Tempos e lugares no Inhotim

July 21, 2017 | Autor: D. Garcia Alves J... | Categoria: Arte Contemporanea
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Tempos e lugares no Inhotim
Douglas Garcia Alves Júnior

Estive na inauguração dos novos pavilhões de obras de arte contemporânea do Inhotim, em 06 de Setembro de 2012. A organização do evento disponibilizou aos convidados micro-ônibus para o deslocamento entre Belo Horizonte e o Inhotim, que fica a 60 Km de distância. Já estive lá algumas vezes, e o caminho também sempre me pareceu muito interessante.
Dessa última vez, no micro-ônibus, antes de sairmos, algo já começa, e afeta a mim e aos companheiros de viagem, artistas plásticos, críticos e curadores de diversos países. No fundo do ônibus, vejo dezenas de pernilongos, que voam entre as janelas fechadas. Certamente eles vieram de Inhotim, é a primeira coisa que penso. As janelas não abrem, no ônibus refrigerado há poucas e pequenas escotilhas que permitem pouca circulação com o exterior. Do fundo do meu espanto, observo, ao meu lado, um famoso artista plástico brasileiro, que não titubeia. Em pé, ele se põe a matar os pernilongos, com golpes certeiros das palmas da mão. Ele se mostra totalmente concentrado em seu trabalho. Enquanto eu consigo matar dois ou três pernilongos, ele mata três vezes mais. Em dez minutos quase não há mais desses emissários alados do Inhotim no micro-ônibus.
Em Sarzedo, já fora de Belo Horizonte, há muito que ver. Um belo campinho de futebol, onde, do alto de uma pequena encosta, repousam graciosos troncos de árvore que servem de banco aos espectadores. Uma mulher jovem espera para atravessar a rua, em espantoso equilíbrio: na mão direita leva um filhote muito pequeno de cão, na mão esquerda, enlaçada ao braço, uma tábua de passar roupa dobrada. Eu jamais seria capaz de equilibrar a suavidade da pressão em um dos braços com o excesso de força no outro. Entre as casas simples, de tijolos à vista, sobre um muro baixo avisto um porquinho de cimento, apontado de frente para a rua.
Em Inhotim, mais companheiros de viagem: avisto muitos senhores e senhoras idosos, bem compostos, com seus bonés e bolsas. São os que me chamam mais a atenção. Penso que serão meus colegas de idade, num futuro próximo. Meus contemporâneos, de algum modo, mas em outro tempo.
Visito o belo pavilhão onde está a obra Ttéia n. 1, de Lygia Pape. A presença de centenas de fios dourados dispostos diagonalmente, em posições variadas, na grande sala escura, assume quase imediatamente um aspecto espiritual. Num canto da sala, volto-me em sentido contrário à obra e o que eu vejo é a escuridão total. Parece que não apenas se vê a escuridão, mas se ouve, ou se toca. "Ttéia", com sua evocação da ligação frágil e brilhante de chão e teto, parece imobilizar o tempo.
Na Galeria Terra, vejo obras de diversos artistas. Destaco o argentino León Ferrari. Há uma grande parede, de dezena de metros, toda coberta de desenhos em papel heliográfico. Sou transportado à infância, aos desenhos de plantas industriais de meu pai engenheiro. León Ferrari começa com plantas de estruturas muito parecidas com as quais estamos acostumados. Desenhos em que aparecem como ilustração acessória homenzinhos que indicam os lugares onde se pode circular pelo espaço. O artista desenha espaços cada vez mais fragmentados, disfuncionais e hostis à circulação. Os homenzinhos desenhados comparecem em número cada vez maior, sugerindo um espaço infernal, onde seria impossível viver. A utilidade e a funcionalidade são radicalizadas até seu contrário absoluto, o espaço arruinado e hostil a toda utilidade ou prazer humanos. O efeito de incômodo é forte.
Almoço no Restaurante Hélio Oiticica. Felizmente, sua arquitetura é o oposto dos pesadelos da razão de León Ferrari. Seu princípio organizador é a permeabilidade entre o espaço externo e o interno. Paredes e até mesmo o teto são parcialmente vazados, o que cria um espaço de circulação que dilui a distinção dentro-fora na mesma luminosidade. É possível avistar um belo lago, em frente. Presto atenção em um companheiro idoso, cineasta, de chapéu branco. Quando saio do restaurante, ele está sentado na grama, só, olhando para o lago. Em que estará pensando?
Dirijo-me a Galeria Dóris Salcedo, uma de minhas preferidas. Impressiono-me mais uma vez com sua simplicidade e força. É uma grande sala branca, sem nenhum objeto exposto. Toda a parte externa da pintura da parede é perpassada, do chão até o teto, por finas tramas de aço. Elas "saem", por vezes, da parede e "voltam" a misturar-se à superfície da parede. Há um jogo entre aparência e estrutura que tem o impacto de fazer sentir que se está em uma prisão, e que ela talvez se prolongue para fora da Galeria, sem que estejamos acostumados a vê-la.
Visito o "Sonic Pavillion", de Doug Aitken, que visto de baixo lembra um disco-voador no alto de uma colina. Uma estrutura circular, toda revestida de paredes de vidro. Chega-se perto do vidro, olha-se um pouco de lado, intuitivamente, e não se vê o exterior, o vidro é opaco. Anda-se em círculo, acompanhando o vidro, e o vidro deixa ver a paisagem lá fora. Ele fica transparente à medida que andamos. Olha-se para trás, e o vidro está lá, dessa vez opaco. Penso na mesma hora que talvez possa ser uma imagem do tempo: o futuro, à frente, opaco; o presente ganha transparência, que é perdida continuamente em partes opacas de passado, que se amontoam às nossas costas. No meio do salão circular, contudo, é possível ver em todas as direções, o vidro se revela todo transparente. Imagem da eternidade, fora do tempo?
Volto ao pavilhão de Miguel do Rio Branco. Permaneço um longo tempo na sala que abriga sua mais bela instalação. São projeções de três grandes planos colados de imagens, que mostram uma espécie de síntese do planeta Terra. Imagens do mundo orgânico, dos animais e plantas, do mundo inorgânico, das grandes formações rochosas e do mundo humano, especialmente de rostos, quase sempre mostrados parcialmente, em olhos, e de mãos. Há uma sequência sonora belíssima, durante toda a projeção. Ela é feita de peças eruditas, como Gymopedie, de Eric Satie e de canções americanas antigas, além de justaposições sonoras de sons humanos, como um acalanto, risos de crianças e vozes indistintas. As imagens, o tríptico de imagens é projetado de modo sincrônico, de modo que sempre temos que acompanhar a lenta modificação do campo visual. Penso novamente no tempo: as imagens triplas em lento movimento evocam uma interpretação possível da estrutura do tempo. Estaríamos sempre imersos no passado, no presente e no futuro, e os três mudariam sempre.
Avisto o pavilhão de Adriana Varejão, que parece flutuar sobre as águas. Demoro um pouco para entrar. Decido-me a entrar acompanhando um grupo de cerca de doze falantes de espanhol. Eles atravessam todo o andar térreo quase sem olhar para as obras ali expostas e avançam ruidosamente para o segundo andar, que percorrem ainda mais rapidamente. Em menos de dois minutos todos já saíram do edifício, apressados. Nunca vi nada igual. Olho para as paredes devassadas, tomadas por vísceras de vermelho intenso, na obra de Varejão. A presença do orgânico, com seu tempo vacilante, o tempo da duração, é coberta pelo material inorgânico das paredes, mas estas desabam em pedaços, e deixam ver o tempo depositado nelas. Para quem parar para perceber. Ganhar tempo pode ser perder tempo.
Visito finalmente a instalação "Através", de Cildo Meireles. Um mundo de transparências, barreiras, que convida e repele nosso olhar. Passar por cima dos pedaços de vidro deixados no chão provoca uma sensação de instabilidade, mas também de prazer. É como se fossemos convidados tardios chegando após uma quebradeira geral das coisas, que deixou tudo desorganizado. Aqui a prisão se confunde com o parque de diversões, o laboratório de ciências com o pesadelo.
Volta a Belo Horizonte, ao pôr do sol.
Ao deixar o Inhotim, a cidade de Brumadinho não parece mais tão pacata quanto anos atrás. Nossa volta ao mundo da utilidade é imediata: vemos lojas de tintas, de colchões, de móveis. Um ambiente animado. Na periferia de Brumadinho, voltam as casas modestas. Vejo uma marcenaria de aspecto surrealista, em que madeira cortada se confunde com um automóvel, máquinas e árvores. O conjunto chama a atenção: tem um nítido "corte" de arte contemporânea. Ao fim da tarde, vejo dois meninos brincando, se esgueirando pela parede lateral de uma casa, como se dançassem. Vejo uma colcha de retalhos colorida pendurada em um varal, mas é muito rápido, com o movimento do ônibus.
O pôr do sol fica cada vez mais belo, e alguns companheiros de viagem sacam suas máquinas fotográficas. O azul é tingido de rosa, há um espaço alaranjado entre eles. Antes da noite avançar, da noite que todos prevemos, recolhemos pequenos cacos que tornam o tempo transparente a nós mesmos, mas é muito rápido.





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