuguesa, ao lado da religiosidade, um dos fatores capazes de viabilizar a concretização da unidade nacional timorense: [...] a difusão de uma cultura luso-timorense, fruto de uma aculturação paulatina ao longo de quatro séculos e meio de contacto. Através dessa cultura mestiçada (de que o catolicismo e a língua portuguesa são talvez os dois elementos-chave) a população timorense em geral e a sua classe dirigente em especial integram-se num universo cultural mais amplo, o da civilização lusófona.

Assim é que em Timor-Leste se torna possível a presença de brasileiros auxiliando na educação não formal (por exemplo, com a alfabetização de jovens e adultos); de portugueses trabalhando com o ensino da língua portuguesa para as crianças; de profissionais ligados às áreas social e educacional, provenientes de diferentes países lusófonos. Todos falantes do português, mas carregando consigo a diversidade dos usos e das aplicações que o sistema propicia. Para alcançar a relevância da questão linguística no contexto timorense, é preciso conhecer um pouco da história das muitas vozes desse país. As dezenas de línguas originais do país pertencem à família das línguas austronésias (ou malaio-polinésicas) ou à família das línguas papuas (ou indo-pacíficas), diversidade linguística que se explica principalmente por Timor ter sido parte de rotas de migrações de diversos povos. Como língua integradora dessas línguas locais, fala-se o tétum, reconhecido oficialmente como língua nacional a partir de outubro de 1981. Essa língua apresenta-se de duas formas: como língua materna em algumas regiões (Alas, Balibó, Bato-Gadé, Fato-Berlio, Fatumea, Fohorén, Lacluta, Luca, Samoro, Suai e Viqueque) e como forma veicular em praticamente todo o território. A adoção do tétum como língua oficial da Igreja Católica de Timor foi em parte responsável por essa rápida propagação, adoção e efetiva utilização pelos timorenses. Dessa forma, o tétum funciona como língua veicular, como se pôde constatar, por exemplo, nos momentos em que pessoas de procedências diversas conversam informalmente, a língua utilizada é sempre o tétum – daí ser reconhecida como língua de coesão nacional. Em “O futuro da Língua Portuguesa em Timor Leste”, Marcos aponta que, tendo a língua portuguesa chegado ao Timor somente no século XVI, tornou-se uma das mais faladas na ilha. Convém, entretanto, destacar que, antes do período indonésio, em termos de difusão territorial e Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010 Disponível em:

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entre pessoas de línguas maternas diferentes, o tétum era usado em quase todas as situações cotidianas, enquanto a Língua Portuguesa se restringia à escrita ou às atividades relativas a determinados fins de ordem cultural ou administrativa. A variedade do português observada em Timor-Leste (cf. parâmetros propostos por VILELA, 1999, p. 176) parece sofrer interferências das demais línguas ali faladas (sobretudo do tétum, da bahasa indonésia e das dezenas de línguas locais), já que é perceptível que muitos enunciados são realizados numa língua (o português) segundo o modelo de outra (normalmente, o tétum ou a língua indonésia). Verifica-se, também, uma segmentação de usos de acordo com a situação comunicativa. Por exemplo, na escola ministra-se a norma do português europeu; em casa, fala-se o tétum; entre os alunos adolescentes utiliza-se a bahasa indonésia. Presenciou-se situação de diglossia entre adultos que participavam de um curso de capacitação de professores: conosco procuravam expressar-se em português; quando dialogavam com indivíduos vindos do seu Suco, utilizavam a língua local; quando de origens diversas, conversavam em tétum ou bahasa indonésia (observou-se que poucas vezes o português era utilizado em tais circunstâncias). No dizer de Vilela (1999, p. 197), seria uma língua exógena – no caso, o português – que filtra as múltiplas e díspares culturas em Moçambique. Em Timor-Leste, esse papel integrador nacional cabe ao tétum – língua local que já funcionava por quase todo o território antes mesmo da chegada dos portugueses, pois era falada pela tribo dos beloneses, a mais poderosa do lugar. Algumas datas ajudam a revelar o lento caminhar da presença do português em Timor-Leste, iniciada em 1562, com a instalação dos dominicanos. O ano de 1834, com a extinção das ordens religiosas (e, portanto, com a redução da presença portuguesa na colônia), registra um retrocesso na instrução e no uso do português, ainda que em Díli continue a ser de uso mais ou menos corrente. Convém assinalar que, no final do século XIX, muito pouco do território timorense tinha sido ocupado pelos portugueses: além de Díli, a presença portuguesa limitava-se a sete comandos militares na costa norte e três na sul, que se reduziam a Uma paliçada […] sem consistência nem condições defensivas de valor, a uma casa para o oficial, outra para o sargento, e barracas para cinco ou seis soldados europeus que constituíam a guarnição, conjuntamente com dez ou quinze moradores ou soldados [timorenses] de segunda linha. Não indo a sua ação além da área contígua ao forte, todo o interior, sem um comando, sem um posto que marcassem a soberania portuguesa, se encontrava entregue ao domínio dos régulos dos respectivos reinos, com os quais o poder colonial fazia alianças de circunstância. (DUARTE apud BETHENCOURT, 1998, p. 203-204).

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A administração direta do território acontecerá com Celestino da Silva, governador de 1894 a 1908, que, com a “mobilização dos arraiais dos reinos aliados para submeter os régulos rivais” (BETHENCOURT, 1998, p. 204), tenciona ocupar militarmente o interior, instalando postos, ligados por linhas telegráficas e por estradas. Desse modo, ainda que as localidades estivessem sob o controle das autoridades tradicionais, o controle efetivo estaria nas mãos dos chefes de posto. Em decorrência dessa forma de administração, algumas revoltas ocorreram e foram reprimidas com intervenção armada. A reorganização das missões católicas em 1877 e a criação, em 1898, do Colégio de Soibada (dirigido por jesuítas até 1910) contribuiu para a formação de professores-catequistas, cujo intuito era o de alfabetizar, doutrinar e (porque não dizer) aculturar – as populações rurais. Em 1938, planeja-se criar em Díli um colégio-liceu semioficial, que foi arruinado pelos japoneses durante a ocupação que fizeram ao território durante a Segunda Grande Guerra (1942-1945), e que só volta a funcionar em 1952. É de se destacar, ainda, a presença dos chineses em Timor-Leste: via de regra, os homens dominavam o português nas modalidades oral e escrita, mas utilizavam o tétum como língua de comunicação cotidiana com a população local. Mantinham escolas pelo país (18 primárias e 1 secundária), mesmo com a administração portuguesa exigindo, apenas, a inclusão das disciplinas língua e cultura portuguesas. Certo é que a língua portuguesa nunca chegou a tornar-se língua normal de comunicação oral, nem língua de contato entre etnias diferentes – papel que sempre coube ao tétum. Manteve, via de regra, o caráter de língua clerical, administrativa e de cultura; embora sua função seja relevante no plano interno, articulando a unidade cultural por meio de uma pequena elite de letrados nativos e, no plano externo, procurando associar a cultura local ao universo lusíada. Vale lembrar, ainda, que o modelo de colonização portuguesa, em que se destacam o processo de miscigenação com os timorenses (que levou à assimilação de hábitos) e a conversão ao catolicismo, dentre outros aspectos, contribuíram para a incorporação natural de algumas poucas estruturas morfossintáticas e de muitos elementos lexicais portugueses ao tétum. É evidente que a administração colonial privilegiava o português como língua de instrução, ensinada nas escolas, veiculando conteúdos da cultura lusa, e que se empregava na modalidade escrita, em atividades ditas culturais ou administrativas. Contudo, em termos de comunicação espacial e entre pessoas de línguas maternas diferentes, o tétum era usado nas situações cotidianas. Antes da invasão indonésia ocorrida em 1975, a situação linguística apresentava-se assim distribuída:

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a) línguas locais ou regionais – veículos de comunicação nas diversas localidades, como o bunak, o kemak, o galole, o fataluko etc.; b) língua veicular – o tétum, funcionando como elemento de integração; c) língua administrativa – o português – única língua normalmente escrita. O português também exercia certa função integradora, pelo menos na camada dirigente e no ambiente letrado.6 Diversamente do que ocorreu em muitos países na época de descolonização, em 1975, Timor-Leste tinha certa unidade linguística, garantida pelo uso do tétum. Além disso, apesar de criticar o colonialismo salazarista, tanto a Fretilin (Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente) quanto a Apodeti (Associação Popular Democrática Timorense, favorável à indexação pela Indonésia) continuaram a “valorizar a língua portuguesa como elemento ancestral e integrado na cultura nacional” (HULL, 2001, p. 37). Durante o domínio indonésio, Timor-Leste sofreu um processo de “destimorização” em diversos planos da vida da população, que, no âmbito comunicativo, incluiu uma nova forma linguística, traduzida na imposição de uma variante do malaio, a bahasa (ou língua) indonésia, como língua do ensino e da administração, na minimização do uso do tétum e na proibição da expressão em língua portuguesa. A partir de 1999, com a chegada das forças de paz da ONU, novas línguas – em especial, e com sua força natural, o inglês (também língua da vizinha Austrália) – começam fortemente a fazer parte do dia a dia timorense. Como resultado, atualmente, o país se apresenta como um complexo mosaico linguístico: além do tétum e das dezenas de outras línguas locais, os timorenses falam a bahasa indonésia, procuram recuperar a memória do português (no caso dos mais velhos) ou aprendê-lo (no caso das novas gerações), e tentam expressar-se em inglês. Timor-Leste acaba de sair de um período em que falar português poderia significar a morte. Neste novo momento (comemoraram-se, em 20 de maio de 2010, 8 anos de independência) de país em reconstrução – das estruturas físicas, da organização da Nação e da identidade do cidadão –, não é por acaso que, por decisão do Congresso do Conselho Nacional de Resistência Timorense, em 29 de agosto de 2000, o português é declarado língua oficial. Na ocasião, disse o então líder da Resistência, Xanana Gusmão:7 “Tendo em mente a nossa história, nós devemos fortalecer a nossa língua materna, o tétum, disseminar e aperfeiçoar o domínio da língua portuguesa e manter o ensino da língua indonésia”. Mais adiante, já como Presidente eleito da República Democrática de Timor-Leste, ao ratificar 6

Para mais detalhes ver THOMAZ, 2002, p. 140-144.

7

Alexandre Kay Rala "Xanana" Gusmão foi o primeiro presidente eleito, governando de 2002 a 2007 (sucedido pelo Nobel da Paz José Ramos-Horta), quando passou a exercer o cargo de primeiro-ministro de Timor-Leste.

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essa declaração, acaba conferindo, oficialmente, à língua portuguesa um papel de resgate de valores socioculturais: A opção política de natureza estratégica que Timor-Leste concretizou com a consagração constitucional do Português como língua oficial a par com a língua nacional, o tétum, reflete a afirmação da nossa identidade pela diferença que se impôs ao mundo e, em particular, na nossa região onde, deve-se dizer, existem também similares e vínculos de carácter étnico e cultural, com os vizinhos mais próximos. Manter esta identidade é vital para consolidar a soberania nacional.8

Apesar desse papel que parece lhe caber, ainda muito pouco se tem sistematizado acerca das peculiaridades do português falado em TimorLeste – o que se configura como mais um desafio para o momento atual em que se busca a alfabetização de jovens e adultos no país: que português será esse que uma parcela do povo timorense traz na memória?9 Nos últimos anos, quando a solidariedade internacional se voltou, nos vários setores, para essa meia ilha no sudeste asiático, questões sobre a legitimidade dessa ajuda se colocam. Uma delas envolve a “reintrodução” da língua portuguesa. Seria uma nova forma de colonialismo? Por que, sobretudo, portugueses e brasileiros, de diferentes maneiras, têm-se dirigido para lá? Despertar o português significaria ameaçar as línguas locais? Representaria o auxílio no resgate da identidade timorense ou a sua perda? Na verdade, a função e a necessidade da revitalização da língua portuguesa em Timor-Leste são temas constantemente discutidos pelos timorenses. Compreende-se o português como elemento capital tanto para a salvaguarda das línguas nacionais, quanto para a preservação da identidade nacional, conforme acentua Hull (2001, p. 39): [...] se Timor Leste deseja manter uma relação com seu passado, deve manter o português. Se escolher outra via, um povo com uma longa memória tornar-se-á numa nação de amnésicos, e Timor Leste sofrerá o mesmo destino que todos os países que, voltando as coisas ao seu passado, têm privado os seus cidadãos do conhecimento das línguas que desempenharam um papel fulcral na gênese da cultura nacional.

Isso também se pode entrever nas afirmações que se coletou junto à população timorense em 2001:

8

Alocução do presidente Xanana Gusmão, proferida em Brasília, no dia 1º de agosto de 2002, durante a IV Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Disponível em: . Acesso em: 03 ago. 2010.

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Essa indagação foi um dos motes que levou ao desenvolvimento do Projeto Universidades em Timor-Leste, do qual se falará adiante. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010 Disponível em:

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A língua portuguesa é um caminha para comunicarmos outras nações amigas. Durante 24 anos que a língua portuguesa nunca se perde no meu coração. A língua portuguesa vai ser a língua oficial e como um caminho que liga os países que falam Português, nas relações diplomáticas e negócios. A língua portuguesa desenvolve em Timor contribui no desenvolvimento e progresso e combater a Ignorância e a pobreza.

Nesse contexto, o futuro do português, língua de cultura, como língua oficial “de”/“em” Timor-Leste, dependerá muito da política educacional e cultural, da mobilização dos vários setores da sociedade, da disposição da comunidade e do apoio dos países lusófonos. É no âmbito da cooperação internacional10 que se insere o “Projeto Universidades em Timor-Leste”, experiência que se descreve a seguir.

4 Uma ação em Timor-Leste – Projeto Universidades em Timor-Leste11

(depoimento de timorense, 2004)

10 A iniciativa foi apoiada pelo Governo Federal e pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil e pela ABBA (Academia Brasileira de Belas Artes). 11 A Revista Pessoa, em seu número zero, lançada na Bienal do Livro de São Paulo (agosto de 2010), traz reportagem a respeito do Projeto, mostrando a atualidade da ação. Disponível em: . Acesso em: 2 set. 2010.

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O “Projeto Universidades em Timor-Leste” foi realizado12 em ação conveniada entre a Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), Universidade de São Paulo (USP) e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) – pelo lado brasileiro –, com o apoio da Universidade Nacional de Timor-Leste (UNTL) e do Instituto Nacional de Linguística (INL), pelo lado timorense. Foi com o subprojeto Canção popular e cultura brasileiras em Timor-Leste: hibridismo cultural e comunitarismo linguístico em execução e discussão, de nossa autoria e em coautoria com Benjamin Abdala Junior (USP), com a contrapartida do linguista timorense Benjamim Corte-Real, que a ação ocorreu entre agosto e dezembro de 2004. Apoiando-se em investigação sociolinguística, aliada a debates com Benjamin Corte-Real13 e Geoffrey Hull,14 o Projeto fundamenta-se em estudos descritivos da situação linguística e cultural do país, a partir de entrevistas, consultando-se indivíduos pertencentes a diferentes faixas etárias, classes sociais, localidades, escolaridade, profissões e sexo. Complementarmente, foram recolhidos e analisados textos produzidos por timorenses e coletados elementos de natureza diversa, como músicas, receitas, jornais, cartazes, panfletos etc. – o que forneceu subsídios para análises contrastivas15 que evidenciaram especificidades linguísticas e culturais de cada Distrito timorense. Essa iniciativa, submetida à aprovação de instâncias governamentais, educacionais e linguísticas timorenses, define-se como programa pedagógico-cultural para auxiliar na difusão e na sensibilização para a comunicação e a expressão em português, em conformidade com a política nacional de cooperação entre os países de língua portuguesa, utilizando-se, neste caso, da canção popular brasileira como motivação didática. Diante da proposta do Projeto, em documento de outubro de 2003, assim se expressou o Presidente Xanana Gusmão:

12

Esta primeira edição do Projeto teve patrocínio da INFRAERO – Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária e apoio cultural da Nestlé do Brasil.

13

Linguista timorense, Diretor do Instituto Nacional de Linguística e atual Reitor da Universidade Nacional de Timor-Leste.

14

Linguista australiano especialista em tétum e defensor da oficialização do português em Timor-Leste.

15

Ver, por exemplo, Brito e Corte-Real, 2003. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010 Disponível em:

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O Projeto envolveu a seleção, preparação, deslocamento e fixação de um grupo de 20 graduandos – ligados, sobretudo, às áreas de Letras, Comunicação, Artes e Educação das três universidades brasileiras. Com relação à constituição da equipe, segundo as autoridades timorenses, o fato de ser constituída não por “profissionais formados” foi um grande diferencial, facilitando o entrosamento pela horizontalidade entre universitários brasileiros e participantes timorenses. O acompanhamento didático foi realizado in loco por uma “coordenação acadêmica”, que se dirigia ao Conselho Executivo e à Coordenação Linguística e Didático-Pedagógica, baseados no Brasil. Situando-se no âmbito da cultura brasileira, convém assinalar que se, por um lado, o Projeto não privilegia o ensino da gramática normativa, por outro, não deixa de contribuir como auxiliar do processo de reintrodução da língua portuguesa no país, apoiado em música popular brasileira e em textos literários de expressão em língua portuguesa. Quanto ao público-alvo, inicialmente, o projeto fora idealizado para atingir a um recorte específico da população mais resistente ao aprendizado do português e que ainda não tinha sido contemplada, diretamente, por outro programa de cooperação internacional. Contudo, quando da apresentação do Projeto às autoridades, em 2003, verificou-se o interesse de outros 188

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segmentos, fazendo com que a clientela se ampliasse. Dessa forma, incluíram-se alunos da Escola Primária Duque de Caxias;16 integrantes das Forças de Defesa de Timor-Leste; funcionários do Ministério da Educação, Cultura, Juventude e Desporto; Organização da Juventude e dos Estudantes de Timor-Leste e, ainda, docentes da Faculdade de Letras e Educação da UNTL. Assim, as atividades desenrolaram-se em diversas instituições oficiais, escolares e comunitárias, atendendo a cerca de 600 leste-timorenses. Cada turma participava de dois encontros semanais, com duração de 1h40 cada um, ministrados por equipes de 3 monitores, que planejavam as atividades tendo em vista o Descritivo de atividades módulo a módulo17 − material elaborado não como um manual de instruções, mas como um norteador das ações didáticas que garantisse a homogeneidade dos trabalhos, sem, contudo, limitar a criatividade da equipe. Partindo de uma concepção sociofuncional dos fatos da linguagem, associando elementos musicais e linguísticos ao conjunto da cultura brasileira, em atividades epilinguísticas, de operação e de reflexão sobre os textos e alguns fatos de língua, as atividades organizaram-se em 14 módulos, formados por músicas brasileiras e textos em torno de temas como amor, religiosidade, futebol, carnaval, saudade, esperança, tempo, loucura, construção poética, saudações e cumprimentos. As músicas foram selecionadas considerando-se serem do interesse do público ou já serem conhecidas (e indicadas!) por timorenses, às quais acrescentaram-se outras relacionadas com os temas. Após os 7º e 14º módulos, foram realizadas avaliações parciais (preparação e apresentação de trabalhos em cada turma) e uma avaliação final (apresentação de coral, peças de teatro, jogral etc., apreciados pelo público timorense no auditório da UNTL). O contato com músicas e com textos de modalidades várias permitiu a abordagem, ainda que indiretamente, de tópicos como os papéis da cultura brasileira e da língua portuguesa no contexto mundial e em TimorLeste. Procurou-se apresentar a diversidade da música brasileira e as variedades linguísticas, o conhecimento de outras culturas expressas via língua portuguesa, aspectos da multiplicidade linguística de Timor-Leste, a importância da comunicação, a relação entre língua e cultura e a problemática tradução “palavra-por-palavra”. As aulas recorreram à reprodução original das canções em CD player e à execução ao vivo, procurando sensibilizar os alunos para o aprendizado do manuseio dos instrumentos musicais utilizados, bem como para as atividades de composição musical e de manejo de recursos linguísticos básicos. Também não se podia pensar numa atuação significativa sem estabelecer uma relação com a realidade da cultura local e desconsiderando a visão de mundo que a modalidade do português timorense (e, naturalmen16

O nome da escola é uma homenagem ao patrono do Exército Brasileiro, uma vez que foi “apadrinhada” por diversos contingentes brasileiros no período de 1999 a 2005, quando lá estiveram, atuando como forças de paz das Nações Unidas.

17

De nossa autoria, juntamente com Rosemeire Faccina e Vera Busquets. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010 Disponível em:

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te, a das línguas locais) revela. É impossível ignorar que as línguas são fatos culturais e que o aprendizado de uma língua supõe, ao lado do seu domínio, o conhecimento da cultura que a sustenta e o respeito à multiplicidade de olhares. Nesse sentido, são significativas as impressões do entrosamento entre brasileiros e timorenses registradas no Relatório Avaliativo do Projeto encaminhado pela UNTL: O sucesso de fundo do projecto não deixa de ser o ter-se promovido uma interacção cultural entre jovens da comunidade e do espaço lusófonos, um principiar tentativo, mas de evidente rendimento; o gerar-se de uma amizade e solidariedade entre gente que nunca imaginava antes poder cruzar-se. A electricidade que se sentiu no aeroporto, aquando da despedida dos estagiários serve de ilustração. Foi uma singular e espontânea exibição de cantares e danças tradicionais, assinalando uma camaradagem invejável entre jovens de latitudes tão opostos mas unidos por um denominador comum que é o do seu passado histórico, a língua e a cultura portuguesas. (Benjamim Corte-Real).

Outra preocupação do Projeto foi tornar os usuários conscientes de que cada sistema configura-se diversamente, mostrando-se, por exemplo, que a estrutura da língua portuguesa é diferente do tétum ou da língua indonésia, embora o conteúdo da mensagem seja preservado. Em outros termos, além das palavras e das regras gramaticais, é preciso aprender, também, a “pensar” na outra língua. Quanto aos resultados, destacam-se: a) a sistemática e a dinâmica desenvolvidas que se mostraram inovadoras e eficazes para atingir os objetivos no contexto timorense; b) o material didático que foi elaborado especificamente para a situação timorense e se revelou instrumento fundamental para o sucesso das atividades de sala de aula, garantindo a homogeneidade de conteúdo na sua aplicação nas diversas turmas; c) a ideia de ter uma equipe constituída de jovens universitários (e não de profissionais formados) foi um grande diferencial, facilitando o entrosamento pela horizontalidade; d) após momentos iniciais de certo estranhamento em relação à proposta, os timorenses, paulatinamente, passaram de uma posição tímida, submissa e retraída, para uma atitude mais participativa, entusiasmada, ativa, altamente receptiva; e) o número (oficial) de timorenses beneficiados beirou os 600 alunos, excluindo-se aqueles que assistiam às aulas esporadicamente, os que participavam sem estarem regularmente inscritos e, ainda, os timorenses que tiveram nossos próprios alunos como multiplicadores das atividades do Projeto, numa atitude natural do convívio cotidiano. Também vale registrar o uso que muitos professores timorenses vêm fazendo do método e do nosso material didático em suas aulas. 190

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Pensando no grande objetivo, ou seja, na sensibilização para a comunicação em língua portuguesa, registrou-se que o fato de as turmas serem constituídas por indivíduos de diferentes níveis de conhecimento, domínio e uso da língua portuguesa não influenciou no resultado geral observado, no que diz respeito à aproximação com a Língua Portuguesa, à simpatia pela expressão em língua portuguesa, ao interesse pelo aprendizado da Língua Portuguesa, à curiosidade pela cultura brasileira e pelas semelhanças com a timorense e com a portuguesa, a certa desinibição para a expressão oral em português, ao notável esforço para o registro escrito em português. Percebe-se uma alteração na postura de muitos frente ao português, que, afinal, “não é tão difícil assim” – como registram relatórios dos participantes e de autoridades e depoimentos de alunos timorenses. [...] de carácter informal e recreativo, além do usufruto do material pedagógico seleccionado para adequar ao gosto do público-alvo, o projecto conseguiu relaxar uma tensão que nem deveria existir, mas que subsistiu por muito tempo no seio da juventude e a larga população nãoescolar. O projecto, através da sua seriedade científica e dos seus excelentes actores, conseguiu conquistar novos espaços fora das paredes do ensino formal, abrindo canais auxiliares para o florir efectivo e afectivo da língua na larga sociedade timorense. A música e a poesia permitiram ao aprendente informal o empolgar do conceito do espaço lusófono e das mais valias que lhe são inerentes. [...] Deve-se notar que um dos factores importantes do sucesso do projecto foi o facto de o público timorense adorar as músicas brasileiras. Estas possuem um poder cativante, donde brota toda uma curiosidade que pode levar à voluntária busca da compreensão dos dizeres. (Benjamim Corte-Real).

Além disso, procurou-se levar a Timor-Leste uma maneira diferente de pensar-se a disseminação da língua portuguesa, outra possibilidade de acesso à educação formal em português, um enriquecimento cultural mútuo.

4 Para concluir Uma língua não tem outro sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando. Ninguém é seu proprietário... (Eduardo Lourenço, 2001, p. 123).

Após o período em que a língua portuguesa foi silenciada em Timor-Leste, as atividades desenvolvidas pelo Projeto Universidades em Timor-Leste procuraram propiciar um espaço de interação em que foi garantido o direito à expressão em português e em que o sujeito foi protagonista de seu aprendizado. Para outras atividades semelhantes que venham a concretizar-se futuramente, os aspectos aqui tratados podem ser Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010 Disponível em:

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considerados para o bom desenvolvimento de um programa sociocultural e educativo que objetive a motivação para a aprendizagem de uma língua. A fim de que se efetive a expansão do uso da língua portuguesa em Timor-Leste e o fortalecimento da sua língua nacional, muito ainda há a ser feito. Para tanto, conforme se discutiu na “Conferência internacional para o futuro da língua portuguesa no contexto mundial”, realizada em Brasília (março de 2010), governos e universidades podem contribuir para o processo, por exemplo, assumindo papeis de membros ativos e cooperativos na CPLP − Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e na sua vertente cultural, a AULP – Associação das Universidades de Língua Portuguesa. Como assinalou-se em Brito e Martins (2004), tendo sempre em vista que, no âmbito da lusofonia, não se pode assumir uma posição – ingênua – de “senhor” da língua portuguesa. Em Timor-Leste, como em cada um dos outros espaços de sua oficialidade – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe – a língua portuguesa conhece e constrói a sua própria história. E, por isso, está muito longe de poder ser tratado como um idioma uniforme. É com essa perspectiva que se deve encarar o “desafio” da língua portuguesa em Timor-Leste: está-se diante de mais uma variedade do português. E, como tal, devemos atentar para a necessidade urgente de uma descrição do português ali praticado (observando-se as influências que recebe do contato com as demais línguas ali faladas) e incentivar a descrição e sistematização da língua tétum, respeitando, sobretudo, as experiências particulares, os valores diferentes, a especificidade cultural e a visão de mundo que a sociedade timorense vem imprimindo na construção da norma do português timorense, ao mesmo tempo em que reconstrói a sua identidade como nação. Por fim, cabe à chamada comunidade lusófona acreditar na força do português e valorizá-la. Sendo a sexta língua mais falada no globo, deve vê-la como uma forma de união e também, no caso aqui em destaque, percebê-la como um dos mecanismos de inserção dos timorenses no mundo que se quer globalizado. Recebido em setembro de 2010. Aprovado em outubro de 2010. Topics for the understanding of the Current Linguistic Landscape of East Timor Abstract Colonized by the Portuguese, East Timor experienced a policy of "destimorization" between 1975 and 1999, carried out by the Indonesian ruler. At the linguistic level, it represented the inclusion of a new form, manifested in the imposition of the Indonesian language, in order to minimize the use of the national language, Tetum, and the prohibition of the Portuguese language. In 1999, the UN arrives in East Timor with the purpose of maintaining peace and initiating the reconstruction of the country. With the independence and the constitution of the Democratic Republic of East Timor, in May 2002, the Portuguese language assumes the status of official language alongside Tetum and dozens of other local languages spoken 192

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there. Based on the concept of Lusophony, this study presents aspects of the current situation of the Portuguese language in East Timor and the prospects for its reintroduction, illustrated by the experience of the Universities Project in East Timor. Keywords: Losophony. East Timor. Portuguese language.

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