Tempo sem medida, medida sem tempo

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Tempo sem medida, medida sem tempo Camila Silva Nicácio e Bruna Simões de Albuquerque1 “O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nessa mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia (...)”. (Raduan Nassar, Lavoura Arcaica)

Introdução

O tema é da maior delicadeza e nossa intenção é a de levantar algumas das questões que, imperiosamente, devem conformar o debate em torno do tempo na execução das medidas socioeducativas (MSE). Perguntamo-nos de saída: por que o tema é delicado? Porque percorre o direito, de uma forma geral, e o direito penal infanto-juvenil, em particular, desvelando os paradoxos de sociedades contemporâneas que, apesar de estarem em marcha no aprendizado de alternativas sociais ao problema da criminalidade e da delinquência, restam, ainda, sob o jugo de um marco vindicativo, e em nome dele e inflamados pelos aparelhos midiáticos, pautam os poderes públicos a fim de obter maior segurança para os cidadãos. Em nome da segurança, os cidadãos submetem corpos, espaço e tempo a múltiplas formas de monitoramento, de abrangência cada vez mais ilimitada. Ou seja, o tema é delicado porque não há para ele solução simples ou evidente: o tempo da pena para o criminoso, assim como o tempo da MSE para o autor de ato infracional parece nunca ser suficiente para as vítimas imediatas e mediatas da violência

1 Camila Silva Nicácio − Doutora em Antropologia do Direito pela Université Paris I, PanthéonSorbonne; Mestre em Sociologia do Direito pela Université Paris III, Sorbonne-Nouvelle; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Subsecretária de Estado do Governo de Minas Gerais (Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas – SUASE/Defesa Social). Bruna Simões de Albuquerque – Mestre em Psicologia (Psicopatologia e Estudos Psicanalíticos) pela Université de Strasbourg; Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais; Diretora de Gestão da Medida de Semiliberdade da SUASE.

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sofrida. Parece não haver perdão. Parece não haver esquecimento. Há o direito, considerado por inúmeros como clemente. E há, a despeito dele, reedições aterradoras da vingança privada2. É sob este pano de fundo e não sob outro que o tema se desenvolve e demanda a reflexão/ação as mais conscienciosas e dedicadas da comunidade acadêmica; dos movimentos de defesa de direitos; dos gestores públicos; das diversas organizações da sociedade civil; dos operadores do direito em geral, enfim. Neste espaço, para abordar a questão, procederemos em quatro tempos à análise dos tópicos que seguem: 1) panorama dos influxos sociais no que tange ao recrudescimento da resposta jurídica à conduta desconforme ao direito; 2) o tempo da MSE face à “condição peculiar de desenvolvimento do adolescente infrator”; 3) os inconvenientes e vantagens da abertura normativa trazida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no que concerne ao tempo de cumprimento da MSE e 4) ilustração, a partir de casos concretos, das dificuldades advindas quando da aplicação de referida abertura.

1) Influxos sociais e respostas jurídicas

Sob o título de “Menor bom é menor preso?”, a revista Carta Capital apresenta o dado estarrecedor: nove em cada dez brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal, “a despeito da oposição do governo federal, de juristas, da Igreja Católica e de organizações

de

direitos

humanos3”,

completa

o

semanário.

Nem

temas

reconhecidamente polêmicos, vide casamento de pessoas do mesmo sexo ou eutanásia, gozam de tamanha concordância junto à opinião pública, afirma-se. Marcos Coimbra, diretor do Vox Populi, executor da pesquisa, aponta para a evidência de que, sendo tão alta a porcentagem, impossível é imaginar que apenas setores reacionários ou conservadores estejam a favor da alteração legislativa ensejando a diminuição. Não, não, tal mudança é almejada por uma gama vastíssima de cidadãos. À guisa de explicação para o fenômeno, o cientista político chama atenção para o aumento da violência e a crença social em “soluções mágicas” que a remediem: “No mundo todo, há uma predisposição da opinião pública a acreditar que a violência só vai reduzir com mais repressão, mais prisões e penas mais duras. E não há uma defesa enfática do argumento contrário. Com a

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A imagem do adolescente negro, acusado de roubo, atrelado a um poste com um cadeado de bicicleta pelos “justiceiros” do Rio de Janeiro vai persistir, renitente, na memória de muitos. 3 Carta Capital, Política, Sociedade, por Rodrigo Martins — publicado em 27/12/2013, 23:59 e consultado em 15 de abril de 2014 no endereço: http://www.cartacapital.com.br/revista/765/menor-bome-menor-preso-436.html.

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espetacularização dos crimes cometidos por menores na televisão, quem se dispõe a dizer abertamente que a prisão para os adolescentes não é justa?4”.

Na esteira desses dados, outros vêm se somar – porque inspirados pelo mesmo motor – ainda que concentrados sobre a questão criminal: pesquisa CNI/Ibope realizada em julho de 2011 aponta que 46% dos brasileiros aceitam a pena de morte, enquanto 51%, a prisão perpétua – ambas rejeitadas pela ordem constitucional do Brasil5. Vértice entre as arenas criminais e infracionais: a mesma pesquisa informa que 80% dos entrevistados mudaram hábitos por causa da violência naquele ano. Renato da Fonseca, gerente executivo da Unidade de Pesquisa da CNI, reflete sobre o que denomina de “paradoxo” de uma sociedade que, ainda que de acordo com o uso de penas alternativas em casos de delitos leves (83% dos entrevistados), acredita que penas mais severas reduziriam a criminalidade. Segundo Fonseca: "As pessoas acreditam nas políticas sociais, mas há uma vontade de aumentar o rigor. Acredito que tenha a ver com a urgência de uma sociedade que está sofrendo com a violência6". Na mesma linha de raciocínio, em que o tempo é manejado sob aspirações diversas, que revestem tanto o sentimento de justiça quanto o de vingança, projetos de lei pululuam no sentido de aumentar o tempo das penas, recrudescendo, assim, a punição. Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 310/11 é um exemplo disso, ao propor alteração do Decreto-Lei 2.848/40 (Código Penal) a fim de aumentar o tempo máximo de cumprimento da pena de reclusão de 30 para 60 anos. Além de aumentar o prazo para a pena máxima, o projeto dificultaria, incidentalmente, o acesso do condenado a benefícios como a liberdade condicional ou a progressão de regime, uma vez que estabelece que a contagem deva ser feita com base na pena total e não no limite de 60 anos7.

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Idem. Na Carta Magna de 1988 o dispositivo previsto nas alíneas “a” e “b” do inciso XLVII do artigo 5º proíbe a aplicação da pena de morte (salvo em casos de guerra) e de caráter perpétuo. 6 Jornal O Estado de São Paulo, de 19 de outubro de 2011, consultado no dia 15 de abril de 2014, no endereço: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,no-brasil-46-aceitam-pena-de-morte-e-51-prisaoperpetua,787757,0.htm. No que concerne aos adolescentes, a mesma pesquisa aponta que 75% dos entrevistados defendem a redução da maioridade penal para 16 anos e o mesmo número acredita que adolescentes que cometem crimes violentos deveriam ser punidos como adultos. Conclusão inevitável: entre as pesquisas de 2011 e de 2013, cresceu o número, já tão expressivo, daqueles que reclamam maior e mais rigorosa punição ao adolescente infrator (de 75% a 89%). 7 Para conhecer o projeto na íntegra: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/838538.pdf, consultado no dia 15 de abril de 2014. Autor do projeto, o deputado de Goiás, Sandes Júnior, ressalta que o aumento do limite visa reajustar a pena máxima à atual expectativa de vida do brasileiro. Entre as justificativas para o projeto, o deputado aponta dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística): ele argumenta que à época em que o limite de 30 anos foi adotado (1940), a expectativa de vida não passava dos 45 anos, como hoje está em 73 anos, a nova pena máxima estaria de acordo com a realidade contemporânea. 5

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Este é apenas um exemplo do que demonstram pesquisas temáticas que sondam profundamente a questão, assim como nos adverte Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, cujos estudos apontam que, de 1984 até hoje, ondas de recrudescimento penal e neocriminalizantes se mesclam às despenalizantes, com hegemonia das primeiras. Assim, leis tais como a dos crimes hediondos/1990; das organizações criminosas/1995 ou referentes à tipificação de condutas relacionadas a questões econômicas e financeiras; relações de consumo; meio ambiente; discriminação racial e assédio sexual se contrapõem à produção de política criminal alternativa, visando à despenalização e ampliação de hipóteses de aplicação de alternativas penais8. Dessa contraposição, verifica-se que a introdução de penas e medidas alternativas não implicou redução da utilização do cárcere como pena, mas ampliação do controle penal formal do Estado9. No mesmo sentido, Nalayne Mendonça Pinto afirma que movimentos políticocriminais diversificados indicariam a convivência, em tensão, de duas ordens legítimas no ordenamento jurídico brasileiro, punitiva e alternativa, mas que acabam produzindo o aumento da lógica punitiva do Estado. Segundo a autora, ao mesmo tempo em que a introdução de soluções alternativas não alterou os processos de incriminação sobre as populações que efetivamente são alvo da criminalização, polícia, juízes e promotores respondem com formas severas de punição e segregação às demandas dos veículos de comunicação e da sociedade por punição “justa10”. No que nos interessa mais diretamente, observa-se que a punição “justa”, pelo que se depreende desses estudos, não somente é relacionada a penas mais diversificadas, mas, sobretudo, a um tempo maior de duração, que aparte o indivíduo mais longamente da sociedade. Os fios aparentemente soltos até aqui se atam na mesma constatação: para as vítimas imediatas ou mediatas de condutas graves desconformes ao direito, a eternidade parece 8

Cf. do autor: « Tendências do controle penal na época contemporânea: reformas penais no Brasil e na Argentina », São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 1, mar. 2004. Neste trabalho, o autor chama atenção para o fato de que, quando da edição de leis tais como a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), as leis dos Juizados Especiais Criminais (Lei nº 9.099/95 e Lei nº 10.259/01) e aquela que garante a inclusão das penas restritivas de direitos (Lei 7.209/84), assim como a que ampliou suas hipóteses de aplicação (Lei nº 9.714/98), o que se visou não foi uma ampliação da tolerância ou uma renúncia do Estado ao controle de certas condutas, mas sim a procura por meios mais eficazes e menos onerosos para o controle. Ou seja, a ampliação dos espaços de incidência do direito penal não foi acompanhada pela descriminalização ou diminuição do rigor punitivo em áreas tradicionalmente abrangidas pelo controle penal. Compreendido enquanto resposta adequada a quase todos os tipos de conflitos e problemas sociais, o direito penal torna-se o instrumento estatal preferencial para gestão de condutas no espaço público. 9 Salo Carvalho, « Substitutivos penais na era do Grande Encarceramento », in Pedro Vieira Abramovay, Vera Malaguti Batista (Org.), Depois do Grande Encarceramento, Rio de Janeiro, Revan, 2010. 10 Da autora, cf. Penas e Alternativas: um estudo sociológico dos processos de agravamento das penas e de despenalização no sistema de criminalização brasileiro (1984-2004), Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.

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não bastar como punição, salvo raríssimas exceções a confirmar a regra. Ou não seria verdade que, ainda que excepcional, noticia-se vez por outra o perdão de um pai ao assassino, seja maior ou menor de idade, da filha estuprada e morta após a agressão sexual? Mas essa é uma outra história. A história oficial, prevalente e hegemônica até aqui, conta com outras alegorias e exemplos. Assim evocamos o filme argentino “O segredo dos seus olhos”, de Juan José Campanella, de 2009, em que um marido, ao perder a esposa em decorrência de um estupro e assassinato brutais, não aceita a justiça “dos homens” e decide, por si mesmo, a assegurar a “verdadeira” justiça: aquela que manteria o criminoso per-pe-tu-a-men-te em suplício. Este, ao safar-se da justiça do Estado por meio de uma corruptela jurídica revestida de graça presidencial, é capturado e mantido em cárcere privado pelo marido vitimado. Tal vingança e justiças privadas, que custodiam o algoz, condenando-o à “prisão” perpétua, que à lei cabia garantir11 e não o fez, são o índice exato do que, ainda que sob o véu do anonimato, as pesquisas de opinião exprimem e ratificam em diferentes edições. Sem entrar no mérito de referidas ações, uma vez que a proibição de penas degradantes e cruéis também, e ainda, faz parte do direito e deve ser respeitada, tem-se que tais índices, como alegorias ou expressões do real, devem compor a agenda de preocupação e reflexão dos que se debruçam sobre o tema.

2) As MSE e a condição peculiar do tempo na adolescência

No caso das MSE, a condição peculiar de desenvolvimento refere-se à condição acentuadamente particular de “ser adolescente”. De acordo com o ECA, em seu artigo 2°, adolescente é a pessoa entre 12 e 18 anos de idade, ou seja, um período circunscrito temporalmente, o que poderia indicar que a definição e compreensão acerca do conceito é facilmente resolvida. Entretanto, para pensar a responsabilidade infracional é fundamental considerar aquilo que está em jogo na adolescência para além do aspecto etário, não sendo possível desconhecer que esta é uma fase complexa da vida, permeada por inúmeros processos e experimentações. Assim, antes da reflexão acerca do tempo de acautelamento, é fundamental certa compreensão sobre a famigerada “condição peculiar” do adolescente, a que a própria lei faz referência em seus artigos 6°, 15° e 121° (ECA). 11

A prisão perpétua é ainda hoje admitida pelo sistema penal argentino. Atualíssima reforma do Código Penal prevê abolição da mesma, assim como a diminuição da pena máxima para 30 anos.

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A vivência do tempo na adolescência é composta por diversas dimensões que impõem a necessidade de dar conta (no sentido de um enfrentamento) de questões nada simples: mudanças no corpo; despertar da sexualidade; construção de uma nova identidade; produção de respostas a novas exigências sociais; separação dos pais; dentre outros. Definida como período situado entre a infância e a vida adulta no mundo ocidental, a adolescência está sob a égide do paradigma individualista de nossa sociedade e constitui para o sujeito um tempo de difícil suspensão. Para Contardo Calligaris12 trata-se de uma “moratória”, marcada por um hiato entre a maturação do corpo e ingresso na vida adulta, ou seja, um tempo de adiamento da entrada no mundo social que remete a um não-lugar. Além disso, a questão da adolescência está fortemente relacionada ao modo de organização do mundo atual. Olhar atentamente para o adolescente é encontrar aquilo que está em jogo no próprio laço social hoje. De acordo com Luciana Gageiro Coutinho13, o adolescente, esse sujeito em processo de subjetivação, presentifica os dramas de sua época, sobretudo uma época marcada pela crise das instituições sociais e pelo fato da transmissão dos ideais estar em dificuldade. O adolescente enfrenta, assim, de um modo totalmente radicalizado, particular e intenso os impasses que estão colocados para qualquer sujeito atualmente. Outra dimensão importante é um certo lugar de “ideal para a vida” encarnado pela adolescência ao refletir determinados valores em alta no mundo contemporâneo: busca de satisfação instantânea e sem entrave; apelo à auto-imagem e ao corpo; consumo sem limite e ilusão de liberdade plena. O sujeito adolescente encontra-se, então, nessa encruzilhada entre o lugar do ideal para a sociedade, o enfretamento de suas próprias questões, o não-lugar no mundo adulto e o lugar do “pior”, que se destaca no caso do adolescente autor de ato infracional. Diante de todas as especificidades do tempo adolescente, está posta a dificuldade: como tratar a questão no âmbito das MSE? Se não há uma resposta construída de antemão, talvez possamos, pelo menos, concluir que não se pode transpor de maneira simples a contagem do tempo para um adulto à contagem deste para um adolescente. Ainda que mudanças possam ser sugeridas na legislação, será preciso levar em conta a referida condição peculiar prevista pela lei, que nos remete à relação particular que o

12

Cf. A adolescência. São Paulo: Publifolha, 2009. Cf. Adolescência e errância: destinos do laço social no contemporâneo. Rio de Janeiro: Nau: FAPERJ, 2009. 13

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sujeito adolescente mantém com a questão do tempo. Neste sentido, propostas que pretendam um aumento demasiadamente longo do acautelamento podem eventualmente ser consideradas como um contra-senso, visto que esse tempo pode ultrapassar o próprio período tido como adolescência pelo ECA. O desafio está em considerar que para a vítima o resultado de um crime ou de um ato infracional é o mesmo, apesar da diferenciação que a doutrina e a lei propõem ao atribuir tratamento diferenciado ao adolescente. Preparar a sociedade para absorver a diferença entre um e outro, assim como entre seus agentes, parece ter sido até aqui tarefa das mais ingratas. Hannah Arendt em seu belíssimo texto sobre “A crise na educação” nos fala sobre a linha limítrofe que separa a infância da condição adulta, sua importante função e também suas imprecisões. A autora transmite a necessidade da diferença entre as gerações, ao mesmo tempo em que admite que não há uma regra geral para a linha traçada entre adultos e crianças, pois que varia com a idade, o país, a civilização e de indivíduo para indivíduo. O exercício de pensar a questão do tempo da MSE na socioeducação, construindo perguntas e problematizando seus aspectos, sem ceder de antemão ao clamor por maior rigor na punição e considerando as especifidades da adolescência, parece se alinhar com o pensamento de Arendt no sentido de comprender que o modo como são tratados os jovens reflete a organização de cada sociedade: “A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum14.”

O ECA, sem dúvida, é fruto de um reconhecimento importante da diferença entre adultos e adolescentes, e da necessidade de garantia da proteção integral de uma geração pela outra. Diante disso, a resposta ao ato infracional proposta pela citada legislação optou por tratar a questão do tempo, para a maioria das MSE, pelo viés da não-fixação de um prazo. Debruçaremo-nos sobre seus inconvenientes e vantagens.

3) Inconvenientes e vantagens da não-fixação do tempo das MSE

À luz de princípios tais como o da excepcionalidade, da brevidade e do respeito à referida condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, a aplicação da MSE de privação de liberdade se orienta (art. 121, ECA). A semiliberdade, como MSE de 14

Cf. “A crise na educação” in Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 247.

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restrição de liberdade, atende, no que couber, as disposições vigentes para a MSE de privação (art. 120, § 2°, ECA). Em um ponto crucial convergem: ambas não comportam prazo determinado, devendo ser mantidas ou reavaliadas segundo decisão informada e fundamentada do sistema de justiça no máximo a cada seis meses (art. 121, § 2°, ECA e art. 42, Lei 12.594, SINASE). Essas disposições, associadas à vedação de que tais MSE excedam, em qualquer hipótese, o prazo de três anos (§ 3° do referido artigo 121), representam um dos maiores imbróglios com os quais se devem confrontar os operadores do direito e de todos os horizontes disciplinares afetos à seara socioeducativa. Ao dispor assim, a legislação deixa aberta tanto a possibilidade de desligamento quanto de manutenção do adolescente na MSE – esta podendo se configurar como progressão ou regressão, uma vez respeitado o limite legal de três anos. Sondemos, então, sobre o imbróglio. Ele se situa no fato de que, não sendo o “tempo” critério para cumprimento da MSE, outros critérios devam ser estabelecidos, como de fato o são, segundo a lei, e que os mesmos são dificilmente objetiváveis, o que deixa margem a um casuísmo paradoxalmente execrado e apreciado como necessário. Segundo os termos legais (SINASE), a questão se apresenta assim: Art. 43: A reavaliação da manutenção, da substituição ou da suspensão das medidas de meio aberto ou de privação da liberdade e do respectivo plano individual pode ser solicitada a qualquer tempo, a pedido da direção do programa de atendimento, do defensor, do Ministério Público, do adolescente, de seus pais ou responsável. § 1o Justifica o pedido de reavaliação, entre outros motivos: I - o desempenho adequado do adolescente com base no seu plano de atendimento individual, antes do prazo da reavaliação obrigatória; II - a inadaptação do adolescente ao programa e o reiterado descumprimento das atividades do plano individual; e III - a necessidade de modificação das atividades do plano individual que importem em maior restrição da liberdade do adolescente. § 2o A autoridade judiciária poderá indeferir o pedido, de pronto, se entender insuficiente a motivação15.

Uma leitura rápida do dispositivo enseja um sem número de questões que, na prática, assim como será esboçado no próximo tópico, compõem o dia a dia das equipes responsáveis pelos programas de execução socioeducativa. Avançamos algumas delas: como sabido, o prazo para reavaliação da MSE é de no máximo seis meses, mas pode ser, a qualquer tempo, solicitada por uma vasta gama de agentes que mantêm com o adolescente tipos diversos e numerosos de vínculo: ou seja, não falam todos do mesmo lugar. O olhar de um agente pode-se confrontar com o de outros, relegando 15

Nós grifamos.

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definitivamente à autoridade judiciária a prerrogativa de, informada por observações díspares, decidir pela permanência ou não do adolescente na MSE. Perguntamo-nos quantas vezes equipes inteiras (dos adolescentes falaremos depois) se frustraram após, protocolado um pedido favorável de desligamento, receberam resposta negativa, seja pela interposição do Ministério Publico ou, em última instância, da Vara Infracional. Atuando direta e diuturnamente com os adolescentes, o trabalho de referidas equipes é posto em xeque por decisões que podem, por vezes, questionar posicionamento que se revela de todo evidente na rotina de unidades socioeducativas. Por outro lado, as expressões “desempenho adequado” ou “inadaptação do adolescente” parecem carecer de um núcleo duro de sentido, que facilite sua interpretação. Apresenta “desempenho adequado” o “normopata”, que sem questionar o Plano Individual de Atendimento (PIA), o regimento interno, as comissões disciplinares, segue cativamente a rotina das unidades, fiando-se no final irrevogável e máximo de três anos de medida? Ou “desempenho adequado” seria também aquele de um adolescente que, desgarrado há muito de toda sorte de referência e enlaces normativos, tenta, pouco a pouco, entre cristas e muitos vales, encontrar a medida possível a que poderá responder? Não se sabe. O argumento válido em uma decisão pode não ser em uma segunda. O parecer de um juiz plantonista pode divergir dos dos titulares e auxliares. E sabemos, com Albert Camus e seu O Estrangeiro, que a justiça proferida pela manhã difere daquela prolatada no adiantado da noite – homens e mulheres fazem a justiça, lembremo-nos. As impressões das equipes chegam em forma de relatórios e discussões de caso ao conhecimento do sistema de justiça que, a partir daí e no contexto trufado por todas essas possíveis variáveis, vai enfim se posicionar. Feito em contraditório, o procedimento vai, então, levar em consideração vozes diversas (o adolescente infrator é muitíssimo vigiado!) e muitas vezes dispersas: todas elas singulares, todas elas com suas referências e expectativas/enlaces normativos próprios. Que solidão, que ingratidão a tarefa de decidir, em meio a tanto impasse, latente ou manifesto: o juiz sofre?! Podemos convir que sim, e a ele cabe ainda a prerrogativa/tarefa hercúleas de “indeferir, de pronto” o pedido de reavaliação, uma vez que a motivação não lhe pareça suficiente. Juiz ele mesmo, João Batista da Costa Saraiva é um dos que se indignam contra esse estado de coisas: “Esta circunstância estabelece uma ampla (e indesejável) margem de discricionaridade ao Juízo das Execuções, haja vista a precariedade de critérios para aferição dessa qualidade (a aptidão do adolescente ao retorno ao convívio social), máxime ante a ausência de uma norma reguladora do processo de execução. De qualquer sorte, a ordem legislativa vigente limita a

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três anos o tempo que o Estado dispõe para manter o adolescente incluído nessa espécie de medida socioeducativa. Tal período resulta muito largo para a maioria dos adolescentes internados, mas poderá ser insuficiente em alguns casos, seja enquanto mecanismo de defesa social, seja enquanto instrumento de construção de uma prospota pedagógica eficaz16”.

Todos os elementos trazidos até aqui podem apontar na direção de uma arbitrariedade que, longe de contemplar a proteção integral do adolescente, lança-o na roda-viva de olhares, interpretações, opiniões que se conciliam apenas precariamente. E a ansiedade do adolescente? E sua expectativa a cada reunião de equipe? E sua ira, uma vez presente o sentimento do dever e da meta “cumpridos”, a decisão o impede de reganhar a liberdade? Sentir-se-ia um joguete entre equipes técnicas e sistema de justiça, em uma reedição, ainda que atenuada, da doutrina da situação irregular? Quadro dos mais difíceis, ele não se encerra aqui, no entanto, uma vez que há – e parecem majoritários! ‒ os que defendam os efeitos virtuosos da incerteza quanto ao tempo de cumprimento da MSE. A argumentação parece simples, mas se sofistica à medida em que nela se aprofunda: “se não é o decurso do tempo que vai me tirar daqui, o que vai ser?” – pode-se indagar o adolescente. Ou seja, a indeterminação pode deixar oportunidade para enlace e engajamento do adolescente na MSE, determinando assim seu movimento em direção à liberdade. O outro lado da moeda da indeterminação seria, então, a possibilidade de ser instaurada uma pergunta do lado do adolescente, que, no lugar de esperar o tempo passar (tarefa já bastante difícil), poderia fazer algo com seu tempo de medida. Fazer um “bom uso” de seu tempo, ao invés de assistir a passagem dos meses, parece ser o intuito daqueles que entendem que a execução das MSE deve criar condições para favorecer uma reflexão sobre o ato, sobre a vida (escolarização, profissionalização, família etc) e uma construção de um futuro diferente. Que cada adolescente possa, a partir de seu momento, se haver com sua inserção na criminalidade, rever sua vida e assim construir o tempo da MSE (podendo, inclusive, ser liberado antes do esperado) encerra certa crença no humano, uma tentativa de evitar o “roubo” puro e simples do tempo do autor de ato infracional sem lhe oferecer condições à produção de algo novo, tal como no supracitado filme “O segredo de seus olhos”. Entretanto, ocorre que esse questionamento sobre o ato e a vida pode se instalar para alguns, reposicionando-lhes as escolhas, enquanto outros podem passar grandemente ao largo

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Do autor, cf. Compêndio de Direito Penal Juvenil, Adolescente e Ato infracional, 4° edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 173.

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da mesma pergunta, o que oferece forma e força ao lado discricionário da moeda da não-fixação do tempo. Seria essa a história de todo mundo17? Vale sondar sobre o que animou os legisladores ao deixaram a “porta aberta” para a indeterminação de que falamos. Análises diversas são unânimes em apontar que a indeterminação legal se justifica tendo em vista a necessidade de se explorar o potencial de conscientização do adolescente quando do cumprimento da MSE. Assim se manifesta, por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em relatório recente: “O processo socioeducativo é formado por alguns instrumentos essenciais que se completam, sendo que as corretas utilização e aplicação dessas ferramentas auxiliam a ressocialização do adolescente em conflito com a lei. O Plano Individual de Atendimento (PIA) é mencionado no SINASE como um instrumento pedagógico fundamental para garantir a imparcialidade no processo socioeducativo, sendo que o crescimento institucional do adolescente é ligado diretamente às conquistas das metas estabelecidas pelo PIA. Com o passar do tempo, o jovem pode apresentar avanços (fase intermediária) até chegar ao nível de conscientização do seu processo socioeducativo (fase conclusiva)18”.

O relatório evoca um processo socioeducativo ideal, em que o “crescimento institucional” é vinculado à performance do adolescente com relação às metas estipuladas. Fundamental, o respeito às tais metas pode, no entanto, não dar conta, sozinho, do processo de enlace (e sobretudo de desenlace) do adolescente com a MSE, uma vez que o mesmo se apresenta como complexo e dificilmente apreensível a partir de rotinas fixas. Ou seja, cabe aos agentes envolvidos dar um passo a mais, sem descuidar, contudo, daquelas rotinas. Tarefa mais uma vez hercúlea, cuja dificuldade foi recentemente formalizada em pesquisa do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) sobre as MSE de internação e semiliberdade, senão vejamos: “Entre alguns dos aspectos falhos apontados nos relatórios de reavaliação estão a falta de posicionamento conclusivo da equipe multidisciplinar quanto à manutenção, progressão ou regressão da medida socioeducativa, bem como

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Os próprios adolescentes nos indicam o tamanho do engajamento necessário para lidarem com suas atuações e, quem sabe, rever suas vidas. Muitos afirmam a vontade de ir para a prisão ao invés de cumprir uma MSE, sem necessariamente ter, assim, que falar sobre o ato, retomar vida escolar etc. Para ilustrar, evocamos o momento de uma intervenção em grupo com adolescentes franceses acautelados num Centro Educativo Reforçado (CER) - Centre Éducatif Renforcé - (dispositivo similar ao sistema socioeducativo brasileiro), em que os adolescentes comparam a prisão ao CER: “A prisão é melhor, você não trabalha, você fuma o tempo todo e tem televisão”. E ainda afirmam a preferência por um regime mais rigoroso no lugar de outro que pressuponha certo engajamento subjetivo: “aqui é o Club Med; é melhor quando é rigoroso; no Marrocos, a gente tem o maço (de cigarros) no bolso”. Cf. Bruna Albuquerque, Agent de Sécurité Socio-Éducatif. Master 2 Recherche Spécialité Psychopathologie et Études Psychanalytiques: Subjectivité, Connaissances et Lien Social. Faculté de Psychologie et de Sciences de l’Éducation, Université de Strasbourg: 2009. 18 Cf. Panorama Nacional, A execução das medidas socioeducativas de internação, Programa Justiça ao Jovem, CNJ, 2012, p. 30. Nós grifamos.

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a utilização de formulários-padrão, com prejuízo da análise individualizada do cumprimento da medida19”.

Voz aparentemente dissonante, o magistrado Leoberto Narciso Brancher, da Vara da Infância e Juventude de Caxias do Sul (RS), propõe dosimetria de tempo para a MSE, em correlação ao Código Penal. Ao intervir no Fórum Nacional de Justiça Juvenil (FONAJUV, abril de 2013, Espírito Santo), com palestra entitulada: “Unificação de medidas socioeducativas: a sentença como parâmetro máximo da privação de liberdade ou restritiva de direitos”, Brancher acusa o atual sistema de aprisionar o socioeducando nas mãos do Estado, com uma indeterminação temporal que “angustia” o mesmo. Segundo o magistrado: “Temos o desafio histórico de estabelecer esses parâmetros. Precisamos propor um sentido no tempo de cumprimento da medida, discutir a função desse tempo. Na prática, o reeducando enxerga a medida como punição e hoje ele chega ao sistema com uma infração leve e recebe a mesma punição de alguém com uma infração grave20”.

Ao afirmar o sucesso do modelo de dosimetria em países como a Espanha, Brancher denuncia a ausência de uma “doutrina penal juvenil”, que garanta prazos determinados e retire o juiz da “areia movediça da discricionaridade”. Com base em sua experiência jurisdicional, o magistrado propõe a proporção de 1/10 das penas imputadas pelo Código Penal aos atos infracionais de adolescentes, considerando que o tempo máximo de medida socioeducativa para um adolescente, de três anos, equivale a 10% do tempo máximo previsto pelo artigo 59 para um adulto, que é de 30 anos. À guisa de exemplo, onde o adulto fosse condenado a 20 anos (vide homicídio simples), ao adolescente não poder-se-ia impor MSE superior a 2 anos por ato infracional análogo. Longe de encerrar a questão, o raciocínio descrito evidencia que o tema relativo ao tempo de cumprimento das medidas não somente embaraça equipes técnicas, assim como veremos a seguir, mas que põe também o sistema de justiça sob o fogo cruzado de diversas saídas possíveis e aparentemente irreconciliáveis entre si.

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O tempo de Pedro: entre o ideal e o possível

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Cf. Um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes, Relatório da Resolução n° 67/2011, CNMP, 2013, p. 62. 20 Cf. site do Ministério Público do Espírito Santo, consultado no dia 18 de abril de 2014, no endereço: http://www.mpes.mp.br/conteudo/CentralApoio/conteudo6.asp?codtexto=5816&tipo=2&cod_centro=17.

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A equipe de semiliberdade nos faz conhecer Pedro21. O adolescente foi acolhido por uma equipe que pôde se dividir em relação ao seu desligamento, que se deixou interperlar pelo caso, suportou ser colocada em xeque e que instaurou, a partir do singular, uma pergunta para a própria política: qual o tempo de uma medida? No encontro com a instituição, Pedro teve sua história revisitada e escutada. Em sua vida, os fios soltos dos grandes dilemas e paixões do humano: o lugar do pai, o excesso da mãe, as guerras, o amor, a busca pela construção de uma identidade, a pergunta sobre como ser homem e o encontro com uma mulher, enfim, a luta por um lugar no laço social e no desejo do outro. Pedro nos introduz, a seu modo, ao mundo subjetivo e social de boa parte dos adolescentes que atendemos: adolescência “curto-circuitada” pela entrada na criminalidade e pela violência, convivência familiar e comunitária (bairro, amigos, diversão) misturadas ao tráfico, sem que nada disso o livre da tarefa adolescente angustiante de constituição de um lugar para si no mundo adulto. O envolvimento de Pedro com o tráfico começa aos 12 anos, de fato no primeiro ano da adolescência prevista pelo ECA, no limite de sua vida infantil. O final da infância e o tempo de ser adolescente foram assim atravessados pela prática de atos infracionais, inclusive atos graves. Inicia o cumprimento da medida de semiliberdade aos 14 anos e, apesar da pouca idade, nos põe a pensar sobre o tempo das MSE “eu não quero passar minha vida de menor preso”. A vida “de menor”, tem duração de 6 anos (dos 12 aos 18), tempo que corresponde à boa parte de toda a vida de Pedro. Assim, para refletir sobre a duração das MSE, não se pode prescindir de tocar a questão da vivência subjetiva do tempo e de suas especificidades na adolescência. O adolescente ainda nos interroga quanto ao objetivo do cumprimento: “eu não estou mais envolvido, isso não é o mais importante?”. O que esperamos do adolescente? O que ele precisa fazer para ser desligado? E, talvez a pergunta fundamental para o tema sobre o qual nos debruçamos: qual expectativa institucional cabe no tempo de um cumprimento que não comprometa o princípio da brevidade? Pedro permanece na medida de semiliberdade sem evadir, diga-se, uma das MSE mais difíceis de ser cumprida, posto que convoca, a todo momento, a decisão e a responsabilidade de quem a ela está submetido. O adolescente está às voltas com o lugar

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A reflexão que segue foi feita com base no texto “O tempo do sujeito e da instituição: qual o tempo de uma medida?”, de autoria de Thais Limp Silva, Cássia Machado Porto, Ana Terra Rosa Ferrari, Irene Correa Cavaliere e Emiliane Silva Andrade.

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do pai na sua história, com uma mãe que “mal-fala” o filho e com sua posição na relação com o outro. Em meio a esse turbilhão, aos 14 anos, vê-se numa instituição, obrigado à convivência diária com outros adolescentes, com as equipes, a cumprir horários, regras, a passar por comissões disciplinares diante de suas transgressões. Transgressões que frequentemente coincidem com sua maneira de estar no mundo e de responder na relação com o outro. Cumprir uma medida socioeducativa não é tarefa simples. Diante de um furto, Pedro volta para responder pelo ato e se depara com um “sim” da equipe, que o acolhe e valida a importância de seu movimento, diferenciando-o das posturas agressivas e irrefletidas. A equipe da unidade escuta e acolhe a singularidade do jovem e trabalha a partir do seu jeito de lidar com a lei. Pedro teve sua liberdade restrita durante meses pela MSE, vinculou-se à instituição, endereçou à equipe os fios de sua história e suas atuações e pôde aprender a negociar com o outro de uma maneira menos destrutiva. Não cumpriu idealmente os eixos da MSE, sendo esta uma das questões que o caso nos coloca. Diante de um não cumprimento dos eixos, deve o adolescente permanecer invariavelmente os três anos máximos? O tempo do cumprimento de medida não pode ser um tempo para se responder idealmente a todos os eixos e tampouco um tempo da expectativa de “vingança” do senso comum. O tempo da MSE, por não estar determinado legalmente, está atrelado ao tempo possível do avanço de cada um, faceta ao mesmo tempo preciosa e perigosa da MSE, tal como vimos. O caso de Pedro nos transmite dois lados cruciais da questão da não-fixação do tempo nas MSE: há o tempo do sujeito, mas há também o tempo da instituição. Ressalta-se que se o tempo não está determinado previamente para o adolescente, tampouco o está para a instituição, que terá ela mesma que lidar com essa indeterminação, sua angústia e suas possibilidades. A instituição terá o papel de apressar-se em seus encaminhamentos e criar condições para que o adolescente possa trabalhar seu tempo da melhor forma. Pedro pode não ter aprendido a “contar até dez”, como disse a equipe, mas parece ter aprendido, diante de seus rompantes, maneiras de contar até 5 e de negociar com o outro, e isso não é pouca coisa para um adolescente às voltas com todas as questões do adolescer. A aposta é que os efeitos dos avanços alcançados no contexto institucional possam incidir na vida infracional dos

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adolescentes. Este parece ter sido um razoável cálculo para o tempo de cumprimento da medida de Pedro22.

Conclusão A reflexão até aqui desenvolvida nos força a concluir brevemente: longe de se encerrar apenas em argumentos a favor e contra à não-fixação de tempo determinado para o cumprimento das MSE, o tema da privação e restrição de liberdade deve ser constantemente inscrito na crítica e na vigilância dos princípios do acautelamento propriamente dito. O tempo ou não-tempo das MSE apenas se anuncia como um delicado problema porque é precedido de problema maior que é o acautelamento em si. Este, como expressão do poder normalizador e de submissão das instituições de Estado sobre os indivíduos23 e como ofensa maior à liberdade dos mesmos, deve ser reservado aos casos que, de fato, o ensejem – assim como estipula a lei tão justamente. Lembramos, “sem ilusão”, as palavras precisas de Luiz Eduardo Soares: “Privação de liberdade apenas para aqueles que, tendo cometido violências, representam um risco. Isso não tem a ver com justiça. Tem a ver com o convívio pragmático de uma situação ameaçadora. Mas não nos iludamos. Não pensemos que estamos fazendo justiça com isso. Uma penitenciária (uma unidade socioeducativa?) não pode ser o ponto final de nossa trajetória civilizatória24”.

Assim, uma vez confirmadas as hipóteses que autorizam o acautelamento e enquanto perdurar o entendimento legal sobre a não-determinação de tempo para cumprimento de MSE, cabe às equipes e ao sistema de justiça o desafio: prepararem-se para lidar com a complexa missão de, não cedendo aos clamores vindicativos próprios ou alheios, encontrar na medida do tempo o tempo da medida para cada história singular, uma vez que, para terminar por onde começamos : “(...) somente a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas”, (Raduan Nassar, Lavoura Arcaica).

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No sistema socioeducativo há inúmeros casos de difícil cálculo, sobretudo quando envolvem atos infracionais graves. A título de exemplo, citemos de maneira resumida o caso de um adolescente que recebeu a medida de internação pela prática de um latrocínio. Poderia este adolescente ser desligado após apenas alguns meses de cumprimento? A equipe da unidade sustentou que sim, com base na construção e no acompanhamento do caso. O adolescente havia cometido o ato há mais de 1 ano, ou seja, recebeu a internação 1 ano após a data do ato. Tratava-se do único ato do adolescente, que comparecia a todas as audiências durante o processo, ao qual respondeu em liberdade. Além disso, sua participação no ato infracional havia sido residual, não tendo estado ele na cena na hora do fato. O adolescente foi apreendido trabalhando, sendo que o empregador apontou e continua a apontar a vontade de recebê-lo de volta no serviço. Dentro da unidade o adolescente ainda auxiliava numa oficina de inclusão digital. Nesse caso, deve a não-fixação do tempo ser utilizada a favor do adolescente ainda que este tenha cometido um ato extremamente grave? 23 Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison, Paris, Gallimard, 1975. 24 Cf. Justiça – pensando alto sobre violência, crime e castigo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011.

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Para citar este artigo: NICÁCIO, Camila S. e ALBUQUERQUE, Bruna S. Tempo sem medida, medida sem tempo. In: MOREIRA, Jacqueline O.; GUERRA, Andréa M. C.; PEDROSA DE SOUZA, Juliana M. (orgs). Diálogos com o campo das medidas socioeducativas: conversando com a semiliberdade e a internação. Curitiba: Editora CRV. 2014. P. 85-102.

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