Tempo do Time Magazine ou dos Rolling Stones? Direitos Autorais revisitados

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

GIULIA WILLCOX DE SOUZA RANCAÑO ROSA

Tempo do Time Magazine ou dos Rolling Stones? Direitos Autorais Revisitados

NITERÓI 2016

GIULIA WILLCOX DE SOUZA RANCAÑO ROSA

Tempo do Time Magazine ou dos Rolling Stones? Direitos Autorais Revisitados

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito Orientador: Yagodnik

NITERÓI 2016

Profª.

Esther

Benayon

         

Universidade Federal Fluminense Superintendência de Documentação Biblioteca da Faculdade de Direito Rosa, Giulia Willcox de Souza Rancaño Tempo do Time Magazine ou tempo dos Rolling Stones? Direitos Autorais Revisitados/ Giulia Willcox de Souza Rancaño Rosa. – Niterói, 2016. 61 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal Fluminense, 2016. 1. Cibercultura. 2. Direitos Autorais. 3. Creative Commons. 4. Função Social da Propriedade Intelectual 5. Reforma da Lei de Direitos Autorais. I. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Direito, Instituição responsável. II. Título.

GIULIA WILLCOX DE SOUZA RANCAÑO ROSA

Tempo do Time Magazine ou Tempo dos Rolling Stones? Direitos Autorais Revisitados

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovada em ____ de março de 2016. BANCA EXAMINADORA

Prof. ESTHER BENAYON YAGODNIK UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Prof. ROBERTO FRAGALE UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Prof. ANA PAULA SCIAMMARELLA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

NITERÓI 2016

À vó e o vô

AGRADECIMENTOS À Universidade Federal Fluminense. À minha família, pelo incansável incentivo e o "leite com pera e ovomaltino". À Alzira Gonçalves, Alzira Duncan, sempre Alzira, dona do olhar da flor de maracujá. Ao vô Luiz Fernando, pelo empurrãozinho final. À Professora Esther, pelo carinho e paciência. À Mariana Buy, irmã mais velha que a UFF me deu e imprescindível para o que hoje acontece.

O Time Magazine quer dizer que os Rolling Stones Já não cabem no mundo da Time Magazine Mas eu digo(Ele disse) Que o que já não cabe é o Time Magazine No mundo dos Rolling Stones (…Ele me deu um beijo na boca. Caetano Veloso)

RESUMO

A internet mudou consideravelmente as formas como as pessoas se relacionam na sociedade contemporânea. Agora, estão imersas em intrincadas e fluidas redes de constante troca de informações. A informação ganha cada vez mais valor, e com isso as leis que regulam os direitos do autor ganham cada vez mais atenção, pois em vez de se tornarem um agente catalisador dessas trocas, têm sido um empecilho para as possibilidades que as novas tecnologias e mídias trouxeram. No caso específico brasileiro, a Lei de Direitos Autorais tem ficado cada vez mais para trás ao passo que as mudanças são cada vez mais rápidas, tornando-se urgente e necessário que tal legislação seja revisitada, reavaliada e, sobretudo, adaptada aos novos tempos. Com isso, propomos que modelos já existentes de direitos autorais e estruturas de mercado, como o Creative Commons e exemplos de mercados abertos (open source market) como o tecnobrega do Belém do Pará e obras colaborativas como o Wikipedia, possam ser paradigmas valiosos para a discussão da forma como podemos tornar a cultura mais flexível e democrática. Palavras-chave: Cibercultura. Direitos Autorais. Creative Commons. Função social da propriedade intelectual. Reforma da Lei de Direitos Autorais.

ABSTRACT

The internet has changed considerably the way people interact in today's society. Now, people find themselves immersed in knotty and fluid networks where they constantly exchange information. As information creates value and laws that regulate copyright draw the public's attention, copyright has been an obstacle to the possibilities new technology and new media has been bringing, instead of catalyzing this exchange of information. Particularly, in Brazil's case, the law that regulates copyright (namely LDA) is becoming obsolete and is failing to keep up with the rhythm of contemporary society. It should, then, be revisited, reassessed and, above all, adapted to the modern times. Having this in mind, our purpose is to show, through existing models of copyright and business structures, like Creative Commons and the Open Source Market of, for instance, the tecnobrega scene in Belém do Pará, and collaborative works like Wikipedia, can be useful paradigms to the discussion of how we can make our culture more flexible and democratic.

Keywords: Ciberculture. Copyright. Creative Commons. Social role of the intellectual property. Reform of the Brazilian copyright law.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................12 1. PANORAMA GERAL SOBRE A FIGURA DO AUTOR NA PERSPECTIVA DA CIBERCULTURA....................................................................................... 14 1.1. A aura em declínio...............................................................................14 1.1.1. Valor de interatividade .....................................................................15 1.2. O autor como agente totalizador da obra............................................16 1.2.1 O universal sem totalidade: texto, música imagem........................................................................................................18 1.2.2. O Autor em questão...........................................................................18 1.3. Internet é sinônimo de cultura livre?......................................................19 2. POR QUE MUDAR?.................................................................................23 2.1. Creative Commons e Cultura Remix.....................................................25 2.1.1. Do software livre à Creative Commons..............................................25 2.2. Os tipos de licenças...............................................................................28 2.2.1. Atribuição............................................................................................28 2.2.2. Não a obras derivativas......................................................................29 2.2.3. Vedados Usos Comerciais.................................................................29 2.2.4. Compartilhamento pela mesma licença.............................................29 2.2.5. Recombinação(Sampling)..................................................................29 2.3. As formas colaborativas: direito de autores?........................................32 3. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL......................34 3.1. Mas o que é, afinal, a função social da propriedade intelectual?........34 3.2. Direitos autorais e direitos humanos....................................................35 4. MODELOS DE OPEN SOURCE BUSINESS: O exemplo do tecnobrega...................................................................................................39 4.1.Os atores do cenário tecnobrega..........................................................40

4.2. A distribuição........................................................................................42 4.3. Legal commons versus Social Commons.............................................44 5. DIREITOS AUTORAIS EM REFORMA: EXCEÇÕES E LIMITAÇÕES AO DIREITO DE AUTOR...................................................................................48 5.1. Exceções e limitações na LDA (Lei de Direitos Autorais).....................48 5.2. Por que rever essas disposições?........................................................50 5.3. Quais limitações foram incluídas nas propostas de reforma da LDA?..51 5.4. O que poderia ter sido incluído na proposta de reforma da LDA?.......53 5.5. E para o mercado? Essas limitações não são prejudiciais?.................53 CONCLUSÃO..............................................................................................55 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................58

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INTRODUÇÃO Como dizer se uma obra é um plágio de obra precedente? E se não for plágio, mas mera inspiração? Do trecho abaixo, podemos ter uma ideia do que se trata ser o fenômeno conhecido por dwarfs on the shoulders of Giants(anões aos ombros de gigantes), ou seja, quando somos influenciados pela obra de grandes autores do passado durante o processo criativo: Criar um novo trabalho envolve pegar emprestado ou criar a partir de trabalhos anteriormente existentes, bem como adicionar expressão original a eles. Um novo trabalho de ficção, por exemplo, conterá a contribuição do autor, mas também personagens, situações, detalhes etc. que foram inventados por autores precedentes. (…) Um tratado de direitos autorais, ao aplicar o teste de substancial similaridade que muitos tribunais usam, concluiria que Amor sublime amor infringiria os direitos sobre Romeu e Julieta se este estivesse protegido por direitos autorais. Sendo assim, então, medida por medida, infringiria os (hipotéticos) direitos de uma peça Elizabetana, Promos e Cassandra; o romance Na época do ragtime, de Doctorow, infringiria os direitos de Heinrich von Kleist sobre seu romance Michael Kohlhaas; e o próprio Romeu e Julieta infringiria a obra de Arthur Brooke, A trágica história de Romeu e Julieta, publicada em 1562 e que, por sua vez, infringiria a história de Ovídio sobre Pyramus e Thisbe — que em Sonhos de uma noite de verão Shakespeare encenou como a peça dentro da peça; outra infração dos ‘direitos autorais’ de Ovídio. Estivesse o Velho Testamento protegido por direitos autorais, então Paraíso perdido os teria infringido, bem como o romance de Thomas Mann, José e seus irmãos. Ainda pior: no caso de autores antigos, como Homero e os autores do Velho Testamento, não temos como saber suas fontes e assim não sabemos até que ponto eram tais autores originais e até que ponto eram copiadores. (BRANCO, p. 82)

O avanço da sociedade da informação colocou novamente em pauta questões então adormecidas sobre o direito de autor ou copyright, e que comumente

13 trazem consigo conceitos como o de "plágio", "pirataria" e "exploração econômica da obra". Em uma sociedade permanentemente conectada e fluida, em que os próprios conceitos de obra e autor são eles mesmos, agora, conceitos fluidos, até que ponto o uso da obra de outrem é pirataria? E se outras obras são feitas em cima desta? E se uma obra é derivada de outra, é plágio ou mera inspiração, como vimos no exemplo supracitado? Como levar esses fatores em consideração na ecologia de mídias legada da internet? O presente trabalho buscará responder a algumas dessas questões. Em um primeiro momento, analisaremos as principais mudanças ocorridas nos últimos séculos, à luz das teorias de intelectuais como Pierre Lévy, Walter Benjamin e Michel Foucault. E ainda, tomamos considerações do professor Lawrence Lessig sobre como o novo espaço criado pela internet, em vez de ter se tornado um ambiente democrático e de expansão cultural, tem sido cada vez mais alvo de controle por grandes corporações, que com seu poder de barganha junto a forças políticas, têm tornado cada vez mais rígidas as leis de copyright, em uma guerra irracional antipirataria. A seguir, faremos uma análise de soluções jurídicas possíveis que possam dar dinamicidade à vida cultural tal qual vêm se consolidando, como as licenças Creative Commons e o mercado informal do tecnobrega, que foge aos ditames da indústria fonográfica tradicional, mas não menos produtiva que a mesma. É uma indústria baseada no social commons, que vem sendo uma tendência cada vez maior segundo intelectuais como Yochai Benkler. Por fim, conceituaremos o que seria uma função social da propriedade intelectual ou imaterial, para então dar as diretrizes para uma reforma da Lei de Direitos Autorais, que melhor atenda às nossas necessidades culturais, colocar os pontos positivos e o que ficou aquém nas propostas de reforma já esboçadas, seguindo

as

sugestões

postas

por

Ronaldo

Lemos

e

Sérgio

Branco.

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1. PANORAMA GERAL SOBRE A FIGURA DO AUTOR NA PERSPECTIVA DA CIBERCULTURA O Time Magazine quer dizer que os Rolling Stones Já não cabem no mundo do Time Magazine Mas eu digo (Ele disse) Que o que já não cabe é o Time Magazine No mundo dos Rolling Stones (VELOSO, Caetano) Durante uma entrevista nos anos 50, Albert Einstein declarou que três grandes bombas haviam explodido durante o século XX: a bomba demográfica, a bomba atômica e a bomba das telecomunicações. Aquilo que Einstein chamou de bomba das telecomunicações foi chamado, por meu amigo Roy Ascott (um dos pioneiros e principais teóricos da arte em rede), de “segundo dilúvio”, o das informações. As telecomunicações geram esse novo dilúvio por conta da natureza exponencial, explosiva e caótica de seu crescimento. (LÉVY, 2010, p.13)

Neste capítulo buscaremos expor os principais desafios que o supracitado dilúvio informacional e essa nova ecologia das mídias traz - e tem trazido - para a cultura em geral e mais especificamente para o Direito. Para tal, analisaremos como a figura do autor tem se posicionado para o valor da arte e sua contribuição para o “fundo” cultural da humanidade. Usaremos, para isso, alguns conceitos trazidos por Walter Benjamin quando da sua análise da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, reprodutibilidade essa cada vez mais intensa para a cibercultura que vem fincando suas raízes sobre os resquícios da cultura tradicional. 1.1 A aura em declínio?

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Walter Benjamin, grande teórico da cultura e da história da arte, posicionou a história da arte e tencionou-a em dois polos opostos: o valor de culto da obra e seu valor de exposição. O valor de culto põe a arte a serviço da magia e lhe confere um ar de misticismo, fazendo com que essa se mantivesse quase que exclusivamente aos auspícios de certos grupos como os sacerdotes. É a reprodutibilidade técnica, então, que será o fator preponderante para a emancipação da obra de arte de seu valor cultual e irá impulsioná-la rumo a seu valor de exposição. Benjamin aponta o surgimento da fotografia como ponto de partida para o recuo do valor de culto e a progressiva expansibilidade da obra de arte. 1.1.1 Valor de interatividade na cibercultura Na era da cibercultura, o valor de uma obra de arte é medido pela sua interatividade, sua capacidade de envolver diferentes sentidos do espectador e lhe propiciar experiências singulares e contingenciais. Exemplo disso são as atuais videoinstalações feitas para que o espectador-ator tenha uma experiência personalíssima. Aí lembramos MacLuhan, quando afirmou serem os meios, extensões dos sentidos humanos. Na era da cibercultura, a tendência é de um progressivo esfriamento dos meios de comunicação. “Um meio quente permite menos participação do que um frio: uma conferência envolve menos do que um seminário, e um livro menos do que um diálogo." (MCLUHAN, 2002, p.39) A atual obra-acontecimento envolve o espectador-ator de tal maneira que ele mesmo é o pré-requisito da obra. Ele assiste, contempla, mas também interfere, dialoga com a obra, podendo até, em certos casos, modificá-la (daí a noção de obras derivadas). A extensão do meio, agora (lembremos que MacLuhan falava ainda na década de 60), deixou de serem apenas os sentidos para englobar também a força criativa - digamos seja a criatividade um sexto sentido. Podemos aí adicionar um terceiro polo ao esquema bipolar de Benjamin e dizer que na cibercultura a obra adquire um VALOR DE INTERATIVIDADE ou VALOR DE MOLDE. Num esquema simples: valor de interatividade: i) é a capacidade da obra em envolver o espectador, sendo ele também ator, e, muitas vezes, também criador dessa obra; ii) propicia experiências personalíssimas ao espectador; iii) é

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contingencial e universal, sem totalização; iv) requer que o espectador disponha não só de seus sentidos, como também de sua força criativa. Pierre Lévy, em seu livro Cibercultura, fez um interessante relato do atual estágio da obra de arte nessa era da internet, principalmente no que diz respeito ao autor, que é o que nos interessa aqui. Em um primeiro momento, Lévy narra o surgimento do engenheiro de mundo, o “grande artista do século XXI”, aquele que é capaz de planejar os espaços virtuais onde as trocas sensoriais e informacionais irão ocorrer e como esses dados serão armazenados. A World Wide Web, por exemplo, é um mundo virtual que favorece a inteligência coletiva. Seus inventores -Tim Berners Lee e todos aqueles que programaram as interfaces que nos permitem navegar na Web - são engenheiros de mundos. (LÉVY, 2010, p. 147)

Distingue, ainda, os mundos virtuais entre offline (limitados e editados) e online - “que são acessíveis por meio de uma rede e infinitamente abertos à interação, à transformação e à conexão com outros mundos virtuais” (LÉVY, 2010, p. 147). Devido a este ambiente pluriparticipativo e dinâmico em que está inserida, a obra interativa exige imersão do espectador e sua interação direta. Está também constantemente suscetível à interação e ao diálogo com outras obras da rede, seja pela intertextualidade (como já costuma ocorrer com as obras tradicionais), seja pela hipertextualidade. É, por isso, também denominada obra-fluxo, obra-processo, obra-acontecimento ou, ainda, como chamou Umberto Eco, “obra aberta” (ECO apud LÉVY, 2010, p. 149). 1.2. O autor como agente totalizador da obra Lévy destaca que a pretensa universalidade da obra interativa é devido à sua localização na rede e à, já mencionada, interatividade, não por uma uniformização interpretativa de sua significação, válida em qualquer parte. E continua: “Ora, essa forma de universalidade por contato caminha ao lado de uma tendência à destotalização.” (LÉVY, 2010, p. 149) E o agente dessa totalização encontra-se na figura do autor. É o autor quem confere um significado hermético à obra, e qualquer tentativa de compreensão mais profunda de uma obra pressupõe a figura do autor, a época em que viveu, as suas condições sociais e sua vida particular, etc. Em A Ordem do Discurso, Foucault

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transmite essa mesma ideia, mas com terminologia diferente: põe o autor como causa de rarefação do discurso. Creio que existe outro princípio de rarefação de um discurso que é, até certo ponto, complementar ao primeiro. O autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência. Esse princípio não voga em toda parte nem de modo constante: existem, ao nosso redor, muitos discursos que circulam, sem receber seu sentido ou sua eficácia de um autor ao qual seriam atribuídos: conversas cotidianas, logo apagadas; decretos ou contratos que precisam de signatários, mas não de autor, receitas técnicas transmitidas no anonimato. Mas nos domínios em que a atribuição a um autor é de regra literatura, filosofia, ciência - vê-se bem que ela não desempenha sempre o mesmo papel; na ordem do discurso científico, a atribuição a um autor era, na Idade Média, indispensável, pois era um indicador de verdade. Uma proposição era considerada como recebendo de seu autor seu valor científico. Desde o século XVII, esta função não cessou de se enfraquecer, no discurso científico: o autor só funciona para dar nome a um teorema, um efeito, um exemplo, uma síndrome. Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a função do autor não cessou de se reforçar: todas as narrativas, todos os poemas, todos os dramas ou comédias que se deixava circular na Idade Média no anonimato ao menos relativo, eis que, agora , se lhes pergunta (e exigem que respondam) de onde vêm, quem os escreveu; pede-se que o autor preste contas da unidade de texto posta sob seu nome; pede-se-lhe que revele, ou ao menos sustente, o sentido oculto que os atravessa; pede-se-lhe que os articule com sua vida pessoal e suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real. (FOUCAULT, p.26-28)

Neste ponto em especial, o engenheiro de mundo difere do autor tradicional. Explica: O engenheiro de mundos não assina uma obra acabada, mas um ambiente por essência inacabado, cabendo aos exploradores construir não apenas o sentido variável, múltiplo, inesperado, mas também a ordem de leituras as formas sensíveis. Além disso, a metamorfose contínua das obras adjacentes e do meio virtual que sustenta e penetra a obra contribui para destituir um eventual autor 1 de suas prerrogativas de fiador do sentido.” (LÉVY, 2010, p. 150)

1 Note-se que Lévy usa a expressão explorador para aquele que interage com a obra da cibercultura, pois já passou este de mero espectador.  

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Em seguida, aponta como segunda condição para a totalização ou fechamento de sentido: é o “fechamento físico junto com a fixidez temporal da obra” (LÉVY, p.150). É essa segunda condição que Walter Benjamin chamou de aura. “Em suma, o que é a aura? É uma teia singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.” (BENJAMIN, 2012, p. 184)

Temos aqui um ponto em comum entre os dois autores, pois na obra acontecimento da cibercultura, se dá a realização mais radical da profecia de Benjamin de destruição da aura, pois sua aparição perdeu justamente a qualidade de única, sendo, pelo contrário, uma aparição fluida, quase onipresente nas multiplataformas de uma rede infinita. 1.2.1.O universal sem totalidade: texto, música e imagem Neste tópico, Lévy nos pontua o comportamento que cada uma das modalidades de signo - textual, musical e visual - assume no grande hiperdocumento formado pela cibercultura. O destino inevitável do texto seria o hipertexto, e então o emaranhado hipertextual e aberto que forma a Web. Já a música estaria à disposição dos processos de sampling, mixagem e remixagem pela ativa participação e compartilhamento da comunidade virtual de músicas. A imagem, a seu turno, perderia progressivamente seu caráter contemplativo para tornar-se imersiva, sua virtualidade permite uma interação sensório motora. Acrescenta ainda que as imagens e os textos também podem ser objetos de sampling e de remixagem. Conclui: Enfim, a interação e a imersão, típicas das realidades virtuais, ilustram um princípio de imanência da mensagem ao seu receptor que pode ser aplicado a todas as modalidades do digital: a obra não está mais distante, e sim ao alcance da mão. Participamos dela, a transformamos, somos em parte seus autores. (LÉVY, 2010, p. 153)

1.2.2. O autor em questão Se

a

cibercultura

caminha

para

uma

crescente

universalização

e

destotalização da produção artística e cultural, Pierre Lévy se preocupa agora em analisar uma arte e uma cultura nas quais esses dois elementos fundadores da

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totalização- o arquivo memorável e o gênio criador - passariam para um segundo plano. Tanto a noção de autor em geral, como as diferentes conceituações do autor em particular, encontram-se fortemente ligadas a certas configurações da comunicação, ao estado das relações sociais nos planos econômico, jurídico e institucional. (LÉVY, 2010, p.154)

Depois, diferencia o grau de importância da figura do autor em dois diferentes tipos de sociedade: aquela cuja transmissão cultural se espraia pela oralidade e aquela cuja forma dominante de comunicação informacional e cultural se dá pela escrita. Naquela, as narrativas, formas musicais e plásticas remontam a tempos imemoriais, não se respaldando em nenhuma assinatura, e nas quais a figura do intérprete era mais disseminada; na última a produção cultural é afiançada pela assinatura, concebida como criação do espírito de dado indivíduo que vai, neste processo, ganhando estatuto econômico e jurídico. Dá exemplo, ainda, de obras que não possuem um autor identificável: a mitologia grega e a Bíblia estão entre elas. Saindo do campo da literatura temos as ragas indianas, as pinturas de Lascaux , os templos de Angkor, as catedrais góticas e a Canção de Rolando que também carecem de uma figura autoral. A figura do autor emerge de uma ecologia das mídias e de uma configuração econômica, jurídica e social bem particular. Não é, portanto, surpreendente que possa passar para segundo plano quando o sistema das comunicações e das relações sociais se transformar, desestabilizando o terreno cultural que viu crescer sua importância. Mas talvez nada disso seja tão grave, visto que a proeminência do autor não condiciona nem o alastramento da cultura nem a criatividade artística. (LÉVY, 2010, p. 156)

1.3. Internet é sinônimo de cultura livre? Em seu livro Cultura Livre, o advogado e professor de Stanford, Lawrence Lessig, faz um relato particular da ecologia das mídias e configuração jurídica que deu ao autor o status de que goza até os dias de hoje. Quando nossa sociedade foi deixando de ser uma sociedade predominante oral para tornar-se uma sociedade cuja cultura é ditada pela letra escrita, é que surge a noção de autor tal qual conhecemos e tal qual nos é ensinada pela doutrina legal. É com a palavra escrita,

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agora vendida a atacado e não mais a varejo, e com o surgimento das grandes editoras, é que surge a ideia de copyright. O copyright consistia, como o nome já sugere, basicamente na concessão que o autor dava a uma editora de copiar e publicar sua obra. Era uma concessão eminentemente comercial e prática, não ensejava maiores discussões sobre o papel espiritual do autor e sua relação de paternidade com a obra. Tampouco a lei fazia qualquer ressalva em relação a obras derivativas. A lei, a que me refiro, é a primeira lei de direitos autorais de que se tem notícia, é a lei inglesa Statute of Anne, de 1710. A partir daí começaram a surgir, também, as primeiras lides judiciais envolvendo copyright. Lawrence relata a mais importante dessas em seu livro, o caso Donaldson vs Beckett: Millar era um livreiro que em 1729 comprou os direitos para o poema de James Thomson “As Estações”. Millar cumpriu com os requerimentos do Estatuto de Anne, e, portanto, recebeu total proteção do estatuto. Após o término do período de copyright, Robert Taylor começou a imprimir um volume que competia com Millar, que o processou, clamando o direito perpétuo segundo a jurisprudência, ignorando o Estatuto de Anne. Surpreendentemente para a maioria dos advogados da atualidade, um dos maiores juízes da história inglesa, Lorde Mansfield, deu ganho de causa aos livreiros. Qualquer proteção dada pelo Estatuto de Anne aos livreiros não anulava, em seu entender, os direitos de jurisprudência. A questão era se a jurisprudência poderia proteger o autor contra futuros “piratas”. A resposta de Mansfield foi sim: a jurisprudência podia impedir que Taylor republicasse o poema de Thomson sem a permissão de Millar. Essa regra da jurisprudência então efetivamente dava aos livreiros um direito perpétuo de controlar a publicação de todos os livros os quais detivessem os copyrights. Considerando como um assunto de justiça abstrata — raciocínio no qual a justiça não passa de dedução lógica de princípios básicos — a conclusão de Mansfield faz algum sentido. Mas o que foi ignorado foi o motivo principal pelo qual o Parlamento lutou em 1710: qual a melhor forma de limitar o poder de monopólio dos distribuidores? A estratégia do Parlamento era oferecer um período para obras existentes que fosse suficientemente longo para conseguir a paz em 1710, mas suficientemente curto para garantir que a cultura deveria passar para a competição dentro de um período racional de tempo. Em vinte e um anos, o Parlamento pensou, a Inglaterra iria amadurecer da cultura controlada que a Coroa desejava para a cultura livre que nós herdamos. A luta para defender os limites definidos pelo Estatuto de Anne não acabou aí, porém, e é aqui que entra Donaldson, Millar morreu pouco depois de sua vitória, portanto não houve apelação no caso. Seu espólio vendeu os poemas de Thomson para um sindicato de distribuidores que incluía Thomas Beckett. Donaldson então lançou uma edição não-autorizada dos trabalhos de Thomson. Beckett, baseando-se na decisão de Millar, obteve um mandato judicial contra Donaldson.

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Donaldson apelou do caso para a Câmara dos Lordes, que funcionava de forma similar à nossa Suprema Corte. Em Fevereiro de 1774, essa instituição teve a chance de entender o objetivo dos limites impostos pelo Parlamento sessenta anos antes. Como poucos casos jurídicos jamais conseguiram, Donaldson versus Beckett causou uma grande comoção ao redor da Inglaterra. Os advogados de Donaldson argumentaram que quaisquer direitos que tenham existido, segundo a jurisprudência, tinham sido terminados com o Estatuto de Anne. Após a aprovação do Estatuto de Anne, a única proteção jurídica para um direito exclusivo de controle de publicação vinha dele. Dessa forma, eles argumentaram, após o período definido pelo Estatuto de Anne ter expirado, que os trabalhos que estavam originalmente protegidos pelo estatuto perdiam tal proteção. A Câmara dos Lordes era uma instituição esquisita. Questões jurídicas eram apresentada à Câmara e votadas primeiro pelos “lordes da lei”, membros de uma distinção jurídica especial que atuava como os Juízes de nossa Suprema Corte. Então, após os lordes da lei terem votado, a Câmara dos Lordes geralmente votava. Os relatos sobre os votos dos lordes da lei eram confusos. Em algumas contagens, parecia que o copyright perpétuo iria prevalecer. Mas não havia nenhuma ambiguidade sobre de que maneira a Câmara dos Lordes votaria como um todo. Por uma maioria de dois para um (22 a 11) eles votaram contra a ideia de copyrights perpétuos. Para qualquer um que entenda de jurisprudência, agora um copyright era fixado por um limite definido, após o qual a obra sob copyright passava para o domínio público. (LESSIG, 2004, p. 82-83)

Nesse caso emblemático, consolidou-se, na cultura editorial inglesa de então, não só a ideia de copyright, tal como fora concebida pelo Estatuto de Anne, ou seja, um freio à monopolização da cultura por parte do Poder Real, como também a noção de domínio público começou a cristalizar-se diante de uma tradição jurisprudencial que acolhia o “copyright perpétuo”. O domínio público é uma peça-chave para qualquer cultura livre saudável, tendo o papel de democratizar o acesso à cultura e ao mesmo tempo estimular e fazer fluir a força criativa dessa cultura. As obras culturais têm dois períodos cíclicos bem demarcados, como foi pontuado por Lessig: a sua fase comercial e a sua fase não comercial. A proteção do copyright, se efetivada em conformidade com sua finalidade, apenas faria sentido na fase comercial da obra. Na fase não comercial, esse escopo torna-se inócuo, e o domínio público deveria ser a regra. Não só inócuo, como, se levarmos esse raciocínio ao extremo, seria como taxarmos os sebos de ilegais, pois quem adquire um livro deles não repassa os direitos autorais. Foucault, bem antes de Lessig e mesmo sem chegar a conhecer a cultura digital, já intuía que um ambiente aparentemente difuso e propenso à circulação do discurso ainda poderia sofrer restrições:

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É certo que não mais existem tais "sociedades de discurso", com esse jogo ambíguo de segredo e de divulgação. Mas que ninguém se deixe enganar; mesmo na ordem do discurso verdadeiro, mesmo na ordem do discurso publicado e livre de qualquer ritual, se exercem ainda formas de apropriação de segredo e de não-permutabilidade. É bem possível que o ato de escrever tal como está hoje institucionalizado no livro, no sistema de edição e no personagem do escritor, tenha lugar em uma "sociedade do discurso" difusa, talvez, mas certamente coercitiva. (FOUCAULT, 1999, p. 40-41) Pode-se afirmar, com alguma segurança, que o que Lessig faz em Cultura Livre é perfazer e analisar os meios coercitivos que controlam uma sociedade do discurso que, graças ao surgimento da internet, é cada vez mais difusa e ao mesmo tempo a sociedade do discurso que mais tem gerado esforços de controle por parte de grupos poderosos, onde lobby, política e copyright se imiscuem. O que este trabalho propõe é que essa conjugação de forças (copyright x domínio público) deve readquirir o equilíbrio para o qual inicialmente foram pensadas, e postas em harmonia com a atual ecologia de mídias desenhadas por Lévy.

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2. POR QUE MUDAR? "Your old road is Rapidly agin(g)'. Please get out of the new one If you can't lend your hand For the times they are a-changin" (DYLAN, Bob)

Para responder à pergunta deste capítulo, iniciaremos com uma anedota contada pelo professor Lessig no livro "Cultura Livre" e também em uma palestra no TED2(Technology, Entertainment, Design), uma plataforma de conferências e palestras na web. É o caso dos fazendeiros Causbys e os aviões que atravessavam sua propriedade. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo subsequente. Dispõe o Código Civil, Lei nº 10.406, 2002: Art. 1.229. A propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las.

Ocorre que a passagem dos aerodinâmicos pela propriedade dos Causbys estava assustando suas galinhas, assim prejudicando a atividade dos mesmos. Como seria de se esperar, os Causbys levaram a problemática à sede judicial, para pedir que sua propriedade fosse retirada do itinerário dos mesmos. O seu rogo chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos. 2

https://www.ted.com/talks/larry_lessig_says_the_law_is_strangling_creativity

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Em 1945, essas questões tornaram-se um caso federal. Quando os fazendeiros da Carolina do Norte Thomas Lee e Tinie Causby começaram a perder galinhas por causa da aviação militar rasante (aparentemente as galinhas ficavam assustadas, batiam contra a cerca e morriam), os Causbys processaram o governo por invasão de propriedade. Os aviões, claro, nunca tocaram o chão do terreno dos Causbys. Mas se, como Blackstone, Kent, e Coke disseram, seu terreno alcançava “uma extensão indefinida para cima”, então o governo estava invadindo seu terreno e eles queriam que isso parasse. A Suprema Corte aceitou ouvir o caso dos Causbys. O Congresso tinha declarado as rotas aéreas como sendo públicas, mas se a propriedade de uma pessoa realmente estendese aos céus, então a declaração do Congresso poderia muito bem ser uma “tomada” inconstitucional de propriedade, sem compensação. A Corte reconheceu que “era uma doutrina antiga a lei comum a extensão da propriedade até a periferia do Universo”. Mas o Juiz Douglas não tinha paciência com a doutrina antiga. Em um único parágrafo, centenas de anos de leis de propriedades foram apagados. Como ele escreveu para a Corte: A doutrina não cabe no mundo moderno. O ar é uma via pública, como o Congresso declarou. Se assim não fosse, todo voo transcontinental seria alvo de infinitos processos por invasão. O bom senso fica revoltado diante de tal ideia. Reconhecer tais apelos privados pelo espaço aéreo iria obstruir esses caminhos, interferindo com seu controle e desenvolvimento para o bem público, e transferindo para a propriedade privada o que apenas o público poderia ter como um direito justo. (LESSIG, 2004, p. 4-5)

A internet, como o avião naquela época, é uma nova forma de tecnologia. À propriedade intelectual foi conferida a mesma sacralidade da propriedade imóvel. O bom senso, para o juiz Douglas, fica revoltado com a ideia de que as leis não se amoldem às novas formas de tecnologia, obstruindo os caminhos do progresso social. Completa Lessig: Mas leve isso páginas ou umas poucas palavras, é esse o gênio especial de um sistema de jurisprudência, como o nosso, que permite que a lei se ajuste às tecnologias de seu tempo. E conforme se ajusta, ela muda. Ideias que eram tão sólidas quanto rocha em um período desfazemse em outro. (LESSIG, p.4)

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Existe outro ponto nessa história, não trazido pelo professor Lessig, mas para o qual gostaríamos de chamar a atenção: no atual estágio de desenvolvimento das modernas democracias, a propriedade imóvel perdeu o seu caráter absoluto, sendo agora ponderada com outros valores, como a função social da propriedade. Mais adiante, nos aprofundaremos mais nessa temática. 2.1 Creative commons e cultura remix Every new idea is just a mashup or a remix of one or more previous ideas. (KLEON, Austin) O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol. Eclesiastes 1:9 O “Manifesto Remix” é relativamente simples na teoria. Ele nos é apresentado no documentário “RIP: A Remix Manifesto!”, cujo principal êxito foi justamente expor, através da própria linguagem audiovisual, as dificuldades da produção artística (evidentemente também a audiovisual) frente às barreiras impostas por uma política de direitos autorais ainda retrógrada. O manifesto se baseia em quatro premissas básicas: 1- A cultura sempre se constrói de ideias passadas; 2-O passado sempre tenta controlar o futuro; 3- Nosso futuro está se tornando menos livre; 4- Para construir sociedades livres devemos tentar limitar o controle do passado. (RIP: A Remix Manifesto, 2009)

Veremos, agora, alguns passos que foram dados com vistas a "tentar limitar o controle do passado", a trajetória do Software Livre à Creative Commons, seu filho direto. 2.1.1. Do software livre à creative commons Não precisa necessariamente usá-la (a licença Creative Commons), mas fazer dela um marco para a criação de outras. É preciso levar

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em conta o caráter institucional, formalizador, a dimensão jurídica para a autonomia do autor, para dimensionar essa licença, entender seus limites. Seu caráter limitado ou ilimitado. Não pode examinar com uma visão apressada, que talvez seja o que esteja na base dessa iniciativa, (a crença) de que essa licença e todas essas 3

licenças similares enfraquecem o direito autoral. (GILBERTO, Gil)

Em 1984, Richard Stallman, pesquisador do MIT, começou a elaborar um sistema operacional livre, dando início ao projeto GNU. Foi adicionado, então, o kernel (em sistemas operacionais, o kernel é o núcleo do sistema) Linux, criado por Linus Torvald, e o sistema operacional passou a denominar-se GNU/Linux. O motivo que levou Stallman a fazer isso foi relativamente simples. Quando surgiram os primeiros computadores, o software era livre por uma impossibilidade material: um programa escrito para máquinas da Data General não rodava em máquinas da IBM, e vice versa. Por isso, não havia uma preocupação em se controlar o software. E foi nesse ambiente de

liberdade

que

Stallman

desenvolveu

suas

habilidades

como

programador, incorporando a ideia de que é algo muito natural trabalhar em cima do código elaborado por outros programadores e aprimorá-lo. Acontece que, em algum momento a arquitetura da venda de computadores mudou: tornou-se possível "rodar" programas de um sistema em outro e códigos proprietários começaram a dominar o mercado no início da década de 80. "O mundo do software livre tinha sido apagado por uma mudança na economia da computação." (LESSIG, p. 252). Foi este novo cenário que impulsionou Stallman a iniciar a Free Software Foundation. Mas, longe de ignorar ou enfrentar a lei do copyright, a técnica de Stallman, pelo contrário, a incorporou: um software linceciado pela GPL(General Public License ou Licença Pública Geral) "não pode ser modificado e distribuído a não ser que o código fonte 3 http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,gil-critica-acao-acodada-do-mincimp-,675023  

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para o software esteja disponível também."(grifos nossos, LESSIG, p. 253). A liberdade conferida por esse licenciamento GPL permitia uma maior expressão criativa, pois qualquer um que manipulasse um software GPL deveria consentir que esse software modificado também ficasse livre. A ideia era justamente se criar uma obra coletiva, um esforço coletivo de uma comunidade de programadores, de engenheiros de mundo - nomenclatura apresentada por Lévy no início deste trabalho - do qual código inovador e criativo seria um subproduto. Foi a partir da indignação ativa de um então integrante do MIT, Richard Stallman, contra a proibição de se acessar o código fonte de um software, certamente desenvolvido a partir do conhecimento acumulado de tantos outros programadores, que em 1985 foi criada a Free Software Foundation. O movimento de software livre começou pequeno. Reunia e distribuía programas e ferramentas livres, com o código-fonte aberto. Assim, todas as pessoas poderiam ter acesso não só aos programas, mas também aos códigos em que foram escritos. A ideia era produzir um sistema operacional livre que tivesse a lógica do sistema Unix que era proprietário, ou seja, pertencia a uma empresa. Por isso, os vários esforços de programação eram reunidos em torno do nome GNU (Gnu Is Not Unix). Para evitar que os esforços do movimento fossem apropriados indevidamente e patenteados por algum empreendedor oportunista, novamente bloqueando o desenvolvimento compartilhado, a Free Software Foundation inventou a Licença Pública Geral, GPL em inglês, conhecida como copyleft em contraposição ao copyright. Ela é a garantia que os esforços coletivos não serão indevidamente considerados propriedade de alguém. O GPL é aplicável a todas as frentes em que os direitos autorais são utilizados: livros, imagens, músicas e softwares. Com a difusão da Internet, o movimento de software livre ganhou o mundo e logrou produzir um sistema operacional livre, completo e multifuncional, o GNU/LINUX. Em 1992, o finlandês Linus Torvald conseguiu compilar todos os programas e ferramentas do movimento GNU em um kernel, um núcleo central, o que viabilizou o sistema operacional. Torvald denominou este seu esforço de Linux, ou seja, “Linus for Unix”. 4 (AMADEU apud LEMOS; BRANCO, 2009, p. 5-6).

4 http://www.softwarelivre.gov.br/softwarelivre/artigos/artigo_02  

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Quando o Creative Commons surgiu, encabeçado justamente pelo professor Lawrence Lessig, ele seguiu a linha do copyleft, ou software livre. Não se tratava de pôr fim à propriedade autoral, muito menos à legalização da pirataria. Tratava-se, outrossim, de manter esses direitos do autor, e através de um contrato jurídico, uma licença padrão, conferir ao licenciado algumas liberdades previstas neste contrato. Trata-se de uma liberdade também para o licenciante, dando uma parcela de disponibilidade ao permitir a ele reservar-se alguns direitos ao invés do tradicional todos os direitos reservados.

2.2. Os tipos de licença Os principais tipos de licenças Creative Commons são: 2.2.1. Atribuição Este é o tipo de licença mais amplo, através do qual o autor autoriza que se copie, distribua, e transforme seu trabalho por meio de obras derivadas. A exigência é de, ao fazê-lo, os usuários atribuam a obra ao autor original, fazendo referência ao seu nome. Esta exigência está em

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conformidade com os direitos morais do autor, no qual se encontra o de paternidade. 2.2.2. Não a obras derivativas Nos termos dessa licença, o usuário pode copiar, distribuir e dispor da obra licenciada, ainda longe da proibição constante do artigo 46,II, da LDA. Porém, não pode o usuário modificá-la, reeditá-la, fazendo um remix da mesma. A criação de obras derivativas é vedada e só é possível com expressa autorização do autor. 2.2.3.Vedados usos comerciais Essa licença muito se assemelha à primeira, pois autoriza a livre cópia, distribuição e utilização da obra, desde que sem finalidade comercial. Assim, o uso privado e doméstico é plenamente aceito, e até a distribuição a terceiros, desde que sem intenção de lucro. Muitos arguiriam ser essa licença até desnecessária, já que em conformidade com o uso justo. Mas, como ainda não há um entendimento pacificado neste sentido, o ideal é que se faça uso da licença expressa. 2.2.4 Compartilhamento pela mesma licença Essa licença é a que representa de forma mais contundente o princípio do Creative Commons. A partir dela, o autor permite o uso, cópia e distribuição na obra, assim como nas licenças "atribuição" e "vedados usos comerciais". Através dessa licença, o autor impõe que, em caso de obras derivativas, como texto adaptado em filme, a obra derivada em questão deve ser licenciada também sob o Creative Commons. Ela impõe, em suma, o chamado efeito viral da licença em rede. 2.2.5. Recombinação (Sampling)

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Essa licença diz respeito ao tão falado remix, pois através dela o autor permite a utilização parcial e de boa-fé da obra através de técnicas como o sampleamento, mesclagem ou colagem, "desde que haja transformação significativa do original, levando à criação de uma obra nova" (LEMOS; BRANCO, 2009, p. 19). Ou seja, o requisito é que haja, de fato, obra nova. Mais um tipo de licença que, muitos poderiam argumentar, já estaria subsumida no uso justo. Cabe ressaltar, também, que as licenças Creative Commons são cumulativas, quer dizer, podem ser usadas em conjunto umas com as outras. Segundo Ronaldo Lemos e Sérgio Branco: Juridicamente, as licenças públicas se classificam como contratos atípicos, cuja celebração é autorizada por nosso Código Civil, nos termos de seu art. 4255. Podem ser classificadas também como contratos unilaterais, já que geram direitos e obrigações para somente uma das partes. “Ao licenciar um programa de computador sob o crivo da licença GPL, o licenciante não assume nenhuma obrigação, da mesma maneira que a utilização de sua obra por terceiros não lhe gera qualquer direito, uma vez que a utilização, distribuição e modificação são gratuitas (grifos nossos. LEMOS; BRANCO, 2009, p. 20)

É de se notar, então, não ser a bilateralidade uma característica essencial deste tipo de negócio jurídico envolvendo direitos autorais, e, por tal, especial atenção deve ser dada à causa do contrato, suas características e consequências jurídicas. Continuam os autores: De fato, caso determinada obra seja licenciada valendose o autor da licença “atribuição” combinada com a licença “vedado o uso comercial”, o licenciado poderá fazer cópia da obra e produzir obras derivadas, embora apenas sem intuito de lucro. No entanto, no caso de produzir obras derivadas, deverá sempre indicar o autor original da obra. Ou seja, há obrigação para o licenciado. Mas é obrigação que pode nem mesmo vir a se configurar (caso o licenciado jamais venha a produzir obra derivada daquela). Afinal, pode ser que a obra derivada jamais venha a existir. E mais: pode ser que, existindo, permaneça inédita, jamais venha a ser licenciada. O que se impõe, tão-somente, é que, existindo 5

Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

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obra derivada, se esta vier a ser licenciada, deverá sê-lo pelos termos da mesma licença. Por isso, as licenças públicas Creative Commons serão sempre unilaterais. Sendo contratos atípicos, ainda assim sobre eles devem incidir os chamados novos princípios contratuais como a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico e o respeito à sua função social, sendo-lhes atribuídas as características dos contratos unilaterais. Também é fácil observar sua submissão às regras da LDA, no sentido de que apenas as faculdades livre e explicitamente licenciadas pelo detentor dos direitos autorais poderão ser aproveitadas por terceiros nos termos da licença. Aqui, também, observa-se com nitidez a causa da licença e o exercício de sua função social na medida em que o licenciado se valha da obra nos exatos termos em que foi autorizado pelo autor. (LEMOS; BRANCO, 2009, p. 20-21)

Outro aspecto que o Creative Commons "pegou emprestado" do software livre foi o seu "efeito cascata": [...]O uso da GNU GPL enseja a formação de redes de contratos, ou de contratos de licenciamento em rede. Aquele que se vale da licença precisa necessariamente permitir o uso de seus eventuais aperfeiçoamentos e modificações. [...] Por isso, diz-se tratar-se de um contrato em rede, já que o licenciado de hoje poderá ser o licenciante de amanhã. Dessa forma, alega-se o efeito viral a esse tipo de contrato, “na medida em que a cláusula do compartilhamento obrigatório inocula-se em todos os contratos, fazendo-os partícipes de uma mesma situação. (FALCÃO, 2006 apud LEMOS; BRANCO, 2009, p. 8-9)

Lessig nos apresenta a noção de commons, bens comuns aos quais todos os membros de uma comunidade têm acesso sem necessidade de permissão, e faz uma distinção importante: entre bens rivais e bens não rivais. Em suma, bens rivais seriam aqueles cujo uso simultâneo exaure o bem, como as ruas e praças públicas, e os não rivais são aqueles cujo uso não o exaure, como a Teoria da Relatividade e a obra de Shakespeare. Explica o autor de O Futuro das Ideias: A teoria da relatividade de Einstein é diferente das ruas ou praias públicas. A teoria de Einstein é totalmente “nãorival” [no sentido de que não há rivalidade no uso por mais de uma pessoa simultaneamente]; as ruas e as praias não são. Se você usa a teoria da relatividade, há tanto para ser usado depois quanto havia para ser usado antes. Seu consumo, em outras palavras, não rivaliza

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com o meu próprio. Mas estradas e praias são muito diferentes. Se todos tentam usar as estradas ao mesmo tempo (algo que aparentemente acontece na Califórnia com frequência), então o seu uso das estradas rivaliza com o meu. Engarrafamentos, praias públicas lotadas. [...] se um bem é ‘não-rival’, então o problema restringese a saber se há incentivo suficiente para produzi-lo e não se há demanda suficiente para seu consumo. Um bem considerado ‘não-rival’ não pode ser exaurido”(LESSIG apud LEMOS; BRANCO, 2009, p. 1213)

O que o Creative Commons propõe é que a comunidade possa usufruir de certas obras, sejam textos, músicas ou filmes, porém dentro dos limites esboçados na licença pública que o autor escolher. Ele segue a lógica do "alguns direitos reservados", ao invés do "todos os direitos reservados", criando assim uma espécie de commons cujo uso é regulado por seus termos. É uma solução intermediária, que protege os direitos do autor, que os tem respeitados, ao mesmo tempo que permite, através de instrumento juridicamente válido, o acesso à cultura e o exercício da criatividade dos interessados em usarem a obra licenciada. (LEMOS; BRANCO, 2009, p. 15)

2.3. As formas colaborativas: direitos de autores? Muito comum hodiernamente é a existência de obras colaborativas. Essas obras não teriam sua criação vinculada a um autor individual, e sim à sociedade como um todo, coletiva e colaborativamente. Em sua obra "A riqueza das redes", Yochai Benkler faz uma análise das formas de interação não-lucrativas nas redes e associa o surgimento dessas obras colaborativas ao fato de que a produção criativa, e consequentemente cultural, têm incentivos outros que não puramente mercadológicos. Para citar alguns, o desejo de alcançar uma suposta imortalidade através de sua obra, e, mais afim com as obras colaborativas agora em tela, o desejo de pertencimento a uma comunidade. O exemplo mais corriqueiro que poderíamos citar é a enciclopédia online Wikipedia. Diz Sérgio Branco: A wikipedia é um grande projeto de criação intelectual que desafia os paradigmas dos direitos autorais. Pondo em xeque os conceitos de autor, de

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titularidade, de edição e até mesmo de obra, a wikipedia pode ser considerada não mais uma obra coletiva, mas sim uma obra colaborativa. (LEMOS; BRANCO, 2009, p. 27) A ideia central é a de que qualquer usuário da internet pode colaborar com a Wikipedia, adicionando verbetes ao seu repertório, alterando ou complementando verbetes já existentes. Branco ressalta que a Wikipedia não conta com os problemas engessadores da Enciclopedia Britannica, tais como o tamanho físico que ocupa, o custo de tradução, impressão e distribuição – além, evidentemente, do tempo gasto para revisão e atualização, a wikipedia pode ser, ao mesmo tempo, universal e popular. (LEMOS;BRANCO, 2009, p. 27)

Um levantamento feito pela revista inglesa Nature apontou que a Wikipedia apresenta inconsistências, em número, quase igual às de sua concorrente Enciclopedia Britannica. A revista submeteu à análise de especialistas 50 artigos científicos da Wikipedia e da Enciclopedia Britannica. Daí resultou que: Entre as 42 revisões que foram devolvidas à revista, o resultado foi que os especialistas apontaram uma média de 4 inconsistências por verbete da wikipedia contra 3 de sua concorrente. (LEMOS; BRANCO, 2009, p. 28)

A Wikipedia é apenas um exemplo, é claro, de como formas colaborativas e mais democráticas de empreendimento científico podem ser tão acuradas, e tanto mais efetivas, que as formas tradicionais desses empreendimentos. E, também, de que essa lógica pode ser exportada para outros aspectos da vida cultural. Nesse sentido, conclui Sérgio Branco: As obras colaborativas podem vir a ser, a rigor, a efetivação, dentro do campo de direitos autorais, do disposto no art. 4º, I, de nossa Constituição Federal, que objetiva a construção de uma sociedade mais solidária, que entende que a liberdade de expressão, a ajuda mútua e o compartilhamento de conhecimento podem valer mais do que a preservação de direitos autorais, muitas vezes, de pouco espectro. (LEMOS; BRANCO, 2009, p.29)

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3. Função social da propriedade intelectual Como exposto anteriormente, o direito autoral é uma esfera de interseção, que

envolve

não

interdisciplinares,

apenas

questões

relacionando-se

com

jurídicas, a

mas

Comunicação

também Social,

questões Economia,

Sociologia, Política e outras áreas do saber. O que o Creative Commons busca trazer é um diálogo entre essas áreas, uma solução equilibrada que não permite que o rigor da lei engesse a cultura e nem que o produtor cultural - o artista, o comunicólogo - reste sem recompensa. Ainda, tiraria de muitos usuários da web a pecha de piratas, de criminosos. O Creative Commons traz consigo o respeito à propriedade e possibilita que esta cumpra a sua esperada função social. 3.1. Mas o que é, afinal, a função social da propriedade intelectual? Iniciaremos a abordagem sobre a função social da propriedade imaterial trazendo, como exemplo paradigmático, recente produção legislativa que tem sido inovadora no sentido de reconhecer tal função social, a saber, o chamado Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Em seu artigo 19, §2º, dispõe a supracitada lei: A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5o da Constituição Federal.

Ou seja, a aplicação de sanções ao provedor de aplicações da internet responsabilizado por infrações a direitos de autor e conexos depende, além da não observância de ordem judicial para tornar o conteúdo indisponível, também, de previsão legal específica e conformidade com as garantias constitucionais

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previstas no art 5º da CRFB/88. Lembrando que o artigo 5º da Constituição traz consigo, além do direito à liberdade de expressão, ao acesso à cultura e à informação, também, a função social da propriedade. Em uma interpretação conforme a Constituição, esse dispositivo abarcaria também a propriedade imaterial. Ademais, o dispositivo não faz menção a que tipo de propriedade se refere, não adjetiva a propriedade, deixando o texto constitucional aberto para uma interpretação neste sentido. Comungam, também, dessa visão, Pedro Paranaguá e Sérgio Branco: A concepção clássica do direito de propriedade previa que o proprietário podia exercer seu domínio sobre a coisa como melhor lhe aprouvesse. Contemporaneamente, no entanto, a concepção é bem diversa. A propriedade tem, por determinação constitucional, uma função a cumprir. Na busca para se atingir o equilíbrio entre o direito detido pelo autor e o direito de acesso ao conhecimento de que goza a sociedade, a função social exerce papel importantíssimo. Ao contrário do sistema anglo-americano — de copyright —, que se pauta pela análise do caso concreto e valoriza mais acentuadamente as decisões judiciais, nossa lei, de tradição romano-germânica, tenta prever todas as hipóteses legais em que determinada situação possa se enquadrar. No entanto, a leitura literal da lei brasileira desautoriza uma série de condutas que estão em conformidade com a funcionalização do instituto da propriedade. Por exemplo, pela LDA, não se pode fazer cópia de livro que, mesmo com edição comercial esgotada, ainda esteja no prazo de proteção dos direitos autorais. Mas, pelos princípios constitucionais do direito à educação (art. 6º, caput, art. 205), do direito de acesso à cultura, à educação e à ciência (art. 23, V) e, mais importante, pela determinação de que a propriedade deve atender a sua função social (art. 5o , XXIII), é necessário que se admita cópia do livro, ainda que protegido. O contrário seria um contrassenso, uma inversão da lógica jurídica, já que princípios constitucionais teriam que se curvar ao disposto em uma lei ordinária (a LDA), quando na verdade o oposto é que deve ocorrer. (grifos nossos, PARANAGUÁ; BRANCO, 2009, p.70)

A partir do texto de lei e das exposições feitas por Sérgio Branco e Pedro Paranaguá, podemos já esboçar uma conceituação de função social da propriedade imaterial: quando as obras e demais criações do gênio humano, a partir do momento em que exteriorizadas, fixadas em um suporte físico e incorporadas à propriedade de um indivíduo, devem atender também a dispositivos constitucionais que vislumbram o interesse coletivo pelo acesso à cultura. Espera-se que as produções legislativas vindouras, inclusive o projeto de reforma da Lei de Direitos Autorais, sigam nessa trilha iniciada pelo Marco Civil da Internet.

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3.2. Direitos autorais e direitos humanos Flávia Piovesan reconhece essa função social, e foi além, colocando-a como um ramo dos direitos humanos, estando insculpida na Declaração Universal de 1948 e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O artigo XXVII da Declaração Universal de 1948 dispõe que: 1.Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

Ainda, o artigo 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) participar da vida cultural; b) desfrutar do progresso científico e suas aplicações; c) beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor.” E segue: “As medidas que os Estados-partes no presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício deste direito incluirão aquelas necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura[...]os Estados-partes reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura.

Da leitura desses diplomas internacionais, note-se que há a ponderação de dois valores fundamentais: a proteção individual material e moral do autor e o direito difuso da comunidade em participar da vida cultural, tendo acesso, dentre outras, à obra desse autor. Em novembro de 2005, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que é órgão de monitoramento do Pacto, adotou a Recomendação Geral n.17, a respeito do direito de qualquer autor a beneficiar-se da proteção dos interesses moral e material resultantes de suas produções científicas, literárias ou artísticas[...]Nesse sentido, observou: “In striking this balance, the private interests of authors should not be unduly favored and the public interest in enjoying broad access to their productions should be given due consideration. States parties should therefore ensure that their legal or other regimes for the protection of the moral and material interests resulting from one’s scientific, literary or artistic productions constitute no impediment to their ability to comply with their core obligations in relation to the rights to food, health and education, as well as to take part in cultural life and to enjoy the

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benefits of scientific progress and its applications, or any other right 6 enshrined in the Covenant”. Para o Comitê, os interesses privados do autor não podem impedir que os Estados implementem as obrigações internacionais decorrentes do Pacto em relação aos direitos à alimentação, saúde e educação, bem como aos direitos à cultura e ao desfrute dos progressos científicos, compreendidos sob uma ótica coletivista e de interesse público." (PIOVESAN, 2007, p.13-14)

E continua: Além dos Estados-partes buscarem o balanço adequado destes direitos, com o razoável equilíbrio entre a proteção do interesse privado do autor e do interesse público concernente à proteção dos direitos sociais, frisa o Comitê que a propriedade intelectual é um produto social, apresentando uma função social. Deve, portanto, ser avaliado o impacto no campo dos direitos humanos dos regimes jurídicos de proteção da propriedade intelectual. (PIOVESAN, 2007, p. 20)

Piovesan faz uma distinção muito importante para a qual Lessig aponta exaustivamente em seu livro Cultura Livre: o conflito não reside na dicotomia direitos do autor versus direitos sociais de toda a coletividade, e sim na exploração comercial dessa obra versus direitos sociais da coletividade. O parâmetro de Lessig é o da sociedade americana, mas suas colocações também se aplicam à sociedade brasileira. O cenário pintado é um em que as grandes corporações (como a RCA- Radio Corporation of America e a Disney), que concentram a maior parte dos meios de comunicação e de copyrights, têm um forte poder de lobby junto ao governo, fazendo passar leis que enrijecem cada vez mais as políticas de copyright. Seu interesse estaria longe de remunerar o artista, como poderiam pensar muitos românticos, mas sim de auferir cada vez mais lucro para si. Os interesses dessas grandes corporações da indústria do entretenimento tendem a manter um sistema feudal da propriedade dita intelectual ou imaterial. E

6 Para alcançar esse equilíbrio, os interesses privados dos autores não devem ser indevidamente beneficiados e o interesse público de usufruir o amplo acesso a suas obras deve ser levado em consideração. Os Estados-parte devem então se certificar de que o regime legal e outros regimes para a proteção dos interesses morais e materiais resultantes de produções científicas, literárias ou artísticas não constituam impedimento à sua habilidade de atender a outras obrigações centrais relativas aos direitos à alimentação, saúde e educação, assim como facilitar o acesso à vida cultural e o gozo do progresso científico, ou qualquer outro direito insculpido no Pacto.    

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isto representaria um anacronismo sem precedentes em plena cultura da informação, como diria Lessig: Conforme relatado por Peter Drahos e John Braithwaite, essa é precisamente a escolha que agora devemos fazer quanto à propriedade intelectual. Nós iremos ter uma sociedade da informação, isso é garantido. Nossa escolha agora é se tal sociedade será uma sociedade livre ou feudal. A tendência é que ela se torne feudal. (LESSIG, 2002, p.239)

Não se trata, então, de uma escolha entre uma sociedade da informação ou não. Já estamos na sociedade da informação, e muito familiarizados com essa realidade. Devemos agora tomar providências para que ela seja uma sociedade livre, e um dos postulados fundamentais da comunicação social em tal sociedade é a democratização da mídia. O perigo na concentração dos meios de comunicação não vem da concentração, mas de fato vem do feudalismo que tal concentração, unida à mudança no copyright, provoca. Não é apenas o fato de que haverá apenas algumas poucas e poderosas companhias controlando um pedaço cada vez maior da mídia. É que tal concentração pode exigir uma igualmente enorme gama de direitos — direitos de propriedade em uma forma historicamente extrema — que tornará tal grandeza ruim. (LESSIG, 2002. p. 242)

Note-se que a preocupação externada por Lessig com a criação de um ambiente favorável ao desenvolvimento de uma cultura livre é a mesma que vem sendo objeto de preocupação também da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como apontado por Flávia Piovesan. A jurisprudência da Corte Interamericana[em referência à Opinião Consultiva 5/85] tem realçado que o direito à informação é pressuposto e condição para a existência de uma sociedade livre, enfatizando que “una sociedad que no está bien informada no es 7 plenamente libre. (PIOVESAN, 2007, p.19)

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 Uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre.  

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4. MODELOS DE OPEN SOURCE BUSINESS: O EXEMPLO DO TECNOBREGA A Banda Uó quer muita coisa, quer agora, e tem certeza de que sabe como conseguir. “Agora mesmo a gente queria trabalhar uma música e a gravadora achava que não era a hora. Então fizemos o clipe nós mesmos e entregamos pronto”, diz Carrilho, acrescentando que o ato não foi mal recebido. “Nunca ninguém tentou nos impor ou impedir nada”, alivia, explicando a atitude ao lembrar que são jovens, conhecem o público deles e, basicamente, são assim mesmo. 8

Matéria da Rolling Stone, sobre a Banda Uó, expoente do

tecnobrega- junho de 2013

O Belém do Pará viu nascer uma indústria musical calcada em um modelo de open business tão bem sucedida que virou um case study para os acadêmicos que desejam um aprofundamento no tema dos direitos autorais e livre mercado. É a indústria do tecnobrega. As pesquisas na área foram levadas a cabo pelo Centro de Tecnologia e Sociedade(CTS), FGV Opinião, Instituto Overmundo e a Fundação

8 http://rollingstone.uol.com.br/edicao/edicao-81/banda-uo-criad-base-axe-sertanejotecnobrega-decolar-rumo-faustao#imagem0  

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Instituto de Pesquisas Econômicas(FIPE), e conduzidas como parte do Open Business Project. 4.1. Os atores do cenário tecnobrega Para compreender o fenômeno, é preciso primeiro entender os atores envolvidos no mercado do tecnobrega, e como os chamados intermediários, na indústria tradicional, foram dispensados nesse tipo de mercado. Diz o relatório do estudo: To understand the underlying business model, it is first necessary to introduce the reader to the actors involved in tecnobrega production and distribution. These include artists, DJs, aparelhagens, party planners, mass reproducers and street vendors. The absence of traditional music industry institutions such as recording labels, music publishers, collecting societies and record stores should be noted. They play no part in the production and distribution of tecnobrega 9 music. (MIZUKAMI; LEMOS, 2008, p.37-38)

Importante ressaltar que os papéis assumidos nessa ecologia mercadológica comumente se mesclam, artistas atuam como DJs, e a linha que separa produtores e distribuidores é muitas vezes embaçada. A cena tecnobrega é o resultado de uma comunhão de forças que combina artistas, DJs de aparelhagens e produtores de festas. Destes artistas, 84% são também compositores, pois a ausência de royalties não desencoraja o ato de compor. A ausência de royalties faz, outrossim, com que esses artistas façam mais performances ao vivo, tornando-as quase necessárias. Vejamos: Because royalties are not a feature of the tecnobrega business model, live performance is a necessary activity for all musicians. The absence of economic incentives for the role of full-time composer does not mean that less music gets written. Rather, the inexistence of royalties has the effect of driving musicians to perform what they compose, establishing a more immediate relationship with their 10 audience. (MIZUKAMI; LEMOS, 2008, p. 38) 9 Para entender os modelos de negócio em análise, primeiro é necessário introduzir o leitor aos atores envolvidos na produção e distribuição do tecnobrega. Neles estão incluídos artistas, DJs, aparelhagens, produtores de eventos, reprodutores de massa e camelôs. Deve-se notar a ausência de instituições da indústria fonográfica tradicional, tais como as gravadoras, selos musicais, e lojas de venda de discos, etc. Eles não têm nenhum papel na produção e distribuição do tecnobrega.     10 Porque royalties não são uma característica do modelo de negócios do tecnobrega, os shows e performances ao vivo são atividades necessárias para todos os músicos. A ausência de incentivos econômicos para que alguém seja apenas compositor não quer dizer que menos música é

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O artista se remunera basicamente destas apresentações ao vivo - é uma média de R$2.200,00 por show. A esse valor, somam-se o valor das vendas de CDs e DVDs dentro da própria casa de show. Por isso, estes artistas são extremamente preocupados com sua popularidade. Usam a seguinte estratégia: em vez de compor uma série de músicas e agrupá-las em um LP, prática costumeira na indústria fonográfica, eles preferem apostar em um uma música hit para "explodir" no mercado informal. Só depois disso, eles pensam em lançar um álbum, com a música hit junto de outras composições menos conhecidas. This means that all tecnobrega music must first pass through a distributed network of gatekeepers—DJs and audiences—and achieve a certain degree of success before an album is even considered.(MIZUKAMI; LEMOS, 2008, p.40)

As aparelhagens são o segundo elemento crucial da estrutura do tecnobrega. Aparelhagens são grandes estruturas eletrônicas que combinam hardware de computador, áudio, vídeo e iluminação, e serve especialmente para as festas em que as gravações das músicas são tocadas por DJs, acompanhadas de efeitos visuais ou performances ao vivo. As aparelhagens fazem parte de um mercado altamente competitivo, e o valor investido nelas é medida de prestígio de quem as detém. O custo da aparelhagem varia de R$300,00 a R$10.000,00 por performance e existem quatro tipos de aparelhos de melhor qualidade, alguns de média, e setecentos menores. A terceira peça nesse tabuleiro são os produtores de festas, pessoas que têm dinheiro e know how administrativo para produzir as festas em que as aparelhagens serão exibidas. [...]these individuals have the money and managerial know-how necessary to stage the aparelhagem parties. Party planners organize all logistical aspects of the events, hire the aparelhagens, secure venues, oversee ticket sales, pay municipal fees, sell beverages and 11 take care of security. (MIZUKAMI; LEMOS, 2008, p.41)

escrita. Ao revés, a inexistência de royalties tem o efeito de levar os músicos a apresentar o que compõem, criando um relacionamento mais direto com seu público.   11 Esses indivíduos têm dinheiro e know how gerencial para conduzir as festas com as aparelhagens. Os produtores de eventos organizam todos os aspectos logísticos dos eventos, alugam as aparelhagens, fazem contratos com as casas de shows, supervisionam a venda de ingressos, pagam as taxas municipais, vendem bebidas e cuidam da segurança do evento.  

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Produzir uma festa tecnobrega pode ser muito lucrativo, mas também envolve um risco alto. O custo para um evento de larga escala varia em uma média de R$22.000,00, e, enquanto lucro pode chegar a 100% do investimento inicial, os eventos podem não ser lucrativos devido à competição acirrada no mercado de festas. Open Business study estimates that over 4000 tecnobrega parties take place in the state of Pará each month. The average number of people attending the largest aparelhagem parties in Belém ranges from 3000 to 5000. On special occasions—such as the launch of a new DVD— party attendance can reach up to 8000. (MIZUKAMI; 12 LEMOS, 2008, p.41)

4.2. A distribuição Os principais agentes da distribuição das gravações tecnobrega são DJs de estúdio, reprodutores não autorizados e vendedores de rua (ou camelôs). Compilações feitas por esses DJs, em estúdio, são reproduzidos em gravadoras não autorizadas e repassadas aos camelôs para venda. O mercado é exclusivamente informal, e importante é notar que esses CDs tecnobrega não são vendidos em lojas. Studio DJs têm estúdios caseiros em que editam compilações de músicas tecnobrega. Esses estúdios funcionam tanto como um ambiente de produção musical como um ponto de encontro para os demais atores envolvidos no cenário tecnobrega. "Studio DJs thus play a role not unlike that of the master printers of early print culture—establishing networks between actors in an emerging system of cultural production."(MIZUKAMI; LEMOS, 2008, p.42).13 Os DJs mais famosos vendem jingles e músicas para as aparelhagens, os menos famosos fazem esse serviço de graça, em troca da notoriedade ganha com a publicidade de seu conteúdo - o chamado, atualmente, "trabalho de vitrine". Como metade dos artistas são autônomos, o papel principal dos Djs acaba sendo o de tastemaker (em uma

12 Estudos do Open Business estimam que mais de 4000 festas tecnobrega acontecem no estado do Pará a cada mês. O número médio de pessoas que vão às maiores festas de aparelhagens em Belém varia de 3000 a 5000. Em ocasiões especiais, como o lançamento de um novo DVD, o público de uma festa pode chegar a 8000.   13 Os DJs desempenham, assim, um papel não muito diferente daquele desenvolvido pelas grandes editoras dos primórdios da cultura editorial- estabelecendo contatos entre atores em um sistema de produção cultural em emergência.  

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tradução esdrúxula, fazedor de gosto, quem vai direcionar o gosto do público por determinadas músicas). Os reprodutores não autorizados possuem aparatos de reprodução em massa e distribuem os CDs gravados entre os vendedores de rua. Esses indivíduos geralmente encontram-se na clandestinidade, pois também estão envolvidos na reprodução de gêneros musicais tradicionais. Os DJs de estúdio normalmente fazem a ponte entre os reprodutores e os artistas, embora estes tenham a liberdade de fazer suas músicas chegarem àqueles simplesmente deixando seu CD com um vendedor de rua. Esses reprodutores não são considerados "piratas" nesse contexto, já que a reprodução e venda não autorizadas de músicas no cenário tecnobrega são fruto de um acordo tácito e têm o respaldo de normas sociais. Embora não exista uma licença formal e explícita para a reprodução destes trabalhos, toda a rede de produção e distribuição depende dessa reprodução e imediata distribuição, o que é aceito por todos os seus atores como natural e desejável" These reproducers should not be considered “pirates” as far as tecnobrega is concerned, however, since the unauthorized reproduction and sale of songs in the tecnobrega scene is based on a tacit agreement and backed by social norms. Although there is no explicit, formally granted authorization to reproduce these works, the entire production and distribution network of the tecnobrega industry depends on this reproduction and immediate distribution, which is taken by almost every actor to be both natural and desirable.

(MIZUKAMI; LEMOS, 2008, p.43)14

Os camelôs são o último estágio desse processo de distribuição e são a fonte da vasta maioria das compras de tecnobrega, vendendo em médio 286, 208 CDs e 178,708 DVDs a cada mês, somente em Belém. (Street vendors, however, are the source for the vast majority of tecnobrega purchases, selling an average of 286,208 CDs and 178,708 DVDs each month in Belém alone.15 (MIKUZAMI;LEMOS, p.43-

14 Esses reprodutores não podem ser considerados piratas enquanto contextualizados no cenário tecnobrega, no entanto, já que a reprodução e venda não-autorizadas de músicas no cenário tecnobrega são baseadas em acordos tácitos e chanceladas por normas sociais. Embora não haja explícita e formal autorização para que se reproduzam esses trabalhos, toda a rede de produção e distribuição da indústria tecnobrega depende dessa reprodução e imediata distribuição, que é considerada pela maioria dos atores envolvidos como natural e desejável.     15 Os camelôs, no entanto, são a fonte da vasta maioria das aquisições de tecnobrega, vendendo uma média de 286, 208 CDs e 178, 708 DVDs a cada mês só em Belém.  

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44)). Como estes vendedores informais frequentemente vendem discos sem a correta identificação, os artistas do tecnobrega incluem referências pessoais em sua música para garantir a correta atribuição de seu trabalho. Os novos artistas veem os vendedores de rua como aliados na promoção de seu trabalho. According to our research, 66% of the interviewed artists encouraged—to a greater or lesser degree—the sale of their works through street vendors, while only 34% actively discouraged it. Similarly, 59% of the artists said they considered street vendors to be beneficial to their careers and 32% considered them detrimental, with the remaining interviewees taking a neutral stance.(MIZUKAMI; 16 LEMOS, 2008, p.44)

A coisa muda um pouco de figura à medida que estes artistas vão ganhando popularidade: When musicians achieve greater popularity and start to press their own CDs and DVDs, they begin to look at unauthorized reproducers and street vendors in a more ambiguous light. Bands sometimes adopt an anti-piracy discourse with respect to albums, but continue to make use of unauthorized reproducers and street vendors in order to 17 push individual songs forward. (MIZUKAMI;LEMOS, 2008, p.44).

Esse é o modo como a ecologia do mercado tecnobrega funciona, regulado pelo chamado social commons. 4.3. Legal commons versus social commons O fator que chama mais atenção na indústria tecnobrega é como ela está calcada na informalidade. É o exemplo de um modelo de mercado que se baseia mais em normas do que leis. As leis de direitos autorais existentes não têm nenhum papel no incentivo à produção de conteúdo. É justamente a ausência de agentes que buscam enrijecer as leis de direitos autorais e a ausência de uma cultura do

16 De acordo com a nossa pesquisa, 66% dos artistas entrevistas encorajaram - a um nível maior ou menor - a venda de seus trabalhos por camelôs, enquanto somente 34% se colocaram contra. Igualmente, 59% dos artistas disseram considerar a atividade dos camelôs benéfica para suas carreiras e 32% consideraram essa atividade prejudicial, com o restante dos entrevistados se posicionando de maneira neutra. 17 Quando músicos alcançam uma maior popularidade e iniciam uma produção independente de seus CDs e DVDs, eles começam a olhar para as reproduções não-autorizadas e para a venda informal de forma mais ambígua. As bandas às vezes adotam um discurso anti-pirataria em relação a álbuns, mas continuam a fazer uso das reproduções não-autorizadas e da venda informal para alavancar músicas individuais.  

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copyright forte que possibilitou que um ambiente propício se desenvolvesse para este tipo de mercado. We assume, following Yochai Benkler, that the current transformations caused by the Internet and digital technology—with the emergence of a networked information economy and the explosion of commons-based peer production—offer opportunities for positive economic and social change. These opportunities, however, may be undermined if the wrong choices are made (Benkler 2006). Benkler’s framework puts heavy emphasis on the role of social practices in the shaping of the institutional ecology, particularly as a source of openness (ibid. at 394-95).(MIZUKAMI; LEMOS, 2008, 18 p.45)

Aqui importa também a distinção feita por Ronaldo Lemos entre legal commons e social commons. Os bens comuns ditos legais são definidos por lei e dela retiram sua legitimidade. Um exemplo seria uma licença open content, como a Creative Commons. Por meio deles o produtor de conteúdo faz uma declaração de vontade expressa, na qual fixa os termos em que seu conteúdo poderá ser utilizado. Social commons, ou bens comuns sociais, em contrapartida, emergem quando circunstâncias históricas e sociais criam uma situação em que a ideia de propriedade intelectual torna-se irrelevante ou inaplicável. Eles nascem da tensão entre a imposição de um regime de propriedade intelectual e problemas estruturais mais profundos no mercado. Lemos aponta como exemplo a indústria musical no Brasil, que coloca seus produtos muito acima da realidade econômica da maioria da população,

o

que

"empurra"

alguns

para

a

aquisição

desses

bens

na

clandestinidade. In situations where intellectual property enforcement is either impossible or counterproductive, people frequently behave towards protected content as if it were part of a commons, and as if intellectual property regimes did not exist, or simply did not matter. 19 (MIZUKAMI; LEMOS, 2008)

18 Nós presumimos, seguindo Yochai Benkler, que as atuais transformações causadas pela Internet e tecnologia digital - com a emergência de uma economia de informação conectada e a explosão de um modo de produção difuso e igualitário - oferecem oportunidades para mudanças econômicas e sociais positivas. Essas oportunidades, no entanto, serão aniquiladas se escolhas erradas são feitas. A visão de Benkler coloca especial ênfase no papel das práticas sociais na configuração da ecologia institucional, particularmente como fonte de abertura. 19 Em situações em que a propriedade intelectual torna-se impossível ou contraprodutiva, as pessoas frequentemente se comportam, diante de um conteúdo protegido, como se propriedade comum fosse, ou como se regimes de propriedade intelectual não existissem ou não importassem.  

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O que o social commons propõe é uma investigação profunda das relações entre o público e conteúdos e informações - lembro, aqui o sujeito interativo e a obra interativa, na ótica da cibercultura - que leva em conta, também, as relações que se estabelecem à margem do efetivo controle do regime de propriedade intelectual. No case study aqui comentado, o "afrouxamento" das leis de propriedade intelectual não levou a uma queda na produção musical ou à estagnação do mercado. Ao revés, fez com que a indústria se reinventasse, reestruturando sua ecologia de produção, exposição e distribuição de conteúdos. Construiu-se, ali, um modelo de negócios que se fundou sobre o social commons em detrimento de outras formas possíveis de regulação. O caso serviu para fazer ruir o "mito" tão disseminado na doutrina legal de que só uma política rígida de copyright pode dar um verdadeiro incentivo à produção e distribuição artísticas, impondo algumas restrições em nome de uma cultura rica e plural. Serviu para nos mostrar também que um caminho intermediário é possível: os artistas tecnobrega não precisam ficar totalmente expostos à informalidade do mercado, correndo o risco de verem-se furtados da paternidade da sua obra ou sem remuneração. Poderia, haver, sim, uma conversão desse social commons em um legal commons mais flexível e condizente com a realidade tecnobrega. Alguns artistas já estão abrindo os olhos para isso, e a cantora Gaby Amarantos, para dar o exemplo de alguém do cenário, já chegou até a disponibilizar vídeos no canal Youtube sob licenças Creative Commons. Nas palavras de Lemos: A legal commons approach would be to establish a system based on compulsory or voluntary licenses, as has already been proposed (Netanel 2003; Shih Ray Ku 2003; von Lohmann 2004; Fisher 2004, 199-258). A social commons approach would be to simply face reality and offer consumers the option to pay something, as Radiohead, Saul Williams and Trent Reznor did, taking advantage of the value created by openness in terms of concert attendance, sale of 20 merchandise, and increased popularity. (MIZUKAMI;LEMOS, 2008, p.48)

O tecnobrega, tal qual a cultura remix e a cibercultura profetizada por Lévy são exemplos de modelos para os quais o padrão tradicional de copyright já se 20  

 Uma abordagem legal commons seria tal para estabelecer um sistema baseado em licenças compulsórias ou voluntárias, como já proposto. Uma abordagem social commons seria tal de simplesmente encarar a realidade e oferecer aos consumidores a opção de pagar por algo, como Radiohead, Saul Williams and Trent Reznor fizeram, tirando vantagem do valor criado pela abertura em termos de público, venda de merchandise, e aumento de popularidade.  

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tornou saturado, pois à medida em que essas políticas tornam-se rigorosas, vários indivíduos vão sendo colocados à margem dessa "cultura oficial". Os usuários levam a pecha de criminosos e os produtores ficam expostos aos riscos da informalidade, minando, amiúde, o potencial criativo de dada cultura. O propósito desse "caminho do meio" seria justamente abarcar essa parcela, impondo-lhes normas razoáveis a fim de estimular a criatividade rumo a uma cultura plural e democrática. Fazendo, em suma, com que a lei cumpra sua finalidade última: regular as relações sociais, o que é muito diverso de engessá-las ou deixá-las à margem de seu império. Essa, a meu ver, é justificativa suficiente para que os direitos de propriedade intelectual, tal qual são postos hoje em dia, sejam revistos, debatidos e reformulados.

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5. DIREITOS AUTORAIS EM REFORMA: AS EXCEÇÕES E LIMITAÇÕES AO DIREITO DE AUTOR Toute loi trop souvent transgressée est mauvaise: c'est au législateur à l'abroger ou à la changer. (YOURCENAR, Marguerite) 5.1. Exceções e limitações na LDA (Lei de Direitos Autorais) Um segundo ponto a que se deve dar especial atenção quando da discussão de direitos autorais, e que conjuntamente com o uso de licenças open business, contribuiriam para a manutenção de uma cultura livre, é a revisão e reforma das exceções e limitações ao direito de autor. Como apontado anteriormente, o direito de autor não é um direito absoluto e deve atender à sua função social, inclusive prescrita em tratados internacionais, como a Convenção de Berna. "É notório que a concessão ilimitada desse direito — que constitui um monopólio temporário de exploração da obra — pode trazer graves implicações de longo prazo, impactando os processos de criação e inovação essenciais para o desenvolvimento. Sendo assim, foram previstas na legislação nacional algumas exceções e limitações à proteção do direito autoral, visando a atender sua função social. Ou seja, alguns casos específicos em que obras protegidas podem ser utilizadas sem autorização do detentor de direitos, buscando garantir um equilíbrio entre os interesses dos detentores de direitos autorais e a manutenção do acesso ao conhecimento e da liberdade de expressão. Tais previsões estão de acordo com os principais tratados internacionais de propriedade intelectual de que o Brasil é signatário, que reconhecem a necessidade de exceções e limitações à proteção do direito autoral, especificamente no que diz respeito à exploração de direitos econômicos dele proveniente. Os acordos internacionais inclusive determinam que a amplitude dessas exceções deve variar

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de acordo com as condições socioeconômicas do país signatário, ou os diferentes níveis de desenvolvimento dos países.(BRANCO et al, 2011, p.43)

Há também, que se ressaltar, que de forma alguma se quer dizer, aqui, que a proteção seja prejudicial e as exceções e limitações benéficas: sim, ambos devem coexistir e um equilíbrio entre as duas instâncias deve ser alcançado para garantir o fluxo cultural. Continuando: A lei de direitos autorais reflete os diversos interesses e princípios constantes da CF/88 e, desta forma, precisa proteger o direito do autor, conforme o artigo 5º, inciso XXVII, da CF/88, mas por outro lado também deve restringir aquela proteção para garantir a liberdade de expressão artística, intelectual, científica e de comunicação, o acesso à informação e às fontes de cultura nacional, dentre outros valores previstos no artigo 5o incisos IV, IX, XIV e no artigo 215, §3o, da CF/88. No fundo, tanto a proteção quanto a limitação visam a estimular a criação artística, intelectual e científica, tão importantes para a sociedade. As limitações são o equilíbrio entre a proteção aos direitos autorais e a proteção aos direitos da sociedade, ambos garantidos constitucionalmente."(grifos nossos. BRANCO et al, 2011, p. 43-44)

As limitações e exceções já previstas na LDA estão contidas no capítulo IV, artigos 46, 47 e 48, conforme disposto no artigo 9, item 2, da Convenção de Berna e artigo 13 do TRIPS (Acordo sobre Aspectos do Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). No entanto, as previsões do artigo 46, que serão vistas mais detalhadamente adiante, são interpretadas como um rol taxativo, e, portanto, não dá vazão a qualquer outra exceção não indicada explicitamente, mas que, levando-se em consideração a ratio do artigo em comento, seria cabível e razoável. Esta formatação jurídica, com isso, está ficando anacrônica, visto que não acompanha o vertiginoso avanço tecnológico. A jurisprudência tem sido atenciosa nesse aspecto, e Ronaldo Lemos nos traz um exemplo de uma chance que o STJ teve de se manifestar sobre o tema (REsp 964404 — 2007/0144450-5 — 23/05/2011) e declarou que as previsões previstas nos artigos 46 a 48 são exemplificativas. Mas, ressaltam Ronaldo Lemos e Sérgio Branco: Apesar do entendimento do STJ, as limitações aos direitos autorais são importantes demais para continuarem a ser objeto de controvérsia. Sendo um dos capítulos mais falhos de nossa lei (por conta de sua grande restritividade), é fundamental revê-lo para

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promover de maneira inequívoca o equilíbrio entre os direitos dos autores e os da sociedade. (BRANCO et al, 2011, p.45)

5.2. E por que rever estas disposições? Críticas são feitas à nossa LDA no sentido de que esta é demasiadamente restritiva, muitas vezes deixando de fora exceções que seriam plenamente aceitas segundo a regra dos três passos da Convenção de Berna. Com isso, está ocorrendo um descompasso entre a atual cultura digital e a nossa lei, já que esta deixa de fora atos que representam a efetivação da função social dos direitos autorais, como: — cópia para preservação da obra ou para fins didáticos, inclusive por meio de digitalização; — cópia privada, ainda que visando acesso a obras que se encontram fora de circulação comercial; — exibição de filmes em sala de aula, práticas bastante comuns em atividades educacionais (em cursos de línguas, por exemplo); — o remix, uma característica marcante das obras elaboradas nos dias de hoje. (grifos nossos. BRANCO et al, 2011, p.46)

No contexto da cibercultura, tal legislação não só é antiquada, mas traz também sérios gravames. O resultado disso é que uma pesquisa feita pela IP Watchlist21 em 2011 revelou que o Brasil tem um dos piores regimes de direitos autorais do mundo. Lemos e Branco explicam que: No caso do Brasil, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor — IDEC fez o relatório sobre a lei nacional. O trabalho leva em conta questões como as possibilidades trazidas pela legislação autoral para o acesso dos consumidores a serviços e produtos culturais; exceções e limitações para usos educacionais das obras; preservação do patrimônio cultural; acessibilidade; adaptação da lei aos novos modelos digitais e utilização privada dos bens culturais. (grifos nossos. BRANCO et al, 2011, p.47)

Com alguma pressão internacional, como por exemplo a adoção da Agenda do Desenvolvimento na OMPI(Organização Mundial da Propriedade Intelectual) e o estabelecimento do Comitê sobre Desenvolvimento e Propriedade Intelectual(CDPI), o Brasil tem procurado abrir os olhos para tal disparidade. O Plano Nacional de Cultura, trazido pela Lei 12.343/2010, por exemplo, tem como meta "adequar a

21 IP Watchlist, 2011, disponível em www.a2knetwork.org/watchlist.  

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regulação dos direitos autorais, suas limitações e exceções, ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação”(1.9.4, Cap I, Anexo). 5.3. Quais limitações foram incluídas nas propostas de reforma da LDA? A Primeira Proposta de Revisão da LDA corrigiu algumas terminologias e adicionou às já existentes exceções e limitações outras, a saber: (i) Ampliar a exceção para utilização na imprensa não só de discursos, mas também de qualquer obra, quando justificada, de maneira a informar sobre fatos noticiosos. Trata-se de uma previsão que vem em consonância com a forma como as novas tecnologias disponibilizam o acesso à notícia, cada vez mais, por meio de conteúdo pouco tradicionais; (ii) Ampliar o escopo da limitação já conferida a deficientes visuais, atingindo outros tipos de deficiência, e também outras formas de utilização das obras que não só a reprodução, mas também a distribuição, a comunicação e a colocação à disposição do público; (iii) Viabilizar a cópia privada, inclusive por meio digital; (iv) Viabilizar a alteração de formato, para garantir a portabilidade ou interoperabilidade; (v) Ampliar a exceção para execução pública, de forma a incluir exibição audiovisual, desde que tal execução ocorra no recesso familiar ou para fins didáticos, de difusão cultural e multiplicação de público, por cineclubes, no interior de templos religiosos ou para fins de terapia e tratamentos de caráter sócio-educativos; (vi) Permitir reprodução e colocação de obras à disposição do público para fins de portfólio do autor ou da pessoa retratada; (vii) Permitir a reprodução para conservação, preservação e arquivamento realizada por bibliotecas, arquivos, centros de documentação, museus, cinematecas e demais instituições museológicas; (viii) Permitir a comunicação e colocação à disposição do público para fins de pesquisa as obras protegidas que integrem acervos de bibliotecas, arquivos, etc, seja nas instalações da instituição ou na internet; (ix) Permitir a reprodução, sem finalidade comercial, de obra esgotada ou cuja quantidade disponível seja insuficiente para atender à demanda. (BRANCO et al, 2011, p.48-49)

Mas, para além dessas previsões, uma das mais importantes vinha no parágrafo único do artigo 46, que passou a prescrever, de forma expressa e inequívoca, a regra dos três passos da Convenção de Berna. Completa ainda, que

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tal proposta de reforma representaria, portanto, "a possibilidade de uma legislação mais flexível, adequada às mudanças das novas tecnologias, de maneira equilibrada com os direitos do autor."(BRANCO et al, 2011, p.49) A Segunda Proposta de Revisão da LDA, divulgada pelo Ministério da Cultura, não foi tão feliz no âmbito das exceções e limitações, trazendo maior restrições para as alterações da primeira. Vejamos: (i) da exceção para utilização de obras na imprensa, que voltou a ficar circunscrita apenas aos discursos, não atendendo às novas formas de comunicação do jornalismo; (ii) da imposição da necessidade de que os cineclubes sejam reconhecidos pelo MinC para que se enquadrem na limitação de exibição pública, dificultando assim a atividade daqueles; (iii) da inviabilização de que bibliotecas e outras instituições disponibilizem seus acervos para pesquisa na internet, além de uma série de outros requisitos para que a disponibilização seja feita no interior de suas instalações, que a obra seja rara ou indisponível, etc. Criou-se, portanto, uma série de restrições que dificultam a pesquisa, a produção científica e, por consequência, no contexto da economia do conhecimento, o desenvolvimento do país; (iv) das excessivas restrições nas previsões que dizem respeito à cópia privada e à reprodução para mudança de formato, que não poderiam mais ser feitas por meio de obras alugadas, entre outras novas restrições que dificultam a aplicação dessas limitações. (BRANCO et al, 2011, p.50)

Além disso, o que representou uma maior gravidade foi a supressão do parágrafo único do art. 46, que traz flexibilidade ao rol taxativo da lei atual.

A

proposta, agora, é de uma judicialização da implementação das exceções e limitações. Caberia ao Judiciário, então, analisar, a priori, o cabimento da utilização de uma obra nesses casos análogos, autorizando-a. Tal proposta traria um sobrecarregamento desnecessário da máquina judicial, além de, a meu ver, representar até uma espécie de censura prévia nos casos em que a utilização da obra é plenamente legítima. Com isso, a Segunda Proposta de Revisão da LDA, por se valer do judiciário para dirimir questão potencialmente corriqueira, perde bastante a capacidade de se adaptar ao contexto dinâmico que presenciamos hoje em razão das novas tecnologias, principalmente no que diz respeito às exceções e limitações previstas para recursos educacionais. Diante da Segunda Proposta de Revisão da LDA, é de grande preocupação que a tendência a limitar as restrições continue se

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manifestando nas próximas versões do texto. (BRANCO et al, 2011, p. 51)

5.4. O que poderia ter sido incluído na proposta de reforma da LDA? Da análise das propostas apresentadas até o presente momento, nota-se que podem ser insuficientes para permitir a exploração da potencialidade criativa dos usos da internet e das novas tecnologias em sua totalidade. Por tal, é alarmante a supressão do parágrafo único do art. 46 que prevê o uso justo de obras protegidas. Ambas as propostas de revisão da LDA foram omissas quanto a limitações e exceções necessárias para se pensar o ambiente digital. Questões como a legalização do compartilhamento viabilizado pelo sistema peer-to-peer, levando em consideração toda sua potencialidade de democratização e universalização de acesso a conteúdos, por exemplo, não foram enquadradas. (LEMOS et al, 2011, p. 52)

5.5. E para o mercado? Essas limitações não são prejudiciais? Assim, como no caso do tecnobrega vimos um mercado que cresceu à margem do regime de direitos autorais. Isto mostra como pode, e de fato ocorre, um aproveitamento econômico de obras situadas na esfera das exceções e limitações. Em recente estudo realizado pela Computer and Communications Industry Association (CCIA) intitulado “Fair Use in the U.S. Economy”2, chegou-se à conclusão de que os “usos justos”3 geram mais valor para a economia americana do que o próprio copyright, movimentando cerca de US$ 4,5 trilhões da receita anual dos Estados Unidos. Estima-se que a contribuição dos usos justos para a economia americana seja 70% maior do que a do copyright.22 (BRANCO et al, 2011, p. 53)

E continua o diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro: O estudo prova como as limitações funcionam como pilares da inovação, criatividade e produtividade em matéria autoral. Com efeito, a possibilidade de se usar livremente uma obra alheia estimula novas modalidades de criação e, consequentemente, o crescimento econômico por meio do ingresso das obras em domínio público ou através de limitações expressas. As novas ferramentas digitais, impulsionadas pela dinâmica da sociedade contemporânea, incrementaram as formas de participação e compartilhamento de informações. Neste contexto, a chamada “cultura do remix” encoraja e permite a combinação e edição de 22  

  Disponível em: Filename/000000000085/FairUseStudy-Sep12.pdf.  

http://www.ccianet.org/CCIA/files/ccLibraryFiles/

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obras existentes para a criação de obras novas. Este cenário de usos novos e criativos a partir de obras alheias é hoje um dos fatores responsáveis por fomentar o crescimento da cultura, da ciência e das relações sociais." (BRANCO et al, 2011,p. 53)

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CONCLUSÃO A batalha no campo do conteúdo At the content layer—the universe of existing information, knowledge, and culture—we are observing a fairly systematic trend in law, but a growing countertrend in society. In law, we see a continual tightening of the control that the owners of exclusive rights are given. Copyrights are longer, apply to more uses, and are interpreted as reaching into every corner of valuable use. Trademarks are stronger and more aggressive. Patents have expanded to new domains and are given greater leeway. All these changes are skewing the institutional ecology in favor of business models and production practices that are based on exclusive proprietary claims; they are lobbied for by firms that collect large rents if these laws are expanded, followed, and enforced. Social trends in the past few years, however, are pushing in the opposite direction. These are precisely the trends of networked information economy, of nonmarket production, of an increased ethic of sharing, and an increased ambition to participate in communities of practice that produce vast quantities of information, knowledge, and culture for free use, sharing, and follow on creation by others. 23 (BENKLER, 2006, p. 469-470) 23  

  Na camada do conteúdo- o universo das informações, conhecimentos e cultura- nós estamos observando uma significativa e sistemática tendência no Direito, mas uma crescente contratendência na sociedade. No Direito, nós vemos um contínuo enrijecimento do controle que os detentores de direitos exclusivos têm. Copyrights são mais prolongados, se aplicam a mais usos, e são interpretados como abarcando todo o uso possivelmente lucrativo. Marcas registradas estão mais fortes e mais agressivas. Patentes têm se expandido para novos domínios e têm recebido maiores concessões.Todas essas mudanças têm enviesado a ecologia institucional em favor dos modelos de negócio e práticas de produção que são baseadas em regimes de propriedade exclusiva; eles sofrem o lobby de grandes empresas que se beneficiam diretamente se essas leis são expandidas, seguidas e impostas. Tendências sociais nos últimos anos, no entanto, estão indo em uma direção oposta. Essas são precisamente as tendências da economia da rede de informações, da produção não mercadológica, em uma ascendente ética do compartilhamento, e uma crescente vontade em participar de comunidades que produzem vastas quantidades de informação, conhecimento, e cultura para uso livre, compatilhamento e dar continuidade à criação de outros.  

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Assim, o professor da Universidade de Direito de Harvard, Yochai Benkler, nos traz um panorama de como se dá essa batalha no plano do conteúdo, mais que no plano formal. Temos uma inclinação da lei, que é a de enrijecer ainda mais as leis de proteção à propriedade, e predisposição contrária na sociedade, que tende cada vez mais a compartilhar informações. São os chamados compartilhamentos peer to peer, que, numa tradução literal, quer dizer compartilhamento entre iguais. A expressão

é

comumente

vista

pejorativamente,

associada

à

pirataria

e

compartilhamentos via torrent, mas busco, aqui, resgatar seu sentido de estruturação social e de trocas espontâneas. A era do compartilhamento peer, seria um estágio final da cadeia evolutiva das medias traçadas por MacLuhan, e também resgatou muito do seu primeiro estágio (o tribal), além de acrescentar outras características adquiridas em outros estágios. Aprofundou, em muito, a participação e espontaneidade das trocas comunicacionais típicos da era eletrônica. A linguagem escrita, por outro lado, não perdeu seu status nessa retribalização da sociedade. A diferença é que agora dificilmente vemos um tipo de linguagem dissociada da outra, elas se entrelaçam no emaranhado virtual (por exemplo, os ditos memes, que misturam sempre texto e imagem). O foco hoje é no conteúdo. Essa preocupação com o conteúdo, com a necessidade de democratizar o acesso a esse conteúdo em um plano simbólico, especialmente no caso do Brasil, fora assinalado por Ronaldo Lemos: A discussão sobre o acesso ao conteúdo importa muito ao Brasil, mesmo que nosso país seja assolado de modo tão profundo pela exclusão digital. O acesso a computadores é pequeno, mas o acesso a outros aparelhos como celulares e televisão é amplo. Só aqueles já são 60 milhões. A convergência tecnológica torna esses aparelhos os próximos meios de acesso à informação e ao conteúdo. Por isso é preciso descartar rapidamente o pensamento etapista, em que primeiro é preciso dar computadores para a população e somente depois se preocupar com a democratização do conteúdo. O conteúdo precisa ser descentralizado, aberto e acessível desde já, para que possa ser acessado seja pelo computador, seja pelo celular ou pela TV digital. (LEMOS, 2005, p. 185)

E propõe uma estratégia, tendo em vista a realidade brasileira: Existe uma segunda estratégia mais adequada ao País, por seu caráter descentralizado. Trata-se de investir não nos mercados tradicionais, mas de ocupar as novas mídias digitais de forma pulverizada, sistemática e intensa. Inundar o universo digital, enquanto ainda aberto, com conteúdo cultural do País. Projetar a

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nossa cultura, urbana ou tradicional, da favela ao rock, da praia à arquitetura modernista, do maracatu ao Brazilian drum’n’bass, por meio de aparelhos celulares, da Internet, das novas TVs e rádios digitais. Enfim, ocupar intensamente esse espaço simbólico novo e ainda aberto com produtos bem feitos (mas nem por isso caros), universais e locais, que chamem a atenção sobre nossa história, nossas imagens, nossa língua, visão e povo. Para isso, uma iniciativa como o Creative Commons é importante. Por seu caráter eminentemente internacional (já são 10 os países em que o projeto opera, incluindo França, Itália, Alemanha, Holanda e Japão, e até o final de 2005 a previsão é de que mais 40 se juntem ao grupo), o projeto facilita a projeção da cultura nacional de forma estratégica. Com a projeção global da nossa cultura, cria-se demanda. Demanda pela nossa música, história, língua, olhar e imagem. Trata-se de uma oportunidade efêmera. Ela só existe enquanto a captura das novas mídias ainda não é completa. Entretanto, se bem-sucedida, contribui para manter essa mídia sempre aberta. Daí em diante que vença o melhor e mais interessante. Na medida em que a nova mídia é ocupada por produtos descentralizados, sobretudo interativos (donde a importância de fomentar a indústria de games no Brasil), abundantes e livres, consolida-se um novo paradigma. Mudam-se os gostos, mudam- se as demandas e os hábitos de consumo. (LEMOS, 2005, p. 186)

Não existe, contudo, nenhum remédio milagroso ou panaceia para a dinamização da vida cultural brasileira, tampouco é produtivo culpar a legislação autoral por todos os entraves sofridos nessa esfera. Opções viáveis como o Creative Commons, e a análise de mercados não baseados no lucro e que não se subordinam às hierarquias do mercado, como o caso tecnobrega, são alguns instrumentos que devemos utilizar para repensar essa legislação. E, ainda assim, não devem vir sozinhos: serão precisas políticas públicas de educação da sociedade civil sobre instrumentos como Creative Commons, e ainda mais importante, uma reeducação de nossa próprias instituições jurídicas (das faculdades de Direito às salas de audiência) para recebê-lo. Certa dose de ativismo terá de se fazer presente. O que busco, outrossim, é suscitar a reflexão sobre porquê devemos manter velhas estruturas de regulação de uma era, a era eletrônica, em outra bem mais dinâmica(a era digital, do compartilhamento peer). Se o meio era a mensagem, hoje, a mensagem é também o destinatário, e o destinatário é toda a rede, que altera

e

recoloca

essa

mensagem

a

todo

instante.

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