TEMPO E DESEJO NO NORDESTE BRASILEIRO: O CASO DE A HISTÓRIA DA ETERNIDADE E SUA REPRESENTAÇÃO DOS PROCESSOS CULTURAIS

June 5, 2017 | Autor: Wendell Marcel | Categoria: Cinema, Representação, Processos culturais
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TEMPO E DESEJO NO NORDESTE BRASILEIRO: O CASO DE A HISTÓRIA DA ETERNIDADE E SUA REPRESENTAÇÃO DOS PROCESSOS CULTURAIS Wendell Marcel Alves da Costa Graduando em Ciências Sociais Universidade Federal do Rio Grande do Norte Bolsista PIBIC/CNPq – área Cinema GT. 04: Memória(s) e identidade(s): música, cinema e literatura. Resumo Este trabalho discute aspectos caros à representação dos processos culturais identificados no nordeste brasileiro, refletidos no filme A História da Eternidade (Camilo Cavalcanti, 2014). Nesse sentido, este ensaio discorre questões acerca da representação dos indivíduos, sendo estes, no filme, as personagens que, mediante o espaço social em que vivem, possuem desejos referentes a um imaginário social, fomentado por diversos tipos de representações e construções de significados das paisagens e dos comportamentos da sociedade. Outrossim, a constituição do tempo é um fator propulsor do desejo das personagens do filme, principalmente no caso de Alfonsina, orientada, sobretudo, pelo imaginário social. Partindo desse contexto, a nossa investigação reside, portanto, em identificar qual a funcionalidade representacional do tempo na construção da representação dos processos culturais e da organização social do longa-metragem, exemplificado na disposição dos desejos das personagens do filme. Em síntese, este trabalho leva a considerar que A História da Eternidade trabalha com conceitos como imaginário social, representação e construção de significados sobre processos culturais e organização social; além de iniciar um debate salutar por meio da linguagem cinematográfica no que constam aspectos dos campos da memória e das identidades construídas no sertão nordestino.

Palavras-chave: Processos culturais, Tempo, Desejo, Representação, Cinema.

1. Introdução As possibilidades de pensar o cinema são várias. Reduzir a arte a "poderia ter sido assim", "mudado isso" ou "aquilo" é aprisionar a produção artística em achismos pessoais que são, em essência, um olhar desviante de reconhecer na estética cinematográfica um arcabouço inesgotável de possibilidades de sentidos. Desconstruir filme é o mesmo que realizar uma autópsia do que está preso na tela. Neste sentido, este trabalho procura na análise do material cinematográfico a identificação dos processos estéticos, que possuem na tela significações simbólicas, na medida em que representam determinados contextos socioculturais. Logo, acredita-se que a produção de imagens que representam certos tipos de comportamentos e organizações sociais no cinema, ajuda igualmente a criar um imaginário social acerca de processos culturais localizados na narrativa cinematográfica, e que, ao mesmo tempo, realiza a interpretação desses mesmos processos existentes na sociedade. Ou seja, a produção cinematográfica se configura numa dicotomia relacionada essencialmente na construção de significados sobre o que se filma por meio da etapa de como se filma. Visto isso, o filme A História da Eternidade (Camilo Cavalcante, 2014) funciona como um material por onde se pode incutir concepções acerca da construção do imaginário quando são colocadas na imagem aspectos como processos culturais e suas representações, paisagem e circularidade no nordeste brasileiro, tendo como aporte simbólico as tramas e subtramas do filme em específico.

2. Representações e imaginários O cinema, arte de linguagem, impregna na imagem códigos e (re) apresentações da realidade social. Por meio da narrativa das histórias exibidas na tela, o cinema, ao mesmo tempo em que constrói aspectos caros aos espectadores por meio da similitude, também incorpora noções representacionais da mesma verdade discutida nos filmes. Na provocação de realçar as histórias contadas com pinceladas das crônicas vividas por pessoas reais, personagens da vida real (GOFFMAN, 1985), o cinema adquire status de realidade filmada por que infere no quadro códigos e convenções existentes na sociedade. Contudo, afirma-se que o cinema, como obra de arte, ganha importância pela sua diferença com a vida. Em outras palavras, sabendo que a arte tem como princípios valorativos a leitura e/ou interpretação da sociedade, sendo que nesse processo ela própria cria uma linguagem específica, ela permeia em sua análise dos fatos reais um distanciamento que

propicie o seu entendimento da coisa entendida como concreta (BARBOSA, 2000). Ou seja, dos processos culturais existentes na sociedade. Da mesma forma, o imaginário social sobre aspectos da vida comum está presente no cinema. Por meio do imaginário, o autor de cinema cria uma sensação de que a personagem, em toda a sua construção social, mas principalmente no mecanismo do funcionamento da mente, da psique, possui objetivos ligados à realidade. Os desejos e os fetiches estão igualmente incorporados na sensação de querer e trazer para si o objeto desejado. Contudo o imaginário é construído pela intervenção de fatores externos ao indivíduo, consequência das representações criadas pelos sujeitos envolvidos nos processos sociais e de sociabilidade. Nesse texto estamos falando de representação fílmica e como ela admite no espaço fílmico noções particularmente construídas por meio de códigos, imaginários e percepções do espaço geográfico real. Diante desse contexto, compreende-se que a “função da representação seria, exatamente, a de tornar presente à consciência a realidade externa, estabelecendo relações entre a consciência e o real” (BARBOSA, 2000: 73). Segundo Barbosa (2000: 73), sobre o conceito de representação, o autor diz que: A representação não é a insensatez dos recortes mnésicos: ela reinveste e reaviva estes, que não são em si mesmos nada mais do que a inscrição de acontecimentos. Portanto, as representações não podem ser concebidas como passivas e inertes, uma vez que se constituem de formas e momentos diversos que ganham superposições, alterações e transformações historicamente determinas.

Esse debate acerca dos códigos, representações e imaginários construídos e desenvolvidos na narrativa fílmica abre um debate salutar sobre o cinema como uma instituição social (COSTA, 2003) inerentemente libertadora (BENJAMIN, 1983), porque justamente é uma arte que abre o leque de possibilidades discursivas e conflitantes, ou ideológica (ADORNO, HORKHEIMER, 1996), porque produz homogeneização cultural, adormecendo o espectador na poltrona e não provocando o seu senso crítico diante das particularidades do mundo e da multiculturalidade presente no cinema pós-moderno (MOURA, 2010; ORTEGA, 2010). Os códigos, representações e imaginários estão construídos de forma muito singular em A História da Eternidade. Esses conceitos são elaborados de forma em que as personagens estão alocadas em uma trama que representa os processos culturais envolvidos com a passagem do tempo e na organização social das famílias existentes na paisagem circular representada no filme. Em síntese, por meio de imaginários e representações a história do

filme desenvolve significados e interpretações sobre o nordeste brasileiro, espaço onde as personagens estão situadas.

3. Espacialidade e circularidade fílmica: representando e construindo significados sobre os processos culturais Assim como a cultura, os processos culturais e a organização social estão em contínuo processo de transformação. Ao passo que o cinema interpreta a realidade e lhe dá novas abordagens interpretativas, os processos culturais e a forma como a sociedade se organiza hierarquicamente no seio da instituição familiar tradicional brasileira, são apresentados na construção das histórias. Como já foi discutido, por meio da representação fílmica novos significados acerca dos desenhos socioculturais, e já no momento de sua representação, são tomados por um viés subjetivo de quem o interpela. Em suma, é no momento da representação que existe a construção de novos significados. Dessa maneira, compreende-se que o cinema é um meio de representação cultural, articulando por meio da narrativa os espaços fílmicos e imaginados (HEATH, 1993 apud COSTA, 2010: 19). Esses movimentos espaciais por onde as representações são inferidas no material cinematográfico dão abertura também à discussão ligada à contribuição do espectador na tarefa de tornar a representação fílmica uma coisa concreta, posta como tal na narrativa. Nesse ensejo, “o cinema não deve se alimentar dessa espacialidade 'real' com o intuito de garantir o seu funcionamento e verossimilhança, mas usufruir e submeter essa espacialidade à suas recriações e subverter suas dinâmicas e contiguidades tornando-as novas e múltiplas” (NEVES, 2010: 150). Segundo Costa (2010: 21), A diversidade nos modos de manipulação dos “fragmentos” reais ou fílmicos e dos seus mais diferentes movimentos abre uma infinidade de questões sobre o espaço real e as diferentes formas como este é representado pelo cinema, e principalmente como este é “lido” e interpretado pelo espectador.

De acordo com o fragmento acima citado, o espectador se coloca a identificar como o espaço é representado no cinema, não se restringindo a existir ou não uma verossimilhança com o espaço real. Como exemplo, A História da Eternidade perscruta o espaço real para criar um espaço fílmico. Neste último são caracterizados os processos culturais ligados as formas constitutivas da instituição familiar: a família de estrutura hierarquizada da sonhadora

Alfonsina (personagem de Débora Ingrid); a solidão matrimonial e desesperadora de Querência (personagem de Marcélia Cartaxo); o desejo e o pecado por um ente da família em Dona das Dores (personagem de Zezita Matos). As três histórias das personagens femininas principais estão ligas ao desejo, sentimento propulsor que se desenrola no filme. A personagem Alfonsina deseja conhecer o mar, no entanto se vê aprisionada por uma organização social que lhe controla; Dona das Dores, mulher solitária, não admite aceitar o desejo que aflorou em si desde a chegada de seu neto, vindo da cidade grande. No caso da primeira personagem, o imaginário sobre o som, a cor e o volume do mar são sensações que lhe chegam de forma arrebatadora; na segunda, a ação de auto-infligir é um remédio para amenizar o seu pecado. O filme ele retrata de forma sublime as questões do interior do nordeste brasileiro e percebe-se isso através da palheta marrom utilizada em alguns ambientes: a fotografia de interiores de Beto Martins, a direção de arte nos cenários de Julia Tiemann retram muito bem a invasão dos componentes ambientais, externos, a areia e a secura extrema na organização social. Assim, corroboramos a ideia de que esse espaço cria comportamentos e produz desejos, além de fomentar hierarquias como as representadas pelo filme. Essa ideia perpassa a concepção de que Através das imagens que a obra fílmica apresenta, narram-se os acontecimentos do mundo, nisso ele permite aos observadores resgatar as memórias espacialmente vivenciadas em diferentes momentos, trazendo e re-qualificando a estas perante as novas experiências, produzindo aí novas memórias por meio de “somas, comparação, classificação” entre o já vivido com o atualmente experimentado e percebido (NEVES, 2010: 155).

Diante de tantos fatores organizacionais e, em certa medida, estruturantes, o filme apresenta a arte como transgressão desses componentes demarcantes. A cena da dança ao som da música Fala, de Secos e Molhados, é, sobretudo, uma catarse para o entendimento da obra, por que é justamente o sentido da arte que irrompe estruturas delimitantes. A câmera, até aquele momento era fixa e, naquela cena master, vê-se pela primeira vez as três personagens principais em um único plano, circular, como a linha do tempo que não parece passar. Fator predominante, o tempo tem uma função na narração do filme, ao lado da construção do espaço fílmico. Os dois “formarão o substrato das representações; espacialidade e temporalidade se fundem para dar vida ao todo simbólico” (ARAÚJO,

JUNIOR, 2012: 90). A representação do sentido simbólico está presente nas abordagens da construção das personagens principais e resultam em reações entre as demais histórias. O espaço fílmico circular presente no filme em questão está alocada em uma paisagem que difere, sobretudo, da noção de que as coisas acontecem diferentemente das anteriores. A repetição, nesse sentido, é calculada com o movimento da câmera, com as palavras dos atores e com a demonstração de que os acontecimentos, quando acontecem, são imediatos e prenúncios de novas fases. A sequência anterior à cena final apresenta isso. Essa paisagem, construída como tal, tem em seu cerne um intenso valor simbólico e ideológico, por que é produto de um arcabouço de representações de si mesma. Logo, A paisagem cinematográfica não é um lugar neutro para o entretenimento, ou uma documentação objetiva, ou um espelho do real, mas uma criação cultural subjetivamente e ideologicamente comprometida, em que significados do lugar e da sociedade são formados, legitimados, contestados e as vezes esquecidos. Intervir na produção e consumo da paisagem cinematográfica nos ajuda a questionar o poder e a ideologia da representação, e a política e problemas contidos na interpretação. […] A imagem do espaço geográfico no filme é uma imagem cheia de significados. É uma paisagem criada por imagens ‘escolhidas’ previamente, e que juntas, não apenas tornam uma imagem diferente, mas também são capazes de dizer muito sobre a imagem original e advindo a partir da imaginação. (COSTA, 2013: 257-260).

Assim, a imagem em si não é neutra, ela possui códigos e significados reconhecidos da realidade social, mas que foram transformados em leituras subjetivamente ligadas às necessidades do fazer artístico. O cinema, sumariamente, coloca-se na posição de interpretar a sociedade e seus processos culturais, mas também de criar novas convenções regimentadas por categorias sociais e culturais. As paisagens existentes no filme analisado neste trabalho são arquiteturas naturais veiculadas pela imagem cinematográfica, aporte simbólico para as tramas situadas em uma determinada situação espacial e temporal criada pelos agentes envolvidos na produção audiovisual.

4. Considerações... O espaço urbano, em todas as suas variações representacionais, modifica-se a partir do momento em que são empregados valores simbólicos a seu aspecto de campo representacional. Neste sentido, este trabalho procurou identificar de que forma, a partir da

análise do filme A História da Eternidade, o filme representa o tempo e o desejo no nordeste brasileiro por meio da história de três personagens femininas. Mais do que isso, são os processos culturais e o imaginário social, presentes no filme e representados por ele, que incita um debate que gira em torno de conceitos atualmente discutidos em vários campos do conhecimento, como espaço, paisagem, identidade e lugar. Nesse ínterim, salientamos a necessidade de existir cada vez mais a leitura e interpretação de obras singulares que discutem essas temáticas, títulos que são, em essência, releituras de obras literárias, cinematográficas e musicais.

Time and desire in northeastern Brazil: the case of A History of Eternity and its representation of cultural processes

Abstract This paper discusses expensive aspects of the representation of cultural processes identified in northeastern Brazil, reflected in the film A History of Eternity (Camilo Cavalcanti, 2014). In this sense, this paper discusses issues concerning the representation of individuals, which are in the movie, the characters who, through social space in which they live, have desires to a social imaginary, fostered by various types of representations and meanings of construction of landscapes and behaviors of society. Furthermore, the constitution of time is a driving factor of the desire of the characters in the film, especially in the case of Alfonsina, driven mainly by the social imaginary. From this context, our research therefore lies in identifying what the representational function of time in the construction of the representation of cultural processes and social organization of the film, exemplified in the provision of the desires of the characters in the film. In summary, this work leads to the conclusion that The Everlasting Story works with concepts like social imaginary, representation and construction of meanings about cultural processes and social organization; and initiate a healthy debate through the cinematic language contained in aspects of memory fields and identities built in the northeastern hinterland. Key-words: Cultural processes, Time, Desire, Representation, Cinema.

Referências ADORNO, Theodor W. HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1996. ARAÚJO, Gilvan Charles Cerqueira. JUNIOR, Dante Flávio da Costa Reis. As representações sociais no espaço geográfico. In: GEO Temas, Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte, Brasil, v. 2, n. 1, p. 87-98, jan./jun., 2012. BARBOSA, Jorge Luiz. A arte de representar como conhecimento do mundo: o espaço social, o cinema e o imaginário social. In: GEOgraphia, ano. II, n. 3, 2000. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de suas técnicas de reprodução. In: Walter Benjamin. Coleção Grandes Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. COSTA, Antonio. Compreender o cinema. São Paulo: Globo, 2003. COSTA, Maria Helena Braga e Vaz. Construções culturais – Representações fílmicas do espaço e da identidade. In: Entre-Lugar, Dourados, MS, ano 1, n. 2, p. 17-32, 2010. COSTA, Maria Helena Braga e Vaz. Cinema e construção cultural do espaço geográfico. In: Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, ano II, n. 3, p. 250-262, 2013. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985. MOURA, Hudson. O cinema intercultural na era da globalização. In: Cinema, globalização e interculturalidade / Andréa França, Denilson Lopes (Orgs.). Santa Catarina: Argos, 2010. NEVES, Alexandre Aldo. Geografias de cinema: do espaço geográfico ao espaço fílmico. In: Entre-Lugar, Dourados, MS, ano 1, n. 1, p. 133-156, 2010. ORTEGA, Vicente Rodriguez. Identificando o conceito de cinema transnacional. In: Cinema, globalização e interculturalidade / Andréa França, Denilson Lopes (Orgs.). Santa Catarina: Argos, 2010.

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