Tendências: Caderno de Ciências Sociais, n. 07, 2013

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI

TENDÊNCIAS Caderno de Ciências Sociais

Crato, 2013

UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI Reitora: Antônia Otonite de Oliveira Cortez Vice-reitor: José Patrício Pereira de Melo Pró-reitora de Pesquisa e Pós-graduação: Maria Arlene Pessoa da Silva Diretora de Centro: Lireida Maria Albuquerque Bezerra Chefe de Departamento de Ciências Sociais: Roberto José Siebra Maia Coordenador do Curso de Ciências Sociais: Leandro de Oliveira

EXPEDIENTE

Editores:

Roberto Marques Leandro de Oliveira

Conselho Editorial

André Alcman (URCA) • Antônio dos Santos Pinheiro (URCA) • Bruno de Vasconcelos Cardoso (IFCS/UFRJ) • Camilo Braz (PPGAS/UFG) • César Barreira (UFC) • Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes (UFC) • Edlaine de Campos Gomes (PPGMS/UNIRIO) • Ercília Maria Braga de Olinda (UFC) • Francinete Giffoni (UFC) • Francisco Camilo Josênio Parente (UECE/UFC) • Guilherme Passamani (UFMS) • Helena Bomeny (CPDOC/ FGV e PPCIS/UERJ) • Ismael Pordeus Júnior (UFC) • João Paulo Macedo e Castro (UNIRIO) • João Tadeu de Andrade (UECE) • Júlio Simões (PPGAS/ USP) • Kelma Socorro Lopes de Matos (UFC) • Laura Moutinho (USP) • Leandro Oliveira (URCA) • Leonardo Damasceno de Sá (UFC) • Luciane Soares da Silva (UENF) • Luiz Fernando Dias Duarte (Museu Nacional/ UFRJ) • Maria da Penha Lima Coutinho (UFPB) • Maria Stella Grossi Porto (UNB) • Maria Paula Jacinto Cordeiro (URCA) • Marcelo Tavares Natividade (UFC) • Moacir Palmeira (Museu Nacional /UFRJ) • Naara Luna (PPGCS/UFRRJ) • Maria Claudia Coelho (UERJ) • Mirian Pillar Grossi (PPGAS/ UFSC) • Myrian Sepúlveda dos Santos (PPCIS/UERJ) • Peter Henry Fry (UFRJ) • Renata Marinho Paz (URCA) • Regina Facchini (PAGU/Unicamp) • Roberta Sampaio Guimarães (UERJ) • Roberto Marques (URCA) • Scott Head (UFSC) • Teresa Cristina Furtado Matos (UFPB) • Vânia Cardoso (UFSC) Projeto Gráfico e Diagramação: Fernando Sousa Revisão Gramatical: Cristiane Sampaio Revisão da Tradução de Abstracts: Michel Macedo Marques (URCA) -------------------------------------------------------------------------------------------------------Caderno de Ciências Sociais: Tendências. Nº7, 2013. Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do CaririURCA, – Crato, 2013. 428p; il.; ISSN: 1677-9460 [versão impressa] 1. Ciência Política 2. Filosofia Política 3. Ciências Sociais CDD 320 -------------------------------------------------------------------------------------------------------OS ARTIGOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DOS AUTORES – SOLICITA-SE INTERCÂMBIO

TENDÊNCIAS Caderno de Ciências Sociais

Crato, 2013

SUMÁRIO Apresentação

Arte, afetos, articulações: formas de estar e se conectar no mundo Leandro de Oliveira e Roberto Marques 

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Dossiê: Arte, Emoção e Poder A Compreensão do Outro: ética, o lugar do “nativo” e a desnaturalização da experiência Maria Claudia Coelho 

O Pau de Santo Antônio de Barbalha (CE): notas e imagens de uma festa popular Gustavo Ramos Ferreira 

Técnica, dom e emoção: dilemas e perspectivas na pesquisa etnográfica sobre música e religião Maria Goretti Fernandes de Oliveira 

Com as mãos sujas de sangue: música, emoções e romantismos Raphael Bispo 

Teatro e teoria política: análise preliminar sobre a relação entre paradigmas e artes cênicas Beatriz Wey 

Teatro e Diversidade Sexual: uma análise da trajetória de vida de travestis e transexuais na cena urbana Rachel Macedo Rocha 

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“Nascemos para ser felizes?” discutindo a categoria felicidade nos discursos sobre os deslocamentos profissionais Tatiana Siciliano 

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Artigos Uma antropóloga em campo: reflexões sobre observação participante e subjetividades na etnografia Fátima Weiss de Jesus 

Erasmo, sempre Erasmo: uma interpretação do discurso conservador de José de Alencar David Simões 

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Traduções Notas de Campo na Pesquisa Etnográfica

Robert M. Emerson, Rachel I. Fretz& Linda L. Shaw 

As Belas-Artes como um fator dinâmico na sociedade Johanna Odenwald-Unger 

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Resenhas Resenha de: PASSAMANI, Guilherme. Org. (Contra) pontos: ensaios de gênero, sexualidade e diversidade sexual. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2011. [130 p]. Andréa Paixão

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O que vem depois da aids? Os discursos em torno do barebacking sex no Brasil e nos EUA. Resenha de: PAULA, Paulo Sergio Rodrigues de. Barebacking sex: a roleta russa da AIDS? Sexualidade, sexo e risco na mídia impressa e na Internet. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2010. Caio Cerqueira e Gilberto Rios

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Elementos-chave em um debate sobre família, casamento e homossexualidades. Resenha de: ALMEIDA, Miguel Vale de. A chave do armário: homossexualidade, casamento, família. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2010. 225p. Ricardo Andrade Coitinho Filho

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Apresentação Arte, afetos, articulações: formas de estar e se conectar no mundo

Leandro de Oliveira e Roberto Marques

Este volume da revista Tendências contempla – além de uma seção de artigos com um escopo um pouco mais abrangente – um dossiê que explora as interseções entre três eixos temáticos bastante significativos no campo das ciências sociais: a arte, a emoção e o poder. Escrever uma apresentação para estes textos foi para nós uma experiência emocional singular, que combinou um sentimento de responsabilidade com sensações inegáveis de satisfação e prazer. Falamos em responsabilidade considerando que o papel de resenhar e mediar contribuições tão plurais e tão densas, fazendo jus ao pensamento dos autores, é um desafio para qualquer comentador. Ao mesmo tempo, ficamos extremamente contentes ao constatar que, além da qualidade plural dos estudos aqui coligidos, é possível identificar ressonâncias, pontos de contato e encaixes entre estes textos. Hoje, na segunda década do século XXI, é possível dizer que a emoção é um tema que desfruta de crescente atenção nas ciências sociais. Esta atenção ao tema da emoção possui afinidades eletivas com motivações subjacentes às próprias carreiras científicas, do modo Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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como estas vieram se configurando desde meados do século XIX. Duarte (2004) destaca a existência de uma “pulsão” romântica subjacente ao engajamento em certas carreiras no campo das ciências humanas, que se faria sentir com especial força na antropologia. A colisão dessa pulsão romântica com um projeto iluminista de ciência ensejaria os dilemas de um “universalismo romântico”: uma espécie de senso “missão”, vocação ou chamado – misturado em grau maior ou menor a esforços objetivistas de “apreensão” do mundo, com ênfases variáveis conforme distintas tradições e linhagens teórico-conceituais. A atenção às dimensões ditas subjetivas da vida social, de modo geral – e à “emoção”, em particular – floresceu nesta tensão criativa entre romantismo e universalismo. É provável que muitos cientistas sociais experimentem, em sua trajetória, algo no mínimo comparável a um “chamado” vocacional ao comprometimento com sua carreira. Afinal, o que nos impede de mudar de profissão? Seria meramente o investimento prévio de tempo e recursos – a âncora da razão prática – que manteria cientistas sociais atrelados a seu campo ocupacional? A ciência é uma ocupação singular. Embora se assente frequentemente na ficção da objetividade, a ciência apaixona. Poderíamos fazer um paralelo aqui com o comentário de Coelho (2006, p.18-19) sobre este aparente “despropósito” que era o Kula trobriandês, relatado por Malinowski (1976): uma troca ininterrupta de objetos inúteis, que no entanto, mobiliza, envolve e absorve afetivamente seus participantes. Cientistas, em seus currículos acadêmicos, colecionam – alguns talvez com maior paixão do que outros – as palestras e artigos por meio das quais circula o saber cuja posse temporária é por eles exercida em cada apresentação pública. Talvez parte do mistério deste Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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compromisso emocional de seus praticantes derive do prestígio que os pesquisadores extraem de sua atividade, do reconhecimento pelos pares ou outros interessados e, quem sabe, da relativa satisfação que lhe é associada. Mas talvez também do simples fato de que, como todo e qualquer engajamento, a ciência articula e conecta. A téchne do cientista social, como a do artista, jamais poderia ser uma atividade solitária: fazemos parte do mundo em que vivemos, e somos atravessados pelos laços que constituímos com aqueles que se encontram ao nosso redor. E tais vínculos – seja com interlocutores em uma pesquisa de campo, com colegas pesquisadores e/ou com membros da sociedade mais abrangente – nos afetam. A vontade de saber do profissional da ciência nunca é totalmente inocente, desinteressada ou desmotivada. Para além dos contrastes e oposições possíveis entre estas duas formas de atividade, este poderia ser considerado um ponto em comum entre a ciência e a arte. Cientistas, assim como os artistas, buscam diferentes formas de (re) conhecimento: querem intervir, mudar o mundo, decifrálo ou devorá-lo perante esta plateia atenta formada por seus próprios pares e pelos demais usuários e consumidores das representações que fabricam. Mas se estas atividades apaixonantes – arte e ciência – são, em nossa cultura, investidas do poder de impregnar aquele que as exerce com graus variáveis de prestígio, também podem funcionar como um comentário contra certas estruturas de prestígio. Comentário que carrega em si a possibilidade de resistência ou insurgência contra poderes estabelecidos: descrições, análises, sínteses, imagens, não são meros retratos do mundo, são acréscimos ao mundo. Aqui emergem os contornos de um projeto iluminista de intervenção, transformação e 9

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melhoramento do mundo através da produção de conhecimento – às vezes de forma sub-reptícia, como um cenário ou pano de fundo para a performance pessoal do pesquisador, às vezes como um motivo central e insistente que comparece na experiência dos próprios pesquisadores, tal qual um tema na arquitetura de uma sinfonia, conferindo a esta uma possível unidade. Os textos coligidos neste volume carregam o tom deste tipo de conhecimento parcial e situado. Vários dentre estes ensejam também reflexões sobre seu processo de produção que oferecem oportunas contribuições para a comunidade acadêmica em geral, para pesquisadores interessados em certos temas específicos e para o processo de formação de novos cientistas sociais. A coletânea se inicia com um breve e denso ensaio da antropóloga Maria Cláudia Coelho, que partindo de uma deixa colocada a partir do filme Anthropology on Trial, reflete sobre sua experiência etnográfica entre estudantes de teatro no Rio de Janeiro dos anos 1980. Partindo da reação de um dos participantes da pesquisa ao texto produzido, Coelho reflete sobre um dos dilemas intrínsecos ao trabalho etnográfico: ao descrevermos as realidades dos outros como “construções”, “representações”, “percepções”, “visões de mundo particulares a um determinado grupo”, podemos estar inadvertidamente negando a convicção que estes têm que suas “percepções” não são visões pessoais e posicionadas, mas expressão do mundo “como ele realmente é”. Em seguida, Gustavo Ramos Ferreira apresenta um relato etnográfico da Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio, no município de Barbalha/CE. O texto, além de esboçar considerações interessantes Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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sobre certas formas ritualizadas e jocosas de expressão de agressividade entre os homens participantes, tece diversas reflexões acerca do uso da fotografia na observação participante. É no papel de fotógrafo que o pesquisador entra em campo – uma posição que lhe possibilita construir um lugar e certo modo de engajamento na cena. O terceiro artigo, da etnomusicóloga Maria Goretti Fernandes de Oliveira, aborda o fazer musical entre comunidades pentecostais evangélicas e católicas na cidade do Rio de Janeiro, a partir de observação participante conduzida pela autora. O artigo apresenta o modo como concepções acerca do “dom da música” se entrelaçam a visões da técnica musical e a critérios de percepção estética no universo estudado, destacando a centralidade de categorias emocionais na fala dos entrevistados sobre suas experiências musicais. Paralelamente, a autora reflete sobre o modo como sua entrada em campo foi marcada por sua posição como professora de música. Deste modo, salienta dilemas decorrentes do contato com uma cultura musical que, embora distinta da sua própria, buscava apropriar-se – de forma quase antropofágica – dos recursos técnicos oferecidos pela tradição musical ocidental erudita/ hegemônica e colocá-los a serviço do aperfeiçoamento do dom musical concedido por Deus. Os excessos sentimentais, na literatura do século XVIII e entre os jovens admiradores do estilo musical emotional hardcore na virada das décadas de 1980; 90 e início do século XXI, são as pistas seguidas pelo antropólogo Raphael Bispo para refletir sobre o lugar do romantismo na cosmologia ocidental. A partir do texto clássico de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, e de músicas da banda My Chemical Romance, o autor

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mostra como as ideias de interioridade, paixão, sofrimento, bem como as descrições espaciais e vivências metaforizadas a partir das imagens de morte e luto conferem expressão à experiência amorosa ocidental, utilizando para isso aproximações narrativas entre objetos culturais supostamente díspares. Em seu instigante artigo, Beatriz Wey se detém sobre as relações entre teatro e política. Se as habilidades de distanciamento e observação de si são fontes da própria condição do ser humano, teatro e política estariam irmanados pela consolidação de um espaço experiencial para essa concepção. A autora faz desse cotejamento entre ação e atuação na política e no teatro, a fonte para sua reflexão, retomando fontes diversas como: autores clássicos da definição de política, experiências de teatro político na América Latina, teóricos do teatro e pensadores contemporâneos sobre recepção para pensar a definição de teatro político . O artigo de Rachel Rocha tematiza trajetórias e experiências de travestis e transexuais engajadas no mundo do teatro, na cidade de São Paulo. Explorando uma teoria nativa produzida por ideólogos do próprio mundo do teatro – que o representa como espaço de vanguarda e transformação de convenções sociais – a autora apresenta, com bastante sensibilidade, a percepção cultivada por suas entrevistadas, de que o mundo do teatro teria sido para elas um espaço de possível reconhecimento e sucesso. O ingresso no mundo da arte é representado, nas falas das participantes, como momento decisivo em suas trajetórias: o teatro proporcionaria a elas a possibilidade de constituição de uma nova imagem de si e um novo horizonte de projetos, em oposição às

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vicissitudes vivenciadas na sociedade mais abrangente. Tatiana Siciliano, no último texto do dossiê, reflete sobre a construção cultural das emoções em uma instigante análise sobre os sentidos atribuídos à noção de “felicidade” no discurso de pessoas que mudam de carreira ao longo de sua trajetória profissional. Os depoimentos sobre “deslocamentos profissionais” voluntários analisados pela autora apontam para a busca da felicidade como valor cultural motivador que impele à mudança, a despeito dos riscos e de eventuais perdas salariais que tais redirecionamentos eventualmente acarretam. O artigo sinaliza para a existência de uma homologia entre estes discursos sobre a carreira e a lógica cultural do consumo moderno, em que os deslocamentos profissionais intencionais – que assim como os atos de consumo, podem implicar significativo custo econômico para o sujeito – se apresentam como forma de auto-expressão e de afirmação de controle sobre si e sobre a própria vida. Em um contexto cultural no qual a profissão não é vista como papel dissociável do cerne do self, mas como parte inalienável do self, o deslocamento ocupacional associado a projetos pessoais de felicidade é o modo pelo qual estes sujeitos imprimem um sentido a sua própria existência. Na sequência, temos dois artigos representativos de provocadoras reflexões construídas, respectivamente, nos campos da antropologia e da ciência política. A antropóloga Fátima Weiss reflete sobre dilemas vivenciados em sua experiência de campo na cidade de São Paulo em uma “Igreja Inclusiva”. Igrejas Inclusivas são grupos religiosos evangélicos liderados por gays e lésbicas e constituídos por fiéis LGBT, que reinterpretam a Bíblia afirmando que a homossexualidade

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não é um pecado. A autora problematiza dilemas decorrentes das interpelações de que foi alvo, através das quais o grupo buscava mapear seu lugar social – notadamente, questionamentos levantados sobre sua orientação sexual e sua identidade religiosa. Ao longo do artigo, a autora desloca a reflexão do campo ou mesmo sobre a observação participante como metodologia para uma percepção da observação participante como prática reflexiva, que vai dando contorno aos sujeitos da pesquisa e também ao antropólogo e o que seria supostamente seu campo. O artigo explora, assim, o desafio que é, para o pesquisador, demostrar para os “nativos” que estes estão sendo “levados a sério”, sem maquiar eventuais fronteiras que se configurem na entrada do campo, e ciente do caráter dinâmico destas mesmas fronteiras, da possibilidade de que as experiências vividas em campo possam afetar o pesquisador e lhe abrir novos horizontes de compreensão e interlocução com os membros do grupo estudado. David Simões retoma em seu artigo uma série de cartas escritas por José de Alencar nos anos de 1860. Como nos ensina o autor, a partir das Cartas de Erasmo, podemos perceber o papel ocupado por José de Alencar na retomada conservadora ocorrida nessa época de intensas transformações políticas e sociais. José de Alencar concebe a partir de tais cartas um personagem, Erasmo, que aconselha o monarca, ora dirigindo-se ao próprio rei, ora ao povo, ora a algum político influente na época. É curioso que o escritor o faça a partir de um personagem, retomando, no conjunto de trabalhos presentes nesse número da revista Tendências, a aproximação entre teatro e política, entre arte e formas de concepção e encarnação do mundo.

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As últimas contribuições à presente coletânea são duas traduções de textos inéditos em língua portuguesa – elaboradas por Leandro de Oliveira, inicialmente visando o uso didático em disciplinas e atividades de orientação conduzidas por ele na graduação da URCA. Estes textos foram aqui incluídos considerando seu potencial interesse para estudantes e professores de Ciências Sociais, assim como suas articulações em potencial com vários dos artigos deste volume. O texto “Notas de campo na pesquisa etnográfica” é o primeiro capítulo de um manual sobre etnografia publicado pela editora da Universidade de Chicago, assinado por Robert M. Emerson (Professor Emérito do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles/ UCLA), Rachel Fretz (Professora do departamento de Composição Escrita, Writing Center and Writing Programs da UCLA) e Linda L. Shaw (Professora do Departamento de Sociologia da Universidade do Estado da Califórnia em San Marcos/ CSUSM). Somos gratos a Perry C. Cartright, da editora da Universidade de Chicago, por ter gentilmente concedido autorização para a publicação desta tradução e nos ajudado a obter a permissão dos autores. O texto, problematiza diversos problemas teórico-metodológicos importantes para o fazer etnográfico na contemporaneidade, destacando – dentre outros aspectos – que a etnografia não deve expurgar do texto as experiências emocionais vivenciadas pelo pesquisador, almejando uma suposta neutralidade científica. Pelo contrário: o etnógrafo deve procurar inscrever suas reações emocionais no texto, de modo a poder refletir sobre elas, e sobre eventuais mudanças que ocorram em sua percepção. Os autores endossam a visão de que o pesquisador é exposto, em sua própria corporalidade, ao ambiente social que deseja compreender, 15

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estabelecendo laços seletivos e formas específicas de participação com algumas pessoas neste ambiente. Estas experiências serão passadas para o papel através de opções e estilos de escrita específicos – e um dos argumentos centrais dos autores é que a escrita nunca representa um mero registro de fenômenos reais em si mesmos. A escrita, para o etnógrafo, é expressão de uma sensibilidade continuamente afetada devido às conexões estabelecidas com o outro no campo. As escolhas feitas na redação, na conversão destas experiências em documento, engajam as percepções e afetos do pesquisador em processos de seleção, interpretação e construção social da realidade. A inscrição que é, deste modo, produzida, possibilita ao leitor formas distintas de se conectar com o mundo social que o etnógrafo transforma através de um processo ativo de (recon)textualização – um processo que se inicia com as primeiras notas de campo tomadas pelo pesquisador. O volume se encerra com o paper de Johanna Odenwald Unger, “As Belas Artes como fator dinâmico na sociedade”. Johanna Unger era amiga de Lester Frank Ward, membro fundador e primeiro presidente da Associação Americana de Sociologia, e foi a primeira mulher a participar desta organização. Como o próprio Ward (1918) narra, no 6º volume de sua autobiografia intelectual, seu contato com Johanna se deu através de uma carta enviada por ela em agosto de 1903, em que esta senhora “germano-americana” se voluntariava para a tarefa de traduzir os originais da Sociologia Pura de Ward para a língua alemã. Posteriormente, quando ocorre o primeiro encontro da Associação Americana de Sociologia, Johanna participa do evento apresentando o texto que a revista Tendências ora disponibiliza para os leitores de língua portuguesa. O texto consiste em uma crítica feroz à visão da arte como “mera gratificação Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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do senso estético”: um elogio apaixonado ao poder que esta tem de afetar aqueles que a consomem e, eventualmente, mobilizá-los à ação social. Para a autora, pintura, música, literatra e teatro – notadamente, nas modalidades produzidas na Rússia desde meados do século XIX – revolvem emoções que demandam um escoadouro na ação. Esta seria uma arte que não é feita para “agradar”, mas para golpear, atingir: ela expressaria anseios e horrores de uma nação. A posição da autora é que haveria um paralelo entre este tipo de arte, engajada e comprometida com a vida, e a sociologia preocupada com a transformação da sociedade: de certo modo, uma solução de continuidade entre o romantismo que perpassa estas abordagens artísticas e o “universalismo romântico” que Duarte (2004) assinala como sendo a marca das modernas Ciências Sociais. Por fim, incluímos ainda uma seção de resenhas, as quais apresentam, para o público leitor do campo das Ciências Sociais e áreas afins, três obras recentes que tematizam questões ligadas a gênero e sexualidade. Esperamos que os ensaios, artigos, traduções e resenhas reunidos neste número da Revista Tendências possam oferecer uma contribuição à circulação do conhecimento no cenário intelectual brasileiro, através desta seleção de textos alinhados a reflexões da Antropologia, da Sociologia e da Ciência Política.

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Referências Bibliográficas COELHO, Maria Claudia. O Valor das Intenções: Dádiva, Emoção e Identidade. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2006. DUARTE, Luiz Fernando Dias. A pulsão romântica e as ciências humanas no ocidente. Revista Brasileira de Ciências Sociais. vol.19 no.55 São Paulo, Junho 2004. MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1976. WARD, Leslie Frank. Glimpses of The Cosmo: a mental autobiography. New York: London: G. P. Putanam’s Sons, 1918.

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Dossiê: Arte, Emoção e Poder

A Compreensão do Outro:

ética, o lugar do “nativo” e a desnaturalização da experiência 1 Maria Claudia Coelho2

Resumo Este artigo apresenta algumas reflexões sobre a relação entre poder, saber e ética no exercício da pesquisa etnográfica. Revisito, como ponto de partida, uma fala de um entrevistado obtida em situação de campo ocorrida há pouco mais de vinte anos, na qual ele questiona a integralidade do relato que eu havia produzido sobre seu grupo. A releitura que proponho aqui se baseia na relação estabelecida por Clifford Geertz entre os conceitos de “experiência-próxima” e de “experiência-distante”, cuja forma de articulação estaria no cerne do “fazer etnografia”. Em seguida, recorro à associação foucaultiana entre o olhar e o poder, aplicando-a à relação entre o “antropólogo” e o “nativo”, para discutir alguns impasses éticos colocados pela natureza mesma do projeto antropológico de conhecimento da alteridade. Palavras-chave: etnografia; alteridade; ética antropológica.

Abstract This paper brings together some comments on the relationship between power, knowledge and ethics in ethnographic research. Its departure point is a statement obtained in a field situation that took place about twenty years ago, which I now revisit in order to examine the way I had depicted this group was then questioned by 1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada na 25ª Reunião Brasileira de Antropologia (Goiânia, junho de 2006). Agradeço a Adriana Vianna pela leitura atenta e pelas sugestões para esta nova versão. 2

Professora do Departamento de Ciências Sociais da UERJ. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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one of its members. The new interpretation I suggest here is based on the use made by Clifford Geertz of the concepts of “experience-near” and “experience-distant”, whose articulation he proposes would be the essence of ethnography. I then refer to the association proposed by Michel Foucault between power and observation in order to discuss the nature of the relationship established in ethnographic research between the “anthropologist” and the “native”, as a means to explore some ethical issues implied by the very nature of the anthropological project of understanding the Other. Key words: ethnography; Otherness; anthropological ethics.

Introdução

O filme Anthropology on Trial articula um conjunto de situações

em que “antropólogos” e “nativos” se encontram para refletir sobre os paradoxos e impasses do projeto etnográfico no mundo contemporâneo. Alguns desses encontros escolhidos apresentam uma espécie de “radicalidade biográfica”, como a trajetória do antropólogo inglês Andrew Strathern, o qual, em nome da coerência com questionamentos ocorridos no campo, optou por morar com a tribo que estudou. Em outros, a radicalidade não está tanto em uma escolha de vida, mas sim nos problemas teóricos e ético-políticos que faz aflorar. Este é o caso da situação escolhida para apresentar as reflexões de que o filme se ocupa. Anthropology on Trial abre comentando as mudanças ocorridas no “campo” de Margaret Mead na Papua Nova Guiné, desde a realização da pesquisa até o momento das filmagens. Entre as mudanças, há uma que nos interessa mais de perto: a existência de uma universidade, na qual entre outras coisas se estuda antropologia. Os livros de Margaret Mead fazem parte da bibliografia adotada por professores europeus, inclusive aqueles escritos sobre a região. E nestes cursos os alunos – os “nativos” daqueles trabalhos – aprendem sobre si Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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próprios através do olhar da antropóloga norte-americana. É sobre essa experiência que os alunos falam, alguns em tom jocoso, outros mais revoltados. Questionam muitos aspectos da obra de Margaret Mead, colocando em dúvida a própria correção de vários pontos de sua descrição das aldeias pesquisadas. Problematizam também aspectos éticos, como o dinheiro e a fama obtidos por ela com o modo de vida deles, sem que recebessem qualquer coisa em troca. Seu principal questionamento, contudo, diz respeito à imposição dos professores estrangeiros de que aprendam sobre si mesmos nos livros escritos sobre eles pelos pesquisadores. “Por que não podemos falar a partir de nossa própria experiência?” Essa pergunta, perpassada pela jocosidade dos estudantes entrevistados, nos servirá de fio condutor para as reflexões aqui propostas.

“É que eu acho que você não contou tudo”: mais uma vez, o ponto de vista do nativo Nos anos 80, o Rio de Janeiro viveu uma explosão na procura pelos cursos de teatro, em função da qual ocorreu uma proliferação dos cursos profissionalizantes que vieram se somar aos tradicionais Tablado (para amadores), Uni-Rio (nível superior) e Martins Pena (nível técnico). Essa explosão despertou minha curiosidade intelectual, uma vez que me parecia envolta em uma contradição fundamental: como justificar a atração que uma profissão que oferecia um mercado de trabalho extremamente restrito (e que, mesmo para aqueles que conseguiam nele entrar, acenava com ganhos muito reduzidos) exercia sobre jovens de camadas médias e altas da Zona Sul do Rio de Janeiro? Como explicar 23

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sua convicção de que conseguiriam viver dessa profissão, contrariamente a todas as evidências que mostravam um mercado estrangulado e ganhos baixíssimos, incompatíveis com o padrão de vida a que estavam acostumados? Com essa questão em mente, realizei em 1988-89 um trabalho de campo em uma escola de teatro do Rio de Janeiro. O resultado deste trabalho foi uma etnografia das aulas ali ministradas, tendo como foco a análise do modo como essa escolha profissional era vivenciada pelos alunos. Apresentei essa etnografia como dissertação de mestrado ao PPGAS/Museu Nacional em 1989. O trabalho inseria-se na linha de estudos em Antropologia Urbana conduzida pelo prof. Gilberto Velho e tinha como referências centrais as noções de “ethos” e visão de mundo (tal como elaboradas por Geertz [1978] em seu A Interpretação das Culturas) e de “estilo de vida” (Schutz, 1979). O objetivo era estudar o ethos, a visão de mundo e o estilo de vida atrelados a essa escolha profissional pelo teatro, buscando aí uma resposta para o paradoxo acima mencionado. Ao analisar o ethos e visão de mundo dos estudantes entrevistados, destaquei a presença de traços muito nítidos do individualismo qualitativo descrito por Simmel (1971), marcado pela certeza da própria singularidade. Esses traços vinham acompanhados por uma visão de mundo que delineei a partir de três oposições, recorrentes na fala dos informantes: corpo-mente, emoção-razão, talento-técnica. Nelas, o primeiro termo era sempre o mais valorizado, esboçando assim uma visão de mundo orientada pela sensorialidade, pela intuição e pela emotividade, desdenhosa das formas racionais e disciplinadas de Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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compreensão do mundo. Seu discurso era assim repleto de categorias às quais me referi então como categorias “mana” (nos termos mesmo de Mauss [1974]), ou seja, categorias de pensamento voltadas para a apreensão do inefável e indizível. Exemplos: a recorrência da noção de “energia”, utilizada para explicar um sem-fim de situações e percepções; a definição de talento como “brilho”, “peso” e, claro, “energia”; o recurso à noção de “vodu” (uma espécie de “mau-olhado”, uma “energia” movida pela inveja), para explicar fracassos e azares, etc. No estilo etnográfico clássico, apresentei os resultados da pesquisa separando-os em dois capítulos, voltados respectivamente para o exame do estilo de vida e do ethos/visão de mundo do grupo. A estrutura dos capítulos era a exposição dos traços identificados que me permitiriam sustentar a interpretação final do grupo como apresentando traços do individualismo qualitativo de Simmel e também da ideologia da intimidade de Sennett (1988). Cada um desses traços vinha acompanhado por uma sucessão de fragmentos das entrevistas e de observações realizadas no campo que o ilustravam. Como é inevitável em todo trabalho de campo, seja ele urbano ou tribal, tive também o meu “Doc”. Refiro-me àquele informante que se torna um misto de nativo-interlocutor-amigo, abrindo portas, esclarecendo situações, fazendo contatos/mediações e muitas vezes comentando o próprio resultado da pesquisa. “É que eu acho que você não contou tudo” é uma fala do meu Doc, que incorporei então à dissertação de uma maneira que gostaria de revisitar aqui. Ouvi esse comentário dele após a leitura do trabalho. Precedida de um educado “é, eu gostei, mas...”, gerou em mim uma reação de puro 25

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condicionamento de etnógrafa: puxei meu caderno para anotar o que eu não havia contado, pensando já em futuras incorporações. Mas o que eu não havia contado não era assim tão fácil de incorporar. Segundo ele, eu não contara “que o vodu funciona”, que “o sentimento é intenso” e que “quando a gente diz que os olhos brilham, é porque os olhos brilham mesmo”. Na época, usei sua crítica para pensar sobre o paradoxo embutido no projeto mesmo de fazer uma descrição “racional” de um mundo que se definia como “avesso à razão”. Naquele momento, a antropologia pós-moderna norte-americana era um movimento recente, ainda pouco lido no Brasil e certamente muito pouco “digerido” em termos de suas implicações para o fazer etnográfico. Pensei estar fazendo, ao comentar dessa forma a crítica do meu Doc, um pequeno exercício de “antropologia dialógica”, termo muito em voga então, quando a bandeira era “dar voz ao informante”. Retomo aqui sua fala para propor um outro exercício de análise, cuja possibilidade à época me escapou inteiramente. Esse exercício está baseado em um texto de Clifford Geertz (1997) sobre a natureza do entendimento antropológico. Esse texto, embora anteceda em doze anos a publicação de Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986), comumente apontado como o “marco zero” da antropologia pós-moderna, traz alguns insights que, creio, permitem-nos avançar na direção incitada pelos pósmodernos quanto à urgência da discussão sobre as imbricações entre relações de poder, ética e empreendimento etnográfico. Geertz parte do escândalo provocado pela publicação dos diários de campo de Malinowski para propor uma reflexão sobre o Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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que faz o antropólogo em campo. A primeira onda da repercussão da publicação dos diários é uma decepção no meio antropológico provocada pela revelação de que havia traços de intolerância e racismo na vivência do campo de seu principal mentor. Geertz afirma que essa é uma consequência menor: para ele, o ponto está na dúvida que esses traços levantam sobre o que é fazer etnografia. A questão é que Malinowski sempre fora um adepto de se buscar “o ponto de vista do nativo”, mas sua atitude subjetiva em relação a seus “nativos” derruba o mito da empatia como forma de acesso à realidade do outro. E, para Geertz, aqui o problema é de teoria da etnografia: se não é através da empatia, como é que o antropólogo faz para “compreender o ponto de vista do outro”? Sua resposta está ancorada nas noções de “experiência próxima” e de “experiência distante”, formuladas por Heinz Kohut no campo da psicologia do self. Trata-se de dois tipos de ideias, de conceitos sobre a realidade. No primeiro, ideias e realidades são indissociáveis; nele, nada “significa”, tudo “é”. No exemplo sarcástico de Geertz, é como se o nativo retrucasse ao antropólogo: “de que outra forma eu poderia chamar um hipopótamo a não ser de hipopótamo, se é isso o que ele é”? Já os conceitos de “experiência distante” são aqueles formulados pelos especialistas para apreender e explicar para “não-nativos” os conceitos de “experiência próxima” percebidos no campo. Resumindo: toda percepção nativa é por definição de “experiência próxima”, enquanto toda tradução etnográfica daquele mundo para outro é de “experiência distante”. Creio que “aquilo que eu não contei” pode ser entendido com base nesses conceitos. Quando meu entrevistado diz que faltou dizer

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que “o vodu funciona” ou que “os olhos brilham mesmo”, ele está reivindicando um lugar de verdade para seu discurso em meu relato. Latour e Woolgar (1997), discutindo a produção dos fatos científicos no mundo da biologia, sugerem que uma ideia vira verdade científica quando é simplesmente declarada sem que a ela se atribua qualquer autoria. O que meu entrevistado reivindica é que eu apague o lugar do enunciador (nos termos de Latour e Woolgar), instituindo como uma realidade objetiva aquilo que tratei, na melhor tradição antropológica, como uma “categoria nativa” de apreensão do real. Ou seja: ele quer que eu pare de tratar aquilo que ele diz como “experiência próxima”, carente de uma “tradução”, e dê a seu discurso seu lugar de direito – um relato sobre o modo como o mundo é, e não como ele o percebe. Bem, o que fazer com um entrevistado que questiona assim, com tamanha lucidez, o projeto etnográfico? Como tratar esse discurso? Insistindo em reconduzi-lo a seu lugar de objeto? Tomando-o como interlocutor? Ou – como não soube fazer há quase vinte anos, mas que tentarei agora – usando-o como caminho para pensar sobre os impasses ético-teóricos do projeto etnográfico? Fazer etnografia é um esforço para compreensão da alteridade. Em um ponto está um sujeito curioso por uma forma de estar no mundo que lhe parece distinta da sua e que por isso excita sua curiosidade; de outro, está outro sujeito, cujo modo de vida está agora sendo objeto de escrutínio por parte de alguém mais ou menos autorizado a fazê-lo. Digo mais ou menos porque, embora seja um mandamento ético da disciplina antropológica que os “nativos” consintam em ser observados e analisados, a natureza dessa observação é quase sempre Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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ignorada, ao menos em suas implicações plenas (ou era, no mundo em que a antropologia nasceu. Hoje, nos tempos da “etnografia generalizada” [Clifford, 1998], muitas vezes a história é outra.). Mas isso não se dá por incapacidade intelectual do “nativo”; no mais das vezes, é desinteresse mesmo, como na famosa história contada por Foote-Whyte (1980) acerca da indiferença com que sua elaborada explicação sobre o trabalho que estava fazendo foi recebida pelo grupo... O nó é que, neste mundo da etnografia generalizada, os “nativos” muitas vezes têm acesso ao que é dito sobre eles e se interessam em saber e discutir. Velho (1978) já apontava esse acesso como uma diferença muito importante entre a etnografia de grupos tribais e a etnografia de grupos urbanos: nesta, os “nativos” leem, contestam e comentam o modo como são descritos, inserindo a etnografia em uma malha discursiva na qual ela é apenas um dos pontos. Essa possibilidade de travarem contato com o que se diz sobre eles gera, contudo, um outro problema, expresso a meu ver com singular clareza na fala do meu entrevistado: qual o efeito de ser exposto a esse retrato de si pintado com as cores da etnografia? Ou, para voltarmos a Geertz: qual o efeito sobre o sujeito de ver seu modo de vida descrito como algo que “ele diz ser”, ou seja, como algo sobre o qual a descrição etnográfica, ao revelar quem enuncia, “planta” uma dúvida sobre seu valor de verdade? Laplantine (2001) define a representação social como “um saber que não duvida de si mesmo”. É uma ideia que se apresenta ao sujeito, cujo estar no mundo é por ela pautado não como uma ideia, mas como o próprio real. A “representação” é assim sempre “experiência próxima”. 29

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O fazer etnográfico, ao traduzir ideias da experiência próxima em ideias da experiência distante, introduz neste movimento que é a sua essência uma dúvida sobre a validade dessas noções. Tudo isso seria um mero exercício intelectual, não fosse um dado historicamente novo do mundo em que se faz etnografia: o acesso dos “etnografados” a seus retratos. Ver-se como quem “afirma” algo que é por si mesmo produz, na hipótese mais otimista, um desconforto nesse nativo, que pode ser sentido como desrespeito ou, na versão generosa e elegante do meu Doc, como incompreensão do etnógrafo: o que eu não contei foi que tudo o que ele me disse é verdade. É porque no fundo o projeto etnográfico é dizer do outro aquilo que ele não sabe de si. Nesse sentido, guarda semelhanças com a escuta psicanalítica, em que ao analista é atribuído pelo analisando um “suposto saber” ao qual este quer ter acesso, porque em princípio estaria aí a sua verdade. Mas esse saber é atribuído pelo analisando ao analista e a relação entre eles é fruto do desejo do analisando. Ora, estão aí dois traços que nem o antropólogo mais afortunado poderia alegar estarem presentes em seu campo. Isso quer dizer que insistimos em dizer do outro aquilo que ele não sabe de si contra a sua vontade e contra o seu reconhecimento de que seríamos desta verdade detentores. Vem daí, acredito, o desconforto que a etnografia pode produzir no etnografado. Certo. Mas o que fazemos com isso? O que isso nos diz sobre a ética no trabalho de campo? O que fazer com o desconforto que uma crítica assim gera por sua vez no etnógrafo? Em suma, o que podemos aprender sobre nós mesmos escutando falas como essa?

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Considerações Finais Nos anos 1980, a antropologia norte-americana foi sacudida por uma onda autocrítica que ficou conhecida como “antropologia pósmoderna”. Seu principal marco bibliográfico é, conforme já apontei, a coletânea Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986). Nela, a partir de um fértil diálogo com a teoria literária, a etnografia, entendida como um gênero narrativo em si mesmo, passa a ocupar o centro da atenção dos teóricos da antropologia3. Ao lado da problemática da etnografia como um gênero narrativo, a antropologia pós-moderna devota-se à exploração de três outras questões (Coelho e Sinder, 2004): a) a “política das representações”, ou seja, a preocupação com as implicações políticas da forma de se descrever o outro e com as formas de circulação desses relatos; b) a natureza necessariamente posicionada do conhecimento, sto é, a imbricação entre identidade/subjetividade do pesquisador e o conhecimento produzido sobre o outro; e c) a desconstrução do conceito de cultura, ao qual se atribui a partir de então algumas “armadilhas”, entre elas uma ficção de coesão e totalidade. Os pós-modernos norte-americanos apontaram assim para a imbricação entre poder e representação, explorando as consequências do fato de que toda etnografia está perpassada pela natureza das relações existentes entre o grupo do etnógrafo e o grupo dos etnografados. Em um nível macro, estamos falando das relações históricas de dominação, 3 Para uma exploração dessa questão da etnografia como um gênero narrativo, ver a investigação de Geertz (2002) sobre as formas de narrar nas obras de autores clássicos da antropologia.

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como, por exemplo, o contexto da exploração colonial que marcou uma época na história da antropologia. Em falas como essa que discuti aqui, evidentemente não se trata disso: ao contrário, estamos diante de um problema da ordem da microfísica do poder. Em suas formulações clássicas sobre esse tema, Foucault (1984) apontou a centralidade da relação entre o olhar e o poder. Gostaria aqui de retomar suas reflexões para comentar sobre a natureza da ética no projeto etnográfico. “Nativo” e “etnógrafo” não são identidades essencializadas, mas posições em uma relação de conhecimento, em que o primeiro ocupa o lugar de objeto de uma reflexão, enquanto o segundo é sujeito da produção de um saber. A metáfora favorita dos antropólogos para essa relação é o olhar: o “olhar antropológico”, a “observação participante”. Essa metáfora – a qual, como sabemos, nunca é “apenas” uma metáfora, mas tem em si o potencial de revelar relações subjacentes, muitas vezes inconscientes para quem as enuncia – nos leva à sugestão que queria levantar aqui para encerrar estas reflexões. Em seus comentários sobre a natureza do poder exercido pelo dispositivo arquitetônico do Panóptico, Foucault (1984) apontou a dissociação do par ver-ser visto como forma de exercício do poder. Aquele que vê sem ser visto domina; aquele que é visto sem ver é dominado. A metáfora da observação participante parece inscrever a relação etnográfica em uma microfísica do poder. Ser objeto de uma observação ao invés de convidado a uma interlocução, ser relegado ao lugar de quem é observado sem poder retribuir/revidar esse olhar, essa é a condição por excelência do “ser nativo”. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Sendo assim, o próprio projeto etnográfico de conhecimento da alteridade parece estar inexoravelmente imbricado em uma relação de poder. O problema da “devolução” da escrita ao sujeito etnografado, realçado pela autocrítica pós-moderna, maximiza ainda mais a dimensão de poder embutida no conhecimento da alteridade, em uma relação que, por sua capacidade de produzir desconforto ao “desnaturalizar” a experiência “nativa”, traria embutido um impasse ético. Esta é a contribuição que gostaria de trazer para o debate: em que medida haveria uma saída para esse impasse ou, ao contrário, não estaria ele inextricavelmente ligado à natureza mesma do conhecimento etnográfico? Como forma de sugerir um caminho para essa reflexão, retomo aqui a última situação narrada em Anthropology on Trial. O filme traz a história de um antropólogo proveniente da Melanésia que vai realizar seus estudos de pós-graduação em uma universidade norte-americana. Seu projeto é estudar os homeless, movido por uma estranheza intelectual que é um espelho invertido da curiosidade antropológica original da disciplina: como é possível alguém sem casa, alguém sem família, sem vizinhos, sem amigos? Que sociedade é essa capaz de produzir um tal desenraizamento? A deliciosa ironia desse projeto, dessa estranheza provocada pela possibilidade mesma da condição de homeless em um indivíduo proveniente dos mundos que os antropólogos ocidentais descreveram como “holistas” (entre outras classificações possíveis), pode oferecer uma pista para explorarmos o dilema proposto. Em que medida, no mundo da etnografia generalizada, não é a possibilidade de se ver objeto deste 33

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poder embutido em uma relação feita de olhar, mas que se apresenta como de conhecimento científico isento, que exigirá da antropologia e dos antropólogos ocidentais ainda mais um esforço reflexivo acerca desta dimensão “microfísica” da ética em seu exercício?

Referências Bibliográficas CLIFFORD, James. Sobre a Autoridade Etnográfica. In: GONÇALVES, José Reginaldo Santos (Org.). A Experiência Etnográfica– antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. CLIFFORD, James e MARCUS, George (Orgs.). Writing Culture: the Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986. COELHO, Maria Claudia. Teatro e Contracultura - um estudo de antropologia social. 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1989. COELHO, Maria Claudia e SINDER, Valter. De que Lugar Falamos: reflexões sobre os movimentos pós-moderno e pós-colonialista na antropologia brasileira. In: L. Cavalcanti (org.). Tudo é Brasil. São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2004. FOOTE-WHYTE, William. Treinando a Observação Participante. In: A. G. Zaluar (org.) Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1984.3ed. GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas – o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. _____. “Do ponto de vista dos nativos”: a natureza do entendimento antropológico. In:_____. O Saber Local – novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997. _____. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. LAPLANTINE, François. Antropologia dos Sistemas de Representações da Doença: Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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sobre algumas pesquisas desenvolvidas na França contemporânea reexaminadas à luz de uma experiência brasileira. In: D. Jodelet (org.) – As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. LATOUR, Bruno e WOOLGAR, Steve. A Vida de Laboratório – a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. MAUSS, Marcel. Esboço de uma Teoria Geral da Magia. In:_____. Sociologia e Antropologia, vol. I. São Paulo: EPU, 1974. SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e Relações Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. SIMMEL, Georg. Freedom and the Individual. In:_____. On Individuality and Social Forms. Chicago: University of Chicago Press, 1971. VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: Edson de O. Nunes (org.). A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Referência Fílmica Anthropology on Trial. (57 min.) Produtor: WGBH e BBC. Distribuidor: Time Life Video. 1983. Artigo submetido em: 08/10/2012 Artigo aprovado em: 20/11/2012

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O Pau de Santo Antônio de Barbalha (CE):

notas e imagens de uma festa popular Gustavo Ramos Ferreira1

Resumo Anualmente o município de Barbalha sedia um dos mais expressivos festejos religiosos do estado do Ceará, a festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio. A festa em homenagem ao padroeiro da cidade é marcada pelo carregamento do mastro e pelo hasteamento da bandeira de Santo Antônio e mobiliza centenas de carregadores que, em cortejo, transportam-no sobre os ombros. O cortejo, que tem início nas primeiras horas da manhã e finda à noite, é também marcado pelos jogos e brincadeiras durante os quais os carregadores simulam lutas. O texto que se segue é o relato etnográfico destes festejos e tem como preocupação o trabalho de campo, o fazer etnográfico e o uso da fotografia como método de pesquisa. Palavras-chave: etnografia, festas religiosas, trabalho de campo, imagem.

Abstract Annually, the city of Barbalha hosts one of the most important religious festival of the state of Ceará, Pau da Bandeira de Santo Antônio Feast. The feast in honor of the patron saint of the city is marked by loading the mast and the raising of the flag of Santo Antônio and mobilizes hundreds of carriers in procession, carrying it on the 1 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Regional do Cariri (URCA); Integrante do Grupo de Pesquisas Território, Espaço e Movimentos Sociais (CNPq) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Geografia Agrária (GEA). E-mail: gustavo.rf.cs@gmail. com Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

Notas Etnográficas sobre a Festa do Pau de Santo Antônio

shoulder. The procession, which begins by early morning and ends at night, is also marked by games during which the carriers simulate fights and physical aggressions. The following text is the ethnographic account of the festivities and take concern as fieldwork, doing ethnographic and photography use as a research method. Key words: ethnography, religious celebrations, fieldwork, image.

Apresentação O texto a seguir é o relato etnográfico das experiências realizadas em campo durante os festejos do Pau de São do Antônio de Barbalha no ano de 2012. O trabalho tem como preocupação o fazer etnográfico, refletindo o trabalho de campo e o uso da fotografia como método de pesquisa. Na ocasião da pesquisa pude participar de dois momentos distintos que integram a totalidade dos ritos de celebração de Santo Antônio, padroeiro do município de Barbalha, situado na região do Cariri cearense. Natural de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, e residindo no Cariri desde 2010, tive o primeiro contato próximo com o evento em 2011, quando pude acompanhar o cortejo do mastro durante o percurso que vou aqui designar de rural apenas como recurso ilustrativo. Até então, o meu conhecimento sobre a festa se reduzia às notícias veiculadas pela mídia impressa e televisiva. Armado com a minha máquina fotográfica percorri, ao lado de outros curiosos, profissionais da imprensa e da população que acompanhava atenta a passagem do mastro, o que acreditava ser as primeiras horas da trabalhosa caminhada rumo à igreja matriz onde seria hasteada a bandeira de Santo Antônio. Não imaginava como se sucediam os elaborados e complexos procedimentos de preparação e Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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o desenrolar do rito, nem como os papéis eram ocupados e encenados pelos indivíduos que o integravam. Para traduzir a experiência vivida de aproximação e imersão com o campo pesquisado dividi a festa em três momentos: I) derrubada da árvore que serviu de mastro para a bandeira de Santo Antônio; II) cortejo do mastro e hasteamento da bandeira, sendo este dividido entre os percursos rural e urbano e III) a quermesse, que compõe outro momento dos festejos e ocorre no período seguinte ao cortejo e hasteamento da Bandeira de Santo Antonio. Os eventos comemorativos de 2012 tiveram início no dia 17 de maio, quinta-feira, com a derrubada do mastro, exatos quinze dias antes do cortejo, e se estenderam até o dia 13 de junho, quarta-feira, dia de Santo Antônio, quando se encerram os festejos. O carregamento e hasteamento da bandeira ocorreram dia 03 de junho, domingo. Acompanhei com maior intensidade o momento (I) e o percurso rural assim designado por acontecer na zona rural do município e se encerrar quando começa o asfalto - do momento (II). A separação ora proposta tem função meramente ilustrativa e serve apenas para atender a demanda requerida por este trabalho. Contei inicialmente com a colaboração de alguns informantes eventuais para tomar conhecimento dos percursos, horas e locais de concentração.

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Notas Etnográficas sobre a Festa do Pau de Santo Antônio

A Derrubada do Pau (Quinta-feira, 17 de maio) Já passava das sete horas da manhã quando encontrei os carregadores, que saíam do Mercado Municipal de Barbalha. Este se encontravam concentrados ali para o café da manhã – caldo de carne, conforme me informaram – e de onde saíram em cortejo em direção à igreja matriz, tendo à frente uma caminhonete Ford, provavelmente dos anos 80, que carregava um suntuoso equipamento de som. A maioria dos homens ali presentes trajavam camisas ou camisetas, bermudas e botas ou tênis. Uns poucos usavam chinelos de dedos. A presença feminina era mínima, composta basicamente por mulheres que acompanhavam o movimento à distância. Por vezes, na passagem por algumas árvores, arrancavam-se galhos que depois eram usados como açoites, numa espécie de jogo entre os participantes (Imagem 1) . Não me parecia haver ali qualquer impulso de violência contra o outro. Nada de desentendimentos ou confrontos mais acalorados, apenas um jogo que se reproduzia com certa frequência e que envolvia parte dos figurantes. Estas brincadeiras aconteciam normalmente no centro da marcha. Aparentemente, aqueles que ficavam nas bordas do cortejo não participavam delas. Os carregadores eram seguidos por dezenas de motos e carros que faziam uso constante da buzina. À frente o carro de som reproduzia insistentemente músicas, com destaque para Verdes Canaviais, de Alcymar Monteiro, e Festa de Santo Antônio, de Luiz Gonzaga. No carro de som seguia um animador, que puxava o cortejo.

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Ao chegar próximo à igreja matriz o carro de som ficou para trás e os carregadores formaram ma corrente. As brincadeiras pararam e o cortejo assumiu um ar de maior seriedade. Todos de mãos dadas, tendo à frente o Capitão do Pau, Rildon Teles, e seu irmão Aldênio, que se tornaria meu principal contato. Já em frente à igreja, os homens ergueram as mãos e gritaram repetidas vezes: “Viva Santo Antônio!”. E, enquanto repetiam o brado, adentravam a igreja. Esta tem logo à sua frente uma calçada de aproximadamente dez metros de comprimento e termina na pequena escadaria que dá acesso à rua. A imagem de Jesus Cristo crucificado, de aproximadamente cinco metros, está fincada próxima à escadaria que adorna a fachada da igreja. À sua frente e separada pela rua, uma praça. Na lateral, uma larga rua de duas vias separadas por um canteiro. Alguns carregadores tocavam e beijavam os pés da imagem. Um dos participantes deixou uma flor amarela presa junto aos pés da imagem, fez o sinal da cruz, tocou o pé da imagem e beijou a mão que o tocou, seguindo posteriormente para o interior da igreja. (Imagem 2) O pároco já aguardava a chegada dos carregadores no interior da igreja. Não está trajando a tradicional batina: vestia calça de linho branca e camiseta azul com estampa de outra festa religiosa. Rezado o Pai-Nosso, o padre abençoou os carregadores e deu graças à festa que se iniciava. O ritual de benção não durou mais que quinze minutos. Dali os carregadores seguiram para os caminhões, que já os aguardavam estacionados ao lado. Nesse momento procurei aqueles que assumiam posições de destaque na condução do cortejo. Com aproximadamente 1,80 m de altura, pesando talvez 120 kg e farta barba, Aldênio, irmão do Capitão do

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Notas Etnográficas sobre a Festa do Pau de Santo Antônio

Pau, chamava atenção tanto pela compleição física quanto pela posição que ocupava. Aparentemente seria ele que cumpriria o papel de organizar e dar assistência aos carregadores e ao Capitão do Pau. Depois de uma rápida conversa em que me apresentei e solicitei para acompanhar toda a festa, foi-me indicado um caminhão onde eu poderia seguir. Aldênio, que estaria em uma caminhonete particular, com poucos anos de uso, perguntou se eu não preferia seguir com ele, já que no caminhão seria desconfortável. Agradeci, mas recusei e fui na carroceria do caminhão junto com os demais participantes.

Três caminhões seguiram apinhados de homens,

mulheres, crianças e idosos. Carregadores e não-carregadores, curiosos e devotos de Santo Antônio, além dos que procuravam diversão. Junto a mais um punhado de gente que seguia em motos, carros, bicicletas e cavalos, percorreu-se cerca de dez quilômetros até a entrada do Sítio São Joaquim. A seriedade assumida na entrada da igreja some e um espírito mais alegre toma conta de todos. Desde o início do trajeto o consumo de bebidas alcoólicas toma parte do processo, com destaque para a tradicional cachaça. Na entrada do Sítio São Joaquim, propriedade da Itapuí Barbalhense Indústria de Cimento S/A, os ocupantes dos caminhões desembarcaram e continuaram a pé o percurso de dois quilômetros até ao local onde se encontrava a árvore escolhida. A estrada era de barro, com forte coloração avermelhada, margeada por vegetação densa e própria da Floresta Nacional do Araripe (Floresta Nacional do Araripe). O caminho era acidentado e atravessava o leito de um rio seco e pedregoso. A travessia do rio não seria possível de carro, já que entre o nível da

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estrada e o do rio seco havia uma pequena queda de aproximadamente dois metros, com apenas um declive que permitia a passagem com maior facilidade dos pedestres, cavaleiros e motoqueiros (se estes fossem experientes). O leito seco media entre sete e oito metros entre uma margem e outra. Depois de atravessar o rio e caminhar por mais alguns metros, chegamos ao destino dos carregadores. Lá encontramos um jacarandá de vinte e três metros e aproximadamente dois mil e oitocentos quilos. Este tronco fazia parte de um conjunto de raízes que abrigavam outros dois troncos, o que tornaria o corte ainda mais complexo. O corte é acompanhado por agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que orientaram e registraram o processo de corte. Esses órgãos também estariam presentes no cortejo do pau dali a quinze dias. Antes do corte, enquanto é feita a limpeza do terreno que cerca a árvore escolhida, o Capitão do Pau conduziu os participantes para o local onde a imagem de Santo Antônio seria depositada até o próximo ano. Foi feita mais uma caminhada de aproximadamente um quilômetro. O lugar escolhido foi a falha de um tronco, trabalhada por mãos humanas para aumentar o espaço necessário para comportar a imagem. Todos acompanhavam atentos as palavras do Capitão do Pau. Ali foi feita uma oração e pedidos para que a festa ocorresse sem fugir da normalidade e, ainda, para que não houvessem feridos. Todos rezaram um Pai-Nosso e, por fim, saudaram Santo Antônio. Notei a presença intensa da imprensa. Câmeras fotográficas e filmadoras profissionais passaram a disputar lugar e a contrastar com os celulares e máquinas fotográficas de pequeno 43

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Notas Etnográficas sobre a Festa do Pau de Santo Antônio

formato. Chamou-me atenção um senhor que, usando um microfone, narrava os acontecimentos e entrevistava o Capitão. Mais tarde descobri que o mesmo fazia a transmissão ao vivo dos acontecimentos daquela manhã para uma importante rádio de Barbalha. Ao retornar ao local da árvore, observei que o publico havia aumentado. Entre outros, professores e estudantes municipais também passaram a acompanhar o evento. Também havia uma maior presença feminina. No leito do rio o número de pessoas também aumentou. Alguns ambulantes vendiam bebidas – cerveja, água, refrigerante, cachaça – e guloseimas diversas. Mais à frente, seguindo o sentido do rio, diversos grupos se formaram, alguns, portando instrumentos musicais, tocavam samba e pagode; outros grupos

faziam o mesmo com pequenos

equipamentos de som. Enquanto isso, os cortadores, sob orientação de Rildon Teles, tomaram posição e se organizaram para o corte. Feita a limpeza do terreno ao redor do tronco, um dos cortadores subiu a árvore para retirar os galhos e prender a corda na copa que conduziu a queda. Insultos os mais diversos e zombarias são dirigidos ao cortador que sobe. “Macaco” e outros xingamentos similares eram os mais repetidos em uma clara referência à sua negritude. Uma grande parte dos que gritavam estes impropérios também eram negros. Não havia ali um movimento claro de depreciação da condição do outro, nem se percebia um sentimento de ofensa em quem era insultado. Parecia haver ali um momento de liberdade para o uso destes termos, assim como acontecia com os jogos de bater que os homens estabeleceram durante os eventos da festa do Pau.

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Embaixo da árvore os jogos se reiniciam. Alguns foram empurrados para o centro de uma roda, postos ao chão e cobertos por terra. Os indivíduos já pertencentes ao grupo que ia chegando eram “vítimas” das brincadeiras e as permitiam de bom grado. “Mãozinha”2, era o alvo mais constante das brincadeiras. Coincidentemente já o havia encontrado em 2011. Nas duas situações ele encontrava-se embriagado. Nesta, em especial, parecia atrapalhar os cortadores que se preparavam para o seu mister. Num movimento aparentemente consciente, os homens com seus jogos afastavam Mãozinha da arena para que os trabalhos continuassem. Finalizados os preparativos, os participantes ocuparam seus espaços. Alguns cuidavam da corda que deveria ser esticada no instante e no sentido indicado pelo cortador. Tomadas as posições, o Capitão do Pau apoderou-se do machado e desferiu o primeiro golpe. Diversos sujeitos encenaram este momento: o Capitão do Pau, cortadores, carregadores, espectadores, jornalistas, radialistas (Imagem 3). Junto ao tronco, o radialista que narrava o evento colocou o microfone para captar os sons dos primeiros golpes. Cada machadada foi acompanhada com euforia. E cada lasca da árvore que voava era capturada com entusiasmo. Outros cortadores e carregadores fizeram uso do machado. Quando o tronco se aproximou do limite crítico, os cortadores indicaram a direção em que a corda deveria ser esticada. A partir de então, somente os cortadores usaram o machado. Os demais se afastaram ou ocuparam outras funções. Este momento tornou-se um pouco confuso para mim. Todos pareciam gritar ao mesmo tempo, repetindo as ordens dos que coordenavam o 2 Figura singular, presente em todos os anos que acompanhei o carregamento. Uma mistura de bêbado e Mateus, personagem típico dos reisados.

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corte. Ora a ordem era esticar, ora soltar a corda. E, inesperadamente, o tronco veio ao chão. Não caiu necessariamente onde desejavam os envolvidos. O local desejado facilitaria o transporte. No entanto, o tronco caiu dentro da mata, o que criou algumas dificuldades. A queda foi comemorada, mesmo que não tenha acontecido conforme o que havia sido planejado. No momento seguinte, muitos participantes correram para junto do caule estendido no chão a fim de retirar lascas da casca, que foram usadas para chás que serviriam para as mais diversas simpatias ou curas. A poeira levantada voltou a subir com as brincadeiras dos homens. Nesse momento, afastei-me para conversar com Aldênio, que estava visivelmente cansado, mas com transparente alegria. Carregador desde o final dos anos 70, ele explicou que a árvore escolhida deve ser sempre a mais próxima de uma reta. Explicou ainda que os cortadores determinam o peso aproximado através da relação entre altura e circunferência. Tentou me explicar como era calculada, mas, confesso, não compreendi. Tive a impressão de que mais do que de uma conta aritmética, falava-se de um saber que nascia da experiência prática dos carregadores. Questionado sobre as brincadeiras, demonstrou estranheza com a pergunta e respondeu tratar-se apenas de pilhérias. Suspeitei que até o momento não ele houvesse refletido sobre a questão. A conversa foi interrompida quando chegou a hora do meu informante ter o seu próprio corpo coberto por terra. Após trinta minutos iniciou-se o transporte do Pau, que deveria atravessar o rio. Feita a travessia, o mastro foi levado por um trator até a entrada do sítio onde ficou deitado no lugar designado como cama Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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e onde “descansou” até o dia do carregamento. Os carregadores me informaram que o pau sempre “descansa” ao sol para perder água e ficar mais leve. O percurso é feito com ajuda de cordas e galhos mais grossos retirados da árvore. O mastro é deitado nesses galhos e puxado. O momento mais delicado é exatamente a travessia do leito seco do rio. Os carregadores mais experientes, além do capitão, assumem a liderança. Segundo um dos carregadores com quem conversei rapidamente, o mastro poderia se partir na travessia, e por isso o momento era tão delicado. O mastro deveria atravessar perpendicularmente o rio. A base da árvore, portanto, a parte de maior circunferência e de maior peso, foi à frente, sendo a primeira a entrar no rio. Por sua própria resistência, este primeiro momento é o mais simples. Assim tivemos parte do mastro dentro do rio e outra fora. Em seguida os carregadores que estavam dentro do rio ergueram o mastro. Os demais carregadores cuidaram para que a parte mais frágil não se partisse. À medida que o mastro foi entrando no rio, mais carregadores posicionaram-se na sua sustentação até que a ponta deste que estava à frente subiu a outra margem. A parte do mastro que se encontrava fora do rio foi sustentada por sua parte mais frágil. Esse foi o momento mais delicado. Os carregadores, corretamente posicionados ergueram o mastro com cuidado até ultrapassarem completamente os limites do rio. Podemos tomar a superação do rio como uma caricatura do carregamento, pelo maior grau de dificuldade e onde estão presentes todos os elementos compreendidos no processo de carregamento. Os personagens envolvidos estavam concentrados nas suas funções. A distribuição dos carregadores na extensão do mastro aconteceu de acordo

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com a experiência e força física de cada um. Assim, os mais experientes e fortes ocuparam a ponta da frente, de maior circunferência e peso. Em outras situações isso provocaria um desequilíbrio entre os carregadores da frente e os de trás. Desta forma, quando os carregadores da frente gritavam que “sim”, todos deveriam erguer o mastro, os de trás gritavam “não”, e vice-versa. Todavia, em meio à singular confusão, entre o “sim” e o “não” parecia haver um acordo compartilhado entre todos sobre qual o momento adequado para o soerguimento do mastro.

Cortejo do Pau de Santo Antônio (Domingo, 03 de junho) Já passava das sete horas da manhã quando cheguei à cidade de Barbalha. No dia anterior havia feito contato com Aldênio, que me informou o horário da concentração dos carregadores no Pau. O local estava ornamentado com bandeiras da festa de Santo Antônio e bonecos gigantes e contava com a representação folclórica dos diversos movimentos de expressão da cultura popular do Cariri – bandas cabaçais, penitentes, reisados, bacamarteiros. Expectadores, fotógrafos, jornalistas e radialistas já se aglutinavam em frente à igreja matriz à espera do início do cortejo cultural. Dali segui de moto-táxi até ao Sítio São Joaquim. Ao passar pela cidade pude perceber que muitas pessoas haviam modificado seu espaço, fechando algumas ruas para o tráfego de automóveis, garantindo, assim, uma melhor mobilidade para os espectadores. Os moradores das ruas por onde passaria o cortejo organizavam os espaços de suas respectivas calçadas. Ali estavam dispostas banquinhas para vender comida, pequenas churrasqueiras, grandes recipientes de isopor Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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para venda de cerveja, refrigerante, água e cachaça. Os bares montavam suas mesas nas calçadas e ocupavam os canteiros das avenidas. Saindo do asfalto e seguindo pela estrada de barro com poucas casas, o movimento diminuiu, permanecendo apenas aqueles que se dirigiam para o local de onde sairia o cortejo. Chegando à “cama” onde se encontrava “deitado” o mastro à espera do início do cortejo, percebi que inúmeros carregadores já aguardavam sentados no tronco. Muitos bebiam cachaça ou cerveja ali mesmo. Diversos grupos de amigos tocavam instrumentos, fazendo pagode. As vestes dos carregadores não diferiam dos seus trajes do dia da derrubada do pau. Porém, estas eram bem diferente da festa de 2011, onde a grande maioria vestia camisetas e bandanas que os identificavam como carregadores, numa aparente uniformização. Conversando com os carregadores, descobri que ao chegarem e se sentarem no mastro, estavam marcando a posição que iriam ocupar até final do cortejo (Imagem 4). O Capitão do Pau não estava presente e só chegaria ali depois de terminado o cortejo cultural que aconteceria na cidade. Isso não impedia a marcação do lugar que era feita respeitando a condição física e experiência de cada carregador. Os jogos entre os homens já haviam iniciado. Era apenas “algazarra”, dizia uma das “vítimas”. Naquele momento, apenas terra. Pouco antes das oito horas chegou um carro pipa que vinha molhando a estrada de barro. Em cima do carro, pegando carona, chegaram mais ou menos dez jovens entre 10 e 15 anos. A grande maioria com cabelos moicanos no estilo “Neymar”3 (Imagem 5). Diziam que o carro pipa era 3

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Jogador de futebol, também conhecido pelos corte de cabelo extravagantes. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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pra baixar a poeira da terra seca. Mas também trazia um novo elemento para as brincadeiras que se intensificaram: a lama. A brincadeira acontecia de diversas formas. Por vezes silenciosamente, outras com bastante barulho, chegava-se pelas costas do indivíduo, que era agarrado e posto ao chão. A pessoa que derrubou ou mesmo os outros que se juntaram à brincadeira cobriam a cabeça e rosto do que estava no chão com terra ou lama. Alguma resistência era apresentada. Quanto maior a resistência, maior a euforia. Pouco depois retornei ao centro da cidade. Minha intenção era acompanhar o cortejo cultural e dali retornar junto com o Capitão do Pau. Porém, o início da travessia cultural atrasou e fui informado por Rildon Teles que o carregamento do mastro começaria sem ele. Ao retornar, às dez horas, o carregamento já havia iniciado e percorrido os primeiros metros. A marcha era lenta. A previsão era de que chegaria no local onde o mesmo seria erguido por volta de vinte e duas horas.

***

Então, temos o mastro. À frente estava a base da árvore, de maior diâmetro e maior peso. Na outra extremidade, de menor diâmetro, o caule era mais leve e mais tortuoso. O “freio” era composto por cordas amarradas com a função de auxiliar nas subidas e descidas de ladeiras e tentar dar equilíbrio na hora que o Pau vai ao chão. O intuito é evitar acidentes. Os carregadores se distribuíam respeitando a experiência e a força de cada um. Os mais experientes e com melhores condições físicas ocupavam a extremidade à frente. Na outra ponta estavam os Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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menos experientes e mais “fracos”. Assim, as posições eram ocupadas num degradê de força e experiência. Ocupados os devidos lugares, o Capitão do Pau e outros carregadores organizaram e coordenaram o momento da subida, que foi conturbado e confuso para quem estava acompanhando. Este momento foi anunciado com rápidos tapinhas nas costas dos carregadores. Entre as mais diversas vocalizações é estabelecida uma comunicação entre carregadores, animadores e organizadores. Lembrava as embarcações vikings que, movidas à remo, tinham à frente um condutor que, fazendo uso de um tambor, marcava o movimento dos remadores. Assim, ao som de “lê, oh”, ou mesmo “vai, vai”, marcavam-se os movimentos dos carregadores. Erguida a madeira sobre os ombros, foi iniciada a caminhada de poucos metros quando, então, o mastro foi solto, também numa ação combinada. Logo que foi ao chão todos os carregadores sentaram nos seus respectivos lugares. O ápice do momento aconteceu quando estes o ergueram para além dos ombros, sobre as mãos. O momento foi comemorado por todos. Com o mastro deitado, os jogos se reiniciaram. A maioria dos carregadores era composta por homens. Entre estes se fez presente uma senhora que, por volta de 60 anos de idade, participou do carregamento. Ocupou a última posição, o que poderíamos chamar de freio central, mas sem fazer uso real dele. Estava vestida de saia preta, camiseta branca com estampa de Santo Antônio e boné branco do time do Santa Cruz. Usava óculos, brincos, relógio e uma medalhinha dourada de Nossa Senhora. A camisa aos poucos mudaria de cor. Sua posição estava guardada e foi ocupada quando a marcha já se iniciara. Era cumprimentada por muitos carregadores que vinham até seu lugar e a abraçavam e por vezes lhe pediam a benção. A reverência respeitosa 51

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não impedia que ela também fosse “vítima” das brincadeiras. Assim, logo após as saudações, ela tinha a cabeça cuidadosamente (poderia até dizer carinhosamente) coberta por terra. (Imagem 6) As sucessivas quedas do mastro fizeram com que aos poucos ele fosse rachando. Para evitar que o tronco se abrisse por completo, tiras feitas com pneus velhos foram amarradas a ele. Atrás, mais frágil, o mastro foi quase completamente coberto e a ele foram acrescidos pneus com o objetivo de amortecer o choque com o chão. Alguns carregadores acabaram por machucar-se. Um deles, líder do movimento, chamou-me especialmente a atenção. Afirmando ter deslocado um dos ombros, foi socorrido por outros participantes. Deitado no chão, segurado por três ou quatro homens, teve o ombro deslocado preso por um pano (camisa rasgada ali na hora). Um rápido e brusco movimento teria colocado o ombro no lugar. A camisa rasgada serviria depois como tipóia, e o carregador machucado continuaria na sua função. Outros não tiveram a mesma sorte e foram hospitalizados. Já era meio-dia quando me retirei para almoçar, regressando às quatorze horas. O percurso agora acontecia na zona urbana, no asfalto. O número significativamente maior de espectadores mudava a dinâmica do evento. O público aguardava o momento em que os carregadores soltariam o mastro no chão para tocarem e sentarem no tronco. Agora era necessário formar uma corrente de carregadores que seguia à frente, afastando os curiosos. A brincadeira agora toma nova forma. Agora eram trocados tapas entre vários participantes. Por vezes eram utilizadas camisas ou outros instrumentos que produziam mais efeito sonoro que machucado. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Um informante eventual me disse que, de fato, tudo aquilo não passava de uma brincadeira entre os participantes, mas que também serve para afastar os curiosos para que o mastro possa ser novamente erguido e a caminhada continuar. Contudo, os jogos vão diminuindo no decorrer do dia e quase desaparecem no final da noite, quando o pau chega ao seu destino. Todo o percurso desde o sítio até a igreja matriz foi acompanhado por um carro de som e uma ambulância. O carro de som, o mesmo usado no dia do corte, reproduzia as músicas da festa com os mesmos destaques para os Verdes Canaviais, de Alcymar Monteiro, e Festa de Santo Antônio, de Luiz Gonzaga. O carro também levava um animador que narrava todo o evento. Ao contrário do ano anterior, não notei a presença da carrocinha com a Cachaça do Vigário durante a marcha dos carregadores, presente apenas durante o cortejo cultural. Creio que a pouca visibilidade se deve à ausência do apoio da Cachaçaria Ypióca, presença marcante em 2011. O final do percurso foi feito puxando o mastro que foi amarrado por grossas e resistentes cordas. Segundo Aldênio, o tronco, mesmo com as amarras, corria o risco de se partir. O fato gerou controvérsia e insatisfação entre os espectadores. Outra polêmica dizia respeito à participação do que alguns chamaram de forasteiros, carregadores ocasionais, vindos de fora da região ou que, embora sendo da região, não faziam parte do grupo. Os forasteiros atrapalhariam o processo e ocupariam o espaço de quem tinha o “direito de fato”. Por fim, gostaria de afirmar que, acompanhado de minha máquina fotográfica - uma Nikon D90 de grande formato, profissional 53

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-, apesar de estar longe de possuir as qualidades de um fotógrafo, era eu constantemente reconhecido como jornalista ou outro profissional da imprensa. Isso me abriu alguns caminhos. Fui constantemente requisitado pelos participantes que desejavam ser fotografados. Outros ainda me procuravam e queriam saber onde seriam veiculados os trabalhos fotográficos. Um carregador em especial gostaria de comprar as imagens produzidas.

Pensando o Trabalho de Campo O relato reproduzido aqui é fruto de duas inserções em campo durante os festejos do Pau de Santo Antônio de Barbalha. Todavia, devo informar que a participação nas comemorações no ano de 2011 e a posterior análise das fotografias produzidas contribuíram para minha participação nos eventos ora descritos. O primeiro contato eu fiz como mero espectador atento e curioso pelos fenômenos que só conhecia pelos noticiários e “de ouvir falar”. Confesso que fui contagiado pela alegria e empolgação que envolveram os participantes que faziam questão de carregar um tronco com mais de duas toneladas em suas costas. Ato de fé? Expressão de masculinidade? Estas eram perguntas que me vinham à mente. Mas duas questões permaneceram com maior insistência no pensamento: I) em meio à aparente confusão, como aquela centena de homens conseguia erguer, para depois de alguns passos soltar ao chão um tronco tão pesado? Que nível de coordenação existia ali? Como tão poucos se machucavam? II) Quais os propósitos dos jogos praticados durante o percurso? Eram jogos de bater e lutar que lembravam minhas brincadeiras de infância. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Produzir o texto pretendido apresentava desde o início algumas dificuldades. A participação anterior me permitiu treinar o olhar, mesmo que superficialmente, o que trouxe, por assim dizer, algumas facilidades e alguma compreensão da dinâmica do fenômeno. A festa acontece anualmente e os eventos se desenvolvem com bastante agilidade. Perder um dos momentos resultaria na espera de um ano para ter a oportunidade de experimentá-los novamente. Qualquer atraso ou empecilho, e ficaria para trás. Portanto, refletir sobre minha inserção era também refletir sobre o método de registro. Compartilhei do sentimento de Fontanari que “percebera quão anacrônica e mesmo bizarra poderia parecer para os participantes deste universo a figura romântica do etnógrafo tomando notas em uma caderneta no meio de uma festa como esta” (FONTANARI, 2010, p. 154). Neste sentido, caderno e caneta me pareciam bastante inconvenientes e incômodos. Do mesmo modo, gravador e entrevistas in loco. Optei, portanto, pelo uso da fotografia. Papel e caneta somente foram utilizados para anotar contatos e, ainda assim, tive bastante dificuldades devido à dinâmica do evento. Bonetti, ao falar da escrita etnográfica, mais precisamente do diário de campo, afirma que “há infinitas formas de registrar e de escrever sobre o vivido etnográfico” (BONETTI, 2010 p. 169). Incluo entre as infinitas formas de registro os modelos ancorados em “processos imagéticos” (SOARES, 2001, p.113). A imagem produzida em campo – fotografia e vídeos – possibilita caminhos para maior realismo na etnografia. Simone Simões, afirma que: (...) se a observação participante e o discurso do informante são técnicas de pesquisa e da investigação antropológica, acrescentaríamos que a associação da fotografia, filmes, vídeos, a toda etnografia é 55

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fundamental para obtenção de resultados mais fidedignos, precisos e de maior realismo do trabalho etnográfico.” (SOARES, 2001 p.113)

Com a fotografia há a possibilidade de registro daquilo que foge ao olhar mais atento e treinado do antropólogo, aquilo que foge à memória, aquilo que só é perceptível e sensível ao olhar e, desta forma, pode desvendar detalhes que apenas são revelados após a análise da imagem. Ainda segundo Simone Simões: (...) ao narrarmos qualquer fato social pesquisado e analisarmos através da fotografia ou da filmagem captar-se-á não só aquilo que ‘enxergamos’ a olho nu, mas descobrir-se-ão, através da imagem, aspectos que passaram despercebidos ao investigador, ajudando também à compreensão do leitor (SOARES, 2001,p.113)

No uso da imagem no trabalho etnográfico temos que ter em mente as implicações no trabalho de campo e na relação com o outro que passam a ser mediados, também, pelo equipamento. Segundo Emerson, Fretz e Shaw: (...) gravações de áudio e vídeos, que aparentemente capturam e preservam praticamente tudo o que ocorre dentro de uma interação, na realidade não apreendem senão uma fatia da vida social em curso. O que é registrado depende, em primeiro lugar, de quando, onde e como o equipamento é posicionado e ativado, o que este consegue captar mecanicamente, e como aqueles que estão sendo filmados ou gravados reagem a sua presença (EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013, p.371)

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Não há desacordo. Quanto à fotografia em especial, podemos falar da tendência em tornar o mundo vivido em uma experiência estática e retangular. Poderíamos, portanto, nos perguntar sobre o que não foi fotografado. Ora, nem o antropólogo mais atento poderia captar o mundo experimentado na sua totalidade. A etnografia é antes de tudo um recorte da realidade, produto de escolhas sensíveis, refletidas metodologicamente e interpretativas do antropólogo. Com a fotografia, acredito, acontece o mesmo, ou seja, “o processo imagético como parte do trabalho etnográfico é necessariamente definido como interpretação, em todas as suas etapas”. É o antropólogo, sensível e refletidamente, “na escolha do momento mais denso”, que recorta essa realidade. (SOARES, 2001, p.116). Assumindo desde o inicio o papel de etnógrafo e fotógrafo, adotei os caminhos apontados por Milton Guran (2011) sobre as possibilidades do uso da fotografia na pesquisa etnográfica. Desta forma, a produção fotográfica, integrada ao projeto de pesquisa, pode se desdobrar em dois momentos: a) o primeiro, nos momentos iniciais da pesquisa quando o pesquisador está entrando em campo, aproximando-se do objeto pesquisado. É o momento de conhecer o universo da pesquisa, de contatar o grupo estudado, de descobertas. b) o segundo momento se dá quando da apresentação dos resultados da pesquisa. Isso não significa que, na entrada em campo, o pesquisadorfotógrafo, armado com sua máquina fotográfica, irá disparar contra o objeto estudado, insistente e insensivelmente, a fim de registrar tudo o que for possível. Como instrumento de registro, o uso desta tecnologia “não se viabiliza fora do tempo do encontro etnográfico” (SOARES, 2011,

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p. 116). Assim como sua entrada em campo, o uso da fotografia deve ser negociado com o grupo investigado. O etnólogo deve estar sensível para aquilo que pode ou não ser fotografado e para as implicações desta captura para a pesquisa. Nesse sentido, e à medida que a investigação avança, o pesquisador em campo deve buscar em cena os aspectos que são singulares e os que se repetem, devendo encontrar o momento de maior significação. O recorte deve registrar os momentos de maior densidade e eliminar ao máximo os elementos que não compõem o objetivo da fotografia. Esses elementos poluidores apenas servem para desviar a atenção do espectador e afastar do objetivo interpretativo anunciado pelo etnólogo-fotógrafo. Enquanto pesquisador, com a máquina fotográfica em mãos, demarcava minha posição em campo. E, assim, minha relação com o outro era também mediada pelo equipamento fotográfico. Como descrito anteriormente, mesmo me apresentando como pesquisador para alguns informantes, não podia fazer o mesmo com todos os participantes presentes. Portanto, em um evento com cobertura midiática local, regional e nacional, com marcante presença de jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas, esses papéis eram atribuídos facilmente a este estudante de Ciências Sociais. Indiferente ao papel ocupado ou percebido, era estabelecido um limite, se assim podemos afirmar, para a interação. Explico: não poderia ocupar, encenar ou simular o papel do carregador. A meu ver, não há aqui qualquer problema conceitual ou metodológico. Não tinha como intenção (apesar de me sentir eufórico com a experiência) me tornar um carregador. Seria “ingênuo sugerir que virar nativo é a única

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maneira de alguém ‘aprender’ efetivamente outra cultura, pois isso exigiria abrir mão de sua própria cultura” (WAGNER, 2010, p. 37). É na perspectiva interpretativa de Geertz, entendendo a cultura com textos produzidos e interpretados por seus nativos (GEERTZ, 2006), e naquilo que ele vai chamar de “experiência próxima” e “experiência distante” que pretendo ancorar minhas reflexões neste texto. Compreendendo experiência-próxima, como aqueles conceitos próprios e internalizados pelo nativo, que faz uso deste sem (ou apenas ocasionalmente) refletir sobre isso. Aqui “as ideias e as realidades que elas representam estão naturalmente e indissoluvelmente unidas” (GEERTZ, 2006, p. 87). Por sua vez experiência-distante é entendida como aqueles conceitos produzidos por “especialistas para apreender e explicar para ‘não-nativos’ os conceitos de ‘experiência-próxima’ percebidos no campo” (COELHO, 2013, p.27). O intento do texto proposto é o dialogo com os dois tipos de conceitos. De acordo com Geertz: (...) como devem estes ser empregados, em cada caso, para produzir a interpretação do modus vivendi de um povo que não fique limitada pelos horizontes mentais daquele povo – um etnografia sobre bruxaria escrita por uma bruxa – nem que fique sistematicamente surda às tonalidades de sua existência – uma etnografia escrita por um geômetra (GEERTZ, 2006, p.88)

Nesse sentido, o exercício aqui realizado é o de tentar tornar compreensível para os “não-nativos” a experiência dos carregadores.

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Brincadeira de Homem Podemos compreender a derrubada e o cortejo do Pau de Santo Antônio, como uma “reunião concentrada”, fazendo o mesmo uso que Geertz (1982) faz do conceito de Goffman que o define como: algo insuficientemente consistente para ser chamada de grupo e insuficientemente desestruturado para ser chamada de multidão – um conjunto de pessoas absorvidas num fluxo de atividade comum e se relacionando umas com as outras em termos desse fluxo” (GEERTZ, 1982, p. 193)

Esta “reunião concentrada” tem, entre outros elementos constitutivos, a prática de jogos ou brincadeiras que simulam uma agressão. Interessante perceber a dinâmica dos jogos praticados pelos carregadores. As brincadeiras praticadas não assumem uma forma única. Envolvem os carregadores em sua maioria, mas não-carregadores também podem participar. Não há distinção, seja de classe ou raça. Aliás, essa é uma característica do evento como um todo. Seria um erro aqui indicar um modelo único ou mesmo tentar encontrar o elemento básico comum a todas as formas de reprodução dos jogos. Podemos apontar, entretanto, que estes se modificam de acordo com o espaço e se encerram com o fim dos dois episódios (derrubada e carregamento). Importante a colaboração de Geertz, que assinala: A Forma, nessa concepção, não é uma constante fundamental em meio a variação acidentais e desordenadas, mas um conjunto de limites dentro dos quais a variação é contida (GEERTZ, 1999, p. 301)

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Não cabe a este texto desenhar a forma matricial dos jogos, tão pouco ajuizar o significado das brincadeiras. Cabe aqui a tentativa de “revelar as múltiplas verdades evidentes na vida do outro” (EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013, p.359). Importante sinalizar que, quando questionados sobre as brincadeiras, os informantes pareciam estranhar a pergunta. Alguns respondiam que se tratava apenas disso: uma brincadeira. Outros diziam que o tumulto causado ajudava a afastar os curiosos. Quanto ao espaço, podemos dizer que a mudança é mais de ordem prática. Enquanto no percurso rural o chão de barro é o cenário das brincadeiras, no asfalto os jogos ocorrem em pé. No primeiro, areia e lama. No segundo, tapas e açoites com galhos e camisas. Com o aumento do número de espectadores dos jogos, quando pensados na função de afastar os curiosos, dão lugar à corrente de carregadores que cercam todo o mastro, separando-o da multidão. Em uma conversa desinteressada com uma amiga e moradora de Barbalha me foi dito que uma pendência mal resolvida poderia ser ali sanada: o sujeito, aproveitando-se do momento, dava (ou devolvia) tapas no outro sem que houvesse necessariamente uma consequência posterior. Singular nesse sentido a observação de Geertz (1982) sobre a briga de galo em Bali: (...) as brigas de galos são como brincar com fogo, porém sem o risco de se queimar. Você incita rivalidades e hostilidades da aldeia e dos grupos de parentesco, mas sob uma forma de ‘brincadeira’, chegando perigosamente e maravilhosamente próximo a expressão de uma agressão aberta e direta, impessoal e intergrupal (...), mas só próximo porque, afinal de contas, trata-se de uma “briga de 61

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galos” (GEERTZ, 1982, p. 204)

Nesse sentido, bater e insultar o outro são encenações também de sentimentos compartilhados no “mundo real”. As brincadeiras permitem aos participantes simular com maior, ou mesmo melhor, intensidade sem uma necessária violação do cotidiano. Ou, como diria Geertz, com “suas cores naturais” (GEERTZ, 1982, p. 208). Ainda recorrendo a Geertz, a festa do pau “fornece um comentário metassocial sobre todo o tema de distribuir os seres humanos em categorias hierárquicas fixas e depois organizar a maior parte da existência coletiva em torno dessa distribuição.” (GEERTZ, 1982, p. 209). Aqui não há uma divisão hierárquica de classes. Todavia, as posições ocupadas e encenadas fornecem elementos para compreendermos as posições socialmente ocupadas pelos seus participantes. Podemos olhar para o caso do Capitão do Pau Rildon Teles, que ocupa o cargo de vereador na cidade de Barbalha -como muitos apontaram - graças aos “bons trabalhos e liderança” desenvolvidos enquanto Capitão do Pau.

Considerações Finais Como produtores de textos etnográficos, tentamos traduzir a experiência nativa. Para isso devemos ter em mente nossas próprias prénoções. O texto etnográfico é antes de tudo resultado da mediação do etnógrafo, dono de uma experiência de vida própria, da sua construção teórica e da consequente repercussão metodológica, com as experiências e os significados que estas carregam para os nativos. Para Emerson, Fretz e Shaw:

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(...) são relatos escritos que filtram as experiências e preocupações dos membros através da pessoa e das perspectivas do etnógrafo; notas de campo fornecem o relato do etnógrafo, e não dos membros, acerca das experiências significados e preocupações vividas por estes. (EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013, p.378)

Cultura pode ser nesse sentido compreendida como um conjunto de textos, “como obras imaginativas construídas a partir de materiais sociais” (GEERTZ, 1982, p. 210). Podemos entender a cultura como unidade constituída pela variação. Ao antropólogo cabe o papel da leitura “por sobre os ombros” do nativo dos textos que compõem a cultura do outro. (GEERTZ, 1982, p. 212). O exercício ora apresentado não tem por fim a escrita de um manual ou cartilha de regras de como os eventos da Festa do Pau de Santo Antônio acontecem ou devem acontecer, mas o de aproximação e leitura da experiência ou da dinâmica da experiência na sua variação de sentidos e que a cultura, como textos que são escritos, lidos interpretados por seus membros, é também constantemente reescrita e reapropriada pelos nativos.

Referências Bibliográficas BONETTI, A. de L. O rei está nu! O diário de campo cru e a exposição das etnografias. In: Experiências, dilemas e desafios do fazer etnográfico contemporâneo. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2010. COELHO, M. C. A compreensão do outro: ética, o lugar do “nativo” e a desnaturalização da experiência. Caderno de Ciências Sociais: Tendências. Crato, Nº 7, 2013. EMERSON, R. M.; FRETZ, R. I.; SHAW, L. L. “Fieldnotes in ethnographic research” in

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Notas Etnográficas sobre a Festa do Pau de Santo Antônio

EMERSON, R. M.; FRETZ, R. I.; SHAW, L. L.. Notas de Campo na pesquisa etnográfica. Caderno de Ciências Sociais: Tendências. Crato, Nº 7, 2013. FONTANARI, I. P. de P. Nu, em público: o diário de campo foro do lugar. In: Experiências, dilemas e desafios do fazer etnográfico contemporâneo. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2010. GEERTZ, C. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: ed. Guanabara, 1982. ___________. O saber local. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. ___________. Forma e variação na estrutura da aldeia balinesa. Mosaico – Revista de Ciências Sociais. Universidade Federal do Espírito Santo, Ano II, Vol. 1, n° 1. 1999. GURAN, M. Considerações sobre a constituição e a utilização de um corpus fotográfico na pesquisa antropológica. Discursos Fotográficos, V.7, N°10, Londrina, 2011. SOARES, S. S. F. A importância da antropologia visual nas monografias etnográficas. Revista de Ciências Sociais, Vol. 32, N° 1. Fortaleza: Ed. UFC, 2001. WAGNER, R. A Invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Anexos

Imagem 1 - Foto: Gustavo Ramos (17/O5/2012). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Notas Etnográficas sobre a Festa do Pau de Santo Antônio

Imagem 4 - Foto: Gustavo Ramos (03/O6/2012).

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Imagem 6 - Foto: Gustavo Ramos (17/O5/2012).

Artigo submetido em: 30/09/2012 Artigo aprovado em: 23/01/2013

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Técnica, dom e emoção:

dilemas e perspectivas na pesquisa etnográfica sobre música e religião Maria Goretti Fernandes de Oliveira1

Resumo O tema deste artigo são reflexões sobre o fazer etnográfico em uma pesquisa etnomusicológica. A experiência etnográfica vivenciada entre grupos religiosos evangélicos pentecostais e católicos carismáticos no Rio de Janeiro traz à tona os dilemas que se demonstram no trabalho de campo. A autora apresenta partes do relato etnográfico, os impasses que surgiram, evidenciando temas relacionados à noção de dom e vocação, à percepção da competência técnica, os parâmetros culturais de avaliação estética e as formas como estes se atualizavam na prática musical dos participantes dessas comunidades, no aprendizado e na criação musicais. Sendo a música um elemento marcante dos rituais religiosos desses grupos, busca compreender como os participantes conectam suas ideias sobre “música” com suas concepções e experiências religiosas. O relato chama atenção para a centralidade que a “emoção” ocupa no rito religioso e na prática musical, nesses grupos. A narrativa etnográfica permite uma interpretação e a análise do discurso de atores sociais pertencentes a essas comunidades, para os quais música e religião estão intimamente relacionadas. A autora ressalta questionamentos acerca do fazer etnográfico e apresenta novos caminhos para a realização do trabalho de campo. Palavras-chave: música, religião, práticas musicais, etnografia, pentecostais evangélicos, carismáticos católicos.

1 Graduada em música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Mestre em Etnomusicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGM/ UFRJ). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

Técnica, dom e emoção: dilemas e perspectivas na pesquisa etnográfica sobre música e religião

Abstract The reflections on doing ethnographic research in ethnomusicological is the subject of this article. The ethnographic experience among Pentecostal and Charismatic Catholic religious groups in Rio de Janeiro brings out the dilemmas that demonstrate the fieldwork. The author presents parts of the ethnographic account, the impasses that have emerged, highlighting issues related to the notion of gift and vocation, the perceived technical competence, cultural parameters of aesthetic evaluation forms and how they updated throughout the musical practice of the participants of these communities, in learning and creating music. Being the music a outstanding element of the religious rituals of these groups, seeks to understand how participants connect their ideas about “music” with their religious experiences and conceptions. The report draws attention to the centrality that the “emotion” takes on religious rite and musical practice in these groups. The ethnographical narrative allows for interpretation and discourse analysis of social actors belonging to these communities, for whom music and religion are closely related. The author emphasizes questions about the ethnographic work and presents new ways to carry out the fieldwork Key words: music, religion, musical practices, ethnography, Pentecostals gospel, Catholic Charismatic .

Eu sei que essa pesquisa é de música (...), mas sou evangélica, então, a gente está falando de Jesus. Então (...) Ele está aqui! (Viviane, 29 anos, fiel da Assembleia de Deus, Ministra de Música em sua comunidade)

Este artigo apresenta uma reflexão sobre experiência etnográfica vivenciada entre grupos religiosos evangélicos pentecostais e católicos carismáticos2 no Rio de Janeiro, que deu origem à minha dissertação de 2 A pesquisa contemplou o fazer musical de estudantes de música que atuavam em igrejas evangélicas pentecostais, principalmente Assembleias de Deus e algumas outras igrejas evangélicas, e o fazer musical de estudantes que atuavam na Renovação Carismática Católica (RCC), movimento existente na Igreja Católica. As comunidades religiosas visitadas estão localizadas no município de Itaboraí (RJ) e arredores. Para preservar a identidade dos entrevistados, seus nomes e os nomes de suas comunidades Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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mestrado em etnomusicologia3. Meu objetivo era investigar as percepções da competência técnica, os parâmetros culturais de avaliação estética e as formas como estes se atualizam na prática musical dos participantes dessas comunidades, no aprendizado e na criação musical. Estava sensível para o fato de que a música era um elemento marcante dos rituais religiosos nesses grupos e que seria necessário, portanto, buscar compreender como os participantes conectavam suas ideias sobre música com suas concepções e experiências religiosas. Percebi a importância das noções de “dom” e “vocação” que apareciam na fala das pessoas que entrevistei como formas de se referir à prática musical. Progressivamente, minha atenção foi se deslocando para a centralidade que a “emoção” ocupa no rito religioso e na prática musical desses grupos. Percebi, no trabalho de campo e nas conversas com os participantes, a importância de gestos e sinais corporais associados à manifestação de emoção, como as lágrimas. Percebi também a importância de categorias que se referiam a certos tipos de competência espiritual, como a noção de “cantar com unção” ou “tocar com unção”, que, de alguma forma, seria um modo de julgamento técnico e estético sobre a performance musical, combinado à percepção de que, aquele sujeito em particular, estava espiritualmente autorizado a desempenhar aquele papel nos ritos. Constatei também a centralidade da concepção da música como uma dádiva de Deus (ou “dom”4 do foram substituídos por nomes fictícios. 3 A etnomusicologia é um campo disciplinar que busca compreender a atividade musical como fenômeno social e culturalmente construído – dialogando de perto, portanto, com os campos da sociologia e da antropologia. 4 Os dons são dádivas divinas concedidas aos fiéis. Os colaboradores desta pesquisa demonstraram crer que a habilidade musical que possuem constitui um dom

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Espírito Santo5) e como uma vocação (um “chamamento”) que impelia os fiéis a um trabalho, -nunca concluso-, de retribuição. Um presente de Deus, que é ao mesmo tempo uma missão dada por Deus: aquele que recebe o dom e chamamento da música estava obrigado a abraçar e a fazer circular esse bem gratuitamente recebido. Durante todo o percurso da pesquisa de campo vários problemas, dúvidas e questões se fizeram presentes em relação ao próprio fazer etnográfico. Tais questões eram motivo de reflexão permanente para mim. Neste artigo apresento essas questões sempre atreladas aos dados que colhi. Maria Cláudia Coelho afirma que “fazer etnografia é um esforço para compreensão da alteridade” (2013, p. 28). Parece-me que esse esforço perpassa todo o projeto etnográfico e se faz presente todo o tempo. Será que aquilo que o pesquisador descreve e interpreta se mostra realmente como aquilo que o pesquisado reconhece de si mesmo? Procuro refletir sobre isso adiante, durante este trabalho e principalmente nas seções finais. Como já dito, a questão da técnica em especial me chamava a atenção. Perguntava-me: qual a visão deles sobre uma música bem executada? O que seria ter competência técnica para executar bem um instrumento musical, interpretar bem uma música? Procurava observar as percepções de avaliação estética naqueles grupos. Em algumas performances, parecia-me que havia necessidade de um suporte técnico que receberam do Espírito Santo. 5 O Espírito Santo é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. A doutrina cristã crê no Mistério da Trindade: Deus é um só em três pessoas distintas _ Pai, Filho e Espírito Santo. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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mais estruturado para um melhor desempenho, porém eu percebia que a comunidade entendia aquela performance como satisfatória, de grande profundidade, que os tinha levado a sentir a presença de Deus. Testemunhavam e comentavam que a música e a oração tinham sido realizadas “com unção”, mesmo quando, técnica e esteticamente, a meu ver, a realização musical não parecia estar a contento. Tal fato se apresentava como um paradoxo, uma contradição, posto que minha formação acadêmica na área de música modelava meus critérios de percepção, conduzindo-me a uma perspectiva que hoje reconheço como etnocêntrica. Aos olhos daquela comunidade, não se apresentava contradição; aquilo que para mim era tão contraditório não se mostrava assim para aqueles grupos. Minha visão e a visão daqueles grupos eram diferentes. Tratarei, em todas as seções: dos dados coletados durante minha pesquisa, de algumas situações ocorridas durante o processo de trabalho em campo em si e da minha reflexão diante dos impasses que se apresentaram neste percurso. Nas últimas seções, mergulho no tema central: a reflexão sobre o fazer etnográfico, porém, todas as seções anteriores que apresentam dados da pesquisa querem ser, de certo modo, um caminho que leva à reflexão final. Antes, na próxima seção, revelarei a metodologia utilizada na pesquisa, a delimitação de campo e o universo pesquisado, bem como explico brevemente quais e quantas seções compõem este artigo.

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A metodologia utilizada e a delimitação de campo O objetivo central deste artigo é pensar o fazer etnográfico. A reflexão sobre o fazer etnográfico foi se fazendo presente paulatinamente no decorrer da pesquisa de campo que empreendi; ela sempre esteve lá, desde o início, mas o pensar sobre ela cresceu, à medida que o trabalho era realizado. Os temas tratados na pesquisa (emoção, dom, técnica) também se mostram pontos fortes de reflexão. Tais temas, a meu ver, clareiam a visão sobre o tema central deste artigo. Impõem questões que surgem diante do pesquisador que empreende uma pesquisa etnográfica e acabam por ajudar na tarefa de pensar a etnografia em si. Por essa razão, durante todo o presente artigo apresento-os entrelaçados à questão central, mesmo que nas entrelinhas. À medida que vou expondo os temas tratados na pesquisa, de certo modo, vou refletindo e repensando a etnografia e suas implicações. Contudo, é na última seção que essa reflexão sobre o fazer etnográfico emerge com mais clareza. Preciso revelar inicialmente as características do universo pesquisado e é o que faço agora nesta seção. Aqui exponho a delimitação de campo. O grupo de entrevistados e observados (11 pessoas) era formado por músicos atuantes em comunidades religiosas evangélicas e católicas6. O grupo se dividia em dois subgrupos: um pertencia a denominações evangélicas e outro à Igreja Católica. A vivência religiosa e a vivência musical dos participantes aconteciam ao mesmo tempo, estando profundamente relacionadas. 6 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Todos os entrevistados, com exceção de um, viviam em um mesmo município, que se divide em subdistritos próximos e participavam de uma oficina de música em uma escola pública como estudantes de música. Os que eram católicos participavam musicalmente de missas e de grupos de oração da Renovação Carismática Católica (RCC) ou se aproximavam dela. Atuavam também em pastorais, grupos de jovens, catequese, na pastoral social, em suas paróquias e comunidades. Os interlocutores evangélicos atuavam musicalmente em suas congregações (igrejas pentecostais e igrejas evangélicas) e ali realizavam também outras atividades, em consonância com as atividades musicais (escola bíblica, grupos de jovens, coordenação). Também visitavam outras igrejas evangélicas, pregando e tocando/cantando. Além de entrevistas, acompanhamento e observação dos interlocutores foram feitas visitas às suas comunidades e a algumas outras igrejas protestantes e católicas. A maioria dos entrevistados evangélicos era de igrejas pentecostais. Quando utilizo a expressão “evangélico”, emprego esse termo contemplando tanto a linha das igrejas pentecostais quanto a linha das igrejas de tradição histórica, (MAFRA, 2002). O trabalho “Novo Nascimento” (FERNANDES, 1998), do Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER), apresenta um panorama desse universo religioso. Segundo esse trabalho, as denominações de tradição histórica possuem caráter mais litúrgico. Já as pentecostais se destacam por forte crença na atuação do Espírito Santo e nos dons do Espírito, constituindo religiosidade com forte ênfase na emoção (FERNANDES, 1998). As principais correntes da Igreja Protestante são: Anglicana, Luterana, Presbiteriana (de linha Calvinista) e as igrejas livres (igrejas não associadas aos Estados). No Brasil, alguns exemplos de 75

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igrejas livres são: a Igreja Batista (vinda para o Brasil via Estados Unidos), Igreja Metodista (provinda da Igreja Anglicana), Igreja Congregacional e Assembleia de Deus (BRAGA, 1986; AIGNER, 2006; FREDERICO, 1998). As Assembleias de Deus e as igrejas congregacionais apresentam caráter pentecostal (MAFRA, 2002). Há uma distinção entre pentecostalismo e neopentecostalismo. As igrejas pentecostais, segundo Clara Mafra, são igrejas pequenas onde a comunidade luta por uma produção de corpos santificados – é uma experiência congregacional. Há uma personalização do trabalho do pastor: ele acompanha as pessoas de perto. “O dom da glossolalia é central para a mobilização e a manutenção de um coletivo a partir de uma imensa malha de pequenas “comunidades morais” (...) num sistema de hierarquia de base conservadora” (MAFRA, 2002, p. 21). O neopentecostalismo é marcado por uma teologia da prosperidade, uma forte valorização da figura do demônio, ênfase na “batalha individual”. Segundo Mafra, há uma despersonalização do trabalho do pastor. O suporte é através do que ele diz à igreja por meio do rádio e da tv; há um suporte midiático. A religiosidade neopentecostal “enfatiza a influência cada vez maior do mal no mundo e, consequentemente, a necessidade dos ritos de exorcismo e de libertação [que] acabam por formar multidões unidas por uma mesma experiência ritual” (MAFRA, 2002, p.21). O melhor exemplo de igreja neopentecostal é a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus). Outras igrejas neopentecostais: Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra, entre outras. Não abordei igrejas neopentecostais na pesquisa. Segundo Mafra, na verdade, “não temos um só pentecostalismo, mas pentecostalismos no plural” (MAFRA, 2002, p.21). A história do movimento pentecostal evangélico no Brasil tem uma classificação Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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que a divide em três etapas. A primeira, de 1910 a 1950, com ênfase na glossolalia, teve expansão no Norte e Nordeste do país. A segunda etapa foi entre 1950 e 1970, quando o dom de cura ganhou relevância e o polo se transferiu para São Paulo. A partir de 1970 ocorre a terceira onda, no Rio de Janeiro, com ênfase na expulsão de demônios (MAFRA, 2002, p. 19). Essa terceira onda se refere mais ao neopentecostalismo. O pentecostalismo evangélico teve início no Brasil com a chegada, em 1910, de dois missionários suecos, vindos dos Estados Unidos: o pastor Gunnar Vingren e Daniel Berg, que aportaram no Pará, procuraram a Igreja Batista local, mas logo após fundaram uma Assembleia de Deus, que cresceu e se espalhou rapidamente pelo território nacional. Antes disso, em São Paulo, Louis Francescon fundou a Congregação Cristã no Brasil, considerada a primeira igreja pentecostal do país, formada por imigrantes italianos, mas que permaneceu estacionária em termos numéricos. A palavra “pentecostal” quer se referir ao Dia de Pentecostes, 50 dias depois da Páscoa, narrado na Bíblia (Atos dos Apóstolos 2, 1-13), quando os discípulos, seguidores de Cristo, receberam o Espírito Santo, tornando-se corajosos, motivados e entusiasmados, perdendo o medo e pregando o Evangelho. Pessoas de vários povos e línguas os ouviram pregar nesse dia, e os entendiam em suas próprias línguas. Em Pentecostes aconteceu uma grande manifestação do Espírito com vento e línguas de fogo. Antes desse acontecimento, Pentecostes ou Festa da Messe era celebrada pelos judeus sete semanas depois da Páscoa. Em grego, pentecostes significa quinquagésimo. Após o acontecimento em Jerusalém com os apóstolos, o nome “pentecostes” adquiriu novo significado para os cristãos. 77

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Nesta pesquisa, os entrevistados evangélicos eram integrantes, em sua maioria, de Assembleias de Deus (pentecostais). Um participante da pesquisa era filiado à Igreja Adventista do Sétimo Dia, denominação cristã protestante que se distingue pela observância do sábado, o sétimo dia da semana judaico-cristã, e por sua ênfase na iminente segunda vinda de Cristo. Os entrevistados católicos eram participantes da RCC (Renovação Carismática Católica), em sua maioria, ou se aproximavam dela. A RCC é um movimento que acontece dentro da Igreja Católica, formado por grupos que guardam algumas características semelhantes às das igrejas pentecostais evangélicas: a valorização da ação do Espírito Santo e a emoção. Às vezes, a RCC é chamada de “pentecostalismo católico”. O movimento carismático católico surgiu nos Estados Unidos na passagem da década de 60 para a de 70, após o Concílio Vaticano II. O movimento espalhou-se rapidamente entre os continentes e chegou ao Brasil. A fundação inicial deu-se em um retiro espiritual na Universidade de Duquesne, em Pittsburg, EUA, em 1967 (CARRANZA, 2000, p.24). Outras experiências ocorreram em mais duas universidades americanas. No Brasil, dois jesuítas norte-americanos são identificados como pais fundadores e difusores iniciais da RCC (Pe. Harold Rahm e Pe. Eduardo Dougherty). Cecília Mariz (2004) traça um panorama sobre o movimento no Brasil e explica que foi criado em Campinas (SP), um grupo de oração formado por jovens universitários, liderados pelo padre Harold, grupo este embrionário do movimento no Brasil. A cientista social nos conta que, embora desde o seu surgimento a RCC tenha sido bem sucedida, seu maior crescimento se deu na segunda metade da década de 90. Na

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RCC, os fiéis se reúnem principalmente em grupos de oração e em missas carismáticas. O movimento não nega a doutrina da Igreja Católica nem questiona sua autoridade. Entrevistei e acompanhei 11 pessoas, cinco das quais evangélicas e seis católicas. Visitei suas congregações e outras comunidades onde elas eventualmente estavam presentes. Observei-as em suas igrejas e na escola. Como já foi dito anteriormente, os nomes dos entrevistados e de suas comunidades foram substituídos por nomes fictícios. O trabalho de campo não se limitou às entrevistas e às visitas. Fiz observação participante em igrejas evangélicas e católicas. Além desses ambientes, focos da pesquisa, visitei outros sítios religiosos, fundamentais para entender melhor o universo carismático católico e o universo evangélico. Participei de missas carismáticas e grupos de oração em diversos lugares, em outras cidades do RJ, e também na Comunidade Emanuel, no Rio de Janeiro (RJ), e na Comunidade Canção Novo, em Cachoeira Paulista (SP) ; e de cultos e momentos de oração em igrejas batistas, em evangélicas pentecostais e igrejas de outras denominações, em outros municípios do RJ, São Gonçalo, entre outros. Esses momentos foram etnografados. Além de procedimentos como gravar, transcrever, anotar, descrever, observar, participar, também coletei informações em conversas informais, situações e comentários nas igrejas, nas aulas, nos vários ambientes visitados. Foram observados também ensaios desses grupos, tanto na escola quanto nas igrejas. Essa experiência de campo me levou a refletir intensamente sobre o que seria realmente etnografar e quais seriam os melhores procedimentos para a realização de uma etnografia, digamos, honesta. 79

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Esbarrei em questões complexas: na verdade, existe uma etnografia que apresente ao pesquisador, ao pesquisado e aos que depois procuram conhecer a pesquisa o que realmente é aquela comunidade pesquisada? Existe uma etnografia que, ao ser lida pelos pesquisados, se apresente a eles como aquilo que eles realmente são? Existe realmente algo que poderíamos chamar de etnografia honesta e verdadeira, uma etnografia que apresente a realidade? A etnografia traduz uma realidade? Um tema de preocupação constante para mim ao longo da execução da pesquisa era a fidelidade à realidade retratada. Essa é, provavelmente, uma aflição muito comum entre jovens pesquisadores. Era importante, primordial, ser fiel ao que eu observava. E estava sempre presente em minha mente o medo de estar interpretando de maneira errada ou diferente ou não tão fielmente os fatos. Conduzi entrevistas, observei atividades e gestos, conversava com as pessoas e tentava escrever e relatar o que observava e o que me diziam. Era preciso descrever e também interpretar. E aí surgiam as dificuldades. Eu estava tentando mostrar o ponto de vista das pessoas que estavam sendo pesquisadas. Mas, como poderia ter certeza de que o que eu descrevia e interpretava era exatamente a realidade? O que eu descrevia e como eu relatava correspondia ao que as pessoas pesquisadas estavam pensando, fazendo, dizendo? Se Aproximar-se do ponto de vista nativo é muito difícil. Como poderia compreender o que as pessoas dizem, pensam, fazem? Como não interferir em suas atividades e em suas falas? Como narrar os fatos com clareza? Como descobrir os motivos subjacentes a suas práticas? E como elas mesmas veem aquilo que fazem? Qual a visão delas sobre aquilo? E qual a visão delas sobre o

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que eu, pesquisadora, dizia sobre elas? Algumas vezes pensei em modificar a maneira de proceder e utilizar novas propostas e metodologias diversas. Pensei em pedir aos pesquisados que eles mesmos escrevessem sobre suas atividades e sua prática musical. Cogitei deixar que eles decidissem como seria feita a pesquisa. Pensei em convidá-los a fotografar, gravar e filmar seus encontros. Pensei em compartilhar minhas anotações com eles e solicitar sua opinião, porém, senti bastante dificuldade em realizar a pesquisa nesses moldes, visto que eu já havia começado e o trabalho estava avançado. Hoje, terminada a pesquisa, ainda me pergunto se não deveria ter me conduzido de outra maneira no campo. Este texto apresenta um esforço de reflexão sobre algumas dessas dificuldades e sobre os resultados obtidos neste trabalho. Após essa seção metodológica que apresentei acima, desenvolvo o artigo em si, que está dividido em seis seções. A primeira trata do lugar da emoção na música e no rito religioso. A segunda seção procura explicar que música é esta vivenciada pelo grupo de pesquisados, como é esta música. A terceira trata da categoria nativa “cantar com unção”. A quarta seção discorre sobre a composição como um “dom divino”. A quinta sobre o lugar da competência técnica musical na produção dessa experiência religiosa, também sobre as noções de dom e vocação e sobre situações que se apresentaram no campo e trouxeram inquietações referentes ao fazer etnográfico em si. Na sexta seção, reflito sobre a natureza da relação que se estabelece entre o pesquisador e o grupo de pesquisados, sobre a tensão que se instala. A diferença entre minha visão e a visão de meus interlocutores sobre técnica e avaliação estética

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conduz o texto para a reflexão final sobre etnografia. E então apresento minhas considerações finais. Os próximos segmentos exploram alguns dos eixos temáticos que emergiram na dissertação (emoção, unção, composição, dom, vocação, técnica). Esses assuntos se apresentam muito imbricados e articulados entre si. Dessa forma, em algumas seções, alguns temas podem eventualmente reaparecer. Inicio abordando o tema da emoção e seu lugar na música e no rito religioso.

O lugar da emoção na música e no rito religioso Quando iniciei o trabalho de campo, não era tão clara pra mim a relevância da emoção no fazer religioso e musical nos grupos nos quais realizei a pesquisa. Eu havia lido que o Espírito Santo era central e que a oração parecia carregada de sentimento, mas não imaginava que fosse algo tão forte. Gradativamente, fui levada por situações em que comecei a perceber essa importância e essa presença forte da emoção. Na RCC, em algumas comunidades, observamos que os momentos de oração “em línguas”7 acontecem ao mesmo tempo em que há música. Muitas vezes essa oração, em vários grupos católicos, apresenta melodias flutuantes, paralelas, formando acordes. É uma oração extremamente sonora e musical. E se faz presente em momentos de emoção coletiva, com gestos corporais com os quais os fiéis demonstram a expressão de seus sentimentos: olhos fechados, semblantes contritos, 7

Fenômeno da glossolalia (Atos dos Apóstolos, Cap.2, vers 3 e 4 da Bíblia Sagrada). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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mãos erguidas em gesto de pedir ou receber uma benção, sendo elevadas até a altura dos ombros com os cotovelos dobrados. Também há pessoas que levam uma das mãos ou as duas ao coração; geralmente algumas apresentam lágrimas nos olhos e várias pessoas erguem totalmente os braços e mantêm as mãos elevadas para os céus. Também fenômenos de “batismo no Espírito Santo”8 costumam acontecer em ocasiões de emoção em grandes grupos. Embora encontremos relatos desse mesmo batismo em momentos mais tranquilos, em grupos pequenos, sem tanta ênfase na emoção e na música, a maioria das experiências relatadas e observadas está relacionada à grande comoção e a sons musicais. Em uma das comunidades católicas onde estive, presenciei um momento de oração em línguas: uma banda está tocando enquanto todo o povo canta também (um canto conhecido no meio católico). Há uma cantora que fala em um microfone e, com palavras de afeto e amor a Jesus, de gratidão, incentiva o povo a cantar, conduzindo a oração. A 8 O batismo no Espírito Santo é uma experiência espiritual forte, um fenômeno imprevisível e que pode acontecer uma ou mais vezes na vida do sujeito. Em relatos apresentados no livro “Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências”, CARRANZA (2000), as pessoas parecem sentir-se de maneira diferente no momento do acontecimento e aquele fato marca para sempre suas vidas (p. 93- 95). A autora argumenta: “(...) há uma experiência individual que altera os sentidos, altera a afetividade, as relações interpessoais e nela a pessoa é consciente do que acontece (...) a ponto de lembrar detalhes da experiência” (CARRANZA, 2000, p. 95). Após receber o batismo no Espírito Santo o fiel torna-se mais ardente na oração e na vivência religiosa, vivifica sua fé. Essa experiência parece ser narrada apenas em contextos pentecostais e entre carismáticos; não encontramos referências a este tipo de batismo entre luteranos, presbiterianos e católicos tradicionais. Esse batismo se diferencia do batismo conferido a católicos e protestantes quando estes são imersos em água ou quando ainda bebês recebem água em sua fronte (tal batismo, segundo a doutrina católica, acontece apenas uma vez na vida do fiel, é um rito de iniciação cristã, insere a pessoa na comunidade, e produz efeitos: purifica, traz novo nascimento, apaga todos os pecados e a marca do pecado original, santifica, torna a pessoa templo do Espírito Santo, membro do Corpo de Cristo, filho de Deus, e deixa uma marca indelével.). (CATECISMO, 2000, p. 1226 - 1270).

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cantora exorta o povo a rezar, a se colocar nas mãos de Deus, a pedir o Espírito Santo. Exorta o povo a elevar os braços e a cantar e rezar em voz alta (“Levante seus braços, solte sua voz”!). A banda diminui o volume até que fica somente o teclado fazendo uma cama harmônica, baseado nos acordes do canto que havia sido cantado anteriormente. A cantora começa a entoar sílabas aparentemente sem sentido (oração em línguas, voz cantada) “lalálá, lalalá, lálálá... ah ah ah... subialá-baiá, balá, baiáaahh... shimbaralá, shimbaralá... laiá, ah... ôô ... êêê ôôô, iá-a-a-ah... êê-ia-lá-lá,... lá-lá-lá... lá-lá-lá...”, repetindo com essas sílabas, geralmente três notas musicais próximas em movimento descendente (terceiro grau, segundo e tônica de uma escala diatônica maior), percorrendo depois notas da tônica do acorde, da terça, da quinta, sexta do acorde voltando para a quinta, algumas vezes da oitava e voltando para a quinta; as pessoas começam a cantar também “lalalá... shibalá... ia...”9. As pessoas demonstram contrição, a maioria que está no meu campo de visão mantém os olhos fechados. Certo número de pessoas inclina o rosto para o chão ou para o alto, outras colocam a mão sobre o peito, algumas se dão as mãos e as elevam, muitas estão bem concentradas. Observo que 9 A tônica, o terceiro grau, o segundo grau, a quinta, a oitava são notas musicais (graus) de uma escala, por exemplo: na escala de dó maior temos as notas dó, ré, mi, fá, sol, lá, si (sete notas). Podemos pensar nessas notas como partes de uma escada, degraus numerados, nos quais a nota dó seria o degrau 1, ré seria o degrau 2, mi seria 3, e assim por diante. A tônica (primeira nota) e a oitava são a nota dó, o segundo grau é a segunda nota dessa escala (nota ré), a terça é a terceira nota (nota mi), a quinta é a nota sol (quinta nota da escala), e assim por diante. Essas notas tocadas simultaneamente formam um acorde (por exemplo, do, mi, sol, que são a tônica, a terça e a quinta). Os acordes fazem a harmonia (o acompanhamento) da música. Na música ocidental, uma escala musical é o parâmetro em que está construída determinada música, determinada canção. Essas notas são utilizadas na melodia da canção (aquilo que é cantado) e formam os acordes (a harmonia, o acompanhamento, os outros sons feitos com vozes e instrumentos) da mesma canção. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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certas pessoas enxugam discretamente lágrimas em seus rostos. No início as pessoas cantam baixinho, mas aos poucos elevam o volume da voz e erguem os braços. A cantora canta sílabas percorrendo, melodicamente, o terceiro grau da escala, o segundo e a tônica. O tecladista mantém o acorde de tônica: primeira, terça e quinta do acorde. Ele mantém o mesmo acorde, acrescentando em alguns momentos a quarta, às vezes a nona, voltando ao estado fundamental e aí permanecendo. Várias pessoas cantam coisas diferentes, simultaneamente. Algumas quase estão em voz falada, algumas falam com a voz mais grave, outras com voz mais aguda, outras cantando melodias flutuantes, cada uma em uma altura. As pessoas estão de olhos fechados e mãos para o alto. Ouço, provindo das vozes (são muitas vozes), um acorde maior cheio de nonas, décimas terceiras, sétimas, décimas primeiras. Há um clima de recolhimento e exaltação ao mesmo tempo. E então essa oração mergulha em um canto católico conhecido (o canto que estava sendo cantado anteriormente), em português (“Jesus, fonte de misericórdia que jorra do templo... Jesus, rosto divino do homem; Jesus, rosto humano de Deus...”). Em algumas comunidades católicas que visitei, a oração em línguas era falada, mas sempre havia um grupo musical tocando ao fundo um canto com letra, e algumas vezes sem letra, que conduzia o início, o transcorrer e a conclusão da oração. E, quase sempre, as pessoas fechavam os olhos, algumas erguiam os braços. Algumas vezes observei que tudo acontecia calmamente, sem muita exaltação. Outras vezes com bastante exaltação. Todavia, esses elementos estavam sempre presentes: música, cantos, olhos fechados, mãos erguidas.

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Também em comunidades pentecostais evangélicas observei a oração em línguas não cantada, mas falada; o momento era precedido por música e havia um fundo musical durante a oração. A pessoa que conduzia a oração começava falando calmamente, num registro mais grave de voz e com pouco volume. Aos poucos, sua voz ia ficando mais aguda e a pessoa começava a falar com mais exaltação; as palavras eram proferidas com mais velocidade e mais volume. Nesses momentos, várias pessoas começavam a orar, falando todas ao mesmo tempo e algumas se movimentavam corporalmente, balançando o tronco de um lado para outro, ou para frente e para trás. Algumas levantavam os braços, fechando os olhos. O volume de voz da pessoa que conduzia a oração crescia gradativamente, e caminhava para o registro mais agudo, bem como o volume das outras vozes crescia. Nos grupos evangélicos também observei gemidos e palavras soltas em meio a um vozerio e oração em línguas, (“Ôôôô, Senhor!”, “Ôôôô, glória!”, “Ôôô aleluia!”, “Óh, sim, Senhor!”). O volume das vozes faladas se elevava bastante com sílabas sem sentido e palavras soltas até atingir um clímax e depois ia diminuindo progressivamente até se fazer silêncio, ou se concluir com uma música (um “louvor” ou um “hino”). Em outros diversos momentos de oração, quando não há a oração em línguas, encontramos orações espontâneas e, entre elas, cantos. Nas reuniões, além dos momentos de orações espontâneas, há momentos de leitura bíblica e algumas pregações e palestras de formação. Sempre, entre todos esses momentos há cantos que precedem as leituras bíblicas e pregações, e, após a leitura e a pregação, há também um canto. Também quando cantam se observa que as pessoas fecham os olhos, erguem as mãos, inclinam a cabeça e algumas, às vezes, têm em Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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seus rostos expressões que denotam vontade de chorar, lábios trêmulos, lágrimas, ainda que, de certa forma, essas últimas expressões se encontrem escondidas, disfarçadas, (não explícitas e ruidosas). Algumas pessoas enxugam lágrimas discretamente. Há momentos de animação, como se fossem instantes de aquecimento. Geralmente esses instantes acontecem no início da reunião e os cânticos, hinos e louvores são bem animados, alegres; as pessoas sorriem e se movimentam bem mais: de pé, sem sair totalmente de seus lugares, quase dançam ao mesmo tempo em que cantam. Às vezes dançam mesmo, pulam, “soltam o corpo”. Acompanham as letras dos cantos com gestos que ajudam a representar o que a letra da música diz; é quase como se fosse um exercício físico, uma ginástica. Existe até um “louvor”, um cântico que se chama “Aeróbica do Senhor”! É um pouco como uma brincadeira para relaxar, “desestressar”, um momento inicial preparatório; para “louvar a Deus com alegria”, para “mandar para longe a tristeza”, para entrosamento entre as pessoas, funciona como entrosamento, chegada, abertura, acontece inicialmente para preparar o que vem depois. Esses exercícios corporais e cantos animados se realizam antes de um momento de oração mais profundo, mais meditativo. É sempre para “louvar”. Há cantos pequeninos que incentivam as pessoas a abrir os braços, cumprimentar a pessoa ao lado, abraçar os irmãos, fazer “cosquinha” no vizinho, abaixar e elevar o corpo, dar as mãos, pular, sorrir, “dançar movido pelo Espírito diante do Senhor como o Rei Davi”. Depois, à medida que a reunião adentra na meditação da Palavra (Bíblia), a oração se torna mais calma, reflexiva, as pessoas se sentam, fecham os olhos e aí acontece o momento de oração citado

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anteriormente, com a oração em línguas, com orações espontâneas pausadas, cantos mais lentos e que levam a manifestações de lágrimas etc. É possível perceber que formas ritualizadas de expressão da emoção nos momentos do rito religioso são pontuadas pela música. Procuramos articular esse aspecto com o pensamento de Marcel Mauss (1980), antropólogo e sociólogo, que analisa a expressão dos sentimentos em rituais funerários australianos. O autor relata que esses rituais se compõem de algumas manifestações tais como: gritos e uivos, frequentemente melódicos e ritmados; voceros, frequentemente cantados (Voceros é um termo corso e significa “canto fúnebre executado por uma carpideira para um defunto”), além de outras manifestações. Mauss sugere que a natureza das expressões dos sentimentos é uma natureza social. Podemos, a partir das reflexões de Mauss, relacionar a expressão dos sentimentos por meio da música, (nos cantos, gestos, choro, expressão de emoção) nos segmentos pentecostais a uma expressão simbólica, uma linguagem, expressões de caráter coletivo. Interessante notar que como nos rituais funerários australianos, em cultos pentecostais acontecem canto, choro, gestos que denotam emoção, às vezes e em alguns lugares gritos melódicos. Escreve Mauss: (...) uma categoria considerável de expressões orais, de sentimentos e emoções nada teem que não seja coletivo, num número muito grande de populações, espalhadas sobre todo um continente. Digamos logo que este caráter coletivo em nada prejudica a intensidade dos sentimentos, muito pelo contrário (...). Mas todas essas expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e força obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo são mais do que simples manifestações são sinais, expressões compreendidas; em suma, uma linguagem. Estes Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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gritos são como frases e palavras. É preciso dizê-las, mas, se é preciso dizê-las, é porque todo o grupo as compreende. A pessoa, portanto, faz mais do que manifestar os seus sentimentos; ela os manifesta a outrem, visto que é mister manifestá-los. Ela os manifesta a si mesma, exprimindo-os aos outros e por conta dos outros. Trata-se essencialmente de uma simbólica (MAUSS , 1980, p. 331- 332).

Podemos também relacionar os momentos de emoção, cantos, lágrimas ao conceito de “efervescência” desenvolvida por Durkheim (1996). Émile Durkheim afirma que os ritos são momentos importantes; momentos de encontros nos quais acontece um estado de efervescência coletiva. Há um momento ritual em que todos os presentes chegam a um estado de exaltação. Segundo o autor, o homem sente-se arrebatado, dominado por uma espécie de poder superior que o faz pensar e agir de modo diferente do normal e que se trata da força do grupo, que apresenta esse estado efervescente. E, como todos os seus companheiros estão a se sentir da mesma maneira, traduzem seu sentimento por gestos, atitudes, gritos, choros, cantos, sons. É como se o homem fosse transportado para um meio, cheio de forças excepcionalmente intensas que o invadem e o metamorfoseiam. Durkheim conclui que é desses rituais, justamente, “nesses meios sociais efervescentes e dessa efervescência mesma, que parece ter nascido a ideia religiosa” (DURKHEIM, 1996, p. 225). É algo sempre coletivo. Um jogo no Maracanã é um rito, é um momento de efervescência, no qual as pessoas interagem, são levadas a agir pela força coletiva, sentem-se da mesma forma e apresentam atitudes, gritos, gestos, cantos. Os cultos pentecostais, nos quais, em determinado momento, todos começam a orar em voz alta ao mesmo tempo, são um rito, um momento de efervescência. O grupo de oração carismática, que, 89

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em determinado momento, canta de olhos fechados, todos erguem as mãos, oram, alguns derramam lágrimas, muitos batem palmas, é um momento de efervescência coletiva. Gestos e manifestações de emoção, lágrimas (o “dom das lágrimas”) eram importantes no contexto que pesquisei. Significavam para os sujeitos uma conexão com o sagrado, um sinal de verdadeira conversão, sinal de que tinham sido “tocados” pela Palavra de Deus e pela graça divina. Os segmentos pentecostais são considerados por alguns autores “comunidades emocionais” (HERVIEU-LÈGER, 1997, p. 42; MACHADO, 1996, p. 22) nas quais a música assume um fundamento ritual e há um “primado do sentimento como critério de veracidade” (SILVEIRA, 1999, p. 2), dos experimentos pessoais “e da própria vida social” SILVEIRA, 1999, p. 2). A religiosidade presente nesses grupos se apresenta como emocional, mística, encantada. Nas comunidades citadas, a presença do Espírito Santo não é vivenciada somente como uma experiência intelectual da fé, mas como uma experiência emocional, subjetiva, afetiva, que valoriza os sentidos, os sentimentos e o corpo. Observam-se nos participantes dessas comunidades gestos e sinais corporais de expressão emocional e religiosa. Essas expressões emocionais dentro do culto religioso estavam quase sempre presentes em momentos de música. Nas chamadas “comunidades emocionais” há um compromisso pessoal de conversão para com Deus e entre os adeptos. O testemunho dos convertidos acaba por criar entre eles estreitos laços de pertencimento que tendem a ser particularmente emocionais. Há um comprometimento. A música está sempre presente, assumindo um lugar Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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fundamental no ritual. A participação nessas comunidades cria vínculos. E o vínculo é um importante fator de coesão social. Tais comunidades articulam uma religião mística e “mais encantada”, valorizando o sentimento e se opondo ao predomínio da razão. A religiosidade mística dessas comunidades é diferente daquela experimentada por monges e ascetas dos primeiros séculos, que se retiravam para o deserto ou para um mosteiro para viver um isolamento místico do mundo e assim encontrar Deus. Essa religiosidade mística dos carismáticos e pentecostais acontece aqui, no meio da sociedade, no mundo, tal qual acontece no ascetismo laico, levantado por Weber. O processo de racionalização que se constata na sociedade Ocidental encontra nessas comunidades um antagonismo e ao mesmo tempo uma aproximação. A hipótese apresentada por Max Weber de que haveria uma tendência à racionalização sistemática na sociedade Ocidental na religião e em outras esferas parece estar muito forte nos tempos atuais, desde o Renascimento. Nesse movimento de racionalização, o mundo se “desencanta”: explica-se o mundo e a ação do homem no mundo a partir da razão. O racional vai se tornando o modo legítimo de se estar no mundo (WEBER, 2006, p. 23-25). Maria das Dores Campos Machado explica em seu livro “Carismáticos e Pentecostais” (1996) que os estudos de Hervieu-Lèger são relevantes, uma vez que argumentam que “o processo de racionalização descrito por Weber não implica o total desaparecimento da emoção”. “Ao contrário, eles continuariam a existir, sobretudo nas celebrações religiosas na forma de canções, danças e orações” (MACHADO, 1996, p. 21). Machado, citando Hervieu-Lèger, ressalta que a constituição

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desses grupos religiosos nas sociedades modernas expressa uma crítica às religiões institucionais e às relações sociais do regime dominante. No plano social, a formação dessas sociedades pode ser vista como uma rejeição à indiferença emocional da modernidade (MACHADO, 1996, p. 22-23). As “comunidades emocionais” articulam uma recomposição da expressão religiosa na modernidade. Desqualificando as ‘expressões intelectuais’ da fé, valorizando as manifestações sensíveis da presença divina no mundo, as correntes emocionais contemporâneas tentam contornar (...) [o] conflito estrutural da condição do crente na modernidade (HERVIEU-LÈGER, 1997, p. 42).

Outra característica importante que emerge da prática religiosa e das falas desses grupos é a percepção de um Deus que não está distante, mas que se faz presente aqui ao lado de cada um, no meio dos fiéis, que “habita no louvor”, que fica mais próximo ainda quando a assembleia louva e canta. O fiel se refere a esse Deus e dialoga com ele como alguém que fala com uma pessoa muito próxima, íntima, e de forma amorosa. O fiel afirma que Deus fala através da Palavra (leitura da Bíblia), mas também está presente no louvor. A maneira de se comunicar com esse Deus é através da música, com letras e palavras afetuosas e repletas de sentimento, repletas de imagens, metáforas, poesia. Em alguns dos depoimentos em que meus interlocutores falavam sobre suas experiências musicais era possível perceber a relevância atribuída ao sentimento, à afetividade, aos laços de pertencimento, ao compromisso. Abaixo, alguns exemplos dos depoimentos: (...) depois que minha mãe faleceu, eu fiquei assim em crise... E....Uma vez eu entrei em uma igreja. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Estava tendo uma missa dos jovens. E, assim, eu fiquei supertocado com isso!... E perguntei depois da missa para os jovens se eu podia tocar com eles. Eles disseram que podia. Comecei a tocar todo domingo lá e aquilo me abriu um... Um campo assim (...) com a música, um campo incrível!” (...) “Foi super legal! Tinha vários violões. Eram jovens. (...) Uma missa muito alegre. E aquilo me tocou muito porque eu pensava, tinha uma ideia de missa como uma coisa assim muito séria, paradona... Quando eu vi aquilo, aquilo me tocou muito! Eu vi que tinha alguma coisa diferente! Então (...) foi todo o início de uma trajetória. Então, entrei pra crisma. Era todo domingo. Eu tocava. Quer dizer, eu ia lá pra crisma, depois tinha missa. Durante a semana toda eu esperava esse momento! (...) (Michel, 47 anos, católico) (...) Fiquei tocando a flautinha lá na São José, no microfone, e a Beatriz começou a [ensinar] coisas de violão pra gente (...) Ela começou a ensinar na igreja pra gente as batidas... (levadas, dedilhados) (...) Depois eu passei pra outras pessoas... É uma coisa bonita que vai passando... Dá fruto mesmo! Entendeu? (...) Então, depois, eu já comecei a tocar na missa...(...) Tinha aqueles meninos e as meninas... A gente se reunia pra tocar, ensaiar. Era muito bom!(...). (Cláudio, 27 anos, católico) Quando Deus se manifesta em nossa vida, Ele quer que a gente entre pra trabalhar, pra ser colaboradores de Deus. A igreja somos nós porque Deus quer que a gente faça alguma coisa pra ajudar, como Ele veio só pra ajudar os outros. (...) Na Pastoral Social eu ajudo os menos favorecidos. É um trabalho muito bom. Porque você vê as condições da pessoa, você olha pra si e vê “Caramba! Minha vida é muito boa! Tenho tanto!”. (...) Somos muito bem pagos, não pelos homens, por Deus! (...) Porque a gente ajuda o próximo e Deus nos ajuda. (...) A gente é tocado, né? 93

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O Espírito Santo sempre age na nossa vida. Eu penso que a pessoa tem que ter dom também... Pra se doar, pra ajudar o próximo. (Josino, 42 anos, católico) Logo que aceitei Jesus, eles começaram a me dar oportunidade pra cantar, tirar um versículo bíblico e cantar. Prego e canto na minha igreja e prego em outras igrejas. (...) Pra cantar assim tem que estar muito ligada, muito inspirada. (...) Você tem que pregar e cantar o que você vive, pra você passar aquela unção. (...) O Espírito Santo é algo assim: pra ele gerar dentro de nós, a gente tem que ter intimidade com ele. Assim: buscar Jesus, buscar o Espírito Santo. Buscar revestimento e poder. (...) Porque a pessoa que é líder não tem que ter uma vida normal (...) Tem que buscar mais (...). (Viviane, 29 anos, evangélica)

A fala de uma entrevistada, rememorando uma das situações em que ela louvara na igreja, evidencia a importância atribuída à emoção nos momentos em que a música comparece no rito religioso: No final do culto, meu marido pediu a palavra e pediu que eu cantasse uma outra música, um louvor (...) também muito lindo! (...) E foi um mover tremendo, as pessoas chorando... sabe? E é tão emocionante quando você vê que as pessoas são alcançadas, quando você vê que o seu louvor faz a diferença, sabe? Tocou as pessoas de uma maneira especial. Muito tremendo! (...) Eu chego a ficar emocionada só de falar (...). (Aline, 35 anos, evangélica)

Cláudia Rezende (2003), a propósito de pesquisa sobre amizade entre jovens em Londres, efetua um balanço da produção antropológica sobre emoções e diagnostica algumas tendências. A autora ressalta que os rituais de caráter religioso teriam o papel de reafirmar os sentimentos Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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coletivos que dão unidade à sociedade e cita Durkheim e Simmel: Durkheim (1971) foi um dos primeiros a discutir a dimensão social das emoções, a partir de seus estudos sobre os fenômenos religiosos. Do mesmo modo que toda sociedade tem representações coletivas que se impõem aos indivíduos e através das quais eles organizam suas experiências, ela também produz sentimentos coletivos, necessários para a manutenção do consenso social. Assim, os rituais, muitas vezes de caráter religioso, teriam o papel de reafirmar regularmente os sentimentos coletivos que dão unidade à sociedade. Contemporâneo a Durkheim, Simmel também abordou o caráter social de sentimentos como fidelidade, gratidão (1964) e amor (1993), a partir de uma perspectiva teórica distinta, enfatizando que as formas sociais surgem das interações dos indivíduos. (...) Em Simmel, essas emoções adquirem status sociológico, pois estão articuladas às formas de relação, ao passo que outras permaneceriam como estados subjetivos (REZENDE, 2002, p. 3).

Durante a pesquisa, um dado que apareceu muito forte foi a questão da aprendizagem e da motivação. Não tratarei desse dado nesse artigo, porém, é importante assinalar a presença forte da amizade, dos sentimentos de pertencimento a um grupo e da vivência religiosa como fortes pontos de motivação para a aprendizagem de música. Um entrevistado demonstra que a participação no grupo musical da comunidade, lhe causava grande entusiasmo, alegria. Ele lembra o fato com “saudade”. Atribui muito valor a essa atividade e a determinados estilos musicais - um tipo de música que admira e gosta também de ouvir. O fato de estar vivenciando música em um ritual religioso parece lhe causar grande satisfação. A entonação em sua fala 95

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transmite a impressão de reverência e assombro, como por referência a algo grandioso, profundo, marcante: (...) Ele me falou: ‘Estamos fundando uma comunidade... Precisa de jovens... Que tal você entrar pra formar um coral?’ Eu me interessei. Pra mim, era tudo de bom! Uma coisa assim nova, diferente, não é? E na igreja! Uma coisa que eu sempre admirei: a música assim na igreja! (...) A Beatriz começou a me passar as coisas de violão que ela tinha aprendido. Ela aprendeu (...), depois me passou... Foi passando... Depois eu passei pra outras pessoas... Olha a sequência! Olha só como Deus atua! Bacana, né? É uma coisa muito linda! É uma coisa bonita que vai passando...Dá fruto mesmo! Tinha aqueles meninos e as meninas... a gente se reunia pra tocar, ensaiar. Aquele grupinho...(...) Era legal, era muito bom! (...) (Depois fui ao Santuário e cresceu mais minha vontade de fazer música mais solene) ... (...) E estar naquela igreja ouvindo aquela música, vivendo aquela música, aquela oração. Deus está ali presente! A gente sente! (...) Gente, estar ali naquela igreja é tudo de bom! Eu sinto assim... Uma paz... Uma coisa que não sei explicar. É onde eu me encontro! ... Ficar ali, ouvir aquele órgão tocando, aquela música, aquela maneira de tocar! (...) Parece que me ajuda a rezar! Acho que é o que eu quero pra mim! (Cláudio, 27 anos, católico).

Ao falar sobre essas experiências, Cláudio demonstra uma expressão de alegria no rosto. Levanta as sobrancelhas. Fala devagar, com reverência. No momento em que pronunciara o trecho acima reproduzido, notei que havia um brilho em seu olhar. Relaciono esses grupos que compartilham um fazer musical comum, estas “comunidades emocionais” e “comunidade musicais” dos contextos pentecostais e carismáticos aqui apresentados, às reflexões de Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Jonh Blacking. Esse pesquisador afirma que o fazer musical proporciona uma intensidade e qualidade de sentimentos e experiências que detêm um grande valor de influência social (1979). Segundo o autor, as relações sociais se refletem nas relações musicais. Esses grupos que vivenciam música e religião podem ser chamados de “grupos sonoros” (BLACKING,1995). John Blacking trabalhou como antropólogo e, mais tarde, como etnomusicólogo. Suas atividades como professor universitário e organizador promoveram o desenvolvimento da etnomusicologia. Blacking estabeleceu o conceito de “grupos sonoros”. Um grupo sonoro seria um grupo de pessoas que compartilha um fazer musical, uma linguagem musical, além de ideias semelhantes sobre música e seus usos. O fazer musical, segundo esse autor, contribui para a coesão do grupo. Analisar música deveria ser uma atividade que se concentraria na interação social musical, de acordo com Blacking. Seria muito mais importante analisar música partindo da interação social do que partindo simplesmente dos fenômenos sônicos, dos aspectos acústicos. Música, segundo Blacking, não seria simplesmente um produto de uma realidade social, mas um sistema cultural. A experiência dos sentimentos e emoções, nesta perspectiva, possui dimensão importante a ser observada. Os sentimentos e ideias seriam expressos em padrões sonoros, ao mesmo tempo em que padrões sonoros evocam sentimentos e ideias. Essa rede de produção simbólica envolve músicos, compositores, ouvintes. Ao refletir sobre a fala de Cláudio e de outros entrevistados e a sua emoção, lembro-me que, nesta fase da pesquisa, eu era tomada por indagações e inquietações: seria essa emoção algo aprendido, imitado? Quando as pessoas choravam ao ouvir e/ou cantar/tocar uma música, seria um hábito que fazia parte dos procedimentos nos momentos de 97

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oração? Será que elas sentiam emoção porque todo mundo sentia e demonstrava isso? Minhas inquietações acerca de um relato etnográfico que apresentasse realmente a visão dos sujeitos da pesquisa voltava à tona a cada nova atividade que eu desenvolvia em campo. Sempre muitas perguntas surgiam: a emoção demonstrada seria mesmo autêntica? Será que consegui registrar todos os detalhes? Não perdi algum gesto importante, alguma cena importante, alguma fala? Interpretei corretamente? Estaria sabendo ler nas entrelinhas corretamente e descrever/retratar com clareza? Seria a emoção de meus interlocutores algo que eles demonstram por terem aprendido a agir daquela maneira? Seriam reações espontâneas, ou poderia ser apenas um teatro, uma espécie de simulação? Na época, eu ainda conhecia pouco dos debates socioantropológicos sobre religião e emoção. Tais inquietações foram diminuindo à medida que a pesquisa avançava e que eu ganhava consciência de que, se eu estava interessada em compreender a visão de mundo e as experiências de meus interlocutores, eu não deveria duvidar daquilo que eles dizem que sentem. A emoção estaria presente em meio à música. E como seria essa música? Apresentaremos melhor os seus aspectos na seção a seguir.

A música como veículo de manifestação do sagrado e como encontro entre o homem e o divino Além da oração em línguas que observei acontecer de maneira musical nos grupos da Renovação Carismática Católica (RCC), pesquisei

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a música produzida e cantada/executada nesses mesmos grupos de oração e nos cultos e momentos de oração evangélicos pentecostais, os “louvores”, como muitas vezes são denominados pelos fiéis. Os pesquisados costumam utilizar a categoria “louvor” quando estão se referindo à música. Também utilizam o termo para o momento da oração e para o ato de louvar a Deus. Além deste termo, utilizam as categorias hino, cântico, canto e música ao se referir às músicas que cantam nos grupos de orações católicos ou evangélicos. Também utilizam os termos “música cristã”, “louvor cristão”, “música do evangelho” ou “música evangélica”, “corinho” (escutamos várias falas e expressões diversas como as seguintes: “gosto de ouvir louvor cristão”, “aprecio louvor cristão”, “ouço música cristã”, “faço música evangélica”, “eu gosto de música do evangelho”, “eu gosto de escutar ‘louvor’ no rádio, ouço mais os louvores das ‘rádios evangélicas’ porque gosto de ouvir ‘música evangélica’”, “sou do ministério de louvor”, “eu ministro louvor cristão”, “ministrei a palavra” – indicando que pregou algo da Bíblia e cantou fazendo orações de cura e em línguas). Entre os evangélicos utilizam muito a frase “me deram oportunidade”, indicando que foram convidados a cantar individualmente. Os “louvores” estariam repletos da presença divina, como dom. As pessoas deveriam “se abrir ao Espírito Santo” nos “louvores”, deveriam orar e pedir a presença do Espírito Santo nelas, para que a ação do mesmo as ajudasse a se tornarem pessoas melhores e a “louvar”, “orar” como convém, “louvar segundo o Espírito”, “guiadas pelo Espírito”. Deveriam também pedir graças e bênçãos para os outros e para si nos louvores, “tomar posse da graça de Deus” (expressão utilizada pelos fiéis) para receber a cura, a graça, para estarem, assim, mais próximos Dele, pois é 99

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“no meio dos louvores [que] Deus habita”. Nas Assembleias de Deus e Igrejas Batistas, é costume também que os participantes formem grupos corais: assim, coexistem o coral das senhoras, o coral da mocidade, o coral dos varões. Existem igrejas onde há o coral dos adolescentes e o coral infantil. Nos cultos, além do canto congregacional, em que todos cantam juntos, e no qual há a “oportunidade” de uma ou duas pessoas cantarem sozinhas, há momentos em que esses diversos corais se apresentam, um após outro. No movimento da Renovação Carismática Católica, parece claro haver uma visão de que a música pode sacralizar o espaço ritual e a sociedade; a música pode trazer ou levar o fiel à presença do sagrado. A música assume, nesse contexto, a função de veículo de manifestação do sagrado e meio para o encontro com ele. Emerson José Sena da Silveira observa que: A RCC vê essa função como possibilidade de salvação e tenta reintegrar, em uma esfera única, a música e a religião. Ou melhor, por meio da execução ritual da música a RCC ambiciona essa reintegração. (SILVEIRA, 1999, p.10).

A possibilidade de sacralização da sociedade dependeria, de alguma forma, de estarem os músicos participantes do Ministério de Música buscando sempre esse contato com Deus. Segundo depoimento deles, “o Espírito Santo é quem faria a obra”. A música, como dom vindo do Espírito, seria a ponte de comunicação entre o homem e o sagrado. Essa música executada nos grupos que pesquisei não é uma só; apresenta mais de uma característica. Pode ser dividida em subgrupos: um primeiro subgrupo, utilizado com mais frequência na Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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música carismática católica seria constituído por cantos pequenos, curtinhos, que se repetem como mantras; um segundo subgrupo seria o grupo de “corinhos” evangélicos (parecidos com os cantos curtinhos católicos. São melodias curtas que se repetem e são bem comuns nas igrejas pentecostais e outras igrejas protestantes); um terceiro subgrupo (música evangélica) seria composto por hinos mais tradicionais, vários em ritmos marciais, e fazem parte de hinários conhecidos, como a Harpa Cristã das Assembleias de Deus no Brasil, o Cantor Cristão e outros, e foram compostos, na maioria das vezes, para execução coral; um outro subgrupo de música, católica, faz parte de um repertório de canções feitas por compositores (católicos) contemporâneos, em sua maioria jovens; também há um subgrupo constituído de música evangélica que é produzida por jovens compositores, de aspecto muito semelhante ao último grupo citado. Estes dois últimos subgrupos constituem um repertório de canções tonais, e algumas vezes modais, que apresentam aspectos harmônicos e melódicos e procedimentos composicionais semelhantes ao da música popular brasileira que ouvimos nas rádios seculares. Muitas delas apresentam a forma de refrão e estrofes, mas também outras formas. São compostas por uma variedade de gêneros musicais (estilos, ritmos): rock, baladas, MPB, sambas. Há a vertente que traz características da música soul. Também há reggae. Outras canções apresentam características de gêneros como baião, xote, xaxado (forró), canções sertanejas, heavy metal, entre outros gêneros e estilos. As letras são de caráter oracional, com conteúdos que evocam o sentimento da pessoa para com Deus ou de Deus para com a pessoa e também textos que falam sobre conversão, que pedem o Espírito Santo, exaltam e louvam a Jesus, entre outros temas. Vários cantos 101

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apresentam letra baseada em trechos e termos da Bíblia. Geralmente os instrumentos mais utilizados são violões, guitarras, teclados e/ou piano, bateria, contrabaixo elétrico. Observamos também saxofones e flautas transversas nos arranjos, instrumentos de percussão, além da bateria, e, em alguns arranjos, participação de instrumentos de cordas friccionadas (violoncelo, violinos, violas), também metais. É comum que um cantor faça a melodia principal e um grupo faça o back-vocal. Há muitas bandas. Estes arranjos instrumentais e vocais aparecem nas gravações (CDs) e em shows dos cantores e das bandas religiosas. Os instrumentos e arranjos citados são os que aparecem frequentemente nas gravações. Nos grupos pesquisados, nas comunidades observadas, as execuções são mais simples, com poucos instrumentos, mas é possível encontrar violões, teclado, bateria, guitarra e baixo. Também pandeirola, pandeiro. Alguns instrumentos não muito usuais são utilizados nessas comunidades, como a flauta doce. Uma vez um padre apareceu tocando acordeom. Também em tempos passados, em uma dessas comunidades uma senhora tocava clarinete, um senhor tocava viola caipira. E um músico participante dessa pesquisa toca oboé na igreja. Os músicos e arranjadores que atuam em gravações em CD e em shows apresentam grande habilidade técnica. Existem muitas rádios evangélicas que tocam em sua programação esse tipo de música. Há também rádios católicas que executam este repertório (obviamente são distintas: há a música, os compositores, as bandas, cantores evangélicos e há os músicos, bandas, compositores e cantores católicos). Algumas vezes encontramos músicas do repertório evangélico sendo cantadas por cantores católicos e vice-versa.

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Temos observado um crescente aumento de compositores evangélicos e católicos jovens e também de arranjadores jovens e bem preparados tecnicamente. Observamos avanço tecnológico nas questões relacionadas a gravações, estúdios, aparelhagem de som e na qualidade das composições, com execuções elaboradas, dentro dos parâmetros da música que criam e executam. Os músicos, arranjadores, e técnicos de som geralmente são profissionais. Já nas comunidades que visitei não há tanto avanço assim em relação a esses últimos aspectos, pois são comunidades mais simples, mais distantes de grandes centros, que não dispõem de muitos recursos materiais, nem de músicos e técnicos profissionais. Elas procuram executar o repertório que citei com seus recursos, com seus próprios meios, a seu modo, às vezes apenas com as vozes, ou só com o acompanhamento de um violão, ou de apenas um pandeiro. Outras vezes com mais de um violão, ou uma banda, ou um teclado e com uma aparelhagem de som, ou com um aparelho de CD e playback. Em algumas comunidades até existem aparelhagens de som razoáveis e bons instrumentos, mas não há técnicos disponíveis que dominem o assunto e a maneira de utilizar bem essa aparelhagem. Ainda há, também, um subgrupo de música evangélica caracterizado por se fundamentar na chamada “música gospel”. Segundo Aigner (2006), essa música se fundamenta em clichês da música popular comercial que exibe uma boa dose de sentimentalismo. Apresenta acentuadamente certo “glamour” por parte das cantoras evangélicas. Há uma influência do movimento neopentecostal nos textos dos cantos do repertório utilizado por outras igrejas não-neopentecostais. Segundo este autor, essa faceta da música neopentecostal atende a uma religiosidade popular urbana marcada pela pressão do mercado 103

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musical. O autor esclarece que o movimento neopentecostal é um fenômeno predominantemente urbano, com grande incidência sobre a massa assalariada ou desempregada. Alguns grupos evangélicos contemplados nessa pesquisa também executam em seu repertório músicas pertencentes a esse subgrupo, mesmo não sendo fiéis de igrejas neopentecostais. A música é um elemento importante na vivência religiosa dos interlocutores desta pesquisa. Cecília Mariz (2005), em seu trabalho sobre jovens oriundos da RCC que decidem criar e viver em “Comunidades de Vida no Espírito Santo”, afirma: A música tem um papel muito forte nas vivências religiosas em geral, como tem sido apontado por muitos autores, inclusive Weber. Para os jovens, a música parece ser ainda mais importante (...) (MARIZ, 2005, p. 268).

Nas próximas seções, continuarei a apresentar novas situações que surgiram no campo, relacionadas a “cantar com unção”, dom e vocação, competência técnica, e questionamentos acerca do fazer etnográfico.

“Cantar com unção” Quando

alguém

cantava

“com

unção”,

expressão

recorrentemente empregada nesses grupos religiosos, percebia-se uma comoção geral. Significava que as pessoas eram “alcançadas”, “tocadas” pela graça de Deus. Eram chamadas à conversão, a um contato maior com Deus para segui-lo.

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Cantar “com unção”, tocar “com unção” significava que a pessoa estava espiritualmente autorizada a desempenhar aquele papel nos ritos. Estava autorizada por Deus e pelo grupo a estar ali, exercendo aquela função. Significava que a pessoa estava “cheia do Espírito Santo” e por isso Ele a conduzia no canto e na execução instrumental. Como mencionei anteriormente, os momentos de execução musical são momentos intensos do ritual, e se fazem acompanhar por diversas formas de expressão da emoção. São assinalados como um momento de “unção”. E foi um mover tremendo, as pessoas chorando, sabe? E é tão emocionante quando você vê que as pessoas são alcançadas, quando você vê que o seu louvor faz a diferença, sabe” (...) Eu sinto que eu tenho essa unção. Porque não é apenas cantar. Existe a diferença entre cantar e louvar. Muitos cantam na igreja. Mas a unção é que faz a diferença. Eu tenho certeza que eu tenho um chamado especial de Deus. (Aline, 35 anos, evangélica) Lá tem uma moça que toca e canta com tanta unção! (Luciana, pessoa de uma comunidade católica) Prego e canto na minha igreja. (...) Pra cantar assim tem que estar muito ligada, inspirada [ligada a Deus] (..) Você não pode dar uma coisa que você não tem, não é verdade? Você tem que pregar e cantar o que você vive, pra você passar aquela unção(...) Então eu cantava, sentia uma coisa muito boa, assim, sentia uma unção, um fogo, e falei: ‘É, realmente é verdade (...) que Deus falava comigo na música, no louvor’. Várias pessoas até hoje falam que, quando eu canto, as muralhas caem, barreiras são quebradas, pessoas são curadas. É uma unção tremenda. Eu sinto assim. (Viviane, 29 anos, evangélica)

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Ao dizer que alguém “toca com unção” e/ou “canta com unção” me parece que a pessoa está fazendo uma avaliação estética. É um modo de julgamento técnico e estético sobre a performance musical. O que seria “cantar com unção”? Pelo que interpreto da fala dos entrevistados, seria quando Deus estaria “ungindo” de alguma forma a pessoa, para que ela comunicasse algo dele quando estivesse cantando. Seria quando essa pessoa apresentasse uma bela voz ou por tocar bem? Seria por ser ela uma pessoa correta dentro dos padrões de boa conduta daquele grupo? Seria por ser a pessoa alguém que demonstra uma vivência digna aos olhos daquela comunidade? Seria por despertar empatia? Não sei. Interpretando a fala dos participantes da pesquisa, me parece que cantar com unção seria quando o músico ficava profundamente imbuído daquilo que cantava, e expressava isso na voz, em seus gestos, e assim já não transmitia a si mesmo, mas transmitia Deus, transmitia algo vindo de Deus. Compreendi que para os participantes desses grupos, quando o músico “cantava com unção” isso significava uma graça especial de Deus. O Espírito Santo estava ungindo aquela pessoa. Ela estava ali autorizada por Deus, com a graça vinda Dele para comunicar. Consequentemente a unção atingia toda a comunidade. A unção vem de Deus. No dicionário Aurélio, encontramos os seguintes significados para a palavra “unção”: “Ato ou efeito de ungir. Untura. Sentimento de piedade religiosa” (FERREIRA, 2001, p. 695). E, para a palavra ungir, encontramos: Untar com óleo ou com unguento. Friccionar de leve com substância gorda ou untuosa, fomentar.

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Aplicar óleos consagrados. Dar posse a, investir de autoridade, por meio de sagração (FERREIRA, 2001 p. 695)

No dizer de um fiel de igreja pentecostal “a unção é o próprio Espírito Santo que habita no regenerado”, “todo verdadeiro cristão é ungido por Cristo, com o Espírito de Deus”. No catecismo da Igreja Católica encontramos explicações sobre a unção e o efeito da unção do Espírito Santo nos fiéis. A unção no simbolismo bíblico e antigo é rica de significados: o óleo é sinal de abundância e de alegria; ele purifica (...) e torna ágil (unção dos atletas e dos lutadores), é sinal de cura, pois ameniza as contusões e as feridas, e faz irradiar beleza, saúde e força (CATECISMO, 2000, p.358).

Segundo o catecismo, Cristo é o Ungido de Deus (consagrado pelo Espírito Santo), “marcado com o selo de seu Pai” (p.199). Os fiéis são também ungidos, “receberam a unção do Espírito Santo, que os instrui e os conduz à verdade em sua totalidade”. (p.358) “Também o cristão está marcado por um selo” (p.358). Torna-se consagrado, sagrado, ungido, selado, marcado com um selo, tornado sagrado com ele (p.358-359). Ao afirmar que “cantar e tocar com unção”, seria uma forma de agir com a ajuda de uma intervenção divina, também observamos a afirmação que declara que compor seria ser “utilizado” por Deus, que a composição seria um dom que vem de Deus. É desse tema que tratarei na próxima seção.

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A composição como um dom divino A primeira música que Deus me deu... (...) Foi Deus porque eu não sei fazer, não sei como foi, foi Ele mesmo que me deu (...) Eu creio que é um dom assim mesmo de Deus, porque eu mesma não sei fazer. Eu tenho bastante música já. (...) Tenho escrito num papel, num caderno, direitinho, a melodia assim... Mas eu acho que na hora tem que mudar muita coisa porque eu não entendo muito bem...Por isso que eu quero aprender violão. (Viviane, 29 anos, evangélica)

A fala de uma estudante de música evangélica evidencia a percepção que ela tem de sua capacidade composicional, do alcance, dos limites e sobre a origem de sua habilidade (considerada um “dom” dado por Deus). Sua fala também demonstra a necessidade de ampliar os próprios conhecimentos e sua técnica e de desenvolver outras competências musicais. Viviane compõe. Escreve as letras de suas composições em um caderno, mas afirma que precisa de uma assessoria, de uma orientação. Viviane acredita que precisa de alguém com mais conhecimento, maior domínio no campo da música, maior competência técnica para ouvir e talvez avaliar suas composições, para auxiliá-la, ensiná-la, talvez, pois ainda “não sabe muita coisa de música”. Acredita que precisa de uma aula de música, de violão, para compor melhor: (...) Eu creio que é um dom assim mesmo de Deus, porque eu mesma não sei fazer. Por isso que eu quero aprender violão, porque eu acho assim: aprendendo violão, vou tirar as músicas dali. (Viviane)

Interpreto que é importante para Viviane obter mais conhecimento musical e adquirir novas competências. Isso lhe daria

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domínio técnico para compor melhor, para saber compor. E, talvez, mais autonomia, mais agência e uma melhor parceria com Deus. Conhecimento e técnica estão aí misturados. Identificar o que ela “não entende bem”, aprender violão, porque acha que vai “tirar as músicas dali”, seria incorporar maneiras de saber fazer, adquirir conhecimentos sobre composição, aprender técnicas que lhe dariam suporte. Em uma aula de violão, a jovem acredita que desenvolveria técnicas, aprenderia procedimentos que lhe ajudariam a compor melhor. Viviane percebeu, anteriormente, que desenvolvera uma habilidade rítmica, corporal e vocal, pois, antes de participar de uma igreja evangélica, fazia capoeira, jogava bem, tocava vários instrumentos de percussão, além de cantar. De certa forma revela uma percepção sua, um reconhecimento de que possui aptidão musical e domina certas competências. Observa também que ao entrar mais em contato com pessoas de igrejas evangélicas, as mesmas demonstraram também perceber suas habilidades musicais. Em sua fala, a habilidade aparece não só como um dom de Deus, mas como uma missão: Eu acho que já nasci assim, porque desde pequena, a gente canta (...). Mas, depois que eu entrei na capoeira que eu vi que gostava de música, comecei a cantar. (...) Aí aprendi a tocar atabaque, berimbau, que eu amava muito... E pandeiro. Toco pandeiro na minha igreja... Porque violão, não sei assim muito bem... (...) Eu gosto muito de cantar. Como entrei no evangelho, as pessoas, usadas por Deus, me entregavam, falavam assim: ‘-Jovem, Deus tem uma grande obra na sua vida, uma grande obra assim de pregar, de missionário, de cantora...’ Eu ficava até rindo, e pensava: ‘-Esse cara tá doido!... Eu sei até cantar, mas não sei 109

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inventar música! (...) E o rapaz me entregou, dizendo: ‘-Você vai inventar músicas’. E eu tenho bastante música já! (Viviane) Outro músico revela em sua fala a percepção de uma composição ter sido “vinda do céu”. Ele diz: “Foi Deus que mandou pra mim”: Por exemplo, a última música que nós fizemos (...) foi uma coisa que veio do céu! Eu não imaginava nunca fazer uma música, uma letra assim... Uma letra já dentro da música! (Veio tudo pronto!) Mas essa aí foi Deus que mandou pra mim já escrita!... Eu mudei pouca coisa! (...) Caiu como se viesse do céu... ‘Toma aqui pra você!’ E, depois que escrevi, eu disse: ‘Nossa, uma música ecológica!’ Foi uma surpresa para mim! (João Gabriel, 43 anos, evangélico).

O estudo de Mauss sobre dádiva oferece um caminho para pensar o dom. Malinowski também investigou a troca e a dádiva. Maria Cláudia Coelho reflete sobre os estudos desses e de outros pesquisadores em seu livro “O Valor das Intenções” (2006). A dádiva oferecida, os presentes ofertados geram uma obrigação de troca e de retribuição. A obrigação é: dar, receber, retribuir. Os presentes são trocados. Dar é um convite à aliança, receber é aceitá-la. Recusar seria ofensa. E retribuir seria completar o sistema da dádiva. Retribuir a dádiva inicial não seria quitar a dívida, mas aceitar estar em relação com o doador inicial. No contexto aqui pesquisado, observo que os músicos entendem que recebem um dom de Deus, o doador inicial (recebem o dom da música) e sentem a obrigação de fazer esse dom circular (cantando na igreja, aperfeiçoando o dom para repassá-lo, “pregando e evangelizando” através da música, “servindo”, “curando”, “profetizando”, “louvando” através da música, ensinando música). Fazem o dom circular repassando-o aos outros (trocando entre si o dom). E estando sempre em contato com Deus retribuem assim o Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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dom que Ele ofereceu. Refletirei mais sobre esse ponto adiante. A técnica e as noções de dom e vocação são os temas que serão abordados a seguir, em meio à reflexão sobre o fazer etnográfico que perpassa todo o trabalho.

O lugar da técnica na produção da música religiosa e a música como dom e vocação A noção de competência técnica, de percepção e avaliação estética dos interlocutores desta pesquisa apresentou-se, desde o início do trabalho, como algo a investigar, como uma grande interrogação. Representou para mim, dentro da etnografia, um desafio, algo intrigante. O que eu presenciava se mostrava como uma grande contradição ou algo que eu não conseguia entender. Se é dom, por que já não vem perfeito? Se é dom, por que precisam melhorar a técnica? Sempre voltava a pergunta: qual a visão deles sobre uma música bem executada? O que seria ter competência técnica nesses contextos? No entanto, aquilo que para mim era tão contraditório não parecia ser contradição ali. Era reconhecido entre os entrevistados que, para atuar musicalmente, se faz necessário o domínio de um conjunto de competências técnicas. Diversas falas dos entrevistados fazem alusão a essa dimensão que classifico como relacionada à técnica ou estudo. “Fui procurar a teoria”; “Eu tentava unir dedilhado... juntar esse com esse, porque eu achava que uma coisa só ficava muito monótona”; “Você vai ter que pegar aquilo (...) e cair dentro”; “Tem que ouvir mais músicas de outros estilos”; “Aí passei a analisar: está agradável ou não? (...) Aí

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passei a gravar [minha voz] [em um gravador] (...)”. Tais falas traduzem a preocupação com técnica, relacionam-se a expressões afins como “preciso adquirir técnica”, “quero aperfeiçoar-me”, “preciso estudar música”, “descobri uma maneira de estudar”. O tema da “técnica”, na etnografia do fazer musical entre religiosos, representou para mim uma fonte de intensas inquietações e desafios. Estive presente em diversos ensaios e momentos de culto. Alguns ensaios pareciam, para meu critério de percepção pessoal como musicista e licenciada em música, (e ainda, iniciante no campo da observação de outras culturas), ensaios diferentes, interessantes, um pouco confusos algumas vezes; competências técnica não eram bem utilizadas, é a impressão que eu tinha, ou talvez ainda não fossem satisfatórias. Mas para os músicos que ensaiavam, parecia que esses encontros corriam bem. Outros ensaios me pareciam producentes, bem conduzidos. Nessa época, ainda não era totalmente claro para mim que meus parâmetros estéticos, minha percepção de técnica e das formas mais produtivas de organização do trabalho musical eram culturalmente particulares – e mais que isso, que a dimensão técnica da execução poderia não ser o aspecto mais relevante do ponto de vista deles. Em uma das comunidades que visitei, assisti a um ensaio de uma banda: havia violão, guitarra, bateria, um cantor e uma cantora. Os músicos ensaiaram vários cantos e estabeleciam convenções para a execução. Entretanto, eles não corrigiam problemas e erros, ensaiavam cada música apenas uma vez, sem repetições, sem se ater aos detalhes do arranjo, sem corrigir os problemas que se apresentavam (o repertório era extenso) e não anotavam nada do que combinavam. No momento

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da performance nos cultos, esqueciam, com frequência, as convenções estipuladas no ensaio. Os acordos acertados previamente acabavam não acontecendo nos momentos de oração. Em alguns grupos observamos a ocorrência de certos conflitos em torno dessas performances. Um exemplo: os músicos que participam do Grupo de Oração Monte Tabor se reuniram para ensaio, pediram ao baixista que regulasse a intensidade do som com cautela, que não deixasse seu instrumento tocando no último volume e ele concordou. Porém, após o ensaio, no momento de oração com toda a assembleia, tal acordo não foi seguido e, para os fiéis, só o que se ouvia era o som do baixo, obscurecendo a audição dos outros instrumentos e das vozes. Os colegas, após o culto, reclamaram. Participei de um culto numa igreja batista bem pequena, ainda em construção, na qual a comunidade cantava com uma grande participação de todos os presentes. Antes do culto algumas senhoras deixaram o espaço preparado. Havia cartazes nas paredes, algumas crianças fizeram desenhos para apresentar; o pastor e alguns outros membros da igreja conectaram microfones em uma caixa de som que ficava no púlpito e um pouco depois o culto começou. Fui informada que nessa comunidade durante a semana, os próprios fiéis procuravam limpar a igreja, capinar a área verde em volta do prédio, ajudar na construção, pintar as paredes, cada um de acordo com o tempo disponível que tinha. No culto observei que a maioria cantava com muito entusiasmo. Um dos conceitos que foram adotados durante a pesquisa foi o de Cristopher Small: postula que a natureza da música reside na ação musical. A atuação das pessoas é o que significa música (1977, p.5). Segundo Small, o que é essencial para a experiência da música é a atuação

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de todos os envolvidos no evento: intérpretes, ouvintes, compositores, quem organiza a reunião, quem limpa a sala ou a igreja onde haverá a atividade musical; no caso desta pesquisa a assembleia, a comunidade religiosa, o responsável pela preparação e pela distribuição de folhas de cantos ou livros a serem utilizados no culto, ensaio ou celebração, o responsável pela aparelhagem de som e pela projeção de letras dos cânticos, os dirigentes da oração (pastores, padres), os instrumentistas, quem constrói a sala de ensaios ou o auditório, teatro ou a igreja, etc. “Musicar” é tomar parte em uma atuação musical e isso não significa apenas compor, tocar ou cantar, significa também participar do evento de alguma forma e de qualquer outra atividade que possa afetar a natureza desse encontro humano que chamamos “atuação musical”. (SMALL, 1997, p. 6). O autor propõe a substituição da palavra “música” pela expressão “musicar” entendida como um verbo, uma atividade e não como um substantivo, uma coisa (1997, p.3). Nessa igreja batista citada não havia instrumentos para um acompanhamento instrumental; o canto era a capella10. As pessoas faziam às vezes, vozes diferentes: a maioria entoava a melodia principal, mas era possível ouvir algumas pessoas cantando a parte do tenor, outras, a parte do contralto e havia um homem que fazia a parte do baixo. A música era do repertório do Cantor Cristão11. As pessoas demonstravam muito prazer em estar cantando.

10 “A Capella” é uma expressão utilizada no meio musical quando se quer explicar que uma ou mais pessoas estão cantando se utilizando unicamente das vozes humanas. A expressão também é usada para designar grupos vocais que cantam sem nenhum acompanhamento instrumental. 11

Hinário Batista; livro de hinos e cânticos. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Um participante de uma igreja evangélica pentecostal declarou que em sua igreja havia uma bateria, porém ninguém sabia tocar. Ele obteve algumas orientações com um parente e, então, se apresentou ao pastor e passou a “bater” nos momentos de oração. Em uma outra paróquia, um grupo de jovens preparou uma música para cantar na festa de despedida de um dos padres, que estava de partida para trabalhar em nova comunidade. Os jovens escolheram uma composição popular, que falava de amizade, gratidão e saudade. Ensaiaram o canto trabalhando vozes e violões. Um dos rapazes do grupo ouviu uma gravação profissional da mesma música em que havia um arranjo para instrumentos de percussão. Este rapaz se interessou pelo arranjo da percussão, porém não dispunha dos instrumentos utilizados na gravação. No dia da apresentação, surpreendi- me com a execução musical do rapaz: o mesmo improvisou dois pedaços de madeira e batia um no outro executando a percussão que ouvimos no arranjo original. Porém, o som das madeiras trazia algo novo e o rapaz, ao mesmo tempo em que executava os procedimentos rítmicos pertencentes ao arranjo da gravação, acrescentava ostinatos rítmicos12 novos, que enriqueceram a execução do grupo. O jovem recriou o arranjo com novidades rítmicas e um “novo” instrumento de percussão, de um modo que me pareceu particularmente criativo. O resultado ficou muito interessante. Observei também uma comunidade na qual um músico tocava violão. A comunidade cantava com ânimo, porém a execução vocal 12 “Ostinatos rítmicos” são frases rítmicas iguais que se repetem. É um padrão rítmico repetido, uma frase rítmica repetida mais de uma vez. Em música, um ostinato é um motivo ou frase musical que é persistentemente repetida. A ideia repetida pode ser parte de uma melodia ou uma melodia completa ou um padrão rítmico.

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destoava da execução instrumental, as pessoas cantavam “ao lado do tom”, isto é, um semitom13 abaixo do instrumento. Ao final da celebração pessoas saíram daquele momento felizes, dizendo: “foi lindo!” Curiosamente, observei algumas comunidades onde as pessoas não demonstravam estarem satisfeitas com a execução musical de determinados músicos. As falas de entrevistados demonstram uma preocupação com a técnica. Assinalam a necessidade de adquirir mais conhecimento e habilidades. Vários deles relataram seus procedimentos de estudo em grupo ou solitariamente. A maioria falou de sonhos e projetos futuros, em que o estudo de música em uma universidade estava presente. Demonstram a intenção de trabalhar para adquirir técnica e a noção de que para tocar/ cantar melhor é preciso um esforço pessoal. Há a necessidade de aperfeiçoamento: (...) Eu sinto vontade de melhorar... De melhorar, sabe. A cada música, em cada música você observa, [eu gravo] depois eu fico me ouvindo: onde eu preciso melhorar? (Aline, 35 anos, evangélica) Meu ministério melhorou. Aquilo que a gente buscou, tocar melhor, estudar mais, ter mais técnica, tudo isso melhorou muito. Porque a gente consegue tirar coisas que só estudando! (...) Falta saber mais. Se quisermos chegar a um estágio maior, com certeza vamos ter que estudar mais, vamos ter que buscar mais. (Rômulo, 25 anos, católico) Entrei em uma aula com esse professor. Ele me 13 Um semitom é uma distância muito pequena entre 2 sons. Podemos dizer que um semitom é a menor distância entre 2 sons que o ouvido humano consegue perceber. Isso na afinação tonal, nos parâmetros da nossa musica ocidental. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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ensinou a tocar bastante coisa, sabe. (...) Mas depois que eu saí de lá, eu comecei a desenvolver sozinho. Eu saí de lá, mas não parei não. Eu comecei a desenvolver, por exemplo: eu tentava unir dedilhado, juntar esse com esse. Porque eu achava que uma coisa só, ficava muito monótono (...) Eu comprei uma revista que ensinava técnica de dedilhado, (polegar etc) Então o dedilhado eu aprendi mais sozinho. (...) (Danilo, 46 anos, evangélico). (...)Fui procurar a teoria, (...) entrei numa aula de teoria musical. (...) A música me levou a buscar mais. E eu sempre quis fazer assim, me formar, e de repente alcançar um patamar maior dentro da música. Estudo ainda. Estou com uns livros de partitura. E todo dia eu dou uma lida, procuro gravar... Porque é difícil... Se a gente parar... O professor de música não vai te tocar com uma varinha mágica e te dizer: “aprenda música” e pronto. Não é assim. Porque o que vai valer é o que você vai colocar em prática naquilo que você buscou lá na aula. O professor te designou uma coisa. Você vai ter que pegar aquilo, chegando em casa, procurar o espaço, determinar um espaço pra estudar e cair dentro (Rômulo, 25 anos, católico)

Um entrevistado demonstra uma visão diferente sobre o interesse por uma boa performance que apresente maior habilidade técnica. Sua fala se conecta com práticas que observei. Transmite menos preocupação com desenvolvimento técnico e mais com a intenção de louvar a Deus. Podemos interpretar que, talvez, para ele a preocupação com o aprimoramento, com o “tocar bem”, o fazer bem feito (“tocar certinho”) seja uma forma de exibicionismo: A gente não vai lá, não se preocupa muito com tocar certinho, sabe como? A gente se preocupa, sim, com perfeição, porque é pra quem merece, é pra 117

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Deus. Mas, se a gente não souber, também, a gente faz do mesmo jeito, tá entendendo? Não é fazer de qualquer maneira, mas a gente faz da melhor forma possível, pra poder agradar. Mas a gente não se preocupa tanto. A gente faz mesmo com o intuito de louvar, não de mostrar pros outros que a gente sabe. (Everson, 32 anos, evangélico).

Esta visão nos coloca diante da percepção de que a relevância da técnica é contextual. O “intuito é mesmo de louvar”, “fazer da melhor forma possível”, porque “é pra quem merece, é pra Deus”. Há algo mais do que “tocar certinho”. “Tocar pra Deus” é o que importa. A percepção de “fazer da melhor forma possível”, na visão desse músico, não coincide com “tocar certinho”. Não são expressões equivalentes. É uma percepção diferente. Várias falas ressaltam que é preciso ter “dom” e “estudo”. Ajuda de Deus e empenho pessoal. Segundo eles o próprio Deus quer que desenvolvam o dom que receberam, procurando estudo e mais habilidades técnicas. O dom vem de Deus, não vem da Quem canta, eu acredito que quem canta mesmo, que nasceu pra ser cantor, eu acho que já nasce com aquele dom. Agora, é óbvio que é um dom que vai se lapidando... Ninguém é perfeito. (...) Porque Deus nos dá, mas quer que a gente cresça naquilo (João Gabriel, 43 anos, evangélico) Deus também me usa na palavra, eu prego e canto. Tem assim os talentos que Deus coloca em nossas mãos. Não vem da gente, vem de Deus. Os talentos, os dons. É uma coisa muito boa você ser usado, não é pra gente se exaltar, que a gente não é nada. (Viviane, 29 anos, evangélica)

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Certa ocasião, em uma igreja pentecostal evangélica, um jovem instrumentista, Mauro, esteve presente para tocar guitarra em um evento especial. Ele tinha uma longa prática musical e muita habilidade técnica o que fez com que as execuções musicais, durante o momento de oração, tivessem fluído com naturalidade, na questão instrumental. No entanto, na questão vocal houve problemas. Essa ocasião de oração, por ter sido um evento importante para a comunidade, foi gravada em DVD. Creio que não tenha havido ensaio prévio entre os músicos e o pastor. O rapaz chegou trazendo consigo uma banda. Talvez a banda tenha ensaiado previamente e já tivesse bastante prática para acompanhar cantores, porém, o pastor não era cantor. Os rapazes chegaram e tocaram, acompanhando o pastor e a comunidade. Uma jovem, participante daquela igreja, comenta que Mauro toca muito bem. Segundo ela, o rapaz “toca com unção”. Todavia, assistindo ao DVD, percebemos que o pastor, por não ser músico, apresentava certa dificuldade para manter a afinação enquanto executava a música. Enquanto os músicos tocavam bem, a voz do dirigente, que era quem conduzia o canto, saía do tom em vários momentos. A emissão estava imprecisa, demonstrando uma performance não-profissional em contraste com um acompanhamento seguro dos instrumentistas, que tentavam, com habilidade, encobrir as imperfeições do canto, embora sem muito sucesso. Entretanto, esse culto foi avaliado por pessoas da comunidade como muito abençoado, cheio de unção. Muitos se interessaram em obter cópias do DVD por considerarem aquele momento de oração como muito significativo na comunidade. É para esse olhar diferente que chamo a atenção. Parece-me que outros valores estão em jogo, há uma percepção estética diferente. Em outro grupo cultural, outro contexto, um momento como esse teria recebido 119

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outro tipo de avaliação. Possivelmente as pessoas não se interessariam em obter o DVD, talvez houvesse até um cancelamento da distribuição dele por parte dos organizadores. De novo me encontrava diante do que me parecia contraditório. Perguntava-me: o que seria ter competência técnica para executar bem um instrumento musical, interpretar bem uma música, na visão deles? Contudo, aos olhos daquela comunidade não havia contradição. Mais e mais eu me interessava por entender qual era a visão de uma satisfatória competência técnica para as pessoas naqueles contextos. O que era contraditório para mim, não parecia se apresentar como contradição para eles. A contradição estava no olhar do observador. E se eu conversasse com eles a respeito de minha avaliação estética e da avaliação deles? E se eu apresentasse minhas anotações, minhas impressões? Será que aquilo que o pesquisador observava e descrevia se mostrava como aquilo que o pesquisado reconheceria de si mesmo? Quais seriam as reações desses grupos se lessem o que eu escrevia sobre eles? Eles estariam abertos a essa leitura? Eu os estaria desrespeitando com minhas impressões? Não parecia pretensão minha avaliá-los segundo meus parâmetros? Não conversei sobre isso, nem apresentei meus escritos. Talvez devesse tê-lo feito. A pesquisa e as relações cresceriam em riqueza. Parece-me que, de qualquer forma, continuamos enredados em relações complexas e desiguais de poder. Parece-me que minha posição como observadora e ‘narradora’ apenas fortalece e mantêm a posição de uma cultura letrada dominante, disfarçada em aproximação diante do outro, do diferente. Na sexta seção refletirei um pouco mais sobre esse ponto.

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Penso que o modo de fazer música desses grupos é diferente do “meu modo” de fazer música. Percebi, no entanto, que eles fazem música incorporando o “meu modo” (o modo acadêmico). Em uma de minhas visitas aconteceu uma situação extremamente interessante que ilustra essa afirmação. Decidi visitar a comunidade de uma informante. Conversamos sobre a possibilidade da visita, quais seriam os horários de culto, o endereço, pedi sua autorização, etc. A intenção era, num primeiro momento, chegar, em um dia qualquer, com o seu consentimento, e observar a atuação dos músicos daquela igreja durante o culto, sem que o pesquisador se fizesse notar, sem interferências, para depois, em outros momentos, conhecer as pessoas e tentar maior aproximação. No entanto, o fato de ter dito à entrevistada que visitaria, um dia, sua comunidade, acabou por gerar uma situação inesperada. A moça ficou muito entusiasmada, contou na igreja sobre a visita que se realizaria, e deixou preparado um instrumento para que, quando a pesquisadora lá chegasse, participasse ativamente – tocando. Isso me surpreendeu, era preciso me adaptar e modificar o planejamento. Eu estaria lá para observar a atuação deles. Porém, eles colocaram um instrumento à minha disposição e se colocariam ali para me ouvir tocar, pois era “importante alguém que dá aulas de música” estar ali. Na fala dela: “Foi Deus quem te convidou!” Talvez eu estivesse ali porque para eles eu necessitava de conversão, por isso, Deus me levou até eles. Mas também me faziam entender que Deus havia me levado a estar ali porque, por ser professora de música, tinha algo a ensinar musicalmente. Essa cena revela que eles creditam um valor à competência técnica incorporada no “meu modo” de tocar. Talvez me vissem como alguém a transmitir algo a eles pelo fato de ser professora, possuir um diploma, um saber legitimado, e 121

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consequentemente, um status de músico profissional, contrastando com seu conhecimento amador, demonstrando deferência à figura da professora e pesquisadora. Para eles, eu estava em uma posição diferente, detendo um saber técnico que os interessava. Conhecer e se apropriar desse saber técnico faria parte da vontade de Deus. Naquela ocasião, eu pensava que minha presença estaria interferindo no fazer musical autêntico do grupo. Por outro lado, segundo o ponto de vista deles, minha presença ali era parte dos desígnios de Deus. Tal acontecimento, que a princípio me parecia um problema, um dilema na pesquisa de campo, apresentou-se como algo extremamente revelador da visão dos pesquisados. Apresentava-me algo daquilo que eu buscava entender. Percebi que, em etnografia, precisamos estar preparados para lidar com fatos inesperados, aceitar as surpresas e estar atentos, pois tais surpresas podem ser, na verdade, uma resposta às indagações. Geertz afirma: Para descobrir o que as pessoas pensam que são, o que pensam que estão fazendo e com que finalidade pensam o que estão fazendo, é necessário adquirir uma familiaridade operacional com os conjuntos de significado em meio aos quais elas levam suas vidas. Isso não requer sentir como os outros ou pensar como eles, o que é simplesmente impossível. Nem virar nativo, o que é uma ideia impraticável e inevitavelmente falsa. Requer aprender como viver com eles, sendo de outro lugar e tendo um mundo próprio diferente (GEERTZ, 2001, p. 26)

José Alberto Salgado e Silva, em sua tese de doutorado sobre estudantes de música, aponta para as dificuldades em se fazer etnografia. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Em um momento de seu trabalho o autor reflete sobre as situações imprevistas que acontecem em uma pesquisa de campo. Ressalta que elas podem acabar por trazer à tona coisas importantes. O autor também cita Geertz e outros autores importantes que se debruçaram sobre uma reflexão intensa a respeito da pesquisa etnográfica. Silva afirma que o problema que se apresenta algumas vezes numa pesquisa de campo pode ser considerado ele mesmo um dado relevante, “indicador de disposições e normas culturais importantes”. “A charada” acaba por ser importante, “pode ser mesmo crucial para a pesquisa”. (SILVA, 2005, p. 15). Os problemas que surgiram na pesquisa de campo me faziam pensar as relações de poder nas quais estamos submersos. Discutirei esse ponto mais adiante, na última seção. Como já disse anteriormente, notei muito forte entre os entrevistados a concepção da música como uma dádiva de Deus, um dom conferido a eles pelo Espírito Santo. Um presente de Deus representava também um “chamado”, uma “vocação” que impelia os fiéis a retribuir, a realizar uma missão. Convém articular tal ideia com o pensamento de Weber. A categoria vocação (vocare), “chamado”, evoca uma noção que desempenhou um papel extremamente relevante na história do Ocidente. Weber afirma que na palavra inglesa “calling” está implícita uma conotação religiosa de uma tarefa confiada por Deus (WEBER, 2006, p. 67). Tal categoria aparece no discurso protestante a partir de um determinado momento da história. Alguns pontos me intrigavam particularmente. Se a música é um “dom”, porque eles acreditam que precisam estudar e se aperfeiçoar, 123

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para seguir a “vocação”? Na visão de mundo dos entrevistados (em consonância com o discurso doutrinário cristão), as dádivas concedidas por Deus não devem ser enterradas, mas multiplicadas. A noção de “chamado” sinaliza, justamente, para a obrigação de aperfeiçoar o dom, multiplicá-lo e fazê-lo circular: cantando, pregando, visitando doentes, auxiliando os que estão em mais dificuldades nas comunidades, entre outros tantos serviços, servindo a Deus. Cantar, tocar para louvar a Deus e para levar os irmãos a orar, rezar (como também utilizar o dom da música para pedir/obter a cura –“para curar”, para “ministrar a palavra”, para “evangelizar”, para servir, para “profetizar”, para “sair em missões”, para ensinar, para “dar testemunho”, para “testemunhar o amor do Senhor”, para “entregar”, para “animar as comunidades”). Tudo isso seria a forma de retribuir a Deus, de trocar. Seria a maneira de gratificar a Deus. Entre pentecostais e carismáticos, é particularmente forte a crença na atuação do Espírito Santo no mundo, manifestada através dos dons concedido por este14. Segundo a doutrina cristã o Espírito Santo 14 Católicos (carismáticos ou não) e protestantes (seguidores das igrejas de tradição histórica e seguidores das igrejas pentecostais) professam a fé na Santíssima Trindade. Segundo a doutrina cristã, o Espírito Santo é a terceira pessoa da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). O Pai cria, (é o Criador), o Filho (Jesus Cristo) salva, (é o Salvador) e o Espírito Santo unge e santifica, (é o Santificador). A palavra “Espírito” “traduz o termo hebraico Ruah, o qual em sentido primeiro significa sopro, ar, vento. Na Bíblia Jesus utiliza justamente a imagem sensível do vento para sugerir a Nicodemos a novidade transcendente daquele que é pessoalmente o Sopro de Deus, o Espírito divino”. (Catecismo da Igreja Católica, 691). .Evangélicos e católicos, baseados na Sagrada Escritura também associam ao Espírito Santo outros sinais sensíveis: o Espírito queima como o fogo, lava e purifica como a água. Segundo as doutrinas católica e protestante, o Espírito Santo realiza ações específicas: dá a vida, unge, santifica, purifica, inspira, assiste, ilumina, orienta, faz nascer de novo, faz conhecer, faz entender, faz proclamar, faz orar, faz amar. (Catecismo da Igreja Católica, 2008: no.687-p.198, no.688-p.198, no.690-p.199). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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confere dons e carismas. Brenda Carranza apresenta uma lista de dons carismáticos, que são, segundo documento da RCC (Seminário de Dons apud, CARRANZA, 2000, p.9): o dom da fé; da cura; do milagre; de falar línguas; o dom de interpretar línguas ou discernimento; dom de profecia; o dom do repouso no Espírito. Há também os dons transmitidos pelo Espírito Santo no sacramento da Crisma, ou Confirmação, apresentados pela Igreja Católica, nomeados no livro de Carranza como dons infusos, hierárquicos, segundo documento da RCC Vida no Espírito (CARRANZA, 2000, p. 88). São sete estes dons: o dom da sabedoria; o da fortaleza; o da piedade; da ciência; o do conselho; da inteligência (ou entendimento); e dom do temor de Deus. Entre evangélicos, segundo pesquisa Novo Nascimento, (FERNANDES, 1998), encontramos: dom da palavra, dom da música, dom de cura, dom de falar em línguas, dom de profecia. Entre os evangélicos e pentecostais, determinados dons são mais marcados em algumas denominações, com diferenças entre elas. Assim é que entre os batistas e os assembleianos o dom da música é bastante citado. Na Igreja Católica alguns autores reconhecem como parte dos carismas da RCC os de acolhida, de serviço, de louvor, de canto, de ensinamento, de exortação, de compaixão e misericórdia (JUANNES apud CARRANZA, 2000, p. 88). Na visão dos fiéis o Espírito Santo concede muitos dons para que perseverem na fé, para que possam pregar e evangelizar, louvar, orar, para que possam ajudar os que precisam, para visitar os doentes e os presos, para, como afirmam em suas falas, “entregar”, isso é alertar os pecadores que se convertam, para curar. Para orar em línguas, para “interpretar as línguas”, “profetizar”, para que possam ter visões, para que melhorem como pessoas, para que se aproximem mais do divino, 125

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para que entendam mais as coisas de Deus, que tenham força para enfrentar a luta do cotidiano. O fazer musical é visto como um desses dons. Os fiéis ao receberem um dom sentem-se chamados a uma missão, uma vocação. A tarefa a ser cumprida, (realizar a obra de Deus), a missão, a vocação de pregar através da música, como uma maneira de fazer o dom circular. São dádivas que são trocadas, distribuídas - dadas por Deus, recebidas pelos homens e trocadas por eles entre si. O estudo de Mauss (1974) sugere que por detrás dos circuitos de troca de dádiva existiriam princípios de reciprocidade que se fundamentam no social. Segundo Mauss, nos circuitos de troca, as pessoas oferecem algo e há uma obrigação de que esse algo circule, além de haver a obrigação de que algo retorne a quem ofereceu a dádiva Mauss discute troca. O que vemos aqui é um “dom oferecido por Deus”. Tendo recebido esse dom da música, as pessoas procuram levá-lo aos outros cantando, tocando, pregando, curando com a música, ensinando música, aperfeiçoando o dom, fazendo o dom circular e, assim, agradecendo e retribuindo a Deus, oferecendo a Deus o seu trabalho musical em retorno. De alguma forma parece haver uma forma de troca, de receber e doar, retribuir. As pessoas sentem obrigação de retribuir a Deus. Maria Cláudia Coelho, em seu livro “O Valor das intenções” (2006) analisa, com base em revisão bibliográfica sobre esse tema, a relação entre dom (dádiva) e emoção. Coelho retoma Mauss afirmando que a essência do sistema da dádiva é “uma ‘mistura’ entre coisas e almas, objetos e pessoas” (MAUSS apud COELHO, 2006, p. 24). A autora lembra também Lévi-Strauss que afirma: “Na troca há algo mais do que coisas Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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trocadas” (LÉVI-STRAUSS apud COELHO, 2006, p. 27). Acreditamos que subjacente à noção religiosa de dom da música existe uma percepção da música como dádiva que deve ser aceita, multiplicada e passada adiante. Em sua investigação, Mauss pergunta: que força há na coisa dada? (1974, p. 42). Coelho ressalta que essa pergunta, o modo de colocar o problema, dita os rumos da investigação. (COELHO, 2006, p. 22). Mauss encontra resposta: “Presentear alguma coisa a alguém é presentear alguma coisa de si” (MAUSS, 1974, p. 56). As coisas dadas levariam algo do doador. Coelho, explicando o estudo de Mauss, continua: “Mauss dirige sua busca pela ‘força motriz’ da reciprocidade para a natureza das coisas trocadas. Para ele ‘a coisa dada não é coisa inerte’, carregando consigo algo do doador” (COELHO, 2006, p. 23). Há “uma virtude” nas coisas trocadas que as força a circular. Transportando para esta pesquisa, acredito que posso talvez cogitar que os músicos participantes destes grupos creem que no dom da música que recebem não há apenas música, mas algo de Deus. E, ao fazer circular este dom, eles fazem circular algo do próprio Deus. A música estaria carregada daquilo que é sagrado, divino. Também misturado ao que vem de Deus estaria um pouco de suas próprias almas. Os músicos quando cantam, tocam, pregam através da música, ministram louvor, ensinam música, estariam transmitindo o próprio Deus e um pouco de si mesmos nessa música. E louvando e estando unidos a Deus retribuiriam a Ele pelo dom ofertado. Até aqui procurei apresentar alguns dados de minha pesquisa etnográfica, articulados a minhas reflexões sobre o trabalho de campo. A seguir apresento reflexões sobre o fazer etnográfico que podem ajudar a lidar com os dilemas que vivenciei ao longo da execução da pesquisa.

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Pensar, refletir a percepção e a expectativa dos sujeitos pesquisados, interlocutores da pesquisa. Volto à pergunta apresentada no início deste trabalho: será que aquilo que o pesquisador descreve e interpreta se mostra realmente como aquilo que o pesquisado reconhece de si mesmo? Na próxima seção tento refletir sobre esse ponto em si. Refletir um pouco sobre a relação pesquisador X pesquisado, sobre que é a etnografia na visão do nativo.

Refletindo sobre o fazer etnográfico Em uma reflexão sobre o fazer etnográfico e a visão que o nativo expressa diante do que foi escrito sobre ele, Maria Cláudia Coelho (2013) toca em minhas inquietações. Ela relata que seu principal informante, ao ler o resultado de um trabalho (que tratava de emoções)15, demonstrou uma certa “decepção”, apresentando um educado “eu gostei, mas...” e completou seu comentário com frases como: “É que eu acho que você não contou tudo”, faltou dizer que “o sentimento é intenso”, e que “quando a gente diz que os olhos brilham é porque os olhos brilham mesmo” (COELHO, 2013, p. 26). Pensando nisso, a autora procura “pensar o paradoxo embutido no projeto” de fazer uma descrição “racional” de um mundo que se definia como “avesso à razão”. Coelho (2013) nos remete à urgência que se faz presente, atualmente, na “discussão sobre as imbricações entre relações de poder, ética e empreendimento etnográfico” e lembra as reflexões de Geertz. A adoção da atitude de “buscar o ponto de vista do nativo” acabou por levantar o mito da 15 A pesquisa havia sido realizada em um contexto no qual a fala dos informantes era repleta de expressões que demonstravam uma visão de mundo orientada pela sensorialidade, pela emotividade e pela intuição. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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empatia como forma de acesso à realidade do outro. Porém, o escândalo trazido pela publicação dos diários de campo de Malinowski, derrubou esse mito e trouxe certa decepção no meio antropológico, provocada pela revelação de que poderia haver traços de racismo e intolerância na vivência de campo. Então, Geertz pergunta: se não é através da empatia, como é que o antropólogo faz para “compreender o ponto de vista do outro?” Maria Cláudia Coelho resume uma resposta, baseada nos conceitos de Geertz sobre “experiência próxima” e “experiência distante”: “Toda percepção nativa é por definição de ‘experiência próxima’, enquanto que toda tradução etnográfica daquele mundo é de ‘experiência distante’.” (COELHO, 2013, p. 27). Sempre estaremos vivendo uma experiência distante, como etnógrafos. O fato de observar o outro faz surgir relações de poder que preferiríamos evitar. Contudo, as mesmas parecem inevitáveis. Creio que estamos diante de impasses éticos. As inquietações continuam e ainda não encontraram uma resposta. Coelho também declara estarmos diante de impasses. A autora reflete: Fazer etnografia é um esforço para compreensão da alteridade. Em um ponto está um sujeito curioso por uma forma de estar no mundo que lhe parece distinta da sua e que por isso, excita sua curiosidade; de outro, está um sujeito, cujo modo de vida está agora sendo objeto de escrutínio por parte de alguém mais ou menos autorizado a fazê-lo. Digo mais ou menos porque, embora seja um mandamento ético da disciplina antropológica que os “nativos” consintam em serem observados e analisados, a natureza desta observação é quase sempre ignorada, ao menos em suas implicações plenas. (COELHO, 2013, p. 28).

Ouso afirmar que a maioria dos entrevistados talvez não tenha consciência com total clareza do que significa fazer parte de uma pesquisa 129

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etnográfica, ter sua realidade retratada. Sua visão do que significa estar ali será sempre uma visão diferente da visão do pesquisador. Muitos deles não demonstram interesse em saber o resultado da pesquisa. Muitos não têm acesso aos resultados da pesquisa. Não é tão comum isso acontecer. E mesmo a leitura científica não é algo que seja aprazível à maioria das pessoas. Entretanto, há os pesquisados que, sim, procuram, podem e têm acesso aos resultados da pesquisa. Há os pesquisadores que apresentam a seus interlocutores os resultados do trabalho. E muitos colaboradores querem saber, contestar, comentar, “inserindo a etnografia em uma malha discursiva na qual ela é apenas um dos pontos”. “Qual o efeito de ser exposto a este retrato de si pintado com as cores da etnografia?” “Qual o efeito sobre o sujeito de ver seu modo de vida descrito como algo que ‘ele acredita’, ou seja, sobre algo o qual a descrição etnográfica, ao revelar quem enuncia, ‘planta’ uma dúvida sobre seu valor de verdade?” (COELHO, 2013, p. 29). Coelho ressalta que, no fundo, o projeto etnográfico “é dizer do outro aquilo que ele não sabe de si”, aproximando-se assim, essa atividade, da atividade dos psicanalistas. Porém, como etnógrafos, às vezes “insistimos em dizer do outro aquilo que ele não sabe de si contra a sua vontade e contra o seu reconhecimento de que seríamos desta verdade detentores” (COELHO, 2013, p. 30). Isso pode gerar um grande desconforto para a pessoa sobre a qual o etnógrafo fala. E, sinceramente, também para o próprio etnógrafo. Maria Cláudia Coelho procura propor uma saída através de um exercício reflexivo, que deixa perguntas no ar. A autora chega a algumas conclusões, que na verdade são questionamentos: pensando nos comentários de Foucault sobre a natureza do poder exercido pelo dispositivo do Panóptico, podemos Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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relacionar a atitude do etnógrafo diante do etnografado como, talvez, uma relação de dominação. Coelho lembra que Foucault apontou para a centralidade da relação entre olhar e poder. A metáfora favorita dos antropólogos é o olhar: “o olhar antropológico”. Coelho afirma que a metáfora do “olhar antropológico”, da “observação participante”, “parece inscrever a relação etnográfica em uma microfísica do poder”. A autora declara: Ser objeto de uma observação ao invés de ser convidado a uma interlocução, ser relegado ao lugar de quem é observado sem poder retribuir/ revidar este olhar, esta é a condição por excelência do “ser nativo”. Em sendo assim, o próprio projeto etnográfico de conhecimento da alteridade parece estar inexoravelmente imbricado em uma relação de poder (COELHO, 2013, p. 32).

Considerações Finais A experiência etnográfica que vivenciei entre músicos carismáticos e pentecostais me proporcionou uma oportunidade de ganhar consciência acerca desse “impasse ético”. Em diversos momentos eu tinha a nítida sensação de que a distância entre o retrato que eu estava produzindo dos participantes da pesquisa e a visão que estes tinham sobre minha presença e sobre suas vidas talvez nunca pudessem ser cruzadas, pois por mais que eu pretendesse me aproximar da visão deles, minha presença nos ensaios e nos ritos era motivada antes de tudo pela pesquisa, enquanto do ponto de vista deles talvez eu estivesse sendo usada por Deus no papel de musicista, educadora e pesquisadora. Esse “impasse ético” estaria “inextricavelmente ligado à 131

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natureza mesma do conhecimento etnográfico” (COELHO, 2013)? Uma proposta seria a mudança: o pesquisador não estaria apenas observando e etnografando sozinho. Os pesquisados (interlocutores) seriam realmente convidados à interlocução, seriam convidados a interagir dentro do projeto etnográfico. Eles seriam atuantes no processo, no fazer etnográfico. Um caminho possível de diálogo poderia ser buscado a partir dessa tensão entre aquilo que o pesquisador diz sobre os interlocutores da pesquisa e aquilo que os interlocutores dizem sobre o que o pesquisador disse sobre eles.

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Artigo submetido em: 07/10/2012. Artigo aprovado para publicação: 16/11/2013

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Com as mãos sujas de sangue:

música, emoções e romantismos Raphael Bispo 1

Resumo O presente artigo tem como proposta analisar as canções produzidas por bandas de rock classificadas de “emo” na atualidade. Resgatando contrastivamente o imaginário romântico do século XVIII – que tem no livro Os sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang Goethe, uma de suas melhores elaborações –, buscase compreender mais precisamente as diferentes estratégias e inflexões no processo histórico de elaboração de uma subjetividade interiorizada e autonomizada, típica da modernidade ocidental, tendo como base duas experiências artísticas distintas. Assim, apontando as semelhanças, diferenças e especificidades existentes entre dois momentos de registros estéticos de nossa cultura (a literatura romântica “clássica” de Goethe e a música emo da banda My Chemical Romance), além de se constatar a permanência de uma espécie de “sombra romântica” (DUARTE, 2004) nas artes de hoje, o artigo procura também jogar luz sobre as configurações da vida íntima no Ocidente moderno, mais precisamente sobre como têm operado historicamente nossas experiências amorosas, a partir de narrativas sobre o amor e o self formuladas em momentos históricos específicos. Palavras-chave: emo, amor, romantismo, antropologia das emoções.

1 Doutor em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ), pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESAP/ IUPERJ/ UCAM). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

Com as mãos sujas de sangue: música, emoções e romantismos

Abstract This article aims to analyze the songs produced by rock bands classified as “emo” nowadays. Rescuing the romantic imagination of the eighteenth century – which has in the book The Sorrows of Young Werther, by Johann Wolfgang Goethe, one of your best elaborations – we seek to understand more precisely the different strategies and inflections in the historical process of developing a subjectivity internalized and autonomously, typical of western modernity, based on two distinct artistic experiences. Thus, pointing out the similarities, differences and specificities between two moments of our aesthetic culture ( the “classic” romantic literature of Goethe and the emo music of the band My Chemical Romance ), and it appears that there remains a sort of “shadow romantic” ( DUARTE, 2004) in the arts today , the article also seeks to shed light on the intimate settings of life in the modern West , specifically about how they have historically operated our love experiences from narratives about love and self, formulated in specific historical moments. Key words: emo, love, romantism, anthropology of emotions.

Introdução Atualmente, o estilo musical conhecido como emotional hardcore, emocore ou simplesmente emo – do rock sentimental e valorizador de atitudes românticas – é disseminado por todo o globo, ouvido por milhões de pessoas nos mais diferentes países. Ele é “consumido” por jovens através de distintas mídias, tais como jornais, revistas, CDs, programas de rádio, televisão e internet. Filho desacreditado do punk já bastante comercializado da década de 80 do século XX, o emo foi também outrora entendido como “underground”2, mas hoje tornou2 Categoria comum no mundo artístico do rock como um todo e bastante disseminada também no movimento emo, ela é sinônimo de alternativo, isso é, daquilo que é contrário ao banalizado e massivamente difundido pelas grandes empresas de entretenimento. Existe uma tensão nessa cena musical emo mais mainstream em torno de qual banda seria realmente emo e se elas se veem segundo essa denominação. Para mais detalhes sobre as visões dos fãs sobre as bandas emos e como elas fogem desse tipo Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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se integrado aos principais grupos de entretenimento que espalham seus tentáculos por todo o mundo. Diante desse cenário da música comercial, o presente artigo tem como proposta analisar as canções produzidas por bandas de rock classificadas de emos na atualidade. Resgatando contrastivamente o imaginário romântico do século XVIII – que tem no livro Os sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang Goethe, uma de suas melhores elaborações –, busca-se compreender mais precisamente ao longo do texto as diferentes estratégias e inflexões no processo histórico de elaboração de uma subjetividade interiorizada e autonomizada, típica da modernidade ocidental, tendo como base duas experiências artísticas distintas. Assim, apontando as semelhanças, diferenças e especificidades existentes entre dois momentos de registros estéticos de nossa cultura (a literatura romântica “clássica” de Goethe e a música emo da banda My Chemical Romance), além de se constatar a permanência de uma espécie de “sombra romântica” (DUARTE, 2004) nas artes de hoje, o artigo procura também jogar luz sobre as configurações da vida íntima no Ocidente moderno, mais precisamente sobre como têm operado historicamente nossas experiências amorosas a partir de narrativas sobre o amor e o self formuladas em momentos históricos específicos. Como tentarei mostrar neste artigo, o emo é um estilo musical entranhado dos excessos sentimentais bastante recorrentes na literatura romântica clássica, tão bem exemplificados na obra de Goethe. São esses excessos que fizeram o sucesso do livro no século XVIII, bem como são eles que também garantem a boa aceitação do emocore de rotulação, ver Bispo 2012.

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pela juventude contemporânea. Os fãs do estilo musical defendem a existência do emo tendo como base o fato de essa vertente do rock ser “mais sentimental do que qualquer outra”. As letras de música emo são ao menos inspiradas pela atmosfera romântica clássica e, com esse ideário, mantêm ao mesmo tempo tensões e conflitos. Para sermos mais precisos, o emocore aponta para a retomada e a crítica contemporânea de alguns princípios fundadores do Romantismo – entendido agora não mais como um mero estilo artístico, mas como uma categoria analítica instrumental da cosmologia do Ocidente, nos termos de Duarte (2004) –, iniciado no século XVIII, em contraposição ao Iluminismo dominante da época. Goethe é um dos nomes mais destacados do movimento, devido à sua luta contra o ponto de vista clássico da aristocracia iluminada e à tendência para o normativo e o universalmente válido. Além disso, o Romantismo repercutiu profundamente no campo artístico como um todo, cuja “sombra” se estende até nossos dias. Logo, é bastante pertinente percebemos os seus tentáculos em produções culturais recentes. O corpus de análise das músicas poderia ser o mais vasto possível. Como dito acima, é grande a quantidade de bandas que, mesmo não aceitando a designação, são consideradas emocore pelos fãs. Diante da gama de possibilidades, optei por me deter nas canções de uma única banda, a americana My Chemical Romance (a listagem das músicas e suas referências de localização se encontram ao final do texto). Ela se enquadraria no grupo das que dominam a cena roqueira na atualidade, vendendo milhões de álbuns e se apresentando pelo mundo todo com o patrocínio de conglomerados empresariais. Fiz essa escolha porque a banda era uma das mais conhecidas e comentadas entre os Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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jovens emos do Rio de Janeiro pesquisados por mim (BISPO, 2012). Estes, por exemplo, pouco ou nada sabiam do emo da década de 1980. Em seus blogs, fotologs e perfis no Orkut, o que mais há são referências sobre esse grupo formado em 2001, em Nova Jérsei, logo após o ataque terrorista de 11 de setembro. Em 2008, a banda fez diversos shows pelo Brasil, tendo suas músicas tocadas incansavelmente nas rádios do país. A My Chemical Romance é constituída por Gerard Way (vocais), seu irmão Mike Way (baixo), Bob Bryar (bateria), Frank Iero e Ray Toro (ambos nas guitarras). Ela possui três CDs de estúdio: I Brought You My Bullets, You Brought Me Your Love (2002); Three Cheers for Sweet Revenge (2004); e The Black Parede (2006). As músicas analisadas neste trabalho constituem esses álbuns, sendo, no total, 38 composições. No anexo final estão os nomes de todas elas. Os trechos aqui analisados serão acompanhados de um “M”, inicial de “música”, e de um número ao lado (por exemplo, M12, ou seja, música 12) para que o leitor possa saber à qual composição do anexo está se fazendo referência. O artigo está estruturado da seguinte maneira: primeiro, apresenta-se o imaginário romântico recorrente no livro Os sofrimentos do Jovem Wether e, logo em seguida, procura-se destrinchar as letras emos contemporâneas da banda My Chemical Romance, tendo como base as distinções e possíveis aproximações com esse ideário. Ao final, como conclusão, busca-se uma reflexão em torno de como se operaram historicamente as experiências amorosas na cultura ocidental moderna a partir da comparação entre esses dois registros artísticos apresentados e comparados ao longo do texto.

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Jovens Werthers e emos O criado sobe as escadas e abre a porta de um dos quartos da residência. Já são seis horas da manhã e seu patrão ainda não havia se levantado. As malas para a viagem estavam há um bom tempo arrumadas e os cavalos prontos para partir. A pálida luz da vela obrigou o jovem trabalhador a tatear pelo aposento, com passos incertos. De repente, para. Diante dele, uma pistola caída no chão. Pouco além se encontra o amo. O sangue empoçado ao redor da cabeça. Na escrivaninha, algumas folhas de papel: uma confissão desesperada de amor, uma paixão impossível por Carlota. Diziam assim alguns trechos presentes nesses rascunhos, que eram, na verdade, uma carta de despedida endereçada a essa senhora: É coisa resolvida, Carlota: quero morrer. Escrevo-lhe isto tranquilamente, sem exaltação romanesca, na manhã do dia em que a verei pela última vez. Quando você ler esta carta, minha bem-amada, o túmulo frio cobrirá os restos enregelados do infeliz, de espírito inquieto, que não sabe de mais doce emprego a fazer dos seus últimos momentos de vida senão entretêlos com aquela a quem tanto amou. Passei uma noite terrível, mas também, ai de mim, uma noite benfazeja, que fortaleceu, fixou a minha resolução. Quero morrer! Quando ontem me arranquei de você, inteiramente possuído de uma terrível revolta, o coração assaltado por tantas emoções, sentindo-me gelado de horror em face da existência sem alegria e sem esperança que levo a seu lado, nem sei como pude chegar ao meu quarto. Caí de joelhos, fora de mim, e vós me concedestes, ó Deus, a consolação suprema das lágrimas mais acerbas! Mil projetos, mil perspectivas Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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agitaram-se tumultuosamente em minha alma; por fim, projetou-se nela, definitivo e supremo, este pensamento: ‘Quero morrer!’. (...) Não é o desespero; é a convicção de que resisti quanto me era possível resistir, e de que eu me sacrificarei por você. Sim, Carlota, por que calar? É preciso que um de nós três desapareça, e sou eu quem deve desaparecer. Ó minha bem-amada, neste coração dilacerado muitas vezes se insinuou o pensamento frenético... De matar seu marido! De matar você!... De matar-me a mim mesmo! Cumpra-se o meu destino! Quando você subir a colina, por uma bela tarde de verão, lembrese de mim, que tantas vezes fui ao seu encontro, nesse lugar, surgindo de fundo do vale. Depois, volte os olhos do outro lado, em direção ao cemitério, e contemple o meu túmulo, sobre o qual o vento agitará os arbustos à luz do sol poente! No começo, eu estava tranquilo, e agora, agora eu choro como uma criança, vendo surgir em torno de mim essas vivas imagens...(GOETHE, 2002, p. 327-328).

Pronto! O jovem Werther está morto. Não sofre mais, ou, pelo menos, só voltará a sofrer quando um novo leitor decidir se aventurar pelas agonizantes cartas por ele deixadas antes de tomar a fatídica decisão. Há mais de dois séculos, o fictício martírio de Werther é contado e recontado das mais diferentes formas, sofrendo um processo de difusão e diluição bem comum entre as estórias consideradas paradigmáticas da cultura ocidental moderna. O caso é considerado um exemplo máximo da superação do sofrimento amoroso por meio do suicídio. Foi exatamente em 1774 que Johann Wolfgang Goethe, então com apenas 25 anos, lançava na Alemanha um de seus romances de maior sucesso, Os Sofrimentos do Jovem Werther. O livro provocou na época uma comoção generalizada. Dizem que, após a sua propagação entre o 143

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público, multiplicaram-se suicídios idênticos pelo país. O gesto havia se tornado, em pouco tempo, sedutor, e a “moda”, alarmante, a ponto de ficar conhecida como o mal do século. Apesar do sucesso estrondoso, o livro foi condenado por todos aqueles que entendiam a vida não como uma renúncia ou fuga dos problemas que surgem inevitavelmente em seu percurso, mas, sim, como uma luta, uma conquista. A Igreja Católica chegou a colocá-lo em seu temido Índice de Livros Proibidos. A estrutura narrativa do texto de Goethe – que não é exclusiva desse clássico – é bastante propícia para analisarmos as músicas do My Chemical Romance, visto que ela obedece à dinâmica da interioridade do protagonista, ou seja, toma como foco o espaço profundo e interno desse agente. Por ser uma espécie de diário dos últimos dias de Werther – construído a partir da organização das cartas por ele enviadas ao amigo e confidente Wilhelm –, há no texto uma valorização da intensidade das descrições “psicológicas” do protagonista, cujo tom pode parecer ao leitor, hoje, um pouco forçado e afetado. O mesmo poderia ser dito sobre as canções da banda emo. Todas são compostas pelo atormentado vocalista Gerard Way, que, em entrevistas, costuma dizer que sua música é uma rota de fuga de suas aflições3. As letras são, portanto, revelações dessa dimensão mais interna do apaixonado, em que se declara e mostra a quem quiser saber o que se passa “dentro dele”. Os excessos que marcam a literatura romântica original caracterizam da mesma forma o emocore, permitindo destoá-lo, segundo seus fãs, das outras vertentes musicais contemporâneas que são também essencialmente sentimentalizadas (BISPO, 2012).

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O Globo, Megazine, 12/02/08, p.4 -5. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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A ideia de que somos indivíduos dotados de uma interioridade, um espaço profundo onde guardamos verdades sobre nós mesmos por meio de pensamentos e emoções é uma constatação banal para pessoas constituintes da cultura ocidental, mas, de acordo com o ponto de vista do filósofo Charles Taylor, ela é bastante recente em nosso horizonte cosmológico. Em seu vigoroso livro As fontes do self (1997), o autor nos mostra por meio de trabalhos seminais de grandes pensadores como Platão, Descartes, Locke e Montaigne, por exemplo, como a “interioridade” humana é uma forma historicamente construída dos indivíduos modernos se autointerpretarem. A perspectiva diacrônica de seu estudo nos permite comparar momentos importantes da configuração moderna desse self. Assim, em Platão, por exemplo, já seria possível constatar a percepção de que existiria um “interior” humano – de indivíduos centrados em si mesmos – mas de sujeitos entendidos como um todo indivisível, visto que diferentes pensamentos e sentimentos ocupariam um local singular, único, ou seja, o conceito de “alma” platônico (TAYLOR, 1997, p. 161) – que seria bem diferente dos modelos de self formulados pelos pensadores dos séculos XVIII e XIX. Estes, por sua vez, ao situarem dentro de nós as nossas fontes morais, deram-nos a percepção de que possuímos um interior autossuficiente, dotado de uma autonomia que, ordenada pela razão, é capaz de elaborar nossos desejos e inclinações. Assim, o homem moderno possuiria um interior dividido, em que razão e emoção travariam um intenso embate. Torna-se importante acrescentar, porém, que a própria antropologia já vinha se questionando sobre a ideia de uma autonomia dos indivíduos, fortemente ilustrada pelos escritos literários e musicais aqui estudados. As clássicas reflexões de Louis Dumont (1992) acerca 145

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da emergência da ideia do indivíduo moderno ocidental nos fornecem algumas pistas para nossa investigação. Bem próximo daquilo que Taylor faz tendo como parâmetro os clássicos da filosofia, o autor nos mostra etnograficamente – com base na comparação com os princípios regentes dos sistemas de castas indianos – que o pensamento ocidental moderno está fundado em torno da noção de indivíduo, tido como um ser moral, autônomo e não social, ou seja, anterior à sociedade. Sendo assim, essa cosmologia se funda no princípio de que esse indivíduo é capaz de obedecer a linhas de ação próprias, independentemente das regras que regem a vida social. Ele possuiria uma capacidade de deliberar, escolher e agir diante de diferentes cursos de ação possíveis. Com isso, verifica-se que essa concepção em Dumont está bastante articulada a uma visão mais formalista e jurídica do indivíduo. Porém, ela não é restritiva a isso, como pensam alguns autores. É possível também que adicionemos a essa análise a dimensão interna, o íntimo do indivíduo moderno, como um lócus dessas manifestações não prescritivas e autônomas, capaz de – pensando conforme as próprias representações ocidentais – subordinar aquelas mais “externas”, ou seja, as construídas a partir de um acordo para uma vida social em comum. O que Dumont procura fazer é um desbotamento dessa dicotomia entre um interno/individual/idiossincrático em relação a um externo/social/ generalizado, apontando, entretanto, para o quanto tais representações seriam basilares da cultura ocidental moderna. Em suas palavras: Uma ideia comum apresenta-se como pessoal quando se torna plenamente real. Os romances estão cheios de exemplos desse tipo: temos uma necessidade estranha, para reconhecê-lo como nosso, de imaginar que o que nos acontece é único, quando ele Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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é apenas o pão e o fel comuns de nossa coletividade ou humanidade particular. Bizarra confusão: existe uma pessoa, uma experiência individual e única, mas ela é feita de elementos comuns para grande parte, e não há nada de destruidor em reconhecer esse fato: extirpe de si mesmo o material social, e você não será mais do que uma virtualidade de organização pessoal (DUMONT, 1992, p. 54).

Meu objetivo aqui não é esgotar agora nossa compreensão moderna de indivíduo e interioridade. A ideia é situar as revelações sentimentais de Werther e do emo em momentos específicos da configuração do self no Ocidente, mais precisamente este que começa a se configurar no advento da modernidade, em meados do século XVIII, que Dumont costuma chamar de cultura ocidental moderna. Assim, dando prosseguimento à análise da narrativa, o livro de Goethe possui uma estrutura que nos permite pensar em torno dessa interioridade do personagem. A obra é dividida em duas partes. A primeira refere-se ao contato inicial de Werther com Carlota e sua imediata paixão por ela. Aqui, o protagonista parece ainda bastante ativo e interessado pela vida de modo geral, bem integrado a um mundo ordeiro e harmônico. Sua razão controla nitidamente seus desejos. A natureza – no sentido de algo externo ao indivíduo, lá fora – estimula os seus sentidos e é um espaço privilegiado para o deleite de múltiplas sensações prazerosas. O amor lhe causa felicidades e também desperta prazer. Até aqui, esse afeto ainda não corrompeu a sua vontade de viver. Pequenos gestos de sua amada, por exemplo, estimulam frases com forte teor passional, de idolatria e exaltação a ela. Aproximamo-nos da janela. Os trovões continuavam, mas cada vez mais distantes, e uma chuva deliciosa 147

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começou a cair, fazendo um agradável ruído; subiam até nós bafagens de ar tépido e carregado de um cheiro vivificante. Ela estava apoiada sobre o cotovelo, olhando a campanha; ergueu o olhar para o céu e, em seguida, para mim. Notei que seus olhos estavam banhados em lágrimas. Ela colocou a mão sobre a minha e exclamou: ‘O Klopstock!’. Lembreime imediatamente da ode magnífica em que Carlota pensava, e abandonei-me às emoções que só aquela palavra despertou em mim. Sem poder conter-me, curvei-me sobre a sua mão, cobrindo-a de beijos e de lágrimas; depois, meus olhos procuraram novamente os dela... Ó nobre poeta! E dizer que não vistes a vossa apoteose naquele olhar! Que eu não ouça, nunca mais, pronunciar o vosso nome tantas vezes profanado! (GOETHE, 2002, p. 241-242).

Lionel Trilling (1971) – num livro cujo propósito básico se aproxima ao de Taylor, ou seja, perceber as mudanças e transformações do self ocidental por meio de obras clássicas da literatura – classificou esse primeiro estado de vida de Werther de “honest soul”, com base no conceito hegeliano de “nobility” (TRILLING, 1971, p. 34). Teríamos aqui um típico self pré-moderno, em que o jovem apresenta uma consciência plácida de si, um eu uno e bem articulado com o mundo ao redor. Werther se satisfaz em ler livros junto de uma fonte e conversar com as pessoas do povoado para onde havia se mudado. Ele ama Carlota e se contenta em ficar apenas ao seu lado. Entretanto, na segunda e maior unidade do livro, esse sentimento amoroso ganha um novo status. Werther passa a sofrer demasiadamente por Carlota. Seus desejos começam a consumi-lo e sua razão é incapaz de controlá-los. O mundo não mais o acomoda e o convida a uma consciência harmônica, a “honest soul”. O que ele faz é Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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confirmar sua dor e confusão interna. O jovem volta-se cada vez mais para si mesmo, tornando-se consciente de suas dimensões mais profundas. Segundo Trilling, Werther vivencia nessa etapa da obra a “desintegrated consciousness” moderna (p.37). O self não é mais unificado. Ele é dividido e em conflito. Isso porque seu amor não é possível de ser concretizado. Carlota é comprometida e considera-o somente um bom amigo, alguém interessante para estabelecer apenas uma estimulante conversa. A carta transcrita no início desse capítulo é o ápice do sofrimento de Werther e sintetiza muito bem sua “desintegrated consciousness”. Diante da impossibilidade de uma felicidade plena, restará apenas a morte a um coração desafortunado. Como é possível acompanhar a partir dessa divisão da obra em dois distintos e contrastantes momentos da vida de Werther, a constituição pelo autor do self do jovem em questão não se dá de forma aleatória, abordando qualquer incômodo que sua personagem venha a ter nas mais profundas dimensões de sua intimidade. O foco da narrativa é a relação amorosa do protagonista e o consequente sofrimento por ela provocado. A vida de Werther é apresentada como um acontecimento excitante, introvertido, que exige do escritor o tracejado de um destino individual bem definido e que provoque interesse no leitor. Tanto que há dois nítidos momentos sentimentais no texto, atrelados à paixão do protagonista por Carlota: um de felicidade e outro de tristeza. Isso é exemplificado pelas leituras que Werther confessa estar fazendo nas cartas ao seu amigo. No primeiro momento, andava envolvido com Homero. Após as agruras amorosas com Carlota, se diz encantado com os escritos de Ossian, o suposto poeta que dedicou sua obra a falar de escuridão, dor e desespero. “Ossian suplantou Homero no meu coração. 149

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Que mundo aquele para onde me leva o poeta sublime!” (GOETHE, 2002, p. 303), revela-nos Werther. Com isso, na obra de Goethe, as sensibilidades amorosas são expressas como um processo unificado, em que, por meio de uma intensificação gradual e um clímax específico, sai-se da felicidade e engajase na tristeza por meio de um sofrimento. O mesmo se percebe quando fazemos uma leitura semelhante das músicas emo, especialmente as do My Chemical Romance. O assunto central delas são as relações amorosas, que, por sua vez, também não se concretizam em sua plenitude. O “eu lírico” aparece sempre dialogando com um “outro” nas canções, “outro” este que é o alvo de todo o seu afeto, é o ser verdadeiramente amado. Os dois tempos sentimentais articulados como um continuum (da felicidade à tristeza) construídos por Goethe também marcam a vida do apaixonado narrada nas músicas da banda. Constatamos isso, com muita clareza, em Early Sunsets Over Monroeville, a que passaremos a dedicar agora uma especial atenção. Late dawns and early sunsets / just like my favorite scenes Then holding hands and life was perfect / just like up on the screen And the whole time while always giving Counting your face among the living (M8)

Esse primeiro trecho relata um agradável momento vivenciado pelo narrador. Diferente de Werther – que experimentou a felicidade ao lado de Carlota sem ter ao menos tido qualquer contato mais íntimo com ela –, a “vida perfeita” do apaixonado se exemplifica no andar de mãos dadas com sua amada perante um pôr do sol típico de cenas de cinema. É o primeiro momento da relação amorosa, em que tudo parece Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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ser positivo e estimulante. A felicidade aqui, como no texto de Goethe, é traçada junto à natureza. Se Werther nos fala mais acima de uma “chuva deliciosa” e seu “agradável ruído” e “cheiro vivificante”, o emo relata um “adiantado pôr do sol” como cenário para sua cena de amor. Entretanto, a possibilidade de experimentação de sentimentos por meio de elementos da natureza não é restrita às vivências amorosas descritas acima. Na verdade, os casos de Werther e da música emo exemplificam um comportamento típico do indivíduo moderno. Alain Corbin (1989), em um estudo sobre a praia no imaginário ocidental, mostra-nos como o mar teve um papel de destaque no surgimento do que ele classificou de uma “nova economia das sensações” (CORBIN,1989, p. 108), na virada do século XVIII para o XIX. Os novos projetos terapêuticos contra a melancolia e outras ansiedades que atormentavam as classes dominantes no período passaram a destacar as praias como um espaço privilegiado não só para garantir os cuidados corporais, mas também assegurar um conforto à alma, ou melhor, ao espírito. Junto à beira-mar – ou à natureza de maneira geral –, os indivíduos modernos passaram a desfrutar uma “arte de viver” (p.108), descobrindo a si mesmos através de experiências sensitivas diversas. A partir daí, uma íntima vinculação entre o estado da alma/espírito e a natureza começa a ser estabelecida mais enfaticamente. Segundo o autor, os românticos não descobriram o mar, mas se apropriaram muito bem dele, transformando-o em um local privilegiado de contemplação e deleite ou, em suas palavras, “de vibração particular do eu” (p.177). A natureza romântica não é meramente uma coleção de fatos e eventos inquebrantáveis, cuja “racionalidade humana” estaria apta a

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mensurar. Ela é capaz de estimular os indivíduos, de interferir em suas percepções e no conhecimento de si mesmos, não só daquilo que os rodeia. Por estar conectada ao mundo através da trama de seus sentidos, a natureza é um espaço privilegiado para o homem romântico experimentar sensações. Assim, os diferentes momentos do dia, as estações do ano, a noite enluarada e serena, a tempestade furiosa, a misteriosa paisagem da montanha e o mar sem fundo fornecem as condições necessárias para o grande drama, ou seja, o espetáculo do sofrimento do apaixonado. O trecho de outra música do My Chemical Romance, Cubicles, mostra que, quando a relação amorosa era baseada no sentimento mútuo de felicidade, o amor eclodia sobre dunas de areia, jardins floridos e bosques com folhas secas pelo chão em dias ensolarados. No entanto, com o fracasso da relação e a consequente tristeza do eu lírico, o pôr do sol torna-se escurecido, assim como as águas da praia. É sempre noite para o emo ressentido. So I´ll spend my time with strangers / A condition that is terminal In this water-cooler romance / And its coming to a close We could be in the park and dancing by a tree Kicking over blades we see / Or a dark beach with a black view As pin-pricks in the velvet catch our fall (M10)

Envolvido por estranhos, o apaixonado constrói o cenário de sua dor numa “praia escura” com uma “vista negra”. Há uma nítida associação entre cores, momentos temporais e sensibilidades: a tristeza é escura, sombria, e acomete sempre pela noite. Felicidade é associada aos dias claros, não nebulosos. Keith Tomas (1988) analisa como a floresta, no período anterior à modernidade na Europa, era tida Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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como um ambiente selvagem e hostil, preferindo-se o campo aberto à densidade melancólica do bosque por ele ser “terrível”, “sombrio” e até “assolado por feras” (TOMAS,1988, p. 232). A partir do século XVIII e com a candente constatação da necessidade de se preservar áreas verdes – principalmente para a subsistência – a floresta ganha uma nova dimensão, acrescentando beleza e dignidade ao cenário. Os bosques se tornam locais de deleite e inspiração, “encantados” por estórias de amor e com grande significado para os que por eles passeavam. As letras emo, portanto, refinam esse imaginário ocidental sobre a natureza de acordo com a graduação sentimental do eu lírico: sofre-se num ambiente tenebroso, soturno e hostil como o das florestas pré-modernas. Porém, ama-se nos iluminados e esteticamente agradáveis bosques do pensamento romântico do século XVIII4. Steel corpses stretch out towars an ending sun Scorched and black It reaches in and tears your flesh apart As ice cold hands rip into your heart (M7)

4 É importante se destacar que, no segundo momento da narrativa de Werther, a natureza não adquire esse teor soturno e adverso característico do sofrimento emo. O jovem ainda a percebe como um local de contemplação e experimentações sensíveis. No entanto, ela já não lhe oferece os prazeres de outrora. Werther assume um tom saudosista ao abordar os elementos naturais, já que foi por meio deles que seu amor por Carlota foi estimulado. “Vejo altearem-se diante de mim as montanhas para as quais tantas vezes me senti atraído! Cheguei a ficar neste lugar horas inteiras, desejando ardentemente transportar-me até lá, mergulhando com toda a minha alma naquelas florestas, naqueles vales que, tão cheios de estranha sedução, envolvidos pelos véus vaporosos, se ofereciam aos meus olhos! E, quando era chegada a hora de regressar a casa, com que tristeza eu me afastava deste lugar querido!” (GOETHE, 2002, p. 293). Porém, é importante se ressaltar que outra corrente da literatura clássica romântica – denominada por Duarte como “Romantismo da Sombra” (DUARTE, 2004, p.12) – valorizava a natureza soturna e melancólica. Novalis, Nerval, Baudelaire e, no Brasil, Álvares de Azevedo, são alguns representantes mais significativos dessa corrente.

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A essa temática soturna, presente nas canções do My Chemical Romance, podemos ainda incorporar elementos que complementam esse sofrimento emo por meio de uma espécie de estética do horror. Durante a execução de um pôr do sol queimado e preto, “corpos”, “carnes” e “mãos geladas” dilaceram-se, como elucida o trecho acima. O clima dark das cantigas – muito bem representado nas produções audiovisuais da banda, que privilegiam as gravações em ambientes escuros e com elementos que favorecem o soturno como chuvas, roupas pretas, maquiagens pesadas, etc – é favorecido pela construção de tragédias sanguinolentas em que partes de corpos machucados despencam de sua órbita, bem como por meio da constante necessidade de ambientar o drama do eu lírico em torno de cemitérios, túmulos e cadáveres. Well let´s go back to the middle of the day that starts it all I can´t begin to let you know just what I´m felling And now the red ones make me fly / And the blue ones make me fly And I think I´ll blow my brains against the ceiling And as the fragments of my skull begin to fall Fall on your tongue like pixie dust just think happy thoughts” (M6) This night, walk the dead / In a solitary style And crash the cemetery gates / In the dress your husband hates Way down, mark the grave / Where the search lights find us Drinking by the mausoleum door / And they found you on the bathroom floor (M23)

O terceiro álbum da banda, The Black Parade, é emblemático para a elucidação dessa estética. Todas as canções contam a estória de

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um homem à beira da morte no hospital, acometido por um câncer. Ali, ele começa a rever toda a sua vida, dedicando preciosos momentos a refletir sobre sua conturbada relação amorosa. A maneira como o hospital é descrito torna-o um local por excelência do sofrimento, por onde o apaixonado percorre sombrios corredores e se depara com corpos, sangue e dor. O leito é o palco de sua agonia, onde percebe a morte cada vez mais próxima5. Now turn away / `Cause I´m awful just to see `Cause all my hairs abandoned all my body Oh my agony / Know that I will never marry Baby I´m just soggy from the chemo But counting down the days to go (M32)

Assim, a partir do confronto entre um ambiente aprazível e outro soturno – entendidas a partir das vivências sensíveis do emo sofredor – retornamos ao tópico dos dois momentos emocionais contrastantes na vida interior do eu lírico romântico aqui analisado. Darei agora um passo adiante em sua escalada do sofrimento. Retornando ao relato da já citada canção Early Sunsets Over Monroeville, é nítido quando entramos na segunda “fase” da estória de amor, a de “disintegrated consciousness”. O trecho da música que se segue é posterior ao apresentado mais acima. Up and down escalators / pennies and colder fountains Elevators and half price sales / trapped in by all these mountains Running away and hiding from you / I never thought they´d get me here (M8) 5 Cabe aqui ressaltar que a agonia de Werther também é marcada por uma fixação em torno do mórbido. Apenas na carta de despedida a Carlota – reproduzida parcialmente no início do capítulo – ele se utiliza de referências como “túmulo frio”, “gelado de horror” e “cemitério”.

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O eu lírico já demonstra aqui certa instabilidade emocional. A relação começa a incomodá-lo, decidindo fugir do local onde vive e, consequentemente, de sua maior tormenta. O apaixonado narrador emo não acreditava na possibilidade de ser achado em seu refúgio e isso aumenta o sofrimento. Escapar de sua realidade mais imediata foi a maneira por ele encontrada para superar uma dor que tende a ficar mais complexa, caso não procure eliminá-la rapidamente. Um tópico importante dessa escalada do sofrimento que estamos querendo traçar aqui é o quanto fugir aparece como solução imediata para amenizar a dor amorosa. Tal atitude também foi tomada por Werther quando ele constata “sua alma torturada pela paixão, roída pela tristeza no mais íntimo de si mesma” (GOETHE, 2002, p. 249). O personagem prefere sair da cidade pequena e rural para a qual havia se mudado em vez de manter vínculos com Carlota e seu marido. Mesmo sabendo que o afastamento não seria para sempre, Werther opta por investir num abrupto rompimento, evitando que mais transtornos surjam provocados por seu sentimento condenado. Outra atitude bastante comum nessas produções culturais aqui em destaque é o uso de entorpecentes a fim de anular o sofrimento. Werther nos narra as lamentações de Carlota por ele estar consumindo excessivamente álcool. “Copo atrás de copo, cheguei a beber uma garrafa de vinho”, diz ele ao amigo Wilhelm. O eu lírico emo também não fica atrás. Na canção The Sharpest lives, ele revela ter se entregue às diversões noturnas a fim de esquecer a amada. Numa outra, fala do consumo de pílulas para neutralizar os efeitos do álcool em seu organismo. Tudo isso, mais uma vez, para controlar a tristeza que avança gradativamente em

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seu interior, cada vez mais distante dos momentos iniciais de felicidade acima relatados. Well, it rains and it pours / When you´re out on your own If I crash on the couch can I sleep in my clothes? Cause I´ve spent the night dancing / I´m drunk, I suppose If it looks like I´m laughing / I´m relly just asking to leave (M28) The amount of pills I´m taking / counterracts the booze I´m drinking And this vanity I´m breaking / Lets me live my life like this (M2)

O consumo de substâncias não medicamentosas pelos tristes românticos pode ser estudado à luz das associações que alguns antropólogos, como Nestor Perlongher (1994), estabelecem entre essa atividade e o êxtase religioso. Entre variados conceitos possíveis para essa ideia, o autor menciona o referente ao impulso de sujeitos em escapar em certa medida de sua condição, a fim de se projetar num mundo que não seria o seu mais rotineiro. Virar outra pessoa por meio de álcool ou produtos psicoativos é “deixar de ser aquilo que se é no circuito da vida convencional” (PERLONGHER, 1994, p. 10) e adentrar numa espécie de estado segundo, em que o indivíduo consegue finalmente romper com seus assombros rotineiros. Para nossos amantes inveterados, o consumo dessas substâncias é uma maneira de fugir do sofrimento amoroso e esquecer a amante. Ao invés de algo comum, de seu dia a dia, a droga aparece com um escape, um fim em si mesma, ou, nas palavras de Perlongher, “um fim de si” (p.14), já que ela – no caso de Werther, por

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exemplo – está associada em muitos casos a condutas suicidas6. Todavia, tanto nas músicas emo quanto no texto de Goethe, a fuga e o uso de entorpecentes nunca são bem-sucedidos. Ambas são medidas paliativas que procuram anular ou, pelo menos, amenizar a dor de amor. Assim, a escalada do sofrimento do eu lírico tende a continuar. A morte, que já rondava os discursos do eu lírico antes mesmo de todo seu sofrimento, aparece como a inevitável solução para o fim das tormentas. É o que constatamos no final da já apresentada Early Sunsets Over Monroeville. But does anyone notice? / But does anyone care? And if I had the guts to put this to your head… And would anything matter if you´re already dead? And should I be shocked now by the last thing you said? Before I pull this trigger / Your eyes vacant and stained… And in saying you loved me / Made things harder at best And these words change nothing / As your body reminds And there´s no room in this hell / There´s no room in the next And our memories defeat us / And I´ll end this direst (M8) 6 Os emos, na maioria das vezes, condenam o consumo de drogas ilícitas. Nas letras analisadas também não há qualquer referência a elas. Numa entrevista, Gerard Way, o compositor do My Chemical Romance, confessa ter usado essas substâncias em algum momento de sua carreira, mas vê essa experiência como um erro: “Sim. Eu e Gerard [irmão e baterista da banda] éramos drogados. Eu estava sempre bebendo ou ingerindo pílulas antidepressivas. Também usava muita cocaína. Entrei nessa no início da banda e passei a usar mais quando começamos a crescer, porque estava sob muita pressão. (...) Estamos totalmente sóbrios. Olhando par trás, não fico feliz, porque foram anos difíceis. Mas agora vejo como foi bom abandonar aquilo tudo” (O Globo, Megazine, 12/02/08, p.4 -5). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Pelas ríspidas palavras acima, intui-se que a situação começa a ganhar contornos mais dramáticos. O emo ameaça colocar uma arma na cabeça de sua amada. Chegamos, portanto, ao clímax da gradação sentimental do eu lírico, no polo oposto à harmonia de outrora. Mesmo que a amante diga o quanto a relação foi significativa para ela, toda a experiência vivida ao seu lado não significa muita coisa para o emo. O importante é dar cabo do sofrimento por meio da morte daquele que o provoca. “But does anyone notice there´s a corpse in this bed?” é a pergunta que dá fim à música aqui em questão, apontando para uma espécie de indiferença do eu lírico diante do corpo morto de sua amada. Numa outra canção, The ghost of you, podemos perceber o mesmo final trágico. At the end of the world / Or the last thing I see You are / Never coming home (2x) Could I? Should I? And all the things that you never ever told me And all the smiles that are ever, ever, ever… Get the feeling that you´re never All alone and I remember now At the top of my lungs in my arms she dies… She dies… (M17)

Temos aqui, portanto, um importante ponto de discrepância entre as duas produções culturais que buscamos analisar comparativamente neste capítulo. Bem diferente do imaginário do mal do século e dos suicídios coletivos inspirados em Werther no século XVIII, o apaixonado emo prefere a morte do ser amado à sua própria. Os transtornos sentimentais diante de um mundo conturbado por um amor irrealizável cessarão quando o jovem der cabo da vida de seu interlocutor, na

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maioria dos casos uma mulher7. Na obra de Goethe, entretanto, cabe ao sofredor o destino trágico. A vida não parece ser digna sem ter ao lado o ser amado. A morte é um sacrifício pela eternidade de uma relação que, em algum momento, fora exitosa. Na carta de despedida publicada mais acima, Werther indica ter pensado na possibilidade de matar Carlota ou seu marido para aquietar seu sofrimento. “É preciso que um de nós três desapareça, e sou eu quem deve desaparecer”, decide ele. É preciso ressaltar também que, nas letras emo, a morte da amante é antecedida por uma série de maus-tratos infligida a ela pelo eu lírico, que parece envolvido numa desenfreada busca por vingança. Se até esse momento a gramática das emoções que ronda as músicas é o par felicidade-tristeza, agora temos espaço para outros sentimentos, como o ódio. Em drowning lessons, isso é bastante claro. O casamento não se concretiza. “Vestido de vermelho e azul”, o jovem destrata a sua amada, arrastando-a para um espaço isolado, “onde ninguém poderia ver”. Lá, os dois celebram a morte consumindo um “champanhe barato”. O eu lírico não explicita como matará sua amante, mas nos dá indícios de que utilizará as mãos, veneno e querosene, “sem fazer barulho”. Without a sound I took her down / And dressed in red and blue I squeezed Imaginary wedding gown / That you can´t wear in front of me 7 De todas as letras do My Chemical Romance, existe apenas uma em que o interlocutor é nitidamente um outro homem. Ela se chama You know what they do to guys like us in prison e, como sugere o título, conta a estória de um prisioneiro obrigado por seus companheiros de cela a fazer flexões vestido de mulher. O seu conteúdo é homoerótico, cujo refrão narra o conflito interno do eu lírico em aceitar ou não o que sente por esse interlocutor. “Now, but I can´t / And I don´t know / How we´re just two men as God had made us / Well, I can´t… well, I can! / Too much, too late / Or just not enough of this / Pain in my heart for your dying wish / I´ll kiss your lips again” (M15). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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A kiss goodbye, your twisted shell / As rice grains and roses fall at your feet Let´s say goodbye, the hundred time / And then tomorrow we´ll do it again I dragged her down, I put her out / And back there I left her where no one could see And lifeless cold into the well / I stared as this moment was held for me (…) These hands stained red / From the times that I´ve killed you and then We can wash down this engagement ring / With poison and kerosene We´ll laugh as you die / And we´ll celebrate the end of things with cheap champagne Without, without a sound / Without, without a sound And I wish you away / Without a sound (M4)

O eu lírico narra, portanto, uma estória baseada numa relação assimétrica, em que a figura feminina aparece como se estivesse num patamar inferior ao dele. O emo a arrasta, a machuca e, por fim, a mata. Como a estória de amor não foi bem sucedida, deve a amante sofrer tal como o eu lírico. Com isso, a ela sobram humilhações e subordinação. É claro que esse ódio instaura uma tensão no comportamento do eu lírico, uma vez que o desejo em destratar seu amor é acompanhado pelo sentimento de falta8. Na canção abaixo, o chão e a rua são os locais onde ele gostaria de ver sua amada, depois do final conturbado de sua estória de amor. O emo a chama de inútil e golpista, alguém que teria roubado minutos preciosos de seu tempo. Well when you go / So never think I´ll make you try 8 Na canção Give´em hell kid! (M13), o eu lírico manifesta assim o seu pesar: “If you were here I´d never have a fear / So go on live your life / But I miss you more than I did yesterday / You´re beautiful!”. Em inúmeros trechos de música, o eu lírico revela também se sentir solitário e o quanto essa sensação lhe é desagradável.

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to stay And maybe when you get back / I´ll be off to find another way And after all this time you still owe / You´re still the good-for-nothing I don´t know So take your gloves and get out / Better get out while you can (…) Sometimes I cry so hard from pleading / So sick and tired of all the needless beating But baby when they knock you down and out / It´s where you oughta stay And after all the blood that you still owe / Another dollar´s just another blow So fix your eyes and get up / Better get up While you can (M30)

Não temos na música emo, portanto, a recorrente idealização da mulher típica da literatura romântica oitocentista. Em Werther, por exemplo, a relação amorosa também é assimétrica, mas com a figura feminina numa posição superior à do amante, praticamente inatingível. Ela habita os sonhos do jovem desde quando a viu pela primeira vez. Mesmo não sendo correspondido, ele seria incapaz de lhe infligir algum tipo de dano. Logo, o sofrimento de Werther é exclusivo dele mesmo, vivenciado apenas em seu interior. O jovem não deseja o compartilhamento de sua sina emocional com Carlota. Pelo contrário, a amada deveria ser protegida dos possíveis danos provocados por seus desenfreados sentimentos. Isso nos é contado num outro trecho de sua carta de despedida, que reproduzo abaixo, reveladora ainda da idealização amorosa da mulher, mesmo à beira da morte. Até seu último minuto de vida, Werther continuou a valorizar e “santificar” a figura de Carlota, exigindo dela apenas alguns cuidados funerários. Se eu tivesse alcançado a ventura de morrer, Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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de sacrificar-me por você, Carlota, eu morreria corajosamente, e com que alegria, se pudesse restituir-lhe o repouso e a felicidade! Mas, ai de mim, a muito poucas e nobres criaturas é dado derramar o sangue pelos seus e, com a morte, iluminar uma vida nova e centuplicada para aqueles que amam! É com esta roupa, Carlota, que quero ser enterrado; você a tocou, você a santificou; também isto pedi a seu pai. Minha alma flutuará sobre o caixão. Que ninguém remexa em meus bolsos. O nó cor-de-rosa que você trazia no corpete, quando a vi pela primeira vez em meio das suas crianças... (GOETHE, 2002, p. 348)

Destarte, percebe-se que os momentos de maior angústia tanto na música emo quanto na obra de Goethe são marcados por uma nítida intensidade sentimental, uma vibração das dimensões mais internalizadas do sujeito apaixonado. A harmonia e integração de outrora perdem espaço para uma profunda movimentação da pulsão interior dos sofredores. A experiência íntima, afetiva dos sujeitos é acometida por um sentimento compreendido como desestruturador do rumo de suas vidas: o amor. No entanto, os clímaces antagônicos diferenciam as duas experiências. Na literatura do século XVIII, o eu lírico se suicidou por amor. Na música emo do século XXI, ele matou por amor. Como compreender essa explícita diferença e, melhor ainda, o que ela nos indica sobre as experiências amorosas e suas transformações na cultura ocidental moderna?

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Amores de outrora e de hoje Por meio dos escritos de um grupo de historiadores e sociólogos acerca das relações amorosas no Ocidente em contextos históricoculturais bastante distintos, é possível fazermos uma breve reflexão sobre as duas experiências amorosas aqui em destaque, a de Werther (ambientada no século XVIII) e a do emo (Século XXI). Passemos agora, portanto, a colocações menos centradas nas produções literárias em si mesmas e mais na vida íntima de dois períodos específicos da cultura ocidental moderna. Primeiro, é preciso destacar que esses trabalhos acadêmicos aqui utilizados partem do pressuposto de não adotar uma visão essencialista do amor. Mesmo possuindo horizontes teóricometodológicos díspares, nota-se que essa literatura se recusa a analisar o amor como um processo psicobiológico universal, vivenciado de forma semelhante entre indivíduos de culturas ou períodos históricos distintos. Para esses autores, o amor é, na verdade, uma construção sociocultural, uma entidade histórica e determinada, capaz de ser experimentado de maneiras diferenciadas a partir de locações sociais e momentos históricos específicos. A desconstrução da universalidade e da atemporalidade do amor pode ser percebida, por exemplo, na influente obra de Denis de Rougemont (1988). A partir do mito de Tristão e Isolda, o autor localiza no século XII o nascimento do amor como paixão. Dessa época em diante, a experiência de amar no Ocidente passaria a andar lado a lado com a ameaça do sofrimento. Apaixonar-se significaria fundamentalmente

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sofrer9. Isso porque, segundo ele, o “amor cortês” (ROUGEMONT, 1988, p.30) dos trovadores da época, recíproco e infeliz, cada vez mais se distanciava dos costumes feudais e do amor que servia de base para os casamentos arranjados do período. Como se sabe, eles eram um puro e simples meio de enriquecimento e anexação de terras e heranças. A mulher amada era repudiada quando tais negociações fracassavam. A esses abusos, o “amor cortês” propunha uma fidelidade independente do casamento, centrada exclusivamente nos vínculos da paixão. Nos poemas, o eu lírico repetia seu lamento a uma dama, que sempre lhe dizia “não”. De joelhos, jurava eterna fidelidade, tal como fazia um súdito a seu suserano. Na verdade, qualquer tipo de associação entre amor e instituições sociais fora condenado naquela época. A recusa de Tristão e Isolda em se casar, com isso, seria uma demonstração contrária à associação do amor-paixão ao casamento. Exposto ao desprezo, o matrimônio será desvalorizado em detrimento da paixão e de sua insensatez, o sofrimento que provoca toda devastação sentimental infligida aos apaixonados. Dessa forma, nesse período, o sentimento de amor não será tido como fundamental para a realização do casamento. 9 Tristão e Isolda é a versão escrita de uma lenda celta cujas origens remontam ao século IX. Conta a estória de um jovem casal que, após se encontrar de forma inusitada, apaixona-se, mas se depara com diversos obstáculos políticos e sociais para permanecer junto. Com base nesse mito, assim define Rougemont a ideia de paixão: “paixão quer dizer sofrimento, coisa sofrida, preponderância do destino sobre a pessoa livre e responsável. Amar o amor mais que o objeto do amor, amar a paixão por si mesma, desde o ‘amabam amare’ de Santo Agostinho até o romantismo moderno, é amar e procurar o sofrimento. Amor-paixão: desejo daquilo que nos fere e nos aniquila pelo seu triunfo. É um segredo cuja confissão o Ocidente jamais tolerou e não cessou de recalcar – de preservar! Poucos poderiam ser mais trágicos, e sua persistência nos convida a emitir um julgamento bastante pessimista sobre o futuro da Europa” (ROUGEMONT, 1988, p. 41).

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O ardor amoroso, espontâneo poderia ser mitigado quando envolto em alianças matrimoniais10. Sendo assim, o par amor-sofrimento foi incorporado ao fundo indiferenciado da cultura ocidental a partir desse período histórico, de acordo com Rougemont. Ele permanece em nosso horizonte ideológico até nossos dias, porém, formulado e vivenciado de maneiras diferentes. Um importante momento dessa histórica correlação é o chamado “amor romântico” do século XVIII, ao qual tanto Rougemont, na já citada obra, quanto Niklas Luhmann (1991) procuram dedicar uma especial atenção e ao qual precisamos nos ater aqui pelo fato de Os Sofrimentos do Jovem Werther ser dele muito representativo. O primeiro autor observa de maneira bastante pessimista esse período, vendo-o como uma espécie de “vulgarização do mito de Tristão” (ROUGEMONT, 1988, p. 166). A emergência dos romances de amor na literatura da época traduziria exatamente a invasão na cultura ocidental do conteúdo de um mito já bastante deturpado. Os finais felizes de alguns livros românticos são, para Rougemont, incompatíveis com o ideal da paixão, visto que anulam sua característica mais basilar: o sofrimento. Além disso, a possibilidade de casamento por se estar apaixonado pelo

10 Rougemont vê no amor cortês uma espécie de heresia, por colocar na berlinda as concepções cristãs em torno do casamento. “[o amor cortês] surgiu do mesmo movimento que fez remontar à meia-luz da consciência e da expressão lírica da ‘alma’, o Princípio Feminino da ‘sacti’, o culto da mulher, da Mãe, da Virgem. Participa dessa epifania da ‘Anima’ que representa, a meu ver, no homem ocidental, o regresso de um Oriente simbólico. Torna-se inteligível, para nós, por algumas de suas marcas históricas: sua relação literalmente congênita com a heresia dos cátaros e sua oposição dissimulada ou declarada ao conceito cristão do casamento” (p.92), ou ainda, “a paixão, vulgarizada atualmente pelos romances e pelo cinema, nada mais é que o reflexo e a invasão anárquica, em nossas vidas, de uma heresia espiritualista, cuja chave perdemos” (p. 102). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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outro é mais um indício dessa vulgata. Para ele, amor-paixão e casamento são, por essência, incompatíveis, por terem origens e objetivos bastante excludentes. O amor romântico nos apresenta uma série de obstáculos a serem superados para se estabelecer. Entretanto, não resistiria a um último: o tempo. Por ser uma instituição feita para durar, o hábito e o cotidiano do casamento não combinam com as excitações e frivolidades do amor-paixão. A convivência entre ambos geraria problemas insolúveis, capazes de ameaçar até mesmo a nossa “segurança social” (p. 195). As inquietações de Rougemont com o “amor romântico” não são, a meu ver, um real problema. O autor, que escreve a sua obra na primeira década do século XX, parece defender uma necessidade de permanência do ideário do “amor cortês” em nosso horizonte ideológico e condena as novas formulações do sentimento amoroso surgidas na história ocidental a partir do século XVIII. Tomo seu pessimismo não como um alerta, mas, sim, como indícios da existência de outras maneiras de amar, esta agora experimentada em boa medida por meio da associação entre paixão e casamento, para alguns sujeitos uma união quase incompatível. Amar, para os românticos, consiste em estabelecer vínculos duradouros. É ser uma espécie de escravo para uma pessoa em particular e construir sua vida em torno dela. Não se casa mais por conveniência, por riqueza, mas por amor. Luhmann (1991) diz que a questão do casamento se tornou o centro da literatura romântica. “Mutual love vale como único fundamento sólido de um casamento, quer no sentido psicológico, quer moral” (LUHMANN, 1991, p.133)11. 11 Luhmann segue Rougemont ao associar paixão e sofrimento: “paixão significa que se sofre de alguma coisa que não se consegue modificar em nada e da qual não se pode dar contas” (p. 29). Entretanto, diverge acerca da extensão histórica desse sentimento.

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O ideário romântico dessa época já está também intimamente ligado à ideologia individualista, nos moldes apresentados aqui anteriormente com base nos escritos de Dumont: porque somos todos iguais, porque somos todos livres, podemos escolher-nos livremente. Pensa-se no indivíduo livre de laços sociais, cuja realidade já não deriva dos grupos aos quais pertence. O amor é uma escolha pessoal, em que parceiros potenciais se tornam atraídos e, então, unem-se. O “viver felizes para sempre” e o “amor de toda vida” são expressões recorrentes desse imaginário. Luhmann nos fala de uma “ruptura da regulamentação” (p. 59) com a concessão da liberdade aos amantes. Caso se conceda ao amado/à amada a liberdade de decidir tendo em conta a sua própria opinião ou sentimento, o que vai acontecer, então os ideais provocarão uma ruptura da regulamentação. Em contrapartida, a possibilidade de intensificação transferir-se-á para a imaginação (LUHMANN, 1991, p. 59).

Faz-se necessário acrescentar que a conexão entre o amor e a noção de individualismo é o nódulo central de análise da estória de Romeu Para Luhmann, o “amour passion” é anterior ao “amor romântico”, bem próximo daquilo que Rougemont classificou de “amor cortês”. Após o século XVIII, o sentimento amoroso se dá conforme outras fontes, distintas da paixão. “Sob esta forma semântica, o conceito do amor romântico procura suplantar o ‘amour passion’ e de acordo com dois pontos de vista: através da inclusão da individualidade ilimitadamente crescente e através da perspectiva (que assim se garante a si própria) da duração, enquanto conciliação com o casamento. O amor torna-se fundamento do casamento, este se torna mérito sempre renovado do amor, pelo que a intensificação excessiva, em especial no romantismo, é sempre experimentada em comum, sendo vividos também em comum, quer a respectiva problemática, quer a própria ameaça – é quase possível afirmar: fruídos conjuntamente” (p. 187-8). Este trabalho adota, todavia, a proposta analítica de Rougemont, a saber, a permanência do amor-paixão no fundo ideológico do Ocidente e suas variações históricas, como o “amor cortês” e o “amor romântico”. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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e Julieta realizada por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro (1977). Ambos consideram que a noção de amor elaborada no paradigmático texto de William Shakespeare define, num primeiro momento, uma relação bastante específica entre o indivíduo ocidental e a sociedade moderna, a saber, a do indivíduo liberto das amarras sociais e apto a escolher livremente um amante. Entretanto, ao refinarem sua análise, os autores nos mostram que o amor põe em questão essa mesma noção de indivíduo ao fundir duas individualidades num plano cósmico, do amor como destino, onde não há escolhas, e o futuro já está determinado. Constitui-se, assim, um “indivíduo dual”, diferente da clássica noção de indivíduo apresentada aqui com base nas propostas de Dumont, “paradoxo que o amor oferece ao indivíduo moderno” (VIVEIROS DE CASTRO & ARAÚJO, 1977, p. 155), visto que, esse sentimento, num plano cósmico, prende o indivíduo e não lhe oferece escolhas. A estória de Werther é a perfeita síntese do “amor romântico”. O jovem se encontra tomado por uma paixão. Gostaria de viver eternamente para ela e estabelecer laços duradouros com a amada. No entanto, Carlota não corresponde, dizendo que não o ama e muito menos se sente obrigada a fazer isso. Ele, por sua vez, acusa-a de querer viver, por conveniência social, num casamento fracassado. Werther está convencido de que Carlota gosta dele, apenas não quer se afastar do marido. Como indivíduos modernos, ambos têm consciência de sua autonomia amorosa e só se envolveriam com aqueles que despertassem sua vontade, fruto de um desejo “interior”. Tal autonomia é marcada pela percepção do amor como uma escolha, e não como uma obrigação. Existe uma reciprocidade nos relacionamentos que exige uma troca absoluta, uma entrega de ambas as partes, que parecem independer das 169

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questões envolventes. A decisão de morrer tomada por Werther ilustra a figura do indivíduo moderno e seu self autônomo, ou pelo menos aparece como um importante ponto de inflexão de autonomização do self do homem moderno em meio a relações, códigos e linguagens em funcionamento em nossa sociedade. A impossibilidade de concretizar em vida a manutenção de contatos estreitos com Carlota faz com que ele escolha a morte como solução de suas tormentas. O distanciamento o incomoda. Por ser subalterno à amada e dela dependente, não há outra solução senão atirar uma bala de revólver à cabeça. A morte, tal como o amor, é um destino inevitável para o sofredor apaixonado romântico. O indivíduo alvo da paixão permanece inatingível, intacto em seu altar de adoração. Morre-se amando e sem rancor. Não se pode pensar na existência de um sentimento de ódio em Werther por não ser correspondido. Apenas de uma infelicidade pela não concretização amorosa. Rougemont, que critica fortemente a literatura romanesca, vê nos românticos alemães um caso à parte. Segundo ele, há o renascimento do tema cortês – do amor recíproco e infeliz – nessa literatura em específico e isso acaba por valorizar a grandiosidade dessas contribuições, em detrimento das estórias com finais felizes de outros escritores da época. Por sua vez, a música emo nos direciona para outro momento das configurações do amor na cultura ocidental moderna. A contemporaneidade mantém acesa em seu horizonte ideológico a chama do individualismo, do ser autônomo e livre para agir diante de diferentes cursos de ação possíveis. Todavia, ela arde numa época em que as relações amorosas assumem como marca um caráter instável e não

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duradouro, envoltas precisamente por essa crença na possibilidade de sempre se estar livre para optar. Dois influentes sociólogos da atualidade, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman, propuseram-se a investigar essa nova dinâmica dos relacionamentos. A título de esclarecer melhor as desavenças do emo e sua amada, deteremo-nos agora nos principais pontos por eles levantados. Giddens (1993), numa obra sobre as transformações da intimidade nas sociedades modernas, propõe o conceito de “relacionamento puro” (GIDDENS, 1993, p. 68-69) para pensar um período de igualdade sexual e emocional nas regiões centrais do Ocidente hoje. Ele se refere a uma situação em que sujeitos estabelecem algum tipo de relação social com outrem apenas pela própria relação em si mesma e pelo que pode ser derivado de positivo para cada pessoa a partir da manutenção de uma associação com a outra. Logo, esse vínculo possuiria uma durabilidade, continuando apenas enquanto ambas as partes considerarem que extraíram dele satisfações suficientes. O relacionamento puro emerge em um contexto que Giddens chama de “sexualidade plástica” (p.10), em que a matriz do casamento ortodoxo heterossexual é borrada por uma descentralização do sexo e sua liberalização das necessidades de reprodução. O autor classifica, assim, o amor desse período de “amor confluente”, isto é, ativo, contingente e contrário aos ideais do “amor romântico”, mais precisamente no que tange às questões relativas à eternidade e à exclusividade dos laços afetivos entre duas pessoas. Por sua vez, Bauman (2004) problematiza as mesmas questões de Giddens, utilizando-se de conceitos com sentidos bem próximos ao desse autor, como “amor líquido” (o título da obra), ao invés de “amor

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confluente”. Ambos estão embasados na ideia de relacionamentos instáveis e fluidos entre os indivíduos. Entretanto, enquanto Giddens olha de maneira positiva essa nova vida íntima – levando para a esfera do privado os ideais democráticos amplamente consolidados –, o tom analítico do sociólogo polonês é de extremo pessimismo. Ele vê com olhos negativos os frágeis vínculos amorosos contemporâneos por eles jogarem os indivíduos numa tensão constante entre o desejo de se sentir seguro ao lado de outra pessoa e os encargos que isso traz à sua liberdade. Os compromissos de tempo indeterminado, como o casamento duradouro dos românticos, ameaçam frustrar e desestabilizar as mudanças que um futuro desconhecido e imprevisível pode exigir. A instabilidade no relacionar-se, entretanto, não impede o matrimônio. Como efeito dessa combinação, uma onda de casamentos e separações acontece no Ocidente. Dessa maneira, o “amor líquido” aparece como uma série de episódios intensos, curtos e impactantes, desencadeada pela percepção a priori de sua provável pequena duração. Estaríamos aqui, no nível micro das relações sociais, num impassechave do mundo atual e globalizado: como conciliar a segurança do pertencimento com as liberdades individuais? “Em nosso mundo de furiosa ‘individualização’, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro” (BAUMAN, 2004, p. 8). O amor confluente/líquido deve ser compreendido como a permanência do amor-paixão em nossa cosmologia, visto que – apesar de parecer ser um acordo tático entre duas partes, quase “frio” e sem envolvimentos sentimentais – ele ainda tende a provocar sofrimento,

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sentimento-chave para a compreensão do que é estar apaixonado. É a partir da ideia de sofrimento que podemos explicar a ira emo contra a sua amada. As novas maneiras de amar na contemporaneidade deixam espaço para uma contradição, explícita nas letras emo. Para criar algum tipo de compromisso mínimo e se desenvolver uma história compartilhada, uma pessoa deve “se dar” a outra. Isso significa oferecer algum tipo de garantia mínima ao companheiro de que o relacionamento pode ser mantido ainda por um período indefinido. Entretanto, essa durabilidade é incerta e varia conforme cada um dos amantes. Não se sabe quando tudo pode acabar e se um dos parceiros ou ambos tomarão a iniciativa de comum acordo. O que se verifica em alguns casos, como o do eu lírico emo, é que algum dos amantes pode acabar se envolvendo sem reservas, como se o relacionamento tivesse um potencial de durabilidade. O sofrimento acaba por ser a consequência dessa intensa investida amorosa, caso a relação venha realmente a se dissolver num futuro próximo. A atitude narcisista do emo em matar o alvo de todas as suas tormentas reflete o sofrimento oriundo do término abrupto das relações amorosas atuais e o nível de envolvimento dos parceiros na relação. O ódio que aflora nesses casos é uma espécie de reação a uma injustiça, um sentimento ferido, pela não correspondência autêntica e sincera do amante. Se a mulher outrora fora adorada, agora deve ser menosprezada por deixar sequelas após o rompimento do compromisso de confiança mútua temporária. O eu lírico das canções do My Chemical Romance apresentase como um romântico, ou melhor, um neorromântico. A maneira como narra o seu envolvimento com a mulher amada – mostrada ao

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longo deste artigo – aponta para as características mais marcantes do típico romântico do início dos tempos modernos, o jovem Werther, por exemplo. Todavia, as origens de seu sofrimento não são as mesmas do suicida alemão. Werther não foi correspondido. O emo sim. Inúmeras vezes, relatadas em distintas canções. Foram vários relacionamentos, sempre com o final abrupto. Ambos estão mergulhados, porém, em duas experiências amorosas bem diferentes. O emo sofre porque sua amada não o deseja mais. O compromisso está rompido. Cada um para o seu lado e sem grandes querelas. Entretanto, como mostram as tintas românticas quando conta suas estórias, em algum momento da relação com sua parceira o emo vivenciou o amor como “romântico” e não “líquido”. Ele desejava algo mais intenso e eterno. Não conseguiu. Restaram apenas o sofrimento... E o ódio da amada. Apesar de muitas das vezes parecer soterrado em livros dóceis, o “amor romântico” permanece vívido na cosmologia ocidental e acaba estabelecendo tensões com as novas configurações amorosas, representadas aqui por meio das ideias de “amor confluente” ou “amor líquido”. Os contrastes se refletem nos desejos de permanência e durabilidade de alguns indivíduos que esbarram na busca por uma autonomia extrema, livre de qualquer amarra sentimental de outros. Essa individualização da liquidez não abdica da possibilidade de se relacionar amorosamente, desde que o vínculo seja esporádico e até o momento em que nada mais de proveitoso possa ser retirado dele. Todavia, contraditoriamente, alguém pode se envolver romanticamente na relação, exigindo do outro mais do que uma mera satisfação imediata. Como apresentamos mais atrás, se uma “sombra romântica”

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ainda pulsa de maneira hegemônica no campo artístico como um todo na atualidade, ela também permanece em nossas intimidades amorosas. Entretanto, ela não se apresenta tão suprema como na música. Na vida íntima, o romantismo aparece como um ideário instaurador de conflitos e tensões com os conturbados “tempos líquidos” das formas de amar contemporâneas. Suas proposições outrora hegemônicas – que fizeram Rougemont no início do século XX criticá-las duramente pela sua onipresença – agora se encontram numa arena, onde novas visões sobre o que é amar começam a despontar e com ela entrar em atrito.

Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BISPO, Raphael. Jovens Werthers: amores e sensibilidades no mundo Emo. Rio de Janeiro: Multifoco, 2012. CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. DUARTE, Luiz Fernando Dias. A Pulsão Romântica e as Ciências Humanas no Ocidente. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. XIX, n.55, p. 5-18, 2004. DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Edusp, 1992. GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Unesp, 1993. GOETHE, Johann Wolfgang. Os Sofrimentos do Jovem Werther. São Paulo: Nova Cultural, 2002. LUHMANN, Niklas. O amor como paixão: para a codificação da intimidade. Lisboa: Difel, 1991.

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PERLONGHER, Néstor. Droga e êxtase. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. XVI, n.3, p. 8-23, 1994. ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. TAYLOR, Charles. As fontes do Self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças e atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1988. TRILLING, Lionel. Sincerity and Authenticity. New York: Oxford University Press, 1971. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo & ARAÚJO, Ricardo B. Romeu e Julieta e a origem do Estado. In: VELHO, Gilberto (ed.). Arte e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

Anexo I Músicas da banda My Chemical Romance analisadas I Brought You My Bullets You Brought Me Your Love M1. Romance M2. Honey, This Mirror Isn´t Big Enough for the Two of M3. Vampires Will Never Hurt You M4. Drowning Lessons M5. Our Lady of Sorrows M6. Headfirst for Halos M7. Skylines And Turnstiles M8. Early Sunsets Over Monroeville M9. This Is the Best Day Ever M10. Cubicles M11. Demolition Lovers Three Cheers for Sweet Revenge M12. Helena M13. Give ´Em Hell Kid

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M14. To the End M15. You Know What They Do to Guys Like Us in Prison M16. I´m Not Okay (I Promise) M17. The Ghost of You M18. The Jetset Life Is Gonna Kill You M19. Interlude M20. Thank You for the Venom M21. Hang ´Em High M22. It´s Not a Fashion Statement, It´s a Deathwish M23. Cemetery Drive M24. I Never Told You What I Do for a Living Black Parede M25. The End. M26. Dead! M27. This Is How I Disappear M28. The Sharpest Lives M29. Welcome To The Black Parade M30. I Don´t Love You M31. House Of Wolves M32. Cancer M33. Mama M34. Sleep M35. Teenagers M36. Disenchanted M37. Famous Last Words M38. Blood - Faixa Bônus Artigo submetido em: 30/09/2012 Artigo aprovado em: 16 /01/2013

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Teatro e teoria política:

análise preliminar sobre a relação entre paradigmas e artes cênicas Beatriz Wey1

Resumo As teorias sobre a política revelam diferentes formulações teóricas e metodológicas construídas pelos pensadores ao longo da história do ocidente. Não há um resultado exato para cada entendimento da realidade, ao contrário, cada paradigma é um modelo para a elaboração de novas teorias, o qual descreve um olhar específico ao revelar o mundo empírico. São estas teorias que fertilizam e são fertilizadas pelo mundo da arte. Neste artigo será analisado, de forma preliminar, como alguns paradigmas da teoria política são apropriados e redimensionados pelas artes cênicas. Palavras-chave: teatro, teoria, política.

Abstract Theories about politics reveal different theoretical and methodological formulations built by thinkers throughout the history of the West. There is no exact understanding of reality for each outcome, but rather each paradigm is a model for the formulation of new theories, which has a specific look when describing the empirical world. These are theories that fertilize and are fertilized by the art world. In this article we will analyze, in a preliminary way, as some paradigms of political theory are appropriate and resized by the performing arts Key words: theater, theory, political. 1 Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro- UFRRJ, Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro- IUPERJ. E-mail para contato: [email protected]. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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As tendências dos pesos são como os amores dos corpos, quer busquem, por seu peso, descer, quer busquem, por sua leveza, subir, pois, como o ânimo é levado pelo amor aonde quer que vá, assim também o corpo é por seu peso. Santo Agostinho

O teatro é uma forma específica do comportamento humano – ser ator e espectador é parte constitutiva da vida social e, como tal, se revela de forma comunal para, somente posteriormente, tornar-se arte e instituição de arte. Uma fábula chinesa muito antiga citada por Boal (1998) na introdução de seu livro Jogos para atores e não atores conta a história de Xuá-Xuá, a fêmea pré-humana que, ao se afastar de seu filho, encontrou-se a si mesma e descobriu o teatro. Embora o filho tivesse saído de seu corpo e, portanto, fosse uma parte de si mesma, era um outro ser e precisava viver sua existência. No momento em que se entregava intensamente à maternidade, Xuá-Xuá era atriz de sua vida, porém, ao observar o curso natural do destino do filho sem nada poder fazer, foi espectadora, posição não menos importante. Boal (1998) afirma que somos todos atores e espectadores, ora em uma posição, ora em outra, por vezes, à revelia de nova vontade. Talvez por isso a fábula chinesa esteja relacionada diretamente ao teatro: como a arte de vermos a nós mesmos, a arte de nos vermos vendo. Pensar, agir e observar são partes indissociáveis da vida humana, como comportamento previsível entre os homens, o que nos leva a afirmar que o teatro é uma manifestação política, mesmo antes de se constituir com arte, na forma como entendemos nos dias de hoje: com palco, cenário e artista representando a realidade social em suas variadas dimensões. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Por ser um comportamento social e ao se constituir como arte, o teatro sempre foi realizado para expressar as emoções humanas e traduzir aspectos fundamentais da vida, dos relacionamentos, das diferenças, dos conflitos, do poder e de demais manifestações sociais. Dado esse fato inquestionável e que tem instigado dramaturgos e cientistas sociais a produzirem obras de arte e conhecimento científico respectivamente em torno dessa temática, buscamos com este trabalho a justaposição entre teatro e política a partir dos conceitos de política e sua apropriação pelas produções cênicas. Para tanto, partimos de uma das grandes lições que Brecht (1967) nos deixou: o conceito de estranhamento, no sentido singular de ver e compreender o mundo a partir daquilo que o constitui, como forma de transformar as ideias e noções pré-concebidas sobre todas as questões essenciais da vida. O conceito de estranhamento para o entendimento da política é essencial e de grande importância para a produção cênica. Estamos tão próximos da política que não conseguimos entendê-la, não conseguimos perceber nossa relação com ela e o quanto estamos intrinsecamente ligados àquilo que é público. Se teatro é a arte de nos vermos e nos vermos vendo, em sua concepção mais reveladora, o teatro é o próprio movimento político como reflexão, compreensão e ação. É preciso ressaltar que embora o conceito de política esteja interligado à definição de Estado, devemos ressaltar que a política em nosso entender é também parte indissociável de nossas vidas, dos nossos pensamentos, atitudes e vontades; em outras palavras, como aquilo que nos revela como parte de um corpo social e moral. A essa definição

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chamamos, segundo Hannah Arendt, de sentido autêntico do conceito de política, construído no cerne do espaço público da antiga Grécia, e que se apresenta como essencial para a relação social e política entre os homens e, evidentemente, para as artes cênicas. Todavia, grande parte do que se produz em torno do teatro político, ao contrário do sentido autêntico da política, revela uma necessidade em retratar o governo e suas estruturas burocráticas, legais, administrativas e ideológicas. Como consequência, as produções cênicas, ao tratarem da política, em sua maioria trabalhos latino-americanos, privilegiam o conteúdo ou tema a ser abordado como determinante para a composição de um teatro político, dando menor ênfase a sua forma, sua estética. O texto é sempre central e gira em torno do entendimento da política como conflito e violência. As ditaduras, os poderes opressores, as corrupções, as torturas, a exploração do trabalho, a alienação, os genocídios e até as revoluções são enaltecidos pelas produções sobre teatro político. Nelas o discurso político é central, pois em parte se acredita que ele atingirá todos igualmente, podendo, inclusive, servir como um instrumento de ação política futura a partir da conscientização do espectador. Tem-se a crença de que o conteúdo sempre mobilizará e sensibilizará o espectador diante da cena. É certo que esse processo pode acontecer se o espectador estiver diretamente envolvido com o conteúdo apresentado, pois o teatro, neste momento, estará apenas dando uma visibilidade a mais àquilo que já vem sem construído internamente por quem assiste a obra teatral. No entanto, se o conteúdo está definitivamente distante da realidade do seu receptor, o conteúdo apresentado não muda e não sensibiliza, ou seja, não transforma aquele que vê o espetáculo teatral. Isso não ocorre apenas com o teatro, mas traduz toda informação Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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que recebemos, inclusive aquelas advindas dos meios de comunicação de massa. Piscator (1968), um dos maiores expoentes do teatro político, é um bom exemplo para esclarecer a ideia que estamos apresentando. Ao retomar temas discutidos na esfera pública e aprofundá-los a partir da representação no palco, Piscator afirmou que cabe ao teatro a responsabilidade de compor o espaço da palavra, como um parlamento constituído por pessoas reais que necessitam se expressar livremente. O espectador também participa do espetáculo, tem voz e é ouvido, e o próprio espaço cênico é pensado de acordo com o que se pretende atingir como resultado, podendo se afastar muito da noção convencional de fazer teatro. Em 1919, Piscator constituiu o teatro proletário com a função primordial de ser um instrumento de propaganda política dentro da periferia, como meio de conscientizar as camadas populares da luta de classes e do drama político aos quais ela estava atrelada. A partir dessa proposição, o teatro corre dois riscos: de falar o que já foi dito pela mídia ou por outros meios de comunicação social e de sintetizar uma discussão fundamental para o processo de transformação social, não dando a verdadeira dimensão que ela possui para a vida pública, afinal, seria preciso que o teatro fosse um espaço permanente de diálogo com a sociedade para que o processo de mudança se consolidasse e resultasse em uma transformação significativa. Antes de retomarmos tal debate, é necessário definirmos os dois eixos de conceituação da política, sendo eles: política como conflito e violência e política como consenso e liberdade. De posse das duas conceituações, podemos analisar a forma como se realizam a política no teatro e os caminhos do teatro político contemporâneo.

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O primeiro eixo, sustentado por uma longa tradição ocidental, trata a política como indissociável da relação entre mando e obediência e afirma que o processo de construção da lógica do poder ocorre a partir de uma relação hierárquica baseada na legitimidade. A essa tradição associamos o pensamento de Max Weber na medida em que define a política como liderança, dentro de uma dimensão que abarca uma gama de relações humanas. Para Weber (1979), ao tratar da política, faz-se necessário limitar o uso do termo ao tipo de liderança exercida pelo Estado, em que a força é um meio específico de atuação e manutenção do poder: como comunidade humana, o Estado, para atingir êxito, exerce o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território. O poder, desta forma, é uma ação estratégica em que os atores políticos usam os meios disponíveis para atingir um fim específico. Não se pode afirmar que Weber tenha associado tão somente política à violência, pois o mais correto é dizer que a política está efetivamente no campo determinado pelos conflitos. Porém, é certo que o conflito ou a resistência leva à luta entre quem manda e quem se espera que obedeça. Em Marx (1998), a disputa travada entre quem domina e quem é dominado revela uma distinção clara de quem dispõe dos meios de produção intelectual, capaz de exercer um domínio sobre as ideias e tornar o conflito mais ameno e facilmente controlado. O Estado, representante da classe dominante, teria controle sobre toda a vida social, baseado na concepção abstrata da universalidade dos direitos. Supostamente livres e iguais perante a lei, os homens não teriam motivos para se rebelar, evitando o conflito e a emancipação política da classe dominada. Por certo que os direitos assegurados pelo Estado apenas mascaram a desigualdade na economia e na sociedade e somente a luta Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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de classes asseguraria a emancipação social da classe economicamente fraca. Dessa forma, e somente dessa forma, estaríamos diante do fim do conflito, e, portanto, do fim do próprio Estado. Wright (1982), afirmou que o conflito é o meio mais seguro para levar à efetivação do poder, que se realiza com ou sem violência, pois a luta travada entre quem governa e quem é governado pode ser pacífica, o que denota uma situação em que não podemos dissociar a dominação do processo de legitimidade dela, quando dominados aceitam as ordens dos dominadores como se fossem as suas, ou seja, aceitam obedecê-las sem confronto. Ainda que seja verdade a existência de uma luta pacífica, o Estado é o único a dispor de meios legítimos de violênica física, que podem ou não ser usados, o que definirá esse eixo como aquele em que a violência é considerada legítima. A violência proveniente do Estado não apenas é legítima, mas também é necessária em período de crise e de ameaça à ordem social. Para proteger a vida social da violência cotidiana, o Estado assume o monopólio da força física dentro de um território, ou seja, usa a violência para o combate à violência. Desse ponto de vista, entendemos que o Estado tem como função essencial a garantia do equilibrio e da harmonia social, contendo, em tese, os conflitos sociais. A função do Estado como guardião da segurança social é muito antiga e ocupa um espaço de grande relevância na ciência política. Desde Platão, em A República, no livro IX, através dos diálogos entre Sócrates e Glauco, encontramos referências às paixões desenfreadas e destrutivas que imperam entre os homens, incapacitando-os de agirem de forma racional segundo as leis estabelecidas. No caso do livro de Platão, o que define o conflito entre os homens são as emoções irracionais, que os

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levam a disputas intensas para gozarem dos prazeres pessoais e sociais, usando inclusive armas para atingirem seus objetivos. Diante desse quadro, cabe ao Estado o dever de agir, orientando e definindo a vida pública por meio de uma república justa (1959, p.398). Schmitt (1992), em seu trabalho O Conceito do Político, desenvolveu a teoria do interesse específico do domínio, dando ao Estado uma jurisdição própria, distinta da economia e das demais manifestações da vida social. O Estado, nesse paradigma, baseia-se na esfera conceitual de soberania e autonomia, colocando-se diante da distinção entre amigo-inimigo. Segundo essa relação, predominante no pensamento de Schmitt, o inimigo nem mesmo precisa estar baseado na nacionalidade, o que significa que o conflito é potencialmente intenso o suficiente para se tornar presente entre entidades políticas. Daí a necessidade de o Estado atingir uma unidade que garanta instrumentos de ação capazes de realizar uma eficaz oposição ao inimigo, atuando como uma força neutra dentro do âmbito social, por vezes tensa e conflituosa. O fim último da ação estatal é evitar a guerra civil. Para o estabelecimento da ordem, caberia ao Estado, por meu do instrumento constitucional, desempenhar a função política de criar critérios para período de instabilidade. Neste paradigma, é certo afirmar que o que está em questão é o espaço intersubjetivo, a dignidade dos inimigos, a qual está sempre ameaçada pela específica lógica que os valores têm e o conteúdo dado a eles em um determinado contexto histórico. Schmitt critica o aumento de importância de valores nos níveis jurídico, político e ideológico, pois levam à superficialidade da sabedoria de que apenas objetivos têm valor, enquanto serem humanos têm dignidade.

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A configuração dos valores levou a uma guerra de todos contra todos, na qual os valores funcionam como balizadores do movimento conflitivo. Quanto mais absolutos os valores, mas absolutos os inimigos e os conflitos. Porém, para considerar o outro como inimigo é preciso partir do pressuposto de que o inimigo está desprovido de atitudes valoradas e que, portanto, suas atitudes devem ser consideradas como desumanas e criminosas. Caso contrário, em uma guerra, os dois lados envolvidos deveriam se considerar como criminosos e desumanos, por isso os valores subjetivos são objetivados e seus portadores ocultados. Qualquer um pode se apropriar deles em suas lutas, a qualquer momento. Schmitt, ao dissertar sobre esse perigo, aponta para a possibilidade de uma dupla ação: de um lado, transportar os conceitos universais do controle de certos atores políticos e transferi-los para uma esfera intersubjetiva de reconhecimento recíproco; por outro lado, ele sempre relaciona as ideias com o ator que as enuncia e exige um tipo de homologia entre a ideia e o ator o qual a enuncia. Um determinado ator não pode falar em nome da humanidade, por exemplo, mas somente em relação a si mesmo. Em decorrência dos pressupostos apresentados, a política significaria a participação no poder ou a luta para influir na distribuição do poder. Diretamente ligada ao Estado, a política é claramente, nesse eixo, identificada com o conflito entre os atores que lutam pelo poder como um meio de servir a outros objetivos ou ideais, ou mesmo por almejarem o poder pelo próprio significado de se ter poder politico. Essa concepção de política tem produzido teorias bastante sólidas e, ao nos aprofundarmos sobre a forma como o teatro compreende 187

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os meandros da ordem política, identicamos com bastante clareza os desdobramentos e efeitos do entendimento da política como conflito e violência. O contexto em que as companhias teatrais, sobretudo as iberoamericanas, produzem suas montagens, é central para o entendimento do sentido da política. Diversos aspectos da relação do Estado com os demais grupos que compõem a vida social são tratados mediante a importâcia histórica ou emergencial dos mesmos. Companhias Bolívias fazem dos festivais de teatro um palco aberto para se colocar contra a opressão do Estado diante da causa indígena. O mesmo ocorre com as companhias mexicanas, apenas para citar mais um exemplo, em que as produções cênicas revelam os dilemas vividos na década em torno da imigração ilegal e da exploração do trabalho. No Brasil, a companhia fundada por Augusto Boal (2005), o Centro do Teatro do Oprimido, é um bom exemplo do teatro político que entende o conceito de política a partir de uma relação desigual entre quem manda e quem obedece, uma relação baseada na opressão e na alienação dos oprimidos. Menos convencional do que os exemplos anteriores, o teatro do oprimido abandona o palco italiano e faz de diversos espaços, inclusive a rua, um parlamento, no qual atores e pessoas que se dispõem a participar da proposta-drama interagem pela busca de um processo de conscientização da própria realidade. Os atores são os agentes que levam o espectador a pensar sobre a opressão em diversos níveis, inclusive em relação ao Estado. A companhia do Latão, outra referência do teatro político brasileiro contemporâneo, trata de forma séria e bastante compromissada as obras de Bertold Brech, buscando traduzir os antagonismos das

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relações sociais e as diversas formas de manifestação do poder, diversas formas de opressão e luta em torno de interesses divergentes. Não obstante a importância das companhias citadas acima, é preciso destacar que não cabe ao teatro a responsabilidade de tratar e aprofundar em cena problemas da esfera política ou moral, como dissemos anteriormente, nem tampouco o de assumir o papel de formar o espectador, como se fosse ou devesse ser esta arte uma instituição de aprendizado político. Nesse aspecto, vale destacar o conceito de espectador emancipado de Jacques Rancière (2008), em sua obra O Espectador emancipado. Não cabe àquele que faz teatro ser considerado como uma inteligência superior, erudita, quando o espectador é associado ao comum, àquele que precisa ser conduzido, direcionado. Essa relação desigual Rancière (2008, p.14) intitulou de embrutecimento, em que a “separação radical que o ensino progressivo ordenado dá ao aluno... pressupõe a desigualdade das inteligências”2. Uma parte significativa do que se convencionou chamar de teatro político tratou a política como algo que a maior parte das pessoas desconhece e, portanto, que necessita de uma inteligência superior para informar e orientar sobre o seu significado, assim como para auxiliar sobre as formar de resistência à opressão vinda daqueles que detêm o poder público. Essa inteligência superior seria o vetor que impulsionaria a transformação social a partir do esclarecimento e da conscientização do espectador, como se ele necessitasse da arte para se tornar um agente político em potencial. O entendimento da inteligência superior

2 Todas as citações da obra Le spectateur émancipé [O espectador emancipado] são de tradução nossa.

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do artista é um grande equívoco da história do teatro político. Por mais desprovido de conhecimento científico, capaz de compreender o espaço de deliberação do Estado, isso não é um limitador para a manifestação na esfera pública. A própria dinâmica da vida impõe cotidianamente atitudes que são políticas, pois refletem a nossa relação constante com os nossos pares. Pelo argumento apresentado, ainda que o teatro buscasse traduzir a lógica do Estado, um discurso com objetivos políticos perderia o seu alvo simplesmente porque o teatro como instituição perdeu seu espaço político. Para Azevedo (2004), isso implica em afirmar que o teatro nem articula mais o político, como o fez em sua primeira manifestação da Grécia, como um espaço de composição de litígios entre a lei das famílias e a lei da cidade, nem como o lugar de reafirmação das identidades nacionais ou mesmo como instrumento de conflito de classe. Uma peça já nasce e chega ao público com uma informação ultrapassada que não mais condiz com a realidade vigente. Isso significa dizer que não cabe ao teatro assumir uma função que não lhe é própria e a qual não tem condições mínimas de ser realizada com sucesso. Ao confirmarmos que o conteúdo político não é essencialmente determinante para a realização do teatro político, faz-se necessário perguntar como e em que lugar podemos encontrar a política no teatro. Antes, porém, é preciso definir a qual significado da política estamos nos referindo. Para tanto, precisamos nos debruçar sobre o contraponto da tradição do pensamento político apresentado anteriormente. Para Arendt (2008), pensadora política que consideramos como uma referência em relação ao conceito de política como Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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liberdade, o processo de interação social dada pelo consenso possibilita compreendermos a humanidade e sua relação com aquilo que é compartilhado, com o que é público. Ao se distinguir de parte dos cientistas políticos do século XX, Arendt nos propõe uma reflexão sobre a política como negação da violência, resgatando seu sentido clássico, como espaço público construído por meio do diálogo plural. A busca do consenso só é possível se a política for pensada como sinônimo da liberdade e de amor pelo que é público, um amor pelo mundo que compartilhamos. Embora política e moral estejam definidas de forma distinta e o amor faça parte da moral, como a liberdade da política, é a comunhão destes dois elementos que nos define como parte de um corpo social composto por pessoas diferentes. O que está por trás dessa concepção de política é a possibilidade concreta de os homens usarem a razão para pensar e realizar o bem comum, a partir da construção de espaço público livre. Arendt se aproxima muito de Kant (1964), para quem o fundamento da ética deve ser encontrado na própria razão. Essa ética universal não pode depender de fundamentos externos, e sim de uma razão autônoma em que os homens são levados a pensar e agir em direção ao bem comum. A partir desse prisma, entendemos que a política se constitui com o espaço construído pela reflexão e pelo diálogo dos diferentes como sujeitos livres. Para se chegar a esse entendimento de política, é preciso enfrentar os preconceitos que aqueles que não estão inseridos na esfera do Estado têm contra a política. Os preconceitos comuns são, eles próprios, políticos em sentido abrangente. Tais preconceitos indicam que temos dificuldades em nos conduzir politicamente, correndo o risco de ameaçar a sobrevivência da verdadeira política entre nós. Segundo 191

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Arendt (2010), os preconceitos que desenvolvemos sobre a política têm um papel crucial em nossos pensamentos e acabam contribuindo para nos afastar da verdadeira política. Por trás dessa atitude em relação à vida pública está o medo de que a humanidade se autodestrua pelos mecanismos violentos de controle social. Para tanto, o primeiro passo é compreender o outro e a si mesmo, compreender a própria realidade, mais como exercício do que como preocupação com os resultados, estatísticas e metas. Esse processo é um compromisso íntimo e individual, que só pode ocorrer a partir de um juízo de mentalidade ampliada, que está na concordância com os outros. O primeiro diálogo é de nós com nós mesmos, o pensamento puro, do diálogo do dois em um; e, a seguir, o diálogo com os outros com os quais devo chegar a um acordo. Esse diálogo requer um espaço – o espaço da palavra e da ação – que constitui o mundo público. O campo da política, nesse sentido, é o do diálogo no plural que surge no espaço da palavra e da ação, cuja existência permite o aparecimento da liberdade. Ao admitirmos que a política autêntica está cada vez mais distante de nossas vidas, devemos admitir também que estamos, cada vez mais, diante da destruição de tudo que existe entre nós como humanidade. A esse movimento Arendt (2010) denomina de expansão do deserto. Viver no deserto é perder a capacidade de julgar, sofrer e refletir sobre tudo que se encontra em desajuste com a natureza humana. Quanto mais indiferentes nos tornamos à vida pública, englobando tudo que se refere ao outro, maior é o deserto que se instaura entre nós. Ao perdermos a capacidade de pensar e de nos posicionarmos diante do que é injusto, violento e banal, acabamos por definir o mundo deserto como o mundo humano. Arendt (2010) afirma ainda que as tempestades de Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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areia do deserto, metaforicamente, revelam o pior do convívio humano e consolidam experiências públicas desastrosas, como aconteceu no século XX com a consolidação dos regimes totalitários. Durante as tempestades, falsas ações irrompem e encobrem a verdadeira paixão e a ação pela coisa pública. O maior agravante do deserto e das tempestades de areia é nos fazer crer que a política está diretamente associada à violência física, seja como ações bélicas vindas do Estado ou mesmo como movimentos revolucionários que, sob essa perceptiva, assumem a mesma conotação. O único caminho, portanto, é resistir ao deserto com coragem e, como consequência, estar ativo, reafirmando a política como parte indissociável de nossa existência plural; evitando o processo de cristalização da matéria sem vida. Somente com liberdade de falarmos uns com os outros é que surge o mundo sobre o qual se fala. Viver num mundo real e falar uns com os outros sobre ele são basicamente a mesma coisa – a liberdade de partir e começar algo novo e inaudito, a liberdade de interagir oralmente com muitos outros e experimentar a diversidade que é a totalidade do mundo, do mundo público. Isso não pode ser alcançado por meios políticos, mas sim pelo que se constitui como substância de tudo que é político. O elemento político da convivência com o outro é que possibilita a cada um entender a verdade inerente à opinião do outro. Conviver com os outros começa pela convivência consigo mesmo. Desta forma, somente aquele que sabe viver consigo mesmo está apto a viver ao lado dos outros. O “eu-mesmo” é a única pessoa de quem não posso me afastar, que não posso deixar, a quem estou irrevogavelmente unido.

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Em cena, isso implica afirmar em um processo livre de pretensões cênicas e de discursos acabados, ideologicamente afirmados. Se o teatro quer ir ao encontro da política, deve considerá-la como uma obra aberta, produto da ação e do exercício contínuo da liberdade. É dessa natureza que trata a política autêntica – da ação de vir a público em palavras e atos na companhia de seus pares, iniciar algo novo cujo resultado não pode ser conhecido de antemão. Isso não pode ocorrer a partir do isolamento, mas sempre pelos indivíduos em sua pluralidade, em sua condição de seres humanos absolutamente distintos. Homens e mulheres plurais têm por vezes, ainda que raramente, se associado para agir politicamente e buscado mudar o mundo que se forma entre eles. Se, por conseguinte, ação e discurso são as duas atividades políticas por excelência, diferença e igualdade são os dois elementos constitutivos dos corpos políticos. Sem a pretensão de conscientizar, de dar informações ou mesmo respostas sobre a vida pública, o teatro, para ser político, deve ser a matéria com a qual o espectador possa, ele mesmo, criar e refletir. Em outras palavras, o teatro político, para ser verdadeiramente político, deve ir ao encontro do sentido autêntico da política, em relação à qual não existem certezas ou garantias, apenas um espaço que deve ser constituído pela liberdade e pela fragmentação da experiência. Encontrar o sentido político do teatro nos parece mais simples do que se imagina. Em primeiro lugar, porque, em sua forma, o teatro é essencialmente político. Ainda que o espectador pareça estar imóvel, passivo e em silêncio diante da cena, isso, em verdade, não acontece. O espectador interage, reage e se manifesta permanentemente. Diante do espectador, a comunicação com os atores é imediata e interativa, facilitando o diálogo. Não cabe ao teatro ter a pretensão de dar ao espectador um conteúdo acabado, com Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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respostas prontas para todas as questões que envolvem a vida pública, mas sim garantir um espaço de reflexão compartilhada. O teatro se torna político por interrogar permanentemente sua própria prática, tornandose seu próprio tema (BURNIER, 2001). Em outras palavras, segundo Ranciérè (2008), a arte só pode se aproximar da vida do ponto de vista estético, e nunca político. Quando assume a pretensão de fazer uso do texto, da palavra para aproximar o espectador da política, a arte, de maneira geral, se afasta da vida. Com o teatro político, esse entendimento é ainda mais acertado, pois ele toma para si o lugar de conscientizar o espectador, ignorando o fato de que este é autônomo tanto para se mobilizar, como para exercer sua leitura do mundo e se posicionar. A questão que devemos nos perguntar é como se realizará esse teatro político, ou seja, baseado em que princípios. Certamente devemos considerar que estamos diante de uma experiência subjetiva e experimental. Não é possível acreditar que possamos ir ao teatro e sairmos todos transformados, críticos e altamente reflexivos ou mesmo que o processo da política autêntica acontecerá de súbito e mudará o espaço público. Ao teatro cabe ser um acontecimento (LEHMANN, 2007), menos uma peça acabada e mais uma experiência para atores e espectadores, tanto no momento da criação cênica como na vivência das apresentações. O teatro do oprimido é emblemático, pois é verdadeiramente político como método que abarca técnicas e exercícios físicos com atores e não atores, e não no momento em que realiza a cena teatral ao fazer uso do discurso político para conscientizar o chamado oprimido.

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A prática do teatro em si, a que antecede os espetáculos, deve ser entendida como política e comunal para que, no encontro com o espectador, os atores revelem o genuíno e autêntico sentido do político. O teatro político, então, é aquele que questiona a própria ordem, transformando sua forma, sua estética. Daí o porquê de afirmarmos que o teatro laboratório de Jerzy Grotowski (AZEVEDO, 2004) é mais político no seu experimentalismo que o teatro proletário de Piscator ou o teatro do oprimido de Augusto Boal. Quando Grotowski entrou em contato com o teatro, entendeu que seu projeto necessitava de atores diferenciados, que não fazem do teatro sua rotina de trabalho, como um compromisso de ensaiar e apresentar espetáculos sem ter tempo para pensar sua própria estética criativa. O primeiro passo para chegar a esse compromisso do pensar a forma teatral foi garantir cada vez mais tempo para os treinamentos. Como uma escola, o laboratório de Grotowski buscou um espaço pedagógico em que os atores pudessem aperfeiçoar os elementos éticos e técnicos de toda atividade artística. A partir dessa proposição, os treinamentos físicos, realizados cotidianamente, desempenharam um papel fundamental, pois, segundo Grotowski, são os mesmos que capacitam os atores para a artificialidade e a elaboração formal de seu trabalho. Com isso, se encontram aptos a superarem seus limites físicos, psicológicos e aqueles vividos pelo cotidiano, atingindo, dessa forma, uma maior expressividade. O laboratório de Grotowski se aproximou genuinamente do político – não por propor o discurso político, mas por abalar o próprio regulamento e o conceito de fazer teatro em um processo incessante de ensaios e espetáculos. Um teatro político que interrompe o fazer teatral como apresentação espetacular ao construir situações nas quais Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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a inocência enganosa do ser espectador é colocada à prova. Podemos afirmar que, no início do século XX, muitos trabalhos experimentais tiveram um papel decisivo para o teatro político. Stanislavski foi um grande percussor desse teatro ao propor uma prática de teatro cotidiana, resultando posteriormente em sistemas e métodos de trabalho. Para além do próprio trabalho físico, encontramos nesse trabalho cênico uma preocupação com questões valorativas e um entendimento sobre o convívio entre os atores. O trabalho corporal era pensado como um caminho para se perceber a valorização entre o universo interior e exterior, possibilitando uma nova dimensão das relações humanas. Além de Stanislavski, o que encontramos efetivamente em nomes como Copeau, Barba e Grotowski, entre outros, era a construção de um campo de trabalho em que os atores, em seu processo de conhecimento, caminhassem na direção de um juízo de valor absoluto. As experiências de Grotowski visavam muito mais o encontro entre atores e espectadores do que os resultados concretos de uma encenação. Aproximar a arte da vida e entender a vida como pública faz do teatro uma arte próxima da política. Não por acaso se destaca a importância que a companhia de teatro Living Theater exerceu no século XX, pois ela se dispõe a pensar o teatro como ação comunitária, cooperativa, igualmente à proposta de Grotowski, visando a um processo criativo fora do mercado de espetáculos. Nessa concepção, o teatro deixou de ser compreendido como uma ficção, ocupando os lugares comuns. Por certo que o Living Theater também assumiu um discurso propriamente dito político no sentido convencional, ao assumir uma postura anárquica e revolucionária diante das decisões tomadas pelo

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governo norte-americano. No entanto, para além dessa postura, Living Theater repensou sua prática, sua estética, e, neste aspecto, foi ainda mais político. Por tudo que foi apresentado, o político pode aparecer no teatro somente de uma forma indireta, que se manifesta de maneira fundamental somente quando não pode ser transformado de forma alguma na lógica, na sintaxe, e na conceituação do discurso político da realidade da sociedade civil. Para Lehmann (2009), disso resulta uma fórmula que parece paradoxal: que o político do teatro não pode ser pensado como representação, mas como interrupção do político. Interrupção da própria prática do teatro político desde que foi concebido, desde a antiguidade clássica. Este é o maior desafio para a construção do teatro político: encontrar uma estética para além do drama da vida pública, da fábula dos noticiários e dos conflitos inerentes à natureza.

Conclusões preliminares Concluímos que cada paradigma sobre o pensamento político revela diferentes interpretações por parte do universo artístico. As teorias políticas fertilizam permanentemente o mundo da arte, especialmente o universo das artes cênicas, e ao fazê-lo, ganham uma nova perspectiva, um novo olhar. Ao longo do tempo, teoria política e arte são responsáveis por novas formas de reflexão e ação política: ora por considerar o palco como arena de conflitos, estimulando a compreensão do mundo e visando ao engajamento do espectador, ora com o objetivo de se afastar do discurso político e aproximar o espectador da própria vida, favorecendo – mas não garantindo – a reflexão e a ação política de pessoas comuns, que não Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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fazem da política seu meio de vida, mas que, como parte da humanidade, devem ser políticas em um sentido mais abrangente. As artes cênicas e a ciência política estão justapostas, seja pelo entendimento da política como conflito e violência ou da política como consenso e liberdade. Entendemos, também, que é necessário um olhar atento e crítico ao teatro político que pretensamente se coloca como uma inteligência superior, capaz de traduzir o universo da política e conscientizar o espectador. Além de desqualificar aquele que vê o espetáculo, esse teatro reduz, minimiza o conceito de político à esfera do Estado. Desta forma, acreditamos que o teatro político deve ser aquele que permanentemente repensa sua própria estética e entende a política como uma obra aberta, inacabada, a qual se faz por sujeitos que dialogam em liberdade, em diversos espaços, inclusive no espaço artístico.

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Teatro e Diversidade Sexual:

uma análise da trajetória de vida de travestis e transexuais na cena urbana Rachel Macedo Rocha1

Resumo A arte, desde o Renascimento, tem protagonizado temas relevantes no processo de transformação da sociedade. O teatro, em especial, tem tomado a dianteira desde o século XIX ao debater alguns tabus. Nesse artigo pretendo, ao explorar a trajetória de travestis e transexuais na cena urbana, refletir sobre o encontro desses sujeitos com o teatro. Tal investigação se deu a partir de entrevistas realizadas em julho de 2011 com travestis e transexuais, atores ou profissionais, em espaços voltados ao teatro, na cidade de São Paulo. As narrativas vão revelar se esse encontro pode contribuir para a busca do reconhecimento das identidades de gênero, se quebrou ou quebra paradigmas para enfrentar os muros resultantes da violência de gênero decorrentes de um fenômeno estrutural que vai além da violência física, bem como a maneira de inseri-los no contexto econômico, entendendo-o como mercado de trabalho, consumo e lazer de uma sociedade pautada pela diversidade de gênero, raça e sexo. Palavras-chave: teatro, identidade de gênero, discriminação, preconceito.

Abstract Theatre and Sexual Diversity: A discussion about transvestites and transsexuals urban scene life pathway. Since Renaissance, art has played relevant themes in society’s transformation process. The theatre has leaded these transformations since XIX century by debating some taboos. In this article, I intend to explore the 1 Advogada, Especialista em Gênero e Sexualidade IMS/UERJ, Professora Colaboradora do Instituto Virtual da Universidade Federal do Ceará. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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journey of transvestites and transsexuals in the urban scene and to discuss about the participation of these individuals at the theatre. This investigation begins with interviews which were done in July 2011 with transvestites and transsexuals, professional actors or professionals, at venues dedicated to theatre in Sao Paulo. This narrative will reveal if this match can contribute with gender identities recognition. Besides that, it will show how it would be possible to break the paradigm of violence which goes beyond physical violence. In addition, it will talk about how to insert them in the economic context understanding it as job market, consumption and leisure of a society consisted in gender diversity, race and sex. Keywords: theatre, gender identity, discrimination, prejudice.

Todo preconceito é fruto da burrice, da ignorância, e qualquer atividade cultural contra preconceitos é válida (Paulo Autran apud Borillo, 2010).

Introdução “Eu nasci num corpo errado”. A frase da personagem Luis Antônio-Gabriela2, da peça teatral de mesmo nome, conta a história de uma travesti que viveu na cidade de Santos nos anos 1980. Muito além do drama da travesti, a peça oferece um resgate histórico da experiência de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais sujeitos ao preconceito e à discriminação na sociedade santista. 2 A peça teatral Luis Antonio-Gabriela, de Nelson Baskerville, Verônica Gentilin, com a Cia. Mungunzá de Teatro e direção de Nelson Baskerville, conta a história de seu irmão mais velho, Luis Antonio que nasceu em 1953, era homossexual e viveu em Santos até os 30 anos, quando se mudou para a Espanha. Durante três décadas, quase nada se soube dele, que, em Bilbao, assumiu a identidade de Gabriela, protagonizou shows em boates e acabou vitimado pela aids em 2006. Estreou em 16/03/2011, no Centro Cultural São Paulo. De 13/05/2011 a 17/07/2011, esteve em cartaz no Teatro Galpão do Folias, em São Paulo. A peça venceu o edital de fomento à cultura da FUNARTE e esteve em cartaz no teatro da Fundação em São Paulo, de outubro a fevereiro 2012. Em contrapartida, o grupo destinou a renda da bilheteria para uma entidade que desenvolve projetos sociais e culturais para travestis. Reestreou em 28/09/2012, em São Paulo. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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ROCHA, Rachel Macedo

Luis Antônio-Gabriela é um dos inúmeros cidadãos que passaram invisíveis por aquele crítico momento da história, no qual foi imputada aos homossexuais a responsabilidade pela disseminação do vírus HIV, em que se instalou o conflito sexual do “pânico moral”, como identifica Weeks3, segregando pessoas, reforçando medos antigos e estratificando ainda mais comportamentos e práticas sexuais. Em sua obra Risco de Vida, o jornalista, crítico teatral, ator e professor de teatro Alberto Guzik (1995) faz um relato da vida cultural, dos comportamentos e práticas sexuais na cidade de São Paulo naquele mesmo período, em que grande parte dos que ousavam viver à margem caminhava como que sobre um fio de navalha. A peça Luis Antônio-Gabriela expressa um retrato da sociedade ocidental onde, antes de tudo, é preciso adequar-se aos conceitos da sexualidade construída no final do século XIX e no início do século XX. Conceitos que sugeriam até pouco tempo uma sexualidade binária, concebida como um dado da natureza. Luis Antônio ou Gabriela é uma personagem real de um vasto leque de possibilidades muito além das letras LGBT, contrariando qualquer conceito que ousasse rotulá-lo. Quem nasce em corpo certo? Quem nasce em corpo errado? A resposta pressupõe uma verdade idealizada pela ciência, pelo conhecimento e pelas relações de poder; a verdade concebida pela scientia sexualis (FOUCAULT, 1988, p. 77). Essa reflexão é um desdobramento do nosso projeto de pesquisa apresentado por ocasião do curso de pós-graduação em Gênero

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Apud Rubin (2003). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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e Sexualidade, no Instituto de Medicina Social, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e surgiu da observação da cena teatral na cidade de São Paulo e do nosso envolvimento com o movimento homossexual na capital paulista. Do trânsito nesses espaços foi possível notar a visibilidade que o movimento homossexual conquistou desde a sua criação, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, as ousadias de grupos e artistas de então que vão contestar o sistema vigente e os discursos acerca da sexualidade, no mesmo período, e o leque de peças em cartaz na cena contemporânea, que tem discutido processos de discriminação, preconceito, homofobia, hierarquização de poder, gênero e sexualidades, ainda que sob a perspectiva de uma dramaturgia heteronormativa. Importante destacar que o universo investigado não se restringiu à análise da dramaturgia com enfoque aos indivíduos LGBT’s, muito bem explorada por Moreno (2001). O objetivo foi observar o encontro desses sujeitos com a arte e se esta contribuiu ou pode contribuir para a visibilidade das bandeiras de lutas sem, entretanto, sinalizar para um processo de institucionalização da causa e de aprisionamento dessa visibilidade a formas rituais. No contexto desta pesquisa, foram entrevistadas travestis e transexuais acessadas por meio de grupos e de espaços voltados ao teatro. As narrativas apresentam as experiências, as subjetividades e as expectativas de cada um com o mundo do teatro.

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O Teatro e o debate sobre diversidade sexual Na cena teatral atual, o debate sobre os temas de diversidade sexual, identidades de gênero, homofobia, homoerotismo, igualdade de gênero, aids, direitos sexuais e dignidade humana tem ocupado parte dos espetáculos em cartaz dos últimos 40 anos (MORENO, 2001). Para o diretor de teatro Claudio Botelho4, a arte tem debatido tabus da sociedade bem antes do século XIX, entre eles o da sexualidade. Com O Despertar da Primavera5, em 1891, o dramaturgo alemão Frank Wedekind “descortinava o universo de um grupo de adolescentes e tocava em temas como o florescer da sexualidade, o incesto, o suicídio e a opressão, seja na família, no sistema educacional ou na igreja”, afirma Botelho. Segundo o diretor, quebrar paradigmas tem sido uma das intervenções sociais dessa arte. Sob esse viés, podemos pressupor que a inclusão das mulheres no direito da arte de interpretar seria um indicador dessa intervenção. Direito que as mulheres conquistam a partir do século XVII6. 4

http://www.moellerbotelho.com.br/acervo/o-despertar-da-primavera

5 Peça do dramaturgo alemão Frank Wedekind, O Despertar da Primavera, estreou em 21 de agosto de 2009, no Rio de Janeiro, e foi vencedora do Prêmio Shell-Rio daquele ano. 6 A proibição das mulheres à arte de interpretar persistiu por toda Idade Medieval. Na Inglaterra, os papeis femininos eram representados por jovens atores aprendizes. Tanto na Inglaterra quanto no resto da Europa as mulheres que ousavam desafiar a lei, e atuavam em tabernas, eram tidas como prostitutas e acabavam na prisão. Com o surgimento da “Commedia Dell’Arte”, na Itália, por ocasião do teatro renascentista, é que as mulheres conquistam o direito de exercer papeis femininos, o que é copiado pela França e acaba conquistando a Inglaterra e toda a Europa. A atriz Therese du Parc foi a

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Um episódio histórico não muito distante pode nos ajudar a refletir sobre as complexas relações entre teatro e diversidade sexual. Fry e MacRae (1985) narram como a performance de uma travesti foi alvo de reações de repúdio por parte de integrantes do movimento homossexual nos anos 1980. Na performance, que teve lugar na festa de confraternização do primeiro encontro nacional de grupos homossexuais organizados no Brasil, a protagonista tentava seduzir um halterofilista indiferente às suas investidas. Os militantes consideravam o espetáculo uma exibição de grotesco “machismo”, com vaias e expulsão dos atores do palco. Esse acontecimento é interpretado por Fry e MacRae (1985) como indicativo de um descompasso entre a visão de mundo da plateia e a dos atores. A perspectiva supostamente igualitária defendida pelo movimento homossexual naquela época exigia afirmações de virilidade por parte dos homossexuais e desqualificava construções identitárias e condutas sexuais que evocassem qualquer tipo de “hierarquia de gênero”. A intérprete vaiada e expulsa do palco pelos ativistas, Phedra de Córdoba, compõe hoje um dos principais grupos de teatro nos palcos da Praça Roosevelt, na cidade de São Paulo, Os Satyros. Um pouco antes, nos anos 1970, o humor, o deboche e as sátiras aos estereótipos de gênero e papeis sexuais da época já eram representados no palco pelos Dzi Croquetes7. O grupo, entretanto, não se colocava como porta-voz de qualquer movimento que rotulasse a primeira mulher a pisar no palco, interpretando o papel de Fedra, da obra de Racine.In http://www.spescoladeteatro.org.br/curiosidades/09.php 7 Grupo de atores/bailarinos brasileiros que interpretava shows irreverentes nos anos 70. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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postura das interpretações que tentasse classificá-los como andróginos, marginais ou transviados. Sem sucesso, a imprensa também insistia em classificar o espetáculo dentro de algum gênero artístico (LOBERT, 1979)8. Tais intervenções, entretanto, não deixaram de contribuir para as reivindicações das minorias daquele tempo. Na música, a androginia na performance de artistas como David Bowie e Ney Matogrosso poderia ser tomada, de um ponto de vista analítico, como expressão de contestação a papeis sexuais, ainda que a fala de Matogrosso não sugerisse o contraponto. “Não vim para esclarecer nada. O que eu puder confundir, eu confundo” (TREVISAN,1986, p.135). Para Lobert (1979), essas manifestações culturais, que emergem da contracultura - dentre elas os Dzi Croquetes - contribuem com um novo discurso aos símbolos e aos rótulos produzido até então pela ciência positiva e, de certo modo, impulsionam o ativismo e uma nova agenda política. Das manifestações e contestações à repressão sexual dos anos 1970 para a agenda política dos anos 1980, o movimento homossexual aponta para um projeto de politização da questão da homossexualidade (CARRARA et al., 2010, p.87). Nesse novo cenário, no final dos anos 1980, a reivindicação de direitos civis plenos foi a principal pauta com a revisão da Constituição Federal. Apesar da presença do movimento homossexual no debate político da elaboração da Carta Federal de 1988, a não inclusão da 8 “Os Dzi Croquetes não são representantes do Gay Power, nem dos andróginos, nem dos homens, nem das mulheres, nem dos brancos, nem dos pretos, mas de todos. Porque ou a gente representa todos ou então não representa nada” (LOBERT,1979, p.215).

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orientação sexual e da identidade de gênero como situações de discriminação naquele texto reflete o momento político desfavorável aos grupos de defesas de direitos desses indivíduos (VIANNA e CARRARA, 2008). Contudo, reconhecem Vianna e Carrara (2008), a Constituição de 1988 é um marco na garantia de direitos fundamentais na medida em que tais preceitos ampliam o leque de conceito de família, direitos sexuais e reprodutivos, permitindo avanços na esfera do Judiciário ante aos desdobramentos interpretativos de seus dispositivos norteados em compromissos de tratados internacionais de direitos humanos e as discussões da complexidade dos conceitos de gênero, identidade de gênero e orientação sexual, chamando a atenção para além da categoria das mulheres e reconhecendo as demandas de travestis e transexuais, redesenhando a pauta de direitos de gênero no Brasil. Acompanhando essa pauta localizamos a criação do Programa de Ação Cultural, conhecido com Proac-LGBT9, na Secretaria de Estado 9 O Proac – Programa de Ação Cultural foi criado pela Lei 12.268, de 20/02/2006, e é dividido em duas formas de apoio: 1. Editais/Concursos: apoio por meio da seleção pública de projetos, cuja premiação é proveniente de recursos orçamentários da Secretaria de Estado da Cultura; e 2. Incentivo Fiscal (ICMS): apoio por meio de patrocí¬nio(s) de contribuintes habilitados do ICMS a projetos previamente aprovados pela Secretaria de Estado da Cultura, com os seguintes objetivos: apoiar e patrocinar a renovação, o intercâmbio, a divulgação e a produção artística e cultural no Estado; preservar e difundir o patrimônio cultural material e imaterial do Estado; apoiar pesquisas e projetos de formação cultural, bem como a diversidade cultural; apoiar e patrocinar a preservação e a expansão dos espaços de circulação da produção cultural. Criado no ano de 2010, o Proac LGBT é um edital que visa à promoção das manifestações culturais com temáticas LGBT, a exemplo de editais voltados à cultura indígena e outros, com um aporte de recursos de R$ 500 mil reais em 2010. No ano de 2011, os recursos foram ampliados para R$ 700 mil reais e contemplaram 34 projetos, seis deles do interior do Estado em atendimento aos requisitos do edital. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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da Cultura de São Paulo, no ano de 2010, com o objetivo de fomentar manifestações culturais que têm inserido a questão da diversidade sexual e o respeito à diferença, de modo a criar oportunidades para projetos invisíveis ao mercado cultural, mas de grande relevância para a sociedade, na medida em que propõem um debate sobre discriminação, preconceito e intolerância. A medida surge com a criação da Coordenadoria de Estudos de Raças, Etnias, Religião e Diversidade naquele órgão estatal, na esteira da regulamentação do Plano Estadual de Enfrentamento à Homofobia e Promoção da Cidadania LGBT10 na rubrica da pasta. No ano de 2011, dos 158 projetos inscritos, aproximadamente 60% eram de espetáculos teatrais. Dentre as peças indicadas ao Prêmio Shell-São Paulo 2011, contemplada com o Proac LGBT de 2010, Luis Antônio-Gabriela, anteriormente citada, concorreu em cinco categorias. O Prêmio Shell11 já havia premiado outras peças que discutem a temática da sexualidade, entre elas, A Vida na Praça Roosevelt, do grupo Os Satyros, escrita pela alemã Dea Loher, que, no ano de 2004, a convite de um amigo, mergulhou no universo de frequentadores da Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, para compor a sua dramaturgia. A peça aborda a solidão, o amor e as perdas de um traficante, um policial, uma travesti, uma secretária e uma transexual.

10 Decreto nº 55.839, de 18 de maio de 2010, Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, que institui o Plano Estadual de Enfrentamento à Homofobia e Promoção da Cidadania LGBT. 11 1989.

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O Prêmio Shell é o prêmio mais tradicional do teatro brasileiro e foi criado em

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Hipóteses para o Amor e a Verdade12, do mesmo grupo, discute a solidão de cidadãos nas grandes cidades e sua relação com as redes sociais e a tecnologia virtual. A peça conta com cinco travestis e transexuais em seu elenco e foi indicada ao prêmio em 2010. Desse modo, pretendemos aprofundar um tema resultante de trabalhos ainda tímidos com relação à instituição de uma cultura LGBT, com o objetivo de investigar se a arte pode dar visibilidade à interação dos sujeitos objetos da pesquisa e disseminar o debate sobre gênero e sexualidades na sociedade.

Exclusão social e busca da ocupação profissional O tema sobre processos de exclusão e situações de vulnerabilidade de transexuais e travestis ganha cada vez mais espaço nos debates acadêmicos. O conceito de que tais sujeitos são portadores de transtornos de disforia de gênero - portanto, doentes - e que tem justificado a inclusão da patologia no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação de Psiquiatria Norte-Americana (APA) e do Código Internacional de Doenças - CID, da Organização Mundial de Saúde (OMS), só contribui para justificar cada vez mais o isolamento e a discriminação de travestis e transexuais na sociedade. O respeito à autonomia dos sujeitos sobre seus corpos e suas vidas, conforme sugere a antropóloga Berenice Bento13, é cotidianamente 12 Hipóteses para o Amor e a Verdade, com direção de Rodolfo García Vázquez, da Companhia de Teatro Os Satyros, está em cartaz na cidade de São Paulo desde maio de 2010, no Espaço do Satyros 1, na Praça Roosevelt. Fonte: http://satyros.uol.com.br/index. php/noticias/84-hipoteses-para-o-amor-e-a-verdade 13

Precisamos pensar no que significam as dores do sujeito, seu sofrimento. Eles Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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violado sem qualquer justificativa legal e ética. O poder/saber médico (BENTO, 2008, p. 121) nos procedimentos prévios que indicam a intervenção cirúrgica e o processo de regularização da documentação junto ao Poder Judiciário pressupõe essa postura autoritária. O acesso a esses procedimentos é condicionado a laudos que vão concluir pelo diagnóstico patologizante. Da classificação dos indivíduos em homens e mulheres à afirmação de que o sexo é construído socialmente, as cirurgias de fabricação do “verdadeiro” sexo refletem muito mais a busca pela normalidade sexual do que o direito à livre expressão de gênero. Estas, aponta Carrara et al(2010, p.55), “devem ser consideradas no registro dos direitos humanos como uma demanda relativa à livre expressão de gênero”. Estudos, entretanto, como de Bento (2008) estão desmistificando a patologia, sugerindo que a suposta doença desse grupo de pessoas é uma forma de expressão do potencial humano para a diversidade e a criatividade. Esse, aliás, é o ponto central da campanha mundial “Stop Trans Pathologization – Pare a patologização de trans!”, que tem angariado um número cada vez maior de simpatizantes mundo afora. A campanha iniciou em 2007 em Madri, Barcelona e Paris (BENTO e PELÚCIO, 2012) e surgiu como uma resistência à medicalização do gênero pelo saber médico. No Brasil, Conselhos Regionais de Psicologia abraçaram a campanha e têm intensificado a sua atuação junto aos têm capacidade de decidir sobre o que querem sobre seus corpos e suas vidas. Eles não precisam ser tutelados pelo Estado. É preciso mudar o foco de uma concepção autoritária, pois hoje o transexual precisa de autorização de toda uma equipe médica e o processo é bastante complicado, e depois disso ele pode fazer a cirurgia. É preciso ter foco na condição plena desse sujeito. in http://paradiversidade.com.br/2010/?p=328

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profissionais da área. Bento e Pelúcio (2012, p.572), ao abordarem sobre a politização das identidades abjetas, relatam que o saber médico tem insistido na proliferação de novas categorias médicas que continuam patologizando comportamentos a partir da regra heteronormativa. Foi assim com a homossexualidade e temos assistido o mesmo no que se refere às identidades trans, ou seja, todos aqueles que fogem ao padrão binário de gênero e sexo são catalogados pelos documentos conhecidos como DSM-IV e CID-10. Daí a importância histórica da campanha na medida em que se cobra dos saberes psi (psicologia, psiquiatria e psicanálise) uma profunda análise sobre a classificação do gênero como categoria naturalizada e normalizada de uma sociedade concebida sob o manto de uma norma heteronormativa. Esse conceito histórico da sexualidade elaborado pela sociedade ocidental hierarquizou relações de poder e ainda hoje influencia comportamentos discriminatórios, produzindo sujeitos e identidades sexuais de diferentes maneiras. Assim, tudo o que se “desvia” de uma conduta padronizada gera uma sombra. É como se a sociedade afastasse para a margem tudo o que está em desacordo com o padrão hegemônico. A conduta sexual - ou ainda antes, o desejo sexual - aos olhos de tais instâncias, só se valida como modo de perpetuação natural e/ou social, e tudo o que fuja de tal padrão está exatamente na rota dessa repressão. As diversas instâncias sociais agem conjuntamente corroborando a opressão, destaca Foucault (2010): (...) quer se lhe empresse a forma do príncipe que formula o direito, do pai que proíbe, do censor que faz calar, do mestre que diz a lei, o sujeito é constituído Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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como sujeito – que é “sujeitado” – e aquele que obedece. À homogeneidade formal do poder, ao longo de todas essas instâncias, corresponderia naquele que o poder coage – quer se trate do súdito ante o monarca, do cidadão ante o Estado, da criança ante os pais, do discípulo ante o mestre – a forma geral da submissão (p. 95).

Ao considerar a argumentação de Rubin (2003, p.26), que vai sinalizar que se “é difícil para pessoas gays encontrarem emprego onde não precisem fingir, é duplamente ou triplamente mais difícil para indivíduos mais exoticamente”, e de Becker (2009), ao recomendar que aos desviantes não tem restado alternativas senão buscar novos cenários além das ocupações convencionais e de maior prestígio, vamos encontrar na fala das entrevistadas as consequências de se viver sob o catálogo de uma categoria diagnosticada. Na mesma linha, Scott (1995, p.71/99) vai sugerir que gênero é uma relação de poder político de grande impacto na sociedade na medida em que questiona “Qual a relação entre as leis e o poder do Estado? (...) Qual a relação entre a política do Estado e a descoberta do crime da homossexualidade? Como as instituições sociais têm incorporado o gênero nos seus pressupostos e na sua organização?”. Dentre outros pontos pertinentes a contestar, os terrenos construídos por uma hierarquia de poder devem ser “objeto de redefinição e reestruturação em conjugação com uma noção de igualdade política e social que inclui não só o sexo, mas também classe e raça”, conclui a autora. Assim, no que tange aos discursos sobre as diferenças socialmente construídas que estigmatizam sujeitos, particularmente travestis e transexuais, na base da pirâmide de estratificação sexual 213

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sugerida por Rubin, nosso artigo chama a atenção para a socialização desses sujeitos no cenário urbano e as mudanças observadas na interação desses sujeitos no cotidiano das cidades, ainda que a discriminação e o preconceito sejam sentidos no que se refere às oportunidades das ocupações profissionais, como apresentam as narrativas, e atuem de forma preponderante como elementos estruturantes das relações de gênero. Apresentaremos, ainda, a partir das entrevistas, a leitura que os entrevistados fazem acerca do conceito de estigma e como lidaram com isso ao longo da vida e no teatro. Silva e Florentino (1996, p.107), ao abordarem o histórico dos papeis interpretados pelas travestis durante os últimos 30 anos e a inserção delas no universo urbano, mostram que o que há de novo é a “circulação dos mesmos em intensa relação com a sociedade abrangente”, sugerindo que desde a quebra dos “limites clássicos entra casa e a rua” a travesti também passa a ocupar um lugar além das fronteiras simbólicas. O antropólogo Julio Simões (2005), ao analisar a interação dos homossexuais no espaço urbano de São Paulo, mostra que a mancha que antes era restrita à região central da cidade se expandiu para os bairros Jardins, Pinheiros, Itaim Bibi, Vila Madalena e Moema, onde os estabelecimentos são voltados para um público de classe média. Contudo, destaca Simões (2005, p.321), ainda que “os garotos de programa e travestis não circulem pelas ruas de movimento da região com a mesma desenvoltura como as do Centro” e que cada mancha tenha a sua particularidade, o importante é a circulação que se dá entre elas. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Segundo Simões (2005, p. 330), por mais ampliado, diversificado e pluralista que seja o “gueto”, ele é um indicador da tensão recorrente entre os esforços de “pluralizar o universal” e, de certo modo, “apresentase como um espaço protegido diante da intolerância”. Ainda na esteira das relações de gênero, a marginalidade e o desvio, competem diariamente com qualquer quadro que venha desestabilizar ou alterar o cotidiano heterossexista. Uma disputa que passa pelo poder político cultural. Os delitos de intolerância homofóbica14 registrados na região da Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, revelam que essa é uma reação à circulação dos sujeitos que não correspondem ao padrão heterossexual da sociedade. Sobre o tema, encontramos em Elias e Scotson (1994) a ideia de que os rótulos de inferioridade talvez sejam a grande arma dos detentores do poder como valor humano em qualquer segmento da sociedade, entretanto, há que se considerar na abordagem dos autores que na sociedade moderna quase sempre estamos protagonizando roteiros previamente arquitetados pelas instituições, pela ciência e pelo conhecimento, os quais rotulam, normatizam regras, constroem conceitos e regulam as interações a partir de um importante instrumento, o poder, seja na condição de estabelecidos ou de outsiders. A respeito das regras impostas pela sociedade, Becker (2009, p. 151)15 argumenta que a gênese do discurso moral é fruto do que ele 14 http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/11/grupo-usou-lampadas-comobastao-para-agredir-jovens-na-paulista.html e http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/ casal-gay-e-agredido-na-regiao-da-avenida-paulista/n1597253412836.html. Acessado em 06/09/2013 15

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“As regras são produtos da iniciativa de alguém e podemos pensar nas pessoas Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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chama “de empreendimento moral com a criação de um novo fragmento da constituição moral da sociedade, seu código de certo e errado”. Nesse aspecto, a investigação sobre a interação de travestis e transexuais no espaço urbano, nos termos em que sugere esse estudo, é um desafio às indagações da antropóloga Carole Vance (1995) no que se refere ao comentário teórico sobre a redescoberta da sexualidade pela antropologia. Para a autora, esse fato vai forçar a antropologia a redescobrir a sexualidade, bem como o seu papel como observadora da vida humana. O projeto inicial planejava investigar a possível aproximação de cidadãos travestis e transexuais no cenário artístico paulistano por meio de pesquisa qualitativa de caráter exploratório e entrevista semiestruturada como método de estudo, além da análise documental e bibliográfica. Contudo, e por sugestões dos próprios entrevistados, os depoimentos foram colhidos por meio de uma conversa informal, sem perguntas pré-estabelecidas. As entrevistadas foram orientadas sobre o trabalho acadêmico e sua divulgação. A exposição pública de algumas entrevistadas, atores/atrizes na cidade de São Paulo, possibilitou a identificação das mesmas como da atriz Phedra de Córdoba e Leo/ Lou. A identificação de Leo/Lou foi autorizada por meio de termo de consentimento. Outros, entretanto, foram identificados com nomes fictícios.

que exibem essa iniciativa como empreendedores morais. (...) O protótipo do criador de regras, mas não a única variedade, como veremos, é o reformador cruzado. Ele está interessado no conteúdo das regras. As existentes não o satisfazem porque há algum mal que o perturba profundamente. Ele julga que nada pode estar certo no mundo até que se façam regras para corrigi-lo”. (BECKER, 2009, p.153). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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O universo da pesquisa englobou grupos teatrais que têm inserido o debate da diversidade sexual na cena teatral, incluindo dramaturgos, profissionais e atores transexuais e travestis, na cidade de São Paulo. Dentre os temas explorados no roteiro, abordaram-se a trajetória desses cidadãos, a procedência, a vida familiar, a sociabilização no espaço escolar, as oportunidades profissionais, a relação e a interação com as atuais redes sociais de convivência, bem como com o espaço urbano e as expectativas sociais com relação às artes. A pesquisa apontou ainda a chegada dos teatros à Praça Roosevelt, no Centro da capital paulista, por meio de análise documental, sua instalação na região, no início dos anos 2000, e a interação entre os sujeitos e a arte. Os entrevistados residem na cidade de São Paulo e, apesar das origens e trajetórias de vidas bem diversas, apresentam pontos em comum: as tensões em busca de uma atividade remuneratória dentro das convenções habituais e o encontro com o teatro. A indiferença ou a ausência da família, a exclusão do ambiente escolar, a invisibilidade do desejo, as descobertas da adolescência e a difícil tarefa de sobreviver na sociedade, com exceção de Phedra de Córdoba, cujo contato com a arte se dá logo na infância, apesar das inúmeras adversidades de que a vida não lhe poupou, são presentes na fala de cada uma das entrevistadas. A maioria se origina de outras cidades do estado de São Paulo, de outros estados brasileiros e até mesmo do Exterior, sempre em busca do suposto encantamento que a cidade grande poderia proporcionar em suas vidas. 217

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Todas enfatizam as perspectivas de um bom emprego, de fazer uma carreira e de conhecer gente nova, na ilusão de que na metrópole tudo é muito mais fácil, ou menos conservador. É o que vai revelar Bruna, que saiu de sua cidade, no interior do Ceará e chegou a São Paulo depois de inúmeras tentativas frustradas de emprego e de paixões pela capital cearense. A militância, a prostituição, o desemprego são outras de suas experiências na metrópole. Observa-se na fala das entrevistas a afirmação de que encontraram oportunidades de emprego e de cidadania ao serem apresentadas ao teatro. Que arte é essa? Qual a relação do teatro com a diversidade sexual? A seguir, apresentamos os depoimentos na tentativa de sugerir possíveis caminhos investigativos sobre o tema para as ciências sociais, ainda que o mesmo não se apresente como inusitado.

Identidade reinventada Phedra nasceu Felipe Rodolfo Acebal, em 26 de maio de 1938, em Havana, Cuba. Logo na primeira infância percebeu que gostava de dançar e que seu corpo não correspondia à sua identidade. Protegida pelo pai nas constantes desavenças que tinha com a mãe e uma irmã, que não aceitavam sua identidade de gênero, encontrou apoio do genitor e foi estudar dança. Aos treze anos, ingressou na escola de teatro. Já com dezesseis, fugiu de Cuba e iniciou uma série de turnês com uma companhia pela Europa, pelos Estados Unidos e depois pela América do Sul. Numa dessas turnês conheceu, em Buenos Aires, o produtor brasileiro Walter Pinto e veio para o Brasil, em 1958, com quase 20 anos, Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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fazer Teatro de Revista: A minha grande paixão era o palco, com 13 anos, já estava fazendo teatro amador. Naquela época, eu já entendia minha sexualidade, mas não poderia assumir: eu vivia em Cuba. Mesmo assim, nunca aceitei que me chamassem de travesti; para mim, era algo como menosprezo. Mas o termo transexual é algo que soa como canção, tem sílabas melódicas. Por conta do trabalho que iniciei, em 1953, com a companhia espanhola Cabalgata, estive no México, na Venezuela, nos Estados Unidos, em Porto Rico. Ao final da turnê, voltei para Havana. Lá, discuti com minha mãe, e resolvi que não ia morar com minha família. Fui viver na casa da Lupe, uma dançarina que era minha parceira de espetáculo. Nós duas formamos um grupo com uma peruana e uma espanhola. Fomos para o Panamá e nos apresentamos por uma temporada em um cabaré de luxo. Quando terminou o contrato, conseguimos um empresário espanhol que nos levou para Nicarágua, Costa Rica, Guatemala, Bolívia, Colômbia, Peru e Chile. No fim, rompemos com o empresário porque ele nos explorava muito. Eu e a Lupe resolvemos fazer uma dupla: “Sevilla e Córdoba”. Em Cuba eu jamais poderia assumir o “transexualismo”. Havia muita repressão. Meus pais já percebiam que eu era diferente. Meu pai devia saber quem eu era: minha mãe, não. Ela nunca aceitou minha sexualidade. E, quando já estava no Brasil, decidi dar vida à mulher que havia em mim. E foi assim: Felipe deu vida a uma mulher que se chama Phedra. A Phedra nasceu assim como uma deusa mitológica, mas na vida real. A partir daí resolvi tomar hormônios e aos poucos fui me transformando. Vim para São Paulo e foi quando conheci os fundadores dos Satyros, Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vasquez. Então, me convidaram pra estrear o espetáculo “A Filosofia na Alcova”, do Marquês de 219

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Sade. A Roosevelt é a minha casa. Aqui sou diva. O teatro sempre foi o meu ganha-pão, a minha realização, o espaço onde eu era quem eu realmente sempre quis ser. Lutei muito para isso. Tenho muitos amigos no meio artístico. Não tenho dinheiro, mas vivo bem e feliz.

A história de Phedra chama a atenção de inúmeros pesquisadores que transitam pela Roosevelt. A passagem já relatada pelos antropólogos Peter Fry e Edward MacRae (1985) revela que a Diva da Roosevelt já experimentava e tentava inserir, no início do movimento sexual, o tema das sexualidades no palco na agenda política. E nessa agenda Phedra de Córdoba certamente não passou incólume; pelo contrário, aos 72 anos, continua a ser personagem de uma vida real, reservando, a cada peça, um pedacinho de uma história que passa pelas relações conturbadas com a mãe e a irmã, pelas tensões da adolescência na busca de um projeto pessoal, tanto no sentido do prazer pela dança e pelo teatro, quanto em relação àquilo que se entrelaça ao seu projeto sexual, o de fazer teatro de mulher. No ano de 2012, a atriz/ dançarina foi escolhida como a personagem do teatro brasileiro pelo site cultural R7.

Em busca da estética radical Leo nasceu Lou. É ator, iluminador e estuda teatro na SP Escola de Teatro. Seu último trabalho foi na Companhia de Teatro Os Satyros, em Cabareth Stravaganza. A peça, vencedora do Prêmio Shell 2012 na categoria iluminação, desenvolvida por Leo, rendeu-lhe os recursos para Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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realizar um grande sonho: a cirurgia de mastectomia e a adaptação de seu corpo ao que ele chama de sua real identidade. Leo, entretanto, chama a cirurgia, a que foi submetido em julho de 2012, de “experiência estética radical”. Aos 53 anos, Leo/Lou sabe que essa é uma das condições para finalmente virar Leo. Esta, entretanto, é outra luta que ele precisa conquistar no Judiciário, diante das exigências da redesignação de sexo para obter a sua identidade masculina: a retificação de registro civil. Leo nasceu no Interior de São Paulo e desde a infância se vestia como os meninos de sua cidade. Adorava jogar bola, de shorts e sem camisa. Naquele tempo ainda podia se vestir como os colegas: Um dia, acho que por volta dos sete anos, a mãe me fez vestir o uniforme escolar. Era uma saia plissada. Eu não queria usar aquilo. Mas minha mãe insistia. Dizia que eu era menina. E eu fui chorando pra escola. Era um menino numa roupa de menina.

O menino de São Simão foi para São Paulo viver como menina. Já aprovado no vestibular de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, Leo vira militante feminista e ingressa na banda punk, As Mercenárias. A grande paixão de Leo será a travesti Gabriella. Com ela se casa como Lou e ela com o nome de origem, masculino. Mas, no ano de 2004, o casal é obrigado a se separar. Envolvido com tráfico de drogas, Leo é preso e Gabriella vai morar na Europa. Após a experiência da prisão, Leo decide procurar ajuda na Coordenadoria de Diversidade Sexual da Prefeitura de São Paulo. Orientado pelo órgão na busca de oportunidades, vai fazer oficina de 221

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teatro e conhece Os Satyros. Ali começa sua relação com o teatro e com o novo personagem. Aqui eu me reencontrei. Fui bem recebido. As pessoas me respeitam. Estou estudando iluminação na SP Escola de Teatro. Saí da prisão apenas com minha carteira de identidade. Eles me acolheram e hoje atuo em Hipóteses para o Amor e a Verdade16 e sou assistente de iluminação. É aqui que quero construir Leo.

Ao mesmo tempo, Leo afirma que nem ele sabe ao certo quem é: “homem, mulher, transexual, o que eu sou? Acho que sou pós-gênero”. O relato dele nos revela uma vida na qual ele nunca se enquadrou. Os rótulos, códigos e símbolos marcados socialmente há séculos que hierarquizam relações de poder a partir da dimensão biológica de que o sexo distingue e define homens e mulheres, masculinos e femininos, a partir do sexo anatômico, não enquadrou o menino Leo/Lou, apesar das investidas da mãe. Esse conceito naturalizado e determinado pelo corpo por muito tempo sustentou as diferenças entre homens e mulheres, prescreveu papeis de modo a adequar desde a infância o padrão azul e rosa e construiu comportamentos dóceis para as meninas e agressivos para os meninos com status de verdade.

16 Hipóteses para o Amor e a Verdade, peça da Cia. de Teatro Os Satyros, com direção de Rodolfo García Vázquez Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Memórias silenciadas e novos papéis Luisa17 trocou a Argentina pelo Brasil aos 19 anos, deixando amigos, família, amores, uma profissão com que ela sonha e uma pátria. Nasci nos anos 60, vim pro Brasil cheia de ilusões e planos. Ninguém deixa seu país pra fracassar e o preço que se paga é muito grande. Você deixa seus queridos, seu amor, seus costumes. Você vem pra conhecer outra cultura com a ideia de conhecer oportunidades e vê que as portas se fecham.

De origem ítalo-argentina, Luisa não tem nenhum parente. Estão todos mortos. Orfã de mãe, conta que ninguém da família chegou a ver a sua transformação. Tem gente que diz que sou assim porque me transformei na minha mãe. Não tem nada a ver. Tem algumas meninas que até são aceitas pela família. O único problema é quando a família te põe na rua, aí ficam o desamor e o desamparo da base de tudo que é a família. Pra sociedade, não interessa de onde eu venho. A sociedade vive de aparências. Nós somos o lado mais baixo da sociedade. Nós não destruímos família, não matamos ninguém. Até um criminoso é mais valorizado pela sociedade. O crime do criminoso passa; nós não. A mentalidade humana é domada por religiões; é assim que é. A luta é fortíssima, e repito; temos a arte, que nos ampara. Nós representamos o quê? Sexo. Nós somos sinônimos de putaria, libertinagem. A inclusão nossa na sociedade só vai se dar no âmbito artístico, e sabe por quê? Porque a sociedade nos vê 17 Os nomes utilizados nesse estudo, com exceção de Phedra de Córdoba e Leo/ Lou, são todos fictícios.

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como levianas, como prostitutas. O pedágio social que nós pagamos é caríssimo, inclusive de nossa família.

Para Luisa, travestis e transexuais não são aceitas porque ousam ultrapassar as barreiras e os rótulos. E até reconhece que algumas colegas conseguem um emprego. Para ela, uma pessoa medíocre não tem a menor dificuldade em conquistar um emprego numa disputa com uma travesti ou uma transexual qualificada. Eu me prostituí e volto a repetir: nossa oportunidade de sobrevivência é no meio artístico, e com muito cuidado. Eu estou vivenciando um sonho, jamais me imaginaria nesse lugar, maravilhosamente.

Luisa já sofreu dois atentados contra a sua vida “e não foi trabalhando na noite como prostituta”. Porém, afirma que os dois casos tiveram conotação sexual. Insiste que travestis e transexuais nunca estão seguras e despeja a sua carga emocional contra a sociedade. Você perdoa, mas não esquece. Quando aparece uma coisa como essa, você acha que tá sonhando. No meu caso, aos 50 anos, se eu ficar aqui posso vir a ter uma aposentadoria. Às vezes eu ouço: “porque você não vira homem outra vez?”. Tive carteira assinada aos 49 anos. Tenho medo de acordar e achar que estou num sonho. Não me coloco numa posição de vítima, e sim de dentro da minha vida ser a protagonista da minha história. Você pode não ser um profissional da medicina, mas você pode estar no mundo da arte. Qual a opinião da sociedade a respeito dos negros? que eles podem ser um cantor, um esportista. Eu rezo para que através do nosso trabalho, através da arte em geral, possa fazer com que pelo menos as futuras Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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gerações de travestis e transexuais tenham mais oportunidades. Um homossexual pode fazer sua vida, trabalhar e casar-se. Nós não, porque nenhum homem sai às ruas com nós, porque a sociedade nos condena. Homens casados me procuram, me procuram às escondidas, depois saímos do motel do mesmo jeito que entramos: e ele não me pega na mão.

Formada na Aeronáutica aqui no Brasil, Luisa tem uma paixão especial pelo mundo da aviação. Concluiu o curso aos 26 anos no Campo de Marte, em São Paulo. Conquistou a carteira do Ministério da Aeronáutica, do Departamento de Aviação Civil, mas nunca trabalhou na área. Destaca que o melhor dia do ano pra ela é o domingo aéreo no Campo de Marte (dia da aviação). Nesse dia eu me descontrolo, eu amo esse dia, o dia do ano talvez mais feliz para mim. Nem sequer o dia de meu aniversário é tão feliz como aquele dia. Eu espero o ano inteiro por esse dia. Me formei, tenho vários títulos, mais especialidades. Pergunta se eu trabalhei na área? Eu não trabalhei. Você já viu uma travesti em cima de uma aeronave? Mesmo que você demonstre atitudes brilhantes, talvez você tenha oportunidades em repartições públicas ou no mundo artístico. Eu sempre trabalhei com migalhas. Um dia eu saí de um curso e eu não tinha dinheiro pra despesa em casa. Um senhor me cantou e fiz programa com ele. E, com os 50 reais que eu ganhei lá no quarto do hotel, em 6 minutos, fiz minha despesa. Daí pensei: meu Deus! “O empregado dele deve trabalhar o dia todo e ganha isso”. Será esse nosso papel? Eu gosto disso, não? Eu não tenho problemas em fazer qualquer trabalho. A TV até pouco tempo dizia “Ajude a quem já cumpriu a sua pena”. Então, ele já cumpriu a sua 225

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pena e quer trabalhar. E eu digo novamente: Qual o crime que nós cometemos? Quem quer trabalhar como prostituta, porque tem vocação e não se sente mal, dá o sustento pra ela, ótimo, tudo bem, mas e aquelas que não querem, que estão se congelando numa noite de 5 graus, porque se não prostituir hoje, amanhã não come. Porque eu conheço um monte de meninas transexual e travesti que não querem se prostituir.

Hoje, depois que foi trabalhar numa atividade relacionada ao teatro, frequenta, na medida do possível, o circuito cultural. Para ela, o artista é uma pessoa especial, com mente aberta, e arte tem lhe proporcionado perspectivas e oportunidades. A religião castra o ser humano e o controla. Isso é um fenômeno cultural. O ser humano precisa de alguém que o controle. A arte se contrapõe, mostra que nosso lado humano existe. Aí está a chave. A arte é a grande chave e nesta chave está a nossa salvação, quebrando as barreiras da intolerância, e talvez nós sejamos aceitas. Quem sabe assim as pessoas compreendem que não estamos violentando a sociedade.

Nem doença, nem perversão: a redescoberta de Bruna Bruna nasceu no Ceará. Trabalha numa instituição relacionada ao teatro e atualmente está no elenco de uma peça em cartaz na cidade de São Paulo. Eu sou de família religiosa, evangélica, cresci com princípios bíblicos e fui criada nesse meio. Tenho 31 anos. Fui para a escola com 6 anos e sempre estudei em colégios públicos.

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Bruna descobre já na infância que era diferente dos meninos de sua rua e da escola. Para ela aquilo que parecia normal, coisa de criança, era na verdade o desabrochar da sexualidade. Sentia prazer na companhia dos meninos ao mesmo tempo em que mantinha relações com os colegas: O fato mais marcante da minha sexualidade foi numa festa do aniversário da filha de um pastor. Estávamos todos sentados na sala. Eu era inocente e senteime no colo de um primo, como sentava no colo de qualquer um e de repente eu senti que alguma coisa estava desenvolvendo entre as pernas dele. Eu devia ter em torno de 7 anos. Ele me levou pra casa dele e abusou sexualmente de mim. Não sei se foi isso que desenvolveu meu comportamento, a minha sexualidade. E assim foi até os 14 anos. Eu percebia que meus costumes eram diferentes dos meninos. Tiravam sarro de mim, faziam piadinhas que me chateavam muito. Ficava irritada, mas tinha relações com meus coleguinhas. Eu achava que era coisa de criança. Eu era mulher de todos os meninos.

Na adolescência, a sexualidade descortina-se para ela. A irmã nunca permitiu que ela brincasse de casinha em sua companhia. A família a proibia de tudo, o que fez com que a adolescência fosse para ela a pior fase de sua vida. A ausência dos pais marcou muito esse período, já que nunca conversaram com ela sobre a sua “diferença”, o que lhe causava sofrimento e indecisão. Até o dia em que uma tia recomendou à mãe que a levasse para um psicólogo. Outra experiência difícil: Tudo que ele me perguntava eu dizia “sim”. Meu medo era ele contar para minha mãe, que ele revelasse a minha sexualidade para ela, já que minha mãe era homofóbica. Dizia que preferia ver um filho numa cadeira de rodas, do que virar mulher. 227

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Aos 18 anos, decidiu sair de casa e foi morar com um tio. Foi então que passou a cuidar do pai da tia, internado na Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza. O ambiente deixou Bruna encantada: Achei muito legal ver que homossexual trabalhava na Santa Casa. Pensei que lá eu poderia arrumar trabalho. E foi o que aconteceu.

Na Santa Casa de Fortaleza, Bruna foi trabalhar como telefonista. Em seguida, deixou a casa do tio e foi morar com uma prima da mãe. Era como uma segunda família. Foi uma época boa. Eu ia com minhas primas pro forró e me sentia muito bem. Mas minha mãe não gostava que eu morasse lá, porque achava que aquele não era ambiente para mim, porque essa prima tinha um bar. Então, depois disso eu fui morar com 3 rapazes evangélicos, mas eu mesma descobri que não era aquilo que eu queria. Eles eram rapazes e eu queria me transformar.

O processo de transformação de Bruna começa com a descoberta de uma praça próxima à Santa Casa, onde as travestis faziam ponto. Lá ela começa a se sentir mais confusa com relação a sua sexualidade: Eu achava tudo muito lindo. Elas não eram bonitas, mas eram o que eu queria. Daí um colega homossexual me sugeriu usar hormônio e meus seios foram crescendo e eu comecei a usar blusas folgadas no trabalho para ninguém perceber.

Nessa nova fase, já morando sozinha, passa a frequentar boates e se encanta com as performances das drags queen. Em sua fala, revela que o contato com outras orientações sexuais e identidades de gênero faz com que ela fique em dúvida sobre que papel quer representar - drag,

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transformista ou outros-, até que um colega sugere para ela “montar”18. Para ela, a rivalidade é o pior dos grupos. Além do preconceito que já sofrem na sociedade, o do meio em que vivem é muito pior. Bruna não entendia a divisão dos grupos: lésbicas de um lado, gays de outros, travestis e transexuais de outro ainda. Foi quando ela começou a se sentir excluída do grupo de amigos e seguiu um novo destino. No fundo, o desejo de se enquadrar em uma concepção hegemônica das sexualidades acaba por desiludir Bruna nessa busca. As desilusões e a demissão no emprego fizeram com que Bruna, em 2002, mudasse para São Paulo com a intenção de se prostituir. Depois de inúmeras experiências conturbadas pela capital paulista, com o uso de silicone e a prostituição, decide ir embora e morar com a irmã em Manaus, até o dia em que resolve voltar para a família, no Interior do Ceará. Minha mãe chorou muito quando me viu de mulher, mas é minha mãe. Hoje ela vem me visitar. Para meu pai, eu sou o filho dele, e hoje eu o respeito na sua decisão.

A volta para São Paulo imprime um novo olhar na vida de Bruna. A prostituição não mais lhe encanta. Decide arrumar emprego e procura ajuda no Centro de Referência da Diversidade – CRD. É encaminhada para o Centro de Combate à Homofobia e para a Coordenadoria de Assuntos da Diversidade Sexual – CADS, da Prefeitura de São Paulo. Selecionada pela CADS foi indicada para trabalhar numa instituição voltada para o

18 Montar – expressão que surgiu do universo das travestis, “montada” é o homem que se veste de mulher.

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teatro. Estou muito feliz de estar aqui. [...] Aqui vejo que tenho muitas chances e estou me redescobrindo. Adoro atuar, ainda mais em interpretações performáticas. Meu sonho é fazer teatro. Aqui eu fiz família, não me viram como um extraterrestre. Eles me devolveram a alegria de viver. Eu era muito solitária. Eu acho que, referente aos cidadãos LGBTs, eles podem conseguir um cargo em qualquer empresa. Pena que as empresas não estão preparadas pra isso, pra nos receber. Aqui é o diferencial e ela pode ser um ponto de partida para que haja incentivo para outras empresas. O teatro inclui independente de sexo. Se a pessoa tem talento, ela é aceita lá. Eu acho que ainda faltam políticas públicas sociais de inclusão.

O sonho de Bruna é estudar psicologia, fazer cirurgia de redesignação de sexo e mudar o pré-nome. Para ela, conhecer a experiência de vida das pessoas e ajudá-las a compreender quem são ou até mesmo tentar descobrir quem ela própria é passa pelo sonho da psicologia. Encontramos na fala de Leo, Bruna e Luisa a afirmação de que há uma disposição de inclusão dos sujeitos no meio artístico por meio do teatro. Entretanto, em contraste ao argumento da própria Bruna quando ressalta que, se a “pessoa tem talento, ela é bem aceita”, nos parece que a conquista da inclusão ou empregabilidade nessa ocupação, pressupõe, assim como em qualquer outra, a capacitação profissional de cada um.

As desordens psicológicas e físicas e a homofobia invisibilizada Junia morava no Interior do Estado de São Paulo. Ainda se

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sente uma imigrante na metrópole. Ativista do movimento LGBT há aproximadamente 10 anos, afirma que já fez de tudo na vida. Só não matou e usou drogas. Profissional do sexo, atualmente trabalha num ambiente voltado para o teatro, mas afirma que, uma vez profissional do sexo, sempre será profissional do sexo. Começa a militar quando decide se assumir. Para ela, as tensões na família e no ambiente escolar são frutos da quebra com a ordem imposta. A sociedade tem umas fórmulas impostas: ou você é homem ou mulher e, a partir do momento em que você se assume, você rompe com aquilo que esperam que você seja. Eu não me identifico como homem nem mulher. Eu sou travesti, num sou alguém que está no corpo errado. Eu decidi mudar. Eu mudei nome e roupas. Decidi tudo aos 16 anos. Fiz uma desordem total, isso pensando numa ordem imposta. E isso acarretou muita coisa na minha vida, as boas e as ruins. Eu adorava estudar, mas num pude estudar, fui expulsa do colégio sob uma chuva de pedras. E não teve um professor ou diretor que viesse intervir. Isso me afastou da escola. Eles não conseguiam lidar com alguém que não é homem ou mulher. Você não é aquilo que a sociedade quer que você seja.

Foi na prostituição que começou a ter noção da hipocrisia da sociedade. Destaca que os clientes não são bandidos ou pobres, mas pessoas que têm dinheiro e que fazem programa na noite e depois sequer as olham na rua. Então, você começa a achar que é uma pessoa errada. Eu corria da polícia, e pensava “mas o que eu fiz?”. Tenho marcas no corpo de borrachadas que levei da polícia, sem saber o motivo. Se eu tivesse morrido, hoje seria uma notícia de jornal e iam vincular a 231

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tráfico de drogas ou que eu tinha roubado cliente. E a pessoa que me esfaqueou foi apenas porque eu era travesti. Ele era hétero. Então, pensei que eu queria mudar essa situação.

Numa participação na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, Junia tem contato com a militância e decide mudar sua situação. Dedicada, percebe que é hora de cuidar de si própria e resolve procurar emprego em São Paulo. A militância ajudou a conquistar um espaço como palestrante, mas era preciso ir além e encontrar um emprego fixo. Fui convidada para vir pra São Paulo, mas o emprego não rolava. Voltei para o Interior e vinha com frequência a São Paulo. Procurei a CADS. E foi quando eu fui selecionada para trabalhar num local vinculado ao teatro. Eu acho que agora tudo está muito na moda, como a questão da transexualidade, esse destaque dessas pessoas que são celebridades, daí a sociedade começa a discutir. Eu vi a peça Luis Antônio-Gabriela, que me emocionou. Era a nossa história ali. A peça revela um debate real da vida das travestis e transexuais. Ela dá uma grande visibilidade a esse debate, por exemplo, no que acontece com as políticas públicas, em que a continuidade é sempre uma preocupação. Aqui, há essa preocupação de ter um projeto que acolha travestis e transexuais, mas, e quando essas pessoas saírem daqui, como fica? No caso das cotas, eu não acho que é ruim, pois elas fazem um diferencial. E isso deve ser publicizado e copiado, pois vai criando perspectivas até ter um momento que as pessoas não vão ser discriminadas em outros espaços públicos.

Junia afirma que a grande saída para mudar a sociedade é a educação. Indica que a escola deve educar para a diversidade de um modo geral, e não apenas para a diversidade sexual, porque não existe Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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ninguém igual. As pessoas são gordas, magras, negras, brancas, altas, baixas e etc. E isso tem de ser dialogado na família, na escola e em todos os espaços.

Trabalhar num espaço voltado para a arte ampliou o seu leque de amizades, suas redes de contatos e de identificações. Por exemplo, hoje vou muito mais ao teatro. Eu parei pra prestar mais atenção em relação às atividades culturais, além de ter conhecido muita gente bacana, pessoas que eu fico me perguntando “onde estavam essas pessoas?” E esse é o grande diferencial da minha vida.

Para Junia, a militância serviu para mostrar, ampliar o conhecimento e exigir direitos e cidadania. Faz críticas ao uso do nome social, pois, para ela, não adianta ser chamada de um nome e continuar a ser observada com os olhares preconceituosos da sociedade. Por que eu não posso mudar o meu registro? Eu acho que a luta da militância deve ser no sentido de mudar o pré-nome e não nome social, pois, ou eu existo ou não existo.

Nota-se no argumento de Junia uma disposição não observada na fala das companheiras, a de que a mudança do pré-nome não deve estar condicionada, medicalizada aos saberes médicos, mas ao desejo de existir como sujeito; uma autonomia que passa apenas e tão somente pelo seu desejo de ser quem realmente acha que é. Uma fala que se soma ao discurso de que tais sujeitos não são doentes, mas sujeitos de direitos.

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Considerações finais As narrativas de Phedra, Leo, Luisa, Bruna e Junia apresentaram nas entrevistas pontos comuns nas relações afetivas, econômicas e sociais. Um desses pontos comuns, a prostituição, é um estigma que merece destaque em relação às travestis, “que não é regra, nem essência do travesti” (SILVA e FLORENTINO, 1996, p.112). Mesmo que grande parte transite no mundo da prostituição, o autor observa que, nesse caso, trata-se de fonte de renda, já que as barreiras apontadas pelo mercado de trabalho são inúmeras, restando-lhes tão somente ocupações de menor prestígio. Observa-se na fala desses sujeitos a sensação de que a sociedade tenta moldá-los desde a infância. A discriminação acaba por isolá-los a um estado de anomia e anomalia, como cidadãos de segunda categoria. Os discursos das tensões e das experiências que expõem as marcas das movimentações desses sujeitos e as adversidades decorrentes das desestabilizações das normas e dos rótulos da sociedade ostentam processos de exclusão que vão além do papel sexual de cada um. Phedra, por mais que tenha encontrado a arte ainda na pré-adolescência, vivenciou situações desfavoráveis tanto quanto Bruna, que veio do Interior do Ceará. Como atores da sociedade contemporânea, nossa contribuição, ao explorar o universo das manifestações culturais, pauta-se no desenho de um novo caminho com vistas à desconstrução de visões influenciadas pela sociedade heterossexista que, ainda nesse século, concebe verdades em nome de um poder-lei, de um poder soberania tão bem traçados Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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lá atrás pelos teóricos do Direito e pelas instituições monárquicas (FOUCAULT, 1988). Desse modo, ao explorar o trânsito desses sujeitos no mundo do teatro, nosso trabalho aponta caminhos que tratam travestis e transexuais como cidadãos detentores de individualidades próprias e comuns, profissionais cujas atividades se destacam entre iluminadores, recepcionistas, atores, atrizes e dançarinas, valorizados em razão de sua ocupação como qualquer outro no mercado de trabalho. O teatro tem contribuído para esse debate nos últimos 40 anos, indica Moreno (2001), e faz surgir uma cultura que nesse novo século amplia o tema das sexualidades, sugerindo que a tragédia e a comédia podem ser “porta-vozes” de temas ainda travestidos e/ou silenciados em outras instituições, como a escola, a família, a igreja e a ciência.

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“Nascemos para ser felizes?”: discutindo a categoria felicidade nos discursos sobre os deslocamentos profissionais

Tatiana Siciliano1

Resumo A partir de 20 depoimentos sobre trajetórias profissionais de pessoas de “camadas médias” que mudaram de carreira, discutirei como a categoria “felicidade” subjaz à “lógica” do consumidor moderno. Minha hipótese é de que existem semelhanças entre as narrativas dos que mudaram intencionalmente de carreira com a lógica do consumidor, pois consumo pode ser visto como uma autoexpressão de quem consome e como um configurador de identidades. As “metamorfoses” nas carreiras visam a experiências mais “autênticas” e à conquista da felicidade. Assim, o trabalho, além de prover o sustento, deve “expressar a si”. Palavras-chave: trajetórias profissionais, mudanças nas carreiras, consumidor moderno.

Abstract From 20 interviews about professional trajectories of “middle class” people that had changed career. I will argue that the category “happiness” follows the same “logic” of the modern consumer. My hypothesis is that there are many similarities between the narratives of who had intentionally moved their career, with the consumer logic, 1 Professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional - UFRJ e pós-doutora em Sociologia da Cultura pelo IFCS-UFRJ (bolsa Capes- PNPD). E-mail: [email protected] Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

“Nascemos para ser felizes?”: discutindo a categoria felicidade nos discursos sobre os deslocamentos profissionais

thus, the consumption can be seen as an auto-expression of who consumes and as an identity. The “metamorphoses” in the careers pursues “authentic” experiences and the conquest of the happiness. Therefore, the work, beyond providing earning, must “express itself”. Keywords: professional trajectories, career change, modern consumer.

“Nós nascemos para sermos felizes (...) Por trás disso tudo tem o aspecto de ser feliz. Então, o trabalho tem que fazer você feliz, a relação afetiva tem que fazer você feliz; se não estiver fazendo você feliz, você tem que estar buscando isso. E por isso eu acho que não é uma busca da profissão, é uma busca pelo bemestar”- Narrativa de um entrevistado (grifos meus).

Introdução O depoimento de Inês2 que serve de epígrafe a este artigo foi proferido por uma mulher, na época, com 50 anos, separada, com um filho3. Formada em Engenharia, trabalhou em fábricas e como consultora em empresas até sua curiosidade levá-la para um mestrado em Administração. A partir dessa experiência, resolveu que não seria mais feliz como engenheira; precisava, então, mudar para ser feliz. Em busca da felicidade, Inês leu mapa astral enquanto cursava o mestrado, e em meio à escrita da dissertação, trocou-o por uma nova graduação em Psicologia. Terminou o curso, fez posteriormente uma pós-graduação, 2 Os nomes atribuídos aos informantes neste artigo são fictícios, a fim de proteger o anonimato dos entrevistados. 3 O deslocamento na carreira havia sido feito por Inês quando ela contava com 34 anos, estava recém- separada e seu filho era criança. Conforme a entrevistada, foi um momento difícil porque, com o final do casamento, acabou criando praticamente sozinha o filho, com pouca ajuda paterna. Na época da entrevista, Inês falava de seu primeiro deslocamento profissional com distanciamento, e seu filho já era jovem. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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tornou-se professora e clinicou por alguns anos. Na ocasião da entrevista, já estava em novo processo de mudança profissional, segundo ela, mas sintonizado com o “eu interior”, com a “necessidade de bem-estar”. Como a definição de bem-estar se alterava ao longo dos anos, a carreira também deveria acompanhar. Mas, mesmo que sua percepção do que a fazia feliz mudasse com a experiência, a necessidade de buscar a essência da felicidade permanecia. E, mais do que um desejo, era vivida como uma “obrigação” e uma “sinalização” para a mudança. O sentimento de obrigação pela conquista da felicidade, mesmo à custa de um enorme sacrifício, era também compartilhado por Thomas, 30 anos, solteiro4. Graduado em Informática e funcionário de uma grande empresa, considerava-se bem-sucedido financeiramente e reconhecido. No entanto, apesar da escolha pela Informática ter sido motivada pela perspectiva salarial, percebeu que não estava feliz. Precisava de algo que fizesse “sentido”, que o fizesse se sentir “apaixonado”. Após algumas tentativas de mudança dentro do campo da Informática, percebeu que nunca “se apaixonaria” pelo atual trabalho e resolveu resgatar um antigo interesse de adolescência5: matriculou-se na faculdade de Psicologia, cursando-a à noite. O “projeto” de Thomas consistia em continuar trabalhando em Informática até conseguir exercer a profissão de psicólogo, o que demoraria em média mais uns três anos e meio para acontecer, e, depois disso, conciliar com a nova ocupação, uma consultoria em “tecnologia” para garantir o sustento. Tal caminho era entendido como arriscado, sofrido, demorado e, portanto, não isento 4

Quando da entrevista.

5 Thomas disse ter lido diversos livros de psicologia na adolescência, estimulado por uma tia que era psicóloga.

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de dúvidas. Thomas reclamava da falta de tempo para si e para ver os amigos e a família, do cansaço da dupla jornada (trabalho e estudo), da falta de lazer e do custo de dois relacionamentos afetivos. Mas, entre as namoradas e o novo projeto profissional, optou pelo segundo. O sacrifício fazia parte do processo e o convencia de estar alinhado com a sua “verdadeira vocação”6. A persistência só confirmava o acerto da escolha e o fazia acreditar que, quando conseguisse exercer a psicologia, encontraria a felicidade. A boa remuneração também não foi suficiente para satisfazer Fernanda, 30 anos, casada pela segunda vez, sem filhos. Quando da entrevista, Fernanda havia conseguido migrar para a nova carreira, a de estilista. Graduada inicialmente em Comunicação Social, trabalhou nas emergentes agências da web que naquela época, prometiam uma rápida ascensão profissional7. No período, casada com o primeiro marido, estava mais voltada para o lado financeiro. Quando se separou e começou a namorar outra pessoa8, se deu conta do quanto estava infeliz no lado profissional. Tentou incluir na rotina cursos artísticos (desenho e pintura), mas não conseguiu conciliá-los com as demandas de trabalho. Alegava ter experimentado uma enorme sensação de infelicidade, o que a moveu em direção a novos estudos no campo da moda. Logo nos primeiros períodos da faculdade de moda se deu conta que não conseguiria mais 6 Para ele, entendida como uma força impulsionadora em direção ao caminho que levaria à satisfação plena. É passar horas no trabalho e, na hora de sair, não ter “sentido o tempo passar”. 7 No final dos anos 1990 e início de 2000, as empresas virtuais, conhecidas como “ponto com”, encontravam-se em seu “auge”. Alguns anos depois, no entanto, essas mesmas empresas começaram a falir. 8

Com quem futuramente se casou pela segunda vez. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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continuar trabalhando em agências de web, arrumou um emprego em uma empresa de design de joias ganhando bem menos e teve que ir morar com a avó, por não poder se manter sozinha. Trabalhou um tempo nessa empresa, depois foi para a área de marketing de uma loja de roupas femininas, que considerava arrojada. Mesmo não entrando como estilista, esperava que, trabalhando, conseguisse migrar para essa área. E tal aposta acabou funcionando. Fernanda, recém-casada pela segunda vez, havia acabado de conseguir um cargo de estilista embora com salário menor do que o da outra área. Outro sacrifício que acreditava que seria compensado futuramente, em nome da felicidade. Os três depoimentos, de pessoas com histórias de vida diferentes, e em momentos distintos em relação aos deslocamentos profissionais, evidenciam a importância do trabalho em suas vidas como uma atividade criadora e que dá sentido aos seus “eus interiores”. Não desejam o labor, as ocupações impostas pela necessidade, pela sobrevivência, mas a ideia de um trabalho ligado à fabricação de algo e de si mesmo9. Esta seria a chave para o que denominavam felicidade na profissão: sentimento de realização pessoal, de prazer no que se faz, não apenas visando a ganhos financeiros ou prestígio. A crítica ao trabalho como obrigação e a valorização dessa categoria como caminho para a felicidade também encontram ressonância em propagandas. O banco Itaú Personnalité, direcionado para uma elite econômica, realizou, em 2007, através de sua agência de propaganda DPZ, uma campanha publicitária em que se propagava como um banco perfeito para os clientes por incentivá-los a se reinventarem. 9

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Sobre a diferença etimológica entre labor e trabalho, ver Arendt (2004). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Um dos comerciais era direcionado ao “trabalho”, com a mensagem: o mundo se divide entre dois tipos de pessoas: as que gostam do que fazem e aquelas que passam o tempo todo pensando no que poderiam estar fazendo se não tivessem que trabalhar. Trabalho é apenas o que paga as suas contas? Ou o que faz tudo valer a pena?

E o locutor, após tal narração, fechava o anúncio com o slogan “Itaú Personnalité: perfeito para você”. A pergunta que se coloca é quais motivos levam um banco de elite a se posicionar, em sua propaganda, como favorável à busca da felicidade através do trabalho? O discurso da propaganda não apoia o trabalho como um valor ou “fortalecimento do caráter” ou simplesmente como um meio de ganhar dinheiro para pagar as contas e garantir uma boa condição financeira. Condição essa que, em última instância, seria definidora para o aceite do cliente no banco. O que o discurso sugere é uma valorização das pessoas ousadas, que não temem o risco de fazer o que gostam em busca da felicidade, mesmo que isso não pague imediatamente suas contas. Aliás, diga-se de passagem, é uma contradição em relação à categoria anunciada, que remunera o capital. Mas, então, por que o banco se dizia simpatizante com aqueles que buscavam um trabalho “que faz tudo valer a pena”, e não com os que desejavam apenas ter dinheiro suficiente para serem clientes de um banco premium? Minha interpretação é de que o banco desejava se “vender” como próximo a pessoas como Inês, Thomas e Fernanda, que não tinham medo de buscar a própria felicidade. Desejava se posicionar como um banco ousado, parceiro e que, como outras categorias de produto e serviços, anunciava a felicidade como “imperativa”. Como sublinha Freire

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Filho (2010a e 2010b), o discurso da felicidade perpassa, cada vez mais, as representações midiáticas nos jornais e nas revistas. As “persuasivas mensagens publicitárias” ajudam a vender de calçados ortopédicos a sabão em pó10. E o mercado de autoajuda vira um indicador econômico, que mede a prosperidade de uma nação e, consequentemente, ganha voz na propaganda política dos governantes. A felicidade torna-se, então, não mais um estado de espírito ideal, mas um capital importante, um projeto individual, que todo sujeito tem obrigação de buscar e manter. Não é mais entendida como um “estado de exceção”, “mas como uma livre determinação moral do indivíduo para engajar-se em sua reforma e crescimento pessoal” (Freire Filho, 2010b:55).Desse modo, a propaganda do Itaú Personnalité está consonante com os ecos de um imperativo cultural da felicidade. O objetivo deste texto é iniciar uma reflexão sobre as emoções e sensibilidades relatadas nas mudanças de “carreira”. Carreira aqui entendida como um ciclo de vida percorrido dentro de uma sociedade específica, ao longo de um determinado tempo11 e que, consequentemente, incorpora os “projetos”12 individuais e suas transformações, sendo eles “dinâmicos e constantemente reelaborados” (VELHO, 2003, p.10), permitindo e, por vezes, incentivando as reinvenções

10

Ver artigos e propagandas analisados por Freire Filho, 2010b.

11 O conceito de carreira é bastante plástico e pode ser aplicado em diversos contextos, implicando uma adesão a um tipo de projeto e, consequentemente, um aprendizado e uma experimentação de uma forma de viver e de ver o mundo. Hughes (1971) é o pioneiro no aprofundamento do tema. Junto a alunos como Becker, Goffman, Strauss, entre outros, constitui referência teórica fundamental nessa discussão. 12 No sentido usado por Schutz (1979), como uma ação direcionada para se atingir determinados fins.

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e “metamorfoses” do sujeito. Assim, torna-se importante compreender como a categoria “felicidade” apoia os discursos da “construção de si” e modela as sensações experimentadas nos deslocamentos profissionais, incorporando, nesse processo, a lógica do consumidor moderno. Meu argumento é de que existem muitas semelhanças entre as narrativas dos que mudaram intencionalmente de carreira com as “bases metafísicas do consumidor moderno”, na medida em que o consumo pode ser visto tanto como uma autoexpressão de quem consome quanto a partir de seu papel de construtor de identidades e sensações - como modelador e configurador dos sentidos do “self” (CAMPBELL, 2006). Tal discussão tomará como base dados coletados entre 2004 e 2005 e que subsidiaram minha dissertação de mestrado sobre metamorfoses nas segundas escolhas profissionais, defendida em 2006, no Programa de Pós-Graduação em História, Bens Culturais e Projetos Sociais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Vale destacar que o enfoque utilizado no presente trabalho é bem distinto do adotado na dissertação, na qual privilegiei, nas histórias de vida relatadas, a tensão entre mudar e permanecer. No entanto, a concepção de que era preciso mudar para ser feliz esteve presente no discurso de todos os entrevistados. Daí ter decidido, no presente artigo, lançar um novo olhar sobre o antigo material e fazer outra análise dos dados, a partir dessa linha argumentativa13. A hipótese de que a “lógica

13 Outra versão desse trabalho foi apresentada no XVI Congresso Brasileiro de Sociologia, em julho de 2009, no grupo de trabalho Consumo Sociedade e Ação Política, sob o título “Mudando para ser feliz: quando a profissão e a lógica do consumidor se encontram”. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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do consumidor” está, na contemporaneidade, espalhando-se para outras esferas de atividade, como o trabalho e o lazer, foi pensada a partir das leituras de Colin Campbell (1997, 2001 e 2006), Don Slater (2002) e Freire Filho (2010a e 2010b).

O contexto das entrevistas O referido material empírico é composto por 20 entrevistas pessoais e gravadas - com homens e mulheres14 que têm entre 28 e 52 anos15 pertencentes às camadas médias urbanas16, moradores da cidade do Rio de Janeiro, oriundos de profissões tradicionais e socialmente reconhecidas17, que tenham exercido por algum tempo18 uma determinada carreira e que voluntariamente19 mudaram (ou estavam em 14

11 homens e nove mulheres.

15 Quatro entrevistados tinham entre 28 e 35 anos; seis entre 35 e 40 anos; sete entre 40 e 50 anos e três tinham entre 50 e 55 anos. 16 Entendida aqui como um “ethos”, um tipo de vida que possibilite o acesso ao sistema de informação e de educação formal e que permita ao sujeito maior margem de manobra para suas escolhas. Apesar de nem todos gozarem da mesma renda, há certas semelhanças nos seus “estilos de vida”. De certa forma, compartem da visão de estratégia proposta por Bourdieu (1990:81-82), entendida como o “senso prático” no jogo social, no qual o bom jogador a cada momento cumpre a exigência do jogo para alcançar seus fins, adaptando-se conforme as situações apresentadas. 17 Engenharia, Direito, Arquitetura, Economia, Administração, Informática, magistério ou outras com status de superior completo. Apenas dois entrevistados não concluíram seus cursos superiores, na época que se dedicavam às primeiras carreiras. Tal situação, no entanto, não prejudicou sua mobilidade social, uma vez que possuíam acesso ao sistema de informação e transitavam, sem destoar, entre os que possuíam nível superior. 18

Ao menos por 05 anos.

19 Apenas uma entrevistada relatou ter percebido que queria mudar de carreira, após uma situação de desemprego. No entanto, considerei o seu relato por ela ter recebido outra proposta de emprego logo após o ocorrido, mas não ter aceito, por

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processo de mudança de) sua referência profissional, isto é, a forma pela qual eram antes conhecidos (e reconhecidos) profissionalmente20. Durante a realização das entrevistas, percebi que os entrevistados estavam em estágios diferentes, o que fazia com que se deparassem com formas distintas de interpretar os deslocamentos em suas carreiras, por isso dividi a seleção da amostra em três, proporcionais a estas etapas: os que estão investindo na mudança, que ainda se encontram na antiga profissão, mas já estão se preparando para a nova; os que se encontram no momento da mudança, aqueles que começaram recentemente a trabalhar na nova carreira e, finalmente, os que estão fazendo uma retrospectiva de suas vidas, que já fizeram a primeira mudança há algum tempo e dela falam com certo distanciamento. Outro aspecto relevante é apresentar as diferenças de gênero, que, embora não fossem determinantes nas motivações apresentadas para a “mudança de profissão”, poderiam facilitar ou dificultar tais deslocamentos. Para as mulheres – sobretudo as casadas, mais velhas desejar outras coisas. Um pouco do contexto: Leila, economista, então na faixa dos 30 anos, casada e com duas filhas pequenas, era chefe do setor de crédito de um banco multinacional. Com a crise financeira no Governo Collor (1990-1992), Leila perdeu o emprego. O choque inicial foi substituído por um tremendo alívio. Chegou à conclusão de que precisava continuar trabalhando, mas com mais qualidade de vida e em uma profissão que a realizasse mais, por isso não aceitou a proposta de um outro banco que a quis contratar, dois meses após a sua saída. Resolveu investir no tarô (antes um hobby), nos florais de bach (que fez vários cursos) e em práticas terapêuticas alternativas (para as quais também se qualificou tecnicamente). Na época da entrevista, Leila tinha 49 anos, suas filhas já estavam na universidade e ela acabava de obter um novo diploma de graduação, de design de interiores. Estava inclusive reduzindo suas atividades com tarô e terapias alternativas, para dedicar-se ao novo ofício. 20 No entanto, era requisito da entrevista que a nova carreira demandasse um investimento intelectual, ou seja, a aprendizagem de uma técnica específica, excluindose, assim, os casos de deslocamentos para montar o próprio negócio. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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e com situação financeira estável –, foi mais fácil abrir mão da antiga carreira, por contarem com o suporte emocional e financeiro dos cônjuges. O mesmo não ocorreu com os homens. Mesmo os mais jovens, solteiros, sem filhos e com economias, mostravam-se apreensivos em relação ao futuro. No entanto, as mulheres solteiras ou separadas – que não contavam com o apoio familiar – e as mais jovens, cuja relação de conjugal era estabelecida com base em um ethos igualitário, assemelharam-se mais aos homens, compartilhando com eles as aflições quanto a proverem seu sustento21. O processo de seleção dos entrevistados levou em consideração o conhecimento prévio das histórias de vida e da existência de deslocamento de carreira na trajetória. Sua escolha deu-se, portanto, ou por pertencerem ao meu círculo de amizades ou por serem conhecidos de amigos meus. Alguns entrevistados também acabaram me indicando outros na mesma situação. Embora parte dos entrevistados conhecesse 21 Pode-se dizer que uma das principais diferenças entre homens e mulheres jovens, solteiras e divorciadas foi o uso de alguns termos. Apesar de três entrevistados masculinos, usarem recorrentemente “ser ambicioso” para se autodescreverem, nenhuma mulher empregou tal palavra, preferindo denominar-se como preocupada com a realização e o reconhecimento profissional. A palavra “ambição” parece ganhar outra conotação quando aplicada às mulheres. Silvana Andrade (2012) analisou, em sua tese de doutorado, a trajetória de mulheres executivas a partir de 10 entrevistas e da análise de 52 números da revista Vida Executiva/Mulher Executiva. Em sua pesquisa, as expressões “realização”, “construção de uma carreira”, “reconhecimento” e “equilíbrio entre vida profissional e familiar” eram usadas, pelas mulheres para se justificar como bem-sucedida, afinal, conquistar um cargo de chefia em um meio ainda predominantemente masculino era percebido como uma e vitória e sentiam seu esforço compensado pelo prazer em ter chegado lá, mostrando que poderiam ser felizes como mulheres, mães e profissionais, simultaneamente. Mesmo nas reportagens da Revista Vida Executiva e Mulher Executiva, que davam dicas para que as mulheres ascendessem profissionalmente, a ambição feminina era vista de forma diferente da masculina, levava em conta o equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

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outra(s) pessoa(s) dentro do conjunto total de informantes, não constituía um grupo. Poucos, de fato, eram amigos entre si.

A questão O que move pessoas, de várias idades oriundas de diversas profissões a se aventurarem por caminhos distintos dos construídos até então? As respostas dos informantes, independente da idade ou da ocupação ressaltaram aspectos emocionais em detrimento de questões práticas e racionais. Buscavam o prazer, o bem-estar e a felicidade. E, para alcançar tais metas, a ocupação cotidiana precisaria ser transformada em algo muito maior do que um “mero” trabalho, do que um “ganha-pão”: deveria expressá-los. Para identificar se estavam na direção profissional correta, o termômetro era sentir-se feliz, afinal, “as pessoas nasceram para serem felizes”. E, para serem felizes, descobriam seus gostos e preferências a partir dos diversos trabalhos que desempenhavam em sua trajetória, recriando-se nesse processo. Nesse sentido, não deixavam de se assemelhar ao consumidor que monta ¬– a partir dos produtos, serviços e estilos disponíveis no mercado – o estilo que mais se coaduna ao seu momento de vida. Para construir tal tese, valho-me principalmente dos conceitos de Colin Campbell (1997,2001 e 2006). Para o autor, o consumo se conecta a alguns dos elementos mais centrais do Ocidente contemporâneo, enfatizando o individualismo, a partir das experiências e das sensações propiciadas pelo ato de consumir.

Tal experimentação conduz ao

autoconhecimento a partir do momento em que, ao consumirmos, monitoramos nossas reações, identificando nossas preferências. E tal Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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experiência é criativa, propiciando alternativas às antigas narrativas. Campbell fala sobre a importância do consumo na configuração das identidades, “que, longe de exacerbar a ‘crise de identidade’, é, na verdade, a principal atividade pela qual os indivíduos geralmente resolvem esse dilema” (2006, p.51), por ser a maneira pela qual, contemporaneamente, se autodefinem. Se anteriormente os sujeitos se autodefiniam por sua classe, status de grupo, origem familiar e ocupação, atualmente o fazem, principalmente, a partir de seus gostos e preferências. A prerrogativa é a de um sujeito que escolhe produtos, serviços e estilos de vida, visando o bem-estar e o prazer no “supermercado individual” (opus cit., p.55). Tal modo de pensar é estendido a outras esferas da vida, como as relações pessoais e o trabalho, em que, segundo um entrevistado, “a única obrigação nossa nesta vida passa a ser buscar a felicidade” (grifo meu). Mas o que está por detrás do discurso de “mudar” e se “autoexperimentar” para ser feliz? Assim como a amizade (cf. REZENDE, 2002), a felicidade é uma emoção que informa e revela um contexto e, portanto, podemos depreender alguns significados culturais22, a partir das narrativas sobre reinvenção na carreira. São elas: • O pressuposto de que somos livres para escolher e de que essa matriz ideológica está relacionada a determinado modo de “reprodução cultural” que emergiu a partir da modernidade no Ocidente, que se atualiza nas relações de mercado e que transborda para todas outras esferas da vida cotidiana. “O consumidor (...) é um exemplo ou aspecto 22 Os significados culturais das emoções vêm constituindo um importante campo de estudos nas Ciências Sociais: a Antropologia das Emoções. Sobre tal discussão, ver Rezende e Coelho, 2010.

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do indivíduo privado empreendedor que está no centro da própria noção de modernidade” (SLATER, 2002, p.31). • A ideia de que é “preciso ser feliz” e de que se deve sempre buscar a felicidade. A busca da felicidade aparece aí tanto como um direito quanto um “dever”: o “dever de felicidade”. Para Bruckner (2002), o “dever de felicidade” é uma concepção ideológica, particular da segunda metade do século XX, que se define pela perspectiva do prazer e da euforia e tem a ver com a ênfase que a “cultura ocidental moderna”23 confere aos projetos hedonistas. O plano hedonista na modernidade – o “hedonismo moderno”, de acordo com Campbell (2001) - opera por uma estratégia de intensividade do prazer e se encontra amalgamado às demais esferas da vida social, a ponto de seu conteúdo ter se interiorizado dentro de cada sujeito; O conceito de que o trabalho não deve continuar sendo concebido como um dever, uma “narrativa de longo prazo” que forja o “caráter”, como era até a Segunda Guerra Mundial, conforme apontou Sennett (2004), mas entendido como uma atividade flexível, que pode (e deve) ser alterada para melhor aderir aos “projetos” individuais; 23 Neste trabalho serão tomadas como partícipes da “cultura ocidental moderna” as sociedades que partilham de uma visão de mundo semelhante (pelo menos de forma mais geral) e que se veem como herdeiras da cultura europeia, tendo sido influenciadas pelas transformações ocorridas entre os séculos XVI e XVIII e fundamentando-se nos credos da racionalidade, da individualidade e de liberdade. Naturalmente, estamos cientes de que esta é uma “categorização” que reduz a complexidade e aplaina as diferenças, pois abriga sob um mesmo emblema uma multiplicidade de “correntes de tradições culturais”. Sobre essa questão, ver Barth (2000). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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• A concepção de que não existe mais uma clivagem entre trabalho e lazer (um espaço privilegiado do tempo livre). Assim, a busca pelo prazer e pela excitação na atividade profissional é tão importante como a procura por “excitação no lazer”, discutida por Elias e Dunning (1992). O ponto “ótimo” de excitação no trabalho também envolve uma estratégia de balanceamento entre o controle das emoções e a possibilidade de vivências múltiplas, para que a ocupação não se torne enfadonha pela monotonia da rotina, nem excessivamente “estressante” pela saturação de estímulos; • A imagem de que o trabalho não é exterior ao “self”, mas integrante dele, como se fosse uma segunda pele, que se ajusta às formas do corpo. Daí a necessidade de buscar para si uma nova apresentação profissional quando essa “segunda pele” já está desgastada pelas transformações subjetivas e não adere mais às “formas do corpo”. Tais transformações profissionais espelham mudanças mais profundas, de interesses e de atitudes em relação à vida, na qual o trabalho se encontra amalgamado. Então, podem também ser consideradas como manifestações do processo de autotransformação na medida em que essa nova atividade passa a ser mais condizente com o “self”, combina melhor com as “metamorfoses” (VELHO, 2003) dos informantes. É uma forma de buscar a integração da “cultura objetiva” com a “subjetiva” (cf. SIMMEL,1971); e • A ideia de uma “gestão competente de si”, de que o sujeito é

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um “administrador” de sua vida e que deve fazê-lo de forma competente, transformando sua vida em “business”, no qual a noção de “perfectibilidade” – que, segundo Luiz Fernando Duarte (1999), se traduz “na capacidade de se aperfeiçoar indefinidamente, de entrar na senda disso que desde então nós chamamos de progresso” -

é fundamental. Ainda

conforme Duarte (2010), a perfectibilidade é um conceito iluminista que carrega em si uma ideia de investimento, de necessidade de aperfeiçoamento e transformação pela ação humana.

A preeminência da escolha (...) a proliferação de escolhas característica da sociedade consumidora moderna é essencial para que venhamos [a] descobrir quem somos (CAMPBELL, 2006, p.52).

Antes de tudo, é importante localizar o “projeto” de “mudança” (categoria utilizada pelos próprios entrevistados) profissional dentro de uma perspectiva mais ampla, a do “indivíduo como um valor” (ver DUMONT, 2000)24. A importância das escolhas nas vidas humanas, a ideia de trajetória, o pressuposto da racionalidade e o sentido do trabalho não são intrínsecos à condição humana, mas construídos segundo uma lógica na qual o sujeito é o ponto central. As próprias indagações sobre 24 A valorização desse “eu” único, indivisível, moral, livre e igual aos demais não é inata, mas moldada a partir da matriz epistemológica de uma determinada época e de um tipo específico de sociedade, categorizada como “cultura ocidental moderna”. Daí a importância de não naturalizar tal conceito como se ele sempre tivesse existido e se comportasse do mesmo jeito em todos os lugares. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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o “sentido da vida” que, segundo os informantes, precedem as escolhas das segundas carreiras, são somente inteligíveis dentro da perspectiva ocidental moderna. Anteriormente, era uma questão que não se colocava; a “cosmovisão” baseada na supremacia da vida espiritual não era questionada (TAYLOR,1997, p.32). De certa forma, é o declínio das “normas absolutas” (BOZON, 2004a; 2004b) que permite a diversificação de visões e a possibilidade da construção de trajetórias a partir de projetos individuais. Nas palavras de Le Breton (2003, p.31), “em uma sociedade de indivíduos, a coletividade de pertinência só fornece de maneira alusiva os modelos ou valores da ação. O próprio sujeito é o mestre-de-obras que decide a orientação de sua existência” (grifos meus). Também é a substituição das regras pela proliferação das escolhas que caracteriza a sociedade moderna e torna o consumo uma atividade essencial para o “autoconhecimento” (CAMPBELL, 2006, p.52). Assim, as escolhas são representadas, no contexto ocidental moderno, como um atributo inerente ao indivíduo, isto é, são simultaneamente um direito e um dever do sujeito que as efetua. E também são uma forma como o consumidor moderno constrói a sua identidade. Para se tornar um indivíduo, é preciso singularizar-se25, o que só ocorre a partir dos acontecimentos e das escolhas que vão delineando 25 Tal movimento embute vários acontecimentos e pressupostos, como: a existência de uma “interioridade” - que emerge a partir de uma separação entre o público e o privado e uma emancipação desta última esfera (cf SENNETT, 2002); a configuração de um padrão de sensibilidade, que foi, ao longo do tempo e através das interações sociais, modelado por um “processo civilizador” (ELIAS, 1994); a conquista dos direitos legais atrelados aos ideais igualitários – “quantitativos”-, possibilitando que os “novos cidadãos” cultivassem e aperfeiçoassem sua dimensão subjetiva, enfatizando aspectos “qualitativos” (SIMMEL, 1971).

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uma trajetória. E em tais escolhas estão presentes não só produtos e serviços, mas estilos e direcionamentos de vida. Nesse contexto, a “carreira” profissional passa a ser uma expressão dessa individualidade, da singularização desse sujeito, assim como as opções de lazer, o modo de se vestir e as preferências musicais definem o consumidor. Esse indivíduo, cujo papel se confunde ao de consumidor, é, portanto, “livre” para “ser” o que quiser e pensar os seus “projetos”, naturalmente dentro do “campo de possibilidades” (VELHO, 1999, p.2003). Contudo, o preço de ser livre é estar condenado à angústia de sempre decidir (SARTRE, 1979), de ter que administrar uma profusão de normas muitas vezes conflitantes, de consumir uma diversidade de estilos de vidas, de exibir adequadamente a “representação do eu” ( GOFFMAN, 1989) e, finalmente, gerir isso tudo de forma competente, emprestando coerência às suas experiências subjetivas. Os projetos de felicidade, que inspiram as escolhas profissionais desses sujeitos, são também frutos da concepção de indivíduos singulares, “sujeitos-agentes [em] processo permanente de interação sociocultural” (VELHO, 2010, p.228). E o pressuposto de que “nascemos para ser felizes” se encontra enraizado na visão eudemonista do mundo, isto é, “voltada para satisfação dos ideais nesta vida – e não em outras” (DUARTE, 2010, p.241).

“A busca da felicidade” e os caminhos percorridos se você não está feliz com o que você faz, você não consegue colocar a sua marca em nada, porque antes de tudo você precisa estar confortável (discurso de um informante. Grifos meus). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Pascal Bruckner (2002) sublinha que a infelicidade não é mais apenas a ausência de felicidade, mas o “fracasso” desta. O indivíduo está “condenado a ser feliz” (opus cit., p.52). Assim, cada um é responsável pela busca de sua própria felicidade e também por sua infelicidade. E, para ser feliz, é preciso ser competente, saber administrar suas escolhas visando ao bem-estar e à autorealização. Também é importante a consciência de que “o instante presente não esgota todos os prazeres possíveis” (idem, p.46): se todos os desejos forem satisfeitos de uma só vez, só restaria o tédio. O alcance do prazer é uma “meta” a ser “alcançada” ao longo do tempo, possibilitando a descoberta de novos prazeres e a renovação dos antigos. A noção contemporânea de felicidade está relacionada ao que Colin Campbell denominou de “hedonismo moderno”, um hedonismo ancorado na emoção e no desejo, orientado para a busca do prazer, e não voltado para a “satisfação das carências,” como era no passado, a que chamou de “hedonismo tradicional”. Na conduta hedonista moderna, a busca pelo prazer é motivada pelo desejo, sendo subjetivamente elaborada e mentalmente imaginada, além de exigir um julgamento de quem o experimenta, afinal, nas palavras do sociólogo, “procurar por prazer é expor-se a certos estímulos, na esperança de que estes detonarão uma resposta desejada dentro de si mesmo” (opus cit., p. 91). A diferença entre o “hedonismo tradicional” e o “hedonismo moderno” indica as transformações históricas e culturais de que o sujeito ocidental participou, se o hedonismo era antes marcado por sensações agradáveis oriundas de estímulos exteriores. Na modernidade, os prazeres são internamente motivados e subjetivamente reconhecidos; “crenças, ações, preferências estéticas e respostas emocionais já não [são] 257

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automaticamente ditadas pelas circunstâncias, mas ‘determinadas’ pelos indivíduos” (idem, p. 109). Para os entrevistados, ser feliz é um valor, “uma obrigação” para consigo. E a atividade profissional funciona como um meio de conquistar tal felicidade. Daí rejeitarem ofícios que não têm nada a ver consigo, pois a profissão não pode ser encarada apenas como uma obrigação, sob pena de se tornar um fardo. O ideal de felicidade é abraçarem uma profissão e terem um trabalho em que fiquem “decepcionados porque chegou a hora de ir embora, ao invés de ficarem o tempo todo olhando e contando quanto tempo falta para poderem ir embora”. E, quando percebem que não estão se sentido desse modo, pelo menos na maior parte do tempo, começam a se questionar sobre o tipo de vida que estão levando e a se sentirem infelizes e até deprimidos quando não enxergam uma forma de mudá-la. No entanto, vale destacar que se sentir feliz é diferente de ser feliz. Ser feliz é a meta que deveriam permanente buscar e a sensação de felicidade é o estado que “comunica o bem-estar”. Se a frustração visitar o dia a dia de trabalho dos informantes, é sinal de que algo não está bem e de que é preciso procurar novos horizontes. Mas tal “reinvenção” pressupõe um processo com várias fases: a identificação dessa insatisfação, a partir do autoconhecimento; a busca por opções que tenham mais “a ver” com sua experiência e seus “projetos”; e o investimento em um novo saber. Dessa forma, a identificação do que satisfaz profissionalmente passa por uma melhor compreensão de si e de seus desejos e pela “descoberta do eu autêntico” (expressão nativa). Se, conforme Bruckner Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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(2002), a felicidade é “uma promessa”, vivenciada subjetivamente, para alcançá-la, é preciso um “condicionamento positivo”(opus cit., p. 62-63). Nota-se que essa busca é ativa, encarada como um “dever”, e embute uma noção de construção e de progresso. Assim, na “ascese” que conduz à felicidade, a reflexividade é o veículo. Mas, para colocá-la em marcha, vale contar com a ajuda de todas as práticas terapêuticas: psicológicas, espirituais e químicas, ao alcance dos sujeitos e disponíveis no “mercado” do “aperfeiçoamento de si”. E, para melhorar a performance, podemse combinar as várias práticas e terapias em princípio com ideologias conflitantes entre si – como a junção da psicanálise com florais de bach e astrologia –,desde que juntas elas produzam um sentido global à “bricolagem” do sujeito. Uma lógica semelhante à do “consumidor moderno”: “Podemos escolher como uma caixa de chocolates, apanhando os melhores, rejeitando outros” (idem, p.233). Nos dados empíricos da pesquisa, encontramos comportamentos e discursos semelhantes aos destacados por Bruckner e coerentes com as bases do “consumidor moderno” descritas por Campbell. Os entrevistados declaram que, de alguma forma, a mudança de profissão foi precedida pela busca da autorrealização profissional e “modelada” pelas práticas terapêuticas psicológicas e “alternativas”. Na época da coleta de dados, dentre os vinte pesquisados, doze fizeram ou faziam terapia, visando ao autocultivo e ao autoconhecimento, e atribuíam à prática analítica o processo de autotransformação vivenciado. Alguns faziam análise por anos a fio – uma das informantes há 23 anos, ininterruptos! É importante destacar, no entanto, a convivência de uma diversidade de práticas, embasadas por diferentes pressupostos, no

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mesmo “mercado” que promete o “bem-estar” pessoal e uma “melhor relação” consigo mesmo e com os outros. No artigo “A pós-psicanálise – Entre o Prozac e os Florais de Bach” (2001), Jane Russo discute sobre dois movimentos que estão ocorrendo nesse “campo” - por um lado, o crescimento e a difusão, tanto da parte dos médicos quanto da clientela, da “‘psiquiatria biológica’”, calcada na farmacologia e, por outro, a intensa utilização de “‘terapias alternativas’” que concorrem com as práticas psicológicas oficiais. A hipótese da autora26 é de que existe a ligação entre as duas vertentes, pois ambas produzem uma “medida comum”, o abandono do dualismo mente/corpo e uma ênfase na unicidade. No entanto, embora o campo das terapias psi - baseadas na fala e na escuta – possa estar enfrentando a concorrência das demais práticas (alternativa e química), essas técnicas parecem não necessariamente ser excludentes entre si. Vários entrevistados sincretizavam terapias “oficiais”27 (como a psicanálise, a psicologia analítica e a lacaniana) com o consumo de florais de bach, técnicas “divinatórias” (como astrologia e tarô), práticas orientais (como a ioga e a filosofia taoísta) e alguns contam que, em meio a sua crise mais forte, fizeram uso de antidepressivos. O consumo farmacológico não é visto como um medicamento, mas como um apoio, uma ajuda na reconquista do seu “bem-estar”.

26 Para aproximar os elementos que compõem a “nova era” (tais como o vegetarianismo e a ecologia) das ideias românticas – presentes, embora não hegemônicas – na cultura ocidental moderna, a autora se apoia no texto de Campbell, “A orientalização do Ocidente”, publicado em 1997. 27

Legitimadas, por uma longa formação, por parte de quem as pratica Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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O trabalho não é exterior ao self : a importância da experiência na obtenção do prazer O trabalho opera como uma marca, uma “segunda pele” que deve se ajustar à trajetória e ao estilo do sujeito. Daí a necessidade de buscar uma nova representação profissional para si quando essa “segunda pele” já está desgastada, não aderindo mais às “formas do corpo”, devido às suas transformações internas e externas. Uma expressão emblemática foi proferida por um dos entrevistados quando lhe perguntei o que representava a segunda profissão escolhida. Ele respondeu que ela “tinha mais a ver” com ele e que lhe “vestia” melhor. Outros declararam estar caminhando na direção de um trabalho que “tenha mais a ver” com o seu “eu”, que o “expresse melhor”, que “se amolde” melhor à sua personalidade. Alguns chegaram a mencionar a palavra “vocação”, com um sentido semelhante ao “chamado”, do demônio interior, do impulso em direção à própria essência (Cf.WEBER, 2004[1920] e GOLDMAN,1991). Mas, para onde esses discursos apontam? Primeiro, é importante sublinhar que tais transformações profissionais espelham mudanças mais profundas, de interesses e de atitudes em relação à vida, na qual o trabalho se encontra amalgamado. Então, podem também ser consideradas como manifestações do processo de autotransformação, na medida em que essa nova atividade passa a ser mais condizente com o “self”, combina melhor com as “metamorfoses”28 dos informantes. No caso, os entrevistados escolheram “metamorfosear-se” por intermédio 28 Conceito de Gilberto Velho (2003) que indica uma possibilidade constante de trânsito e de reconstrução do sujeito ao atuar em múltiplos planos e representar diversos papéis.

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da atividade profissional e essa transformação acompanhou as demandas individuais. Ao se conhecerem melhor e experimentarem o mundo, os informantes começaram a desejar mais “autenticidade” (termo usado por um deles) em suas vidas, a querer algo que lhes expressasse o “self”. Nas palavras de um entrevistado: “A minha profissão está intimamente ligada à minha história de vida. Todas essas mudanças não estão só na área profissional; são mudanças minhas mesmo, na minha forma de pensar, na minha forma de me relacionar, de ver o mundo”. Outro ponto é que as mudanças e segundas escolhas só fazem sentido a partir das concepções de experiência e de melhoramento. Luiz Fernando Duarte (1999) apresenta um novo modelo: o “dispositivo de sensibilidade”, construído no Ocidente nos séculos XVII e XVIII analogamente ao “dispositivo de sexualidade”, cunhado por Foucault. Nesse modelo, articulam-se três aspectos: a perfectibilidade, a experiência e o fisicalismo. Dois deles podem ser utilizados para se pensarem as falas dos informantes. A perfectibilidade tem a ver com a ideia de progresso, com o melhoramento buscado continuamente pelos sujeitos através da razão. Tal imagem é encontrada no relato dos pesquisados, pelo fato de processo de mudança ser concebido como fruto do autoconhecimento e envolver aspectos de autotransformação, cuidado e cultivo de si, bem como o uso de “objetos” (terapias, cursos, exercícios, medicamentos, etc) que, usados de forma racional, supõem a melhoria qualitativa da interioridade desses sujeitos. Mas a razão, como sublinha DUARTE (opus cit., p.25), só pode se manifestar quando mediada pela experiência, na vivência subjetiva e na relação com o mundo exterior através dos sentidos. É a partir dessa

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interação que a razão se transforma e progride. A experiência é muito valorizada pelos informantes, visto que a consciência de que desejavam mudar surge a partir de suas vivências, por vezes, sofridas. Alguns dos entrevistados relatam acontecimentos marcantes - como a morte de um ente querido, uma depressão inesperada - como desencadeadores do processo de questionamento individual. Um dos entrevistados declara, por exemplo, que, com o falecimento da mãe, perdeu seus “apegos” (expressão dele) e resolveu viajar para Londres, movido simplesmente pelo desejo. Antes de sofrer essa perda, ele só pensava em ter êxito na carreira de advogado e nem ao menos cogitava empreender uma viagem como essa. Costumava pensar: ”Poxa, eu vou largar tudo?”. Ao se defrontar-, no entanto, com a experiência da morte, descobriu que “tudo era nada”. A mesma sensação é descrita por outra informante. Ela já se encontrava insatisfeita com a profissão de professora de biologia, mas não havia feito nada para mudar. Quando a irmã morreu, abandonou sua matrícula no estado, porque percebeu que não poderia seguir fazendo algo que a deixava infeliz, que a vida era “muito breve para não tentar ser feliz” (grifos meus). Só depois de experimentarem durante algum tempo a primeira escolha profissional e serem personagens de acontecimentos marcantes é que é possível expandir suas visões de mundo e colocar em xeque suas antigas “certezas”; pois, segundo depoimentos, “a profissão está muito ligada ao autoconhecimento. Para definir o que você vai fazer da sua vida, você tem que se conhecer muito bem e acho que a gente não se conhece muito bem até ficar mais velho”. Nas falas dos entrevistados também se destaca a necessidade 263

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de encontrar uma atividade que seja realizada com tanto prazer que se configure como um prolongamento do lazer, e não como um “trabalho” propriamente dito, como a identificação de uma paixão, e não visando à troca mercantil. Por isso a ocupação escolhida deve ser estimulante, surpreendente, sem rapidamente saturar por excesso de estímulos. Conforme Vargas29 (2001), Campbell (2001) e Duarte (1999), a busca pelo prazer envolve uma estratégia que possui duas vertentes opostas: a extensividade ,que enfatiza a extensão da vivência, sua duração, em vez de experiências mais intensas; e a intensividade, cujo foco reside na qualidade e na intensidade do prazer. Os pesquisados equilibram suas segundas escolhas profissionais nesses dois eixos, desejando, embora sem muita certeza, que tal atividade seja durável, mas, ao mesmo tempo, privilegiando o entusiasmo e a excitação com o trabalho, ou seja, a emoção mais intensa.

Para uma administração “competente” de si Me sinto autor do meu destino. Mas, logicamente(...) mesmo sendo autor do meu destino, não é assim ‘eu faço o meu destino independente de tudo’. O tudo faz parte. Então, os acontecimentos obrigam você a tomar novos rumos. Ser autor é poder lidar com os acontecimentos e escrever sua própria história (narrativa de um entrevistado. Grifos meus).

É importante sublinhar os papéis de autor e de construtor que os pesquisados tomam para si e que têm tanta conexão com a lógica 29 Sobre a discussão sobre os modos de produção subjetivos que privilegiam a intensividade versus a extensividade no agenciamento de seu engajamento no mundo, ver a tese de Eduardo Vargas (2001). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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da modernidade e do consumidor. Naturalmente, os entrevistados não se veem como um “criador incondicional”, que possa produzir qualquer coisa, - percebem-se circunscritos pelas possibilidades do entorno e pelo material de que dispõem para elaborar sua obra. Mas, de um modo geral, professam um discurso de autoria, que pode ser associado mais a uma forma de gestão, de administrar sua própria vida de forma eficiente, como se ela fosse um “negócio”. O “modelo business” se traduz pela competência na gestão de si. A noção fundamental é a de melhoramento, de progresso, de aprendizado e otimização, enfim, de que todos são perfectíveis. Mas há outros aspectos embutidos nesse modelo: a ênfase na autonomia do sujeito; a transferência para si da responsabilidade de “se apresentar” de forma mais adequada e de administrar as diferentes demandas, referências e os repertórios disponíveis; a valorização “de um sujeito que se autocontrola” (ORTEGA, 200330) e que articula os eixos “intensividade” e “extensividade” da melhor forma; a lógica do consumidor na procura por recursos externos, visando à melhoria de performance e da relação consigo mesmo, ao emprego de “técnicas do self” (FOUCAULT, 1981), que possibilita ao indivíduo se autotransformar física, mental e espiritualmente, através de intervenções no corpo e na mente, visando a um estado de perfeição e felicidade e tudo isso operando a partir dos moldes do “hedonismo moderno” (CAMPBELL,2001), do consumidor artesão que se constrói a partir dos produtos que consome. Mas, quais são as características do “hedonismo moderno”,

30 Valorizando nesse autocontrole as práticas corporais, médicas, estéticas e higiênicas responsáveis pela construção da identidade somática.

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formulado por Campbell, que se encontram nos relatos dos entrevistados? • A interioridade, a ideia de que a opinião do sujeito sobre seus próprios sentimentos e sensações, que são vistos interiores, é mais importante do que sua relação com o mundo exterior. • A reflexividade, considerada essencial aos informantes, e que se traduz na capacidade de julgamento interior. Para eles, o autoconhecimento e a escolha correta só são possíveis se o sujeito refletir sobre seus anseios e crises. • A racionalização, no sentido de produzir um controle da relação entre meios e fins. E a própria relação com o trabalho indica um comportamento racional, no qual o deslocamento é um meio a fim de se obter mais prazer e autorrealização. • A individualização que remete à noção, bastante discutida ao longo deste texto, de que o indivíduo é o foco de tudo.

Considerações finais - Entrevistadora: “Você pensa em uma quarta profissão?” - Entrevistado: “Penso! (exclama). Eu tenho 49 anos. Quantos anos mais eu vou viver? Até uns 80, 75. Tenho mais 30 anos. Vou ficar fazendo só uma coisa? Não! (risos). Eu gosto muito de mudar (...) Não sou japonês, que entra na empresa, passa nela a vida e só sai na aposentadoria. Eu quero fazer coisas diferentes (...) Mas não acho que seja uma coisa volúvel não, porque tudo o que eu fiz teve começo, meio e fim” (narrativa de um entrevistado. Grifos meus). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Alinhavar as múltiplas experiências de vida na direção de uma atividade laboral que dê prazer e os torne feliz, sem perder o “controle de si”, e sentindo-se um autor, que geriu os recursos encontrados em prol de uma autotransformação mais “autêntica” e plena, é o discurso recorrente entre os que buscam os deslocamentos profissionais. É operando com tais categorias que os pesquisados manipulam aspectos de sua vida pessoal e constroem sua “ilusão biográfica” (BOURDIEU, 2002), editando-os e imprimindo-lhes um sentido que procura articular as incoerências e as ambiguidades existentes tanto na sua trajetória quanto em seus projetos e nos recursos utilizados para geri-los. Fazem questão de manter uma imagem de “coerência”, apresentando-se como pessoas “em aberto”, mas não fragmentadas, como seres múltiplos, porém inteiros. É importante ressaltar que, na construção dessa coerência interna, mas que é ao mesmo tempo plástica, por permitirem várias (re)invenções, certas ideias permearam (quase) todas narrativas, como a preocupação em gerir a vida e a carreira de forma “competente”. A avaliação se dava pelo prazer desfrutado no desempenho profissional e pelo reconhecimento “interno” da sensação de felicidade. Essa era a meta que orientava as escolhas e, em tal processo, tornava-se válida a experimentação de estilos de vida, produtos, serviços e atividades profissionais. Se, contemporaneamente, os sujeitos têm “obrigação de ser feliz” e se seus “eus” são definidos pelo desejo e suas identidades informadas por seus gostos e preferências (CAMPBELL, 2006), o motivo é porque partilham de certa compreensão da esfera cotidiana e do uso do espaço público, característica da “cultura do consumo” (SLATER, 2002).

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O consumo, portanto, como sublinhou Slater, não pode ser visto apenas como uma transação comercial e econômica, mas deve ser enxergado de forma mais complexa, como centro da própria modernidade, por ser “um meio crucial de exercermos nossa cidadania no mundo social” (opus cit, p.14) e uma das formas mais importantes de reprodução da vida cotidiana. Assim, ao pensarmos as metamorfoses profissionais, estamos falando de indivíduos que acreditam que através de seus desejos, buscas e escolhas constroem para si uma identidade, a partir da qual o trabalho é parte fundamental dessa autoexpressão e a felicidade está na base de tudo, pois “nasceram para ser felizes”.

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Artigos

Uma antropóloga em campo: reflexões sobre observação participante e subjetividades na etnografia1

Fátima Weiss de Jesus2

Resumo Neste artigo, procuro descrever e refletir sobre o trabalho de campo etnográfico realizado na (e com a)3 Igreja da Comunidade Metropolitana, em São Paulo (ICM-SP), como pesquisa de doutorado, entre 2007 e 2012 (WEISS DE JESUS, 2012). O artigo privilegia as subjetividades e estratégias para a observação participante. Para isso, num primeiro momento, introduzo de modo geral a metodologia de pesquisa. Em seguida, teço reflexões sobre observação participante e subjetividades no trabalho etnográfico que realizei, especialmente no que diz respeito ao gênero e à sexualidade, procurando trazer contribuições para a constituição de um campo de reflexões que pretende “levar a serio” @s sujeit@s de pesquisa e as relações estabelecidas em campo como um importante elemento na constituição da própria etnografia. Palavras-chave: trabalho de campo, etnografia, gênero, sexualidade, subjetividad.

1

Pesquisa realizada com bolsa do CNPq.

2 Professora Adjunta no Departamento de Antropologia e no Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Doutora em Antropologia Social (PPGAS-UFSC). e-mail: [email protected]. 3 Em relação às dimensões da pesquisa antropológica com seres humanos, ver Cardoso de Oliveira, 2004 e Fleischer e Such, 2010. Entendo que o “na” refere-se apenas ao fato de que eu pesquisei na Instituição; mas a pesquisa se caracteriza, sobretudo, pela relação de interlocução com seus participantes, portanto, foi uma pesquisa com a ICM-SP. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Abstract In this paper I intend to describe and reflect on ethnographic fieldwork done in (and with) Metropolitan Community Church in Sao Paulo – MCC/ SP, as doctoral research, between 2007 and 2012 (WEISS DE JESUS, 2012). The article emphasizes the subjectivities and strategies for “participant observation”. For this, at first I introduce in a general way the methodology research. Then I raise reflections on participant observation and ethnographic subjectivities in the ethnographic work I have done, especially regarding to gender and sexuality, seeking to bring contributions for the establishment of a field of reflections that intends “to take seriously” the research subjects and the established relationships in the field as an important element in the constitution of ethnography itself. Keywords: fieldwork, ethnography, gender, sexuality, subjectivity.

Introdução: Quando inicia o campo? Quando ele termina? Minhas inquietações teóricas com o intercruzamento entre religião e homossexualidade iniciaram ainda em 2002, quando eu realizava minha pesquisa de mestrado e antes mesmo de existirem de fato igrejas inclusivas no Brasil como um fenômeno visível. Nesse período, eu encontrava, na internet, grupos de discussão e textos (a maioria sem autoria) que abordavam a relação entre religião cristã e homossexualidade, mas não havia nenhuma denominação religiosa proeminente no Brasil. Encontrei muitas referências à Metropolitan Community Church – MCC, primeira igreja inclusiva do mundo, fundada em 1968 por Troy Perry, na cidade de Los Angeles EUA. Entretanto, não havia nenhuma referência explícita de ligação dessa igreja com algum grupo no Brasil. No doutorado, comecei então um levantamento sistemático de grupos. Em 2009, já havia dez denominações no Brasil, sendo que Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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algumas das existentes em 2004 (em primeiro levantamento) deixaram de existir e outras surgiram nesse período. Em 2011, localizei mais três igrejas inclusivas e, em 2012, mais algumas, perfazendo mais de 20 denominações, entre igrejas extintas e atualmente em funcionamento no país. Conforme têm apontado autoras como Brenda Carranza (2001), que estudou o “mundo virtual” e sua importância para a Igreja Católica, e Suzana Coutinho Bornholdt (2000; 2008), que pesquisou questões relacionadas à internet e comunidades religiosas, há, na contemporaneidade, um vasto campo que envolve igrejas digitais, missões e grupos que atuam em um “mundo virtual” que está em estreita relação com o “mundo real”. O contato com os trabalhos dessas autoras me permitiu entender o importante papel da internet no campo que estudei, o das igrejas inclusivas, cujo alvo são as populações LGBT. Através do mapeamento dessas igrejas e das “comunidades”, pude reconhecer quem eram as lideranças religiosas e ter um primeiro contato com as diferentes denominações através dos conteúdos dos sites4. Num segundo momento, fiz contato pessoal com as lideranças religiosas que fizeram parte da pesquisa e estabeleci condições para a realização da etnografia na (e com a) Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo (ICM-SP). A ICM-SP possui cerca de 50 membr@s cadastrados e, nos cultos, um público flutuante bastante grande, a maioria composta por 4 O mapeamento das igrejas não constituiu o foco da minha tese, que não realizou uma comparação mais acurada entre as denominações. Além disso, são escassos os trabalhos sobre as diferentes denominações de igrejas inclusivas no Brasil. Dados de outras pesquisas de observação dessas denominações seriam essenciais para compor os elementos de uma pesquisa desse tipo.

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homens que se autorreconhecem como homossexuais. A presença de lésbicas, travestis, transexuais e crianças está se tornando bastante frequente, como observei nas minhas últimas participações nos cultos5. No período de setembro a dezembro de 2008, estive na Igreja da Comunidade Metropolitana (filiada à Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana, cuja matriz é a MCC), em São Paulo, em quatro ocasiões distintas. Esse período foi fundamental para que eu conhecesse o grupo, bem como pudesse identificar melhor os objetivos da pesquisa e também para que eu conseguisse ser reconhecida e aceita por eles nos espaços coletivos e criar “vínculos” para a “pesquisa de campo” nos moldes do que aprendemos com Claudia Fonseca (1998) sobre a etnografia. Dessa forma, pude também elaborar o projeto de tese, que foi qualificado em março de 2009. Nos anos que se seguiram, participei de muitos cultos, dois retiros anuais (em 2009 e 2010, realizados no período da Páscoa), encontro do grupo de casais, grupo de ensino de LIBRAS, culto nos lares, encontros, seminários e reuniões diversas nas quais a ICM-SP se fez presente. Foram, ao todo, 34 eventos coletivos da agenda da ICM-SP nos quais eu realizei observação participante.

5 A ICM-SP começou o culto infantil em 2011 e, em abril de 2012, aconteceu o primeiro encontro do grupo ICM-DELAS DA ICM-SP. Segundo a página do grupo no Facebook, o grupo nasceu com o intuito de promover o espaço feminino dentro da Igreja da Comunidade Metropolitana no Brasil e no mundo, tendo em vista que o número de mulheres efetivas dentro da igreja ser relativamente baixo, seja como membr@s ou como lideranças. A partir de um pedido feito pela Rev. Nancy Wilson junto às mulheres da igreja durante o encontro nacional de Páscoa na ICM de São Paulo, entendeu-se a necessidade de uma mudança desse quadro dentro das ICMs. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Minha participação nesses eventos possibilitou o contato direto com lideranças religiosas das Igrejas da Comunidade Metropolitana no Brasil e propiciou que eu pudesse perceber os lugares de inserção e as relações estabelecidas pela ICM-SP. Além da ativa participação em cultos e outras atividades presenciais na ICM-SP, realizei também entrevistas semiestruturadas e em profundidade, nas quais mais que fazer perguntas, pude exercitar o que autores como Miriam Grossi (1988) e Charles Briggs (2007) apontam como essencial: a escuta do outro. Inspirei-me, nesse processo, na proposta de Charles Briggs: Nós podemos contribuir de maneira significativa para o entendimento da cultura, se reposicionarmos a entrevista não como uma outra ferramenta ou método, mas como um espaço/local particularmente esclarecedor para questionarmos a natureza e os limites da nossa própria vontade de saber (2007, p. 576).6 Muitas vezes, ao final das entrevistas, recebi agradecimentos por parte dos/as entrevistados/ as que consideravam que a entrevista tinha tido um aspecto “terapêutico” para a vida deles/as. Um episódio mais expressivo desse aspecto ocorreu quando um rapaz, antes de conceder sua entrevista a mim, introduziu: “vamos iniciar sessão de terapia?!”. Outro foi quando uma informante tornou isto público, deixando o seguinte depoimento em rede social: Querida,

6 Tradução livre do original: “We can contribute significantly to our understanding of culture if we reposition interviewing not as just another tool or method but as a particularly illuminating site for querying the nature and limits of our own will to know”.

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Como me fez bem essa experiência de falar da minha vida sem medo, sem ter que esconder. Eu nunca havia relatado assim dessa forma e pude ver como DEUS é maravilhoso em nossas vidas, como ELE é presente em todos os momentos! Quanto a você, só tenho a agradecer por ter me dado essa oportunidade de me conhecer mais um pouquinho. Que DEUS te abençoe em todas as coisas que você for realizar, tenha sempre muito sucesso e o melhor de tudo é o aprendizado que nos fortalece e nos faz crescer. OBRIGADOOOOOOOOOOO.

Portanto, o desejo das pessoas em comunicar foi essencial no estabelecimento das condições e da duração das entrevistas. Como é possível ver no quadro abaixo, as entrevistas tiveram uma duração bastante variável (as mais curtas, cerca de uma hora, e as mais longas, mais de três horas), pois o roteiro que tinha na memória ia sendo costurado através do que Bourdieu (1992; 2006) define como “trajetórias”, ou seja, “a série de posições sucessivas ocupadas pelo mesmo agente em estados sucessivos do campo em que se insere”. Conceito-chave também para Gilberto Velho, para quem as trajetórias individuais fazem sentido na medida em que nas sociedades complexas ocidentais tem [...] Um significado crucial como elemento não mais contido, mas constituidor da sociedade. É a progressiva ascensão do sujeito psicológico, que passa a ser a medida de todas as coisas. Neste sentido, a memória deste indivíduo é que se torna socialmente mais relevante. Suas experiências pessoais, seus amores, desejos, sofrimentos, decepções, frustrações, traumas, triunfos, etc.[...] São os marcos que indicam o sentido de sua singularidade enquanto indivíduo, que é constantemente enfatizada. (VELHO, 1999, p. 100) Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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O primeiro conjunto de entrevistas foi realizado após nove meses em campo (junho de 2009), período no qual fui estabelecendo relações, percebendo quais sujeit@s estavam predispostos a colaborar e quais seriam representativos. Esse longo período envolveu negociações e minha presença sistemática em campo, por entender, assim como Claudia Fonseca (1991), que entrevistas e observações são complementares e fundamentais para a pesquisa antropológica “cercar uma realidade multifacetada”7. As últimas entrevistas foram realizadas em março de 2010. Dessa forma, entrevistei 16 pessoas em conjugalidade e solteiros/

7 Segundo Claudia Fonseca (1991, nota 7): “na minha observação de cenas ‘espontâneas’ da vida cotidiana, capto um aspecto ‘superficial’ dos valores (o lado público dos sentimentos), ao passo que a entrevista semidirigida, com o ambiente quase terapêutico da relação pesquisador/pesquisado, é uma via de acesso mais fiel ao lado íntimo e autêntico da pessoa. Contudo, em vez de hierarquizar as diversas abordagens em mais ou menos relevantes, mais ou menos próximas à realidade, prefiro encará-las como maneiras complementares de cercar uma realidade multifacetada”.

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as, entre gays e lésbicas, drag queens, travestis, todos/as participantes e/ou lideranças da Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo. Mesmo tendo finalizado “oficialmente” a pesquisa em junho de 2010, o campo se fez presente até o último momento da finalização da escrita desta tese, em maio de 2012, pela relação estabelecida através das redes sociais e mensagens, através das centenas de fotos compartilhadas, dos vídeos enviados ou compartilhados por meio da

internet ou

enviados em DVDs por via postal. Nessa relação, senti um impacto ao saber que os poucos trabalhos que eu produzi e publiquei no período do doutorado eram lidos e partilhados nas ICMS do Brasil. Em maio de 2011, vi publicado, no mural do reverendo da ICM-SP, na rede virtual do Facebook, um trecho da minha pesquisa, da seguinte forma: É importante ressaltar que, durante este período em campo, percebi uma constante valorização do “feminino” na ICM-SP, aproximando-a de sujeit@s divers@s, como travestis, transexuais, drag queens e lésbicas, público não corrente nas chamadas “igrejas inclusivas”.” Fátima Weiss de Jesus, em “A Cruz e o Arco-íris”, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.

Imediatamente seguido por um “curti” do reverendo da ICM do Rio de Janeiro, seguido do comentário: “Dá-lhe Fátima!!!! Sucesso, amiga!”. Agradeci carinhosamente a citação, mas não consegui ter acesso aos comentários que se seguiram. Naquele momento, a leitura de Vagner Gonçalves da Silva (2000), que problematiza as relações entre pesquisadores/as e o grupo estudado (especialmente antropólogos/as que pesquisam religiões afro) e as consequências dos textos etnográficos produzidos para os grupos Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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estudados, se fez presente e pude ter, claramente, a confirmação de que minha relação com o campo e meus/minhas interlocutores/as e as consequências de minha produção teriam ainda muitos desdobramentos, além daqueles decorridos da “observação participante”.

A “observação participante” Na introdução de Argonautas do Pacífico Ocidental, Malinowski (1976) apresenta uma descrição do método utilizado para a coleta de material etnográfico, em que o pressuposto básico é viver na comunidade pesquisada, aprendendo a língua nativa, preferencialmente, não com os brancos. Geertz aponta que o texto de Malinowski foi escrito sob a perspectiva da construção do “eu” do etnógrafo. Dentro do texto etnográfico, essa foi uma maneira convincente de evidenciar o ponto de vista do nativo: “não somente estive lá, mas eu era um deles, falava como eles” (GEERTZ, 1989). Concordo com James Clifford, para quem grande parte das etnografias, desde os “clássicos” a partir de Malinowski, se apoia naquilo que se convencionou chamar de “observação participante”: Since Malinowski’s time, the ‘method’ of participantobservation has enacted a delicate balance of subjectivity and objectivity. The etnographer’s personal experiences, especially those of participation and empathy, are recognized as central to the research process, but are firmly restrained by the impersonal standards of observation and ‘objective’ distance8. (1986, p.13) 8 Tomarei essa tensão entre objetividade e subjetividade como fator vital para a reflexão da Antropologia atualmente, ainda que não adentre na discussão de forma mais aprofundada. Cada vez mais a subjetividade e a voz do etnógrafo são interpeladas pela subjetividade e pela voz dos nativos nas etnografias contemporâneas. Entretanto, a escrita etnográfica não será o foco da discussão aqui presente.

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A partir da Escola de Chicago9, a “observação participante”, significativo instrumento de pesquisa etnográfica dos povos longínquos, tornou-se se também importante elemento na constituição de uma antropologia urbana (MAGNANI, 2000; VELHO, 1980). Ao contrário do que configuram os trabalhos da Escola de Chicago, a antropologia brasileira constituiu-se em uma antropologia na cidade muito mais do que da cidade (MAGNANI, 2000, p. 17), enfocando mais os grupos urbanos que o fenômeno urbano em si. Como nos aponta Eunice Durham, no Brasil, a antropologia urbana se ocupou de “pesquisas que operam com temas, conceitos e métodos da Antropologia, mas que abordam o estudo de populações que vivem nas cidades. A cidade é, portanto, antes o lugar da investigação do que seu objeto” (1997, p. 19).

Subjetividades, observação participante e participação Meu ponto de partida recai sobre as formas de relação que estabelecemos no trabalho de campo a partir da “observação participante” (DURHAM, 1997; MAGNANI, 2000; VELHO, 1980), especialmente no que tange à antropologia brasileira. Assim, é importante ressaltar que “nossa Antropologia” se dá muito mais em contextos caseiros, ou at home (PEIRANO, 1997), e menos exóticos do que as clássicas etnografias preconizavam. Entretanto, continuamos a olhar o outro, agora não tão distante, como nativo e a “observação participante” continua a ser muito mais um observar 9 Tenho consciência de que a “escola de Chicago” é, de fato, mais complexa em suas posturas e métodos que apenas a “observação participante”. Entretanto, isso não se fará como foco desta pesquisa. Alguns textos importantes sobre a metodologia da “observação participante” a partir da Escola de Chicago são encontrados em Becker (1992) e Zaluar (1980). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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estando lá (em nome da objetividade!) (GEERTZ, 1989) do que a conexão entre observação e participação e seus dilemas. Especialmente no contexto brasileiro, a Antropologia tem ampliado suas perspectivas de análise e debruça-se cada vez mais sobre contextos mais próximos, nas cidades (MAGNANI, 2000; VELHO, 1980), indo ao encontro não somente de minorias subalternas (DURHAM, 1997), mas de uma antropologia que se desloca da periferia para o centro das sociedades complexas e que se preocupa com determinadas especificidades ligadas a etnias, a classes, a gerações e a gênero (GROSSI, 1992; BONETTI, 2006). O “trabalho do antropólogo” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000), dado classicamente através da “observação participante”, carrega consigo questões dessa relação (entre “sujeito” e “objeto”, “observador” e “observado”, “pesquisador” e “interlocutor”) que, durante muito tempo, foram omitidas do texto e das reflexões antropológicas. Na contemporaneidade, entretanto, é impossível deixá-las de lado, pois o antropólogo não é refratário a essas significações no campo; antes, elas se dão num contexto de relações de poder, em que o “outro” tem poder e interfere na visão que o antropólogo constrói sobre si mesmo e sobre o objeto (ZALUAR, 1985; LAGROU, 1992). Num sentido foucaultiano, as relações de poder e de conflito em campo, que produzem discursos, construindo não apenas o nativo, mas o antropólogo, conduzem a pesquisa, na medida em que “os ‘nativos’ também decidem o que devemos ouvir e observar” e interferem na “seleção de informantes” (SCHWADE, 1992). No primeiro momento de aproximação, já foi possível perceber que, em minha experiência de pesquisa, a “participação” se daria além de

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uma prática ou um comprometimento para com os sujeit@s de pesquisa. Mas, a participação se daria sobretudo naquilo que Jeanne Favret-Saada denomina “ser afetado” (être affecté), que consiste num “dispositivo metodológico” que permite considerar o caráter epistemológico das situações de comunicação, muitas vezes involuntárias e não intencionais realizadas em campo. Como diz a autora, [...] não pude fazer outra coisa a não ser aceitar deixarme afetar pela feitiçaria, e adotei um dispositivo metodológico tal que me permitisse elaborar um certo saber posteriormente.Vou mostrar como esse dispositivo não era nem observação participante, nem (menos ainda) empatia. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 155)

Assim, Favret-Saada aponta que, na “observação participante” comumente exercida por seus pares, o que “contava” não era a participação, mas a observação. Dessa forma, ao se debruçar sobre a “observação” da feitiçaria, “eles tinham, aliás, uma concepção bastante estreita: sua análise da feitiçaria se reduzia àquelas das acusações, porque, diziam eles, são os únicos “fatos” que um etnógrafo pode ‘observar’” (idem, p.156). A fala do “nativo”, o então “dado”, é “desqualificada” para privilegiar a fala do etnógrafo. A “participação” assume aqui, portanto, um outro caráter que subverte a lógica da “observação participante”: No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o trabalho de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para “observar”. No primeiro caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado; Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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no segundo, arruinado. Embora, durante a pesquisa de campo, não soubesse o que estava fazendo, e tampouco o porquê, surpreendo-me hoje com a clareza das minhas escolhas metodológicas de então: tudo se passou como se tivesse tentado fazer da “participação” um instrumento de conhecimento (p. 157).

A “participação” e o “ser afetada”, entretanto, são evidenciados por Favret-Saada não como uma “operação de conhecimento por empatia”, seja ela entendida como uma forma de “experimentar os sentimentos do outro” ou como uma “identificação” com o “outro”. É, antes de tudo, o aceitar ser afetada que “abre uma comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não” (p. 159). Em minha pesquisa, assumi tal perspectiva, embora não esteja ligada aos rituais de feitiçaria, mas à participação nos cultos de uma igreja inclusiva, onde fui confrontada pela experiência de Favret-Saada em campo, na medida em que, segundo ela, [...] quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois, se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas, se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível (p.160).

É justamente esse deslocamento em campo, que de forma alguma está guiado pelas perguntas (nem respostas) que nos fazemos 287

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a priori, que me desestabiliza e que me faz pensar sobre a experiência que vivenciei com minha pesquisa. Muitas vezes refleti que a única possibilidade de comunicação seria me deixar afetar. Assim como Favret-Saada, escrevi um diário de campo que se centrava na minha comunicação com “os nativos”, que colocava questões importantes para mim desde o início da pesquisa etnográfica, e que se mostrou um instrumento bastante importante para digerir episódios desconcertantes que, pensei, com o passar do tempo e a escrita da tese, se tornariam mais claros (FAVRET-SAADA, 2005). Embora a escrita de um diário de campo não seja uma inovação de Favret-Saada e se constitua numa prática antropológica desde Malinowski, há uma imensa tentativa de objetividade, deixando reflexões sobre as relações estabelecidas em campo ausentes ou à margem do texto etnográfico, isto é, “as sensibilidades não eram consideradas como um dado importante a ser levado em conta na produção do conhecimento” (BONETTI, 2006, p. 2). Na medida em que eu escrevia, “tentar compreender o que queriam de mim” se tornou uma questão angustiante desde minha primeira participação no culto, em que percebi claramente, na pregação, que o pastor “pregava para mim”. Fui surpreendida com a celebração da Santa Ceia (que acontece em todos os cultos) e com o discurso veemente de que esta seria “aberta a todos e a todas” e que aos participantes não caberia ‘fazer desfeita’. Neste primeiro culto, no momento da Ceia, o pastor anunciou o convite de “ousar celebrar a Ceia como Jesus celebrou”, e disse duvidar de que não havia mulheres na Ceia, pois, estas, apesar de “não serem Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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contadas”, eram seguidoras de Jesus. E continuou, “é possível que tenham chegado junto com ele e provavelmente não estavam disputando para ver quem era o maior”, disse ele, com o cálice e o pão erguidos. Após receber a Ceia, as pessoas (eu também) eram acolhidas por um membro (um diácono) que orava com elas, individualmente ou em grupo, abraçados ou de mãos dadas, ou por imposição de mãos. Não me furtei de participar da Ceia, pois achei que seria fundamental ouvir o que diziam, já que, colocada na última fileira de cadeiras, eu pouco conseguia perceber a movimentação que acontecia ali. Entretanto, sobre o momento em que passei pela imposição de mãos, nada declarei em meu diário; apenas me recordo das sensações de desconforto e do calor que senti naquele momento. A partir desse dia, eu ficava ponderando se deveria ou não ter participado da Ceia e, afinal, por que não conseguia transpor aquela experiência para o diário de forma mais “descritiva”. Isso me faz pensar que meu “desarmamento” _ naquele momento _ da postura de “observadora atenta”, para submeterme a uma oração de imposição de mãos, de alguma forma me afetava (FAVRET-SAADA, 2005). Observei (e participei de) rituais importantes para a comunidade, como o “pacto de membresia”10 e a “ordenação de diáconos”, o “batismo”, retiros e cultos especiais e alternei, muitas vezes de forma inconsciente, momentos de maior observação e momentos de participação. 10 O “pacto de membresia” ou “recebimento de novos membr@s acontece depois que o/a frequentador/a da igreja, após um período mínimo de três meses de participação na ICM-SP e do conhecimento da “missão, da visão e dos valores” da igreja (que se dá através do atendimento pastoral, de estudos bíblicos e/ou cursos) decide, por sua vontade, tornar-se membro efetivo da igreja, podendo ser eleito para os ministérios leigos e mesmo ser “consagrado” diácono ao longo de sua trajetória na comunidade. O “pacto”, segundo as minhas observações representa a adesão e o comprometimento com a igreja.

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Esta pergunta angustiante (o que querem de mim?) me acompanhou durante toda a pesquisa de campo e a escrita da tese e talvez seja ela que tenha alimentado essas reflexões. Minha primeira visita à ICM-SP11 foi acertada por telefone e suscitou outro tipo de implicação. Nesse contato, quando me apresentei como antropóloga, imediatamente fui questionada se não conhecia um antropólogo no Rio que também realizava pesquisa sobre uma “igreja inclusiva”. Minha resposta positiva e a indicação de nomes de outros antropólogos, também conhecidos pelo pastor, possibilitaram que neste momento minha presença fosse “bem-vinda”. O pastor não só queria saber se eu conhecia o antropólogo, como tornou importante que eu soubesse que ele também o conhecia12. Enquanto ainda me familiarizava com esta igreja inclusiva, fui interpelada pelo pastor responsável que me convidou a participar, como moderadora, de um seminário sobre diversidade sexual e interreligiosidade, promovido por sua igreja em conjunto com a Prefeitura. Minha atitude corporal diante dele foi extremamente positiva: sorri e acenei com a cabeça positivamente enquanto o ouvia. Entretanto, eu estava com tremendas dúvidas sobre qual seria exatamente o papel de moderadora no evento, e fui questionando-o calmamente. Quando soube que deveria, no final do evento, trabalhar numa espécie de ‘relatoria’, com a função de ajudar a compor a síntese das discussões do seminário e, por conseguinte, o documento formal acerca da “diversidade sexual”, 11 Depois de eu ter frisado, reiteradas vezes, que ICM-SP refere-se à Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo, usarei apenas a sigla ICM-SP, daqui por diante. 12 Para uma interessante reflexão sobre as relações entre pesquisador e interlocutor, na observação participante, ver a coletânea de Becker, 1980. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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fui declinando do convite. O evento contaria ainda com a presença de outro antropólogo (o mesmo sobre quem eu havia sido questionada), na função de moderador, o que me fez pensar se eu estaria disposta a ter, naquele momento, as mesmas implicações que ele, que já havia defendido sua tese e que, por sua vez, era considerado um “aliado” nas questões de diversidade sexual e religiosidade. A posição de “aliada” não foi assumida por mim durante o período de pesquisa; no entanto, minha condição de pesquisadora, seguidamente reafirmada por mim, era gradativamente positivada pel@s membr@s da igreja. Minha resposta negativa dada por e-mail, dias depois, teve como justificativa o fato de que eu estaria num momento muito inicial da pesquisa e, portanto, eu deveria me colocar apenas como “observadora”. Nesse episódio, senti diferentes dimensões dessa implicação que, dependendo da forma como se daria minha posterior participação, poderia trazer novas possibilidades para a minha comunicação com o grupo. No entanto, eu não me senti segura em assumir essa posição. Ser colocada no papel de ‘moderadora’ naquele momento seria, de certa forma, aceitar ser uma ‘desenfeitiçadora’ pelos ‘nativos’ (FAVRET-SAADA, 2005). Além disso, numa situação de observação participante, “qualquer posição tomada ou não” pode ter consequências (VICTORA et al, 2004). E, nesse caso, como me posicionar num caminho que acabava de começar a percorrer? Apesar de ter participado do seminário apenas como “ouvinte”, minha interferência (como pesquisadora) foi solicitada em alguns momentos. Minha presença como pesquisadora foi então 291

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evidenciada e aceita coletivamente e minha performance elogiada entre @s membr@s da igreja. Participar do seminário me possibilitou circular com as pessoas pela cidade de São Paulo, falar sobre seus interesses, “bater papo” e me aproximar de algum@s membr@s para conversas mais pessoais. Através do convívio também foi possível detectar redes de relações e afinidades, fundamentais para compreender a dinâmica do grupo. Mas, claro, outras vezes fui deslocada de “meu lugar” confortável e implicada novamente de uma outra forma. Meses mais tarde, um pastor me contou sobre a “revelação” que teve em um sonho, em que eu, vestida de túnica clerical cinza, celebrava um culto da ICM na cidade de Florianópolis. Sua revelação circulou entre @s membr@s que me abordavam vendo em mim uma “irmã”, que implantaria a igreja em uma nova cidade. Percebi que precisava fazer entender que eu os levava a sério, respeitava-os , mas que “não me via naquele lugar” e estava ali para fazer a pesquisa; seria essa a minha contribuição para o grupo. Essa delicada situação, também descrita, sob outras circunstâncias, por Grossi (1990), em sua pesquisa realizada num convento, revela uma dimensão das pesquisas com grupos religiosos: a expectativa de “conversão” ou de “pertencimento” ao grupo. De fato, tal perspectiva de conversão ao grupo sempre era reiterada nos diálogos que versavam sobre o meu pertencimento religioso; nesse caso, minha trajetória anterior no protestantismo assinalava em muito a possibilidade de que eu me tornasse membr@ da igreja e ainda, que para mim fosse “mais fácil” compreender o que me diziam sobre suas experiências religiosas.

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Se, num primeiro momento, o contato com a ICM-SP se deu por via de sua liderança, nos encontros seguintes (entre março de 2009 e abril de 2010) procurei circular entre @s membr@s; no último, tive um contato intenso com os/as participantes da comunidade. Assim, no período em que realizei observação participante na ICM-SP, minha presença em campo foi sempre bem-aceita, com questionamentos sobre mim e a pesquisa e também com receptividade, embora também tenham ocorrido momentos de extrema tensão e negociação em campo. As impressões sobre mim e os infindáveis “lugares” de onde pude falar e ser levada a falar incidiram sobre a relação entre @s sujeit@s da pesquisa, eu e meus/minhas interlocutores/as (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000) mas, foi (e é) justamente nesses meandros que a Antropologia se torna possível. Esse aspecto é refletido por Miriam Grossi, quando trata das subjetividades na pesquisa de campo, “na busca do outro, encontrase a si mesmo”, diz a autora. E, de fato, as escolhas e os caminhos de cada pesquisador/a “reflete a forma individual e subjetiva do encontro de si mesmo a partir do encontro com o outro” (1992, p.16). Sobre esse aspecto, as reflexões tecidas na tese de Marcelo Natividade (2010) trazem contribuições importantes de como esse encontro de si mesmo acontece a partir de experiências religiosas em campo.

Realidades contemporâneas de pesquisa em sociedades complexas É importante ressaltar que a pesquisa se insere no contexto das sociedades complexas e dos grupos sociais urbanos (OLIVEN, 1987; 293

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VELHO, 1999; MAGNANI, 2000). Mesmo quando pesquisamos grupos sociais próximos, nos quais não é a geografia que estabelece as distâncias e aproximações, podemos nos deparar com os desafios de “estranhar o familiar” e “familiarizar o exótico”, proposta clássica da Antropologia, feita por Roberto Da Matta (1978): estranhar o familiar, o ambiente “igrejeiro”, “os hinos”, as anedotas típicas dos pastores (que nesse espaço eram intimamente ligadas à homossexualidade). Seguindo a proposta de Roberto Cardoso de Oliveira (2000), constatei que “olhar” as pessoas e suas condutas, “ouvir” a pregação, realizar os gestos e circular entre as pessoas nos cultos, seguindo o ritual, muitas vezes exigia um esforço de distanciamento. Nesse exercício de mão dupla, “familiarizar o exótico” tornou-se para mim um desafio delicioso a partir do momento em que me deparei com sujeit@s que brincam numa fluidez entre “femininos” e “masculinos”, como as drag queens do “ministério das drags” (entre as primeiras fileiras da Igreja), o grupo de louvor, que alternava graves e agudos nos louvores, numa referência às cantoras gospel americanas, e @s muit@s sujeit@s que revezam suas vestimentas entre saltos altos, echarpes e coturnos, evidenciando uma complexa diversidade para mim. Conforme diz José G. Magnani, quando trata de Antropologia em meios urbanos, e estendendo a reflexão para toda a disciplina, [...] não é o lado supostamente exótico de práticas ou costumes o que chama a atenção da Antropologia: trata-se de experiências humanas, e o interesse em conhecê-las reside no fato de constituírem arranjos diferentes, particulares – epara o observador de fora, inesperados – de temas e questões mais gerais e comuns a toda a humanidade (MAGNANI, 2000, p. 21). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Nesse sentido, Magnani afirma que mesmo a Antropologia “na floresta ou na cidade, na aldeia ou na metrópole” não pode deixar de lado o “caráter relativizador” dado pela presença do “outro”. Portanto, é através desse “jogo de espelhos” no qual a própria imagem é refletida através do “outro” que o/a antropólogo/a “orienta e conduz o olhar em busca de significados; ali onde, à primeira vista, a visão desatenta ou preconceituosa só enxerga o exotismo, quando não o perigo, a anormalidade” (MAGNANI, 2000, p. 21).

A observação ao avesso: questões de gênero e sexualidade Também eu fui observada desde o primeiro momento de pesquisa; recordo que, quando fui para o meu primeiro culto, acompanhada de uma prima (que insistiu em ir comigo nesta primeira visita e lá permaneceu), sentamos na penúltima fileira; eu observei a movimentação, os cumprimentos, as conversas, os olhares e acenos em minha direção. As pessoas, em sua maioria, estavam dispostas em casais, o salão estava quase cheio; deveria haver umas quarenta pessoas. O primeiro hino parecia ter a intenção de integrar as pessoas e dizia “como é bom ter os irmãos em comunhão [...] aperte a mão de seu irmão e dê um sorriso pra ele”. Íamos fazendo o que a música indicava, fui circulando entre o lado direito das fileiras de cadeiras cumprimentando as pessoas, assim como minha prima o fez. A essa altura, eu percebi que a presença de minha prima ao meu lado fazia com que fôssemos interpretadas como um casal de mulheres, o que, de certa forma, teria permitido que a minha presença “estranha” não fosse tão notada, já que o pastor em nenhum momento mencionou nosso comparecimento ao culto. A menção à minha presença só aconteceu alguns meses mais 295

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tarde, num agradecimento público pelo meu interesse de pesquisa. O fato de ser percebida como mais um casal também me fez pensar acerca das negociações que eu teria de empreender nas próximas visitas, nas quais eu iria me apresentar paulatinamente às pessoas como antropóloga, e mais adiante como heterossexual, casada e mãe - e quais implicações destas características de gênero iriam constituir minha relação com as pessoas estudadas, temática abordada por várias autoras na coletânea organizada por Alinne Bonetti e Soraya Fleischer (2007). Na medida em que sabiam e questionavam sobre minha vida pessoal, tornava-se cada vez mais claro que “o mito do antropólogo assexuado” não se sustentaria. Eu me esforçava para não “aparecer” e não trazer elementos que pudessem chamar a atenção, nas vestimentas, na fala e mesmo na minha própria postura corporal. Mas essa estratégia, identificada por Grossi, na tentativa de esconder os atributos de gênero “sob a capa de um terceiro gênero, nem homem, nem mulher, mas um ser neutro e assexuado” (GROSSI, 1992, p.13), parecia não funcionar, já que inúmeras vezes fui questionada sobre estes aspectos: “O seu marido não liga de você estar aqui?”; “O que ele acha de seu trabalho?”; “Quem cuida do seu filho?”; “Está tão tarde. Você não tem medo de andar assim com a gente?”. Interessante que, embora dirigidas a mim, nas perguntas a agência do sujeito em questão era sempre reservada a alguém, neste caso, meu companheiro, revelando aí concepções de gênero bastante conservadoras e pautadas pela lógica heteronormativa, mesmo entre homossexuais Como afirma Alinne Bonneti (2006), esta estratégia do “antropólogo assexuado” “parece ser posta em ação como uma forma de Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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proteção aos possíveis riscos advindos do imaginário acerca de mulheres viajando sozinhas, longe das suas redes de parentesco e do seu cotidiano”, mas não se sustenta. E, mais, pode esconder aspectos significativos das subjetividades em campo e ainda importantes reflexões sobre representações de gênero e sexualidade, advindas dessas interações entre @s sujeit@s de pesquisa — eu e meus/minhas interlocutores/as. No primeiro retiro do qual participei, junto com meu marido e meu filho, enquanto auxiliava nos preparativos para o Show de talentos que aconteceria à noite, fui interrogada. Durante o tempo em que enchíamos balões, um homem gay, com mais de quarenta anos, fazia comparações entre estes e formas do órgão sexual masculino, causando risos entre as pessoas presentes. Eu evitava rir, apenas enchia os balões e observava, quando fui interpelada por ele com um “Você é entendida?”, ao que respondi: “Entendida em quê?” (simulando não compreender que a categoria utilizada era uma referência a lésbicas, especialmente usada nos anos 1970). Todos riam, quando um rapaz logo acionou: “Você não viu que o marido dela e o filho estiveram aqui?”. Ele rapidamente retrucou: “Mas isso não quer dizer nada”. Todos riram novamente e alguns me disseram “Não liga não, ele é assim mesmo”. Meu silêncio, ao mesmo tempo em que reforçava a imagem de esposa e mãe, possibilitava o questionamento sobre a minha própria sexualidade e uma expectativa de que eu fosse lésbica. Das dezesseis entrevistas realizadas, apenas três foram com mulheres lésbicas e uma com uma travesti, embora eu tenha pretendido inicialmente realizar ao menos seis entrevistas com mulheres, pois achava que seria um número mínimo necessário para ter dados comparativos

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com as entrevistas de homens gays. Como disse anteriormente, a frequência de mulheres na ICM- SP no início do campo era pequena, elas assumiam pouco lugar de destaque e as frequentadoras eram em sua maioria casais lésbicos que participavam juntos nos cultos. Um casal de mulheres que eu pretendia entrevistar se mostrou muito desconfiado quanto ao propósito da minha pesquisa. E, apesar de termos travado diferentes diálogos durante o campo, as conversas eram todas superficiais e não traziam elementos significativos de sua trajetória e vivência na ICM-SP. Numa certa ocasião, quando fui marcar uma data para a entrevista, uma delas comentou que uma pesquisadora esteve na Igreja durante um tempo e depois que “pegou” uma participante da igreja “nunca mais apareceu”. Insisti nessa entrevista por duas vezes, sem sucesso. Elas se dispuseram a conceder entrevista via MSN, o que nunca se realizou. Nossos poucos contatos por esse meio se resumiam a frases rápidas e logo havia uma rápida mudança do status para ocupado ou offline. Entretanto, nas ocasiões em que estive acompanhada nos eventos da Igreja por meu marido, elas foram extremamente receptivas. Noutra ocasião, quando eu participava, pelo segundo ano, do Retiro de Páscoa da Igreja (2010), uma jovem mulher lésbica me contou que a minha participação no primeiro retiro, em 2009, que ocorreu no início do campo e antes das entrevistas, chamou muito a atenção das mulheres que desejavam saber “qual era a minha”. Esse fato foi amplamente debatido no dormitório e, na ocasião, como meu esposo e meu filho pequeno haviam permanecido no local do retiro por algum tempo, as mulheres do dormitório levantaram algumas hipóteses sobre nosso interesse em estar ali: que estaríamos interessados em realizar troca de casais, que meu esposo seria voyeur e apreciava ver sua mulher Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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se relacionando sexualmente com outras mulheres, que éramos um casal “de fachada” e que, portanto, eu seria lésbica e ele gay e, finalmente, que éramos um casal “hétero normal”. Como a jovem mesmo disse “de boa”, foi incumbida de descobrir o motivo de nossa presença e, por isso, na ocasião, tinha passado muito tempo conversando com meu companheiro, falando de Florianópolis, sobre nosso filho e também sobre a minha pesquisa. Rindo-se muito, disse que as mulheres ficaram decepcionadas com o seu parecer de que nós éramos “um casal hétero normal” e que aos poucos foram conversando entre si e com quem me conhecia e sabendo mais da pesquisa. Interessante é que essa interlocutora me contou isso apenas um ano após o ocorrido — quando eu estava sozinha, no segundo retiro — e depois que já havíamos estabelecido relações mais próximas na pesquisa, pois eu a entrevistara seis meses antes dessa conversa. Diante das dificuldades em pesquisar um universo LGBT sendo uma mulher heterossexual, eu tinha as opções de desistir das minhas investidas diante das dificuldades ou encará-las como objeto de reflexão. Optei por esta última posição, também adotada por outras pesquisadoras, como Nádia Elisa Meinerz (2007) e Larissa Pelúcio (2007), o que me permitiu prestar mais atenção nas subjetividades e na complexidade de fazer reflexões sobre as relações estabelecidas na etnografia em pesquisas sobre gênero e sexualidades. Portanto, não me tornei refratária às questões subjetivas que vivenciei em campo e, na medida em que venci as dificuldades de me deixar afetar, novos aprendizados se tornaram possíveis.

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sério

Algumas considerações: “sujeitos analisantes” levados a Certa vez, enquanto eu aguardava o início do culto, na última

fileira de cadeiras do templo e bem próxima à entrada, ouvi um nome familiar e lembrei que minha orientadora comentou que conhecera um diácono da ICM num evento acadêmico. Eis que o chamei e perguntei: Você é o fulano? Ele respondeu que sim, o fato de conhecer minha orientadora criou um vínculo de confiança. Nesse momento lembrei que, apesar de não nos ‘conhecermos’, já havíamos “compartilhado” uma experiência. Na minha primeira incursão a essa igreja (narrada antes, no episódio da Ceia), o ritual de oração e imposição de mãos fora realizado pelo diácono em questão. Esse flash-back passou por minha cabeça em segundos e, acredito, aproximou-nos num diálogo. Ele contou rapidamente sobre sua trajetória por diferentes igrejas e sobre sua descoberta pela ICM ter se dado pelo “lado negativo”13, de ter sido justamente isso que o chamou a atenção. Ativista LGBT, pós-graduado e leitor assíduo de Foucault, esse “sujeito analisante” (ROSALDO, 1993) me interpelou para discutir teoricamente as questões de poder e de discurso; eu simplesmente o ouvi, temendo, naquele momento, atropelar, com minhas implicações teóricas, a fala de meu interlocutor (ou de ser confrontada teoricamente por ele?!). Mas, ao me esquivar, deixei de ser interpelada por ele e por sua teoria, não me permiti ser afetada. Para Rosaldo, os pesquisadores em Ciências Sociais 13 Na ocasião, ele disse que o que havia lhe chamado a atenção, eram as frequentes falas de pessoas conhecidas com respeito à ICM, caracterizando-a como uma Igreja “promíscua”, “libertina”, que “mexe com coisas do candomblé” e segundo ele, foi isso que o interessou. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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[…] must take other people’s narrative analyses nearly as serious as “we” take our own. This transformation of “our” objects of analysis into analyzing subjects most probably will produce impassioned, oblique challenges to the once-sovereign ethnographer. Both the content and the idioms of “their” moral and political assertions will be more subversive than supportive of business as usual. They will neither reinforce nor map onto the terrain of inquiry as “we” have known it. Narrative analyses told or written from divergent perspectives, as I have said, will not fit together into a unified master summation. (ROSALDO, 1993, p.147).

Os “objetos” de análise passam, então, a ser “sujeitos analisantes”, críticos que interrogam os etnógrafos – seus escritos, sua ética e sua política14. Como podemos notar, em contextos cada vez mais complexos, onde acontecem disputas de diferentes ordens (políticas, econômicas, sociais e culturais), entre múltiplos atores sociais, o antropólogo em campo se torna também ator nesse jogo de relações e nem sempre sua posição é facilmente tomada ou “identificada”. De forma geral, em contextos mais ou menos “políticos”, a observação participante em si nos implica. Isso não que dizer que a empatia seja fundamental para nossas incursões e interpretações antropológicas (GEERTZ, 2001), nem mesmo que sejamos simpáticos, entusiastas ou favoráveis às posições, práticas, aos desejos e ambições dos sujeit@s com os quais nos relacionamos em campo (DEBERT, 2004). Isso 14 Tradução e interpretação livre de: “Social analysis must now grapple with the realization that its objetcts of analysis are also analyzing subjetcts who critically interrogate ethonographers - their writtings, their ethics, and their politics”. (ROSALDO,1993, p. 21)

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significa dizer que nos inserimos num contexto comum, e colocamo-nos no mesmo tempo social e por isso somos interpelados pelas demandas políticas, simbólicas e afetivas desses sujeit@s (ALBERT, 1995), seja na posição reconhecida de antropólogo ou nas diferentes formas como essa posição possa ser significada em campo15. Todos esses “episódios” narrados por mim neste capítulo, longe de serem anedóticos ou constituírem parte de subjetividades que devam ser retiradas do texto ou das análises que compõem o texto etnográfico, são, antes de tudo, fundamentais componentes da relação “observação participante”, entendida com as suas devidas ressalvas (ALBERT, 1995; FAVRET-SAADA, 2005). Eles refletem, principalmente, as implicações do antropólogo como pesquisador e sujeito nessa relação com outros “sujeitos analisantes” (ROSALDO,1993). Inspirada em Sherry Ortner (1996, 2007), acredito que reconhecer a “agência” dos sujeit@s é, antes de tudo, como enfatizam Luis Roberto Cardoso de Oliveira (2004: 36) e Renato Rosaldo (1993, p. 207), poder “levá-los a sério” da mesma forma como Favret-Saada fez em sua “participação”. Foi somente através dessa comunicação ética entre subjetividades (objetivadas, é bem verdade) que pude, como antropóloga, ser também levada a sério por aqueles com os quais pesquisei. E isso, longe de tornar a pesquisa antropológica menos refletida (ou reflexiva) do ponto de vista ético, teórico e metodológico, pode tornar-se fundamental para a reflexão das condições de construção do próprio conhecimento. 15 Sobre as diferentes formas como o antropólogo pode ser significado em campo e reflexões sobre o tema ver CARDOSO DE OLIVEIRA, 2004; ZALUAR, 1985. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Através dessa perspectiva construí meu trabalho de pesquisa e pude tecer algumas reflexões teórico-metodológicas fundamentais, ainda que não exaustivas, que compartilho neste artigo. Entendo que tais reflexões poderiam assumir um desenvolvimento e adensamento a ponto de forjarem em si mesmas uma tese. Entretanto, o artigo cumpre seu objetivo na medida em que me situa e insere minha perspectiva no contexto maior dos objetivos da pesquisa, possibilitando dessa forma o entendimento de como se estabeleceram reflexivamente as relações em campo e a construção dessa etnografia, pois, como salienta Rosaldo, Throughout, I have stressed, first, that the social analyst is a positioned subject, not a blank slate, and second, that the objects of social analysis are also analyzing subjects whose perceptions must be taken nearly as seriously as “we” take our own (1993, p. 207).

Partindo também dessa perspectiva, toda antropologia é implicada, na medida em que não se pode entender a Antropologia como estritamente acadêmica; pensar em tais termos é esquivar a Antropologia de refletir a sua prática e, dessa forma, incorrer em desleixos éticos ou, ao menos, deixar de refletir sobre as implicações do trabalho do antropólogo. Localizo o termo “implicada” na proposição epistemológica de Albert (1995), acenando como uma possibilidade reflexiva para a Antropologia como um todo, e não apenas para aquela voltada para os povos indígenas ou as minorias. Reconheço que há diferentes posições sobre uma aplicabilidade da Antropologia, como evocado acima, através das mais variadas formas de nomear a prática antropológica. Tendo, no entanto, a preferir compreender nossa disciplina como implicada num sentido amplo, 303

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por isso a posição de uma antropologia implicada nos termos de uma “participação observante” (ALBERT, 1995) toma para si questões políticas, mas vai além destas, pois desloca o lugar de “observador” independente da realidade política e social que observa. Assim, coloca a participação do antropólogo no próprio campo, como objeto de reflexão antropológica. Nas palavras de Albert, […] le grand mérite de l’anthropologie impliquée’ est sans conteste, au delà de son évidente pertinence éthique et politique, de contribuer à dissoudre la sempiternelle opposition entre anthropologie théorique et anthropologie appliquée au profit de l’idée, infiniment plus attractive et productive, d’une recherche anthropologique fondamentale intellectuellement et socialement investie dans la situation historique des sociétés qu’elle étudie et susceptible de mobiliser ses compétences en faveur de leur conquête de l’autodétermination. (1995, p.118)

Pensar toda antropologia como implicada é, antes de tudo, rever posições de sujeito e objeto como agentes em relação, nos termos de Sherry Ortner (1996), para quem uma teoria orientada para a prática oferece uma forma de destacar a intencionalidade, os desejos e as posições dos sujeit@s (ora objetos) na complexa rede de relações sociais da qual, acredito, o antropólogo também é parte16.

16 Um aspecto importante para a Antropologia Feminista (na qual também insiro Ortner) é a problematização das relações de poder inerentes à situação etnográfica. O ponto central dessa mudança parece estar na atenção ao posicionamento de pesquisadores em campo e nas relações de poder envolvidas, seja na definição da relação de pesquisa, seja na troca desigual que se estabelece entre pesquisador/a e pesquisado/a, na possível exploração do pesquisado. Com respeito a essa relação entre Antropologia e feminismo, ver BONETTI e FLEISCHER (2007). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Para os antropólogos, segundo Albert (1995), a Antropologia implicada traz a possibilidade de subverter a mitologia cientificista da “observação participante”, trazendo novas perspectivas teóricas, ao abrir a análise antropológica para o contexto político e histórico. Ceci est également vrai sur le plan de la construction de l’objet où ‘1’anthropologie impliquée’ induit, par ailleurs, un véritable changement de focale en relation à la configuration et à la temporalité des espaces sociaux considérés”. La fiction du cadre monographique et celle du présent ethnographique y deviennent impossibles à maintenir. (p. 117).

Assim, uma pretensa separação entre uma antropologia estritamente acadêmica e uma antropologia prática só nos leva a, por um lado, deixar de refletir sobre as implicações que as teorias e etnografias produzidas por nós têm nos contextos sociais e políticos a partir dos quais foram produzidos e também a esquivar-nos da responsabilidade sobre a nossa produção escrita e de sua divulgação em termos éticos, políticos e sociais. Por outro lado, a militância por si, sem reflexões consistentes sobre sua própria prática, acaba por não promover meios de regular essa mesma prática por meio da constante reflexão com seus pares. Ainda não posso mensurar as reais implicações que a pesquisa realizada terá para a ICM-SP, mas, definitivamente, sei que estou comprometida com o grupo e disposta a refletir com eles sobre aquilo que minha experiência produziu.

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uma interpretação do discurso conservador de José de Alencar1 David Simões2

Resumo Este artigo propõe uma interpretação da obra política de José de Alencar a partir das suas Cartas de Erasmo. Escritas pelo romancista nos anos 1860, as Cartas são um importante elemento analítico das concepções e da prática política de seu autor. Como se verá, elas fortalecem um discurso conservador já existente e podem ser tomadas como chave de leitura para a compreensão do retorno dos Saquaremas ao poder em 1868, marco na política imperial. Palavras-chave: José de Alencar. Cartas de Erasmo. Século XIX. Pensamento conservador brasileiro.

Abstract This article proposes an interpretation of the political work of José de Alencar, from his Cartas de Erasmo(Letters of Erasmus). Written by the novelist in the 1860s, the letters are an important element of analytical concepts and political practices of its author. As we shall see, they strengthen a conservative speech already existed and can be taken as key for the understanding of the return of Saquaremas to power in 1868, milestone in imperial politics. Keywords: José de Alencar. Letters of Erasmus. 19th century. Brazilian conservative thought. 1 Agradeço aos pareceristas pelas contribuições e críticas, bem como a José Henrique Artigas de Godoy, a quem dedico este artigo. 2 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba – simoes.dsoares@ gmail.com Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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“Ante o povo, como ante o imperador, sempre Erasmo; sempre a verdade e nada mais do que a verdade (José de Alencar, Ao povo, Cartas Políticas de Erasmo, 1866b, p. 7).

Introdução Alguns intérpretes do Brasil apontaram o ano de 1868 como um marco na política imperial brasileira. O Gabinete Liberal3 liderado por Zacarias de Goes e Vasconcelos foi substituído pelo Gabinete Conservador do Visconde de Itaboraí, dando fim ao predomínio da Liga Progressista, que perdurava desde 1862. Ao que parece, não se tratou apenas de mais uma troca ministerial promovida pelo Imperador através dos atributos de seu poder exclusivo – o Poder Moderador –, mas configurou uma nova fase da política imperial. A troca ministerial foi seguida pela dissolução de uma câmara predominantemente liberal que, feitas novas eleições, transformou-se em unanimemente conservadora. É famosa a apreciação do senador Nabuco de Araújo sobre esses fatos: Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo; –o Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; essa pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país (NABUCO, 1897, p. 124).

Segundo Oliveira Viana (2004), esse episódio, ao mesmo tempo

3 Os Gabinetes Ministeriais eram o elemento institucional do Poder Executivo no regime Imperial. De praxe, o Imperador escolhia alguém para chefe do Gabinete e este seria responsável por compor com homens do seu Partido as pastas dos Ministérios. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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em que marcou a volta dos conservadores ao Ministério, deu também origem a uma fragilização das instituições monárquicas. A partir daí, não demoraria a ocorrer o ocaso do Império. Para ser satisfatoriamente entendido, tal retorno dos conservadores deve ser relacionado diretamente à Política da Conciliação iniciada em 1853, pelo Marquês de Paraná. Foi dela que partiu o esforço para remodelar a composição partidária de anos anteriores, numa tentativa de amortecimento das paixões políticas entre liberais e conservadores. Talvez isso, por um lado, tenha feito com que os saquaremas caíssem no ostracismo político. Por outro, como será destacado, foi da crítica ao modelo político inaugurado com a Conciliação que germinou a volta desses mesmos conservadores, quinze anos depois4. Interessante também o fato de que na composição do Gabinete conservador que se ergueu em 1868 encontrar-se a figura de José de Alencar. O fim da solução conciliatória marcou o ápice da sua carreira política, como Ministro da Justiça. A nosso ver, Alencar constituiu peça chave na retomada conservadora de 1868, particularmente, por sua atuação política nos anos 1860, através das Cartas de Erasmo (18651868). Através delas, o literato tornava públicas as suas ideias políticas e construía postura crítica no interior do cenário político imperial a partir da elaboração de um discurso conservador peculiar. Num momento marcado pelo predomínio político liberal (progressista), podemos considerá4 Sobre esse período de quinze anos, defende-se que, apesar da existência de gabinetes de feição mais conservadora, a exemplo do Gabinete 2 de março de 1861, liberado por Caxias, em sentido estrito, apenas em 1868 os saquaremas retornam ao poder. Isso porque os seus mais ilustres representantes expressos na famosa trindade – Uruguai, Euzébio e Itaboraí – fizeram questão de se afastar dos governos fomentados pela Conciliação, a partir de 1853.

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las como instrumentos de estratégia política de um representante da linhagem ortodoxa do Partido Conservador. Na tentativa de promover uma análise mais acurada sobre as Cartas de Erasmo e, consequentemente, uma aproximação do discurso conservador de Alencar, o presente artigo se divide em duas partes. Na primeira, traça-se um esboço geral das cartas, apresentando os temas centrais de discussão e os conceitos que permearam a argumentação de Erasmo. Na segunda parte, o foco recai sobre a construção da crítica de Alencar ao período da Conciliação (entre 1853 e 1868) e a sua imediata identificação com os conservadores saquaremas, presente nas Cartas. Analiticamente, consideramos estas últimas como elementos constitutivos da prática política do literato, bem como componente necessário à compreensão daquilo que José Murilo de Carvalho (2007) chamou de segundo regresso conservador, em 1868.

Cartas de Erasmo: temas e conceitos Foram seis os títulos publicados por José de Alencar com a assinatura de Erasmo: Ao imperador, cartas (1865); Ao povo, cartas políticas de Erasmo (1865-1866); Ao redator do Diário (1866); Ao Visconde de Itaboraí: carta de Erasmo sobre a crise financeira (1866); Ao Marques de Olinda (1866); e Ao Imperador, novas cartas políticas de Erasmo (1867-1868). Segundo José Murilo de Carvalho (2009), a assinatura Erasmo, proposta por Alencar, fazia referência ao humanista Erasmo de Roterdã (1467-1536), talvez por sua tentativa de aconselhar o Imperador, assim como havia feito o primeiro Erasmo em A educação de um príncipe cristão (1516). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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As Cartas de Erasmo fazem parte da obra política de Alencar, juntamente com o livro O sistema representativo (1868), os discursos parlamentares e alguns outros escritos5. O conteúdo das Cartas de Erasmo era essencialmente político e se coadunava com os temas do debate político do período em questão: a emancipação, a relação entre os poderes e os atributos do Poder Moderador, a representação política, o sistema partidário, a guerra do Paraguai, a crise financeira, etc. Apesar de independentes entre si, as Cartas podem conformar um conjunto unitário, uma vez que versam sobre um mesmo tema central: a situação de crise social e, acima de tudo, política que abatia o Império. A crise foi apontada por Alencar como um dado da realidade e constituiu indicação presente em todas as suas Cartas. Tratava-se de uma crise generalizada, cuja causa era essencialmente política e cujos efeitos se estendiam aos costumes e às instituições: “É a depravação do organismo político, de que resultou o amortecimento das crenças, a extinção dos partidos, e a corrupção espantosa tanto do poder como da opinião” (ALENCAR, 1865, p. 41). Por vezes, encontramos o romancista referindo-se a um decênio fatal. Isso nos leva a crer que as origens degenerativas do período em 5 Apesar do recorte bibliográfico, defende-se aqui a percepção de que Alencar possuiria um projeto para pensar o Brasil que se expressaria na confluência de toda sua obra, em suas três vertentes: o romance, o teatro e a política, cada uma como uma missão particular. Os romances estariam preocupados com a construção de um amálgama social e o fortalecimento de um sentimento de nacionalidade (daí os romances de fundação como O Guarani e Iracema); as peças de Alencar teriam como principal foco a moralização da sociedade da Corte, capital do Império (daí o seu impulso para o teatro ter sido o de tentar fazer rir sem fazer corar); e as obras e a atuação políticas do literato estariam voltadas, proeminentemente, para a defesa da monarquia representativa e de suas instituições (daí a recorrente defesa dos preceitos da Constituição de 1824 presentes nos escritos e discursos políticos).

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questão se localizavam, para ele, no Gabinete do Marquês de Paraná (1853-1857), Honório Hermeto Carneiro Leão. Elemento significativo se levarmos em conta que a atuação de Paraná deu início à Política de Conciliação e suas consequências atingiram diretamente o sistema partidário imperial. Note-se também que, em 1855, exatamente dez anos antes de Alencar começar a escrever as Cartas de Erasmo, instituiuse uma reforma eleitoral através da primeira Lei dos Círculos. Devemos lembrar ainda que os primeiros anos da década de 1850 foram marcados pelo predomínio político do Partido Conservador (o Ministério de 29 de setembro de 1848 foi composto, por exemplo, pela trindade saquarema – Visconde de Itaboraí, Visconde do Uruguai e Euzébio de Queiróz). Datam desse período o fim o tráfico de escravos, a regularização das terras e os primeiros incentivos à imigração estrangeira. O cenário do Império do Brasil se modificava. Tornavam-se mais eficazes o transporte e o sistema bancário com o intuito de aproveitamento da alta do café nos mercados internacionais. O clima era de tranquilidade, de estabilidade política e financeira. Além disso, muitos dos antigos capitais que eram destinados ao tráfico passaram a ser aplicados na Corte, principal centro urbano e administrativo do Império. O que afetava Alencar era o fato de que tais expectativas de melhoramentos do país haviam se desvanecido e agora parecia ganhar fôlego a bancarrota do Império. Encontrava-se este, de um lado, quanto à política externa, envolvido e corroído pela Guerra do Paraguai, que se acreditava que fosse logo posta a termo; do outro, internamente, marcado pelo amortecimento dos partidos políticos imperiais proeminentes – Liberal e Conservador –, pelas constantes acusações do falseamento

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do sistema representativo, por uma crise financeira que se estendia desde finais dos anos 1850 e, não menos importante para Alencar, pela condescendência do Imperador ante essa situação, a inatividade política do povo e a corrupção da camada política dirigente. Em 1866, Erasmo escreveu uma carta Ao redator do Diário (do Rio de Janeiro), – jornal da Corte no qual José de Alencar havia trabalhado dez anos antes. Nela, procurou esclarecer porque endereçou suas primeiras cartas ao monarca brasileiro e a forma através da qual fez isso, uma vez que o haviam acusado de absolutista. Sua argumentação se assentou na Constituição de 1824. Em nítida alusão a Montesquieu, Alencar afirmou que, “na constituição aparecem bem distintos os três princípios cardeais da monarquia representativa; a Coroa, o povo e o elemento intermediário ou misto, que em falta de melhor termo chamo aristocrático” (ALENCAR, 1960, p. 1110-1111)6, de modo que, funcionando conjuntamente, esses três princípios constituiriam as engrenagens da vida política do país. Emperradas, tais engrenagens necessitavam de um impulso para que voltassem a funcionar corretamente. Daí se voltar ao Imperador. Isso porque, para ele, naquele momento, nem o povo, que estaria em um estado de inatividade, e nem o elemento aristocrático, em decomposição, seriam capazes de tal feito. Restou o apelo à Coroa. Coincidentemente ou não, o literato também escreveria uma 6 A elaboração de Alencar parece aproximar-se da de Montesquieu “apenas” pela lógica da argumentação, uma vez que identifica os princípios que regem a monarquia representativa brasileira e defende o seu fiel funcionamento, destacando, inclusive, as causas da corrupção do modelo político. Sintomático é o fato de não citar Montesquieu em sua obra política mais sistemática, O sistema representativo (1868). Daí tratar-se, nesse caso, somente de uma alusão a Montesquieu. Além do que, em termos de conteúdo, Alencar dialogaria mais diretamente com outros pensadores da teoria política, como Stuart Mill, Benjamin Constant e Tocqueville.

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série de cartas ao Povo e cartas destinadas particularmente a líderes políticos proeminentes, os quais comporiam essa classe aristocrática. Conclamaria assim, não apenas a Coroa, mas a todos os elementos essenciais à vida política da monarquia representativa brasileira, na tentativa de regenerá-la. Dessa forma, Alencar justificava não apenas o conteúdo, mas o destinatário de suas cartas7. A conclamação foi aberta ao público. A notoriedade do remetente, um consagrado romancista, a ousadia na escolha dos destinatários, o Imperador ou o Povo, acompanhadas pelo tipo de publicação, como afirmou José Murilo de Carvalho, “um meio rápido, barato e eficiente de comunicação” (CARVALHO: 2009, p. IX), fizeram das Cartas de Erasmo um alvo fácil para o público leitor da época. Raimundo de Menezes, em sua biografia sobre José de Alencar, destacou que não havia quem não as lesse com o maior interesse (MENEZES, 1977, p. 218), inclusive o próprio Imperador Pedro II. Não demorou muito para que seus críticos se pronunciassem. O próprio Alencar fez um breve realce sobre os críticos de suas primeiras cartas na missiva ao redator do Diário do Rio de Janeiro. De São Paulo ou da Bahia, eles apontavam um tom cortejador nas palavras de Erasmo dirigidas ao monarca brasileiro. Houve até resposta direta às Cartas de Erasmo, escrita também em forma de carta, por Eduardo de Sá Pereira, sob o pseudônimo de Scaliger, intitulada Resposta à primeira carta de Erasmo a S.M. o Imperador. Em todos esses casos, a acusação de absolutista prevaleceu.

7 Um pequeno roteiro das Cartas também é apresentado em discurso de 5 de agosto de 1871 (ALENCAR, 1977, p. 636). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Importante lembrar que o tema sobre a natureza do Poder Moderador estava na pauta de discussão do debate político da época. Em 1862, o Visconde do Uruguai, um dos líderes saquaremas, publicou o Ensaio sobre o direito administrativo (2002), livro que reavia a obra centralizadora dos anos 1840 e que, dentre seus temas, tratava do Poder Moderador. Num diálogo direto com Uruguai, Zacarias de Goes e Vasconcelos, líder progressista, publicou em segunda edição, no mesmo ano, o livro Da natureza e limites do poder moderador (1862), defendendo a tese segundo a qual, o rei reina e não governa. São duas vertentes distintas de interpretação dos atos do Poder Moderador. Como observou José Murilo de Carvalho (2009), uma vertente conservadora que se prendia à letra da Constituição de 1824 e prezava pelo arbítrio do Imperador no uso das suas atribuições sem referendas de ministros e a outra vertente liberal, a qual, partindo também do texto constitucional, defendia a interpretação segundo a qual os atos do Poder Moderador deveriam ser referendados pelos ministros, numa postura de caráter parlamentarista. Sendo assim, o apelo de Erasmo ao Imperador deve ter soado aos ouvidos dos adeptos da vertente liberal e críticos das intervenções do monarca na política imperial como protesto absolutista. Observamos em suas primeiras cartas ao Imperador que, para ele, o monarca estava numa posição privilegiada e poderia reverter a situação de crise dando impulso às outras engrenagens da monarquia representativa: o povo e a aristocracia. Posição que se renovaria em 1867, nas Novas Cartas Ao Imperador. Além do quê, segundo ele, uma vez armado com a verdade, seria mais fácil encontrar audiência numa razão reta e lúcida, a própria cabeça da nação, o Imperador (ALENCAR,

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1960, p. 1111). Defendendo a posição tomada na carta de 16 de janeiro de 1866, afirmou: É para estas graves crises que a constituição armou o monarca também de uma ação impulsora, capaz de restaurar o sistema. ‘Quando as molas desarranjadas se chocam, embatem e travam, é necessária uma força que as reponha em seu lugar’ diz B. Constant, atribuindo ao poder real a ação preservante e reparadora. (T. de Política – cap. 2.º) (ALENCAR, 1865, p. 64).

Percebe-se que a nota tônica seria o real cumprimento da Constituição Imperial e, para isso, Erasmo apelou não apenas para a letra da Carta Magna, numa interpretação que pode ser considerada como literal, mas para o Tratado de Política Constitucional de Benjamin Constant, aquele que foi um dos fundamentos teóricos da elaboração constitucional de 1824. Observa-se como existiria aí uma apropriação do discurso de Constant para um fim ideológico conservador. O mais intrigante é que Alencar, apesar de tais pressuposições, afirmou ser adepto do axioma “o rei reina e não governa” (ALENCAR, 1865, p. 49), o que parece contraditório, uma vez que era defensor de um discurso conservador. Assumindo, portanto, um caráter ideológico, Alencar parece defender a validade de apenas uma interpretação da Carta de 1824, estrategicamente, contra as posições liberais: o Poder Executivo, o ato de governar, caberiam plenamente aos ministros do Império, sendo o Imperador “apenas” o chefe do Poder Executivo (art. 102.), numa espécie de título e nada mais. Assim, os ministros deveriam ser responsáveis pelos atos do Executivo, de forma que o monarca não deveria nele intervir e nem atuar a partir dele. Quanto ao Poder Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Moderador, o Pedro II seria seu portador exclusivo e através de suas atribuições velaria sobre a harmonia dos demais poderes, não cabendo aí, a referenda dos ministros, como queria, por exemplo, Zacarias. Na argumentação de Erasmo, o Moderador e o Executivo estariam, assim, nitidamente separados. Finalmente, a respeito do lugar do Moderador nas engrenagens da monarquia constitucional, Alencar afirmaria que ele “se exerce em um espaço superior, intermédio entre a constituição, soberania escrita e anterior, e o voto, soberania latente e atual” (ALENCAR, 1865, p. 64). É como se o Imperador encarnasse em si parte da soberania nacional e, sendo inviolável e irresponsável, funcionaria como freio e marcha das outras engrenagens políticas, o povo e a aristocracia. Argumento que poderia sugerir uma aproximação entre Alencar e o Marquês de Caravelas (José Joaquim Carneiro de Campos), constituinte de 1823, cuja caracterização do Poder Moderador, de acordo Christian Lynch (2005), seria “um poder de exceção a serviço da salvaguarda do sistema constitucional” (LYNCH, 2005, p. 632). Bernardo Ricupero (2004), seguindo a crítica levada a cabo pelos contemporâneos de Alencar, também viu na postura do romancista em suas primeiras cartas ao monarca, um sentido absolutista. Segundo ele, Erasmo atribuiu um caráter sagrado ao Poder Moderador. Talvez Ricupero tivesse em mente, por exemplo, o trecho a seguir, da VII carta da primeira série ao Imperador, datada de 7 de janeiro de 1866: Situado na cúpula do sistema, neutro e inacessível, o monarca, poder nacional, plaina sobre os outros, meros poderes políticos. Ele não exprime somente, como a legislatura, uma delegação da soberania; exprime um depósito permanente e sagrado. O 321

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imperador é mais do que o primeiro representante da nação; é o seu defensor perpétuo, o magistrado supremo do estado. Chamo-o [o imperador] poder nacional para significar a quase comunidade em que se acha com a nação. Nele reside uma parte da soberania popular, que isolou-se em princípio e se consolidou nessa grande individualidade, a fim de resistir aos desvarios da opinião (ALENCAR, 1865, p. 57 [grifo nosso]).

Em seu comentário, Ricupero afirmou, quanto ao Poder Moderador, que o escritor cearense, assim como Braz Florentino, dota-o de um caráter sagrado, de depositário da nação. Essa linha de reflexão afasta inclusive Alencar da corrente dominante do pensamento político moderno, que é, pelo menos desde Thomas Hobbes, resolutamente secular (RICUPERO, 2004, p. 182).

No entanto, note-se que Alencar não afirmou que o Poder Moderador ou o monarca fossem depositários da nação. Segundo Erasmo, este último seria depositário de parte da soberania popular, a qual, ainda em sua forma constituinte (o termo em princípio talvez indique isso) fez depositar uma parte sua na pessoa do Imperador. Se este fosse depositário da nação, aí poderíamos atribuir à existência de algo parecido com os dois corpos do rei8. Antes, repete-se o texto constitucional (art. 98), reafirmando-se que o monarca é o primeiro representante da nação. Quanto à sacralidade, parece-nos que Alencar fez uma referência ao art. 99, capítulo I do título V, da Constituição de 1824, o qual afirmava ser a pessoa do Imperador sagrada e inviolável. Da 8

Referência ao livro de Ernst Kantorowicz (2000). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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mesma forma, parecem citados, do trecho destacado, os artigos 100 e 101 da mesma Constituição. Ademais, não vemos em nenhum momento qualquer referência do romancista quanto ao exercício do Poder Moderador senão dentro do estrito uso das atribuições constitucionais. Em outro trecho, na mesma carta citada acima, Alencar afirmou que “só a nação, assumindo a plenitude da soberania constituinte a poderia revogar [a vontade imperial advinda das prerrogativas constitucionais], se a justiça o reclamasse” (ALENCAR, 1865, p. 58). Apesar de apostar na força do Poder Moderador, Erasmo o pôs ante o consentimento da nação. Sendo assim, parece-nos equivocada a interpretação nos termos colocados por Ricupero em O romantismo e a ideia de nação no Brasil. Não podemos esquecer que Alencar não profere, simplesmente, um discurso elogioso da pessoa do monarca e de suas atribuições. O fato é que, seguindo sua interpretação do texto constitucional, ele via a possibilidade de mudança no interior do regime representativo em decadência a partir da atuação de Pedro II. Nesse sentido, propôs até uma reflexão sobre a atuação política do Imperador durante o seu reinado: “qual o uso que tendes feito do poder moderador em relação à política durante vinte e cinco anos de efetivo reinado?” (ALENCAR, 1865, p. 54). Dividindo este em três períodos, como mais à frente veremos, destacou que em nenhum deles a política imperial foi a mais adequada e, além disso, afirmou ainda que “nos últimos anos, a coroa foi nimiamente condescendente” (ALENCAR, 1865, p. 56). Tais palavras não deixaram de ser um puxão de orelha no monarca. Afora isso, Erasmo também deixou explícito, logo nas primeiras cartas ao Imperador, qual seria o elemento imprescindível à regeneração

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do sistema político: “a primordial necessidade da política, podeis agora palpá-la, é recolher à sua órbita legal o elemento aristocrático, para restabelecer o equilíbrio entre os três princípios cardeais da monarquia representativa” (ALENCAR, 1865, p.69 [grifo nosso]). Observa-se que, para Alencar, o que estava em jogo era o equilíbrio entre as três engrenagens da vida política do país – a Coroa, o povo e a aristocracia – e que, para isso, era necessário restabelecer esta última a sua legítima esfera de atuação. Adepto da monarquia constitucional, o literato defendia que o período crítico poderia ser contornado a partir da regeneração (política e moral) da camada dirigente, que chamou de aristocracia. Aos seus olhos, tal camada política já havia se corrompido e deveria agora ser regenerada. Segundo ele, isso seria possível a partir de uma aproximação entre a coroa e o povo, numa aliança entre a realeza e a democracia: O único meio eficaz de salvar o país, senhor, é a união firme dos homens de bem, de que sois o chefe legítimo, contra a imoralidade. É a aliança sincera da realeza com a democracia, para regenerar o elemento aristocrático, restringindo sua influência perniciosa, e inoculando-lhe novos brios e estímulos que o preservem da corrupção (ALENCAR, 1965, p. 48 [grifo nosso]).

Essa proposição constituiu um dos pontos centrais da argumentação de José de Alencar. Ela é repetida na segunda série de Cartas de Erasmo, as quais começaram a ser publicadas meses depois da última missiva ao Imperador, em janeiro de 1866. Ao que parece, o apelo ao monarca não surtiu o efeito desejado por Alencar que, então, escolheu o povo como seu novo destinatário. Dirigindo-se a ele, o romancista cearense atestou mais uma vez a condescendência do Imperador ante a situação, e retoricamente, atribuiu sua inércia a uma Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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misteriosa fatalidade (ALENCAR, 1866b, p. 6). No mesmo tom das cartas anteriores, renovou o seu compromisso com a verdade, e conclamou, desta feita, o povo para que salvasse não apenas o país, mas também o trono. Interessante notar que, ao se dirigir ao Imperador, Erasmo foi acusado de absolutista; quando ele se dirigiu ao povo, ganhou um novo título: o de anarquizador (ALENCAR, 1866b, p.28). Na série de Cartas ao Povo, novamente, a nota tônica recairia sobre o cumprimento da Constituição e o perfeito funcionamento da monarquia representativa. O tema da Guerra do Paraguai se mostrou proeminente, questão que, como veremos mais adiante, constituiu, segundo Alencar, efeito do estado de corrupção política em que se encontrava o Império. Logo no início das cartas, ele renovou sua proposta de uma aliança entre a Coroa e o povo, na tentativa de restituir um ao outro, sendo este, para ele, o meio de suprimir aquela necessidade primordial, a regeneração do elemento aristocrático (ALENCAR, 1866b, p. 7). O povo, no entendimento do autor das cartas seria o corpo da nação, o conjunto dos cidadãos – em outras palavras, aquilo que não é nem realeza, nem aristocracia –, pressupondo, sem dúvida, os critérios constitucionais de capacidade política. De acordo com Erasmo, o povo, assim como o monarca, teria em si um depósito permanente de poder. Da mesma forma como existiria a majestade imperial, existiria também a majestade popular. Nesse sentido, o apelo ao povo seria uma tentativa de movê-lo ao exercício pleno desse poder – daí associá-lo à democracia. Tal aliança entre o povo e a realeza não seria tarefa fácil, como o próprio Erasmo reconheceu. Na verdade, existiria na monarquia representativa uma luta constante entre essas duas forças. Primeiro

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porque ambos seriam depositários do poder e, em segundo lugar, porque cada um, ultrapassando sua esfera de atuação ou resignando-se em relação a ela, poderia emperrar o sistema político. Por exemplo, se a Coroa (instituição política neutra, tendente à conservação e à unidade do poder) tomasse para si as funções legitimadoras do sufrágio popular, pura expressão do povo, este teria de recorrer à própria soberania constituinte na tentativa de restaurar todo o sistema. Da mesma forma, se o povo se resignasse de suas funções políticas, deveria a Coroa, através de suas atribuições, impulsioná-lo novamente. Mas a luta não se daria simplesmente apenas entre esses dois elementos. O pressuposto seria que, em seu pleno exercício, a democracia e a realeza atuariam de forma a esmerar a aristocracia, o terceiro elemento essencial à monarquia representativa (ALENCAR, 1866b, p. 67). Daí a crítica não apenas ao imperador, por sua cumplicidade, mas também ao povo, por sua inatividade. Rememorando outros tempos, Alencar afirmou, em suas primeiras cartas ao Imperador, que “outra coisa era a casaca rapada que envergavam os chefes da maioria em outras eras, quando generosos de seu nome e individualidade se misturavam com o povo para o dirigir” (ALENCAR, 1865, p. 11). Para ele, era salutar essa ligação entre o povo e sua camada dirigente, a aristocracia. Alencar destacou que a reverência às notabilidades políticas – fossem liberais ou conservadoras –, pelo povo, era sinônima de reverência à política e que a ativa participação ou não deste na coisa pública seria influenciada pelo modo como essa camada política se portava. Em contrapartida, observando o seu próprio tempo, o romancista queixou-se das circunstâncias em que se encontrava o envolvimento político do povo. Segundo ele, Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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O povo não se move; ri às vezes, com aquele grosso rir de bonachão que se diverte à custa própria. [...] A política não cria como de princípio mártires da liberdade, servidores de uma idéia, cidadãos eminentes; agora distribui sorrisos e favores àqueles que a requestam (ALENCAR, 1865, p. 10).

Para Erasmo, a aristocracia constituiria o termo intermediário entre a Coroa e o povo. Localizada nas posições de poder e aderente aos mesmos interesses, ela era, por natureza, suscetível à corrupção. Alencar advogava que a virtude deveria ser a sua principal característica e que, sem ela, a aristocracia se tornaria imoral e usurparia as funções da soberania. Tal caráter fatalista foi descrito em carta datada de 20 de dezembro de 1865: Mas sempre se interpõe entre o trono e a nação uma gente ambígua, que vive ao mesmo tempo das graças do poder e da tolerância do povo. Seu interesse é irritar ambos, um contra o outro, para os enfraquecer e melhor dominar. [...] Pleiteio contra essa improvisada aristocracia da imoralidade o livre exercício dos direitos do povo e dos direitos da realeza, que são ambas as molas do sistema representativo (ALENCAR, 1865, p. 33 [grifo nosso]).

De acordo com ele, a aristocracia seria “composta em geral de duas classes de pessoas, os abastados de inteligência e escassos de cabedais, e os ricos de haveres, mas pobres de ilustração” (ALENCAR, 327

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1865, p. 45). Era desse meio que saíam aqueles que ocupariam as posições políticas e administrativas mais proeminentes. Ela possuía um vínculo direto com a grande propriedade, além do quê, para Alencar, a aristocracia brasileira era burocrática, quer dizer, apoiava-se no funcionalismo público e era fomentada pela influência do governo (ALENCAR, 1865, p. 70). Por ser burocrática e fechada sobre si mesma, ela poderia se reproduzir no poder através da empregocracia, uma espécie de hereditariedade das posições (ALENCAR, 1977, p. 132). Vale lembrar que o termo aristocracia foi utilizado na falta de outro mais adequado. Podemos afirmar que ela se constituiria naquilo que José Murilo de Carvalho (1996) chamou de elite política imperial. Identificando assim a aristocracia brasileira, Alencar atribuiu a ela todos os caracteres da corrupção expostos na citação acima, sendo o principal deles, o rapto da soberania nacional. Para ele, a aristocracia furtava-a de seus legítimos depositários: o monarca e o povo. De um lado, à sombra da vontade imperial, de onde proviriam sua confiança e legitimidade, a burocracia faria, à sua própria vontade, o ministério. A instabilidade ministerial do período talvez fosse o fundamento para a conclusão de Erasmo, pois entre 1862 e 1865, por exemplo, sucederamse cinco gabinetes, um deles (o 24 de maio de 1862) durando apenas seis dias, além do fato de que eram basicamente os mesmos nomes que saíam e retornavam aos ministérios. De outro lado, já encastelada no governo e detentora de todos os seus recursos, fraudava a soberania popular falseando o voto e constituindo, ela mesma, os representantes da nação numa espécie de fantasmagoria parlamentar (ALENCAR, 1866b, p. 28). Afora isso, ela também funcionaria como tutora da opinião

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pública. O voto e a opinião pública seriam as formas pelas quais o povo poderia expressar o depósito de poder que carregava sobre si. Para Erasmo, ambos teriam sido trocados pelos favores, sorrisos e benefícios oferecidos pela aristocracia burocrática. Dessa forma, esta fabricava a nação e artificialmente criava o país oficial9. A análise de Erasmo prossegue. O que muito contribuía para a reprodução desse estado de corrupção, da presença de um marasmo fatalista era a falta de educação política do Povo (ALENCAR, 1865, p. 43). Segundo o autor das cartas, o povo brasileiro não havia sido preparado devidamente para a monarquia representativa e, portanto, não sabendo ainda utilizar de maneira plena a sua capacidade política, quer dizer a sua liberdade, tornou-se presa fácil para a aristocracia burocrática. Nesse sentido, se o povo, nas primeiras cartas ao imperador, foi considerado por ele apático e inerte, na segunda série de cartas, Alencar foi ainda mais duro, considerou a sua liberdade uma quimera. Logo na segunda carta dessa série, afirmou, “ousam proclamar que sois um povo livre! Essa grande falsidade, à força repetida, tornou-se um mote de nossa política. É uma frase oca, mas sonora; produz belo efeito nos monólogos da comédia parlamentar” (ALENCAR, 1866b, p. 9). Frase oca porque, para ele, o conteúdo da liberdade – o voto e a opinião pública – havia 9 Interessante observar que, ao tratar o elemento aristocrático, Erasmo traçou uma importante análise sobre a burocracia imperial brasileira do Segundo Reinado. Ela foi seguida de perto por Raymundo Faoro em sua análise sobre o liberalismo no Brasil. A leitura que Faoro fez de Alencar pode ser percebida, por exemplo, em uma de suas categorias analíticas centrais, o estamento burocrático. Tratando dela no capítulo X de Os donos do poder, Faoro cita longamente trechos completos da IX missiva da primeira série de Erasmo ao Imperador (FAORO, 2001, p. 447-450). Que a burocracia estivesse à sombra do monarca, que fosse fechada sobre si mesma e se assentasse nas posições de poder e, acima de tudo, que ela fraudasse a soberania nacional, foram todos argumentos de José de Alencar expostos em suas cartas, quase cem anos antes.

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sido sequestrado pela camada política dirigente. Nesse sentido, o título de povo livre seria nada mais que uma lisonja, quer dizer, um ornamento, e funcionaria como uma espécie de ideologia: Sagaz é a oligarquia que domina o país. Sente que se despisse o governo dos falsos ouropéis e lantejoulas de liberdade, com que o costumam decorar, a opinião política humilhada se revoltara. Esmeram-se por isso em manter o povo na doce ilusão de que é livre. (ALENCAR, 1866b, p.31 [grifo nosso]).

Para Erasmo, o povo não seria verdadeiramente livre e, mais do que isso, estaria sob os cuidados de um governo despótico. Diferentemente dos que viam o despotismo na pessoa do monarca, Alencar via na aristocracia os seus sinais10. Assentada no Poder Executivo, ela controlava toda a máquina política a seu bel prazer. Isso era evidente para Alencar. Como dissemos anteriormente, a Guerra do Paraguai (18641870) foi o tema central das suas cartas dirigidas ao povo. Localizando a guerra no interior de um quadro geral de calamidades que assolavam o Império, criticou como o seu encaminhamento se dava: sem direção, sem organização e sob as ordens dos exércitos aliados – “uma vergonha” (ALENCAR, 1866b, p. 53). Alencar não admitia que um país, o maior representante da civilização na América do Sul, colocasse em xeque a 10 Isso não impediu Alencar de elaborar a sua própria crítica ao poder pessoal. No entanto, deve-se notar que, em nenhum momento, Alencar dirigiu-se contra a instituição constitucional do Poder Moderador. A sua crítica atingia diretamente a D. Pedro II, em especial, no que tange à sua intromissão no Poder Executivo, como prerrogativa consequente do Moderador. Sua experiência como Ministro da Justiça talvez tenha contribuído para tal apreciação. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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sua própria honra nacional. O mais importante disso tudo, porém, foi o fato de a declaração da guerra ter-se dado, de acordo com o romancista, por um ato inconstitucional do Poder Executivo, uma ação de caráter despótico. Entenda-se que a Constituição de 1824, no seu artigo 102, dava ao Executivo a atribuição de declarar guerra; isso Alencar não discutiu. O que ele argumentou foi que existiriam, em qualquer fato governamental, duas instâncias: uma deliberativa e outra executiva. Segundo ele, o artigo 102 da Constituição teria dado apenas a instância executiva ao governo, cabendo então, a instância deliberativa, à assembléia de representantes da nação, quer dizer, ao Legislativo. Segundo interpretação de Erasmo, o que teria ocorrido foi que o governo, apoiando-se naquele artigo da Constituição, arrolou-se o direito de deliberar, sem qualquer consulta à nação ou aprovação do Legislativo, sobre a declaração de uma guerra. Retoricamente, perguntaria ao povo: “Tenho eu razão em afirmar que não sois um povo livre, quando sem vosso consentimento se decreta uma guerra, sorvedouro de vosso sangue e suor?” (ALENCAR, 1866b, p. 13). Para ele, estava dada a prova cabal da ausência de liberdade do povo e, além disso, da existência de um governo despótico no país. Devemos observar que tal despotismo estava diretamente ligado ao fato de que, desde 1862, a Liga Progressista mantinha-se no poder, controlando os ministérios. Decorrente de uma linhagem liberal e composta por uma combinação entre políticos liberais moderados e conservadores dissidentes, a Liga era liderada por Zacarias de Goes e Vasconcelos e Nabuco de Araújo. A ela atribuiu Erasmo, em suas cartas, a responsabilidade por muitas das dificuldades enfrentadas nos anos 1860

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no Império, particularmente os efeitos da crise financeira e da Guerra do Paraguai. Originária da dissolução dos partidos políticos proeminentes – para Erasmo, sintoma visível da degeneração da aristocracia –, depois da tentativa da Política da Conciliação, a Liga Progressista não constituiria, para o autor das cartas, um autêntico partido político; era antes uma facção. Podemos dizer que a Liga encarnaria, para José de Alencar, a figura da aristocracia burocrática que, uma vez corrompida, expressavase através do despotismo. Sobre a crise financeira que assolava o Império, Alencar escreveu em 1866 uma carta de Erasmo ao Visconde de Itaboraí. Nela, expôs que a causa da crise estaria na indistinção entre o crédito mercantil (voltado às transações comerciais e de caráter volátil) e o crédito predial (atrelado à lavoura e, portanto, fixo). Segundo ele, desde, pois, que esse último crédito enleava-se no outro, a consequência necessária era entravar a marcha acelerada das operações mercantis jungindoas à lenta e tardia amortização das divisas da lavoura. Cada nova letra agrícola, que ia por intermédio dos comissionários invadindo o domínio do comércio, entorpecia a porção do capital circulante servido por essa fração do crédito mercantil (ALENCAR: 1866c, p. 6).

No seu parecer, a possibilidade de restabelecimento das finanças do Império passaria, necessariamente, pela separação entre essas duas instâncias distintas de crédito. Para isso, deveria ser criado um banco nacional encarregado de financiar e regular o crédito agrícola, ficando, por sua vez, o Banco do Brasil encarregado apenas do crédito mercantil. Inclusive, essa preocupação com o setor agrícola era, para ele, parte constitutiva da bandeira do Partido Conservador. Pode-se considerar que Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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a intenção de Erasmo ao escrever a Itaboraí, além de colocar suas ideias à avaliação de um dos renomeados financistas do Império, foi também a de destacar elogiosamente a atuação crítica do Visconde frente ao ministério progressista de 3 de agosto de 1866, liderado por Zacarias de Goes e Vasconcelos. Erasmo voltou um ano depois – desta feita, com outra série de cartas; a última, mais uma vez, destinada ao Imperador. O contexto era o do debate acerca da emancipação, inaugurado em 1867 com a fala do trono. Pedro II, em resposta ao Conselho Francês de Emancipação, aconselhava à Assembleia Geral que se atentasse para a realização da reforma do elemento servil. Em uma espécie de resposta à fala, nesse mesmo ano, Alencar começou a publicar a segunda série de Cartas de Erasmo ao Imperador (1867-1868). Mesmo não sendo escravocrata, Alencar foi contra a medida que se estava tentando instituir a respeito da emancipação. Fato é que acompanhou e participou de todo o debate que se estendeu até 1871, através dos seus discursos parlamentares, particularmente os de 1870 e 1871. Nas Novas Cartas, a escravidão foi apresentada como instrumento da civilização – um dos conceitos centrais de sua argumentação. A ideia de civilização defendida por Alencar se revestia do pressuposto da barbaria do negro. Para ele, uma raça embrutecida, confundida com a própria natureza. Em sua opinião, somente através de uma revolução social dos costumes é que se poderia processar a libertação do escravo negro no Brasil: A única transição possível entre a escravidão e a liberdade é aquela que se opera nos costumes e na índole da sociedade. Esta produz efeitos salutares: 333

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adoça o cativeiro; vai lentamente transformando-o em mera servidão, até que chega a uma espécie de orfandade. O domínio do senhor se reduz então a uma tutela benéfica (ALENCAR, 1867-1868, p. 42).

Seria um processo lento e seguro no qual o negro, através do trabalho (escravo) e do contato com o branco, poderia civilizar-se. Assim, depois de domado as paixões e os vícios, o escravo estaria apto à liberdade e ao convívio social, assumindo, ainda de acordo com o romancista, um papel ativo na sociedade brasileira. Daí se poder pensar na sua incorporação às raças originárias no processo de formação da nacionalidade brasileira, juntamente com o índio e o branco, o que será confirmado por Gilberto Freyre, décadas mais tarde. Para Erasmo, tal revolução já estaria em curso no interior da sociedade brasileira. Seria evidenciada, primeiramente, pelas relações amistosas entre senhores e escravos e, em segundo lugar, pelo gradual aumento das manumissões por iniciativa privada e da atuação das Assembleias Provinciais, que consignavam auxílio em favor dessas alforrias. De acordo com o seu diagnóstico, “talvez em 20 anos a escravidão, estaria, por si mesma, extinta”, tendo-se em vista o número de 14 mil alforrias levantado pela estatística de 1860 (ALENCAR, 1977, p. 242). Outro argumento pode ser encontrado na própria concepção de civilização defendida por Alencar. Fundamentada nas ideias de progresso e perfectibilidade humana, dela resultaria uma espécie de melhoramento e transformação dos costumes. No livro A propriedade (2004), por exemplo, o romancista, na sua argumentação, elencou algumas instituições que encontravam acento no direito romano, mas Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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que, em decorrência da marcha da civilização ocidental perderam a sua razão de ser e caducaram. Esse seria o caso do conúbio provindo da captura ou da compra da mulher e da propriedade dos pais sobre os filhos. Pensando dessa forma, Alencar esperava que o mesmo ocorresse com a escravidão no Brasil. Se, como vimos, já haviam atribuído a Erasmo o título de absolutista e anarquizador, as Novas Cartas teriam-lhe rendido o título de escravocrata. Quanto a isso, Gilberto Araújo (2009) observou como essa segunda série de cartas a Pedro II foi por muito tempo amputada do cânon alencariano, uma vez que o tema da emancipação abordado pelo romancista poderia colocá-lo sob a classificação de defensor da escravidão11. A última carta da segunda série destinada ao Imperador, datada de 15 de março de 1868, consistiria em uma espécie de despedida de Erasmo. Foi a sua derradeira palavra. Nela, o autor atestou mais uma vez o caráter degenerativo da camada política dirigente, encarnada na Liga Progressista, e anteviu que do completo estado de corrupção é que viria a regeneração de todo o regime representativo. Nesse sentido, apelou mais uma vez ao Imperador, só que, desta vez, para que deixasse correr o curso lógico dos acontecimentos, a fim de que, como que por uma lei natural, germinasse a semente da restauração. A expectativa de Erasmo era que, finda a Guerra do Paraguai, a situação política se transformasse, inaugurando assim uma era de 11 Ao contrário do que parece indicar o título da recente publicação das Novas Cartas de Erasmo organizada por Tâmis Parron (2008), defende-se aqui que Alencar não era a favor da escravidão. Antes, era a favor de um tipo específico de emancipação, de caráter mais conservador em relação ao que estava sendo proposto.

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reorganização (ALENCAR, 1867-1868, p. 63). Provavelmente tinha em mente um possível retorno dos conservadores ao poder. Daí a sua argumentação ser permeada de traços conservadores. A Guerra só terminaria dois anos depois, em 1870. No entanto, não demorou tanto tempo para Erasmo ter satisfeita a sua expectativa. Isso porque, por uma indisposição entre o chefe do Ministério (3 de agosto), Zacarias, e o comandante das tropas brasileiras no Paraguai, o Duque de Caxias, em 16 de julho de 1868 subiria um Gabinete puramente conservador, tendo como presidente, um antigo líder saquarema, o Visconde de Itaboraí. Parece que o silêncio do Imperador ao apelo de Erasmo, um silêncio de três anos, finalmente chegava ao fim, imprimindo, do ponto de vista dos argumentos de Alencar, aquele impulso necessário ao pleno funcionamento dos princípios cardeais da monarquia representativa.

As Cartas de Erasmo e o segundo regresso conservador É comum afirmar que a Política da Conciliação foi iniciada pelo Marquês de Paraná, em 1853, depois de um período marcado pelo domínio dos conservadores desde 1848, data da última revolta liberal, em Pernambuco. Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856), homem forte do Partido Conservador, foi o escolhido de Pedro II para encampar a ideia da conciliação. Esta consistia basicamente em propor uma aproximação entre os componentes dos dois partidos imperiais predominantes – Liberal e Conservador – apaziguando os ânimos e os receios entre as facções, na tentativa de promover o progresso e o melhoramento da nação. Talvez a melhor caracterização feita no período seja a de Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Justiniano José da Rocha, que em 1855, chamou a política de Paraná de período de transação. A situação geral era de prosperidade, sem o acirramento político partidário de anos anteriores e com aumento dos investimentos nos centros urbanos, devido ao fim do tráfico de escravos. Certamente, para muitos, a principal realização do Ministério seria a reformulação do sistema partidário e a restauração da luta política. José Murilo de Carvalho destacou que “o Marquês buscou apagar a memória das disputas regenciais, redefinir o sistema partidário, fundar um novo tempo” (CARVALHO, 2009, p. XII). O maior feito do Ministério 6 de setembro de 1853 foi a instituição da primeira Lei dos Círculos em 1855, que estabeleceu o voto distrital no Império. Apesar de sua forte atuação, Paraná não pôde ver os efeitos da nova lei eleitoral, pois faleceu em 1856. O seu sucessor, o Marquês de Olinda (gabinete 4 de maio de 1857), não conseguiu se manter firme como Paraná e pouco tempo depois o ministério foi demitido. Até 1862, quando do início do predomínio progressista, sucederam-se mais três ministérios, todos sob a liderança de conservadores. Digno de nota foi o alargamento dos círculos eleitorais em 1860, realizado no Gabinete de Silva Ferraz. Em balanço crítico sobre o período, Walquiria Domingues Leão Rêgo afirmou que “esse arranjo político-eleitoral (...) deu forma política a uma espécie de ‘ética conciliadora’ que diluía tudo, para não dizer que mascarava ainda mais os fenômenos mais profundos da sociedade brasileira” (LEÃO RÊGO, 1993, p. 77). Quando o Marquês de Paraná chegou ao Ministério 6 de setembro de 1853, José de Alencar encontrava-se ainda longe da tribuna. Nesse tempo, aventurava-se como folhetinista da Corte, no

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Correio Mercantil. Coincidentemente, naquele mesmo mês de setembro começava sua saga como cronista social na sessão Ao correr da Pena, que a todo domingo trazia um relato dos principais acontecimentos da Corte. Muito atento aos fatos políticos, Alencar não deixou de comentar a atuação do Ministério do Marquês do Paraná. São de 1855 suas primeiras palavras sobre a Conciliação. Caracterizou o período como propício para tal política, falando do amortecimento das paixões e da calma dos espíritos. O tom geral era de expectativa, mas que não se resumia a elogios. Vinda da experiência dos conturbados anos 1840, em que os ânimos entre os partidos se chocaram fortemente, a ideia da conciliação se apresentava como uma fórmula benéfica para o progresso refletido e moderado da nação. Seguindo o argumento de José Justiniano da Rocha, Alencar via a conciliação como uma política de transação. No entanto, também alertou para o fato de que se mal dirigida, ela redundaria em crise pior do que a que foi vista anteriormente (ALENCAR, 1960, p. 747). Uma análise mais elaborada de Alencar sobre os primeiros anos da Conciliação encontra-se no texto O Marquês de Paraná, traços biográficos, publicado em 1856, pelo Diário do Rio de Janeiro. Nele, o romancista esboçou uma pequena biografia de Honório Hermeto quando de sua morte, naquele mesmo ano. Retrocedendo até os fatores que levaram à Conciliação, apontou mais uma vez o amortecimento dos antigos ódios e hostilidades, alegando propensão natural à realização da ideia. Segundo ele, Paraná seria o único capaz dessa empreitada, uma vez que os conservadores saquaremas se resignavam e os liberais não poderiam realizá-la. Também ressaltou que a força do chefe ministerial

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vinha, em parte, do Imperador. Importante destacar que o texto de 1856 seria antes um elogio ao Marquês de Paraná – algo que uma homenagem póstuma exigiria –, do que um elogio à Conciliação, ainda incerta e prematura. Parece-nos mais acertado afirmar que José de Alencar ainda estava por elaborar sua postura frente à Conciliação. Certo é que, nesse período, o literato figurava ainda como espectador dos acontecimentos políticos. Prova disso foi que no final do texto, comentando os rumos do Gabinete depois de aprovada a Lei dos Círculos, denominou a campanha de Paraná como política de expectativa (ALENCAR, 1957, p. 272). Com certeza, foi somente a partir da sua atuação política nos anos 1860, mais particularmente, nas Cartas de Erasmo, que formulou definitivamente a sua postura frente à Conciliação e, principalmente, a defesa de sua superação. Em um misto de decepção e resignação, encontramos Alencar, no início dos anos 1860, tendente a acreditar que a situação política do Império se mostrava perigosa. Decepção que ele mesmo atribuiria ao Marquês de Paraná, se este tivesse vivido para ver. Em texto de 3 de dezembro de 1865, numa das Cartas de Erasmo, ele afirmou que: Com a popularidade e energia de que dispunha [o Marquês de Paraná] conseguiria o estadista comover até as entranhas a nação, e arrancar-lhe novos partidos, novos entusiasmos? Deus o chamou a si antes da decepção. Seu ministério decapitado arrastou-se até a abertura da sessão de 1857, em que evadiu-se do poder (ALENCAR, 1865, p.20 [grifo nosso]).

Em 1861, figurava então o Marquês de Caxias como chefe do Gabinete, de caráter mais ortodoxo dentro do Partido Conservador. 339

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Segundo Alencar, esse seria o último esforço de manutenção da linhagem conservadora no poder que, depois disso, passaria à obscuridade. O maior problema, para Alencar, seria o fato da extinção da luta partidária. Primeiro, os liberais não se fortaleceram com a Política da Conciliação, em seguida, os conservadores (puros) se dispersaram e se afastaram. Ao ver a decomposição dos Partidos Liberal e Conservador, a expectativa se desvaneceu. Para Erasmo, era chegada a hora da crítica. Os textos em que mais diretamente José de Alencar ataca a Conciliação são as primeiras cartas de Erasmo – Ao imperador, cartas, de 1865. Nelas, encontramos uma linha sistemática de argumentação. O pressuposto básico, como vimos, seria que o país havia entrado em uma época de crise e corrupção generalizada, bem como de inexistência de partidos políticos. Tomando como referência a atuação do Imperador Pedro II, Alencar dividiu a política imperial do Segundo Reinado em três períodos: a política de revezamento dos Partidos Conservador e Liberal até 1853; o período da Conciliação de 1853 a 1862 e, por fim, o predomínio progressista a partir de então. Note-se que o período da Conciliação em Alencar, não se resumiria ao Gabinete do Marquês de Paraná (1853-1857), mas se estenderia até o de Caxias, iniciado em 1861. É conhecida a sua sentença crítica contida nas cartas de 1865, referente a esse período: “Essa corrupção geral dos partidos e dissolução dos princípios, que tinham até então nutrido a vida pública no Brasil, é o que se convencionou chamar conciliação: termo honesto e decente para qualificar a prostituição política de uma época” (ALENCAR, 1865, p. 64). Tal opinião crítica, já constituída, será mantida até o fim de Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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sua vida: a ideia de que a Conciliação consistiria em um princípio de corrupção e degeneração política dos partidos e, consequentemente, de todo o sistema representativo. Em discurso de 30 de agosto de 1870, por exemplo, reafirmou que a Conciliação funcionou essencialmente como dissolvente dos partidos e que seus efeitos ainda se propagavam em seus dias. Se julgarmos a Conciliação como um todo (1853-1862), deixamos de perceber que havia uma distinção de momentos dentro desse período. Para Alencar, existiria uma clara distinção entre o Gabinete de Paraná e o seu sucessor, o gabinete do Marquês de Olinda (4 de maio de 1857) – reconhecidamente opositor da ideia da conciliação e do Ministério anterior. Em sua opinião: Tal era o baralhamento das idéias, homens e tradições, tal a confusão que reinava nesse amálgama dos sobejos dos partidos corruptos, que um cidadão venerando [o Marquês de Olinda], ilustrado com a suprema magistratura da regência, no último quartel da vida em que o espírito como o corpo se torna mais sedentário, rejeitava todo o seu passado, recentemente avivado, para dar um passo adiante da conciliação (ALENCAR, 1865, p. 20).

Esse passo adiante marcou diretamente a análise de Alencar, de forma que aquele elogio à postura do Marquês do Paraná foi revertido em severa crítica ao Marquês de Olinda. Já vimos a posição do literato quanto ao Ministério de Paraná. Devemos lembrar que uma das preocupações de Honório Hermeto, reconhecida por Alencar em seu texto de 1856, era a reanimação das forças partidárias, redesenhando os partidos políticos. Nesse intento, Paraná preservou as pastas ministeriais aos conservadores, convocando liberais para cargos de menor pompa. 341

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Pretensamente, não se colocou em xeque a existência dos partidos. Diferente foi a postura de Alencar frente ao Ministério 4 de maio de 1857. Em 1866, ele escreveu uma carta de Erasmo endereçada ao Marquês de Olinda (Pedro de Araújo Lima), chefe daquele gabinete, na qual pôde confrontá-lo diretamente. Alencar fez uma espécie de balanço da vida política do Marquês que, de Regente nos anos 1830 e fundador do Partido Conservador, passou a ser, aos olhos de Erasmo, o seu principal demolidor. O marco dessa trajetória contrária aos conservadores seria o ano de 1857. Para Alencar, talvez o fato mais notável da composição ministerial de Olinda tenha sido a designação de liberais para algumas pastas do Ministério. Dentre os liberais, Bernardo de Sousa Franco, Ministro da Fazenda que, no ano de 1857, frente à crise financeira que se estenderia até os anos 1860, encontrou forte oposição dos conservadores da tradição Saquarema: Itaboraí, então presidente do Banco do Brasil, Eusébio de Queiróz e o Visconde do Uruguai. Referindose a Araujo Lima, quanto a sua atitude à frente do Ministério, Erasmo, de forma irônica afirmou: “Vencestes nobre Marquês; vencestes como o velho Saul venceu David” (ALENCAR, 1866a, p. 6). Ironicamente, pois, na narrativa bíblica, o rei Saul nunca vencera David. De acordo com Francisco Iglésias, no Ministério de Olinda, “conservadores e liberais [encontram-se] juntos, fala-se em espírito moderado e conciliador, mas não se pode reconhecer nessa combinação feita por simples interesse, o sentido da política de Paraná” (IGLÉSIAS, 1985, p. 61). Para Alencar, talvez se encontrasse aí um dos fundamentos para o enfraquecimento dos partidos políticos em geral e, mais particularmente, da ala ortodoxa do Partido Conservador. Dirigindo-se

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ao Marquês de Olinda, em trecho bastante esclarecedor, afirmou em sua missiva de 1866: Data de 1857 a asseveração insidiosa que derramouse no país de uma sonhada oligarquia, solapa essa com que se minou a opinião pública e as justas reputações nela cimentadas. Quem trouxe das altas regiões esta descoberta do círculo de ferro, senão vosso gabinete de 7 de maio? [4 de maio] Quem primeiro deu o exemplo das mesclas ministeriais, com o intento de enxertar um em outro partido? Quem levantou de repente da obscuridade onde jaziam os homens sem experiência e traquejo que vieram desgraças a pátria? Tal é a vossa obra, Marquês, nem toda de vossas mãos, porém a maior parte segundo o risco e esboço (ALENCAR, 1866a, p. 7).

Também não passaria despercebido, para Alencar, o fato de que Olinda, nos anos 1860, debandaria para o lado liberal, tornandose inclusive, um dos medalhões da Liga Progressista (ALENCAR, 1866b, p.61). A crítica de Alencar à Conciliação não se restringiu ao período entre 1853 e 1862. Para o romancista, o caráter geral de dissolução dos partidos promovido pela Conciliação foi mantido e reproduzido nos anos 1860. Segundo ele, existiria uma perfeita relação entre a dissolução dos partidos e a formação da Liga Progressista, camada política que permaneceria no poder entre 1862 e 1868. A fórmula progressista não lhe agradava e a sua atuação não escapou de suas críticas. Podemos verificar isso, por exemplo, ao observarmos os termos utilizados por ele ao longo das Cartas de Erasmo, para designá-la. Chamou-a de liga monstruosa, 343

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coisa, facção, progressismo, perversidade política. Da mesma forma, caracterizou o modo como ela governava de desvario da razão pública e, finalmente, o seu predomínio de desbarato político. Como vimos anteriormente, todos os sintomas da corrupção política foram atribuídos por Erasmo à Liga Progressista. No texto Página de Atualidade, os partidos, publicado em 1866, Alencar também teceu alguns comentários sobre a situação política e partidária dos anos 1860 do Império. Defendendo rigorosamente o sistema bipartidário como a combinação mais adequada ao sistema representativo – segundo ele, este expressaria a condição do movimento, aliando luta e progresso –, observou que a Liga Progressista, a terceira força política existente, não tinha razão de existir. Ela seria uma criação equívoca, tríplice, “uma vez que deixa de ser para tornar-se o que não é, alternadamente, liberal ou conservadora” (ALENCAR, 1866d, p. 6). Ela encarnaria e representaria, em si, o caráter da conciliação. Podemos afirmar que, para ele, a restauração do regime representativo imperial deveria passar, necessariamente, pelo aniquilamento da Liga. Daí a preocupação com a retomada da política dos partidos políticos históricos, com a restauração da luta política e, mais particularmente, com a volta dos conservadores ao poder. Preocupação esta fruto de uma postura política particular, pois se tratava de um homem de partido. Não apenas isso, pois, na opinião de Alencar, o instrumento de salvação seria, como fora em 1837, o Partido Conservador. Na carta Ao Marquês de Olinda, isso foi explicitamente exposto: Faz trinta anos que congregastes ao redor do trono o Partido Conservador; e o país foi salvo. Então só um órgão político era atacado; o princípio da Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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autoridade. Atualmente o mal invadiu o corpo social; a monarquia, a religião, a liberdade, os costumes, a honra, a propriedade, todas as vísceras importantes estão ulceradas. O instrumento de salvação, o mesmo que serviu em 1837, aí jaz atirado ao pó e desdenhado. É o grande Partido Conservador, numeroso até na imobilidade, forte ainda no abandono. Como a espada ilustre dos grandes capitães, ninguém ousa empunhá-lo por acatamento às gloriosas reminiscências. (ALENCAR, 1866a, p. 8).

Nesse trecho encontramos o ponto máximo da crítica de José de Alencar à Conciliação, significando a sua total negação. Ao associar a crise de sua época ao tempo da Regência, observou que a solução estaria em um novo regresso. Talvez não centralizador como foi o primeiro, mas que fosse capaz de reordenar a política imperial. Para Erasmo, era necessária a volta do antigo partido da ordem, defensor do princípio da autoridade. Aqui, a ideia de um segundo regresso conservador, indicada por José Murilo de Carvalho (2007), parece se encaixar perfeitamente. De acordo com esse autor, depois do retorno dos conservadores, o debate político da década de 1860, que ganhava contornos radicais, incluindo no seu bojo os temas da emancipação e da descentralização política e administrativa, foi dissolvido pela temática monarquia versus república, depois de 1870. Além disso, o sistema partidário, sofrendo uma nova redefinição, retornava às suas antigas bases de disputa, entre conservadores e liberais: Era o fim do experimento de Paraná, um resultado que frustraria o Marquês, se o tivesse presenciado. Para ele, a conciliação não pretendia dissolver os partidos, mas redesenhá-los. E, de fato, a dinâmica 345

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da conciliação, entre 1853 e 1868, apontava na direção de nova bipolarização, mas agora entre conservadores dissidentes e liberais moderados, de um lado, e liberais históricos do outro, com eliminação dos velhos conservadores. A nova balança política inclinava-se para o lado do reformismo. O ressuscitamento dos conservadores repôs o conflito nas bases anteriores, operando um segundo regresso, de consequências mais graves do que o de 1837 (CARVALHO, 2007, p. 5).

As Cartas de Erasmo, todas elas, podem ser consideradas como instrumentos de estratégia política. Foi através desses escritos que José de Alencar atuou incisivamente, não mais como espectador, mas como agente político. Foi a partir delas também que afrontou duramente a Política da Conciliação. Talvez o que estivesse por trás das cartas desde o começo fosse a propagação da ideia da necessidade do retorno do Partido Conservador ao poder. Para Erasmo, já era chegada a hora. Enfim, com a subida do Ministério 16 de julho de 1868, novamente os conservadores voltavam ao poder. Mesmo já falecidos o Visconde do Uruguai e Euzébio de Queiróz, Itaboraí – chefe do Gabinete – não estaria sozinho. Com ele estavam Cotegipe, na pasta da Marinha; Muritiba no Ministério da Guerra; o Visconde do Rio Branco, no Estrangeiros; e, além desses, outras personalidades que podemos apontar como sendo integrantes de uma nova geração conservadora: Paulino José Soares de Sousa (o filho), na pasta do Império, e José de Alencar, como Ministro da Justiça. Certamente a atuação política de Alencar ao longo dos anos 1860, particularmente através das Cartas de Erasmo, foi identificada e sentida positivamente pela ala mais ortodoxa

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do Partido Conservador12. A obra da conciliação chegava ao fim. O ponto máximo de sua crítica, a sua negação, como exposta nas Cartas de Erasmo, significou o retorno dos conservadores ao poder. O mais intrigante, no entanto, foi que estes não perceberam que, com o seu retorno, preparavam a dissolução do Império.

Considerações Finais Não poderíamos deixar de mencionar que havia nas cartas de Erasmo uma espécie de missão moralizadora da política – mais um traço do discurso conservador de Alencar. Missão semelhante àquela que o romancista intentou anos antes no teatro. Aventurando-se neste terreno, nos anos 1850, Alencar apresentou temas controversos, como a escravidão (O demônio Familiar e Mãe); por vezes, pintou caricatura dos costumes da corte, apontando os seus vícios (Verso e Reverso, O crédito, por exemplo). Em missiva a Francisco Otaviano, futuro deputado e senador do Império, deixou claro que a sua iniciação como escritor teatral teve como impulso a seguinte questão: “Não será possível fazer rir, sem fazer corar” (ALENCAR, 1960, p. 43). A peça As asas de um anjo, 12 Significativo que o romancista não se posicione apenas próximo dos conservadores, mas dos saquaremas. Quanto a isso, é interessante problematizar a proposta de Ricupero (2010) quanto à localização de Alencar no interior do conservadorismo brasileiro. Entre o conservadorismo de Oliveira Viana – que, em termos de linhagens, procede do Visconde do Uruguai – e a vertente conservadora consolidada por Gilberto Freyre, parece mais acertado localizar o romancista cearense numa posição de transição, entre um e outro. Colocá-lo somente ao lado de Freyre, baseando essa escolha analítica apenas na argumentação sobre a escravidão elaborada pelo literato, como propõe Ricúpero, seria desconsiderar toda uma produção política teórica, discursiva e prática, muito mais extensa e rica.

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cuja exibição foi proibida pela polícia no ano de sua encenação, 1857, trazia explicitamente o esforço moralizante do autor. Quase dez anos depois, lá estava Alencar escrevendo as Cartas de Erasmo. Preocupado como estava com a realidade política de sua época, trouxe a público um diagnóstico cujo caráter era marcadamente moral: “atualmente a política é para as massas um simples folgar, quando não é um pacto indecoroso” (ALENCAR, 1865, p. 9). Podemos indagar se, semelhante ao teatro, a sua pergunta inicial, aquela que primeiro o comoveu, talvez tenha sido esta: “Não será possível fazer política, sem fazer corar?”. Assumindo todos os riscos e críticas, disposto a sacrificarse, Alencar atribuiu para si a figura hebraica do bode expiatório, na tentativa do restabelecimento do pleno cumprimento da Constituição, numa nítida defesa da monarquia representativa constitucional, a fim de “restaurar-se o império da lei e da moral” (ALENCAR, 1960, p. 1110). Erasmo despediu-se de seu público na carta de 15 de março de 1868, quatro meses antes de assumir a pasta do Ministério da Justiça. Nada mais natural para um literato que sua práxis política se desenvolvesse pela escrita e a partir de um personagem. Marcadamente controverso, fosse dirigindo-se ao Imperador, ao Povo ou a algum político proeminente, Erasmo, sempre Erasmo, como diz a epígrafe.

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URUGUAI, Visconde do. Visconde do Uruguai. (Introdução e organização de José Murilo de Carvalho). São Paulo: Ed. 34, 2002. Artigo submetido em: 10/01/2013 Artigo aprovado em: 20/03/2013

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Traduções

Notas de Campo na Pesquisa Etnográfica1 Robert M. Emerson, Rachel I. Fretz& Linda L. Shaw A pesquisa de campo etnográfica envolve o estudo de grupos e pessoas enquanto elas conduzem suas vidas cotidianas. A realização desse tipo de pesquisa envolve duas atividades distintas. Primeiro, o etnógrafo adentra um determinado cenário social2 que, em geral, não é previamente conhecido de forma íntima, e começa a conhecer as pessoas envolvidas nele. O pesquisador participa das rotinas diárias no ambiente, desenvolve relações contínuas com as pessoas que nele se encontram e observa nesse meio-tempo o que está acontecendo. De fato, o termo “observação participante” é, via de regra, usado para caracterizar essa abordagem básica de pesquisa. Segundo, o pesquisador põe no papel, de forma regular e sistemática, aquilo que ele observa e aprende durante sua participação nas rondas diárias3 da vida dos outros. Assim, o pesquisador cria um registro escrito acumulativo dessas observações e experiências. Essas duas atividades conexas formam o 1 EMERSON, Robert M.; FRETZ, Rachel I.; SHAW, Linda L. Fieldnotes in ethnographic research. In: Writing ethnographic fieldnotes. Chicago: Universityof Chicago Press, 1995. Tradução para a língua portuguesa por Leandro de Oliveira (Professor do Departamento de Ciências Sociais da URCA). 2 No original em inglês, “social setting”; poderia ser traduzido também como “ambiente” social (N. do T.). 3

No original em língua inglesa, “daily rounds”. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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núcleo da pesquisa etnográfica: a participação em primeira mão em um mundo social a princípio desconhecido e a produção de relatos escritos sobre esse mundo, com base em tal participação. Nas seções seguintes, vamos examinar em detalhes cada uma dessas atividades e, em seguida, traçar suas implicações para a escrita de notas de campo.

A participação etnográfica Etnógrafos se empenham em sair por aí e permanecer próximos das atividades e experiências cotidianas de outras pessoas. “Permanecer próximo” requer, minimamente, manter proximidade física e social da circulação diária dessas pessoas; o pesquisador de campo deve ser capaz de assumir posições no meio de cenas e locais-chave para a vida dos outros, a fim de observar e compreender. Mas existe, no “permanecer próximo”, outro componente muito mais relevante: o etnógrafo busca uma profunda imersão no mundo de outros, de modo a captar o que estes experimentam como algo dotado de importância e significado. Através da imersão, o pesquisador de campo vê, de dentro, como as pessoas conduzem suas vidas, como elas desempenham seus afazeres cotidianos, o que consideram significativo e como o fazem. A imersão na pesquisa etnográfica, consequentemente, confere ao pesquisador acesso à fluidez da vida de terceiros e melhora sua sensibilidade para processos e interações. Além disso, a imersão possibilita que o pesquisador experimente por si mesmo, direta e forçosamente, as rotinas ordinárias e as condições em que as pessoas conduzem suas vidas, assim como os constrangimentos e as pressões aos quais tal modo de viver está sujeito. Goffman (1989, p. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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125), em particular, defende que a pesquisa de campo envolve “sujeitar você mesmo, seu próprio corpo, sua própria personalidade e sua própria situação social ao arranjo de contingências que incidem sobre um conjunto de indivíduos, de modo que você possa física e ecologicamente penetrar no círculo de reações a tal situação social, de trabalho, ou étnica”. A “imersão” em pesquisa etnográfica implica, portanto, estar com outras pessoas para ver como elas respondem a eventos na medida em que ocorrem, e ao mesmo tempo, experimentar por si mesmo esses eventos e as circunstâncias que os originam. Claramente, a imersão etnográfica exclui a possibilidade de realização de pesquisa de campo como um observador desengajado e passivo – o pesquisador de campo só pode se aproximar das vidas daqueles que estuda participando ativamente de seus afazeres cotidianos. Tal participação, além disso, inevitavelmente, implica algum grau de ressocialização. Compartilhando a vida cotidiana com certo grupo de pessoas, o pesquisador de campo acaba por “entrar na matriz de significados dos sujeitos pesquisados, participar de seu sistema de atividades organizadas, e sentir-se sujeito a seu código de regulação moral” (WAX, 1980, p. 272-73). Ao participar tão plena e humanamente quanto possível de uma outra forma de vida, o etnógrafo aprende o que é necessário para se tornar um membro desse mundo e também a experimentar eventos e significados sob formas que se aproximam das experiências dos membros4. De fato, alguns etnógrafos buscam fazer

4 O termo “membro” é extraído da etnometodologia, a qual é preocupada com o “domínio da linguagem natural” por pessoas comuns e, em última instância, com o “saber do senso comum acerca das atividades cotidianas” refletido em tais usos da linguagem (GARFINKEL e SACKS, 1970, p. 339)

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pesquisa de campo fazendo e se tornando – na medida do possível – o que quer que eles estejam interessados em conhecer. Certos etnógrafos, por exemplo, tornaram-se hábeis em atividades de trabalho que estão procurando entender (DIAMOND, 1993; LYNCH 1985) ou de boa-fé se juntaram a igrejas ou grupos religiosos (JULES-ROSETTE 1975; ROCHFORD 1985), alegando que, ao se tornarem “membros”, teriam obtido insight e compreensão mais plenos sobre esses grupos e suas atividades. Ou, ainda, os nativos podem atribuir ao etnógrafo ou etnógrafa um papel, tal como o de “irmã” ou “mãe” em uma família extensa, que obriga à participação e à ressocialização, de modo a atender às expectativas locais (FRETZ, s/ d). Ao aprender sobre os outros através da participação ativa em suas vidas e atividades, o pesquisador não pode e não deve tentar ser “uma mosca na parede”5. Nenhum pesquisador de campo pode ser um observador totalmente neutro, imparcial, independente e externo aos fenômenos observados (POLLNER e EMERSON, 1988). Pelo contrário: como o etnógrafo se engaja na vida e nas preocupações daqueles que estuda, sua perspectiva “se entrelaça com o fenômeno, que não tem características objetivas independentes da perspectiva e dos métodos do observador” (MISHLER, 1979, p 10). O etnógrafo não pode levar “tudo” em consideração; em vez disso, ele irá – em conjunto com outros participantes naquele cenário – desenvolver certas perspectivas por 5 Aqui, estamos assumindo que o pesquisador de campo adota abertamente um papel de pesquisador no ambiente ou cenário em que se dá a pesquisa, assumindo abertamente uma identidade de pesquisador. Para uma discussão sobre as vantagens da ‘pesquisa de campo oculta’ (covert field research), ver Douglas (1976); Schwartz e Jacobs (1979). Para considerações críticas acerca de pesquisas de campo ocultas, ver Erikson (1967) e Cassel (1980). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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meio do engajamento em certas atividades e relações em vez de outras. Além disso, ocorre com frequência que as relações com aqueles sob estudo seguem linhas de atrito e fissuras políticas no cenário, expondo o etnógrafo seletivamente a prioridades e pontos de vista distintos. Como resultado, a tarefa do etnógrafo não é determinar “a verdade”, mas revelar as múltiplas verdades evidentes na vida dos outros6. Além disso, dado que o pesquisador deve necessariamente interagir com aqueles que estuda (e, portanto, ter algum impacto sobre estes), a presença do etnógrafo em um determinado cenário tem implicações e consequências inevitáveis sobre o que está ocorrendo7. A “presença dotada de consequências”, muitas vezes associada a efeitos reativos – isto é, aos efeitos da participação do etnógrafo sobre como os membros poderiam vir a falar e se comportar –, não deve ser vista como algo que “contamina” o que é observado e aprendido. Pelo contrário, esses efeitos são a fonte em si mesma desse aprendizado e observação (CLARKE, 1975, p. 99). As relações estabelecidas entre o pesquisador de campo e as pessoas no ambiente não “perturbam” ou 6 Como Mishler (1979, p. 10) sugeriu: “[qualquer fenômeno] contém múltiplas verdades, que serão cada qual reveladas por uma mudança de perspectiva, método ou objetivos (...) A tarefa não é exaurir o significado único de um evento, mas revelar a multiplicidade de sentidos, e (...) é através do encontro do observador com o evento que estes sentidos aparecem”. 7 Ocasionalmente, o etnógrafo pode sentir que sua presença não é dotada de consequências, ou seja, que ele, de forma natural e não problemática, é “apenas um observador”. Contudo, essa impressão é, na verdade, efeito de uma conquista trabalhosa e contingente, que depende diretamente da cumplicidade e da colaboração dos observados (POLLNER e EMERSON, 1988). Pesquisadores de campo se amparam em uma série de práticas interacionais de modo a alcançar e sustentar o papel de “observador”, em face dos diversos empuxos e seduções para participar mais plenamente nos eventos em curso e, assim, num certo sentido, dissolver a própria distinção entre “observador” e “observado”.

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“alteram” os padrões de interação social em curso tanto quanto revelam acerca dos termos e das bases pelos quais as pessoas, antes de mais nada, formam laços sociais. Por exemplo, numa aldeia sustentada em laços de parentesco, as pessoas podem adotar um pesquisador em uma família e lhe atribuir um termo de parentesco que, a partir de então, designará seus direitos e responsabilidades para com os outros. Em vez de desqualificar o que o pesquisador pode aprender, relações em primeira mão com os sujeitos estudados podem fornecer pistas para a compreensão de pressupostos subjacentes, mais sutis, que podem ser difíceis de acessar através dos métodos de observação ou de entrevista somente8. Consequentemente, em vez de visualizar a reatividade como um erro a ser cuidadosamente controlado ou totalmente eliminado, o etnógrafo precisa se tornar sensível e atento à forma como ele é visto e tratado por outros. Considerar as inevitáveis consequências de nossa própria presença em campo retira qualquer mérito especial dos papéis do observador desengajado, não intrusivo e marginal, que tiveram longa influência como o ideal implícito na pesquisa de campo. Muitos etnógrafos contemporâneos defendem o engajamento em papéis altamente participativos (ADLER, ADLER, E ROCHFORD, 1986) em que o pesquisador de fato desempenha as atividades que são centrais para a vida das pessoas estudadas. Nessa perspectiva, assumir a responsabilidade real de efetivamente executar funções essenciais e tarefas, como em um programa de estágio e treinamento, oferece oportunidades especiais 8 Georges e Jones (1980) descrevem muitos exemplos de pesquisadores de campo cuja pesquisa se desenvolveu diretamente a partir do tipo de relação que eles estabeleceram com aqueles com quem se encontraram no campo. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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para a aproximação, a participação e a experiência de vida em ambientes até então desconhecidos. O estagiário com responsabilidades concretas de trabalho ou o pesquisador que participa da vida da aldeia se engajam ativamente em atividades locais, sendo socializados para – e adquirindo empatia por – formas locais de agir e sentir. Finalmente, a participação próxima e contínua na vida dos outros incentiva a apreciação da vida social como constituída por processos em curso, fluidos. Através da participação, o pesquisador de campo vê em primeira mão e de perto como as pessoas lidam com a incerteza e a confusão, como os significados surgem através da fala e da ação coletiva, como compreensões e interpretações mudam com o tempo. De todas essas maneiras, a proximidade da vida e das atividades diárias dos outros aumenta a sensibilidade do pesquisador à vida social como processo.

Inscrevendo realidades observadas/ vividas Mesmo passando por uma ressocialização intensiva, o etnógrafo nunca se torna um “membro” – pelo menos não no mesmo sentido em que aqueles que se encontram “naturalmente” no cenário são “membros” do grupo9. O pesquisador planeja sair do cenário após uma estada relativamente breve, e sua experiência da vida local é colorida por essa transitoriedade. Como resultado, “a participação do pesquisador não é tão comprometida nem tão cerceada quanto a do nativo” (KARP e KENDALL, 1982, p. 257). Além disso, o pesquisador se orienta para 9 Por exemplo, o estagiário é constrangido por demandas do seu trabalho, perdendo na maioria das vezes a habilidade de se deslocar pelos entornos sem embaraço. Por outro lado, tanto o pesquisador quanto o estagiário são membros temporários no ambiente e, frequentemente, a eles é outorgado um status inferior, marginal.

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muitos eventos locais não como a “vida real”, mas como objetos de possível interesse de pesquisa, como eventos que ele pode optar por escrever e preservar em notas de campo. Dessa forma, os compromissos de investigação e escrita qualificam a imersão etnográfica, fazendo com que o pesquisador de campo seja, no mínimo, algo como um estrangeiro e, no limite, um alienígena cultural10. “Notas de campo” são relatórios que descrevem experiências e observações que o pesquisador teve ao participar de forma intensa e envolvida. Contudo, redigir relatos descritivos de experiências e observações não é um processo tão simples e transparente como poderia parecer inicialmente. Redigir uma descrição não é meramente uma questão de capturar com precisão, da maneira mais próxima possível, a realidade observada, de “colocar em palavras” atividades testemunhadas e conversas escutadas por acaso. Encarar a redação de descrições meramente como uma questão de produção de textos que corresponderiam com precisão ao que foi observado é assumir que existe somente uma única “boa” descrição de qualquer evento particular. Contudo, na verdade, não há uma forma “natural” ou “correta” de

10 Geertz (1976) e Bittner (1988) exploram algumas das implicações que se sucedem do reconhecimento de que um etnógrafo deve necessariamente permanecer, pelo menos parcialmente, um outsider. Em primeiro lugar, ter “estado lá” e “visto por mim mesmo” não os investe de uma autoridade convincente para escrever relatórios sobre outro mundo, dado que a experiência do etnógrafo sobre outro mundo não replica as experiências dos membros de forma absoluta, mas se aproxima delas. Ver também a discussão sobre o “realismo etnográfico” em Marcus e Cushman (1982). Segundo, os limitados compromisso e apreciação de constrangimentos do etnógrafo promovem uma compreensão dos mundos dos outros como subjetivamente percebidos e construídos – logo, sem os “traços de profundidade, estabilidade e necessidade que as pessoas reconhecem como inerentes de fato nas circunstâncias de sua existência” (BITTNER, 1988, p. 155). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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escrever sobre aquilo que alguém observa. Pelo contrário: dado que descrições envolvem questões de percepção e interpretação, é possível produzir diferentes descrições dos “mesmos” eventos e situações. Consideremos, por exemplo, as descrições apresentadas a seguir sobre o deslocamento através de “filas expressas” em três supermercados de Los Angeles, produzidas por três pesquisadores estudantes. Essas descrições compartilham uma série de características em comum: todas apresentam os eventos do ponto de vista dos consumidores e observadores se movimentando através das filas do “caixa rápido”; todas fornecem descrições físicas dos demais participantes relevantes nas filas (o caixa, outros fregueses) e de pelo menos alguns dos itens que estão sendo comprados; todas prestam minuciosa atenção a detalhes específicos do comportamento nas filas expressas. No entanto, cada um desses relatos de campo toma um rumo diferente na descrição de uma fila. Cada um seleciona e enfatiza certas características e ações, ignorando e marginalizando outras. Além disso, essas descrições são redigidas a partir de diferentes pontos de vista, moldando e apresentando o que aconteceu nas linhas expressas de diferentes maneiras – em parte porque os pesquisadores observam pessoas diferentes em ocasiões diferentes, mas também em parte porque eles fazem distintas opções na redação. Fila expressa do Mercado Mayfair Havia quatro pessoas na fila com suas compras separadas por uma barra de borracha retangular preta de 45 cm. Coloquei meus sacos congelados para baixo na esteira rolante e consegui alcançar uma das barras pretas no topo da caixa registradora, para separar meus artigos. A caixa era uma mulher na casa dos trinta, cerca de 1.55m de altura, de pele escura e cabelo castanho escuro e cacheado. Eu não conseguia 363

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ouvir o que ela dizia, mas reconheci algum sotaque na sua fala. Ela vestia uma blusa branca, de mangas curtas, com um avental marrom-avermelhado11 sobre os ombros. Ela usava uma gravata borboleta – não como as gravatas masculinas, mais frouxa e fofa. A etiqueta em letras vermelhas com seu nome, do seu lado esquerdo do seu peito, dizia “Candy”. [Descreve os dois primeiros homens no início da fila] A mulher atrás dele era de pele escura, com cabelo liso castanho escuro cortado em estilo pageboy12. Ela estava vestindo um suéter azul-piscina, com pescoço em “gola V”, e calças pretas. Em sua seção havia suco – uma lata de suco de abacaxi, e um pacote com seis “sucos de tomate V-8”. O cara na minha frente usava uma camisa pólo rosa e um short curto. Ele tinha 1.85m, era magro, bronzeado, com cabelo curto loiro, com um aro de ouro de 2,5 cm em sua orelha esquerda (tive a impressão de que ele era gay). Em seu espaço, ele tinha cenouras embaladas, um galão de leite integral e um pacote de pedaços de carne de porco. Candy gastava pouco tempo com cada pessoa: ela dava um “Olá”, informava o valor, dinheiro era oferecido, e o troco colocado de volta sobre uma prateleira/suporte que estava na frente do cliente. Antes que Candy devolvesse à mulher de cabelos escuros seu troco, notei que o homem de camisa rosa havia se mudado para seu território espacial de “cliente” – provavelmente a uns 30 cm dela, e na posição que os outros haviam tomado quando era a vez deles, na frente do ‘suporte para preenchimento 11

No original, “maroon” (Nota do tradutor).

12 Pageboy é um estilo de corte de cabelo que foi relativamente popular nos anos 1950-1960, supostamente semelhante ao que seria adotado pelos jovens pajens ingleses no Renascimento – cabelos lisos com franja, cobrindo as orelhas – como, por exemplo, o corte de cabelo adotado pelos membros da banda musical Beatles (Nota do Tradutor). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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de cheques’. (Me ocorreu que era interessante que as pessoas parecessem mais preocupadas com a separação apropriada da comida de uns e outros do que com a localização dos corpos). (...) À medida que caminhei em direção ao suporte (onde tudo parecia estar acontecendo), disse “Oi”, Candy respondeu “Oi” de volta enquanto escaneava minhas compras com o scanner de preços.

Este observador descreve a linha espacialmente, em termos de pessoas individuais (aparência física e vestuário) e seus mantimentos, como foram deixados antes de serem levados adiante (“em seu espaço, ele tinha...”). Na verdade, este relatório destaca, como um tópico paralelo, o contraste entre o cuidado tomado para com a separação entre os itens de mercearia e o aparente descaso para com o espaço físico que ocorre na “prateleira de preenchimento de cheques”, no momento em que um cliente está prestes a sair e o seguinte na fila a se posicionar. Fila expressa do Ralph, manhã de Páscoa Segui para a direita em direção à plataforma de check-out com minha alface, para guarnecer a salada de arroz que eu estava levando pro brunch, e minha garrafa de Gewurtztraminer, meu vinho favorito, que eu teria que gelar na meia hora seguinte. Quando me aproximei das plataformas, percebi que a fila de “somente até 10 volumes – apenas dinheiro” seria minha melhor escolha. Reparei que Boland estava atrás do balcão de registro. Ele é sempre muito afável comigo: “Ei, como você está?”. Fiquei atrás da mulher que já estava lá. Ela havia deixado uma das barras separadoras de borracha por 365

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trás das coisas que ela ia comprar, um dos poucos gestos pessoais amigáveis que se pode fazer nesse tipo de fila altamente rotinizada. Apreciei isso, e teria agradecido a ela (sorrindo, provavelmente), mas ela já estava olhando para frente, antecipando sua saída, suponho. Depositei meu vinho e alface. Já havia alguém atrás de mim. Eu queria demonstrar a gentileza de oferecer uma barra separadora de borracha para os outros também. Esperei até que a comida na frente da minha tivesse sido movida adiante o bastante para que eu pudesse alcançar a barra, que estava na frente do local onde as barras ficam (existe uma palavra para isto? “Porta-barras”?), de modo que eu não tivesse que fazer um movimento largo e exagerado por sobre produtos que não eram os meus, atraindo atenção para mim. Aguardei e então, finalmente, a barra estava à vista. Peguei-a, e depois a coloquei atrás de meus artigos, olhando para a mulher atrás de mim e sorrindo para ela neste meio tempo. Ela pareceu contente e um pouco surpresa, e eu estava feliz por ter sido capaz de fazer esse pequeno favor. Ela era uma mulher bonita, loira, e estava comprando uma garrafa de champanhe (talvez também pro seu brunch de Páscoa?). Ela usava o que parecia ser um vestido de Páscoa – de algodão, bonito e florido. Ela parecia bastante jovem. Talvez da minha idade. Ela era muito alta para uma mulher, talvez 1.75m ou algo assim. A mulher adiante de mim não demorou muito. Eu aprendera, razoavelmente bem, como aguardar em filas e não ficar impaciente. Boland, o caixa, me viu e disse “olá! Como você está?” ou algo parecido...

Essa observadora descreve a movimentação pela fila do modo como ela experimentou o processo, instante a instante, contextualizando suas leituras do comportamento dos outros a partir da maneira como ela

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recebeu, compreendeu e reagiu a tais comportamentos. Esse estilo de descrição dá ao leitor acesso exclusivo aos pensamentos e emoções do observador: por exemplo, se o espaço é uma questão, esta é elaborada não em termos de distâncias físicas, mas de suas implicações subjetivas e emocionais para o observador (e. g., evitando “um movimento largo e exagerado por sobre produtos que não eram os meus”). No próximo fragmento, o autor desloca o foco de si mesmo para os outros: Fila Expressa do Boy’s Market (...) Peguei uma fila longa. Embora a loja estivesse calma, a fila do caixa rápido era longa. Um bocado de gente fez pequenas compras hoje. Eu estava atrás de um homem com apenas um pacote de pão de forma. Havia um carrinho de compras do lado dele, lá parado, e me ocorreu que alguém o abandonara (havia alguns itens dentro dele). Um minuto depois, um homem apareceu e o “reivindicou”, segurando-o. Ele não tentou, de fato, asseverar que estava de volta na fila. Aparentemente, ele saíra pra pegar algo que esquecera. Contudo, ele também não se posicionou atrás de mim. Senti a necessidade de perguntar se ele estava na fila, de modo que eu não furasse a vez dele. Ele respondeu que sim; tentei me posicionar atrás dele – estávamos meio que lado a lado – e comentei “ok, sei que você está”. Uma senhora idosa estava atrás de mim agora. Ela levava seus produtos em um daqueles carrinhos que gente idosa costuma usar pra carregar suas compras pra casa. Ela estava folheando o National Enquirer, segurando um cupom na mão. Folheou algumas páginas do jornal, e depois voltou a colocá-lo na prateleira. Olhei adiante, em direção à pessoa cujos mantimentos estavam sendo passados – esta observava atentamente o preço de cada item, à medida que o mesmo aparecia na caixa 367

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registradora. A esta altura, o cara com quem eu tinha conversado primeiro, o cara que estava bem na minha frente, fez uma cara de espanto e passou por mim, em direção a um carrinho abandonado no fim do corredor. Ficou olhando pro conteúdo deste, manuseando com interesse os poucos itens que estavam no carrinho, e depois os colocando de volta. Me ocorreu que ele tinha visto outra coisa que queria, ou algo que tinha esquecido. Ele voltou para seu carro. Logo em seguida, no entanto, um funcionário do supermercado passou ali perto e ele o chamou, andando em direção ao carro e apontando: “Vocês recebem muitos itens como estes aqui atrás?”. O empregado hesitou, parecendo não entender a pergunta, e disse que não. O cara da fila disse: “Você vê o que tem aqui? Isto aqui é [um tipo de comida enlatada pra criança]. É comida de pobre. E você está vendo esta [palha de cobre pra limpeza de panelas]? Eles usam isso para fumar crack”13. O empregado olhou surpreso. O cara diz: “Eu só estava pensando. Isso é bem típico desta área”. O empregado: “Eu moro aqui e não sabia disso”. O cara: “Você não assistiu o canal 28 ontem à noite? O empregado: “Não”. O cara: “Eles fizeram um relatório sobre os problemas da cidade”. O empregado, se afastando: “Eu assisto apenas ao National Geographic, à MacNeil-Lehrer Hour, e à NPR”. Ele segue se afastando... Nesse meio-tempo, o homem com o pão já tinha pagado. Enquanto ele aguarda, brevemente, por seu troco, o “cara” fala: “Longa espera por um pacote de pão de forma”. O outro respondeu: “pois é”, e acrescentou em tom jocoso, olhando para o caixa enquanto falava, como que para avaliar sua reação: 13 Alusão à prática de se usar esponjas metálicas de cobre como filtros para se fumar crack. (N. do T.) Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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“esses caixas são lentos”. O caixa não pareceu ter ouvido. O homem com o pão sai, o cara na minha frente está pagando agora. O cara fala pro caixa: “qual o problema? Final do teu turno? Não sobrou nenhum senso de humor?”. O caixa responde “Não. Estou cansado”. O cara: “Entendo”14. O cara fala para o empacotador: “Você pode embalar em papel e plástico, por favor, Jacob [ele enfatiza o uso do nome do empacotador]?”. Jacob obedece, mas não dá qualquer outro sinal de ter ouvido o outro. O cara aguarda o término da transação, encostado no corrimão e cantarolando a letra da música de fundo da loja. Algo de Peabo Bryson. A compra do cara termina. Ele agradece ao embalador, e este, em resposta, lhe deseja um bom dia. O caixa diz, pra mim: “Como você está?”...

Nessas notas, o observador inicialmente redige para si mesmo um papel importante na fila, mas, em seguida, move-se para os bastidores, direcionando os refletores para o temperamento de uma pessoa que diz e faz certo número de coisas extravagantes enquanto está na fila. Essa fila expressa se torna uma minicomunidade, primeiramente marcada pelas trocas que se desenrolam entre as pessoas na fila, em seguida, arrastando para dentro de si um empregado que se encontrava de passagem, e culminando com as interações entre este personagem, o caixa e o embalador. Escrever descrições de campo, então, não é tanto uma questão de registrar passivamente “fatos” que “de fato aconteceram”.

14 No original, “I hear you” – expressão sugestiva de certa ironia: conforme o tom/contexto de uso, pode expressar que o sujeito compreendeu (“ouviu”), porém, não concorda ou duvida de algo que lhe foi dito (N. do T.).

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Pelo contrário, esta atividade de escrita envolve processos ativos de interpretação e atribuição de sentido: percebendo e pondo no papel algumas coisas como “relevantes”; percebendo, porém, ignorando outras como “não relevantes”, e inclusive deixando de perceber outras coisas possivelmente significativas, tudo isso simultaneamente. Em função disso, eventos similares (ou até o “mesmo” evento) podem ser descritos com diferentes propósitos, com diferentes preocupações e sensibilidades. No tocante a esse ponto, é importante reconhecer que notas de campo envolvem inscrições da vida social e do discurso social. Tais inscrições inevitavelmente reduzem o tumulto e a confusão do mundo social a palavras escritas, que podem ser analisadas, estudadas e pensadas sucessivas vezes ao longo do tempo. Como Geertz (1973, p. 19) caracterizou este processo central da etnografia: “O etnógrafo inscreve o discurso social, ele o põe no papel. Procedendo deste modo, ele o transforma, de evento passageiro, que existe tão somente no momento em que ocorre, em um relato15, que existe em sua inscrição e pode ser novamente consultado”. Como inscrições, notas de campo refletem (e são produto de) convenções para a transformação de eventos, pessoas e lugares testemunhados em palavras no papel16. Em parte, essa transformação envolve processos inevitáveis de seleção; o etnógrafo escreve sobre 15

No original, “an account”. (N. do T.)

16 De modo semelhante, Latour (1987, p. 68) conceitua a ciência de laboratório como uma forma distintiva de inscrição, focando o modo como cientistas transformam uma série de procedimentos laboratoriais em textos e encarando os vários instrumentos empregados para isso como “dispositivos de inscrição”. Ver também Latour e Woolgar (1979). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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certas coisas e assim, necessariamente, “deixa de fora” outras. Contudo, mais do que isso, notas de campo descritivas também, inevitavelmente, apresentam ou enquadram um objeto de maneiras particulares, perdendo outras formas pelas quais esses eventos poderiam ter sido apresentados ou enquadrados. E essas apresentações refletem e incorporam as sensibilidades, os significados e as compreensões que o pesquisador de campo foi ganhando, por ter estado perto e participado dos eventos descritos. Há outras maneiras de reduzir o discurso social à forma escrita. Questionários de surveys, por exemplo, registram “respostas” a perguntas pré-estabelecidas, por vezes reduzindo essas respostas a números, por vezes preservando algo das palavras dos próprios respondentes. Gravações de áudio e vídeo, que aparentemente capturam e preservam praticamente tudo que ocorre dentro de uma interação, na realidade, não apreendem senão uma fatia da vida social em curso. O que é registrado depende, em primeiro lugar, de quando, onde e como o equipamento é posicionado e ativado, o que este consegue captar mecanicamente, e como aqueles que estão sendo filmados ou gravados reagem a sua presença. Redução posterior ocorre com a representação de uma fatia de discurso incorporado como sequências de linhas em um texto escrito em uma “transcrição”, pois, enquanto a fala nos cenários sociais é um evento “multicanal”, “a escrita é linear por natureza, e só é capaz de gerir um canal por vez, de modo que esta precisa selecionar e escolher algumas das pistas disponíveis para a representação” (WALKER, 1986, p. 211). Uma transcrição, de fato, seleciona dimensões e conteúdos particulares do discurso para inclusão, ignorando outros – por exemplo, sinais não verbais que apontam para significados locais, como gestos, posturas e 371

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olhares. Pesquisadores investigando performances orais dedicam um esforço considerável ao desenvolvimento de um sistema de notação para documentar a comunicação verbal e ao menos parte da não verbal; a qualidade do “texto folclórico” transcrito é fundamental, na medida em que ela “representa a performance através de outro meio” (FINE, 1984, p. 03). A transcrição nunca é uma reprodução literal do discurso, porque ela “representa (...) uma interpretação e seleção analítica” (PSATHAS e ANDERSON, 1990, p. 75) da fala e da ação; ou seja, uma transcrição é o produto do processo de decisões analíticas e interpretativas de um transcritor acerca de uma variedade de assuntos problemáticos: como transformar a fala espontânea em palavras escritas (em face de elisões naturais da fala); como determinar onde pontuar, de modo a indicar uma frase ou sentença completa, dada a falta de clareza das finalizações na fala comum; a decisão de representar ou não coisas como ‘espaços’ e ‘silêncios’, sobreposição de falas e sons, acentos rítmicos e volume, sons e palavras inaudíveis ou incompreensíveis17. Em suma, até mesmo aqueles meios que os pesquisadores reivindicam que se aproximariam a um “espelhamento objetivo” fazem necessariamente reduções na complexidade da experiência social vivida – similares, em princípio, àquelas realizadas na escrita das notas de campo18. 17 Todos esses tópicos têm que ser manejados através do desenvolvimento de series de convenções de escrita. Ver Psathas e Anderson (1990) para uma revisão dos “símbolos de transcrição” centrais utilizados na produção de transcrições para a análise de conversações. 18 Comparando notas de campo com transcrições de gravações de áudio e vídeo enquanto diferentes métodos de redução do fluxo da vida social a textos, não pretendemos sugerir um modelo de pesquisa etnográfica que empregue somente o primeiro. Pelo contrário, a maioria dos pesquisadores de campo contemporâneos de ampara fortemente sobre ambos, sobre notas de campo e gravações. Os manuais de pesquisa de campo, hoje em dia, usualmente discutem métodos variados de documentação da pesquisa, e Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Dado o reducionismo de qualquer método de inscrição, a escolha do método reflete as assunções mais profundas do pesquisador acerca da vida social e do modo de compreendê-la. O trabalho de campo e, em ultima instância, as notas de campo, são assentados numa visão da vida social como continuamente criada pelos esforços das pessoas para encontrar e conferir sentido a suas ações e às de terceiros. Dessa perspectiva, a entrevista e a gravação têm sua utilidade. Na medida em que os participantes estão dispostos e são capazes de descrever essas características da vida social, uma entrevista pode se revelar uma ferramenta preciosa. Da mesma forma, uma gravação de vídeo fornece um valioso registro de palavras efetivamente proferidas e gestos efetivamente feitos. Contudo, o ethos do trabalho de campo sustenta que, para compreender e apreciar a ação a partir da perspectiva dos participantes, é preciso se aproximar e participar de um amplo leque de suas atividades diárias durante um período prolongado de tempo. “Etnografia”, como Van Maanen (1988, p.ix) insiste, é “a prática peculiar dão especial ênfase aos equipamentos de gravação (e.g., Goldenstein, 1964; Ellen, 1984; Jackson, 1987; Wilson, 1986). Stone e Stone (1981), em particular, descrevem as várias formas de mídia empregadas pelos pesquisadores e discutem os tipos de codificação envolvidos, começando pelas notas de campo e se movendo para as gravações. A ênfase relativa colocada sobre a escrita de notas de campo por oposição à gravação, contudo, varia conforme a natureza da disciplina e projeto do pesquisador de campo. Muitos etnógrafos, por exemplo, frequentemente gravam entrevistas informais ao mesmo tempo em que escrevem extensivas notas – prática essencial quando trabalhando em uma língua estrangeira, e frequentemente valiosa quando trabalhando em sua própria língua e cultura. De modo similar, outros pesquisadores de campo complementam seus registros de notas de campo por meio da gravação sistemática de ocasiões significativas ou eventos periódicos que sejam centrais para suas preocupações teóricas. Em contraste, pesquisadores de campo estudando a fala, formas de expressão e tradições orais – tais como sociolinguistas, folcloristas e historiadores orais – frequentemente concedem primazia às gravações em fita, mas ainda assim escrevem detalhadas notas de campo para suplementar os relatos verbais com detalhes contextuais.

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de representar a realidade social dos outros através da análise de sua própria experiência no mundo destes outros”. Notas de campo são, destacadamente, um método para capturar e preservar as percepções e compreensões estimuladas por essas experiências vividas em situação de proximidade e a longo prazo. Assim, notas de campo inscrevem as compreensões e insights, por vezes incipientes, que o pesquisador adquire através da imersão íntima em outro mundo, pela observação em meio a atividades mundanas e crises barulhentas, pelo embate direto com as contingências e os constrangimentos da vida cotidiana de outras pessoas. Na verdade, é exatamente essa imersão profunda – e o sentido de “lugar” de que a imersão se reveste e que é por esta reforçado – que habilita o etnógrafo a inscrever as notas de campo detalhadas, sensíveis ao contexto e localmente informadas que Geertz (1973) denomina como “descrição densa”. Esse caráter experiencial das notas de campo também se reflete nas mudanças no seu conteúdo e nas suas preocupações ao longo do tempo. Notas de campo crescem através de acréscimo gradual, adicionando à escrita de cada dia a do dia seguinte. O etnógrafo escreve notas de campo específicas, de modos específicos, que não são pré-determinados ou préestabelecidos; logo, notas de campo não são coleções ou “amostras” da mesma maneira que as gravações de áudio podem ser, ou seja, definidas previamente conforme os critérios estabelecidos. Escolher o que pôr no papel não é um processo de amostragem de acordo com um princípio fixado a priori. Pelo contrário, é um processo simultaneamente intuitivo, refletindo a percepção dinâmica do etnógrafo acerca do que poderia ser tornado interessante ou importante no futuro, e empático, expressando a percepção do etnógrafo sobre o que é interessante ou importante para Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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as pessoas que ele está observando.

Implicações para a escrita das notas de campo Extraímos quatro implicações de nossa compreensão da etnografia como a inscrição da experiência de participação: (1) aquilo que é observado e, em última instância, tratado como “dado” ou “descoberta”, é inseparável do processo de observação; (2) ao escrever notas de campo, o pesquisador deve dar atenção especial aos significados e preocupações das pessoas estudadas; (3) notas de campo escritas hoje são um alicerce e um recurso essencial para a redação posterior de relatos mais amplos e mais coerentes sobre as vidas e preocupações dos outros; (4) tais notas de campo devem detalhar os processos sociais e interacionais que constituem a vida e as atividades diárias das pessoas.

A inseparabilidade de “métodos” e “descobertas” Formas de participar e de aprender sobre a vida quotidiana dos outros constituem peças-chave dos métodos etnográficos. Esses “métodos” determinam o que o pesquisador de campo vê, experimenta e aprende. Contudo, se a substância (“dados”, “fatos”, “achados”) é produto do método utilizado, ela não pode ser considerada independente do método; aquilo que a etnógrafa ou etnógrafo descobre está intrinsecamente ligado à forma como ela ou ele o descobre. Como resultado, esses métodos não deve ser ignorados. Pelo contrário, devem compreender uma parte importante das notas de campo redigidas. Torna-se, assim, fundamental para o etnógrafo documentar suas próprias atividades, circunstâncias e respostas emocionais, na medida 375

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em que esses fatores moldam o processo de observar e registrar a vida dos outros19. Desse ponto de vista, a própria distinção entre “dados” do trabalho de campo e “reações pessoais”, entre “registros”, “diários” e “agendas de atividades” é profundamente enganadora (SANJEK, 1990). Evidentemente, o etnógrafo pode separar aquilo que ele diz e fala daquilo que ele observa outros dizendo e fazendo, tratando este último material como se ele não fosse afetado pelo primeiro20. Contudo, tal separação distorce o processo do inquérito e o significado dos “dados” de campo, de meia dúzia de maneiras relevantes. Primeiramente, essa separação trata os dados como “informação objetiva”, que teria um significado fixo, independente de como (ou através de quem) a informação foi trazida à tona ou estabelecida. Dessa forma, as ações do próprio etnógrafo, incluindo seus sentimentos e reações, são vistas como independentes e desvinculadas dos eventos envolvendo terceiros, que constituem as “descobertas” ou “observações” quando são postos no papel. Segundo, essa separação assume que as reações e percepções “subjetivas” poderiam e deveriam ser controladas através de sua segregação dos registros “objetivos” e impessoais. E, por fim, tal controle é considerado essencial porque experiências pessoais e emocionais são desvalorizadas, 19 Certo número de pesquisadores examinou os modos plurais pelos quais as relações humanas no campo influenciam os achados finais da pesquisa: ver, particularmente, Clarke (1975); Ellis (1991); Emerson (1988, p. 175-252); Georges e Jones (1980); Kleinman (1991); Reinharz (1979). 20 Como alguns pesquisadores (CLIFFORD, 1983; STODDARD, 1986) demonstraram, a aparente “objetividade” e “autoridade” dos dados etnográficos (e dos “dados científicos”, de modo mais abrangente) é alcançada, em parte, justamente ignorando ou suprimindo sua dependência com relação à pessoa do pesquisador e seus métodos de investigação e escrita. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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compreendendo uma “contaminação” dos dados objetivos, mais do que vias de acesso a uma intuição acerca dos processos significantes no cenário. Vincular método e substância nas notas de campo tem uma série de vantagens. Isso estimula o reconhecimento de que as “descobertas” não são absolutas e invariáveis, mas contingentes às circunstâncias de sua “descoberta” pelo etnógrafo. Além disso, tal vinculação previne ou pelo menos desencoraja o etnógrafo a tomar a versão de uma determinada pessoa sobre algo que ocorreu ou que é importante como a versão “completa” ou “correta”. Pelo contrário, “aquilo que aconteceu” é um relato, feito por uma pessoa específica a outra pessoa específica, em um lugar e tempo específicos, com propósitos específicos. De todas essas formas, conectar método e substância conforma uma sensibilidade às realidades múltiplas e situacionais daqueles estudados no cerne da prática de campo.

A busca dos significados nativos Em contraste com estilos de pesquisa de campo que incidem sobre o comportamento dos outros sem uma atenção sistemática ao que tal comportamento significa para as pessoas engajadas neste, compreendemos a etnografia como comprometida com o desvelar e o retratar desses significados nativos. O objetivo da participação é, em última instância, aproximar-se dos sujeitos estudados, visando compreender o que suas experiências e atividades significam para eles21. 21 A preocupação com os significados nativos e o fornecimento de “relatos sobre outros mundos a partir do seu interior” (MARCUS e FISHER, 1986, p. 26) marcou a

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O etnógrafo deve tentar escrever notas de campo de modo a capturar e preservar significados nativos. Para isso, deve aprender a reconhecer e limitar a dependência em pré-noções acerca da vida e das atividades dos membros. Ele deve se tornar sensível àquilo com que as outras pessoas estão preocupadas, nos termos destas. Contudo, embora as notas de campo versem sobre os outros, sobre suas preocupações e ações recolhidas através de imersão empática, tais notas refletem e transmitem, necessariamente, a compreensão do etnógrafo acerca dessas preocupações e ações. Assim, notas de campo são relatos escritos que filtram as experiências e preocupações dos membros através da pessoa e das perspectivas do etnógrafo; notas de campo fornecem o relato do etnógrafo, e não dos membros, acerca de experiências, significados e preocupações vividos por eles. Pode parecer, a princípio, que as formas de etnografia preocupadas com a “multivocalidade” (CLIFFORD e MARCUS, 1986, p. 15) ou histórias orais e etnografias feministas (STACEY, 1991) que buscam permitir aos membros “falar com suas próprias vozes” poderiam evitar totalmente a mediação do pesquisador. Contudo, mesmo nesses casos, os investigadores continuam a selecionar o que observar, a fazer perguntas, ou a enquadrar a natureza e o propósito da entrevista, de tal maneira que não se podem evitar os efeitos de mediação (ver MILLS, 1990).

Escrevendo notas de campo hoje Em contraste com visões que sustentam que as notas de campo seriam, na melhor das hipóteses, muletas, e, na pior das hipóteses, emergência da “antropologia interpretativa” nos anos 1960 e 1970. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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vendas nos olhos, compreendemos que as notas de campo fornecem os recursos primordiais para uma apreciação mais profunda de como os pesquisadores de campo acabam interpretando e se apropriando das ações e preocupações dos outros. A esse respeito, as notas de campo oferecem compreensões sutis e complexas das rotinas e dos significados vividos por essas outras pessoas. Como argumentado anteriormente, o pesquisador de campo vem a compreender as maneiras dos outros, tornando-se parte de suas vidas e aprendendo a interpretar e experimentar eventos do modo como estes fazem. É de importância crítica documentar de perto esses processos sutis de aprendizagem e ressocialização à medida que ocorrem; a permanência contínua no campo tende a diluir ao longo do tempo as percepções geradas pelo contato inicial com um modo de vida desconhecido. A participação a longo prazo dissolve as percepções iniciais que surgem na descoberta e na adaptação ao que é significativo para os outros; isso embota as sensibilidades iniciais para padrões sutis e tensões subjacentes. Em suma, o pesquisador ou pesquisadora de campo não aprende sobre as preocupações e os significados dos outros de uma só vez, mas em um processo constante e contínuo, no qual constrói uma nova visão e compreensão sustentadas em percepções e compreensões anteriores. Ao invés de tentar reconstruí-los em um momento posterior, à luz de uma interpretação final e definitiva do seu significado e relevância, os investigadores devem documentar esses processos e estágios enquanto emergem. Notas de campo fornecem um recurso específico para a preservação das experiências perto de seu momento de ocorrência e, portanto, para o aprofundamento da reflexão e da compreensão sobre essas experiências. 379

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Considerações similares se sustentam a propósito da análise das “descobertas” do etnógrafo sobre as pessoas estudadas e suas atividades rotineiras. Produzir um registro dessas atividades o mais próximo possível a sua ocorrência preserva seu caráter idiossincrático e contingente, em contraponto às tendências homogeneizantes da lembrança retrospectiva. Em notas de campo imediatamente redigidas, qualidades e características distintivas são agudamente desenhadas, suscitando memórias vívidas e imagens quando o etnógrafo relê suas notas para codificação e análise. Além disso, as características distintivas e únicas de tais notas de campo, trazidas pra dentro da análise final, criam textura e variação, evitando o achatamento que deriva da generalidade.

A importância dos detalhes da interação Os pesquisadores de campo procuram se aproximar dos outros no intuito de compreender seus modos de vida. Para preservar e expressar essa proximidade, devem descrever situações e eventos de interesse em detalhe. Evidentemente, não se podem estabelecer padrões absolutos para determinar quando há “detalhes suficientes”. O quão próximo alguém deve olhar e descrever depende da personalidade, da orientação e da disciplina do pesquisador. Todavia, muitos etnógrafos dão conta dos eventos observados de uma forma íntima ou “microscópica” (GEERTZ, 1973, p. 20-23) e, na escrita das notas de campo, buscam recontar o que “aconteceu” com minuciosos detalhes. Para além desse compromisso geral “microscópico”, no entanto, nossa abordagem especificamente interacionista nos conduz a exortar os escritores a valorizarem relatórios próximos e detalhados sobre a Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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interação. Em primeiro lugar, o registro dos detalhes da interação ajuda o etnógrafo a se tornar sensível para (e a esboçar e a analisar) interconexões entre método e substância. Dado que o pesquisador descobre coisas sobre os outros interagindo com estes, é importante observar minuciosamente e registrar as condições marcando tais interações e sua sequência. Em segundo lugar, ao preservar os detalhes da interação, o pesquisador se torna mais habilitado a identificar e acompanhar os processos em eventos testemunhados e, portanto, a desenvolver e sustentar interpretações processuais sobre acontecimentos ocorridos no campo. Sustentamos que a pesquisa de campo é particularmente adequada para documentação da vida social como um processo, como sentidos que emergem dentro e através da interação social (BLUMER, 1969). Estar alerta aos detalhes da interação amplia as possibilidades para o pesquisador de enxergar além de entidades estáticas e fixas e de captar o “fazer” ativo da vida social. Escrever notas de campo o mais rápida e completamente possível, após a ocorrência de eventos de interesse, favorece descrições detalhadas dos processos de interação através dos quais os participantes no cenário social criam e sustentam realidades sociais específicas.

Reflexões: a escrita de notas de campo e a prática etnográfica A etnografia é uma empreitada ativa. Ela incorpora, ativamente, dois impulsos. Por um lado, a etnógrafa ou o etnógrafo deve construir seu caminho em meio a novos mundos e novas relações. Por outro, ela/ ele deve aprender a representar de forma escrita aquilo que pode ver e compreender como resultado dessas experiências. É fácil traçar um nítido contraste entre essas atividades, entre 381

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fazer trabalho de campo e escrever notas de campo; afinal, enquanto no campo, os etnógrafos devem frequentemente escolher entre “participar de conversas em lugares desconhecidos” (LEDERMAN, 1990, p. 72) e retirar-se para algum lugar mais privado para escrever sobre essas conversas e eventos testemunhados. Ao localizar a “etnografia real” no tempo gasto conversando e ouvindo os sujeitos da pesquisa, muitos etnógrafos não apenas polarizam, mas também desconsideram a escrita das notas como um componente central do trabalho de campo. “Fazer” e “escrever” não deveriam ser vistos como atividades separadas e distintas, mas como atividades dialeticamente relacionadas e interdependentes. Redigir relatos sobre o que aconteceu durante os encontros face a face com outros no campo é uma parte muito importante do fazer da etnografia – como Geertz enfatiza, “o etnógrafo inscreve o discurso social” (1973, p. 19). Esse processo de inscrição (de escrita de notas de campo) auxilia o pesquisador, antes de mais nada, a compreender o que ele vem observando – e, desse modo, habilita-o a participar de novas maneiras, a ouvir com mais perspicácia e a observar com novas lentes. Embora os etnógrafos cada vez mais reconheçam a centralidade da escrita em seu ofício, eles frequentemente divergem quanto à maneira de caracterizar tal escrita e sua relação com a pesquisa etnográfica. Alguns antropólogos criticam a noção de Geertz de “inscrição” como demasiadamente mecânica e simplista, por ignorar que o etnógrafo não escreve sobre um “evento passageiro”, mas sim sobre algo “previamente formulado, discurso ou narrativa fixo”. Consequentemente, a inscrição deveria, mais apropriadamente, ser chamada de “transcrição” (CLIFFORD, 1990, p. 57). A noção de “inscrição” também tem sido criticada por ser demasiado enredada nos supostos de uma “etnografia de resgate”, que Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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remonta aos esforços de Franz Boas para “pôr no papel” culturas orais antes que estas, suas línguas e seus costumes desapareceram (CLIFFORD 1986, p. 113). Com efeito, etnógrafos sugeriram certo número de formas alternativas de caracterizar a escrita etnográfica. Os antropólogos usam, frequentemente, a noção de “tradução” (ou “tradução cultural”) para se referir à escrita de uma versão sobre uma determinada cultura que visa torná-la compreensível para leitores que vivem em outra. Clifford (1986) e Marcus (1986) usam o termo mais abstrato “textualização” para se referir aos processos genéricos pelos quais uma etnografia “traduz a experiência em texto” (CLIFFORD, 1986, p. 115). E, sociólogos, notadamente Richardson (1990), descrevem o núcleo da escrita etnográfica como prática de “narração”. Em geral, no entanto, essas abordagens confundem a redação final das etnografias com a redação de notas de campo etnográficas; desse modo, são incapazes de iluminar adequadamente os principais processos e recursos de produção de notas de campo. De fato, cada uma dessas abordagens tem contemporaneamente implicações para a escrita sobre eventos testemunhados no campo. Primeiramente, “tradução” implica na reconfiguração de um conjunto de conceitos e termos para outro – ou seja, o etnógrafo busca por conceitos comparáveis e termos análogos. Em certo sentido, ao redigir notas de campo, o etnógrafo ou a etnógrafa está sempre interpretando e traduzindo em texto o que ele ou ela vê, mesmo quando escreve essas notas apenas para si mesmo. É claro que, ao compor a etnografia final, o escritor não se limita a traduzir conceitos, mas também a todo um modo de vida para um público futuro que pode não estar familiarizado com o mundo que ele descreve. Em segundo lugar, a “narração” frequentemente caracteriza de forma apropriada 383

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o processo de escrever sobre experiências vividas em um dia em uma entrada nos cadernos de campo. No entanto, nem todas as experiências de vida são bem representadas como histórias integradas; uma narrativa pode comprimir interações abertas ou desarticuladas em uma sequência coerente e interligada. Assim, embora muitas notas de campo dissertem sobre um determinado dia em um modo “narrativo”, reapresentando o que aconteceu em uma ordem cronológica, a maioria das entradas não tem qualquer estrutura global que una os acontecimentos diários em uma história com um argumento central. Como resultado, a narrativa nas notas de campo é, geralmente, fragmentada e episódica. Finalmente, a noção de “textualização” claramente se centra na transformação mais ampla da experiência em texto, não apenas nas etnografias finais, mas especialmente na escrita das notas de campo. De fato, essa transformação ocorre pela primeira vez nos escritos preliminares e diversificados produzidos em campo. Além disso, essas notas de campo frequentemente prefiguram os textos finais! Em suma, os processos fluidos e abertos de escrita das notas de campo ressoam com o imaginário de todas essas abordagens. As “notas de campo” fazem mais do que ‘registrar’ observações; jamais são uma simples questão de inscrever o mundo. Em um sentido fundamental, elas constituem um modo de vida através das próprias escolhas de escrita que o etnógrafo faz e das histórias que ele conta, pois, através de sua escrita, o etnógrafo transmite suas percepções e compreensões para futuros leitores não familiarizados com essas vidas, essas pessoas e esses eventos. Ao escrever uma nota de campo, então, o etnógrafo faz mais que meramente colocar acontecimentos em palavras. Pelo contrário, tal escrita é um processo interpretativo: é o primeiro de todos os atos Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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de textualização. Na verdade, esse trabalho muitas vezes “invisível” – a redação de notas de campo etnográficas – é a textualização primordial que cria um mundo na página e, em ultima instância, molda o texto etnográfico final, publicado.

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As Belas-Artes como um fator dinâmico na sociedade1 Johanna Odenwald-Unger

A Apoteose da Guerra (1871), de Vasily Verestchagin (1842-1904)2

1 Trabalho apresentado no 1º encontro da Associação Americana de Sociologia, em 1906, e publicado posteriormente no American Journal of Sociology, Vol. 12, No. 5 , mar., 1907. O texto original encontra-se disponibilizado em sistema de livre acesso/ domínio público pelo Jstor, em http://www.jstor.org/stable/2762376. Tradução para a língua portuguesa por Leandro de Oliveira (Professor do Departamento de Ciências Sociais da URCA). 2

Fonte: State Tretyakov Gallery (Moscou, Rússia). Disponível em: http://www. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

As Belas-Artes como um fator dinâmico na sociedade

Antes de iniciar minha exposição apropriadamente, devo explicar o termo “dinâmico” empregado em meu título. Ele foi tomado de empréstimo da Sociologia Dinâmica, do professor Ward, e é empregado no mesmo sentido em que é usado na física – especificamente, denotando força, um agente propulsor3. A tese desta apresentação é baseada na teoria de que as sensações, emoções e paixões da humanidade constituem o agente propulsor ou o elemento dinâmico na sociedade, correspondendo às forças físicas nos reinos inferiores da natureza, e de que estas podem ser controladas e guiadas em direção a canais benéficos por meio de planejamento inteligente, assim como as forças físicas (vento, água, fogo, eletricidade) estão sendo assim controladas e guiadas pelas invenções dos homens. Meu segundo argumento é de que, nas belasartes, incluindo o drama e a ficção, esse elemento dinâmico encontra sua expressão mais perfeita e poderia, se compreendido apropriadamente, ser empregado pelo sociólogo e se tornar uma poderosa ajuda para ele. Este paper foi inspirado pela crença de que isso não é usualmente reconhecido pelos sociólogos e de que eles, pelo contrário, consideram as belas-artes como algo completamente externo a seu domínio, como pertencendo a um lado da mente humana o qual não diz respeito a eles como sociólogos – nomeadamente, à faculdade estética, a qual extrai prazer da contemplação da beleza e da harmonia, mas supostamente não toma parte no melhoramento da sociedade, se afastando com impaciência e dor das desarmonias e imbecilidades da vida para habitar tretyakovgallery.ru/en/collection/_show/image/_id/183 3 Alusão à obra de Lester Frank Ward, então primeiro presidente da recém-criada American Sociology Association, que estava presente no congresso em que a autora originalmente apresentou esse texto sob a forma de comunicação. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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em um reino ideal, onde a beleza e a felicidade imperam. “Não há nada dinâmico na influência das belas-artes”, diz Ward em sua Sociologia Dinâmica: Prazerosas em si mesmas e, portanto, fontes de felicidade, sua influência é confinada ao presente imediato, e é incapaz de oferecer qualquer colaboração permanente para o progresso social. Seu estudo pertence totalmente ao departamento da estática social, e esta breve menção visa meramente fixar sua verdadeira posição e exibir seu caráter negativo.4

Em sua Sociologia Pura, ele afirma: Diz-se que a arte é não progressiva, que ela não tem qualquer propósito útil no mundo. Que ela não eleva o tom moral da sociedade; que ela não acrescenta qualquer verdade nova ao estoque de conhecimento do homem; que ela não deixa o homem mais confortável, nem melhor, nem mais sábio. Isto poderia até ser verdade, sem, contudo, constituir um argumento contra o cultivo da faculdade estética. O amor ao belo e a busca do belo não pretendem constituir uma força ontogenética ou filogenética na sociedade. Eles constituem uma força sociogenética típica. A arte é uma agência socializadora. É uma agência da civilização, na medida em que difere da preservação ou perpetuação. Ela não é uma necessidade; deveríamos chamá-la de luxo? Ela é muito mais. Em uma “economia da dor”, esta pode ser um luxo, mas, acima disto, esta pode ter utilidade. Ela se torna, finalmente, uma necessidade espiritual. Logo que a categoria de vontades que podem ser distinguidas como “necessidades” é satisfeita, este anseio espiritual, o qual, como vimos, é plantado 4 No texto original em língua inglesa não constam as referências das obras consultadas pela autora. O trecho citado foi extraído de WARD (1883) [N. do T.].

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profundamente na natureza animal, se afirma de uma só vez; e a satisfação de um anseio espiritual é tão importante quanto um anseio material. Este serve para dilatar o volume da vida. Os homens têm interesses estéticos assim como interesses econômicos, e suas reivindicações são igualmente legítimas5.

Embora reconhecendo plenamente as belas-artes como agências civilizadoras, ele considera sua influência restrita a uma categoria de vontades, os desejos estéticos da humanidade, e sustenta que elas não têm nem desejam ter qualquer parte no melhoramento da sociedade, exceto na medida em que elas acrescentam algo ao volume da vida. Quanto à origem da faculdade estética, esta deveria ser encontrada muito atrás, na vida animal e vegetal, onde ela desperta como um suporte às forças reprodutivas; formas agradáveis, cores, sons e perfumes na planta e no animal sendo produzidos como resposta a um desejo de agradar e atrair o outro sexo. Ela se origina como um meio para um fim muito importante – um fim sem cuja realização a raça ou espécie teriam perecido. Contudo, na raça humana, ela se torna gradualmente um fim em si mesma. Uma vez que a faculdade estética ou a apreciação da beleza se estabeleceram firmemente, sua satisfação se tornou finalmente a única finalidade. “Ela, de fato, cria o desejo de modo a satisfazê-lo”, diz o Sr. Ward. Essa atitude em face da arte explica plenamente a indiferença comparativa do sociólogo e de todos que têm que lidar com fenômenos sociais. Se a finalidade de um objeto de arte é meramente agradar e gratificar um senso estético que não tem qualquer relação com os problemas e dificuldades da vida, então a arte jaz fora 5

Cf. WARD(1903) [N. do T.]. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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do domínio do sociólogo. Mas seria isso verdade? Os grandes artistas do mundo se satisfizeram meramente em agradar e entreter os homens? Isso é possivelmente verdade sobre a arte dos povos primitivos, e sobre um importante ramo da arte hoje. Nós poderíamos chamá-la de arte “idealista”, por oposição à arte “realista”. Não que eu considere esta uma terminologia perfeitamente correta, pois a arte idealista deveria também ser realista ou verdadeira com relação à natureza; contudo, ela servirá para nosso presente propósito. Essa arte idealista, a qual é de fato um fim em si mesma, é para muitos da profissão – assim como para o leigo – encarada como a única arte apropriada e legítima, e sua finalidade, o desejo por beleza e harmonia, o único fim legítimo, encontraria expressão no mote “A arte pela arte”. Alguns, de fato, reivindicam que este é o mais nobre e elevado objetivo que a arte pode ter – mais especificamente, mitigar e deleitar a mente cansada, fazer o homem se esquecer das preocupações e problemas da vida, criar para ele um ideal de harmonia e felicidade, e trazê-lo pra perto daquele paraíso de fábula com o qual ele sempre sonhou, mas nunca alcançou. Um paraíso no qual a arte, isoladamente, poderia fazê-lo pelo menos fantasiar ter entrado por um momento. Mas o que deveríamos dizer da outra arte, usualmente chamada de “realista”, a qual teve como expoentes alguns dos maiores – senão os maiores – gênios do mundo? O que deveríamos dizer da arte de Tolstoy, Ibsen, Hauptmann, Sudermann, Bernard Shaw, Zola, Flaubert? E, quanto às pinturas de Verestchagin, Sleevogt, Uhde; às esculturas de Meunier, Rodin, Sinding; ou à música de Wagner, Berlioz, Grieg ou Glazounov? Sei que alguns críticos sustentam que isso não é arte de fato, mas caprichos de mentes perturbadas ou o tenebroso pessimismo de homens fracassados. Mas essa é a mais fútil das críticas. O fato é que os 393

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grandes artistas de todos os tempos não desejavam meramente agradar; eles, com muito mais frequência, nos chocavam. Seu alvo tem sido ser verdadeiros e, por meio dessa própria verdade, provocar os homens, revolver suas emoções, trazer uma letárgica e preguiçosa humanidade à percepção dos erros, da injustiça, da crueldade e da indiferença que reinam na sociedade. Voltemos nosso olhar para um país que, mais do que qualquer outro dos países civilizados, está sofrendo mazelas incomensuráveis sob a indiferença, a ganância, a crueldade e a estupidez de suas assim chamadas classes superiores. A arte poderia ser chamada de “luxo”, se nela nós ouvimos, muito pelo contrário, toda a ânsia apaixonada, o horror infinito, a dor e a miséria silenciosas, por um lado, e, por outro, o frenesi revolucionário, o chamado imperioso por justiça, o apelo sempre renovado à inteligência das pessoas para que corrijam seus erros? Eu falo da Rússia. Gostaria de ter trazido comigo uma orquestra para tocar para vocês a mais selvagem composição de Tchaikowski, Rachmaninov, Glazunov. Vocês não pensariam que a música pretende meramente agradar. Na música, todas as emoções de um povo – suas ânsias, aspirações, paixões, todas as suas vontades e desejos que não podem ou não se atrevem a encontrar expressão em palavras – são expressadas, mas também a alegria, seus triunfos, sua felicidade e seu deleite. Se, como o Sr. Ward diz, “devemos admitir o direito do sentimento (ou, se você preferir, da paixão) de governar o mundo”, então, esse fator dinâmico, essas emoções emergentes – até agora inarticuladas e sem nenhum intelecto para guiá-las – encontram expressão na música, sendo, do modo como de fato foram, trazidas à consciência das pessoas, reiteradas nas tensões apaixonadas da arte harmônica. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Nas palavras de Tolstói: O que é “música”? O que a música realiza? Diz-se que a música eleva a alma. Disparate. Uma mentira, uma vil mentira! Sim, ela tem um efeito – falo sobre mim mesmo; ela tem um poderoso efeito, mas não de uma elevação da alma. Seu efeito não é elevar nem rebaixar. Seu efeito é diretamente sobre a alma; em outras palavras, é um estimulante psíquico. Como poderia eu explicar mais claramente? A música me compele a esquecer minha verdadeira posição. Ela exila-me de minha posição conveniente, me força em direção a uma posição estranha; de fato, sob a impressão que a música exerce sobre mim, eu sinto aquilo que eu realmente não sinto. Eu de fato quero aquilo que não posso fazer. O modo como eu explico isto para mim mesmo é o seguinte: a música é como o bocejar, e age como o bocejar ou o riso. Eu não estou solonento, mas eu bocejo quando vejo outros bocejarem. Eu não tenho razão para rir, mas ainda assim eu rio quando ouço outros rirem. A música me transporta para dentro do compositor, e sobre a minha mente é criada a mesma impressão que foi criada sobre a do autor. Nossas almas se unem, e eu consinto que ele me carregue de uma disposição para outra. Porque eu faço isto, eu não sei. Aquele que escreve música sabe por que ele está naquela inclinação em particular. Isso pode ser atribuído a certas ações; logo, sua disposição tem uma importância para ele, mas não para mim. Consequentemente, a música não é somente excitante ou estimulante, mas ela conduz a conclusões. Uma marcha militar, por exemplo: os soldados marcham por ela, e a música conduz a uma conclusão. A dança, eu danço: a música conduz a uma conclusão. A missa na igreja (eu falo do sagrado sacramento): a música conduz a uma conclusão.6

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Extraído do capítulo 23 da Kreutzer Sonata de Tolstoi [N. do T.]. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Isso vai exatamente ao ponto. A música revolve as emoções, e as emoções devem encontrar um escoadouro na ação; se essa ação é para o bem ou para o mal, é uma questão. Ninguém sugeriria, suponho, que a enxurrada de música barata que está inundando a América tenha uma influência “elevadora” sobre o povo. Nem a música que não pode ser compreendida. Na interpretação de música que representa ideias, alguma explicação sobre essas ideias deveria ser dada. Alguma tentativa de controle inteligente, pelo menos, deveria ser feita, prevenindo pelo menos que a torrente de emoções despertada ou libertada fluísse por canais perigosos. Mas a música é somente uma das artes. Direcionemos nosso olhar para a pintura. Tendo eleito a Rússia para ilustração, tomemos um dos mais famosos pintores russos, Verestchagin, cujas pinturas incitam uma tempestade de protestos, de indignação, de entusiasmo, dos sentimentos mais selvagens, por toda Europa e mesmo pela América. Ele foi acusado de atacar a religião, a moralidade, o patriotismo – todas as virtudes sobre as quais a prosperidade de uma nação supostamente repousa. Bastante coisa foi escrita sobre meus trabalhos [ele diz]; muitas foram as críticas levantadas contra minhas pinturas, tanto aquelas que tratavam de assuntos religiosos quanto as que tematizavam os militares. Foi um general prussiano muito bem conhecido quem aconselhou o imperador Alexandre II a queimar todas as minhas pinturas sobre os militares como objetos do tipo mais pernicioso. Havia ainda mais comentários animosos contra aquelas dentre minhas pinturas que tratavam de temas religiosos. E, no entanto, elas foram todas pintadas sem qualquer ideia preconcebida – foram pintadas apenas porque o assunto me interessava. A moral, em cada caso, Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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apareceu posteriormente, emergindo de sua própria perspectiva, da própria veracidade das impressões7.

E essa moral era bastante eficiente. Nunca, talvez, os horrores da guerra tenham sido trazidos para a casa das pessoas de forma mais convincente que em suas pinturas. Diz um jornal londrino, o Christian, de 2 de dezembro de 1887: Estas pinturas são o trabalho de um russo, Verestchagin – um pintor equiparado a qualquer um dos seus contemporâneos em habilidade artística, e acima de qualquer pintor que já tenha vivido na grandiosidade de seus objetivos morais e na aplicação de suas lições à consciência de todos que se dão minimamente ao trabalho de compreendêlo. Aquele que deixa de ver estas pinturas perderá a melhor oportunidade que poderia um dia ter para compreender a época em que vive, pois, se o século XIX chegou a ter um profeta, este é o pintor russo Verestchagin.

Contudo, Verestchagin reivindica mais para sua arte do que meramente estimular a consciência das pessoas. Ele pretende que esta poderia ajudar a resolver os problemas sociais, a salvar as pessoas da destruição. Suponhamos [ele diz] que chegue o dia em que os prelados perderão completamente seu controle sobre as pessoas, em que os soldados abaixarão suas armas – onde a sociedade encontrará bastiões? Será possível que esta não terá mais qualquer defesa confiável? Certamente, semelhante defesa existe; está não é senão os talentos e seus representantes na ciência, literatura e em todos os ramos da arte. A arte pode e deve defender a sociedade. Sua influência 7

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Cf. VERESTCHAGIN, V. (1899) [N. do T.]. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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sobre as mentes, os corações, as ações das pessoas, é enorme, sem nada que a ultrapasse ou rivalize com ela. A arte deve e irá defender a sociedade, com o máximo de zelo e seriedade porque seus devotos sabem que os “reguladores” ´[os quais, suponho, seriam os socialistas, sobre os quais ele não tem o melhor dos julgamentos] não estão dispostos a lhe conceder a posição respeitável que agora ocupam – visto que, para eles, um bom par de botas é mais útil que uma pintura, um romance, uma estátua. Tais pessoas declaram que o talento é um luxo, que o talento é aristocrático, e que, consequentemente, o talento teria que ser derrubado de seu pedestal ao nível do ordinário – um princípio ao qual não devemos jamais nos submeter8.

Devemos admitir que existe verdade nessas afirmações, e que, se considerarmos a arte como mera gratificação do senso estético, não podemos culpar os socialistas por desejarem destroná-la, especialmente se estamos ainda vivendo naquilo que tem sido chamado pelos sociólogos de economia de escassez – i. e., um estado de coisas em que, para a maioria das pessoas, as dores e misérias da vida sobrepujam suas satisfações. E um país como a Rússia, sem dúvida, ainda é. Contudo, como estou procurando demonstrar, sua arte não é um luxo. A predição de Verestchagin, em boa medida, tornou-se verdade. A arte possivelmente fez mais do que qualquer outra influência isolada para despertar os Russos de seu torpor, para mostrar a eles a profundidade de sua miséria; mas também para revelar a eles a causa desse estado de coisas, despertálos para um senso da necessidade de ação e de um grande trabalho de reconstrução diante deles.

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Cf. VERESTCHAGIN, V. (1889) [N. do T.]. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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Este foi o caso, sobretudo, da arte em sua mais elevada manifestação, o drama. Diz um autor para o Cosmopolitan, em abril do último ano: Em nenhum país os favoritos do palco são mais aclamados e amados que na Rússia. As audiências de Paris, Berlin ou mesmo Vienna parecem impassíveis e apáticas ao lado daquelas das principais cidades soviéticas. Embora um amplo e concentrado corpo de estudantes seja parcialmente responsável por esta condição, a categoria e as fileiras dos frequentadores de teatro são singularmente impressionantes e entusiásticas. Ovações, do tipo que entre nós só têm lugar nas mais raras ocasiões, são ocorrência frequente nos teatros da Rússia. Logo, é natural que a influência social e política do teatro, tanto quanto a puramente artística, devesse ser particularmente importante através do império. Embora o formalismo e a burocracia tenham imperado por anos nos domínios do Czar, é um alívio perceber que o palco na Rússia não está nas mãos de qualquer claque ou casta. Empresários, atores e cantores são recrutados entre pessoas de todos os tipos. Uma princesa é a locatária e estrela de um dos teatros mais importantes de St. Petersburg, e um ex-trabalhador manual e mercador de Moscou é o produtor e diretor de palco de maior destaque na Rússia. Além disto, não se deve banalizar o fato de que a popularidade pessoal de um cantor de ópera, embora grande, ou as cenas entusiásticas desempenhadas perante uma sala de concerto lotada são as mais importantes realizações do palco russo. O real significado do teatro na Rússia é mais bem exemplificado e pode ser mais bem estudado em uma série de peças notáveis produzidas, em sua maior parte, durante a última década em Moscou, e encenadas com sucesso sem precedentes em todo palco disponível no império. É óbvio para qualquer estudante dos assuntos 399

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da Rússia que hoje o drama está se aproximando daquilo que o romance alcançou durante os anos 1850 e 1860. Nós temos palavras do próprio Gorky sobre o fato de que a ficção cessou amplamente de ser uma forma vital, e falta apenas acrescentar que a peça está provando ser seu sucessor lógico. Ao longo da década, uma nova raça de profetas tem brotado, usando o ator como seu porta-voz e o palco como seu campo de batalha. Enquanto as páginas de Turgenev, Dostoievski e Tolstói irão sempre palpitar com piedade, sempre evocar uma beleza problemática e fantasmagórica, sua tarefa específica foi cumprida; os servos foram libertados, e, embora a reconstrução não tenha sido consumada, esta foi destemidamente delineada. Nos dias de hoje, não são mais estes tópicos, mas a luta por uma constituição, a extensão do sufrágio, a humanidade comum para os Judeus e a obliteração da autocracia que se marcaram a fogo na consciência popular. Sobre alguns dentre estes temas foram escritos, com intenção mais ou menos explícita, dramas retratando as condições sociais existentes sem qualquer piedade. Encarando, como confortavelmente fazemos, o teatro enquanto um lugar de diversão, enquanto uma conveniente fuga do trabalho ou do tédio, é difícil para nós compreender a influência vital sobre o público russo de produções tais como A Gaivota, de Chekhov, A rale: no fundo de Gorki, a Vanyushin’s Children de Naidyenov ou a Chosen People de Chirikov. É necessário, contudo, lembrar que o russo comum leva a arte muito a sério. Ele não prega jargões insípidos, tais como “a arte pela arte”. Seus melhores romances e suas melhores peças são dedicados a uma paixão mais ampla e profunda que a mera ânsia por estímulo estético; e, enquanto a maior parte dos problemas do país não for sanada, ou as feridas que sangram curadas, a ficção ou o drama não se aquietarão em diletantismo trivial.

Essa, portanto, parece ser a missão da arte em um país onde Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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as pessoas estão lutando com esforços titânicos por um melhor estado das coisas. E parece quase que tais condições são necessárias para trazer à tona o real poder e o caráter sublime da arte. Tudo se passa como se, assim que uma nação alcançasse certa prosperidade e aparente satisfação, sua arte declinasse. Nós ouvimos Richard Wagner, cinquenta anos atrás, elevar sua voz em infinito desprezo contra a condição da arte na Europa. Ele a contrasta com a arte dos antigos gregos: Entre os Gregos [ele diz], a obra de arte perfeita, o drama, era a súmula e epítome de tudo que era exprimível na natureza Grega. Era a nação em si mesma – em íntima conexão com sua própria história – que se postava espelhada em seu trabalho artístico, que comungava consigo mesma, e, em meio a um intervalo de poucas horas, banqueteava os olhos com sua mais nobre essência. Toda divisão deste deleite, toda fragmentação das forças concentradas em um único ponto, toda diversidade de elementos em canais separados devem necessariamente ter sido tão danosas a este único e nobre trabalho de arte quanto o estado em si mesmo... Um dia tão trágico era um festim para o Deus, posto que aqui o Deus falava publicamente, clara e inteligivelmente, e o poeta como seu grão-sacerdote se postava real e encarnado em seu trabalho de arte, conduzia o compasso da dança, elevava as vozes do coro, e, em palavras ressonantes, proclamava as enunciações de sabedoria divina... Mas, o que é a arte, agora que esta preenche o mundo civilizado! Sua verdadeira essência é a indústria, seu objetivo ético é o ganho do ouro, seu propósito estético é entreter aqueles cujo tempo se encontra pesadamente dependurado em suas mãos... Seu deleite é armado no palco, assim como a arte grega o fizera em sua maturidade. E, de fato, esta tem uma reivindicação sobre o teatro, pois este não é a expressão de nossas visões correntes sobre nossa vida presente? Nosso palco moderno materializa o 401

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espírito dominante de nossa vida social e publiciza seu registro diário de um modo que nenhum outro ramo da arte poderia ter a esperança de rivalizar, pois este prepara seu festim de noite em noite em praticamente cada cidade da Europa. Portanto, assim como a arte amplamente difundida do drama, este sustenta a aparência da flor de nossa cultura, assim como a tragédia grega denotou o ponto culminante do espírito grego; mas o nosso é o desabrochar da corrupção, de uma condição dos assuntos e relações humanas vazia e sem alma9.

Essa é uma crítica aguda e amarga, mas acredito que justificável no tempo em que Wagner escreveu, e chego quase a pensar – falo de modo hesitante, mas sinto isto fortemente – que isto é válido, em alguma medida, para a América contemporânea. Não são as condições, aqui, semelhantes àquelas descritas por Wagner? Não estão praticamente todos os teatros aqui nas mãos de uma corporação, um sindicato que abertamente admite que o teatro é um lugar de deleite, de entretenimento, e não de educação ou elevação, e cujo único objetivo é o ganho do lucro? Há até mesmo alguns dentre nossos artistas mais populares [Wagner prossegue] que sequer se dão ao trabalho de esconder o fato de que eles não têm outra ambição, senão satisfazer suas fúteis audiências. Eles são sábios em sua geração, pois, quando o milionário sai de um pesado jantar, o banqueiro de uma fatigante operação financeira, o trabalhador manual de um dia pesado de labuta, e eles vão ao teatro, eles pedem por descanso, distração e deleite, e não estão no clima para esforços renovados e novos dispêndios de energia. Tal argumento é tão convincente que nós só 9 Trecho do texto de Richard Wagner Die Kunst und die Revolution, “Arte e Revolução”, publicado originalmente em 1849 (N. do T.). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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conseguimos replicar afirmando: seria mais decoroso empregar, para este propósito, qualquer outra coisa no mundo, mas não o corpo e alma da arte. Devemos ser advertidos, contudo, que se nós não empregarmos a arte desta maneira, ela perecerá de nossa vida pública; i.e., que o artista perderá seu meio de sobrevivência. Deste prisma tudo é lamentável, de fato, mas cândido, genuíno, honesto – corrupção civilizada e embotamento cristão civilizados.10

Isso não se adéqua ao nosso caso? O artista precisa viver. Talvez ele preferisse encenar peças nobres e capazes de elevar, mas o público não deseja esse tipo de peça. “O que você quer?”, diz o sindicato. “Nós colocamos excelentes peças no palco, nós empregamos os melhores artistas, mas eles atuam para casas vazias; as pessoas não os querem, o público americano não está educado para as mais finas produções do gênio artístico; elas requisitam melodramas baratos e lixo sentimental”. Temos aqui, aparentemente, o mesmo circulo vicioso do qual os sociólogos reclamam quando falam sobre problemas sociais. Alguns dizem: “É inútil tentar modificar as condições, se a natureza humana permanece a mesma; é a natureza humana que deve ser transformada antes que a mudança nas condições faça qualquer bem”. Os outros sustentam que é o ambiente que molda o caráter, que o homem, assim como o resto da natureza, é o resultado de causas, e que, se você modifica as causas e condições que fazem o homem, o resultado lógico é que seu caráter mudará também. Portanto, entre as duas facções não fazemos qualquer progresso. O mesmo parece ser verdadeiro acerca da arte. A menos que nós cedamos às pessoas aquilo que elas querem, o artista não consegue

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sobreviver; e, a menos que ele viva e prospere, ele não consegue criar grandes obras. Eu não me proponho a solucionar esse problema; meramente defendo que é um problema a ser considerado pelo sociólogo, que há uma chance para o sociólogo e o artista cooperarem, que o problema social e o problema artístico são um só. Enquanto [diz Wagner] – com o caráter vigente da vida pública, e a necessidade que ele aloca sobre o diretor teatral de lidar com o público à maneira de um arguto especulador comercial – encararmos a instituição teatral como um mero meio para a circulação de dinheiro e produção de interesse visando ao capital, a consequência lógica é que entreguemos sua direção – i. e., sua exploração – àqueles que têm maior aptidão com semelhantes transações. Uma gestão realmente artística, justamente aquela que poderia realizar o propósito original do teatro, não estaria senão pobremente apta a conduzir seu objetivo moderno. Por essa razão, devemos deixar claro para todos que, se o teatro deve no fim das contas atender a sua missão natural e sublime, ele deve ser completamente libertado da necessidade de especulação industrial. Dado que o serviço ao Estado, o serviço militar, já não é mais uma busca desse tipo, iniciemos a emancipação da arte pública, pois, como apontei acima, é a ela que devemos designar uma missão indizível e sublime, uma influência incomensuravelmente forte sobre nossas presentes conturbações sociais. Melhor do que uma religião decrépita à qual o espírito do intercurso público desmente; mais impressionante e efetivamente que um estadista incapaz que, de longo, perdeu o compasso; deverá a sempre jovem arte, renovando seu frescor a partir de suas próprias origens e do mais nobre espírito do tempo, dar à apaixonada corrente de tumulto social – que hoje corre em direção a íngremes precipícios, perdida em pântanos de futilidade – um justo e elevado alvo, o Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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alvo da nobre humanidade. Seria seu real objetivo, honorável estadista, confrontado com um temível levante social, enxertar sobre esta poderosa mudança uma forte e viva promessa de costumes futuros mais nobres? Então, empreste-nos toda sua força para retornar a arte a si mesma, e a sua sublime missão.11

Referências Bibliográficas VERESTCHAGIN, V. Second Appendix to Catalogue of the Verestchagin Exhibition: Realism. Chicago: The Art Institute of Chicago, 1889. Disponível em: https://archive. org/details/secondappendixt00veregoog VERESTCHAGIN, V. 1812: Napoleon I in Russia. London: William Heinemann, 1889. WAGNER, Richard. A Arte e a Revolução. Lisboa: Edições Antígona, 2000 [1849]. WARD, Lester Frank. Dynamic sociology: or, Applied social science as based upon statical sociology and the less complex sciences, vol. II. New York: Appleton, 1883. Disponível em https://archive.org/details/dynamicsociology02warduoft . WARD, Lester Frank. Pure sociology; a treatise on the origin and spontaneous development of society. New York: MacMillan, 1903. Disponível em https://archive. org/details/puresociologytre00warduoft.

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Resenhas

Resenha de: PASSAMANI, Guilherme. Org. (Contra) pontos: ensaios de gênero, sexualidade e diversidade sexual. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2011. [130 p]. Andréa Paixão1 A compreensão das questões de gênero, sexualidade e diversidade sexual apresenta grande desafio para profissionais da educação e para outros segmentos da sociedade brasileira. Tratar dessas temáticas no âmbito escolar representa a oportunidade de dar visibilidade a expressões da sexualidade e das identidades de gênero plurais que hoje ganham legitimidade na esfera pública. Seguindo de perto essa preocupação, o livro certamente colabora para rever regras, tabus e convenções que ainda hoje percebemos tão candentes no espaço escolar e na cultura. A obra é uma das poucas que, em uma perspectiva da educação em direitos humanos, apresenta textos com um potencial reflexivo para colocar em xeque preconceitos e estigmas que afetam a escola, a família, a religião. Os autores encaram com responsabilidade a tarefa de, através de textos ora mais ensaístas, ora mais analíticos, fornecer subsídios para pensar mudanças de valores e práticas sociais cotidianas de exclusão e hierarquização dos sujeitos. O livro coloca em discussão a produção de legitimidades e ilegitimidades no âmbito das 1 Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pósgraduada em Gênero e Sexualidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisadora colaboradora do Laboratório de Estudos sobre Diferença, Cultura e Poder (LED/ UFC) Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

Resenhas

práticas pedagógicas e da comunidade escolar, além de outras múltiplas esferas da vida social, como a família, as redes de sociabilidade, as igrejas e muitas outras. Guilherme R. Passamani e Katiane Ferreira abrem o livro com o artigo A problemática de gênero na perspectiva de professores da Naviraí/ MS: uma experiência de extensão universitária. Apresentam uma reflexão sobre projeto de extensão, que tem a proposta central de promover o debate sobre sexualidade e gênero junto à comunidade acadêmica de professores do município de Naviraí, no estado de Mato Grosso do Sul. Por meio de aplicação de questionários, os autores perceberam as angústias e dificuldades dos professores em trabalhar com as temáticas de gênero e sexualidade na escola. Dúvida, inquietações e frustrações, foram destacadas pelos professores, que apontam “a falta de preparo adequado para lidar com a temática em sala de aula”, além da pouca abertura para o diálogo nesses espaços. Assim, os autores concluem que o grande empecilho para trabalhar gênero e sexualidade nas escolas é “a falta de conhecimento teórico mais aprofundado, que provoca o equívoco de conceitos estereotipados e generalistas das questões”. Formação docente e gênero: relato de uma prática pedagógica, escrito por Lucimar Rosa Dias, aborda a discussão sobre infância e gênero a partir da experiência profissional dela. A autora chama a atenção para a importância da incorporação de temas que tratem das questões de gênero, raça e etnia nos currículos dos cursos de formação de professores. Assinala a importância de uma reflexão mais abrangente que implique em compromisso político formador que perceba as relações de poder para além das assimetrias de classe e econômicas. A conclusão assinala que

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há uma grande necessidade de questionamento das visões deterministas do gênero capaz de romper com perspectivas estereotipadas. Fátima Perurena, Mariclene Sandalowski e Gabriela Felten da Maia destacam as dimensões do gênero presentes nas infrações de trânsito na cidade de Santa Maria, estado do Rio Grande do Sul. O artigo Violência no trânsito: gênero, masculinidades e patriarcado assinala que esse fenômeno reflete comportamentos apreendidos na socialização dos sujeitos. O cultivo de padrões hegemônicos de masculinidade pode mesmo acarretar violências letais, demonstrando os nexos entre educação no trânsito e performances de gênero. Através de um ensaio instigante, o antropólogo Leandro de Oliveira apresenta uma reflexão sobre as mudanças no cenário atual relacionadas às lutas por reconhecimento das minorias sexuais, com o texto Diversidade sexual, gênero e família: notas sobre o problema da superioridade moral da heterossexualidade. Problematiza as dimensões plurais da violência homofóbica ao realçar os entrelaçamentos entre definições de família, gênero e heterossexismo. Um dos pontos altos do ensaio é o que o autor qualifica como uma “obsessão cultural” com as supostas causas da homossexualidade, promovida por discursos científicos que extrapolam esses domínios e alcançam outras instituições, como a escola, a família e a religião. Esse senso comum difuso na sociedade brasileira é a base do preconceito sexual contra a homossexualidade, que origina formas plurais de homofobia, as quais podem chegar até à violência letal. Sugere um exercício interessante de pensamento de acordo com o qual a “regra” é a homossexualidade para a compreensão dos “elos entre homofobia/preconceito sexual e o

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suposto da superioridade heterossexual” e coloca como desafios para os educadores os processos de “mudança cultural” na perspectiva de associá-la à “visibilidade das minorias sexuais no Brasil”. No ensaio de Zulmira N. Borges, Mariane Inês Ohlweiler e Muriel Bulsing, Reflexões sobre o programa “Brasil sem Homofobia” e o cotidiano escolar, os autores discutem pesquisas realizadas a partir da criação dessa política pública, na perspectiva de análise “das dificuldades encontradas” por professores em trabalhá-la nas escolas. Chamam a atenção, a partir de seus resultados, para a necessidade de uma educação inclusiva e de um movimento de desconstrução de “rótulos e preconceitos” dos próprios educadores que aderiram a cursos de capacitação para trabalharem com essa política nas escolas. Observam a importância de se pensar um currículo que atente para as dimensões da diversidade sexual e de gênero, como uma ação conjunta entre Estado e sociedade civil. Esmael Alves de Oliveira reflete sobre O corpo Vigiado e o Policiamento da sexualidade – uma análise da homofobia no contexto escolar. Aborda, a partir de suas experiências profissionais, acadêmicas e pessoais, o preconceito e a homofobia no contexto escolar da cidade de Manaus. Discute aspectos da corporalidade entre os alunos, considerando performances corporais como fenômenos centrais para julgamentos da homossexualidade na escola. Manifestações de preconceito e homofobia, naquele contexto, estão inextrincavelmente associadas a performances corporais tidas como masculinas ou femininas. Os/as que não se “encaixam” nos “padrões de gênero” da heteronormatividade são alvos de perseguição, preconceito e

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estigmatização, o que, segundo o autor, evidencia a “existência de uma forte política do armário” entre esses sujeitos e atenta para a urgência de discutir comportamentos de professores que reforçam e aplicam aos/às alunos/as a heteronormatividade como forma legítima e única de vivenciar a sexualidade. A análise mostra a dificuldade da escola em trabalhar e lidar com as diferenças e a diversidade sexual. Em Uma luz no fim do armário: aspectos sociais da construção do homoerotismo, Ana Maria Gomes e Paulo Roberto Lucca refletem sobre os efeitos que “práticas homoeróticas” e o preconceito que as circundam provocam nos sujeitos que as praticam. Consideram que a presença e a imposição social do heterossexismo levam homossexuais a negarem sua identidade sexual, uma vez que declará-la pode acarretar a desvantagem social. Destacam os sofrimentos psíquicos advindos dessa negação de si e o modo como a falta de laços sociais em torno dessa identidade pode levar a percepções negativas de si. Entre o ‘pecado’ e o amor de Deus: comentários sobre a experiência da homossexualidade em igrejas evangélicas tradicionais e igrejas inclusivas é a contribuição que Marcelo Natividade traz a essa obra. Em um texto emocionante, ele chama a atenção para a pluralidade das manifestações de homofobia no meio social. Aborda o lugar das instituições religiosas na regulação da sexualidade e na modelagem das subjetividades que “escapam ao padrão da heterossexualidade”. O fio condutor é a trajetória de uma lésbica cearense e seus dramas e conflitos em torno da vivência da homossexualidade. Outras trajetórias são contrapostas para dimensionar as relações entre desaprovação familiar, religiões pentecostais e construções de si. O artigo aponta a possibilidade

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de conciliação entre homossexualidade e cristianismo oferecida pelas igrejas inclusivas, bem como seus impactos na construção de sentidos positivos de si. Aparecido Francisco do Reis e Suellen O. D. R. Próspero, no artigo À direita de Deus: a atuação política de grupos evangélicos de Campo Grande no âmbito da homossexualidade, trazem uma reflexão sobre a posição política de dois grupos religiosos frente à homossexualidade, naquele contexto. Definem que essa oposição se orienta por valores religiosos que colocam a homossexualidade como “uma de suas maiores preocupações”, fundamentando o preconceito e homofobia em parâmetros bíblicos.Esses grupos, com força política local, utilizam-se de múltiplas estratégias para influenciar o poder público e a opinião popular no tocante às demandas LGBTs, desqualificando a homossexualidade. Densos jogos de poder grassam as esferas pública e privada, impactando disputas no Legislativo e outras esferas sociais. Os artigos do livro demonstram a urgência em discutir os nexos entre hierarquias sociais, cultura e práticas sociais de valorização das diferenças. A escola aparece como espaço de exercício do poder e da reprodução de assimetrias, onde tensas relações de poder subalternizam a diversidade sexual e de gênero. Concebendo os direitos sexuais como direitos humanos, percebemos o longo caminho a trilhar na desestabilização de estigmas e preconceitos nesse contexto. É papel dos educadores a intervenção para a transformação dessa realidade tão desigual. Entram em discussão temas como o currículo e a formação, as práticas pedagógicas, a homofobia religiosa e familiar, os modelos de gênero e a cultura brasileira. O livro possibilita ainda um breve

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diagnóstico do modo como políticas públicas são atravessadas por essas relações de poder, impactadas por convenções sociais e culturais que desqualificam a diversidade. Demonstram como as esferas pública e privada são impactadas por essas concepções estigmatizantes, trazendo novos desafios para um Estado laico, que entende a necessidade de que é preciso educar para a diversidade e o respeito às diferenças.

Resenha recebida em: 30/09/2012 Resenha aceita para publicação em :10/01/2013

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O que vem depois da aids? Os discursos em torno do barebacking sex no Brasil e nos EUA. Resenha de: PAULA, Paulo Sergio Rodrigues de. Barebacking sex: a roleta russa da AIDS? Sexualidade, sexo e risco na mídia impressa e na Internet. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2010. Caio Cerqueira2 e Gilberto Rios3 A epidemia da aids não deve ser apenas lembrada como o mal do século ou o câncer dos homossexuais, mas, acima de tudo, como veículo elaborador de discursos, verdades e práticas sociais. Há mais de quarenta anos, após a divulgação do primeiro caso da doença, o debate em torno do vírus, que fez uma geração viver o luto de perdas significativas, ainda é tão polêmico e faz barulho como nos idos dos anos 1980, sobretudo quando temos práticas sexuais que subvertem as normas reguladoras criadas pelo pânico social vivido pela sociedade nos últimos trinta anos, pondo “em risco”, o bem comum. Em Barebacking Sex: a roleta russa da aids?, livro de Paulo Sergio Rodrigues de Paula4, publicado pela editora Multifoco em 2010, o autor explora os discursos acadêmicos, médicos, 2 Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Contato: [email protected] 3 Graduando em Comunicação – Habilitação em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Contato: [email protected] 4

Doutorando em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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estatais, midiáticos e civis em torno do sexo sem uso de preservativo (o sexo bareback), com objetivo de evidenciar o caráter regulador imposto por essas vozes no Brasil e nos EUA. O termo bareback foi criado por caubóis estadunidenses e significa montar em cavalos, ou bois, sem a sela, ou seja, diretamente no pelo do animal. No mundo das práticas sexuais dissidentes, a expressão ganhou novos contornos que fazem analogia ao seu sentido contextual e se referem à prática sexual sem o uso consentido de preservativo. Ademais, a ausência da camisinha não pode descrever e explicar os sentidos expressos na prática. Há, no lastro dessa prática sexual, a erotização do risco de contaminação por HIV, e é essa a possibilidade aberta desde o não uso do ‘plástico protetor’, que dá sentido e evidencia as formas de desejo dissidentes (SILVA, 2010). Não é preciso muito esforço para se compreenderem os efeitos da publicização de tal prática5, tendo em vista o contexto criado e reelaborado pela epidemia que levou a óbito milhares de pessoas nas últimas décadas. Os efeitos morais da aids determinaram a criação de práticas, normas e regimentos – verdadeiros manuais de conduta para as práticas sexuais. Romper com alguns desses imperativos soa como um atentado a todos os corpos dispostos nas relações sociais. No diálogo com os principais temas abordados por Foucault e com um rico material analítico, Sergio Rodrigues produziu uma instigante 5 Pensado em 1997, o termo bareback sex surge no artigo “My Turn: Riding Bareback”, de Stephen Gerdin, veiculado na revista americana POZ Magazine, destinada a gays soropositivos. Encontrando adeptos de todas as orientações sexuais, o sexo sem preservativo é um assunto que, cada vez mais, interessa aos meios de comunicação e pesquisadores, embora ainda haja muitas controvérsias.

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análise da prática barebacking e seus desdobramentos político-sociais. Os caminhos percorridos6 pelo autor são desenhados a partir de uma metodologia multivariada que incorpora revistas como a Veja, Isto É e Época, além dos veículos populares Jornal do Brasil e Folha de São Paulo. Também foram pesquisados artigos acadêmicos, sites institucionais, blogs, videologs e weblogs. É no movimento entre as falas dos barebackers com os demais discursos acerca da prática que o pesquisador denuncia a forma como os diversos dispositivos sociais criam e/ou reforçam verdades sobre o tema, retratado majoritariamente como algo negativo, anormal, doentio. Nesse movimento, interpela o conteúdo dessas falas e instiga a reflexão não apenas sobre o tema, mas sobre onde se situa o emaranhado de poderes sobre a sexualidade, contribuindo para a desmistificação de abordagens midiáticas e acadêmicas que permeiam a área. Dividido em cinco capítulos, o livro é resultado de sua dissertação de mestrado e se baseia principalmente nas ideias de Michel Foucault, com um forte diálogo com os principais temas propostos pelo intelectual francês. Em Cronologia da Epidemia, segundo capítulo da obra, Paulo traça a história do contágio da aids nos EUA e no Brasil. A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA ou, mais vulgarmente, AIDS devido ao termo inglês) foi detectada principalmente em homens adultos que se identificavam como homossexuais. Aqui a aids opera sua primeira produção no âmbito do simbólico, qual seja a associação da doença a um grupo de indivíduos. Desse modo, não tardou para que a imprensa relacionasse a doença algo inerente à prática homossexual. Logo, 6

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a medicina, através da concepção de “grupo de risco”, reforçou o pensamento midiático, conferindo à homossexualidade o estigma de principal alvo da doença. Adepto do pensamento de que a mídia produz homogeneidade a partir de heterogeneidade, o autor concordar que a aids é a primeira doença da mídia devido ao grande volume de notícias nos veículos. Sérgio Rodrigues dividiu os discursos em quatro categorias: o discurso acadêmico, o discurso da mídia, o discurso do leigo e o discurso do praticante. A primeira categoria é produzida por pesquisadores em universidades e centros de pesquisa que, em geral, buscam saber quais os motivos de se praticar sexo bareback. Embora focadas sempre em sujeitos homossexuais, internet, alto risco de infecção pelo vírus HIV e prevenção, as pesquisas realizadas no Brasil e EUA diferem no modo de análise. Os brasileiros continuam considerando o barebacker como portador de doença psíquica. O sexo sem preservativo é visto como problema de saúde pública, os sujeitos são os únicos culpados pela infecção (sem considerar as estratégias de prevenção) e a internet não tem nenhuma utilidade além de um espaço para buscar conteúdo para as pesquisas. No discurso midiático, o que mais chama a atenção é a forma como o bareback é retratada: negativamente. Embora na maioria das vezes esteja ligada à homossexualidade, é sempre presente a afirmação do sujeito praticante tido como alguém que tem problema psicossociais. O autor constata que, no Brasil, todos esses lugares de fala predominantemente reforçam a concepção do barebacker como alguém dotado de problemas neurológicos, psicológicos ou psiquiátricos. Esse 419

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parecer está presente desde o leigo que frequenta a internet ao médico, jurista e até mesmo ao líder evangélico por meio on-line ou, mais frequentemente nos veículos midiáticos, que tendem a pautar o tema de forma sensacionalista e sempre ancorado pela incontestável figura do especialista. Uma das discussões postas mais interessantes é quando se analisa a prática pelo âmbito legislativo e se mostram os discursos que tentam expor o barebacker como um criminoso, contribuindo para o enquadramento desse sujeito como um “doente moral”. No último capítulo, intitulado Sobre o Risco, o autor resgata o conceito de risco das ciências sociais e da saúde para situar o praticante do sexo bareback. Para a primeira área de estudo, Sérgio Rodrigues expõe ideias que o apontam como uma escolha individual frente à probabilidade do erro. Mas ele também contextualiza o risco como algo “imanente à convivência individual e social”. Sob o prisma dos estudos em saúde, o pesquisador ressalta a necessidade de avalia-lo a partir da multiplicidade de fatores, como os contextos cultural, educacional, moral, político e econômico frente à magnitude do perigo, à probabilidade de ocorrência e à extensão e vulnerabilidade da população e de territórios afetados. Dessa forma, denuncia a leviandade com a qual o atual material acadêmico e midiático tem individualizado a culpa do praticante de bareback, sem pensar no contexto em que ele se insere. Os discursos em torno da prática do barebacking fazem parte de um emaranhado responsável pela produção de pânicos sociais. A política simbólica dos temores sociais (pânicos morais) se dá por meio da substituição, ou seja, os empreendedores da moralidade devem encontrar meios de criminalizar determinada coisa, pessoa ou situação,

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pondo em destaque outra. Os pânicos sócio-morais expressam lutas de poder entre grupos sociais, valores e normas, pois os pânicos nunca são espontâneos. São produtos da catalisação de temores sociais já existentes na coletividade (Cerqueira & Campos, 2012). Os dissensos discursivos que trazem à baila o barebacking sex são elementos que compõem trajetórias de vida que na trama do sexo desprotegido fazem ruir a dinâmica dominante das ordens sociais. Criam fissuras nessas ordens sociais legitimadas pelos agentes de voz, através da busca excessiva do prazer. Há em tudo isso o paradoxal clamor pela vida, mesmo com esta em jogo, como em uma roleta-russa. A contribuição de Sergio Rodrigues segue em diversas direções, mas, principalmente por colocar em discussão elementos de uma trama “cheia de riscos”, onde se transborda ditos e produz fazeres.

Referências Bibliográficas CERQUEIRA, CAIO; CAMPOS, LEONARDO. Terror social? A polêmica proibição de “Terror sem limites” e os discursos proibitivos. In: DE PAULA, P. S. R. (Org.).O tabu em cena: pedofilia no cinema, diferentes olhares? (no prelo). Rio de Janeiro/RJ: Fabrica de Livros, 2012. DE PAULA, Paulo Sergio Rodrigues. Barebacking sex: a roleta russa da aids? Sexualidade, sexo e risco na mídia impressa e na Internet. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2010. MACRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da abertura. Editora da UNICAMP: Campinas, 1990. SILVA, Luís Augusto Vasconcelos. Prazer sem camisinha: novos posicionamentos em redes de interação online. Cadernos Pagu nº. 35. Campinas, dezembro de 2010. Resenha recebida em: 02/10/2012 Resenha aceita para publicação em: 30/01/2013

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Elementos-chave em um debate sobre família, casamento e homossexualidades. Resenha de: ALMEIDA, Miguel Vale de. A chave do armário: homossexualidade, casamento, família. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2010. 225p. Ricardo Andrade Coitinho Filho7 Que chave poderia abrir o armário “contido” da subjetividade de sujeitos cuja orientação sexual diverge da heterossexual e por isso é alvo de discriminação? Este trabalho de Miguel Vale de Almeida reflete um pouco da sua trajetória nos campos da antropologia, do Poder Legislativo e do ativismo e da militância LGBT, em um processo dinâmico que articula essas três formas de atuação. Este livro é constituído por sete capítulos, em uma coletânea composta por textos anteriormente publicados e por outros inéditos. É o resultado de análises de dados coletados em Portugal, na Espanha, na França e nos Estados Unidos, tendo como foco controvérsias em torno dos temas do casamento, da parentalidade e da família entre pessoas homossexuais. Na introdução, o autor destaca o emprego metafórico da 7 Mestrando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – PPGCS/UFRRJ. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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categoria “armário”. Considera que estar “dentro” ou “fora” do armário organiza diferentes modos de vivenciar a orientação sexual, entre formas mais visíveis ou menos visíveis socialmente. Isso se dá devido a um “sistema homofóbico” que se mantém através de uma estrutura heteronormativa de relações de poder. Dessa forma, ser homossexual implica compreender que se nasce “para a impossibilidade de ser e [...] para cumprir um projeto de subjetivação enquanto heterossexual” (ALMEIDA, 2010, p. 15), ou seja, numa perspectiva dupla, a expectativa social de viver uma sexualidade heterossexual, enquanto mantém um desejo homossexual, contrariando, assim, as expectativas preestabelecidas. Recobrando Foucault, Miguel Vale de Almeida mostra como essa identidade homossexual foi sendo criada a partir do reconhecimento de pares com um desejo mantido na clandestinidade. De modo que o “ser” tornou-se possível, ainda que no “armário”. O primeiro capítulo aborda a emergência da Declaração Universal dos Direitos Humanos como parâmetro de combate à discriminação e como meio de promoção da igualdade. Já apresenta um tema central que é a tensão entre universalismos e particularismos na discussão sobre a cidadania de pessoas LGBT. O tópico da família é discutido em face dos princípios da Constituição em Portugal e da Carta dos Direitos da União Europeia, realçando a condenação a toda forma de discriminação ou restrição, como modo de assegurar a construção da igualdade. A partir desses marcos históricos, foram travadas lutas de resistência nessas fronteiras, como a dos movimentos operários, de classes e a luta das mulheres. No que se refere à orientação sexual, é ressaltada a impossibilidade do reconhecimento pleno da categoria em

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alguns contextos. Noções de “pecado”/doença obstruíram a construção da “orientação sexual” como suporte para identificação coletiva. Assim, a noção de “cidadania”, embora convencionalmente referendada ao contexto local, tem seu sentido estendido pelo movimento LGBT ao conectar global e local nas disputas identitárias; de modo que cidadania passou a contemplar outras formas para além dos direitos políticos, econômicos e sociais. Já que a expressão “orientação sexual” não está inclusa na Declaração Universal dos Direitos do Homem, há, no cenário internacional, resistências na produção de um consenso sobre ela como um direito humano. Mais recentemente, uma interpretação queer passa a questionar o sentido dado ao conceito de orientação sexual, na medida em que este não contempla a pluralidade de se viver a sexualidade independentemente da sociedade e de sua cultura. O capítulo dois analisa os debates sobre o casamento civil nos EUA e na França, a fim de compreender que elementos estão presentes em cada contexto e compará-los. Destaca os modos como a antropologia foi se confrontando com essas temáticas e se tornando referência para esta discussão. O estado de Massachusetts, por exemplo, ao começar a conceder licença de casamento a pessoas do mesmo sexo, foi freado por uma legislação que apontava o casamento como restrito às pessoas do sexo oposto, permitindo à elas apenas as uniões de fato. Em São Francisco, a situação foi semelhante, pois, embora algumas licenças para casamentos entre pessoas do mesmo sexo tenham sido emitidas, tiveram posteriormente a sua legalidade contestada. Na França, o debate sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo foi diferente devido à existência Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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da Lei do PaCS (Pactos Civis de Solidariedade), utilizado como recurso que interdita os homossexuais ao exercício do direito ao casamento e à filiação. Os debates tiveram grande embasamento antropológico. Discussões teóricas sobre a “ordem simbólica”, fundadas nos estudos de parentesco de Lévi-Strauss ao considerar casamento, apontam uma relação restrita entre pessoas heterossexuais, pois consideram a passagem da natureza para a cultura necessariamente a partir da oposição entre homens e mulheres. Nos EUA, através da Associação Antropológica Americana, foi apontada a existência de um leque de tipos de famílias, como as constituídas por pessoas do mesmo sexo, ao contrário da França, que se utilizou também da Antropologia, mas para delimitar conjugalidade como constituída através das relações heterossexuais. Gayle Rubin tem contribuição notável a esse respeito, na medida em que considera o parentesco como lócus de reprodução do sistema sexo/gênero, o qual requer uma divisão entre os sexos e aponta um conjunto de regras que “obrigam” a uma heterossexualidade compulsória. A discussão sobre a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo no EUA é considerada em especial no capítulo seguinte, levando em conta uma análise comparativa em relação à proibição dos casamentos inter-raciais. A partir da ação do estado de Massachusetts e da não ocorrência nos demais estados, várias pessoas tentaram se casar lá. Porém, esse tipo de casamento interestadual não era possível, devido à base da lei de 1913, que já estabelecera essa proibição em virtude do impedimento do casamento inter-racial. É importante ressaltar que a proibição se estendia ao âmbito do casamento, e não das relações sexuais. O caso Loving explicita bem essa questão ao mostrar uma mulher classificada como negra e um homem classificado como branco, 425

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que, para se casarem foram para outro estado, em virtude de não existirem leis no seu estado para isso. No entanto, ao voltarem a morar na Virgínia com o documento de casados, foram presos por violação à lei. Miguel Vale de Almeida faz seus desdobramentos para entender as formas de classificação e categorização nos EUA, procurando apontar como essas classificações se transformam em lei. Da mesma forma se deu com a homossexualidade e o debate sobre o casamento entre gays e lésbicas. Em ambos os casos, o que se mostrou foi a supremacia de um grupo em relação ao outro, a partir de argumentos que enfatizavam uma visão discriminatória em relação a negros e homossexuais, como superioridade e proteção da raça branca e dos heterossexuais, a fim de buscar “protegê-los”, devido à diferença fundamental na cor/raça e na sexualidade. Os quarto e quinto capítulos referem-se à sua pesquisa em Barcelona, na Espanha, acerca das “vozes” que ecoavam sobre o casamento, a partir da temática de igualdade no casamento. Os posicionamentos favoráveis apontavam não apenas para questões referentes aos benefícios legais, mas também para formas de democratização a partir de um propósito igualitarista como o casamento, devido ao papel simbólico que este tem na sociedade. Já os contrários propunham outra forma de instituição jurídica que não o casamento, a partir da ideia de que este recobria somente a aliança entre homem e mulher. Propunham também inviabilizar a adoção por casais homossexuais devido à ausência paternal ou maternal. E, por fim, o posicionamento da Igreja Católica Apostólica Romana apontando as diferenças sexuais e a impossibilidade de “multiplicar-se” pelos homossexuais. A partir de vários relatos no quinto capítulo, resultado de suas pesquisas de campo em 2005, procura Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 7, 2013  ISSN: 1677-9460

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dar voz aos atores diretamente envolvidos na discussão em Barcelona, cada qual a partir de suas experiências específicas. O sexto capítulo se refere ao contexto português em torno de eventos no âmbito político, retratando os debates do movimento LGBT ao longo do século XX, principalmente após o legado deixado pela ditadura. Apesar de um cenário de revolução, a mobilização LGBT continuava sem visibilidade. Porém, com o advento da AIDS, o movimento começou a ter maiores articulações, junto a uma reivindicação pela mudança da Constituição para que se incluísse a orientação sexual como razão para que ninguém fosse privilegiado ou discriminado. Além disso, o movimento começou a exigir uma legislação acerca das uniões de fato e da adoção. Essa lei foi importante para a visibilidade dos direitos LGBT e revelou a utilização de crianças como escudo para o impedimento da igualdade de tratamento aos homossexuais no que se refere à família. O último capítulo faz uma análise sobre o pensamento antropológico em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, problematizando a análise estruturalista que apontava o dimorfismo sexual como elemento base em todas as sociedades. Através do caso dos Na, oriundos de uma região dos Himalaias na China, que não tinham uma forma de casamento como aliança, mas apenas relações de parentesco entre membros da mesma casa, Miguel Vale de Almeida passa a questionar a visão clássica dos estudos de parentesco e casamento e aponta as transformações culturais como resultado inerente à lógica das sociedades. Dessa forma, em vez de parentesco, o termo relatedness é apresentado como forma de se compreenderem as relações sem serem necessárias definições prévias de estruturas, regras e nomenclaturas de

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parentesco. Assim, é possível compreender o surgimento das vivências de relações de casamento por homossexuais, ao invés de estar fadado a um pensamento heterossexista.

Resenha recebida em: 30/09/2012 Resenha aceita para publicação em: 03/01/2012

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