Tempos de sofisma

July 13, 2017 | Autor: Mércio Gomes | Categoria: Critical Discourse Analysis, Heraclitus
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Reflexões hiperdialéticas (1)

1. Tempos de cinismo e de sofismas


Vivemos tempos de cinismo e de sofismas. Cinismo, porque poucos são os que acreditam na boa vontade das pessoas, na sua honra inata, em suas intenções declaradas. Ao contrário, a ninguém é dado o crédito de estar dizendo a verdade, ou ao menos, dizendo aquilo que pensa ser verdade. Há algo sempre por trás de tudo que se diz e é dito, e quem quiser se proteger ou se dar bem na vida tem que andar com um desconfiômetro embutido na mente. Desconfie de todos, porque você é desconfiado por todos.

O mundo atual também é dos sofistas, isto é, daqueles que acreditam que nada é permanente, que a procura da verdade é uma busca inútil, pois ela não existe como tal, está só na mente das pessoas, que é algo que cada um tem em sua mente. Para que aprender, para que estudar, se você já tem sua própria verdade?! Aqueles que dizem que lutam pela verdade seriam ingênuos, tolos, no mínimo, se não pessoas falsas e intelectualmente atrasadas. O que vale, portanto, na vista dos sofistas atuais, é tão-somente o poder. Tudo se faz no mundo a partir do poder e com vistas a se ter poder, mais poder. A verdade só existe como imposição do mais forte. Outro dia ouvi um colega dizer que uma coisa só é verdadeira ou universal quando ungida pelo poder, quando dita por alguém que tem poder, e, portanto, quem não tem poder não pode presumir que o quê diga poderá ser tomado como verdade.

Assim, o cinismo que prevalece nos nossos tempos, junto com seu correlato, o sofisma, têm a mesma razão de ser: eles trabalham para que o mundo seja compreendido como algo que aí está, um dado sem contornos claros porque em perene transformação no seu modo de ser, impalpável e elusivo. Um ser efetivamente sem essência, sem racionalidade, sem destino, apenas dominado pela presença irremovível, onipresente e onipotente (com perdão do pleonasmo) do poder. Tudo que existe é relativo a outra coisa também relativa – eis o único sentido que é aceitável pelo cinismo e pelo sofisma.

Existiria visão filosófica do mundo mais adequada para se aceitar e justificar as mazelas brasileiras -- a corrupção generalizada, a incompetência entranhada, os desvios de verbas públicas, a malemolência no trabalho, o cinismo político, a indiferença à sorte dos mais sofridos, o autoritarismo sistemático, a desmoralização das instituições, o desperdício de nossas riquezas e a falta de espírito de indignação pessoal diante de tudo que estamos vivendo no Brasil – e não menos esse pastiche de CPMI que o Congresso está teatralizando a contragosto e sem intenção moral, a não ser para embaralhar nossos poucos sentimentos de indignação?

Infelizmente, não. O cinismo e os sofismas nos dominam a todos. Não conseguimos sair dessa prisão de interpretação do mundo em que vivemos. Tudo que falamos, muito do que pensamos, tanto mais do que sentimos são frutos desse tempo, justificado por essa visão filosófica do mundo.

Como sair dessa armadilha? Não é fácil, nem é rápido. O mundo em que vivemos, dominado pelo capitalismo cada vez mais estruturado por um agente inconsciente, que também é uma estrutura impessoal, cada vez mais interligado mundialmente, e cada vez mais dependente do desejo, do consumo e do gozo, necessita de uma visão filosófica como esta. A impermanência das coisas, a incerteza das ações, a indiferença ética são justificadas filosoficamente. Assim, enquanto durar esse tipo de capitalismo a visão cínica e sofista do mundo prevalecerá. Resta apenas a nós lutar para criarmos uma consciência dessa realidade avassaladora para darmos os primeiros passos para dela escapar.

Esse site vai abrir espaço para essa discussão.

Primeiro, não adianta tentar voltar à religião, nem à sua lógica dominante. Não será um Deus que nos fará ver o mundo diferente do que o vemos agora, pois, no modo em que Deus é propagado prevê-se tão-somente o retorno ao poder eclesial ou ao obscurantismo. Também não adianta querer se mobilizar para fazer uma revolução à la União Soviética ou China ou Cuba, porque aí o bolo se mostrou intragável, azedo e putrificado. Nem cristianismo, nem dialética marxista nos levarão para um caminho de tomada de consciência suficiente para vencer os problemas que nos afetam.

O domínio da lógica da diferença, que se coaduna com o cinismo e o sofisma, é quase completo no mundo atual




Porém, faça-se justiça, não são necessariamente da mesma raiz. Na verdade, os "cínicos" originais, da Grécia Antiga, se presumiam homens dignos que buscavam a felicidade vivendo do modo mais simples possível – o contrário dos cínicos da atualidade. Já os sofistas de outrora se presumiam homens sábios, professores e preceptores, capazes de ensinar aos outros a se comportar no mundo público, utilizando os meios de retórica e a visão de que qualquer pessoa tem sua verdade e pode ser o que quiser. Sobretudo os que tiverem dinheiro e poder. Nesse aspecto os sofistas de outrora se parecem com os atuais, conforme Platão nos ensina.

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