Tempo. Como quem olha para o espelho

June 4, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Design
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Como quem olha no espelho O tempo é, mesmo, o que fazemos com ele1 Emília Ferreira Temêmo-lo e glorificamo-lo. Marguerite Yourcenar definiu-o bem quando lhe chamou “esse grande escultor”. Quase como em deus, é nele que confiamos, no momento de uma dor maior que nós. O tempo tudo cura. Corremos sempre atrás dele, queremos olhá-lo nos olhos mas receamos ficar petrificados, com esse encontro. É com a consciência de que ele corre que sabemos não poder deixar perder oportunidades. O tempo e a maré não esperam por ninguém. Ou será que ele é mesmo aquilo que fazemos com ele?

“O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” Santo Agostinho, Confissões, Livro XI, 14.

A maldição de Cronos Antes mesmo de terem nascido os deuses do Olimpo, já existia na Grécia uma geração de seres divinos. Eram os titãs, descendentes de Urano (o céu fecundo) e Geia (a terra), os primeiríssimos deuses da família mitológica grega. Da sua união surgiram os Hecatonquiros, os Ciclopes, as Titânides e os Titãs. Destes, após a geração de Oceano, Ceu, Hipérion, Crio e Jápeto, nasceu Cronos, o deus do tempo. Foi ele que ajudou a mãe a libertar-se do abraço excessivo do pai que a fecundava incessantemente, castrando-o e tomando o seu lugar no céu. Desposando depois a irmã Reia, Cronos foi pai das divindades olímpicas Héstia, Deméter, Hera, Hades, Poseidon e Zeus. No trágico receio de que os filhos repetissem nele o seu acto castrador, Cronos resolveu comê-los à nascença. Porém, deixou escapar Zeus que, ao chegar à maturidade, o obrigou a vomitar os olímpicos, liderando-os em seguida na revolta contra os titãs, e assumindo, por sua vez, o domínio entre os deuses.

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Texto publicado na revista MID, Lisboa, 2003.

O tempo tem, portanto, um nascimento, instala-se como poder através de um corte e, no medo de que este se repita e o aniquile, devora os seus próprios filhos, o fruto do seu próprio corpo, para que nunca nada perturbe a sua ordem. Simplesmente, ela é circular, renova-se como o movimento da roda, alimenta-se em si mesma enquanto fonte e sacrifício, enquanto começo e fim, nascimento e morte. Ou seja, o tempo é, talvez, afinal, a medida da nossa consciência da finitude. De olhos no céu Desde que os primeiros hominídeos observaram o céu, confrontaram-se com a presença alternada do sol ou da noite estrelada, com as fases da lua, as mudanças de estação. O passar do tempo, mesmo que esse fenómeno não fosse ainda nomeado, tornou-se reconhecível, acabando por encher as mais entusiasmantes páginas da mitologia de todos os povos. Mesmo quando o pensamento mais reconhecido como lógico sucedeu ao mito, o tempo manteve o seu protagonismo nas inquietações humanas. Séculos de filosofia, ciência e arte testemunham a nossa angústia, a vontade de capturar o tempo, de o abrir para ver por dentro, de o parar, de nele viajar. Viajar no tempo, para alterar o passado ou antecipar o futuro, é apenas o reflexo do nosso medo de não sermos capazes de resistir a nós mesmos, às nossas escolhas e à suas consequências. Porém, para lá de tudo isto, ele continua imparável, sucedendo-se segundo a segundo, num ritmo matemático cujas nuances amorosas o fazem correr ou demorar-se nas nossas vidas. Depois do tempo absoluto de Newton, o tempo relativo, que Einstein afirmou em 1905, tem provado que, afinal, essa abstracção que controla a nossa vida é mesmo algo com que temos de nos relacionar de modo muito pessoal. Retratos do tempo

Aliado poderoso da memória, como também do seu reverso, o esquecimento, é o tempo o motor da tradição oral, da cultura como desejo de continuidade, patente no provérbio árabe que dá a receita para a imortalidade: plantar uma árvore, escrever um livro, fazer um filho. Para que a lembrança perdure, criámos também o retrato, viajámos mesmo nesse espaço simbólico como se mergulhássemos no tempo, como fez Rembrandt, ou usámos simplesmente esse meio como registo de uma vida, como memorial. Sobre a evidência da morte, também a escultura celebra os que já partiram, traçando na pedra imorredoira as linhas do rosto e corpo daqueles que já não têm sombra. Temos feito de tudo para iludir a roda do tempo, desde o culto dos mortos, ao relicário, até ao bocadinho que se traz do que já foi, evocado na prendinha que oferecemos no regresso de uma viagem — a significativamente chamada lembrança ou souvenir, afirmação positiva da nossa presença no tempo e no espaço. Para além disso, fizemos do registo do tempo uma ciência, patente por exemplo na data que evoca, na cronologia onde a história se sugere. E enchemos a nossa vida de sinais, de momentos que ritualizamos para melhor nos escondermos do inevitável. Tudo em vão, é certo, mas a glória é afinal essa — tão ilusória como trágica. Vêmo-lo nos espelhos onde o nosso corpo testemunha a passagem dos anos, nos rostos dos outros, dos que envelhecem antes de nós e dos que crescem tornando-nos velhos, como se diz. Constatamo-lo também nas roupas que deixaram de servir ou de se usar, nos objectos que, por via das descobertas mais recentes, foram ficando para trás, nos corredores dos museus, nos calendários como mapas para o labirinto dos meses e das estações, para sabermos a quantas andamos, para não deixarmos passar o tempo da sementeira, da rega, da colheita. Para celebrar o ciclo da vida e da morte. E os relógios, para que, no passar mais próximo dos instantes, possamos ter um instrumento o mais fiável possível para não nos perdermos do mundo e dos outros.

Os relógios, esses enganadores E lá voltamos nós à Grécia. Com efeito, como o próprio Cronos, é também aí que nasce a palavra relógio, composto de hora+legein, ou seja, aquele que diz as horas. Daí, relógio, em francês, por exemplo, ser horloge. À parte as grandes questões teóricas, científicas e artísticas, a necessidade de um instrumento que marcasse as horas, ou melhor, que dividisse o tempo em parcelas, para uso quotidiano, cedo se fez notar. Por isso mesmo, os primeiros relógios acabaram por fazer a sua aparição a par dos grandes momentos civilizacionais, não sendo assim de espantar que os primeiros, a energia solar, já existissem na China e na Índia há mais de três mil anos. Com energia solar queremos, naturalmente, dizer apenas que o relógio funcionava com base na luz do sol. Um barra paralela ao eixo da Terra deixava projectar a sua sombra sobre uma escala dividida em horas. Se os cálculos para a fixação da barra relativamente ao traçado de paralelos quanto ao eixo da Terra não levantava problemas, já a fiabilidade da existência de uma fonte de luz se colocava como objecção. Com efeito, em dias sem sol, as horas tendiam a diluir-se no traçado. Para já não falar nos problemas da medição do tempo durante a noite. Assim o relógio de sol caiu em desuso, apesar de ter tido inicial boa recepção em países solarengos como a Babilónia ou o Egipto. Um processo mais revolucionário foi então inventado: a clepsidra. Composto por dois corpos opostos, unidos por um estreito orifício, o passar lento da água, de um corpo para o outro, marcava a passagem do tempo. O mesmo sistema foi usado também na ampulheta, cuja única variante consistia no facto de usar areia em vez de água. Incessantes novidades O facto de qualquer registador de um movimento constante poder servir para medidor do tempo, levou à invenção do relógio mecânico. Parecendo que não, desde a primeira clepsidra, inventada cerca de 3500 anos a.C., e esta novidade

do século X, haviam-se passado uns milhares de anos. De qualquer modo, a demonstrar que tempo e eternidade andam muitas vezes de mão dada, o inventor desse processo foi um monge de Aurillac, de seu nome Gerberto. Ficaria igualmente na História como Papa Silvestre II e foi o homem que usou um peso como mecanismo do relógio. Haviam de se passar mais uns séculos, até que, cerca do século XV, a força motriz usada passasse a ser uma mola em espiral. O inventor deste novo processo, um cidadão de Nuremberga chamado Peter Hale, foi o grande responsável pela redução do tamanho dos relógios, tornando-os portáteis. Mas os problemas da hora certa mantinham-se. Então, a meados do século XVI, um habitante de Praga, J. Zach, criou um regulador da mola, que assegurava uma força motriz contante e, portanto, menos flutuações de tempo. A perseguição deste tipo de precisão no medir do tempo é notória no modo como se sucedem as investigações e descobertas técnicas da relojoaria. Em 1656, Christian Huyghes inventa o relógio de pêndulo, um modelo que oferece maior fiabilidade, atrasando-se apenas 1 minuto por dia, ao contrário dos 15 minutos diários dos modelos anteriores. A paixão da viagem, que se regista em grande escala a partir do século XVII, marca a exigência de relógios mais pequenos e fiáveis. Em 1761, John Harrison consegue construir um modelo portátil de grande rigor, precioso para a navegação, e que apenas se atrasava 5 segundos cada 6 semanas e meia. Agora, que o tempo é relativo Se a indústria da relojoaria já existia na Alemanha desde os meados do século XIV, sendo contudo em Genebra, na Suiça, que se transformou em algo de verdadeiramente signficativo, nos meados de Quinhentos, o século XIX assiste a uma massificação do uso do relógio, através da produção em larga escala de componentes que permitem embaretecer os processos de fabrico. É ainda também no século XIX, em 1840, que surge o primeiro relógio eléctrico, ainda mais fiável.

A Grande Guerra é motivo para outra revolução nesta história: a vulgarização dos relógios de pulso, destronando o modelo de bolso até então imbatível de sucesso e elegância. Ao longo do século XX, as descobertas sucedem-se, do relógio de quartzo (com uma margem de erro inferior a 3 segundos em cada mil anos) e o relógio atómico a cesium, que se atrasa 1 segundo… em cada 20 milhões de anos. Não está mal. Enfim, na realidade, não estaria mesmo nada mal, se o problema fosse só esse. Mas, sem querer armar em Cassandra, a questão é que, desde 1905, nós sabemos que o tempo é relativo. Nada, nem o mais fantástico e fiável relógio, nos tornará mais leve o tempo de uma espera ansiosa, nem alargará aquele de um amor, por mais doce ou ardente. Resta-nos o consolo que o design nos dá, de criar objectos cada vez mais sedutores. Mesmo que, a cada moda, a cada proposta, nós confirmemos o caminho de sempre. Aquele que não tem retorno. Talvez por isso mesmo, a porventura mais popular fabricante de faces do tempo em todo o mundo, a Swatch, tenha lembrado em várias campanhas que o tempo é o que se faz com ele.

(Publicado na Revista MID, 2003)

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