TEMPO PRESENTE E HISTORIOGRAFIA DIDÁTICA DESTINADA AO ENSINO MÉDIO (2002/2011)

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TEMPO PRESENTE E HISTORIOGRAFIA DIDÁTICA DESTINADA AO ENSINO MÉDIO (2002/2011)1 Itamar Freitas (UFS) 2 Jane Semeão (URCA)3

A noção de história do presente se constituiu e se consolidou como campo de pesquisa histórica apenas na segunda metade do século XX. A criação em 1978 do Institut d’histoire du temps présent na França (IHTP), referência internacional na reflexão sobre as possibilidades de historicização do “vivido”, representou passo importante em direção à institucionalização desse campo de pesquisa. A história praticada na segunda metade do século XX, especialmente a partir dos anos 1970, é um dos fatores que explicam essa virada. A chamada renovação historiográfica, conduzindo à quebra dos paradigmas da história e proporcionando o interesse dos historiadores pelas mentalidades, pelo político e cultural, por novos sujeitos (mulheres, negros, índígenas etc.) e novas fontes, contribuiu para a legitimidade desse campo de investigação. Além da motivação acadêmica, podemos acrescentar: a aceleração do tempo vivido, provocando rápidas transformações ao longo da segunda metade do século passado e início do XXI; o papel que tem exercido e o lugar que tem ocupado os meios de comunicação no mundo contemporâneo; e as demandas – pressões sociais surgidas em meio às efemeridades – que têm marcado o atual regime de historicidade, definido por Hartog como presentista.4 Todo esse movimento é bem conhecido no âmbito da historiografia acadêmica. Mas como a historiografia didática tem respondido à essa mudança? Como a história do tempo presente é incorporada? Que definições apresenta? Que marcos cronológicos têm utilizado? O que se aborda sob a rubrica de tempo presente? Quais os usos do tempo 1

FREITAS, Itamar; SEMEÃO, Jane. Tempo presente e historiografia didática destinada ao ensino médio (2002-2011). In: MAYNARD, Dilton; MAYNARD, Andreza. Visões do mundo contemporâneo. São Paulo: LP-BOOKS, 2013. V. 2, p. 119-137. ISBN – 9788578693800. 2

Doutor em Educação (PUC-SP), pesquisador do ensino de história e professor da Universidade Federal de Sergipe. 3 Mestre em História (UFRJ), pesquisadora da história do tempo presente e professora da Universidade Regional do Cariri. 4 HARTOG, François. Regimes de Historicidade. Disponível em: . Acesso em: 18/04/2010.

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presente no ensino? Este texto discute a abordagem do tempo presente nos livros didáticos de história. Ele faz parte de um conjunto de iniciativas levadas à cabo por professores das universidades federais de Sergipe e do Rio Grande do Norte, bem como da Universidade Regional do Cariri no sentido de explorar aproximações e distanciamentos entre a historiografia didática e a historiografia acadêmica do nosso tempo. Para este trabalho, selecionamos três títulos destinados ao ensino médio. O primeiro deles – História: série novo ensino médio, volume único – foi lançado em 2002 e reeditado em 2003, 2010 e 2011. Apresenta proposta curricular “integrada”, organizando os conhecimentos factuais, conceituais e procedimentais em ordem cronológica no conhecido quádruplo história antiga, média, moderna e contemporânea. A mesma organização orienta a segunda obra – História em foco (2011) –, também destinada ao ensino médio, mas disposta em três volumes. Tais obras foram selecionadas por sua regularidade de circulação ao longo da última década, como também pela legitimidade reivindicada pelo autor no campo da pesquisa histórica e do ensino de história para a escolarização básica. É a própria editora Ática (detentora dos direitos autorais) quem divulga na página de créditos: Divalte Figueira é mestre em História pela USP, professor de história do ensino médio e autor de Cidades históricas e o barroco mineiro (2000) e Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai (2001). O terceiro – História (2010) – é composto por três volumes que integram os conteúdos de história do Brasil e Geral, seguindo também o modelo de quadripartição da história. Foi escolhido por causa da vinculação dos seus autores com o mundo acadêmico: Georgina dos Santos, Jorge Ferreira, Ronaldo Vainfas e Sheila de Castro Faria são professores do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Alguns deles, inclusive, com publicação voltada para o ensino,5 teoria e metodologia da história, foram reconhecidos como protagonistas da renovação historiográfica que se processou no Brasil nas três últimas décadas do século passado. Para examinar as referências ao tempo presente nas coleções, especificamente no que diz respeito a definições, marcos temporais, usos no ensino e níveis de experiência

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Ronaldo Vainfas e Sheila de Castro Faria, por exemplo, fizeram suas primeiras incursões na produção de material didático ao produzirem paradidáticos a partir da década de 1990.

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humana abordados, optamos por selecionar alguns indicadores dos livros didáticos que poderiam incorporar esses elementos: 1. apresentação e sumário; 2. textos principais; 3. seções que exploram o desenvolvimento de habilidades de relacionar passado/presente (boxes complementares e exercícios, que têm por objetivo aprofundar o conhecimento sobre a temática dos capítulos); 4. instruções teóricas e metodológicas disponibilizadas no manual do professor.

1- O tempo presente no livro História: série novo ensino médio e em História em foco

De início, questionemos: a que se destina o livro de Divalte Figueira, quais são os seus objetivos? Nos elementos pré-textuais, é possível identificar preocupações com a experiência do presente mediante o emprego de alguns vocábulos indiciários. Em 2002, os editores atribuem à obra a tarefa de auxiliar o aluno a “enfrentar as exigências de um mundo cada vez mais globalizado”. No ano seguinte, surge o “vestibular” como preocupação, além da intenção de contribuir para a “formação cidadã” do aluno. Em 2010, a formação cidadã permanece, junto à vantagem de fornecer “os acontecimentos e processos mais importantes da história”. Na primeira edição da História em foco, por fim, é a realização das “provas do Enem e dos vestibulares mais exigentes” que norteia as intenções da autoria.6 Logo na apresentação, os livros destacam o “governo Lula” e a “globalização”, e o mundo “globalizado”. Também informam sobre a sessão “Leitura e debate”, cujo objetivo é desenvolver a habilidade de relacionar “o estudo da história” e a “vida concreta” do aluno.7 Entretanto, é no sumário que os indícios são mais robustos: “O Brasil de hoje” e “Brasil: a construção do futuro”. No conjunto da obra – nas unidades/capítulos que exploram a história do país –, o contemporâneo se inicia com a Revolução Francesa e mantém o espaço nas três

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FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2002. p. 3, FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2003. p. 3, FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2010. p. 3, FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2011. p. 3. 7 FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2002. p. 3.

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edições de História: série novo ensino médio. São 54% do espaço em páginas, restando 46% para todas as outras “idades”. No título História em foco, entretanto, esse domínio cai para 35%.8 Quanto ao espaço ocupado pelo “hoje” e “futuro”, em ambos os títulos, constatamos a hegemonia do contemporâneo e a ampliação do espaço concedido à experiência brasileira e contemporânea. 9 Outro dado loquaz sobre o nosso objeto é a natureza dos conteúdos. Nesta rubrica, são idênticos os fatos, conceitos e procedimentos apresentados. O contemporâneo encerra, por exemplo, os acontecimentos da revolução francesa, independências na América (inclusa a do Brasil), Brasil império, Brasil república, guerras mundiais, guerra fria e globalização. As variações ficam por conta dos títulos das unidades.10 Em relação à experiência brasileira, a escrita se repete, ou seja, são modificados os títulos de algumas unidades.11 Por fim, vejamos o sentido de “hoje”. Trata-se de um conjunto de acontecimentos de caráter político e econômico que incluem a experiência dos governos Sarney, Collor, Itamar, FHC e Lula. Assim, não é tanto a derrocada do socialismo real que marca a experiência inicial do presente (o “hoje”) do Brasil quanto as vicissitudes da política interna local (corrupção, impeachement etc.). Um dado também importante, que denuncia a natureza do “hoje”, é a distância entre o tempo vivido pelo historiador (o tempo do encerramento da produção do livro didático) e o tempo narrado (os acontecimentos referidos na obra). A análise indica que o hoje “brasileiro” não se apresenta como escala móvel, já que é permanente ponto de partida (o governo Collor), indicando a provável consolidação de um novo período para a história do Brasil. Por outro lado, é também fácil verificar que a experiência narrada se expande, mas o número de páginas se conserva. Os autores/editores adéquam o tempo ao espaço 8

A explicação para essa mudança nos parece bastante simples. A distribuição em três volumes (o História: série novo ensino médio é volume único), obriga a uma adequação entre a distribuição de páginas e a distribuição dos conhecimentos/períodos pelos três anos do ensino médio. 9 Isso ocorre quando os conteúdos são distribuídos em três volumes. 10 “um mundo bipolar” transforma-se em “A terra dividida” (relativo à guerra fria), “Sob o domínio do capital” transforma-se em “O domínio da burguesia” e assim por diante. 11 “Rumo ao terceiro milênio”, por exemplo, (em virtude do esgotamento do novo milênio como novidade), passa a chamar-se, nas três edições seguintes, “Ricos e pobres no mundo globalizado”. O mesmo ocorre com o tópico referente ao Brasil: “Brasil de hoje”, no exemplar de 2002, é substituído por “Brasil: a construção do futuro”.

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(gráfico), enfatizando o recente ou o recentíssimo. Tal operação, talvez demonstre uma preocupação mercadológica e acadêmica (que é também mercadológica): atualização historiográfica (efetuada mediante fontes jornalisticas, sobretudo). O “hoje” e também o “futuro” são abordados nos exercícios sobre os conhecimentos referentes aos últimos textos citados que tratam da experiência brasileira.

Síntese Forme um grupo com seus colegas e elaborem uma redação sobre o Brasil no ano 2050. Não se esqueçam de levar em conta o cenário mundial e os problemas discutidos durante os seminários da classe12.

O “hoje”, nos exercícios, portanto, significa um presente relacionado ao ano de uso do livro didático com abrangência subjetiva em termos de níveis de experiência humana. O mesmo se pode dizer a respeito do “futuro”, posto em relação aos acontecimentos dos últimos dez anos.

Ampliando o conhecimento Como está hoje o movimento estudantil? Quais são suas bandeiras? O que informam as páginas da UNE, da UEE e de outras organizações estudantis na internet?13

Os exercícios que fazem referências ao presente também podem subsidiar o desenvolvimento de algumas habilidades. Trabalhando o contexto No século XIX, o socialismo resumia as esperanças das classes trabalhadoras de conquistar um mundo com menores desigualdades sociais. Ao longo do século XX, em várias regiões do mundo, os socialistas conquistaram o poder. Faça uma pesquisa para saber qual a situação do socialismo no mundo.14 Leitura e debate Apesar das leis de proteção às crianças existentes em nossos dias, ainda é possível encontrar casos de exploração do trabalho infantil. Com seus colegas de grupo, faça uma pesquisa para descobrir qual a situação do trabalho infantil atualmente no Brasil. Depois, escrevam um pequeno relatório sobre o assunto. 15

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FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2002. p. 425. Grifos nossos. 13 FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2011. p. 251, v. 3. Grifos nossos. 14 FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2003. p. 56. Grifos nossos. 15 FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2010. p. 36. Grifos nossos.

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Se não identificássemos os exemplos – como pertencente a uma ou outra subseção – dificilmente poderíamos estabelecer diferenças. A “situação”, o “papel”, o modo, o “poder”, o “sistema”, a “importância”, a presença, etc. são termos comuns que identificam conhecimentos demandados aos alunos e indicam, apenas, que o presente, nesses casos, não é objeto de cognição. O “atualmente”, “nos nossos dias”, “nos dias de hoje”, “que vigora hoje”, “para a nossa vida”, “que fazem parte de nossa sociedade” são demarcadores temporais, certamente. Mas tal presente aparece como resultado de um longo processo, ou seja, a existência do presente justifica-se pela existência de vários passados. No manual do professor (encartado, apenas, nos títulos de 2002 e 2011), também o presente é referido com todo o seu campo semântico: “atualidade”, “realidade do aluno”, contemporâneo etc. Mas os sentidos e as funções concentram-se em dois polos. O primeiro, de caráter estritamente pedagógico, lembra (embora não explicite) as assertivas da aprendizagem cognitiva verbal significativa, desenvolvida nos Estados Unidos, inicialmente por David Ausubel.

A proposta que está orientando a reforma do ensino médio insiste na necessidade de se enfatizar a realidade do aluno. Espera-se, por exemplo, que o professor dê menos importância à memorização e que valorize o raciocínio e o espírito crítico. Em vez de apresentar um conhecimento pronto, como se fosse definitivo, o educador precisa estimular a capacidade do aluno de aprender, de descobrir e de resolver problemas, levando sempre em consideração o seu conhecimento prévio.16

O segundo, de caráter estritamente historiográfico, lembra (embora também não explicite) a urgência, no ensino, do conceito de historicidade – caráter de ser histórico, inclusive a realidade vivenciada pelo aluno –, que pode afastar a ideia (nociva), sedimentada no senso comum do aluno, de que a ciência da história estuda o passado em si mesmo. O professor deve reconhecer a importância da contextualização dos conteúdos vistos. Para nós, isso significa ensinar que a história está relacionada com o presente e com a vida do aluno. Em outras palavras, significa que o mundo contemporâneo pode ser interpretado a partir de uma perspectiva histórica.17

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FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2002. Manual do professor, p. 3. 17 FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2002. . Manual do professor, p. 3.

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Trata-se de um casamento bastante conveniente entre teoria da aprendizagem e teoria da história, que legitima a obra perante as prescrições estatais para a educação. Do ponto de vista teórico, entretanto, o casamento apresenta fragilidades. Em primeiro lugar, o presente está fora do livro didático, uma vez que é referido como “realidade do aluno” e, como tal, é extremamente subjetiva. Assim, as atividades alimentam a conclusão de que o livro didático apresenta-se como um estudo do passado para que o aluno conheça as causas da sua situação atual. A historicização experimentada refere-se ao presente do aluno e não a um presente resultante do trabalho do historiador. No manual do professor produzido para a edição de 2011, o projeto pedagógico (não modificado) reforça a sua dependência em relação aos “eixos cognitivos definidos na matriz de Referência para o Enem 2009”. 18 Ali, é ainda mais explícita e (consequentemente) contraditória a oferta de atividades e a abordagem do presente. Ele informa ser “recomendável que o professor, ao iniciar um novo assunto, comece sempre pelo presente e, a partir daí, faça uma ligação com o passado”.19 O que vemos no livro é o presente do aluno discutido em atividades ao final do capítulo, indicando, (mesmo em termos pedagógicos) o prejuízo da relação, uma vez que o procedimento prescrito/sugerido fica na alçada do professor.

2 - O tempo presente na coleção História

A exemplo da análise do título anterior, comecemos pelos elementos pré-textuais da obra organizada por Ronaldo Vainfas e escrita também por Sheila Farias, Jorge Ferreira e Georgina dos Santos. A apresentação inicia-se com a clássica pergunta “Para que serve a História?” Os autores endossam a afirmação costumeira de que “estudar o passado é essencial para compreender o presente”.20 Por outro lado, ressaltam que a história “permite, sobretudo, conhecer o passado – outros tempos, outros modos de

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FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2001. Manual do Professor, pp. 4-5. 19 FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2011. Manual do professor, p. 5. 20 VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v.1, p.3. A partir daqui, as citações indicarão apenas as páginas e volume de onde foram retiradas.

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vida, outras sociedades”21. Dessa forma, somos levados à concluir que o grande valor da história reside no conhecimento do passado. Se na conversa inicial com os alunos o tempo presente não ganha destaque, no sumário encontramos indícios de sua presença e articulação no livro, seja como título de unidade – “Rumo ao novo milênio”, seja como título de capítulo – “Tempos de crise”, “O Brasil da democracia” e “O colapso do comunismo”, “O novo século”, “a globalização e a nova ordem mundial”, “Crise de 2007” e “Aquecimento global”. Na abertura dos textos principais, além de uma ilustração relacionada a algum de seus aspectos centrais, os autores apresentam o tema e os objetivos do capítulo. Em alguns casos, um problema é formulado para estimular a leitura e a compreensão das questões históricas em destaque. Apesar desses procedimentos metodológicos e didáticos, no entanto, praticamente não são trabalhadas situações que problematizem questões do tempo presente. A abertura dos capítulos restringe-se ao tempo do próprio acontecimento narrado, não promovendo o diálogo entre presente e passado. Isso ocorre, inclusive, nos volumes onde a História Contemporânea é abordada, até mesmo em alguns dos tópicos da última unidade do terceiro livro que reúne os acontecimentos da década de 1970 ao século XXI. Não obstante o tema tratado corresponder à história do tempo presente, a articulação que a introdução desse capítulo poderia realizar com o presente mais imediato dos alunos não ocorre – como estratégia metodológica para o desenvolvimento da noção de temporalidade histórica, de continuidades e descontinuidades. 22 O desenvolvimento dos conteúdos segue o mesmo procedimento, ou seja, os capítulos abordam aspectos do tema estudado sem preocupação em estabelecer aproximações com situações do tempo presente. Isso ocorre tanto nos tópicos estruturados por uma narrativa marcadamente política – característica da grande maioria

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VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v.1. Grifos nossos. 22 As considerações que abrem o “Brasil da democracia” (Cap.16, v.3), anunciando que “é a história do tempo presente do Brasil” que será conhecida, e “O novo século” (Cap.18, v.3), constituem exceções ao abordarem questões referentes à cidadania, democracia e consciência ecológica, apontando mudanças e permanências entre o final do século passado e primeira década do XXI. VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, v.1, 2010.

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–, quanto naqueles que enveredam pela discussão do cotidiano e da cultura do período em foco23. O tempo presente, seguindo a cronologia linear de apresentação dos conteúdos, tem espaço garantido de forma absoluta no terceiro volume da coleção, dedicado à história contemporânea. Esse é o período com maior quantidade de expectativas de aprendizagem. 24 Que espaço, então, ocupa o tempo presente na distribuição dos conteúdos do período contemporâneo? Com o fim do socialismo real – indicado como baliza da história do presente –, os acontecimentos que compõem essa temporalidade histórica ocupam 4% do total de expectativas de aprendizagem na coleção. Isso corresponde ao dobro do espaço ocupado pela pré-história e uma diferença de apenas 3% se comparado à história antiga e medieval. No entanto, apesar do espaço reservado à discussão do tempo presente na unidade final do terceiro livro, seu capítulo inicial (cap.15) – da mesma forma como ocorre em relação ao texto principal dos outros tempos históricos – centra-se nos aspectos, características dos acontecimentos relatados sem articulação com o tempo vivido do aluno.25 A mesma questão é enfrentada no exame dos “Boxes” complementares e do “Roteiro de Estudos”, seções do livro didático presentes em todos os volumes: em que medida as referências ao tempo presente aparecem e subsidiam a compreensão dessa temporalidade a partir dos objetivos traçados? Nos boxes, predomina a preocupação em realçar ou complementar aspectos da matéria em estudo, sendo raras as aproximações

Assim, por exemplo, “Entre o romantismo e a Belle Époque”, onde são destacados a literatura do século XIX, as artes plásticas, as práticas de leitura, os comportamentos e hábitos burgueses (civilidade), as “transformações nos sentimentos e ritos de morte”, o espaço público versus espaço privado etc, a narrativa fica circunscrita à época trabalhada. VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v.2, pp.345-365. 24 Em nossa análise, visualizamos que 56% das expectativas de aprendizagem para o ensino médio foram construídas em torno dos acontecimentos, fatos e temáticas históricas da Revolução Francesa, anunciada como “o mais importante movimento revolucionário do mundo ocidental, marco inaugural dos tempos contemporâneos” (VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 3, p. 25), até o ano de 2009. A distribuição dos conhecimentos a partir desse evento começa a ser feita no segundo capítulo do volume 2 da coleção (o primeiro é dedicado ao Iluminismo), significando que os dois últimos anos desse ciclo escolar são dedicados, basicamente, ao estudo desse período da história. 25 A exceção ocorre com os capítulos 16, 17 e 18, “O Brasil da democracia”, “O colapso do comunismo” e “O novo século”, respectivamente, por prolongarem seus conteúdos até o ano de 2009. No primeiro caso, por exemplo, os autores tratam de questões políticas, econômicas e sociais do Brasil do ano 1985 até o segundo mandato do presidente Lula. 23

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com o presente, até mesmo quando o aluno é convidado a refletir sobre as informações veiculadas: Escravos vindos da costa ocidental da África eram batizados e recebiam nome português (cristão) no Brasil. Em áreas de ocupação portuguesa na África, como na colônia de Angola, por exemplo, já vinham batizados. 1- Segundo o texto do historiador João Reis, de que área da África vieram os negros que foram interrogados pelas autoridades? 2- Estabeleça uma relação entre o que diz o texto e a criação dos “cantos” de serviços (na cidade de Salvador, na Bahia) e de muitas irmandades religiosas organizadas por escravos no Brasil.26

Adentrando um pouco mais pela História Contemporânea, localizamos algumas seções nas quais a relação passado/tempo presente é estabelecida 27, como neste exemplo: “Destaque, no balanço feito pelo autor, os papéis do homem e da mulher da época. Sua interpretação sobre o papel da mulher seria bem recebida nos dias de hoje? Justifique”.28 Curioso, no entanto, é que o procedimento não se estende para o restante do Contemporâneo. Quanto à história do tempo presente, somente nos capítulos da última unidade do volume 3 constatamos alguns boxes que articulam tempos diversos (no caso, as décadas finais do século passado com o XXI). Essa é a tônica de todos os capítulos dessa unidade, com exceção do que inaugura a parte final do livro. Tal característica nos leva a concluir que, sendo o fim do socialismo real – cujo símbolo maior é a queda do muro de Berlim – o referente cronológico do tempo presente, somente nos três últimos tópicos a relação presente/passado/presente é contemplada sistematicamente. No “Roteiro de Estudos”29 também é escasso o diálogo entre presente/passado/presente. Predominantemente, a seção convida os aos escolares a resolverem atividades relacionadas ao conteúdo estudado e sua época. Independente de qual seja o período histórico, é reduzido o número de atividades que promovam uma reflexão articulando tempo presente e passado, ficando a cargo do professor 26

VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2, p.260. 27 Respectivamente, capítulos 15, 16 e 17, do segundo volume, cujos títulos são: “O imperialismo ataca o mundo”, “Modernização e novas tecnologias” e “Entre o romantismo e a Belle Époque”. 28 VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2 pp.350-351. 29 Esta fica no final de cada capítulo e está dividida em quatro subseções: “Para organizar”; “Reflexões”, “Vamos testar?” e “Para fechar”. Como “Vamos Testar?” reúne questões de vestibulares e de provas do ENEM com o objetivo de preparar os alunos para ingressarem na Universidade, retiramos essa subseção de nossa análise.

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proporcionar essa aproximação. Nas seções localizadas nos capítulos sobre a história do presente, obviamente, os exercícios colocam em discussão essa temporalidade, mas a maioria também se volta para aspectos do conteúdo em estudo e da sua cronologia (anos 1970, 1980, 1990, por exemplo), sem levar em conta o tempo presente dos alunos. Vejamos agora o manual do professor30. Em sua apresentação observamos sintonia com os objetivos declarados aos alunos no inicio de cada volume, quais sejam: despertar neles

o gosto pela História. A curiosidade pelo passado, os sofrimentos, as lutas, as crenças, os modos de viver e sentir de outras épocas e sociedades. Sem estimular esse encontro entre os alunos e o estudo do passado, quaisquer outros objetivos de um livro de História ficam prejudicados.31

Nesse sentido, o uso de textos, documentos, imagens e outros recursos metodológicos intencionam “estimular o diálogo, a reflexão dos alunos e, no limite, a reconstrução do passado”.32 A ênfase dos autores na função de produtora conhecimento acerca do passado reforça o entendimento comum de que o presente não é, também, objeto de reflexão da história. Embora façam referência a existência desse campo de pesquisa, quando dizem que não excluíram as “crises contemporâneas”, dedicando uma parte do livro “ao que hoje se chama ‘história do tempo presente’” 33, nenhuma discussão conceitual nessa direção é empreendida: O que é a história do tempo presente? No que esta difere da História Contemporânea? Quais são as suas balizas cronológicas e porque? A própria terminologia quase não é utilizada no manual, sendo referida somente quatro vezes ao longo das 96 páginas do texto.34 Os termos “atual’, “atualidade”, “história contemporânea” e “mundo contemporâneo” concorrem com o de tempo presente para se referir aos fins do século XX e princípios do XXI, fazendo parecerem 30

Utilizamos o Manual do Professor que está no final do terceiro volume da coleção, por isso indicaremos apenas à página de onde foram retiradas as citações. 31 VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2 p.2. 32 VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2 p.2. 33 VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2. p.3. 34 A referência cai para três se levarmos em consideração apenas a primeira parte do manual, que é a mesma para todos os livros, já que a última é dedicada a orientar o professor nos conteúdos específicos de cada um dos volumes.

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vocábulos sinônimos, como no exemplo que se segue sobre a descrição da unidade que encerra o terceiro volume da obra (intitulada “Rumo ao novo milênio”): Composta de quatro capítulos, dedicados ao estudo dos problemas do mundo contemporâneo, sobretudo na segunda metade do século XX. O foco desta unidade são mudanças que ocorrem em diversas sociedades: no mundo socialista, o chamado “reformismo comunista”; na Europa e nos Estados Unidos, o movimento de contracultura e a Revolução Técnico-Científica. Em período mais recente, a preocupação é com o conjunto formado por três grandes processos: o colapso da União Soviética, a ascensão do neoliberalismo e o movimento de globalização. Um capítulo sobre a história do tempo presente brasileiro integra a unidade.35

Contemporâneo ou tempo presente? Qual a baliza cronológica da história do presente, toda segunda metade do século passado ou a partir do fim do socialismo real? Estas questões não são delineadas de forma clara no manual ou nos volumes da obra, mesmo naquele destinado ao século XX e XXI – à exceção do tempo presente brasileiro que, para os autores, é inaugurado com o fim da ditadura militar, apesar de não explicitarem a razão. A leitura do manual do professor, portanto, reforça a perspectiva também predominante nos elementos pré-textuais, textos principais e seções (boxes e exercícios) aqui analisadas de que o objeto primordial da história é o passado, seja ele remoto ou recente. Todas as orientações teóricas e metodológicas da ciência de referência trabalhadas no manual, além de demonstrarem cumprimento com as exigências do Edital PNLD 2012/Ensino Médio, frisam, prioritariamente, a ideia de “reconstrução do passado”. 36 Para finalizarmos, no que se refere à relação passado/tempo presente, apesar de os autores discutirem a articulação de temporalidades e espaços diversos como forma de evitar uma “fossilização do passado” e de entenderem que o tempo da história é múltiplo, comportando mudanças e permanências, percebemos que a articulação entre diversas temporalidades se realiza de maneira muito tímida no manual do professor. 35

VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2, p.30. Grifos nossos. 36 Ao explicarem a seção “Roteiro de Estudos”, o objetivo apontado para as propostas de atividades da subseção “Para fechar” é o de buscar fazer “com que o aluno se sinta um pouco como historiador, como se estivesse ele mesmo a fazer história, reconstruindo o passado e não só aprendendo conteúdo ou interpretações já dadas”. VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2, p.24.

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Essa característica, como vimos, também está presente nas várias seções do texto destinado ao aluno. Na verdade, os que os autores tentam evitar – o que condenam em outros livros didáticos – é priorizar um “olhar sobre o contemporâneo” para não caírem no presentismo. Em função dessa atitude, poucas são as aproximações empreendidas entre essas duas temporalidades e escassas as discussões ou sugestões de concretizar essa articulação.

Conclusões

Em busca de definições, marcos temporais, conteúdos conceituais e usos do tempo presente, analisamos alguns títulos didáticos de Divalte Figueira e Ronaldo Vainfas destinados ao ensino médio. Nos livros de Divalte Figueira, verificamos que a preocupação de incorporar ao livro didático a experiência do presente é perceptível em seus elementos pré-textuais. Apesar disso, no entanto, as obras não empregam a noção de história do presente. Além disso, mesmo trabalhando com a clássica divisão quadripartite da história, insinuado uma diferença temporal entre o contemporâneo e o presente, o tempo presente não é objeto de discussão. Nos exercícios, como certa frequência, localizamos algumas questões que promovem articulação entre o “hoje” do aluno e temporalidades recuadas. Mas o presente é empregado com o sentido de “realidade” e “presente do aluno”, demonstrando descompasso da obra em relação às discussões conceituais, acadêmicas, sobre o tempo presente. Quanto à coleção organizada por Ronaldo Vainfas, o sumário apresenta indícios da incorporação e da abordagem do tempo presente em sua periodização e no uso de vocábulos. A inserção de experiências sociais recentes na obra denota a importância que a construção de um “juízo crítico” sobre o presente assume no aprendizado histórico escolar. Por outro lado, o exame dos textos principais, propostas de atividades e boxes complementares mostraram que, em relação aos diversos períodos da história, são esparsas as relações estabelecidas entre passado/tempo e presente/passado. São exceções os três capítulos finais do último volume da coleção. Neles, parte dos boxes,

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atividades, introduções e textos principais estendem suas discussões até as vésperas de publicação da obra, ou seja, até o presente vivido do aluno.37 No manual do professor, da mesma maneira que acontece no texto de apresentação dedicado ao aluno, a ênfase sobre o papel da história como produtora de conhecimento acerca do passado também dificulta a percepção do presente como objeto de estudo da história. Embora a expressão história do tempo presente seja utilizada pela primeira vez em toda a obra nesse texto, indicando o reconhecimento de sua existência pelos autores, nenhuma discussão de ordem conceitual e de delimitação cronológica é realizada. Limitados às fontes selecionadas para este texto, constatamos, portanto, que as discussões da historiografia sobre tempo presente, como campo de investigação histórica, não são articuladas nas obras referidas. Apesar de indicada, ela não é decifrada conceitualmente para os alunos e professores. Da forma como estão organizadas, o tempo presente configura-se muito mais como sub-período do contemporâneo. Assim, seja nos elementos pré-textuais, seja nos exercícios ou no manual do professor, prevalece a noção do presente como ponto de partida para compreensão do passado e a historicização da realidade do aluno, atendendo exigências historiográfica e pedagógica. Abordar o passado a partir do presente, no entanto, não significa a realização de uma história do presente. Tal prática, que não apresenta definições, funções, ou balizas cronológicas justificadas conceitualmente, está muito mais próxima da historiografia aditiva referida por Koselleck 38 – do hábito de registrar os acontecimentos contemporâneos ao historiador – em voga há pelo menos quatrocentos anos, ainda que a construção dos livros analisados não mais ocorra dentro da compreensão do tempo como fenômeno estático e de uma história como mestra da vida.

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O que não poderia ser diferente, tendo em vista tratar de capítulos dedicados ao tempo presente. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: PUC-RJ/Contraponto, 2006. p. 276. 38

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Fontes

VAINFAS, Ronaldo, FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina dos. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São Paulo: Saraiva, vol.1, 2010. _______. História: o longo século XIX. São Paulo: Saraiva, vol.2, 2010. _______. História: o mundo por um fio: do século XX ao XXI. São Paulo: Saraiva, vol.3, 2010. FIGUEIRA, Divalte. História: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2002. _______. História: série novo ensino médio. 2ed. São Paulo: Ática, 2003. _______. História: série novo ensino médio. 3ed. São Paulo: Ática, 2010. _______. História em foco. São Paulo: Ática, 2011 (2 v.).

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Referências

ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida. Sobre la historia del presente. Madrid: Alianza Editorial, 2004. BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença na história. In: AMADO, Janaina; CHAUVEAU, Agnés; TÉTART, Philippe. Questões para a história do presente. São Paulo: EDUSC, 1999. FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. In: Cultura Vozes. Petrópolis: Editora Vozes, v.94, n0 3, 2000, pp.111-124. Disponível em: . Acesso em: 21/07/2008. FREITAS, Itamar. O saber em fatias: o livro didático em seções e as seções em livros didáticos de História (1900/2010). Notas para orientação. Nossa Senhora do Socorro, 5 dez. 2010.. Capturado em 17 mai. 2012. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: PUC-RJ/Contraponto, 2006.

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