Tendências: Cadernos de Ciências Sociais, n. 08, 2015

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tendências Caderno de Ciências Sociais • Nº 8• 2015

Imagens, memórias e políticas de uma cidade: Juazeiro do Norte

UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI

tendências Caderno de Ciências Sociais

Crato, 2015

UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI Reitor: José Patrício Pereira Melo Vice-reitor: Francisco do Ó de Lima Júnior Pró-reitora de Pesquisa e Pós-graduação: Allysson Pontes Pinheiro Diretora de Centro: Lireida Maria Albuquerque Bezerra Chefe de Departamento de Ciências Sociais: André Álcman Oliveira Damasceno Coordenador do Curso de Ciências Sociais: Leandro de Oliveira

EXPEDIENTE

Editores:

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Conselho Editorial

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tendências Caderno de Ciências Sociais

Crato, 2015

SUMÁRIO Apresentação

Juazeiro do Norte: um lugar para as Ciências Sociais  Roberto Marques e Leandro de Oliveira

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Dossiê Imagens, memórias e políticas de uma cidade: Juazeiro do Norte Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte 31 Rosilene Alves de Melo

Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero 55 Ricardo Cruz Macedo e Domingos Sávio de Almeida Cordeiro

“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”: um ensaio biográfico sobre José 79 Marrocos (Ceará, 1842-1910) Edianne dos Santos Nobre

Juazeiro sem Padre Cícero: cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio 115 Amanda Teixeira da Silva

Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense 145 Joselina da Silva e Reginaldo Ferreira Domingos

O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo Otilia Aparecida Silva Souza e Hayane Mateus Silva Gomes

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Artigo

Paisagens da memória:os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil 197 Mary Kenny

Nominata de Pareceristas ad hoc da Revista Cadernos Tendências Nº 7, 2013  235

Apresentação

Juazeiro do Norte:

um lugar para as Ciências Sociais Roberto Marques e Leandro de Oliveira

As ciências sociais mantém uma relação produtiva e complexa com as espacialidades que lhes inspiram. Por um lado, as formas como as relações humanas são materializadas espacialmente são consideradas fontes imprescindíveis de dados para o pesquisador, sobretudo quando observados longitudinalmente. Por outro, a tentação de realizar sínteses abstratas; o ordenamento dessas relações a partir de variáveis simples e passíveis de generalização; a inspiração em autores que descrevem relações em espaços bem distintos daqueles em que realizamos nossa pesquisa sinalizam que a descrição/configuração de relações no espaço seriam apenas o primeiro passo para a construção do conhecimento no campo. Said (1990) nos lembra que a experiência de textualização dos espaços é sempre dependente de relações políticas precipitadas pela confluência de personagens; intérpretes e agentes presentes, condensadas e reapresentadas em novos textos. É a sucessão de referências, de citações e intertextualidades que conferem realidade a dizibilidades sobre os lugares, que lhes conferem uma forma de

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veracidade. O livro Orientalismo, e sua repercussão no campo, é uma afirmação pungente de que nosso imaginário espacial está sempre marcado pela textualização, reprodução e reapresentação dessas relações de poder. Lembra-nos também que o campo intelectual, longe de ser o ponto de vista neutro de descrição objetiva dessas relações, está abarcado e constituído por elas. Quantos projetos intelectuais estarão para sempre marcados por uma dimensão espacial, por um contexto, por um lugar no mundo? Atendo-nos a experiência das ciências sociais no Brasil, recordamos imediatamente da relação entre Sociologia Rural e o interior paulista, notadamente a cidade de Cunha (CANDIDO, 2003). Vêm-nos à mente a relação entre a Antropologia Urbana e o bairro de Copacabana nas décadas de 1970 e 1980 (VELHO, 1978). Da Antropologia da Sexualidade e o Largo do Arouche, na cidade de São Paulo (PERLONGHER, 1987). Todos esses produtivos campos fizeram de um contexto espacial temporalmente delimitado um projeto intelectual que marcou e marca de forma incontornável a história do campo em terras brasileiras. A cidade de Juazeiro do Norte também é um desses lugares de criação. Foco de projetos intelectuais relevantes como a Caravana Farkas, na década de 1960 (LUCAS, 2012; RAMOS, 2004; MARQUES, 2015), do Museu Nacional do Folclore, em 1980 (FUNARTE, 1985), do Museu Casa do Pontal entre as décadas de 1970 e 1990 (MASCELANI, 2009). Foi também campo para as pesquisas do historiador americano Ralph Della Cava (1976), de Luitgard Barros (1988), Marcelo Camurça 10

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(1994), Auxiliadora Lemenhe (1996), Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes (1986; 1990; 1993; 1995; 1997; 1998; 1999; 2005; 2007), César Barreira (1992a; 1992b; 1998; 1999) Oswald Barroso (1982; 1989; 2010), Oswald Barroso e Rosemberg Cariry (1982) Marco Antônio Gonçalves (2007; 2011), Marco Antônio Gonçalves et alli (2011) Elsje Lagrou (2011), Joselina da Silva (2012), Rosilene Alves de Melo (2010a; 2010b; 2011a; 2011b), Ewelter Rocha (2006; 2015a; 2015 b), entre tantos outros. Restringimo-nos aqui aos projetos inspirados pelo campo das ciências sociais. Se fôssemos citar a produção imagética sobre Juazeiro do Norte e o Cariri por ela reapresentados, iniciaríamos uma lista infindável de historiadores, geógrafos, cineastas, fotógrafos, escritores, poetas, dramaturgos, entre outros. Se espaços são produções imagético-discursivas, como nos lembra Albuquerque Júnior (1999), Juazeiro do Norte é um lugar complexo de produção de signos sobre a cidade, sobre Nordeste e sobre o Brasil. A partir de 1995, com a realização do primeiro concurso público na Universidade Regional do Cariri, o Departamento de Ciências Sociais dessa instituição passa a ocupar um novo lugar na produção desse campo de conhecimento. Os trabalhos de Renata Marinho Paz (2011; 2012), Anna Christina Farias de Carvalho (2007; 2011), Maria Paula Jacinto Cordeiro (2011), Roberto Marques (2015a; 2015b), Domingos Sávio de Almeida Cordeiro (2011a; 2011b; 2004), Núbia Ferreira Almeida (2013), José Carlos dos Santos (2011) e Thiago Zanotti Carminati (2014) passam a figurar como relevantes contribuições na reflexão sobre memória, narrativas e religiosidades. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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Mais recentemente essa reflexão se estende para aspectos de gestão, políticas públicas, hierarquias e relações de poder, tornando as ciências sociais um valioso aliado na caracterização de dinâmicas sociais e gestão das cidades. Nesse quesito, destaca-se a produção de Antônio dos Santos Pinheiro (2013; 2014), Iara Maria de Araújo (2011a), Iara Maria de Araújo et alli (2011a; 2011b), Sávio Cordeiro (2013) e Roberto Marques (2012; 2013). Essas linhas de reflexão se desdobram majoritariamente mediante a interlocução da Universidade Regional do Cariri com o Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, a partir da formação dos professores do curso de Ciências Sociais e também de outros departamentos de nossa I.E.S., assim como: Fábio José Cavalcanti de Queiroz (2002; 2010) Titus Benedikt Riedl (2002; 2007), Evanira Rodrigues Maia (2002), José Bendimar de Lima (2003), Pedro Ferreira Barros (2003), Emanoel Lima Ferreira (2002; 2011), Alana Mara Alves Gonçalves (2002) e Lucas Vieira de Lima Silva (2007). O amadurecimento de uma nova geração de cientistas sociais formada pela URCA1 e já integrada a programas de pós-graduação na área também alimenta essa produção. Ressalto aqui os trabalhos de Wendel Freitas Barbosa (2014; 2011), Antônia Eudivânia de Oliveira Silva (2013; 2014), Priscila Ribeiro Diniz (2014; 2013; 2011), Antônio Lucas Cordeiro Feitosa (2014a; 2014b), Joice Mara César Bizerro (2014) e Ruth Rodrigues Santos (2015).

1 O Curso de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri teve início no ano de 2006.

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A lista acima, realizada de forma pouco rigorosa, atendose apenas a produção em livros, dissertações e teses, atesta um amadurecimento institucional e intelectual do departamento de Ciências Sociais da URCA. Dá indícios ainda do processo de interiorização do ensino superior nas últimas décadas e o consequente processo que James Clifford (2002) chama de “um mundo de etnografia generalizada”, que pulveriza e complexifica relações de poder a partir do momento que redimensiona os agentes e multiplica os pontos de vista daqueles que possuem direito à voz, que agenciam visibilidades e dizibilidades sobre as dinâmicas dos lugares. Agora, não somente o olhar verticalizado do pesquisador americano sobre nós, mas um ponto de vista construído a partir de influências, reapresentações e inspirações amparadas na localização espacial desses variados agentes e nas relações de poder a que estão submetidos. Provavelmente quando elaborada como uma lista de nomes, o montante dessa contribuição não reflita a dinâmica em jogo com essa multiplicação de atores. Para não nos alongarmos em termos teóricos, digamos apenas que temas como periferia, violência doméstica, memória social, diversidade religiosa, criatividade, gênero e sexualidade, interseccionalidade, geração, etnia, raça, políticas públicas, experiências de ensino em sociologia, imagens e imaginário espacial passam a ocupar um novo patamar na reflexão teórica sobre as práticas sociais no Cariri a partir da multiplicação de atores caracterizada acima.

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O conjunto de artigos enfeixados no número 08 da revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais reflete os deslocamentos aqui apontados. Em maio de 2010, o Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri foi visitado pelos professores Daniel Walker e Renato Casimiro, representantes da Comissão de Organização do Centenário de Juazeiro do Norte. A comemoração do centenário, que tomou como base a data da posse do primeiro prefeito de juazeiro em 04 de outubro de 1911, dobrou-se tanto sobre questões infra estruturais da cidade de Juazeiro do Norte quanto de sua memória, contando com apoio técnico e financeiro de variadas instituições. Especificamente no que diz respeito ao Departamento de Ciências Sociais da URCA, a comemoração do centenário de Juazeiro do Norte contemplou a publicação das teses e dissertações de Anna Cristina Carvalho Farias, José Carlos dos Santos, Maria Paula Jacinto Cordeiro e Renata Marinho Paz2. Nasceu nessa reunião a ideia de integrar-se às comemorações do centenário de Juazeiro do Norte a edição de um dossiê da revista Tendências sobre a cidade de Juazeiro do Norte. O dossiê foi composto com 06 artigos de 09 pesquisadores de 09 universidade brasileiras, descrito brevemente a seguir. Em Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte, Rosilene Alves de Melo mostra como a escrita 2 O projeto de comemoração do centenário planejou a publicação de um total de 100 livros, publicados com apoio do BNB, Banco do Brasil BIC e Governo do Estado do Ceará.

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do cordel, prática entranhada na história de Juazeiro, está presente na produção de objetos artísticos de autoria de escultores e gravadores reunidos em torno do Centro Cultural Mestre Noza. Esses objetos circulam o país e materializam a cidade, seus personagens, suas formas, em uma experiência de “condensação imagética”. A partir do referencial teórico da Antropologia da Arte, Melo apreende o processo de criação das obras como ato criativo multideterminado, não a partir de localizações geográficas, mas de formas de pensamento a partir da experiência. Remete-nos ainda a noção de diferença como uma ideia vigorosa no fazer antropologia. A expressão, materialização e formas de comunicar memórias e identidades em Juazeiro do Norte são também problematizadas por Ricardo Cruz e Sávio Cordeiro no artigo Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero. No encontro com jovens cursando o ensino médio da cidade, os autores utilizam o termo Padre Cícero como desencadeador de memórias e significados para esses jovens. A partir disso retomam a discussão clássica de Michael Pollak sobre memórias em segunda mão e formas de comunicação de identidades e invenção da cidade. Os artigos de Edianne Nobre e Amanda Teixeira retomam personagens da história de Juazeiro do Norte apreendendo-os sob renovadas perspectivas de análise. Assim em “Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”: um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910), Edianne Nobre revisita a fundação das casas de caridade pelo Padre Ibiapina; o início da imprensa religiosa no Cariri; o movimento abolicionista; a transmutação das hóstias em sangue e as disputas sobre

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os fatos ocorridos em Juazeiro do Norte decorrentes da divulgação crescente da experiência de transmutação a partir de uma perspectiva biográfica, apontando a centralidade de José Marrocos na história de Juazeiro do Norte, tanto pelo seu campo de agência, como por sua personalidade e estilo de escrita. Em Juazeiro sem Padre Cícero: cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio, Amanda Teixeira parte de uma instigante provocação: Poderia a cidade de Juazeiro do Norte prosperar econômica e simbolicamente após a morte de Padre Cícero em 1934? Com a questão, a autora tensiona as leituras excessivamente afeitas a figura do líder político e religioso na perpetuação de um imaginário sobre a cidade e suas possibilidades. A fonte utilizada, o caderno de escritos do escultor italiano Agostinho Balmes Odísio, confere ao artigo não apenas novidades sob o ponto de vista dos objetos e temporalidades eleitos para a pesquisa, mas novidades metodológicas. A autora revisa de forma eficiente a produção da história e das memórias sociais a partir de diários íntimos. As ideias de regimes de visibilidade e a força da memória subterrânea como lócus de resistência estão também presentes no artigo Religiosidade de Matriz Africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense, de Joselina da Silva e Reginaldo Ferreira Domingos. A autora e o autor refletem sobre o aumento recente do número de terreiros de Candomblé em Juazeiro do Norte, avaliando o motivo para o silencio em relação aos cultos de matriz africana na região do Cariri. Apontam movimentos políticos recentes como a Caminhada contra a intolerância religiosa, que ocorre em Juazeiro desde 2010, tensionando os limites

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entre ações políticas, simbólicas e religiosas no campo do movimento negro. Otília Aparecida Silva Souza e Hayane Mateus Silva Gomes discutem no artigo O direito à saúde - uma alternativa de combate ao racismo como o Estatuto de Igualdade Racial estaria inspirando políticas públicas. Para isso, as autoras levantam dados sobre o tratamento devotado às populações negras em duas instituições de saúde do Cariri cearense. As autoras cotejam a legislação em vigor sobre cuidados relativos a populações negras em serviços de saúde com as interações estabelecidas, ao longo da pesquisa, com os serviços, os profissionais e os usuários das instituições de saúde. Os dois últimos artigos do dossiê se comunicam a partir de temas caros às ciências sociais, tais como etnia, populações estigmatizadas, silenciamento, entre outros; ao mesmo tempo, se complementam a partir dos enfoques em torno do ativismo, no primeiro, e das políticas públicas e seus limites, no segundo. Ao longo dos seis artigos, memórias coletivas, imaginários espaciais, comunicados na e pela cidade de Juazeiro do Norte vão sendo desvelados, apontando linhas que organizam as possíveis contribuições das ciências sociais nas formas de narrar, visibilizar e mediar ações na(s) cidade(s). Na sessão referente a artigos, temos a contribuição da antropóloga americana Mary Kenny. Seu trabalho Paisagens da Memória: Os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil se comunica de forma direta com os artigos publicados no Dossiê Imagens, memórias e políticas de uma cidade: Juazeiro do Norte.

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Mary Kenny demonstra como a construção de “currais” para a contenção de migrantes da Seca nas primeiras décadas do século XX marcou o imaginário da cidade de Senador Pompeu, materializando uma memória de exploração, hierarquia e expropriação do próprio corpo pelos migrantes da seca. Retomando questões relativas a memória coletiva, conceito revisitado em alguns artigos desse número da revista, a autora analisa algumas possibilidades da tomada dessa tragédia como patrimônio. Dessa forma, tensiona as noções de patrimônio, vivências compartilhadas e memória. Em diálogo evidente com os destinos da folclorização e apropriação da memória coletiva, Mary Kenny parece nos alertar sobre a necessidade de multiplicação dos agentes que tornam a história um campo frutífero e nem sempre uníssono, submetido à produção econômica. Para a autora, a cultura deve ser bem mais que um “negócio produtivo”. E que assim seja, em Senador Pompeu, em Juazeiro do Norte e em outros lugares em que as ciências sociais se façam presentes e ajudem a multiplicar narrativas!

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Dossiê

Imagens, memórias e políticas de uma cidade: Juazeiro do Norte

Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

Rosilene Alves de Melo1

Resumo Esta pesquisa analisa a agência das imagens como produções de sentido. Palavras, formas, sombras, luzes e cores se transformam em objetos artísticos que atravessam as dimensões do visível e do invisível, do real e da imaginação, da memória e do sonho. Nesse sentido, folhetos de cordel, desenhos, xilogravuras e esculturas comunicam como os artistas elaboram, através da individuação, a cidade de Juazeiro do Norte como espacialidade imaginada por meio da arte. A partir das imagens é possível ouvir como artistas interpretam os processos de criação e “tecnologias do encanto” que resultam em objetos que, através de exposições e do comércio, passam a circular em outros circuitos como galerias e museus. A partir dos depoimentos dos artistas, é possível conhecer as experiências de organização em cooperativas e associações, nas décadas de 1970 e 1980, que ensejaram a criação da Associação de Artesãos do Padre Cícero e do Centro de Cultura Popular Mestre Noza. Palavras-chave: antropologia da arte, Juazeiro do Norte, Centro Mestre Noza.

Abstract This research analyzes the agency of images while productions of meaning. Words, shapes, shadows, lights and colors become art objects that traverse the dimensions of the visible and the invisible, the real and the imagination, memory and dream. 1 Professora da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. E-mail: [email protected] Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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In this sense, brochures twine, drawings, woodcuts and sculptures communicate how artists draw through individuation, the city of Juazeiro do Norte as imagined spatiality through art. From the pictures you can hear how artists interpret the processes of creation and “charm technologies” that result in objects that, through exhibitions and trade, are circulated in other circuits as galleries and museums. From the testimony of artists can learn from the experiences of organizing in cooperatives and associations in the 1970s and 1980s, which gave rise to the creation of the Association of Artisans of Padre Cicero and the Center for Popular Culture Master Noza. Key words: art anthropology, Juazeiro do Norte, Centro Mestre Noza.

“Imagens cosmológicas” de Juazeiro do Norte O Centro de Cultura Popular Mestre Noza, situado na Rua São Luiz, diferencia-se das lojas contíguas do centro da cidade de Juazeiro do Norte por características arquitetônicas. A porta de madeira ao centro e o estreito corredor permitem o acesso a uma dezena de pequenas salas voltadas para um pátio em formato de quadrilátero. Essa disposição informa que aquele espaço fora construído, no passado, para servir como uma prisão, porém atualmente possui outro uso e significado. Na “antiga Cadeia Pública”, como muitas pessoas preferem chamar, pesados “troncos” de madeira são conduzidos através da porta de entrada e são transformados por um grupo de artistas em esculturas. Praticamente todos os espaços foram tomados por imagens que se aglomeram pelo chão, pelos corredores, sobem pelas paredes e atingem até o teto (ANDRADE FILHO, 1991; VITORINO, 2004; CAVALCANTI, 2011). Ao entrar pela porta da “antiga cadeia” que abriga o Centro Mestre Noza aberturas simbólicas se descortinam. A sobreposição de objetos esculpidos manualmente naquele ambiente ativa a presença 32

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de pássaros, lagartos, macacos, serpentes, onças. Pedaços de madeira são transformados em índios, catirinas, caretas, jaraguás, mateus, cangaceiros, beatas, santos e orixás. Outras figuras se apresentam como formas híbridas, paradoxais, exigem de quem as observa projeção mental da sua existência e sugerem a presença de espíritos, de animais, de pessoas. Essas séries de figuras que ativam a memória, a geração de sentido e a imaginação são índices visuais que constituem algumas das “imagens cosmológicas” (WARBURG, 2005) de Juazeiro do Norte. Os objetos presentes no Centro de Cultura Popular Mestre Noza, assim como em outros espaços de produção artística existentes em Juazeiro do Norte, a partir dos indícios apontados nesta pesquisa, constituem o resultado de um longo processo de condensação imagética, operação que consiste na geração de sentidos através da fusão entre memória social e imaginação. A condensação de imagens altera formas, cores, texturas, perspectiva e escala do mundo representado (LÉVISTRAUSS, 1967). Assim, objetos, animais, humanos, narrativas, sonhos e memória, a partir da condensação, propiciam a emergência de outras figuras. A condensação das imagens implica a alteração criativa da realidade e, portanto, a sua criação. Conforme assinala Montes (2012), (...) o imaginário não existe fora de um contexto social de experiência humana, num vazio histórico ou social, mas, ao contrário, dele depende para sua expressão. Entretanto, suas imagens não são reprodução dessa realidade, mas condição de sua criação, envolvendo formas de percepção que elas suscitam, a sensação e a emoção que delas emanam, a maneira em que a memória as fixa, os valores e condutas que a elas se associam. São construções de signos, ideias, sentimentos de longa duração histórica que a experiência atualiza em contextos

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específicos, mas que se conhecem de modo exemplar quando se condensam na experiência singular de um indivíduo. E artistas são indivíduos privilegiados para nos fazerem entender a maneira pela qual o imaginário se manifesta como linguagem primordial de sua criação e poética (p. 24).

O aprimoramento técnico implicado na produção de objetos cada vez mais ambíguos e complexos, ao articular as dimensões do oral e do escrito, ativa aquilo que Carlo Severi conceituou como o “princípio da quimera” (2006), mecanismo de projeção mental que garante a eficácia mnemônica e o encantamento de determinadas imagens. Para Alfred Gell, as obras de arte devem ser pensadas como dispositivos que “incorporam ideias, veiculam significados”, pois evocam “intencionalidades complexas” (1998, p. 203) que apontam para o plano dos relacionamentos entre os seres, objetos e identidades. Nesse sentido, o conceito de obra de arte fornece elementos para pensar a respeito da densidade de conexões presentes em determinados objetos (LAGROU, 2007). E mais: ao estabelecer como pressuposto a capacidade de qualquer objeto vir a se constituir como índice de relações, a concepção ocidental que toma as qualidades estéticas como único parâmetro válido na definição de arte perde seu sentido (DEMARCHI, 2009). Assim, o objeto artístico atua como rede, como armadilha, como um “ardil que impede a passagem” (1998, p. 213) porque captura o corpo, o olhar, produzindo encantamento. A partir do trabalho de campo realizado entre 2008 e 2012, foi possível acompanhar como alguns dos artistas de Juazeiro do Norte realizam essas operações cognitivas através de linguagens distintas como o cordel, o desenho, a xilogravura e a escultura. Os depoimentos 34

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possibilitaram acompanhar, também, por meio da individuação e da auto representação, como os artistas adicionam a criatividade pessoalizando a “tradição iconográfica” (SEVERI, 2009) da qual fazem parte. Esse artigo se propõe a possibilitar reflexões acerca de como algumas imagens foram elaboradas simbolicamente e, por meio da arte, passaram a fazer parte da cultura material de Juazeiro do Norte.

A fusão de imagens por meio da palavra As evidências etnográficas produzidas apontaram para a existência de conexões entre a iconografia e um modo de produção de alegorias proveniente de outras matrizes – o cordel e a xilogravura solidamente enraizadas entre os artistas. Essa hipótese se tornou mais plausível à medida que ouvia algumas entrevistas gravadas durante a pesquisa. Num desses encontros, pedi a um escultor que explicasse onde buscou elementos para elaborar uma determinada “peça”, como as esculturas são chamadas, quando ouvi a seguinte resposta: “o cordel aguçou muito o imaginário das pessoas aqui de Juazeiro em relação a essas criaturas fantásticas, o cordel teve um papel muito forte. Isso gerava muita coisa no imaginário das pessoas.” Essa explicação se fez presente em outros depoimentos e os cordéis forneceram uma indicação a ser considerada no curso das reflexões acerca das mensagens presentes na imagética de Juazeiro do Norte. O folheto de cordel, na qualidade de “arte da memória” (SEVERI, 2006), pode ser definido como uma prática cultural que estabeleceu vínculos profundos com o universo simbólico de Juazeiro do Norte (GRANGEIRO, 2007). Prática literária que não pressupõe 35

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necessariamente familiaridade com a escrita, o cordel aciona, através da rima, da oração e da métrica, estratégias mnemônicas e cognitivas eficazes. Poética que se faz a partir do emprego de padrões métricos bastante rígidos na organização dos versos – quadra, sextilha, décima, mourão, martelo, que, não obstante, permitem ficcionar livremente as experiências vividas. O cordel possibilita aberturas para criação de mundos nos quais pessoas, animais, seres imaginários, objetos e sonhos estão imbricados de tal maneira que se dissipam quaisquer limites entre realidade e ficção. Por meio da palavra rimada, se inventou como linguagem, exercício de experimentação artística, veículo de comunicação e propaganda, mas, sobretudo, como “estilo de compreender e construir pontos de vista sobre o mundo, as coisas e as relações. O cordel evoca, por assim dizer, uma cosmologia por meio de seu verso” (GONÇALVES, 2007, p. 23). O primeiro folheto sobre Juazeiro do Norte foi publicado no jornal O Rebate, periódico que circulou entre 1909 e 1911. Trata-se do poema O Juazeiro do Padre Cícero, escrito por Leandro Gomes de Barros. O autor da existência Fez em seis dias o mundo Desceu com toda ciência Veio ao abismo profundo Mandou a terra mover-se Mandou o sol recolher-se A lua tivesse enchente Entre a planície e a serra Me fez o deus desta terra Deixou-me a um padre somente.

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E me disse fique aqui Eu fui seu criador Olhe que já vem ali Rebanho que não tem pastor Chega o órfão desvalido Vem o pobre foragido Que correu o mundo inteiro Porém você diz ao mísero Filho eu sou o padre Cícero Chegue para o Juazeiro. (BARROS, 1914, p. 4)

O poema estabelece analogias entre o juazeiro, árvore extremamente resistente às secas que serviu de abrigo para os grupos de tropeiros que, no século XIX, paravam à sua sombra para descansar e à qual se atribui a origem do povoado. Na poética em versos, a tradução das memórias acerca da povoação de Juazeiro dá conta da existência precisamente de três árvores que se tornaram parada obrigatória dos comerciantes; a imagem dos “pés de Juá” é associada ao surgimento da cidade que simbolicamente forja-se como sombra que abriga aos que sofrem (CARVALHO, 1998). Com os pés fincados na sombra acolhedora da árvore símbolo, Padre Cícero convida os que sofrem a virem à cidade que cresce, floresce e dá “pousada ao mundo inteiro”. Assim como o juazeiro que resiste às secas, mantendo-se verde mesmo em meio à paisagem árida, a cidade de Juazeiro se ergue fincada, em pé, como um tronco a proteger seus moradores. Nos versos de O Juazeiro do Padre Cícero, a árvore simbólica é protegida por mil serpentes escondidas em suas raízes. De seus troncos vertem águas que formam cascatas. Em suas copas, pássaros “dão, 37

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orgulhosos, mil vivas ao Juazeiro” (p. 5). Nas sombras que amenizam o calor, todos podem descansar, pois “ali chega o estadista/ o pobre, o capitalista/ em mim termina a viagem” (p.6). Mesmo no solo pedregoso, o juazeiro produz “seiva pura e boa”. O gado come suas folhas, os pássaros matam sua fome e sua copa forma um frondoso telhado que abriga o viajante. O juazeiro é árvore forte; nem o vento nem o ferro conseguem derrubá-lo, e seus galhos “crescem, desordenados, e se confundem com os braços e pernas das pessoas, numa reatualização do grotesco que a escultura popular vai retomar muitos anos depois”. (CARVALHO, 1998, p. 22) Durante aproximadamente um século da publicação de O Juazeiro do Padre Cícero, cordel inaugural de todas as narrativas em verso sobre Juazeiro do Norte, a árvore símbolo (o juazeiro) ainda permanece presente nas artes da memória do cordel contemporâneo (GOLÇALVES, 2007). Na narrativa poética do cordel, outras associações aparecem:

Do lado, três pés de juá Com grande sombra e beleza Onde viajantes a descansar Outros encontros com certeza Três estradas juntas Formando esta beleza. Estas três estradas eram Missão Velha, Barbalha e Crato Naqueles pés de juá Todos se encontravam de fato Dos juás se originou o nome Juazeiro do Norte nato. (C. NETO, 2012, p. 3)

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No entanto, através da poética é possível perceber os hibridismos e ressignificações, melhor dizendo, as atualizações desse símbolo. No folheto 100 anos de absurdo (BITU, 2012), Guto Bitu estabelece diversas associações de personagens, objetos e situações absurdas que são factíveis na Juazeiro imaginada. Como elementos cruciais das narrativas eivadas de hibridismos, as três árvores míticas estão presentes nos primeiros versos do poema:

Na praça, três pé de pau Dão sombra pra um cometa E, no mercado central, Não estão te dando peta E, se a Nasdaq cair, A farinha vai subir Mais o preço da trombeta.

Porém,

partindo

dos

juazeiros

cosmológicos,

condensações contemporâneas são produzidas: Raul Seixas já sabia Da arte de Mestre Noza Stênio cantou um dia Lampião pegou a prosa E transformou num poema Que falava que o cinema Deixava Maria cheirosa. Na Lira leram um cordel E no espaço sideral Esqueceram do papel Pro cordel ser digital Na frente do computador

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outras

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Não tem medo e nem tem dor Pois todo mundo é virtual. Um bendito foi cantado Pra saldar Tio Patinhas Que ficou emocionado Com o bendito das velhinhas Para elas distribuiu Perucas de Bombril E umas duas moedinhas. Um pau-de-arara saiu Vindo do Afeganistão Desceu a serra com mil Chegando ao Romeirão2 Pra ver um jogo de bola Foi Brasil versos Angola E pense na diversão. (BITU, 2012, p. 6 - 11)

As operações cognitivas que tornam possível articular elementos retirados da experiência cotidiana com o plano da imaginação se transformam, através da poética, em poderosas imagens ao estabelecer analogias e relações de sentido (MITCHELL, 1986). Este procedimento de condensar ficcionalmente a recordação e a imaginação, o visível e o invisível, se constitui numa prática cultural bastante difundida entre os artistas e se multiplica por meio de outras linguagens. No folheto O imaginário de Lampião sobre seus leitores, amigos e admiradores, Abraão Batista exerce a faculdade mimética, a capacidade de, ao imitar, tornar-se outro e fabular a partir do ponto de 2 O cordel faz referência ao escultor Mestre Noza, ao xilógrafo Stênio Diniz, aos benditos (cânticos religiosos entoados como demonstração de fé e penitência entre os católicos) e ao Romeirão, estádio de futebol de Juazeiro do Norte.

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vista do outro (TAUSSIG, 1993). Procurei me transportar Como um ser imaginário A procura de Lampião Dentro do seu calendário Trazendo seus pensamentos Dentro deste vocabulário (BATISTA, 1977, p. 7).

Nas sextilhas que seguem, é possível perceber como Abraão Batista realiza em Juazeiro do Norte o inusitado duelo entre a arte marcial chinesa e o cangaço, através do encontro ficcional entre a personagem kwai Chang Caine, da série norte-americana de TV “Kung Fu”, e o cangaceiro Lampião. Meu leitor, meu amiguinho permita a imaginação deste encontro imaginário de Kung Fu com Lampião na cidade de Juazeiro de Padre Cícero Romão... Pois bem, eu vou dizer como foi que aconteceu dizendo quem se feriu quem matou e quem morreu depois diga por aí quem contou isso fui eu...

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Mas lembre esta história é livre e imaginária vem do direito do poeta que tem na indumentária do infinito astucioso que não tem medo de pária. (BATISTA, 1975, p. 2)

A capa do folheto, ao associar título e imagem, compõe uma condensação da narrativa, facilitando sua compreensão por quem lê ou vê o cordel. Esse modo de narrar, ao reduzir as associações entre o texto escrito e a imagem, estreita as conexões entre figuras provenientes da memória social e da televisão, pois, segundo Abraão Batista, “aqui em Juazeiro, virtual e realidade não se separam”. (BATISTA, 2012). 42

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Além de apresentar algumas informações necessárias como autor, título e preço, a capa do cordel possui a função de traduzir numa única imagem a narrativa a que o leitor tem acesso nas páginas seguintes. Por questões de ordem comercial – para abreviar o tempo de produção das capas dos folhetos que eram encomendadas em Recife desde as primeiras décadas no século XX – , o editor José Bernardo da Silva passou a encomendar matrizes em madeira aos santeiros de Juazeiro do Norte para impressão na Tipografia São Francisco, fundada em 1932 (MELO, 2010). Assim como quase todos os escultores de sua geração, Manoel Santeiro passou a gravar imagens nos pequenos tacos de madeira, 43

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quase que invariavelmente no tamanho de 11 x 16cm, usados na ilustração da literatura de cordel produzida em larga escala em Juazeiro. Além de Manoel Santeiro, Mestre Noza, Walderêdo Gonçalves, Antonio Relojoeiro integraram a primeira geração de xilógrafos de Juazeiro do Norte e conciliaram a gravura com a escultura em madeira (CARVALHO, 2004). A xilogravura se tornou a técnica privilegiada pelos artistas na ilustração da literatura de cordel produzida em Juazeiro do Norte, o que resultou num repertório de imagens que transitaram da capa do folheto para o plano tridimensional através da escultura. O universo das práticas culturais relacionadas às romarias e a figura emblemática do Padre Cícero se misturaram a figuras retiradas do reisado, das ruas da cidade, das religiosidades africanas, do noticiário dos jornais e das experiências pessoais dos artistas ensejaram a introdução de múltiplos elementos simbólicos nas iconografias que emergem tendo a especialidade de Juazeiro do Norte como referência. Na xilogravura abaixo de autoria de Francorli, que aparece na capa do folheto intitulado Hino de Juazeiro (apud SILVA 2012), é possível observar como ocorre o processo de condensação operando como uma síntese visual e cognitiva de imagens de Juazeiro do Norte: a Serra do Horto, Padre Cícero e os três pés de juazeiro.

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“Quando eu começo a ler o livro, vem mais de mil imagens na minha cabeça” A etapa mais importante no processo de elaboração da xilogravura é o desenho, a imagem primeira, a ideia inicial, o protótipo da xilogravura. No processo de produção da xilogravura o desenho é necessário e quase todos os xilógrafos utilizam-no. Entretanto, após a transferência da imagem para a madeira quase todos os desenhos são descartados, jogados no lixo. O escultor e xilógrafo Marcionílio Pereira Filho (Nilo) é uma exceção dentre os artistas de Juazeiro do Norte, pois conseguiu guardar quase todos os desenhos que produziu ao longo de mais de vinte anos de trabalho. Esse precioso acervo de imagens foi tomado nesta pesquisa como um diário de campo, pois é a partir das imagens que o artista expressa seus pontos de vista, suas vivências e 45

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como pessoaliza as dimensões do visível e do invisível em Juazeiro do Norte. O universo imagético de Nilo se forjou ainda na infância, quando assistiu por alguns anos as séries de televisão Perdidos no Espaço e Sítio do Pica-Pau Amarelo, cujos personagens ficaram guardados em sua memória. Mas, além das imagens advindas da televisão, Nilo foi um leitor assíduo de enciclopédias – nas quais apareciam dragões, sereias, seres mitológicos, criaturas fantásticas – que despertaram o fascínio pelo desenho. Ainda nas incursões pelas bibliotecas do Recife, onde viveu durante a infância e adolescência, Nilo teve a oportunidade de conhecer as xilogravuras de J. Borges e Samico. Segundo Nilo, ao longo de muitos anos, “essas imagens ficaram hibernando”. Ao vir para Juazeiro do Norte na juventude, Nilo trabalhou na primeira equipe que organizou o Memorial Padre Cícero. Sua função era auxiliar de bibliotecário, quando transcreveu diversas cartas trocadas entre Padre Cícero e os romeiros, sendo necessário recorrer à ajuda de dicionários para compreender algumas expressões que desconhecia. Durante o período em que trabalhou na biblioteca do Memorial Padre Cícero, Nilo teve a oportunidade de ter acesso a livros acadêmicos que posteriormente influenciaram seu trabalho. No entanto, considera que, dentre as diversas leituras que realizou, os livros Messianismo no Brasil e no mundo (QUEIROZ, 1965) e Os Cariris do Nordeste (SIQUEIRA, 1978), foram aqueles que forjaram a sua visão de Juazeiro do Norte que se traduz nas esculturas e xilogravuras. Quando as pessoas falam de Juazeiro, dão a impressão de que antes da fundação da cidade nada existia. Não é verdade. O lugar já existia, mas dentro

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do lugar onde surgiu essa fazenda existiam negros, existiam caboclos -- que eram descendentes dos índios com os negros. Depois vieram os coronéis, os capitães e só depois é que se tornou o Taboleiro Grande, mas aí já é outro processo. Quando eu vi esse livro (Os Cariris do Nordeste), eu fiquei fascinado pelo livro! Ele fala do acauã, dos animais totens dos índios. Os animais sagrados. Porque que os índios gostavam do carcará? Por que os índios endeusavam o carcará? Porque o carcará mata a cobra, ela é uma ave de rapina pra eles, pras lavouras de milho, pras lavouras de mandioca, entendeu? A ave era como uma ave totem. A cabaça... Eles colocavam uma grande cabaça... O índio saía e era uma representação do deus Warakdzã. Ele tá com um maracá que é o instrumento utilizado pelo pajé pra dar o som do transe. O pajé usa como instrumento o maracá para dar o do som transe, porque tinha que dar ritmo e associar o som. E o livro fala também das flautas que eram feitas de osso de aves, porque eles usavam grandes ossos para fazer o som das flautas, além da cabaça e do maracá. E o índio era representado pela figura de Badzé. Claro que o ritual era mais complexo. Fala do carcará, fala até da umburana, fala dos transportes, já entra a questão do índio partindo para a miscigenação, as pessoas que começaram essa descendência do caboclo Cariri. E é um livro que eu nunca vi outro igual na minha vida, pra mim. Quando eu começo a ler o livro, vêm mais de mil imagens na minha cabeça. Aí é onde entra a questão gráfica. Como também do livro da Maria Isaura Pereira de

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Queiroz. E ali já é outro processo porque vem a coisa do beato, do messiânico, que é a coisa que me interessa muito porque ele que faz emergir, sabe, assim, essa maquinação para a criação. (PEREIRA FILHO, 2012)

Esse

aqui

é

a

“Viagem do Xamã”. Esse trabalho do xamã se refere ao xamã no processo do desdobramento. Você vê que ele está como uma figura totalmente retorcida, meio que dobrando. Ele dobrando e você vê que na frente dele ele já se encontra em outro plano onde ele encontra Desenho "A Viagem do Xamã". Autor: Nilo

os

elementais,

que são de forma meio indefinida. Aqui não há uma

definição como se fosse uma fada ou algo assim. Eu procurei fazer de forma meio distorcida porque a ideia era que fosse um espírito que está recebendo a mensagem. Ele fica por trás e outro pela frente. E ele já está desdobrado aqui em outro plano recebendo a mensagem. As esculturas que fazem parte do acervo do Centro de Cultura Popular Mestre Noza demonstram como ocorre a passagem para o plano tridimensional das diversas informações que atravessam o viver em 48

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Juazeiro do Norte. Elas constituem sínteses de narrativas e condensam o multiculturalismo de uma cidade que se ergueu como lugar de passagem (PAZ, 2004). A escultura de Diomar de Freitas, reproduzida na fotografia abaixo, na qual a beata índia ostenta um colorido cocar na cabeça, é uma dentre inúmeras imagens condensadas de ambiguidade e complexidade que todos os dias proliferam naquele grande ateliê a céu aberto. As esculturas em umburana desafiam o espectador a pensar sobre como os artistas de Juazeiro do Norte experimentam condensar numa única imagem que provêm de fontes distintas e lhes confere outros significados.

“A índia beata”. Escultura em madeira (umburana). Autor: Diomar de Freitas 49

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Portanto, as imagens que proliferaram em Juazeiro do Norte apontam para a multiplicidade de influências que advêm da televisão, da leitura de cordéis e livros, da observação do cotidiano da cidade, da dimensão religiosa. Apontam, também, para as múltiplas experiências possíveis nesta espacialidade de trânsito de pessoas e culturas (CORDEIRO, 2010). Aludem, ainda, a uma formação histórica plural que, a despeito da presença marcante do catolicismo a partir do ritual das romarias, expressa a presença de outros pontos de vista, outras cosmologias e outras relações com o sagrado (ROCHA, 2012). Através das imagens que emergem das mãos dos artistas, outros Juazeiros adquirem visibilidade como elaborações simbólicas que se encontravam até a sua materialização por meio da arte no plano do invisível.

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Juventudes, conceitos e memórias:

evocações em torno do Padre Cícero Ricardo Cruz Macedo1 e Domingos Sávio de Almeida Cordeiro2

Resumo Propondo que as memórias sociais se deem a partir das próprias experiências e as mediadas por outros sujeitos, apresentamo-las como expressões de vínculos entre gerações. Essa é uma reflexão de como os jovens estudantes do Ensino Médio de Juazeiro do Norte expõem, através da evocação de palavras, suas relações memoriais com o Padre Cícero. Para tal, destacamos no texto os espaços e as situações que referenciam as memórias e o mosaico de possibilidades de representá-las. Por meio de recorte etário, consideramos jovens os sujeitos com idade entre 13 e 19 anos. Indagamos a eles quais as primeiras coisas que lhes vêm à mente quando sugerido o nome do Padre Cícero e, em seguida, seus porquês para pensar na forma imediata como apontam os referenciais das suas memórias. Nesse âmbito, pensamos que as percepções desses jovens pesquisados sobre o Padre Cícero apontam para fontes memoriais diversas, versando esse ícone desde as perspectivas subjetivas até as de caráter mais amplo, perpassando as evocações entre um sentido de distância temporal e experiência própria. Palavras-chave: juventudes, memórias sociais, Padre Cícero, Juazeiro do Norte.

Abstract 1 Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande UFCG. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Regional do Cariri - URCA. 2 Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Professor associado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri URCA. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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Proposing that social deem memories from their own experiences and mediated by other subjects, present them as expressions of links between generations. This is a reflection of how young high school students from Juazeiro expose through the evocation of words, their memorials relations with Priest Cicero. To do this, we highlight the text spaces and situations that reference the memories and the mosaic of possibilities to represent them. Through age cut, young people consider the subjects aged 13 to 19 years. We asked them what the first things that come to mind when suggested the name of Priest Cicero and then his whys to think about immediately as the reference point of their memories. In this context, we think that perceptions of these young people surveyed on Priest Cicero point to several memorials sources, dealing with this icon from the subjective perspectives to the wider character, passing the evocation of a sense of temporal distance and experience. Key words: youths, social memories, Padre Cícero, Juazeiro do Norte.

Introdução Os processos de socialização e a posição geracional são aspectos imprescindíveis à compreensão das memórias, sendo necessário sempre considerar os contextos sociais e culturais em que se encontram personagens como Padre Cícero. Halbwachs (2010) acentua essa perspectiva quando destaca a relação entre as dinâmicas espaciais e as marcas sociais que os sujeitos carregam dela. Sendo as memórias traços que, para além de referenciar um contexto social, cultural e temporal, apontam a relação dos sujeitos com o mundo, passamos a problematizar as memórias sociais sobre o Padre Cícero através dos jovens. O objetivo deste estudo é oferecer uma compressão sociológica em torno de como os jovens estudantes do ensino médio de Juazeiro do Norte descrevem a figura do Padre Cícero a partir de seus vários referenciais de interpretação e aproximação memorial com ele suscitado nas lembranças imediatas. Trata-se de mostrar como essa categoria etária expressa seu conhecimento e envolvimento com esse 56

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personagem da construção da cidade da qual faz parte. Ao tencionarmos o discurso entre as categorias juventude e memórias, nos cabe uma entrada contextual. Os estudos3 sobre juventude têm sido requisitados como de interesse da Sociologia sob diversos aspectos para a compreensão da vida social. Nesse sentido, considera-se que não só nesse campo do conhecimento, mas ainda em todas as Ciências Sociais, não há um consenso em torno de um conceito único e geral sobre juventude (ROMERO, 2008). Segundo Pierre Bourdieu (1983), a categoria estaria vinculada a uma construção social na qual a juventude é entendida apenas como uma palavra que marca diferenciação em relação aos sujeitos mais velhos. Por conseguinte, José Machado Pais (2003) fornece condições para uma reflexão segundo a qual as próprias discussões sociológicas aparecem sob perspectivas distintas, tratando a juventude ora como uma unidade, ora como pluralismo. Em termos etários, por exemplo, aparecerá uma variação de recortes de pesquisa. O Instituto Francês de Opinião Pública (IFOP) atua com o intervalo entre 18 e 30 anos. A Organização das Nações Unidas (ONU) lida com a faixa de 15 a 24 anos (ROMERO, 2008). O IBGE (2010) declara como juventude o período compreendido entre 15 e 29 anos. Essas perspectivas entrecruzam posições, situações e demarcações do sentido conceitual do que seja a juventude. Frente a esses aspectos, corroboramos o que diz Sedas Nunes (1969) quando, diante das preocupações às quais ora nos dedicamos nos faz perceber 3 Ver, por exemplo, Juarez Dayrell (2010), Machado Pais (2003), Pierre Bourdieu (1983), entre outros.

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os jovens em definições geracionais e sociais. Para contexto desta análise, trabalhamos esta categoria com os sujeitos pertencentes à coorte entre 13 e 19 anos. O recorte foi estabelecido após a entrada nos espaços de pesquisa. Tratando a juventude a partir das condições de posição geracional pela idade e pelo lugar social, ela significaria um período de transição para vida adulta, as memórias sociais são entendidas do ponto de vista juvenil como mecanismos que carregam a influência do processo de socialização a partir do pertencimento e do envolvimento desses sujeitos com instituições específicas como a família e a escola. Amparadas nesses grupos de socializações mais próximos, as expressões memoriais evocadas vinculam-se a um pluralismo de situações sociais, aglutinadas a uma diversidade de experiências dos grupos, dos fatos políticos, econômicos e religiosos (CORDEIRO, 2011). A exposição juvenil de expressões memoriais sobre o Padre Cícero apresenta-se no campo do que podemos considerar como subjetivo deste ícone, mesmo distante temporalmente dos jovens, sobressaindo-se expressões como “santo”, “padre”, “político”, etc. De outro lado, sobressaem-se aspectos ligeiramente ligados ao cenário de Juazeiro do Norte, sob expressões como “romarias”, “religiosidade”, “crescimento urbano”, etc. Tais memórias expressam-se como representações sociais do mundo que os cercam, dos contextos que compartilham nas distintas experiências cotidianas. Esse constructo nomeado representação social é indicador dos sentidos atribuídos por indivíduos e grupos a fatos e aspectos da realidade social diante do processo de formação e 58

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modificação contínuas que sofrem as representações as quais derivam dos esquemas simbólicos que nos permitem compreender o ambiente social e as visões de mundo. O conceito Representação Social (RS) foi proposto por Serge Moscovici (1961), na França. O autor trabalhou as representações da psicanálise na sociedade francesa contemporânea a partir de uma proposta de ampliação do conceito de representações coletivas, inaugurado por Émile Durkheim (1898). Os comportamentos individuais ou de grupo são diretamente determinados pelas representações elaboradas em e sobre a situação e o conjunto de elementos que a constituem (...) (ABRIC, 2001, p.168). De maneira didática, pode-se dizer que uma representação social atua como um modo de interpretação da realidade que constitui a visão de mundo, determinando comportamentos e práticas de indivíduos e grupos. Há dois grupos de métodos para produção de dados com representações sociais: métodos interrogativos – entrevistas, questionários e suportes gráficos – e métodos associativos – evocações, associações livres e mapas associativos (SÁ, 1996, p. 107). Entre essa variedade de procedimentos utilizados para realizar pesquisa no campo teórico das representações sociais, optamos pelo procedimento de evocação de palavras, que, como outros, permite compreender o universo semântico de um grupo sobre um ou vários aspectos da temática em tela. Utilizamo-lo ainda além de observações e entrevistas, por se tratar de uma pesquisa inicial e, como tal, possibilitar em pouco tempo uma aproximação com as evidências empíricas. 59

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A associação livre de palavras é também conhecida em pesquisas de representações sociais como “evocação de palavras” ou “evocações livres” (WACHELKE, 2009, on line). Elas são um instrumento para avaliar a frequência, considerando a variação semântica e observando a importância da ausência – zero estatístico. Nele, busca-se descrever uma representação a partir da identificação de significados atribuídos e associados. Na prática da “associação livre” ou “evocação livre” (EVOC), procede-se a partir de uma ou de um pequeno número de palavras indutoras como estímulo, com objetivo de estabelecer associações livres, ou seja, apresenta-se uma palavra geradora para o informante e pede-o que fale palavras que lhe venham à mente (COSTA; ALMEIDA, 1999). Nós nos direcionamos a alunos de cinco escolas do ensino médio na zona urbana do município de Juazeiro do Norte no mês de maio de 2012. As instituições foram: Governador Adauto Bezerra (3º Ano), Maria Amélia (3º Ano), Moreira de Sousa (1º Ano), Polivalente (2º Ano) e Salesiano (1º Ano). As quatro iniciais são da rede pública municipal e a quinta, da rede particular. Elas constituem-se no recorte de pesquisa por nos terem concedido acesso aos espaços de trabalho com seus alunos. Como uma pesquisa de caráter qualitativo, optamos por um número que nos possibilitasse um quadro das instituições de ensino médio do município. A configuração dessa representação de turmas tem também uma preocupação em estarmos dialogando com olhares diversos quando tratamos do ensino médio, logo, de uma perspectiva que abrangesse os 60

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três anos que compõem esse nível de ensino. Solicitamos, em primeiro lugar, que, ao pronunciarmos o nome do Padre Cícero, os jovens escrevessem o que lhes viesse à mente. Em seguida, questionamos os porquês da descrição feita para pensarmos também em quais fatores estaria pautada a lembrança. O texto está distribuído em tópicos temáticos apresentados da seguinte maneira: “Memórias – entre gerações”, em que convergimos o discurso de análise, discutindo as memórias como expressões compreendidas pelos vínculos entre as distintas gerações e as construídas a partir das vivências em experiências e sociabilidades, considerando também o tempo e o espaço em que os jovens estão inseridos na dinâmica social. Em “Interpretando as memórias pelo dito sobre o Padre Cícero”, organizamos a discussão em torno das expressões evocadas e os significados ligados às descrições na figura do Padre Cícero. Com os “porquês”, apresentamos como e de que forma essa memória evocada o significa, tencionando palavras evocadas e porquês, a fim de pensar como os jovens transitam a apresentação evocativa do Padre Cícero com a cidade de Juazeiro do Norte. Por último, em “Pertencimentos: As memórias e os espaços”, realizamos uma breve reflexão, pensando o sentido de identidade acionado pelas expressões de memórias evocadas. Temos que o rol dos pertencimentos espaciais e os processos de formação da memória permitam que os saberes se manifestem considerando os interlocutores como participantes do contexto exposto e, logo, identificáveis.

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I - Memórias entre gerações Referenciar as memórias juvenis para contexto de análise é pensar nos paradoxos e aproximações vividos pelos jovens a partir das experiências dos seus próprios mundos e a reprodução de versões memoriais que os precedem. Temos, para tanto, que o ato de tornar um fato, lugar e personagens como constituintes do sentido de memória é vinculá-los às marcas das vivências. Podemos dizer que as memórias sociais juvenis se expressam como recortes de experiências a partir de envolvimentos desencadeados pelos vínculos intergeracionais. Entre outros fatores, eles evidenciam-se através dos processos de socialização, uma vez que é aí que a juventude aprende a viver e a dizer a vida social (MACEDO, 2013). Nesse mesmo sentido, Martins (2011, p. 2) destaca; Ao participar da memória, o jovem entra em contato consigo mesmo, pois se reconhece e se encontra com o seu espaço social de referência, na sua individualidade. Com o auxílio da memória, ele recupera a trajetória que orienta a elaboração da identidade como expressão de sua unidade, que é a complexa soma de tudo aquilo que o constitui como homem.

As memórias são constituídas nas influências da ação intergeracional nos variados espaços. Dessa forma, os termos evocados que apresentam e significam o Padre Cícero são resultantes das experiências e aproximações com os simbolismos dos espaços e com as gerações consideradas mais velhas, portadoras de maior vivência.

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Podemos destacar também que esse processo de significação está substancializado nas próprias experiências dos sujeitos jovens, quando destacam nas memórias suas práticas sociais ligadas aos diversos espaços. Nesse trânsito dinâmico e social, quando se entram novos sujeitos, colaborando também para novas caracterizações da vida social, alguns traços culturais acumulados tendem a se reapropriar4. A casa, na presença de pais e avós, as escolas5, as igrejas, as saídas para ruas e praças, destacam-se frente aos processos das elaborações memoriais juvenis. Além desses marcos constitutivos, há também os apelos nas referências sociais e imagéticas do cotidiano na cidade. Em Juazeiro do Norte, um número considerável de distintos estabelecimentos comerciais traz o nome do Padre Cícero. De outro ângulo, podemos também apontar que os jovens pertencentes a esta urbanidade convivem anualmente com o conjunto de práticas religiosas no cenário formado pelas constantes romarias6 destinadas à cidade. Essa recriação dos contextos memoráveis e a sua significação são, para além do contato com as gerações passadas, quando afirmamos a importância das relações de socializações, traços que compõem o mosaico dos espaços, sujeitos e experiências em âmbito memorial social.

4

Nessa perspectiva, ver, por exemplo, Karl Manheim [196...].

5 Sedas Nunes (1969), problematiza que, na escola, por exemplo, os jovens absorvem, em partes, novos conhecimentos, através do ensino que lhes é ministrado e ainda através de outros veículos transmissores de informação, como livros, revistas, etc. 6 Destacam-se três principais romarias durante o ano em Juazeiro do Norte, sendo elas: Romaria de Candeias, no mês de fevereiro, Romaria de Nossa Senhora das Dores, no mês de setembro, e Romaria de Finados, considerada a maior do ano, no mês de novembro.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

O cenário de pesquisa, Juazeiro do Norte, ergue-se, memorial e discursivamente, de distintas maneiras. Segundo Della Cava (1976), a partir do milagre de 1889, a vida do Padre Cícero e da cidade mudava completamente, levando com sigo toda sua circunvizinhança. De um centro de fanatismo religioso a uma importante força econômica do vale do Cariri, foi essa a transição que se operou em Juazeiro do Norte de forma quase imperceptível. Dessa mística religiosa citada, quando sugerida pelo viés das romarias, a evolução de centro comercial e turístico, as memórias se erigem sob um legado cultural diverso. Nas vivências pela cidade, transitando entre os discursos dos saberes que desencadeiam as memórias, os jovens afirmam posições de imersão social frente aos contextos histórico-sociais em que se encontram. As maneiras de falar as memórias sobre Padre Cícero e, por conseguinte, Juazeiro do Norte, tem, assim, forte relação da juventude com as gerações mais velhas, para as quais as ligações com as histórias da cidade e com o próprio Padre Cícero resultam das suas próprias experiências pessoais. Nesta perspectiva herdada, a compreensão da relação geracional para a memória social é uma base fundamental, colaborando problematizações de construções significantes, de conceitos e saberes que permitem pensarmos nas memórias sociais juvenis.

II - Interpretando as memórias pelo dito sobre o Padre Cícero Um aspecto que merece atenção para a sinalização da centralidade memorial de Juazeiro do Norte na figura do Padre Cícero é seu lugar na construção da cidade e a sua liderança local. Conforme Cordeiro (2011), a invenção de Juazeiro como cidade se dá sob a liderança 64

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dele, dirigindo a ação social pelas elites descendentes de famílias com origem agrária e conservadora do Crato e de outros municípios do Cariri, e, de outro lado, os segmentos mais pobres, também com origem, nascimento, descendência ou vinculação ocupacional no meio rural. Numa outra perspectiva, defrontamo-nos com atributos memoriais que indicam a ocorrência ora de um santo, ou mensageiro divino, ora como pessoa comum, como aquele que beneficia as pessoas, como herói. Entre esses aspectos, a figura do Padre Cícero e a cidade de Juazeiro do Norte tensionam sobre um imaginário onde há uma linha de correlação, mesmo que versada de diversas maneiras. Para pensarmos nas memórias sociais do ícone, e, por conseguinte, da cidade, pela juventude, nos cabe problematizar as apropriações que se indicam nas memórias pelos fluxos geracionais. Quando tratamos do Padre Cícero via perspectiva juvenil, realocamos nossos olhares para uma categoria que nos fala a partir de dados secundários, uma vez que os sujeitos jovens não participaram do momento social de vida dele, estando ligados às suas dimensões a partir de mediações. Além da proximidade com as memórias via interação geracional, os jovens situam-se também em um Juazeiro do Norte centro de uma região que se “metropolitaniza” onde há reapropriações imagéticas e mesmo discursivas sobre este espaço urbano através do seu crescimento vertical, de instalação de indústrias e shopping center. Esses cenários que são motes de agenciamento dos discursos nos colocam frente a mediações e contexturas das memórias sociais que, do ponto de vista juvenil, confeccionam a imagem do Padre Cícero dentro de Juazeiro do Norte, enlaçando os sentidos do ícone ao espaço 65

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e vice-versa. Vejamos como se segue a consideração da aluna de 15 anos do 2º ano do Colégio Polivalente quando se fala do Padre Cícero: Eu acho que ele é santo e que todas as pessoas acham que ele fez milagres e quando essas pessoas conseguem realizar alguma promessa é porque creem muito (s/n, 23/05/2012).

O vínculo memorial expresso pela interlocutora se dá a partir de experiências vividas por pessoas próximas através das quais ela teve o contato com a história. A noção de santidade é agenciada por alguém, e assim foi possível significar o Padre Cícero conforme o relacionamento com essas fontes. Seguimos ainda com outra passagem, do aluno de 16 anos do 3º Ano do Colégio Governador Adauto Bezerra. Ao ser interrogado sobre a primeira coisa que lhe vem à mente conforme a mesma pergunta anterior, consta desta resposta: “Fé, oração, trabalho, honestidade, porque ele tem muitos devotos e é símbolo de fé e devoção” (s/n, 23/05/2012). Nessa citação, a memória estaria mediada por laços mais amplos, em que o jovem associa a imagem do Padre Cícero às manifestações culturais e por isso espaciais, tais como as romarias, o trabalho e as expressões de crença que demonstram referência e aproximação. Teremos, nestas apropriações e aproximações, um ponto de vista já clássico sobre a cidade e seu ícone, mesmo estando eles referenciados de forma própria e imaginada pelos contextos em que se permitem essas elaborações. Aqui, podemos novamente perceber que se sobressaem os laços de grupo, com suas identidades e integridades.

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As conceituações sobre o Padre Cícero, embora se manifestem de forma variada de uma para outra experiência dos sujeitos, são constituídas por entre condições que sinalizam um contexto social. Dessa forma, mesmo aludindo e vivendo em um espaço distinto do das gerações mais velhas, convivendo em momentos histórico-sociais que demandam e vislumbram condições próprias, as memórias sociais, e aqui aquelas desencadeadas pela juventude, conservam vínculos no percurso cultural, mesmo tendendo a se reapropriar e se ressignificar. As sociedades modernas, embora destradicionalizadas, não perderam vínculos com a tradição. Mesmo que esta não possua mais um papel preponderante na modernidade, muitos de seus elementos estão preservados, ainda que transformados, o que parece conferir importância à memória como possibilidade de presentificar o passado. É através dela que a tradição pode ser trazida e reinterpretada constantemente como construção coletiva que organiza e dá significado ao presente, sendo essa complexa tarefa desempenhada, principalmente, pelos jovens (MARTINS, 2011, p. 19).

A memória como presentificação do passado pelo jovem é também fonte de constituição das identidades e origens. Esse processo, por sua vez, expressa na evocação o rol de possibilidades e características da constituição do sujeito, localizado em tempo e espaço. Sugerimos abaixo algumas expressões dessas evocações por jovens de escolas diferentes, tratando do imaginário sobre o Padre Cícero:

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Padroeiro e fundador de Juazeiro. Sinto falta de algo que nunca ao menos vi nem presenciei (Colégio Salesiano, s/n. 22/05/2012). Ele [O Padre Cícero] fez história na cidade de Juazeiro por ter sido um grande homem (Colégio Moreira de Sousa, s/n. 23/05/2012). Na primeira resposta, há uma evidenciação de quem descreve um tempo nem ao menos vivido, mas de que sente falta. Essa ideia de falta nos leva a compreendê-la como pertencente a um tempo que procura se enquadrar nos imaginários das memórias, pois é ele digno de ser revivido. No segundo caso, quando afirma ser ele, o Padre Cícero, um grande homem que se notabilizou na construção da história da cidade de que hoje o informante participa, ressalta-se uma elaboração de tipo mais histórico e menos intrínseco à participação na vida particular desse sujeito, embora de constante contribuição na vida pública do lugar. Nos casos propostos, estas memórias são elementos que corroboram o sentido de identidade (POLLAK, 1992). Considerandose juazeirenses, tais jovens manifestam o sentido de inclusão nos seus contextos e atividades, tornando isso sinônimo de sua identificação com as histórias e com os lugares. Nesse conjunto, as memórias sociais constroem os sujeitos e estes as constroem significativamente, elencando espaços e personagens que consideram relevantes. As tipificações juvenis que descrevem o Padre Cícero como homem, como santo, como religioso, nos colocam frente a compreensões significantes também do fenômeno que dá origem à cidade e de como essas descrições são expostas através dessa categoria. Conforme Geertz (1993), a cultura é um mundo constituído de significados produzidos e interpretados. Dessa maneira, as descrições evocadas como memórias 68

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se dão sobre significados interpretados nos simbolismos das relações sociais nas quais transitamos. Dessa forma, a circulação contínua de romeiros, os movimentos religiosos e as práticas de devoção, os lugares de destaque no cenário urbano, como a serra do Horto e as igrejas do Socorro e Matriz, são acionados com frequência para simbolizar as memórias do Padre Cícero e de Juazeiro do Norte.

II. I - O Padre Cícero e os espaços da cidade nos repertórios Pretendemos agora pensar nas diferentes maneiras como aparecem as descrições que giram em torno da figura do Padre Cícero e dos espaços da cidade de Juazeiro do Norte. A perspectiva é enxergar como os jovens apresentam suas interações com esse nome e com os espaços através de conceitos expressivos. Esses aspectos nos farão refletir em práticas de escrita congruentes com as situações de cotidiano e por isso, de proximidade das convivências juvenis. Para além de ver as expressões memoriais como traços herdados dos vínculos geracionais, como já destacamos, entendemos também que os envolvimentos com as manifestações sociais nos espaços através de experiências dos próprios jovens são motes de interpretação do contexto memorial. Reguillo (2000) destaca, nesse sentido, que as culturas juvenis são expressões de novas sínteses de referenciais simbólicos do mundo construído. Destacamos, sobre essa lógica, de acordo com as expressões memoriais evocadas, a distância do sujeito que fala sobre o que está sendo expresso. Ao falar do Padre Cícero, as ações significantes expressam-se 69

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de modo distante temporalmente para quem fala, expressando uma não ligação com o vivido. De santo a homem comum no meio dos outros, como aquele que desce do céu, o Padre Cícero é representante de Juazeiro, vista como centro de uma intensa prática religiosa de vários lugares. Seguem-se algumas descrições das pesquisas realizadas no dia 23 de maio de 2012. A pergunta norteadora é: O que vem à mente quando falamos o nome do Padre Cícero? Depois: Qual o porquê de tal conceituação? Evocação: Santo. Por quê? Porque ele se entregou totalmente ao serviço de Deus, e foi um mártir que lutou pelo bem até à morte. Evocação: Religiosidade. Por quê: Porque Padre Cícero foi um grande religioso, um homem de muita fé, que até hoje move multidões e fiéis. Evocação: Normal. Por quê? Porque ele é uma pessoa normal assim como nós; a diferença é que ele nasceu com o dom pra algumas coisas. Por conseguinte, aparece, na mesma data, um conjunto de descrições da cidade atrelada à noção de turismo, de desenvolvimento com a chegada do Padre Cícero e ainda com uma descrição distante da sua santidade. Evocação: Desenvolvimento de Juazeiro. Por quê? Porque foi através do fanatismo religioso em devoção 70

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ao Padre Cícero que o Juazeiro se desenvolveu. Evocação: Turismo. Por quê? Turismo religioso devido à fama do Padre Cícero. Evocação: Político. Por quê? Porque ele teve grande contribuição na política do Juazeiro e porque foi um político sendo o primeiro prefeito de Juazeiro. Acentuando

apropriações

diversas,

essas

expressões

memoriais sinalizam para construções de mundos perpassadas a partir de socializações singulares. Manifestam também faces plurais de um contexto e, nele, seu personagem através das interseções, intercâmbios e influências geracionais. As evocações memoriais sobre o Padre Cícero estabelecem-se como baseadas numa confluência de atores e lugares, cenas e ensaios da vida social e dos mundos de cada um que participa da vida em jogo, ao formar arranjos de interpretações para que significados sejam expressos e apresentados. Da mesma forma, surge Juazeiro do Norte dentro de um conjunto de expressões significantes.

III - Pertencimentos: as memórias e os espaços Não muito distante do que vínhamos apresentando no ponto anterior, referenciando o Padre Cícero, cabe-nos ainda uma experiência de perceber como a categoria jovem expressa as interpretações sobre Juazeiro do Norte. Esse aspecto é de relevância, uma vez que foram recorrentes os vínculos do primeiro com o segundo.

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Para tanto, temos que entrar em contato com as experiências citadinas nos espaços sociais para entender os sujeitos. Neste processo, há a interação com saberes semânticos fundadores dos conceitos que caracterizam e que descrevem os contextos aos quais pertencem os jovens. É situar as experiências dentro dos círculos que viabilizam os sentidos frente às manifestações e ao cotidiano. As memórias sociais estariam, mais uma vez, constituindo maneiras de pertencimento. Quando o cenário de Juazeiro do Norte se torna sinônimo de um sentido memorial vinculado ao Padre Cícero, as memórias sociais, para além da centralidade no ícone, defrontam-se como o espaço de relação e atuação deste. Desta forma, as menções a cidade edificam um lugar de pertencimento desses indivíduos jovens quando, aí, o mundo físico em seus espaços e os sujeitos em suas experiências são peças inseparáveis na compreensão significante dos saberes compartilhados socialmente. Martins (2011) chama atenção, pensando na juventude, que importa saber aquilo que se lembra, pois, mesmo em contato com as memórias sociais, os jovens constituem-se como sujeitos ligados a novas configurações espaciais e relações sociais em comparação a gerações passadas, marcadas pelo acesso a bens simbólicos e dinâmicas sociais do presente, como, por exemplo, a escola e as transformações tecnológicas. Entre outros aspectos, entendemos, diante desta perspectiva, que Juazeiro do Norte aparece vinculado constantemente à figura do Padre Cícero porque este cenário serve também de mediador dos saberes, bem como de acionador do sentido dos pertencimentos dos sujeitos às histórias que aí se desenvolvem.

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Considerações finais Entendemos que as memórias sociais são traços que, além de carregar o passado, são fontes de presentificação da vida social. Dessa forma, são também construções que se definem como caracterizadoras e, ao mesmo tempo, renovadoras de formas de expressar saberes coletivamente compartilhados. . Os trânsitos geracionais podem permitir um exercício de abertura para a vida social que, se para os adultos significa, ao mesmo tempo, memória e lembrança, para os jovens pode representar aprendizagem. Para aqueles, é uma recordação de si; para estes, recordar para si (MARTINS, 2009). Entre próximos e distantes, os espaços de convivência e de não convivência elencados, orientadores das expressões memoriais aqui evocadas pela juventude, nos fazem problematizar tensões entre gerações como novas posições, olhares e experiências, referindo o Padre Cícero dentro da fundação de Juazeiro do Norte. Apontam ainda para delimitações próprias que envolvem o sentido de apropriação dos sujeitos envolvidos e seus recortes de mundo. As memórias evocadas, ao suscitar questionamentos sobre o Padre Cícero, nos fazem compreender que, partindo dos jovens, essas experiências expressam continuidades ou mesmo descontinuidades do que se tem como cristalizado sobre o mesmo e sobre Juazeiro do Norte, quando amarra expressões de ordem subjetiva e social. Entre outros traços, as expressões juvenis sobre o Padre Cícero, e por extensão, Juazeiro do Norte, colocam-nos frente a um expressivo imaginário das experiências e referências diversificadas, das percepções, 73

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falas e significados. Em suma, nas evocações memoriais juvenis, há uma deambulação expositiva, na qual o discurso é tencionado numa ordem de visualização do Padre Cícero desde homem comum a santo, de político a patriarca da cidade, e Juazeiro no seu contexto de origem, na influência das condições de romarias, e nelas, o aspecto religioso, até a atual configuração social, cultural e política, que é onde os jovens estão inseridos na dinâmica social.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”: um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

Edianne dos Santos Nobre1

Resumo Neste artigo, ensaiamos um perfil biográfico do jornalista José Joaquim Telles de Marrocos (1842-1910) através da sua produção escrita, que compreende inúmeros artigos de jornais e uma vasta coleção epistolar. Analisamos também duas obras que confrontam sua ação: O apostolado do embuste, do padre Antônio Gomes de Araújo, e Em defesa de um abolicionista, do padre Azarias Sobreira. Especificamente, analisaremos sua atuação na chamada “Questão Religiosa do Juazeiro”. Por ser um importante personagem na trama que envolve os acontecimentos de Juazeiro e também pela ausência de trabalhos atuais sobre sua trajetória, propomos um novo olhar sobre esse personagem irreverente e misterioso, sendo também ele um protagonista na História do Ceará. Palavras-chave: José Marrocos, Juazeiro, biografia, milagres.

1 Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora adjunta do Colegiado de História da Universidade de Pernambuco. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”: um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

Abstract In this article, we meant to trace a biographical profile of the journalist José Joaquim Telles de Marrocos (1842-1910) through its your written output that comprising numerous newspaper articles and an extensive epistolary collection. We use as well the literature bibliographic about him: The apostolate of the fake by the priest Antonio Gomes de Araújo and In defense of an abolitionist by the priest Azarias Sobreira . Specifically, we seek to understand the role in the event known how “Juazeiro’s Religious Question”. For being an important character in the plot that involves the events of Juazeiro, and also by the absence of current work about his trajectory we propose a new perspective on this irreverent and mysterious character, also a key player in the Ceará’s history. Key words: José Marrocos, Juazeiro, biography, miracles.

Em volta aqueles anjinhos No meio daquele magote Apareceu meu padrinho E o santo Zé Marroque. (Trova Popular)

José Joaquim Telles de Marrocos nasceu em 26 de novembro de 1842, na cidade do Crato, filho de uma relação ilícita entre o padre João Marrocos e a mulata Maria da Conceição do Amor-divino. Foi batizado na matriz de Nossa Senhora da Penha no Crato em 20 de dezembro do mesmo ano, “tendo sido seus padrinhos o doutor Manuel Marrocos Teles e D. Ana Francisca de Oliveira”2. 2 Livro de registro de Batismo da Paróquia do Crato, 1841-1842, fls. 87. No seu processo de Ordenação do Seminário da Prainha, temos uma genealogia mais detalhada de Marrocos: “O Segundo anista [sic] do curso teológico do Seminário Episcopal desta Cidade da Fortaleza, José Joaquim Telles Marrocos, natural da Freguesia de N. Sra. da Penha do Crato neste Bispado, filho natural de João Marrocos Telles e Maria da Conceição do Amor-divino, neto paterno de José Joaquim Telles e Barbara Maria de Jesus, ambos naturais da Freguesia de N. Sra. da Penha do Crato e neto materno de Romualdo Soares Barbosa e Helena Maria da Conceição, ambos naturais da mesma Freguesia [...]”. Processo de Habilitação Canônica de José Marrocos em 14.03.1866, p. 35. Arquivo da

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Apesar de sua ascendência pouco lisonjeira para a época em que viveu, José Marrocos conseguiu se destacar na região do Cariri e no Ceará por sua atuação em diversas frentes. Foi um ativista pela causa das vítimas da epidemia de cólera3, doença que vitimou, entre centenas de pessoas, o seu pai e o pai do padre Cícero Romão Batista4, em 1862. As circunstâncias da morte do pai de José Marrocos foram, inclusive, flagrantes do estado de calamidade que se instalou no vale do Cariri na segunda metade do século XIX. Diante da imensa quantidade de mortos e da insuficiência de padres na região (número que já era pequeno antes da epidemia), as pessoas morriam sem receber os últimos sacramentos e mesmo sem ter a alma encomendada, importante ritual

Cúria, Departamento Histórico Diocesano Padre Gomes, doravante citaremos como DHDPG. Em realidade, a mãe de José Marrocos é referenciada na historiografia como uma “cabra”, conceito pejorativo que indica quem é oriundo de um cruzamento entre um mulato e um negro (Araújo, 1956,p. 53). Descobrimos ainda que a avó paterna de Marrocos, era ela mesma, filha de um padre jesuíta português chamado Alexandre Leite de Oliveira com uma mulata chamada Teresa de tal (Araújo, 1956,p. 03). Essa digressão genealógica se faz necessária devido à falta de dados sobre a filiação de José Marrocos na historiografia atual. O texto das fontes documentais teve a ortografia atualizada de acordo com o Acordo Ortográfico de 2009. 3 O historiador Jucieldo Alexandre, em sua dissertação de mestrado, discute as representações criadas sobre o cólera no jornal “O Araripe”, bem como as medidas profiláticas e as práticas medicinais populares tomadas pelo governo e pela população no momento da epidemia. Percebemos o quanto as práticas medicinais populares estavam intrinsecamente ligadas à práticas religiosas e, especificamente, às penitências. 4 Primo de José Marrocos pelo lado materno, Cícero Romão Batista nasceu em 24 de março de 1844 na cidade do Crato, filho de Joaquina Vicência Romana e Joaquim Romão Batista ambos cratenses. Tinha duas irmãs Maria Angélica Romana e Angélica Vicência Romana. Foi estudar no Seminário da Diocese cearense em 1865 aonde se formou em novembro de 1870, voltando a sua cidade natal, assumiu em 1872 a Capela de Nossa Senhora das Dores. Foi um dos protagonistas da chamada “Questão religiosa do Juazeiro”, sobre a qual falaremos mais adiante.

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de passagem na tradição católica5. É um fato significativo que, das mil e cem mortes estimadas, haja apenas 269 registros de óbito no Livro dos Coléricos existente na Cúria Diocesana da cidade do Crato, desses: [...] duzentos e dezesseis dizem respeito a moradores da cidade, vinte e nove a habitantes de sítios e arredores e em vinte e quatro registros não há informações sobre a moradia dos vitimados. Já outros dois obituários se referem a sepulturas feitas nos cemitérios dos coléricos dos sítios Currais e Granjeiro (próximos da urbe), o que faz deduzir que existiram outros campos para sepultura, já que havia pressa em se livrar dos corpos vitimados pela peste (Alexandre, 2010, p. 148-149).

A pressa em se livrar dos corpos infectados, não obstante, não se deu somente entre as classes mais pobres. Mesmo aquelas figuras importantes da cidade não tiveram direito a uma “boa morte”, posto que o medo de contaminação fosse maior que o espírito caritativo. O caso do padre João Marrocos, por exemplo, chocou a população caririense. Figura ilustre da cidade, tendo sido classificado pelo jornal O Araripe como “sacerdote virtuoso, inélito [sic] soldado da fé que afrontou a morte, cumprindo seu mandato sagrado”6, teve os últimos sacramentos negados por um companheiro de batina que, apavorado com a doença, fugiu aos deveres sacerdotais, como informou

5 Além da última confissão e comunhão e da extrema-unção, a encomendação da alma era um importante rito fúnebre das práticas do bem-morrer, na qual o padre recomendava a alma do defunto à Deus na saída do funeral para o lugar do enterramento. Era ainda um ritual de despedida da família para com o morto: “Era uma manifestação de especial deferência e carinho da família para com o morto, gesto que solenizava sua saída definitiva de casa rumo ao mundo dos mortos” (Reis, 1991,p. 132). 6 Jornal O Araripe de 23.08.1862, nº. 285, p. 01.

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o padre Antônio de Almeida ao bispo diocesano D. Luís, em 18 de julho de 1862: É com a maior mágoa, que participo a V. Excia de ter sucumbido no dia 2 do corrente na cidade do Crato o Pe. Dr. João Marrocos, vítima do cólera-morbo, ou de sua dedicação, pois sou informado que prestou os socorros espirituais a quem o procurava até final prostração, achando-se acometido desde o começo da invasão da referida peste. Corre que acabou pedindo ao menos absolvição de seus pecados e não a obteve. Disse-me o Rmo. Vigário, que ele mandava rogar pelo S.S. Sacramento a um nosso Irmão para o ouvir de confissão e ele [o padre em questão], coitado, teve a fraqueza de negar-se absolutamente. Com o Pe. Mestre Marrocos sucumbiram mais quinhentas pessoas, das quais trezentas finaram sem o pasto espiritual, pois que o Vigário [o padre Manoel Joaquim Aires do Nascimento] teria confessado umas cem pessoas, enquanto não foi acometido. Os mais [outros] sacerdotes abandonaram a Cidade inclusive o Coadjutor.7

A morte do pai foi, provavelmente, o acontecimento mais marcante na vida de José Marrocos, que, na época, tinha 20 anos de idade. O fato fez com que ele estabelecesse uma intensa correspondência entre o interior, o Governo da província e a Diocese recém-criada, no sentido de construir um cemitério especial para os coléricos. Diante do caos instalado, sua luta naquele momento foi pela chance de poder enterrar dignamente o seu pai e os outros milhares de mortos que o “anjo do extermínio” deixou na sua passagem. Marrocos não descansou até que a Diocese autorizasse a construção de um cemitério exclusivo 7 Carta do padre Antônio de Almeida ao bispo D. Luiz Antônio dos Santos, de Juazeiro, 18.07.1862. DHDPG. Grifos nossos.

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para os coléricos, que foi construído ainda em 1862, acerca de dois quilômetros de distância da cidade (Alexandre, 2010, p. 145-146). Um dos documentos que revelam um pouco sobre Marrocos é o Caderno8, uma espécie de diário, no qual, ele colecionou excertos de jornais, anotações sobre seu inventário de bens e, entre outros, as cópias de algumas das cartas que escrevia. Em uma dessas cartas, enviada ao bispo Dom Joaquim José Vieira9, encontramos um depoimento no qual ele relembra a atitude da Diocese com relação aos seus apelos: E um dia apelei para a sua misericórdia, como pastor das almas, em favor das vítimas do cólera estendidas no chão da morte sem a sombra, sem o asilo, sem a intercessão do templo sagrado e do altar sacrossanto – o meu venerando pontífice não se limitou a conceder licença para edificar-se a capela do cemitério dos coléricos do Crato; mas quis ainda ser o padrinho dessa fundação [...]10.

8 O documento chamado Caderno Marrocos é um caderno pequeno com uma coleção de textos escritos por José Marrocos por um período de tempo indeterminado. O material foi transcrito pelas Irmãs Annette Dumoulin e Ana Theresa do Centro de Psicologia da Religião (CPR) em Juazeiro do Norte. Neste trabalho foi utilizada a cópia existente no Arquivo do DHDPG. 9 Nascido na cidade de Campinas, São Paulo em 17.01.1836 Dom Joaquim José Vieira, era formado no Seminário Episcopal da Diocese de São Paulo (1860). Descrito como “empreendedor, caritativo, afável, dedicado, prudente e conciliador” o padre Joaquim Vieira, foi indicado pelo Imperador Dom Pedro II para a Sé Episcopal de Fortaleza em 1883 e chegou ao Ceará em 1884 com 48 anos de idade e 24 anos após sua ordenação no Seminário de São Paulo dos Capuchinhos. Dom Joaquim faleceu em 8 de julho de 1817. O processo canônico de indicação do padre Joaquim José Vieira encontra-se no Arquivo dos Bispos Regulares (Archivo dei Vescovi Regolari) no Arquivo Secreto Vaticano, B. 55, Fasc. 262, Doc. 10-27. 10 Caderno Marrocos, p.01-02: Artigo intitulado “Os milagres de Joazeiro – Sua divina realidade – Uma reclamação ao reverendo Bispo Diocesano”, publicado no jornal A província, de Recife, em 03.09.1893. DHDPG.

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Por volta de 1865, Marrocos foi estudar no Seminário Episcopal da Prainha, em Fortaleza, do qual foi expulso em 1868 pelo reitor da época, o francês Pierre Auguste Chevalier (1831-1901). Muito se especulou sobre a verdadeira razão da sua saída. O historiador Irineu Pinheiro, que foi seu aluno algum tempo depois, conjecturava sobre a possível falta de vocação do professor (Pinheiro, 1963, p. 129). Já o padre Antônio Gomes, aventava a possibilidade de José Marrocos ter tido um confronto doutrinal, pois “sustentava pontos de vista teológicos considerados errôneos” (Araújo, 1956, p. 48). No entanto, a hipótese mais aceita é a de que sua candidatura ao sacerdócio foi vetada justamente por sua dupla ascendência levítica: Marrocos era filho e bisneto de padres (Sobreira, 1956, p. 61). O que, décadas antes, provavelmente, não seria um problema – visto a enorme quantidade de padres de ascendência levítica que ocupavam, inclusive, cargos políticos importantes –, na segunda metade do século XIX, quando a Igreja Católica se achava em meio a uma grande reforma doutrinal, conhecida como Reforma Ultramontana11, a perpetuação daquelas práticas, se tornava um grave impedimento à ordenação eclesiástica. Essa frustação marcou profundamente a vida de José Marrocos, 11 A reforma que na historiografia brasileira ficou conhecida como “romanização” ou “política ultramontana” tinha como objetivo remodelar o clero, dando ênfase à autoridade institucional e hierárquica da Igreja, como forma de controlar a doutrina e principalmente as manifestações fervorosas do laicato. Ítalo Santirocchi propõe uma revisão do conceito de “romanização”, preferindo o uso do conceito “ultramontanismo”, que, no século XIX: “[...] se caracterizou por uma série de atitudes da Igreja Católica, num movimento de reação a algumas correntes teológicas e eclesiásticas, ao regalismo dos estados católicos, às novas tendências políticas desenvolvidas após a Revolução Francesa e à secularização da sociedade moderna” (2010, p. 24).

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que manteve, contudo, os hábitos rigorosos da vida religiosa: “[...] era um homem religioso e caritativo; conservava sempre acesa uma lâmpada ao lado de seu santuário doméstico e, ao que dizia, rezava diariamente o Breviário, como os padres” (Sobreira, 1956, p. 30). Voltando ao Crato, Marrocos se dedicou ao jornalismo e ao ensino de línguas como o francês, o italiano e o latim12.Criou uma escola para moços e, em 1868, fundou junto com o padre José Antônio Ibiapina13 o primeiro jornal cratense de cunho religioso, chamado A voz da Religião no Cariri, que funcionou até 1870 e tinha como função principal divulgar as obras sociais do missionário. A partir de então, Marrocos cultivou uma série de relações com figuras importantes do corpo eclesiástico, não só da Província cearense, mas também em outras províncias. O jornal se destacou por ser o primeiro periódico caririense religioso que dedicava suas páginas à vida social e religiosa da região e, segundo Marrocos, abria “uma página para a história de nossa terra que nos dê a conhecer o estado em que nos achamos pelo lado religioso e

12 Além disso, Marrocos colaborou com outros jornais, como:O Libertador (Fortaleza), Cidade do Rio (Rio de Janeiro), Jornal do Cariri (Barbalha) e, mais tarde, em 1909, fundou o primeiro jornal de Juazeiro intitulado “O Rebate”, que tinha como objetivo retorquir as críticas feitas pelo jornal Correio do Cariri – editado no Crato – ao Padre Cícero Romão Batista e às peregrinações. 13 José Antônio Pereira Ibiapina nasceu em 05 de agosto de 1806, em Sobral, e era o terceiro filho de Francisco Miguel Pereira e Maria Thereza de Jesus. O nome Ibiapina foi acrescentado depois pelo pai, em homenagem ao povoado de Ibiapina na serra da Ibiapaba, norte do Ceará, que os acolheu quando saíram de Sobral. Ibiapina enveredou pelo meio jurídico, estudando Direito em Olinda, chegando a ser deputado-geral na legislatura de 1834 a 1837 no Ceará. Decidindo naquele último ano tentar a carreira de advogado fora do Ceará, ele residiu em Areia na Paraíba e depois em Recife, onde exerceu o cargo de juiz de paz entre 1838 e 1850, abandonando nesse último ano a vida política e se iniciando no sacerdócio.

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moral”14. Editado semanalmente aos domingos, possuía cerca de quatro laudas, as quais eram distribuídas da seguinte forma: um editorial assinado por José Marrocos, notícias relacionadas à Igreja Católica no Brasil e no mundo, uma coluna que narrava a vida e a obra do padre Ibiapina e uma coluna intitulada “Folhetim”, que narrava as vidas piedosas de beatas das Casas de Caridade.15 De cunho religioso, como o próprio nome já dizia, o jornal começou a noticiar, em 13 de dezembro de 1868, uma série de “milagres” que ocorriam em uma fonte de água mineral existente no lugar chamado Caldas, na cidade de Barbalha: Luzia Pesinho, parda, casada, moradora da vila da Barbalha, paralítica das pernas a 3 anos pede que a levem à presença do Revdo. Missionário. No dia 20 de Junho de 1868 vê realizado o seu desejo e achando-se ao encontro do Missionário Cearense, JOSÉ ANTONIO DE MARIA IBIAPINA [sic] que lhe passava na porta, roga-lhe com a mais viva instancia que lhe ensinasse o remédio do seu mal. – Eu não sou medico do corpo, lhe diz Venerando Padre Mestre; o meu ministério é curar as almas. – Ah! Meu Santo Padre, ensine-me, lhe retorquiu Luzia, sim, ensineme o que quiser; eu tenho fé de ficar boa. – Pois bem, mulher, vá tomar 3 banhos na fonte do Caldas ao sair do sol. Luzia creu, foi ao lugar indicado no 14 Jornal “A voz da Religião no Cariri”, Domingo, 05.12.1868, nº 1, Ano I. PR-SOR 00033. 15 Criadas em todo o Ceará pelo padre Ibiapina, essas Casas serviam como recolhimentos para mulheres que desejavam seguir uma vida religiosa, mas não possuíam condições, e, funcionava ainda como escola e orfanato, tendo ainda uma roda de expostos, embora fosse um costume já em desuso na época, a fim de evitar o infanticídio e o aborto. A instituição foi inspirada no modelo das Irmãs de Caridade de São Vicente de Paula que surgiu na França, assim, apesar de ser uma instituição leiga as mulheres que assumiam cargos na Casa de Caridade se submetiam a uma rotina e ao regulamento inspirado no modelo vicentino já dominante na Diocese.

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meio de uma carga e acompanhada de seu marido que também sofria de uma hérnia. Ambos foram ao banho e voltarão bons. 16

Continuamente, em todas as edições do jornal – que era semanal – até novembro de 1869, houve divulgação de milagres realizados pelas águas curativas do Caldas, que haviam sido abençoadas pelo padre Ibiapina. Logo, a Diocese foi alertada sobre as peregrinações feitas ao local, o que acirrou o clima contra as missões de Ibiapina. A presença da narrativa sobre os possíveis milagres de Ibiapina denuncia já uma espécie de crença local na sacralidade do próprio espaço caririense, que aparece como esse grande teatro da reprodução de prodígios maravilhosos. Em julho de 1869, o bispo Dom Luís proibiu qualquer tipo de Missão no interior, substituindo-as pelas Visitas Pastorais, com exceção unicamente de Missões especialmente recomendadas pelo diocesano. Iniciou-se aí uma tentativa de controle por parte do diocesano sobre as ações de Ibiapina e podemos conjeturar que o clima de cordialidade que permitiu ao padre missionar pelos interiores cearenses havia sido substituído por uma animosidade que beirava a intolerância. Desautorizando as Missões no estado, D. Luís reforçava a importância das Visitas Pastorais, pois segundo explicava em um ofício dirigido em 19 de julho de 1869 ao pároco do Crato, Manuel Joaquim Aires do Nascimento (1804-1883), “alguns resultados [de Missões] tem aparecido não pouco inconvenientes, com detrimento da disciplina eclesiástica e daquela paz e harmonia que devem reinar entre o próprio

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Jornal A voz da Religião no Cariri de 13.12.1868, p. 03. Grifos no original. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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Pastor e o rebanho”17. Não obstante, três anos depois, em 1872, o padre Ibiapina era expulso do Ceará e proibido de voltar a missionar na região do Cariri, sendo obrigado ainda a entregar a direção das Casas de Caridade à Diocese. O jornal A voz da religião parou de ser editado e não houve mais menções à fonte miraculosa do Caldas18. Esse conflito entre Ibiapina e a Diocese cearense, representada pela figura de D. Luís, dá um indício do clima controverso estabelecido entre uma prática religiosa de herança “penitencial” e uma concepção religiosa “romanizada” de Igreja por parte do bispo cearense. A partir de 1878, sua paixão foi direcionada para as atividades da Campanha Abolicionista no Ceará conhecida como “A Sociedade Libertadora Cearense”, entre 1878 e 1880, durante a qual ficou conhecido por roubar e libertar escravos clandestinamente, além de brandir sua “pena esmagadora contra os escravocratas” em diversos jornais do país e principalmente no jornal O Libertador, veículo de divulgação do movimento abolicionista no Ceará (Vieira, 1958, p. 92). Em fins daquela década, Marrocos foi processado junto a outros amigos pelo Coronel Paiva, membro do Partido Liberal na época, que os acusava de “seduzir 17 Ofício do bispo D. Luís Antonio dos Santos de 19.07.1869, registrado no Livro de Tombo da Matriz do Crato, p. 51 apud Pinheiro, 1950, p. 160. 18 Em meados de 1873, o bispo nomeou alguns padres recém-formados no Seminário da Prainha de Fortaleza para assumir a direção das Casas de Caridade e de paróquias no interior do estado, entre eles os padres Fernandes Távora (1851-1916) e Francisco Rodrigues Monteiro (1847-1912). Começaria aí uma nova fase das Casas de Caridade, que ficaram sob o controle das irmãs vicentinas. A expulsão do padre Ibiapina do Ceará marcou também o fim de sua trajetória como missionário. Após sua partida, ele se fixou na Casa de Caridade Santa Fé (Arara, PB), onde faleceu em 19 de fevereiro de 1883.

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e roubar escravos”. O processo acabou por ser arquivado pela falta de provas contra os acusados (Idem, p. 87).

José Marrocos jovem – Arquivo do Museu da Imagem e do Som (MIS - Ceará)

O venerando bispo e seu obscuro diocesano: disputas pelo milagre Quem estudar a fundo o drama religioso juazeirense, que comoveu as populações católicas de nossa pátria, de Norte ao Sul do Brasil, haverá de concluir, em minha opinião, ter sido o professor José Marrocos um de seus personagens centrais, seu maior defensor não só na imprensa, mas também perante a Santa Sé [...] (Pinheiro, 1963, p. 131).

Uma das últimas causas de Marrocos, e, provavelmente, aquela 90

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que lhe deu mais visibilidade foi a da defesa dos chamados “milagres de Juazeiro”, dentre eles o sangramento da hóstia19 na boca da beata Maria de Araújo20, em 1889: Mas o depoimento que venho perpetuar nestas linhas, nada tem de singular, é apenas mais uma voz que no coro geral de todas as vozes e no concerto comum de todas as harmonias vem afirmar que sabe e que viu mesmo na igreja do Juazeiro a hóstia sacramental da comunhão de Maria de Araújo transformar-se em sangue tão natural como o produto vivo de um corpo vivente21.

A paixão que irradia de seus escritos, independentemente do tema que tratasse, é palpável, e pode ser sentida pelo mais insensível dos leitores. Dotado de uma escrita que beirava o patético, Marrocos levava suas paixões e devoções às mais funestas consequências, bradando contra escravocratas, imperadores ou bispos. Por isso arrisco dizer que 19 Em março de 1889, a hóstia ministrada pelo Padre Cícero Romão Batista sangrou na boca da beata Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo. O fato, que se repetiu muitas vezes até o final de 1891, provocou inúmeras peregrinações e acarretou em uma investigação empreendida pela Diocese cearense através do bispo Dom Joaquim José Vieira. A investigação resultou na produção de um Processo Episcopal que foi enviado à Santa Sé e, posteriormente, em 1894, foi condenado como um embuste pela Congregação para a Doutrina da Fé. Esses fenômenos foram o estopim para o evento que ficou conhecido como “Questão Religiosa do Juazeiro” e, segundo o padre Alencar Peixoto, José Marrocos teria inclusive escrito um livro com esse nome que foi roubado dos seus pertences por ocasião da sua morte em 1910. 20 Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo nasceu em 24 de maio de 1862, às quatro horas da tarde, na então povoação de Juazeiro, sendo filha de Antônio da Silva Araújo e de Ana Josefa do Sacramento. Faleceu em 17 de janeiro de 1914 e foi enterrada na Capela de N.S. do Socorro, em Juazeiro, vestida no hábito da Ordem Terceira de São Francisco. 21 Depoimento de José J. T. de Marrocos em 12.10.1891 in “Cópia autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro”, Arquivo do Departamento Histórico Diocesano Padre Gomes, Crato-CE, pp. 67. Doravante citaremos como “Cópia autêntica...”.

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José Marrocos era, antes de tudo, um devoto de suas próprias causas: Quem estudar a fundo o drama religioso juazeirense, que comoveu as populações católicas de nossa pátria, de Norte ao Sul do Brasil, haverá de concluir, em minha opinião, ter sido o professor José Marrocos um de seus personagens centrais, seu maior defensor não só na imprensa, mas também perante a Santa Sé [...] (Pinheiro, 1963, p. 131).

Ralph Della Cava, em seu já clássico Milagre em Joaseiro, levando em consideração esse aspecto psicológico de Marrocos, afirma que, “tendo em vista o passado de Marrocos, sua piedade e participação política, não é de surpreender que viesse a desempenhar um papel importante no milagre de Juazeiro” (1976, p.71). Em 19 de julho de 1891, um pouco mais de um ano depois do primeiro sangramento da hóstia, Dom Joaquim publicou um documento que ficou conhecido como Decisão Interlocutória, no qual exarava algumas ordens e instituía uma Comissão para investigar o caso. O primeiro inquérito do Processo instruído sobre os fatos do Juazeiro foi instaurado em 21 de julho de 189122. Entre outras peças, esse primeiro inquérito contém os depoimentos de Maria de Araújo e de outras oito beatas que narram a experimentação de êxtases, visões, sonhos, revelações proféticas e viagens feitas a espaços do além – Céu, Inferno e Purgatório23. 22 p. 06.

“Portaria do bispo instaurando o Processo” em 21.07.1891 in “Cópia autêntica...”,

23 Eram elas: Ângela Merícia do Nascimento (28 anos, assina o nome), Antônia Maria da Conceição (30 anos, analfabeta), Anna Leopoldina Aguiar de Melo (19 anos, assina o nome), Jahel Wanderley Cabral (31 anos, alfabetizada), Maria das Dores da Conceição de Jesus (15 anos, analfabeta), Maria Joanna de Jesus (33 anos, analfabeta), Maria Leopoldina Ferreira da Soledade (29 anos, alfabetizada) e Rachel Sisnando de Lima

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A negação obstinada de Dom Joaquim de que o “sangue aparecido nas Sagradas partículas era Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois que não o é nem pode ser, segundo os ensinamentos da Teologia Católica”24, deveria definir a linha de ação da Comissão Episcopal, composta pelos padres Clicério da Costa Lobo (1839-1916) e Francisco Ferreira Antero (1855-1929), pessoas que, segundo o bispo, possuíam todos os “requisitos necessários”25 para analisar os fatos e devolver o inquérito à Diocese com um relatório final que confirmasse a opinião do bispo já exarada na Decisão Interlocutória. O primeiro inquérito instruído sobre os fatos do Juazeiro é uma peça documental completa, no sentido de que possui uma linha narrativa muito clara do começo ao fim. Foi elaborado ao longo de 80 dias, entre 9 de setembro e 28 de novembro de 1891, dos quais dez foram destinados a ouvir as testemunhas chamadas a depor, – 23 no total. Além disso, grande parte do tempo foi dedicada às observações da transformação da hóstia e de outros fenômenos26 que ocorriam com Maria de Araújo, sobre os quais a Comissão nada sabia até chegar ao Juazeiro. Nesse ponto, é preciso enfatizar que o objeto da investigação era o sangramento da hóstia. Nesse sentido, a questão colocada pela Comissão dizia respeito à origem do sangue e se o que brotava da hóstia (40 anos, assina o nome). 24 “Portaria do bispo instaurando o Processo” em 19.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 05-06. 25

Idem, p. 06.

26 Tanto Maria de Araújo quanto as outras mulheres fazem referência a esses outros fenômenos: viagens ao Purgatório, Céu e Inferno, aparecimento de hóstias ensanguentadas, estigmas de crucificação, sangramento de crucifixos de metal maciço, relatos de visões, profecias, êxtases e comunhões espirituais. Aprofundaremos essa discussão ao longo da tese.

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podia ser mesmo o sangue de Cristo27. O resultado desse primeiro inquérito surpreendeu a Diocese cearense, pois os padres da comissão atestavam a inexistência de qualquer farsa nos fenômenos sobrenaturais ali manifestados e afirmavam que as beatas eram incapazes de cometer embustes28.O bispo Dom Joaquim imediatamente recusou o primeiro inquérito, afirmando que as beatas e especificamente, Maria de Araújo, haviam armado truques tão perfeitos que ludibriaram vários sacerdotes, inclusive os padres da Comissão que ele próprio escolhera e instituíra! Após condenar o primeiro inquérito e suspender os padres da comissão, o bispo diocesano instituiu um segundo inquérito, em abril de 1892, cujo responsável foi o padre Antonio Alexandrino de Alencar (1843-1903). Esse segundo inquérito, antes mesmo de ser executado, já possuía um modelo narrativo pronto: deveria ser a narração de um embuste. O padre deveria recolher provas de que as mulheres forjavam os sangramentos e fantasiavam a respeito das visões e profecias que diziam ter29. 27 Observo ainda que em nenhum momento Maria de Araújo foi alvo das romarias; ainda que ela tenha sido considerada depois como “santa” ou “visionária” por algumas pessoas, as romarias eram feitas para o “Sangue Precioso”. Defendo essa hipótese na minha tese de doutorado. 28 Relatório do Delegado Episcopal padre Clicério C. Lobo em 22.12.1891 in“Cópia autêntica...”, p. 64. 29 Em carta ao padre Alexandrino, Dom Joaquim enumera uma série de “instruções que devem ser observadas fielmente” na busca das retratações. Assim, o modelo narrativo deveria seguir a estratégia: tentativa de convencimento seguido de ameaça: “Manda-lhe dizer o Senhor Bispo que si as Senhoras confessarem tudo à mim e ao Rvdo. Capelão e a Senhora Superiora ficarão privadas e continuarão a residir nesta Casa [de Caridade], ficando tudo em reserva; si, porém, negassem-se [sic] a confessar suas faltas, serão expulsas [...]” in Carta de D. Joaquim José Vieira ao padre Antonio

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O segundo inquérito é uma peça documental muito incoerente em relação à organização das peças anexadas. Esse documento, datado de janeiro de 1893, isto é, quase dois anos depois da execução do primeiro inquérito, é composto de três relatos de experiências feitas com Maria de Araújo, em 20, 21 e 22 de abril de 1892, seguidos de dois depoimentos de testemunhas que só foram feitos em agosto daquele ano. Depois seguem alguns anexos: uma carta do Dr. Ignácio de Souza Dias, duas cartas do Dr. Marcos Rodrigues Madeira (ambos os médicos que atestaram a sobrenaturalidade dos fenômenos no primeiro inquérito), duas cartas do padre Félix Arnaud (uma ao reitor do Seminário no Maranhão e outra ao bispo Dom Joaquim), uma carta do Dr. Ildefonso Gurgel Nogueira. No início de 1893, provavelmente em março, o padre Alexandrino juntou tudo o que dizia respeito à sua atividade durante 1892 na cidade do Crato e enviou ao bispo. O resultado foi a produção do documento conhecido como o Processo instruído sobre os fatos do Juazeiro, que compreende o primeiro inquérito conduzido pelos padres Clicério da Costa Lobo e Francisco Ferreira Antero, em 1891, mais os documentos enviados pelo padre Alexandrino e a Carta Pastoral de 1893. Em maio de 1893, a documentação foi enviada para a Santa Sé, mais especificamente para o Cardeal Rafaelle Monaco la Valleta (18271896), do Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica, que, naquele momento, era o órgão responsável por examinar tudo o que se referia às doutrinas dogmáticas da Igreja Católica em conjunto com a Congregação

Alexandrino de Alencar, de 20.08.1894. Arquivo do Centro de Psicologia da Religião – CPR, Juazeiro do Norte, CE. Identificada sob inscrição CPR/CRA: 04.01.

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para a Doutrina da Fé. E, em 1894, os fenômenos foram condenados como “embustes vãos e supersticiosos”30. Desde 1889, José Marrocos tomara para si a missão de divulgar os fenômenos, e mais, de buscar ele mesmo provas que atestassem ser o Sangue Precioso o “verdadeiro sangue” de Jesus Cristo. Escreveu, em 1891, um relato que intitulou “Milagres de Joaseiro” e publicou em diversos jornais no Brasil e na Europa, com o fim de propalar os “fatos extraordinários” e buscar apoiadores para a “causa do Juazeiro”31. Além do dom da escrita, Marrocos possuía uma audácia que em alguns momentos supera a do padre Cícero. Desde 1889, o jornalista tomara para si a missão de divulgar os fenômenos do Juazeiro, e mais, de buscar ele mesmo provas que atestassem ser o Sangue Precioso o “verdadeiro sangue” de Jesus Cristo. Em agosto de 1891, portanto, antes da chegada da primeira Comissão Episcopal, ele começou a escrever para padres e bispos de todo o país, narrando e pedindo opinião sobre a ocorrência dos fenômenos e, principalmente, sobre o sangramento da hóstia, a fim de construir um documento de defesa dos pretensos milagres32. 30 Não entraremos no mérito da questão, pois não é o objetivo do artigo. Há uma vasta bibliografia sobre o tema e parte dela pode ser encontrada nas referências deste trabalho. Sobre a documentação, ver: Decreta Universa, Feria IV - Die 4 Aprilis 1894, Decreti, Archivio della Congregazioni per la Dottrina della Fede, Vaticano, Roma; Ver também: Carta de Dom Joaquim José Vieira ao Internúncio Apostólico D. Girolamo Gotti, de 03.08.1894, sobre a recepção dos Decretos da Santa Sé e a escrita da Pastoral de 1894. Busta 76, Fasc. 369, Doc. 19, Archivio Segreto Vaticano, Roma. 31 Alguns deles: Estado do Ceará, de Fortaleza, Ceará; Diário de Pernambuco, A Província e Era Nova, de Recife, Pernambuco; Novo Mensageiro de Lisboa; A Palavra da cidade do Porto; País do Rio de Janeiro (?). 32 Posteriormente, esse documento foi publicado no Jornal A Província de Recife, em 3 de setembro de 1893, com o título: “Os milagres de Juazeiro. Sua Divina realidade.

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Entre alguns de seus correspondentes estavam D. Antônio Cândido de Alvarenga (1836-1903), bispo do Maranhão; D. Joaquim Arcoverde (1850-1930), bispo do Pernambuco; D. Jerônimo Tomé da Silva (1849-1924), bispo do Pará; e o padre João Chanavat (18401899), reitor do Seminário dos Lazaristas em Mariana, ou seja, alguns dos mais influentes e poderosos eclesiásticos daquele momento, todos ordenados sob o espírito reformador ultramontano que chegou ao Brasil com os lazaristas33. Não temos muitas informações sobre as estratégias traçadas por Marrocos para chegar a esses bispos, mas sabemos que ele era levado a sério, na medida em que suas cartas eram respondidas, ainda que viessem com ressalvas e críticas ao seu comportamento em relação ao bispo cearense. Na carta (como mesmo texto, mudando somente o destinatário) enviada a diversos sacerdotes e bispos, Marrocos se apresentava como “jornalista católico”, explicava (a partir de seu ponto de vista, é claro) o Uma Reclamação ao reverendo Bispo diocesano”. O original possui 71 páginas escritas de próprio punho por José Marrocos e está arquivado no Departamento Histórico da Cúria Diocesana do Crato (CRB: 04, 139), mas possui um erro: a pessoa que arquivou anotou que a data do documento era 5 de agosto de 1891. No entanto, Marrocos faz alusão no texto à suspensão do padre Cícero “há mais de um ano”, tendo o padre sido suspenso em agosto de 1892. Acredito que a carta-reclamação tenha sido finalizada em agosto de 1893 e então publicada em setembro. 33 Entre 1891 e 1892, ano da realização do primeiro inquérito, temos conhecimento sobre seis consultas a bispos de todo o Brasil, sobre o fenômeno eucarístico, com o intuito de obter respostas favoráveis ao evento de Juazeiro. Do que temos em nosso acervo documental: a) Respostas a Marrocos: Dom Antônio, 28.08.1891, Maranhão; Comissário Episcopal (?), 12.10.1891; padre João Chanavat, 20.10.1891, Mariana – MG; Dom Jerônimo, 20.10.1891, Pará; Dom Tomaz, 25.11.1891, Guarda; Dom Joaquim Arcoverde, 27.11.1891, Pernambuco; Cônego José Marcolino Bittencourt, 20.10.1891, Porto Alegre – RS; Monsenhor Vicente Ferreira, 16.01.1892, Porto Alegre – RS. Ver, entre outras: Carta de José J. T. de Marrocos para D. Antonio Cândido Alvarenga em 28.081891. Pasta 33, Arquivo dos Salesianos.

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que acontecia no Juazeiro e solicitava resposta a três questões: 1ª. Segundo o Concílio Tridentino (Sessão 13, cap. 3), logo depois da consagração fica existindo debaixo das espécies sacramentais o Corpo, o Sangue e a Alma de Jesus Cristo e existe mesmo até a sua própria Divindade por causa daquela sua admirável união hipostática com o Corpo e a Alma? 2ª Si Jesus Cristo mesmo existe Deus e Homem nesse Sacramento, assim (conforme ensina São Thomaz) ele pode para confirmar a fé católica sobre sua presença real no mesmo Sacramento tornar visível aos olhos humanos o seu Corpo, o seu sangue, reproduzindo a si mesmo, como na ultima ceia? 3ª Si, nesse sacramento, como no mistério da Encarnação do Verbo Divino, com que se acha intimamente ligado; tudo é sobrenatural e miraculoso – o Sangue, em que se tem visto tantas vezes transformar-se na Igreja do Juazeiro (Ceará) a hóstia consagrada, conservando-se parte da espécie, é e pode ser o Sangue de Jesus Cristo, como já se viu em Bolsena no pontificado de Urbano IV, em Paris em 1290 e ainda em outras partes?34

Como percebemos, as perguntas não eram diretamente sobre os fatos de Juazeiro, mas especificamente sobre um fenômeno: a transubstanciação eucarística. O intuito de Marrocos era se armar de argumentos contra a Decisão Interlocutória do bispo que dizia que o sangue das hóstias consumidas por Maria de Araújo não era nem podia ser o sangue de Cristo. É com esse espírito que Marrocos se dirige à Comissão 34 DHDPG/ SAL: Pasta33. Carta de José Marrocos a D. Antônio, bispo do Maranhão em 28.08.1891.

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Episcopal e apresenta seu depoimento escrito. Nesse sentido, somos surpreendidos tanto pela ousadia dele quanto pela inércia dos membros da Comissão, que em nenhum momento questionam a validade do depoimento ou fazem perguntas, aceitando passivamente o relato como um testemunho que seria anexado no primeiro inquérito. Como é de se esperar, o texto defende a hipótese do milagre: “este fato [é] maravilhoso, extraordinário, sobrenatural, divino”, e continua, a prova do milagre seria o fato de os fenômenos não cessarem de ocorrer desde 1889, atraindo “a curiosidade do homem vulgar e a investigação do homem curioso, a objeção do cético e o exame da ciência”35. É importante lembrar que, após o primeiro sangramento, em março de 1889, a hóstia continuou a sangrar todas as quartas e sextasfeiras e não só pelas mãos do padre Cícero, mas também com outros sacerdotes e depois com os padres da Comissão, fato que já contraria uma historiografia concentrada na personagem e nas ações do padre Cícero. Continuando sua narração, Marrocos fala sobre a relação que possui com Cícero, seu “amigo mais próximo, os laços de sangue, as relações desde a infância, o coleguismo dos bancos escolares, estreitado pela vizinhança de nossas moradias, a perda de nossos pais”36, e enfatiza como o sacerdote tentou esconder os fenômenos que aconteciam com Maria de Araújo, mas que acabaram saindo do controle: “o segredo […] tornava-se uma revelação que repercutia ao longe, e de longe trazia romeiros que chegavam ao Juazeiro perguntando aonde [sic] estava o

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Depoimento de José Marrocos em 12.10.1891 in “Cópia autêntica…”, p. 67.

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Precioso Sangue que tinham vindo adorar”37. Essa referência ao esforço do padre Cícero em manter os fenômenos em segredo é relevante, pois uma das reclamações da Diocese dizia respeito à popularidade dos fenômenos e ao estímulo dado às peregrinações. Para Marrocos, é como se as romarias fossem algo “natural” dado ao “extraordinário” dos acontecimentos: “[…] não obstante o padre Cícero ter guardado toda a reserva sobre tão mirífico acontecimento, contudo foi ele de alguma sorte sempre divulgado pelas pessoas comparecentes à mesa de comunhão e que dela foram testemunhas presenciais”38. O Caderno, que citamos anteriormente, é uma fonte importante, visto que alguns jornais nos quais ele publicou não existem mais nem foram arquivados. Também algumas das cartas transcritas se perderam nos arquivos das Dioceses (do Crato e de Fortaleza), como, por exemplo, a carta do Monsenhor Vicente Ferreira da Costa Pinheiro, de Porto Alegre, que não encontramos em nenhum dos arquivos consultados. Esse documento possui ainda transcrições de trechos da obra de São Thomaz em latim, francês e italiano, que além de mostrar a grande erudição de Marrocos, no fornece pistas sobre as obras que foram utilizadas para construir uma defesa dos “milagres” e nos dá indícios da relação existente entre ele e Dom Joaquim. Marrocos ainda informou que os fenômenos foram divulgados no Diário do Comércio da Corte, em 19 de agosto de 1889, e, logo em seguida, no Diário de Pernambuco, em 29 do mesmo mês. Ora, 37

Idem.

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mesmo com toda a dificuldade da época, no que concerne à questão da comunicação à distância, é de surpreender que as populações do Rio de Janeiro e de Pernambuco tenham sido informadas sobre os fenômenos em agosto, enquanto o bispo do Ceará ainda em novembro alegava não saber do caso. Para Marrocos, foi a publicidade dada aos eventos que “estabeleceu o culto” e, neste sentido, devemos atentar para uma questão importante: sem publicidade não haveria culto, não se instalaria nenhuma crença. Essa também era a hipótese de Dom Joaquim, mas Marrocos parece não entender o sentido da hierarquia e o acusa, no mesmo depoimento, de arbitrariedade, por proibir o culto ao Sangue Precioso. O curioso na narrativa de Marrocos é a tentativa de diminuir a autoridade do bispo, a partir de uma suposta “autonomia” do milagre. Para ele, se era o próprio Cristo que se manifestava no Juazeiro com seu sangue, não haveria sentido em esperar reconhecimento da Diocese ou mesmo da Santa Sé, pois o “reconhecimento solene de sua existência [do milagre] teve por si um poder superior e invencível”. O depoimento de Marrocos expressava uma completa afronta à hierarquia! Segundo Marrocos, outra “prova” de que os fenômenos eram milagres eram as graças alcançadas pelos devotos mediante as promessas feitas ao Sangue e as práticas de devoção, que, segundo ele, “partiam” do próprio povo: Mas a alma cristã do espectador nunca pode ver esse sangue sem sentir-se penetrada de respeito e comovida até a efusão das lágrimas! Jamais ninguém passou por diante dele, que não genuflectasse [sic], que não beijasse o chão, que não orasse e muitos

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tiravam o calçado, como Moisés no lugar santo39.

Algumas décadas antes, entre 1868 e 1870, Marrocos teria feito o mesmo esforço para validar os milagres das águas curativas do padre Ibiapina, como vimos no capítulo anterior. Nesse sentido, conjeturamos que há, para ele, uma “consciência” de que, se o povo crê e essa crença é validada pelas “graças alcançadas”, não há porque duvidar. Por outro lado, o processo de significação que Marrocos pretende dar aos eventos de 1889 confronta os caminhos eclesiásticos pelos quais qualquer fenômeno que se pretende “milagre” deve passar. Aviva-se aí, como ressalta Michel de Certeau, “uma diferença (tida como intolerável) entre a consciência religiosa dos cristãos e as representações ideológicas ou institucionais da sua fé” (2007, p. 134. Grifos no original). A noção de crença proposta por Certeau, na qual são consideradas as relações de enunciação e investimento feitas pelas pessoas em determinado objeto ou sujeito, nos ajuda a pensar o relato de Marrocos e sua “cegueira” com relação às normas da Igreja, apesar de ele se declarar um fiel católico. Essa desagregação entre o sentimento de crença e a doutrina oficial ganha contornos muito evidentes no caso de Juazeiro, na medida em que a experiência do milagre confronta a instituição. No entanto, diferentemente do Pe. Cícero, Marrocos parecia ter uma devoção exacerbada ao bispo cearense que foi rompida com a publicação da Decisão Interlocutória da qual falamos acima. Em um artigo intitulado Os milagres de Joaseiro – Sua divina realidade – Uma reclamação ao

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reverendo Bispo Diocesano, datado de 05 de agosto de 1891 e publicado no jornal A Província de Recife, em 3 de setembro de 1893, no qual José Marrocos alude a vários momentos em que Dom Joaquim teria lhe “socorrido”. Referindo-se a si próprio como “um obscuro diocesano”, talvez em sinal de modéstia e humildade, ele relembra os momentos em que o bispo veio em seu auxílio, quando, por exemplo, Dom Joaquim testemunhou a seu favor no processo em que foi acusado de roubar escravos; outro momento foi quando o bispo se dignou a comparecer a um jantar em honra da libertação dos escravos no Ceará, “primeira terra e primeira diocese livre do Brasil”, em 1884; lembrou ainda o apoio do bispo à petição de uma verba para construção de uma capela no cemitério dos coléricos e a concessão de uma imagem do Santíssimo Sacramento para a Capela de Nossa Senhora das Dores do Juazeiro. Com uma retórica inigualável, José Marrocos é um narrador erudito e poético: Eis, pois, que pela mesma avenida dessas relações que nunca estremeceram, nem arrefeceram, porque nunca visaram outro fim senão o beneficiamento do homem e a glória de Deus – eu venho hoje confrangido pelos males e pelas desolações da religião e da pátria, meu venerando pontífice, apelar para o que a alma de um bispo tem de justiça e de misericórdia, de grandeza e de bondade. [...] Ah! Meu venerando pontífice, que quadro sombrio, pavoroso e desolador vai ver o olho paternal de V. Ex. Revma! [...] uma pobre virgem arrancada ao travesseiro de sua mãe agonizante [refere-se à Maria de Araújo], o tribunal da penitência dificultado e proibido mesmo no Juazeiro às esposas do Senhor [as outras beatas?], um povo inteiro enxotado e corrido para fora da fé e da Igreja católica, o seu capelão despojado do sacerdócio de Jesus Cristo e amordaçado para não

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dizer a palavra da salvação, que Deus lhe confiou para a alma do povo que vem procurá-lo de todas as partes40.

Para Marrocos, o bispo não deu oportunidade aos crentes nos milagres de fazer uma defesa direta do caso, por isso a insistência, através dos jornais, em defender os milagres e o julgamento da “causa” pela Santa Sé. Ele lutou veementemente contra a Decisão interlocutória do bispo Dom Joaquim, e foi ali, provavelmente, que as boas relações entre os dois se encerraram. Marrocos acusou o bispo de condenar os milagres antes mesmo de um julgamento, tirando, assim, a possibilidade de se provar o milagre: E, com efeito, em qualquer processo civil, criminal, eclesiástico, primeiro que tudo trata-se de estabelecer o fato e depois de conformidade com as provas é que se dá a primeira sentença que versa sobre a existência, a procedência ou a improcedência do mesmo fato. Mas no processo de verificação do grande milagre do Juazeiro, deixou logo imperiosa interlocutória decidindo que o sangue do corpo eucarístico não era e nem podia ser do Nosso Senhor Jesus Cristo [...]41.

O que pode parecer uma atitude deliberada de manchar a reputação do bispo se configurava também em uma tática de divulgação dos fenômenos, uma vez que Marrocos buscava aliados que confirmassem suas proposições. Se para o bispo não haveria dúvidas de que o sangue nas hóstias não era o sangue de Cristo (apesar de ele não 40 Caderno Marrocos, p. 01-02: Artigo intitulado Os milagres de Joazeiro – Sua divina realidade – Uma reclamação ao reverendo Bispo Diocesano, publicado no jornal A província, de Recife, em 03.09.1893. DHDPG. 41

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responder de onde provinha o sangue), para José Marrocos, o sangue não só era de Cristo como indicava a Sua Segunda Vinda ao mundo. José Marrocos lutou em duas frentes: junto à população propagou e defendeu os milagres e tratou de arregimentar seguidores para o Sangue Precioso; e, através dos jornais,empreendeu uma ferrenha discussão teológica com bispos de várias Dioceses brasileiras. Além disso, o jornalista também foi acusado de ter roubado os panos manchados de sangue de dentro do sacrário da Igreja de N. S. das Dores: Que se todo o povo desta cidade atribui o roubo deles a José Marrocos e dizem que só ele era capaz de semelhante atentado. Quando se fez a segunda ou terceira experiência nas comunhões [de Maria de Araújo], sabendo que não deram resultado algum, calculou talvez que seriam destruídos os panos, e então tratou de roubá-los eis o que geralmente se pensa. Se este homem que é um verdadeiro gênio do mal aqui não estivesse desde o começo da questão do Juazeiro, as coisas teriam tomado outro caminho […]42.

Para José Marrocos, considerado por Dom Joaquim como o “instrumento mais poderoso de que se serviu Satanás para lançar o ridículo sobre nossa religião”43,era inegável que os fenômenos não só eram “milagrosos” como o sangue que brotava das hóstias era mesmo o sangue do próprio Jesus Cristo. Diante disso, a “proibição Diocesana desapareceu [...] e anulou-se mesmo diante desse poder que pisa por cima das duas forças invencíveis deste mundo: o poder da autoridade 42 DHDPG/CRA 04,07: Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 28.06.1892. 43 Carta de D. Joaquim Vieira ao padre Alexandrino de Alencar de 08.08.1892 In “Documentário”, DHDPG.

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que manda e a submissão do súdito que obedece”44. Sua atuação seria objeto de disputas entre dois padres memorialistas da região do Cariri: os padres Antônio Gomes de Araújo (1900-1989) e Azarias Sobreira (1894-1974). Em seu livro O civilizador do Cariri (1955), o padre Gomes de Araújo fez uma menção à atuação de José Marrocos com relação aos supostos milagres de 1889, considerando-o como um “burlão”, e afirmava ainda: ao lado do padre Cícero e da beata Maria de Araújo, ele formava o trio de embusteiros que conseguira produzir artificialmente o sangue que brotara nas comunhões da beata entre 1889 e 1891. Contrário a essa proposição, o padre Azarias Sobreira, que inclusive havia sido professor de Gomes de Araújo, escreve, em setembro de 1955, um manuscrito intitulado Em defesa de um abolicionista, que visava justamente defender José Marrocos da pecha de embusteiro e “fabricante de milagres”: Aconteceu, porém, que, da página 24 por diante [do Civilizador do Cariri], o autor mudando de rumo, passa a ocupar-se, até o fim, de José Joaquim Telles de Marrocos, inolvidável abolicionista, educador e jornalista cearense. E não para apontá-lo ao apreço da posteridade, e sim, para denegrecer-lhe [sic] a memória (Sobreira, 1956, p. 69).

Em seguida, surge um extenso artigo intitulado O Apostolado do Embuste, publicado na Revista Itaytera, assinado pelo mesmo Gomes de Araújo, desenvolvendo a ideia aventada no texto citado, o Civilizador

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Depoimento de José J. T. de Marrocos de 12.10.1891 In “Cópia autêntica...”,p.

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do Cariri, agora com intenção de responder ao padre Azarias45. Nele, Gomes de Araújo defende que José Marrocos possuía um “livro mágico” ou “livro de fazer sangue” – um livro de química francês intitulado Formulaire– encontrado entre seus bens após sua morte. Para o autor, a prova irrefutável de que o sangue das hóstias era produzido artificialmente: [...] a solerte Maria de Araújo, o ‘instrumento do poder divino’, de José Marrocos (caluniava a Divindade, pois a atriz era instrumento de poder dele mesmo), usou processos químicos no embuste do suposto ensanguentamento sobrenatural da partícula-burla, de origem estranha àquela do mistério sacerdotal a qual ela consumiu antes de usar a partícula-burla, conduzida esta, ocultamente e manobrada por trás do manto e dos lábios cerrados (Araújo, 1956, p. 18).

O padre Azarias, apesar de admirador do Padre Cícero46, tinha sido secretário do primeiro bispo do Crato, Dom Quintino Rodrigues, e manteve uma atitude razoavelmente dúbia em seu texto. Ele não afirma nem nega a veracidade dos fenômenos, deixando que o leitor tire suas conclusões, afinal, diz ele, citando Virgílio: “De mortius aut bene aut nihil” (“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”). No entanto, ele empreende, como o próprio título do livro sugeria, uma defesa de José Marrocos. É relevante, por exemplo, que o padre Azarias Sobreira tenha

45 A Revista Itaytera foi uma publicação anual do Instituto Cultural do Cariri nos anos 1950/60. 46 Padre Cícero era seu padrinho de batismo e, posteriormente, o padre Azarias escreveu um livro chamado O Patriarca do Juazeiro, reeditado recentemente por ocasião das comemorações pelo Centenário do Juazeiro.

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nomeado seu livro, Em defesa de um abolicionista, destacando uma atividade exaltadora do aspecto social e político– e não religioso – da vida de Marrocos: o abolicionismo. Tentando evitar polêmicas com a Diocese do Crato, na qual o bispo rejeitava os fenômenos de Juazeiro como milagres, o padre Azarias se esforça por qualificar José Marrocos a partir de outros depoentes de confiança e que gozavam de boa reputação. Azarias argumentava que Marrocos teria adquirido o livro francês porque, além de estudioso, queria comprovar que o sangue que brotava das hóstias não era “sangue de galinha ou de anilina”, como afirmava Gomes de Araújo. Outro acontecimento que alimentou o debate entre os dois padres dizia respeito ao roubo dos panos manchados de sangue da Matriz de Nossa Senhora da Penha, no Crato. Na época, em 1892, o padre Alexandrino de Alencar, pároco do Crato, havia guardado os referidos panos no sacrário da igreja, por ordem do bispo Dom Joaquim. Em fins de abril, eles sumiram misteriosamente do Sacrário. O roubo foi referido pela primeira vez no dia 22 de abril de 1892, em carta que infelizmente se perdeu, ou foi destruída, do arquivo do bispo Dom Joaquim (sabemos dela através da carta de 2 de maio). Supunha-se que o roubo teria acontecido na noite anterior: Cumpre-me afirmar a V.Exa. que todas as precauções foram tomadas no intuito de evitar o conhecimento do lugar em que os panos se achavam. Mas a retirada do caixão que se achava na Capela do Juazeiro, embora fosse feita à meia noite e colocada na Capela desta Matriz, muito antes do dia amanhecer, despertou a atenção dos fanáticos que naturalmente se puseram a fazer pesquisas a fim de conhecer o lugar em que se achavam. [...] A chave nunca saiu de meu poder. Verifiquei ter havido o emprego de

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chave falsa, por que encontrei vestígio de cera em torno do buraco da fechadura no sacrário47.

As suspeitas recaíram sobre o jornalista José Marrocos, que chegou a ser referido pelo bispo como o “principal instrumento do qual se serviu satanás para lançar o ridículo sobre nossa religião”48. José Marrocos havia se manifestado abertamente contra a execução do segundo inquérito, pois estava convencido de que a causa já estava provada e só era necessário que a documentação fosse mandada a Roma para ser chancelada pelo Papa, uma atitude clara de desrespeito ao bispo. Segundo o padre Alexandrino, era de opinião geral que somente José Marrocos poderia ter executado o plano de roubo dos panos: Quando se fez a segunda ou terceira experiência nas comunhões [de Maria de Araújo], sabendo que não deram resultado algum, calculou talvez que seriam destruídos os panos, e então tratou de roubá-los eis o que geralmente se pensa. Se este homem que é um verdadeiro gênio do mal aqui não estivesse desde o começo da questão do Juazeiro, as coisas teriam tomado outro caminho49.

José

Marrocos

ainda

seria

citado

outras

vezes

na

correspondência do padre Alexandrino, principalmente por divulgar nos jornais a ocorrência dos fenômenos, mas nunca ficou provado que ele 47 DHDPG/CRA 04,04. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim J. Vieira em 02.05.1892. 48 Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Alexandrino de Alencar de 08.08.1892 in “Documentário”, DHDPG.. 49 DHDPG/CRA 04,07: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 28.06.1892.

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foi o autor do roubo50. Sobre a denúncia enfatizada por Gomes de Araújo, o padre Azarias argumentou que Marrocos teria roubado os paninhos por sua crença nos supostos milagres: “simplesmente, a convicção em que estava, e em que talvez haja morrido, de ser a franca origem sobrenatural e divina o sangue aparecido nas hóstias recebidas por Maria de Araújo” (Sobreira, 1856, p. 77-78).Mas, nos perguntamos, com que objetivo? Porque Marrocos se daria ao trabalho de “criar” um milagre que envolvia tantas pessoas e estratagemas complicados de convencimento, não só da população, mas da Igreja de um modo geral, isto é, padres, bispos e até a Santa Sé? Para Gomes de Araújo, três motivos podiam ser aventados: José Marrocos teria tido em vista a projeção social do Padre Cícero e Juazeiro e, dentro dessa paisagem, o seu próprio destaque. Outros acham que ele agira inspirado no jansenismo de que teria sido inquinado. Ou ainda pelo ressentimento que lhe ficara, da saída forçada do Seminário. Achava oportunidade para desforrar-se da autoridade Eclesiástica. Julgo que o inspiraram, os três motivos, com que a prevalência do primeiro (1956, p. 21).

Retomando a argumentação do padre Azarias sobre a crença inabalável de José Marrocos no que diz respeito aos milagres, nos apropriamos do conceito que Michel de Certeau chama de “a fraqueza 50 Muitos anos mais tarde, em 1910, quando Marrocos faleceu, foram encontrados alguns panos ensanguentados em sua biblioteca e desconfiou-se que a teoria de Alexandrino era correta. É importante, entretanto, levarmos em conta também a quantidade de panos que foram manchados pelos sangramentos nas hóstias consumidas por Maria de Araújo, bem como por suas crucificações e estigmas. Podemos aventar que existia uma imensa quantidade de panos, inclusive espalhados entre a população.

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do crer”: Porque la vida religiosa no recibe su justificación del afuera. No tiene una utilidad social por razón de ser ni un conformismo, como si debiera estar bien ‘adaptada’ fundiéndose con la pared. Tampoco es simples consecuencia de una doctrina. Lo que la define no es el beneficio de la sociedad o el provecho que de ella extraerá el religioso; sino un acto: el acto de creer (2006, p. 27)

Analisando os escritos de Marrocos, conjeturamos que ele era movido pela sua crença. Além disso, Marrocos tinha consciência do valor de sua escrita e das tramas que ele tece ao escrever para bispos e padres de outras dioceses. Ao divulgar seus escritos e apelos em jornais, denota a invenção deliberada de um discurso que visava convencer o outro da validade de uma causa. Nesse sentido, a experiência de Marrocos como filho de um padre, como religioso e como crente se transformará em linguagem que tenta transmitir o milagre: a “experiência experienciada, como vivida, permanece privada, mas seu sentido, a sua significação tornase pública” (Ricoeur, 1976, p. 28).Ambos os padres, Araújo e Sobreira, analisam Marrocos a partir de um determinado ponto de vista e de uma determinada experiência; não há vencedores nesta disputa. Ambos constroem imagens de Marrocos que visam explicar uma experiência que por si não pode ser narrada: e experiência da fé. Uma experiência que o próprio Marrocos, apesar de toda sua erudição, não conseguira exprimir: Quis talia fando tempera a lacrymis?, a frase latina que ele cita várias vezes em seu texto, extraída da Eneida de Virgílio, diz: “Quem, ouvindo isso, conterá as lágrimas?”, traduz um 111

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dos principais fundamentos da mística. José Marrocos faleceu em 14 de agosto de 1910 de causas misteriosas. O jornal O rebate, que noticiou sua morte e publicou as exéquias em 28 do mesmo mês, afirmava que Marrocos teria sucumbido em razão de uma pneumonia: Acometido de uma pneumonia aos 12, faleceu aos 14 do corrente à 1 ½ da tarde o ilustre homem de leituras, José Joaquim Telles de Marrocos. Na manhã desse dia tentou vestir-se para, de preceito, ouvir a Missa. [...] E mais tarde... meia hora antes de seu trespasso que foi um colapso, mudou as roupas e foi descansar numa rede em um dos compartimentos do colégio. Pediu uma chávena de café, conferenciou com o Padre Cícero e depois de terminada a conferência, em palestra com outros, sem que ninguém o esperasse, entrou em agonia e morreu. [...] Pela madrugada foi encerrado no caixão que era de casimira preta e galões dourados51.

No entanto, circulou pela cidade o boato de que Marrocos teria sido envenenado pelo então braço direito do Padre Cicero, o Dr. Floro Bartolomeu da Costa (1876-1926). Os motivos seriam as constantes disputas ideológicas entre Floro e Marrocos. A morte de Marrocos, além de repentina e misteriosa, marcou o fim de uma fase importante na história do povoado de Juazeiro. No ano seguinte, em 1911, Juazeiro se libertaria do jugo da cidade do Crato. Marrocos não sobreviveu para ver sua cidade sagrada emancipada, mas seu corpo descansa no principal cemitério da cidade, impassível, esperando também ele uma reabilitação. 51 O Rebate, de 28.08.1910, Ano II, n° LVIII. Arquivo do Memorial, Juazeiro do Norte, Ceará.

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Artigo submetido em: 07/05/2013 Artigo aprovado para publicação: 13/02/2014

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cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio Amanda Teixeira da Silva1

Resumo O objetivo deste artigo é analisar o caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio, escultor italiano que viveu em Juazeiro do Norte entre 1934 e 1940. Como corre a vida após a morte de Padre Cícero? Quais são as ideias mais disseminadas sobre Juazeiro do Norte até aquele momento? Em quais sentidos a obra de Agostinho Odísio, escultor italiano que viveu na cidade logo após a morte de Padre Cícero, se distancia de tais discursos centrados nas figuras de Padre Cícero, Maria de Araújo e Floro Bartolomeu e inaugura uma nova representação sobre a cidade? O presente trabalho discutirá algumas dessas questões. Palavras-chave: memórias, Juazeiro do Norte, Padre Cícero, representações.

Abstract The objective of this paper is to analyze the personal journal of Agostinho Balmes Odísio, Italian sculptor who lived in Juazeiro between 1934 and 1940. How will people live their lives after Father Cicero’s death? What are the most widespread ideas about Juazeiro? In what way the work of Agostinho Odísio, Italian sculptor who lived in the city after the death of Padre Cicero, distances itself from such discourses centered on people like Padre Cicero, Maria de Araújo and Floro Bartolomeu and 1 Graduada em História pela Universidade Regional do Cariri – URCA. Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Doutoranda em História pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Professora do Bacharelado em História da Universidade Federal do Cariri – UFCA. E-mail para contato: [email protected] Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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inaugurates a new representation of the city? This paper will discuss some of these issues. Key words: memories, Juazeiro do Norte, Padre Cícero, representations.

Introdução Em 1934, morre Padre Cícero. Começam, então, as especulações dos intelectuais que escreviam sobre Juazeiro. A cidade ainda cresceria após sua morte ou enfrentaria um momento de estagnação? O culto à personalidade do Padre permaneceria por muito tempo ou se extinguiria depois disso? Como passariam a viver os seguidores protegidos por ele até aquele momento? Agostinho Balmes Odísio2 responde, a seu modo, todas essas perguntas. Suas Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero contêm análises políticas, sociais e culturais feitas em tom de humor e ironia. Por vezes, Odísio parece preconceituoso, noutros momentos surge como um sujeito que se afeiçoou à terra. É flagrante também em sua obra a revolta relacionada ao modo como as autoridades públicas tratam o local, embora o próprio Agostinho seja amigo das figuras mais importantes da cidade. O presente estudo pretende tratar de tais temas e, através deles, empreender uma viagem pela Juazeiro descrita por Agostinho Balmes Odísio. Em seu testamento, Padre Cícero faz um apelo: Aproveito o ensejo para pedir a todos os moradores desta terra, o Juazeiro, muito especialmente aos romeiros, que depois da minha morte não se retirem daqui nem o abandonem, que continuem domiciliados aqui, no Juazeiro, venerando e amando 2

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Escultor italiano que viveu em Juazeiro do Norte entre 1934 e 1940. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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sempre a Santíssima Mãe de Deus (…). Torno extensivo este meu pedido também a todos os meus amigos, pessoas de outros Estados e dioceses, romeiros também da Santíssima Virgem Mãe de Deus, isto é, que continuem a visitar o Juazeiro, em romaria à Santíssima Virgem, como sempre o fizeram auxiliando a manutenção do seu culto e das instituições religiosas que aqui forem criadas (…) (BATISTA, 1956, p. 197).

Esta pesquisa nasce do desejo de investigar a cidade de Juazeiro no momento posterior à morte de Padre Cícero e analisar os diferentes discursos literários produzidos sobre a localidade até então. Existem pesquisas importantes sobre o fenômeno de Juazeiro3 e sobre a Juazeiro contemporânea, bem como acerca das transformações no posicionamento da Igreja diante das romarias nas últimas décadas4. É interessante notar, contudo, que muitas obras sobre Juazeiro do Norte se encerram em 1934, ano da morte do Padre Cícero. Os estudos mais recentes costumam acrescentar a esse quadro uma análise da cidade e das romarias na atualidade. Pouca atenção vem sendo dada, no entanto, ao momento de incertezas iniciado após a morte do padrinho. Francisco Régis Lopes Ramos lembra que “a biografia do Padre Cícero não termina em 1934. Pelo contrário. Depois da sua morte, ele ganha maior dimensão”. (RAMOS, 1999, p. 43). Acredito que o mesmo possa

3 Tais como os clássicos “Milagre em Joaseiro”, de Ralph Della Cava (a primeira edição americana foi publicada em 1970), e “Juazeiro do Padre Cícero – A Terra da Mãe de Deus”, de Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (1988). 4 Recentemente surgiram novos trabalhos acadêmicos sobre o milagre e as romarias. É possível mencionar contribuições inovadoras, ambas publicadas em 2011, como “Para onde sopra o vento”, de Renata Marinho Paz e “O Teatro de Deus”, de Edianne dos Santos Nobre.

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ser dito a respeito de Juazeiro do Norte. O objetivo deste artigo é analisar o caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio, escultor italiano que viveu em Juazeiro do Norte entre 1934 e 1940. Os escritos dele se configuram como um gênero híbrido de diário, caderno de memórias, obra literária e relato histórico. O autor afirma, logo no início de seu texto, que não pretende desenvolver um trabalho literário, mas apenas fixar impressões sobre a cidade: Estas memorias, escriptas ao correr da penna, não tem valor literario, porque nelas falta forma, língua e gramatica. Quem aqui escreveu é um simples trabalhador o qual só procuró fixar impressões e verdades. Quem quer leia e não proteste depois, porque lealmente avisei. O autor, illustre desconhecido (ODÍSIO, 2006, p. s/n).

Agostinho Odísio, “ilustre desconhecido”, apresenta-se como um sujeito comum e defende que suas memórias não são literatura5. É interessante notar que certos estudiosos afirmam, do mesmo modo, que trabalhos de cunho autobiográfico não chegam a ter valor literário. O presente estudo sustenta, entretanto, que as memórias de Odísio têm valor literário e histórico, pois permitem que conheçamos, através do olhar de um estrangeiro, a vida e o cotidiano de Juazeiro do Norte no início do século XX. O caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio foi publicado em 2006 pelo Museu do Ceará. A obra recebeu uma edição fac-similar que preserva elementos essenciais do escrito, tais como 5 Agostinho Odísio parece ter, no entanto, bastante intimidade com o trabalho literário. Chegou inclusive a escrever peças teatrais. Cf. SIQUEIRA, 2011.

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similaridades com o suporte original, erros gramaticais, fotografias e a própria caligrafia do autor. A obra de Agostinho foi prefaciada por Francisco Régis Lopes Ramos, o qual afirma, com propriedade, que Qualquer conhecedor do assunto encontrará aí imprecisões em datas e fatos, além dos estereótipos que normalmente são encontrados em posturas racionalistas. Por outro lado, encontrar-se-á, também, uma infinidade de detalhes sobre uma história do cotidiano, das imagens e das religiosidades (RAMOS apud ODÍSIO, 2006, p. 13).

Nos escritos de Agostinho Odísio aparecem acontecimentos vividos pessoalmente e também aqueles vividos por tabela, ou seja, “acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa sente pertencer” (POLLAK, 1992, p. 201). Talvez por esse motivo existam tantas imprecisões. O pensamento de Pollak será essencial para compreender alguns aspectos das memórias de Odísio (profundamente marcadas por eventos que nem sempre foram vivenciados pelo autor, mas que se acoplaram à sua memória por terem adquirido profundo significado em seu imaginário). Juazeiro já foi vista como cidade de fanáticos ou como campo fértil da cultura e da religiosidade popular. Há quem estude o crescimento econômico da cidade e sua centralidade no fenômeno de metropolização do Cariri. O Padre Cícero, personagem importante para compreender a região, já sofreu acusações que vão da proteção aos cangaceiros à ambição política desmesurada. Outros, ainda, estudam o fenômeno de Juazeiro e a importância do religioso, de seus beatos e beatas e dos romeiros na formação da cidade. São desconhecidas, no entanto, pesquisas que deem conta do cotidiano da cidade na década 119

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de 1930, período de incertezas para Juazeiro do Norte.

História e escrita autorreferente Segundo Angela de Castro Gomes, a partir da década de 1990, o país viu surgir uma espécie de “boom de publicações de caráter biográfico e autobiográfico” (GOMES, 2004, p. 7). A visibilidade dada a esses escritos concernentes à memória acabou chamando a atenção dos historiadores, que passaram a se preocupar com uma reflexão mais aprofundada sobre o tema. O debate sobre a dimensão subjetiva dessa documentação só pôde se dar graças às novas perspectivas teóricas e metodológicas dos historiadores, que passaram a valorizar também as fontes produzidas no âmbito privado. É preciso salientar, no entanto, que esse tipo de documentação atualmente não é considerado apenas como fonte, mas também como objeto da pesquisa histórica. Antes de tratar sobre a necessidade de levar em conta as especificidades de cada um dos gêneros autobiográficos, é importante destacar que a autobiografia e as modalidades afins foram por muito tempo banidas do cânone literário. Assim, esses “egodocumentos” foram marginalizados e acabaram sendo escamoteados para uma espécie de limbo situado entre a literatura, a crônica e o relato histórico. Embora recentemente os historiadores tenham olhado para esses escritos com mais atenção – dando destaque para a escrita epistolar –, cabe ressaltar a importância das outras vertentes da escrita autorreferencial (tais como diários e cadernos de memórias) de indivíduos “comuns”, assim como de políticos e literatos.

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Para Mary Del Priore, a reabilitação da biografia está intimamente relacionada à história social e à história cultural, pois oferece oportunidade de fala aos diferentes atores históricos. Além disso, de acordo com a historiadora, a partir da década de 1980, “a biografia não era mais a de um indivíduo isolado, mas a história de uma época vista através de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos” (DEL PRIORE, 2009, p. 9), desfazendo assim a oposição entre indivíduo e sociedade, aspecto que será levado em consideração no decorrer desta pesquisa. O presente estudo estará atento às peculiaridades de um documento que tem as marcas do diário pessoal, mas não chega a se caracterizar como narrativa plenamente íntima ou autobiográfica6. De acordo com Lejeune, os diários têm, entre outras coisas, o objetivo de fixar o tempo. Assim, o memorialista, cronista ou diarista pretende, no momento da escrita, “construir para si uma memória de papel, criar arquivos do vivido, acumular vestígios, conjurar o esquecimento, dar à vida a consistência e a continuidade que lhe faltam...” (LEJEUNE, 2008, p. 277). Além disso, o diário é um espaço de reflexão, de meditação. Mary Del Priore lança uma questão importante em seu artigo intitulado “Biografia: quando o indivíduo encontra a História”: “Mas, afinal, a história conta uma história? Há 40 anos atrás a resposta seria: não! Os historiadores profissionais invocariam o compromisso que assumiram no século XIX de fazer valer a ciência contra a arte”. (2009, p. 6 Agostinho Balmes escreveu três diários, um sobre a Revolução Constitucionalista (1932), outro sobre sua viagem para Juazeiro do Norte (escrito a bordo do navio “Comandante Ripper”, em 1934) e o terceiro – objeto de estudo do presente trabalho – sobre Juazeiro do Norte (escrito, aparentemente, entre 1934 e 1935). Cf. SIQUEIRA, 2011.

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12). Um dos objetivos deste trabalho é contar uma história, a história da Juazeiro do Norte que enfrenta a fatalidade da morte de Padre Cícero. As principais fontes utilizadas serão os escritos de Lourenço Filho, Floro Bartolomeu e Agostinho Balmes Odísio.

Agostinho Odísio e seu caderno de memórias A manutenção de um diário pessoal é geralmente uma “atividade secreta”, que costuma se desenvolver a partir de uma nova fase na vida daquele que escreve: uma viagem, um novo relacionamento amoroso ou uma crise são momentos privilegiados para o início de um diário. Do mesmo modo, existem diversos meios de terminar um diário: a interrupção, a destruição, a releitura e a publicação são formas destacadas por Philippe Lejeune, estudioso francês que se debruça prioritariamente sobre o tema da autobiografia. Segundo o autor, certos diários possuem, inclusive, fins programados: é o caso dos diários de férias, de viagem, de trabalho ou de pesquisa. O diário de Agostinho Balmes se insere nessa última categoria: sua duração é restrita ao tempo em que viveu e trabalhou em Juazeiro do Norte. A base do diário, segundo Lejeune, é a data. Para o autor, “o diário é uma série de vestígios datados” (LEJEUNE, 2008, p. 296), que sempre se inscreve no tempo, na duração. No entanto, o diário não precisa ser escrito todos os dias: este tipo de prática costuma conviver bem com irregularidades, fragmentações e pausas, e também com continuidades e descontinuidades. O diário pode ainda ser coletivo, público ou pessoal, servindo “sempre para construir ou exercer a memória de seu autor” (LEJEUNE, 2008, p. 261). É preciso observar ainda 122

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que o diário é mais frequente entre pessoas instruídas, pois pressupõe certo grau de alfabetização e de apreço pela leitura e pela escrita. O diário pode possuir várias funções, dentre as quais as de expressar, de refletir, de lembrar ou simplesmente a de escrever pelo prazer de escrever, mas seus compromissos primordiais são com a memória e a organização. Deve ser considerado como uma arte da repetição e da variação, pois todos os diários possuem ritmos próprios, trazendo elementos antigos e apresentando novidades. Esta modalidade de Escrita de Si também costuma apresentar claramente algumas “curvas de temperatura”. Às vezes pode-se escrever mais, noutras se escreve menos. Apesar de conter todas essas variações, esse é um tipo de escrita que obedece a formas rígidas e que geralmente não incorpora correções: o rascunho é também a versão final. Àqueles que questionam a dimensão literária do diário, Philippe Lejeune responde: Dizem que o diário não tem forma própria, é vítima da facilidade, “a arte daqueles que não são artistas” […]. Posso provar o contrário: não há arte que obedeça restrições tão enérgicas, tão rígidas. É uma escrita na qual todos os procedimentos comuns à tarefa são proibidos: o diarista não pode nem compor, nem corrigir. Deve escrever certo da primeira vez (LEJEUNE, 2008, p. 300).

De acordo com Lejeune, a palavra “diário” parece ter surgido no século XVIII, mas a prática tornou-se mais comum a partir do século XIX, quando as meninas eram estimuladas a manterem diários comumente inspecionados pelos educadores. Alguns autores também apontam uma ligação entre o surgimento do diário e a constituição 123

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do individualismo moderno. A partir de então, nasce o conceito de privacidade, a separação entre doméstico e público e, por outro lado, as vidas de pessoas desconhecidas passam a ser valorizadas e vistas como relevantes o bastante para sobreviverem na memória dos outros. Se há predominância de elementos subjetivos, reflexões psicológicas e “acontecimentos interiores” no diário íntimo, o diário de viagem, embora não se destine necessariamente a disseminar conhecimento, surge muitas vezes para provocar uma reflexão acerca do trajeto percorrido, do cotidiano encontrado, do trabalho de campo realizado e/ou da pesquisa desenvolvida. Não obstante, este tipo de documento não deixa de se configurar como um diário pessoal. O caderno de memórias de Agostinho Balmes é um gênero híbrido e apresenta características do diário íntimo e do diário de viagem7, embora as informações sejam apenas esporadicamente datadas8. A memória e a narrativa, como se sabe, são necessárias para a constituição da identidade, e o diário, na medida em que envolve tanto uma quanto a outra, incorpora características desses dois elementos, dentre as quais a seletividade, que o leva a reter apenas algumas facetas dos dias vividos por aquele que escreve. Os diários de viagem, assim como os diários públicos, são considerados por alguns estudiosos como pré-diários, ou seja, como diários que não devem ser inteiramente considerados como escritas do eu, modalidade que veio à tona somente com o advento dos diários 7 De acordo com Calligaris (1998), os escritos autobiográficos podem participar de mais de um gênero. 8 Nos outros dois diários de sua lavra há datação constante em cada uma das entradas.

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íntimos. Para compreender melhor essa questão, basta considerar que os diários públicos, de registro pessoal e de viagem são escritos com a perspectiva de que provavelmente haverá um leitor, enquanto os íntimos geralmente estão envoltos por uma aura de segredo. Este tem como destinatário privilegiado o próprio escritor, mas poderá sobreviver àquele que o escreveu e ser lido por seus sucessores. Os de viagem, por outro lado, [...] muito comuns entre os séculos XV e XVIII, refletiam as viagens de caráter exploratório ou não, trazendo informações sobre geografia específica, terreno, possibilidade de rotas, fauna e flora, mas também curiosidades sobre os povos nativos e a expressão do sentimento associado a cada uma dessas experiências (OLIVEIRA, 2002, p. 32-33).

Os tradicionais diários de viagem, na Europa do século XVII e na América do século XIX, eram muitas vezes mantidos como souvenirs, como lembranças possivelmente compartilhadas com pessoas que não fizeram parte das comitivas, e até mesmo como livros de informações, que seriam enviados como presentes a amigos e parentes. Esse gênero de escrita autorreferencial foi comum em todo o mundo, tendo como prováveis expoentes os diários de Charles Darwin: seu Journal of Researches foi a base para a produção do revolucionário A Origem das Espécies (OLIVEIRA, 2010, p. 34-35). Os diários de cientistas e naturalistas apresentam as marcas do diário pessoal, mas devem ser considerados preponderantemente como suportes para a memória e instrumentos para a reflexão sobre o que foi visto nos lugares percorridos. O caderno de memórias de Agostinho Odísio traz alguns desses aspectos. O autor afirma nas páginas finais: “Dedico esta mais que 125

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humilde obra aos meus filhos, para que della tirem proveito, aquilatando tudo quanto vale a instrução e a cultura na vida do homem, de um nucleo, de uma nação” (ODÍSIO, 2007, p. 125), dando a entender que sua obra teria como leitores preferenciais os próprios filhos. Dessa maneira, Odísio poderia compartilhar com sujeitos ausentes as experiências vividas em Juazeiro. É necessário notar, no entanto, que o autor encerra seus escritos com a seguinte mensagem: É hora de fechar este desconexo calhamasso o qual, escripto literalmente ao correr da pena (priva as correções aonde entra emocção até a gilette), não pode ter absolutamente valor algum, sendo o seu autor pobre operario que nunca estudó portuguez. Os lumes para este pastel literario foram recolhidos a fonte viva do auxilio do meu enseparavel candieiro fumacento qual me foi fiel companheiro nas longas noites de insonia causadas pelos pensamentos e por = murrissocas = ferozes (companheiras ampliadas dos nossos pernilongos) as quaes picam a sangue sem misericordia (ODÍSIO, 2007, p. s/n).

Afirmando sua humildade e a ausência de pretensão literária, Agostinho parece, de certa forma, imaginar que a obra será lida não somente por seus filhos, mas também por destinatários desconhecidos que devem ser informados sobre as condições em que escreveu tais memórias. Ao fazer seu mea culpa admitindo que não conhecia bem o idioma e que não fez correção alguma ao longo de seu trabalho, o autor acaba estimulando o leitor a valorizar ainda mais o esforço de reflexão levado a cabo por ele. A presente pesquisa pretende levar em conta tais especificidades de seu caderno de memórias. É preciso destacar que através de uma análise dos escritos de Agostinho Odísio será possível conhecer um pouco melhor a cidade de Juazeiro do Norte no período 126

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posterior à morte de Padre Cícero.

Agostinho Odísio e a narrativa A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirála dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1994, p. 205).

O texto de Agostinho Balmes Odísio aborda a seca, a fome, as condições de habitação dos juazeirenses, a arquitetura, o cenário urbano e o abastecimento de água. Elenca ofícios que sustentavam os homens simples e esclarece aspectos referentes à alimentação popular. Conduz um passeio pela feira semanal e critica as condições de higiene da cidade. Apresenta as possíveis diferenças entre Juazeiro e Canudos. Lembra os problemas do analfabetismo, da dificuldade de acesso a hospitais e descreve muitos elementos da fervorosa religiosidade popular. Odísio ainda se debruça sobre a condição feminina, o trabalho infantil, as peculiaridades políticas da cidade e a miséria de sua população. Além de tudo, o autor nos traz causos, anedotas, histórias das quais “ouviu falar” e, consequentemente, nos apresenta personagens ilustres e anônimos que fazem parte de seu cotidiano na oficina e nas ruas. Por fim, nos apresenta fotografias que considera representativas do seu dia a dia e da vida em Juazeiro. O indivíduo sui generis, o estrangeiro, 127

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artista, intelectual, fala sobre homens comuns e descreve aquilo que é rotineiro, repetitivo e usual na Juazeiro pós-Padre Cícero. Agostinho Odísio, escultor estrangeiro e letrado, participa da vida cotidiana. De acordo com Agnes Heller, A VIDA COTIDIANA é a vida de todo o homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão de trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais “insubstancial” que seja, que viva tão somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente (HELLER, s/d, p. 17).

Abordando temas até então negligenciados por aqueles que se preocuparam em escrever sobre Juazeiro, Agostinho Odísio parece romper com narrativas dicotômicas que viam a localidade ora como um terreno de fanatismo e ignorância, ora como a cidade do milagre ou a cidade do progresso. Assim, empreende uma aventura literária sem precedentes, registrando o que viu e ouviu, discutindo as questões que considera importantes e refletindo sobre as condições sociais dos juazeirenses. Diferentemente de seus antecessores (e até de alguns de seus sucessores), Odísio tem sensibilidade bastante para ultrapassar maniqueísmos e tentar compreender a complexidade da cidade e de seus habitantes: [...] tão meigos e humildes e ao mesmo tempo brutaes e ferozes si o tocam na sua crença, gente que é digna de melhor sorte porque neles tudo é sincero, a bondade e a violencia, productos do meio, como o sertão, tão bom e generoso nos annos de chuva

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e tão aspero e asassino nas seccas que porem não vencem o sertanejo o qual como o umbu sempre conserva verde a esperança de um futuro melhor (ODÍSIO, 2007, p. 93).

Odísio não é, no entanto, um homem fora de seu tempo. Ele acredita, como seus contemporâneos, que o meio modifica o homem. Crê ainda na medicina social e nas teorias raciais. Afirma que “era natural que estes povos dos sertões, incultos e profundamente crentes, carregassem, com o sangue das suas tres raças ancestraes, o fanatismo, producto mestiço de tres crenças” (ODÍSIO, 2007, p. 14). Assim, a narrativa de Odísio, que traz em si aspectos da oralidade, do diário, do caderno de memórias, do relato de experiência e mesmo da obra literária produzida com o objetivo de analisar uma localidade, uma experiência e um povo, pode ser vista pelos historiadores caririenses como uma obra tão rica quanto os escritos de George Gardner e Freire Alemão9 sobre o Cariri. É surpreendente notar, no entanto, que o lançamento de seu caderno de memórias tenha passado, aparentemente, em brancas nuvens, visto que até agora são desconhecidos trabalhos acadêmicos que utilizem sua obra como fonte10. Esta pesquisa parte da hipótese de que Agostinho Odísio iniciou uma nova tradição memorialística. As marcas dessa ruptura são o cuidado em descrever cotidiano e, especialmente, o fato de não ter se detido 9 George Gardner e Freire Alemão foram viajantes que escreveram sobre o Cariri do século XIX. 10 Aparentemente, seu caderno de memórias foi citado somente em “Cordel, Almanaques e Horoscopos”: E(ru)dição dos folhetos populares no Juazeiro do Norte - CE (1940-1960)”, dissertação de mestrado defendida na Universidade Estadual do Ceará por Reinaldo Forte Carvalho.

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nos “grandes personagens” de Juazeiro do Norte (Padre Cícero, Beata Maria de Araújo, Floro Bartolomeu), mas sim nos homens simples e em seus hábitos e costumes. Sua obra reflete sobre problemas que afligem a cidade, como as condições de higiene e saneamento, mas também traz elementos pouco conhecidos, como os supostos (e peculiares) motivos pelos quais a construção da igreja do horto teria sido paralisada11. A análise de seus escritos deve levar em conta, entretanto, que “vivemos em uma cultura onde a marca da subjetividade de quem fala ou escreve constitui um argumento e uma autoridade tão fortes quanto – senão mais fortes que – o apelo à tradição, ou à prova dos ‘fatos’”. (CALLIGARIS, 1998, p. s/n). Dessa maneira, é importante ter em mente que obras desse tipo conseguem muitas vezes produzir um efeito de sinceridade que deve ser frequentemente colocado à prova. Esta pesquisa investiga algumas questões que podem vir a ser respondidas pela narrativa de Agostinho Odísio: Como corre a vida após a morte de Padre Cícero? Quais são os discursos mais disseminados sobre Juazeiro até aquele momento? Em quais sentidos a obra de Agostinho se distancia de tais discursos e inaugura uma nova representação sobre a cidade? É importante levar em conta que [...] o escrito autobiográfico implica uma cultura na qual, por exemplo, o indivíduo (seja qual for sua relevância social) situe sua vida ou seu destino acima da comunidade a que ele pertence, na qual ele conceba sua vida não como uma confirmação 11 De acordo com Odísio, as obras teriam sido paralisadas porque os trabalhadores iniciaram um culto que tinha como pilar central a crença na santidade de um dos membros do canteiro de obra, o “Profeta Elias”.

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das regras e dos legados da tradição, mas como uma aventura para ser inventada. Ou ainda uma cultura na qual importe ao indivíduo durar, sobreviver pessoalmente na memória dos outros […] (CALLIGARIS, 1998, p. S/n).

Agostinho Odísio representa bem tal cultura. Estrangeiro, letrado, artista: o autor da obra aqui estudada é, em vários sentidos, um sujeito que representa a exceção em Juazeiro do Norte. A cidade, que anteriormente havia sido povoado de Crato, se emancipara em 1911 e tinha apenas 23 anos de idade quando recebeu o escultor. Odísio foi o autor de diversas imagens do padrinho que povoam a paisagem local: o medalhão que encima a fachada do Museu Padre Cícero e a estátua (muito querida pelos romeiros) presente no Largo do Socorro, por exemplo, foram criados por ele12. O caderno de memórias de Odísio traz elementos de escrita autobiográfica e, ao mesmo tempo, de literatura sobre a cidade. A preocupação do autor em apresentar sua nova morada leva a refletir sobre as agruras da vida na Meca Nordestina. Seus escritos não têm como objetivo apresentar o Padre Cícero (embora ele também se detenha sobre o tema), a Beata Maria de Araújo ou Floro Bartolomeu. O grande personagem de seu livro é uma cidade: Juazeiro do Norte:

12 É interessante notar que a estátua de bronze localizada na Praça Almirante Alexandrino (construída por Laurindo Ramos) apresenta sentido peculiar para a população de Juazeiro do Norte. De acordo com Régis Lopes, ela “transformou-se em um dos símbolos do progresso da cidade” (RAMOS, 1999, p. 33). Desse modo, talvez seja a única estátua de Padre Cícero responsável por surtir um “culto racionalizado” diferente daquele culto devocional que os romeiros apresentam pela estátua do Socorro criada por Agostinho Balmes Odísio.

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Poucos lugares, mesmo antigos, tem uma istória como Joaseiro, istória de crimes, assaltos, roubos, misterios, milagres e factos sobre naturaes; eu que enteressei-me, escutando e recolhendo impressões de toda fonte, posso garantir que um istoriador poderia fazer obra volumosa... (ODÍSIO, 2006, p. 27).

Juazeiro, no entanto, não existiria sem Padre Cícero. Como afirma Ralph Della Cava, “quando aí chegou o Padre Cícero, Joaseiro não passava de um insignificante lugarejo que se situava na extremidade nordeste do município do Crato” (DELLA CAVA, 1985, p. 41). A partir de 1889, quando teria ocorrido a transformação da hóstia em sangue, o local começou a ser visitado por romeiros que saíam de suas casas, de suas cidades e de seus estados natais para conhecer o Padre Cícero, a Beata Maria de Araújo e, principalmente, para ter contato com os paninhos que teriam entrado em contato com o sangue sagrado. O milagre transformou muitas vidas, mas também acabou gerando conflitos religiosos e políticos. Renata Marinho Paz defende que Para além de uma querela entre o bispo e o sacerdote, a questão religiosa de Juazeiro traduz, em muitos aspectos, um conflito inerente ao processo de romanização do catolicismo brasileiro, a saber, o confronto entre um modelo de catolicismo fundado na obediência, na hierarquia, na doutrina e no universalismo da igreja, e do outro as crenças e práticas da religiosidade católica popular, onde o clero e os sacramentos possuem importância secundária na vivência religiosa cotidiana do fiel, e onde a devoção afetizada aos santos e almas e o apego às graças e milagres são alguns dos aspectos centrais (PAZ, 2011, p. 132).

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Em meio a este conflito, os personagens centrais do milagre foram perseguidos: Padre Cícero teve suas ordens suspensas, a Beata Maria de Araújo passou a viver confinada na Casa de Caridade, os paninhos ensanguentados foram destruídos. Aqueles que acreditavam nos milagres, por outro lado, foram condenados como hereges e apóstatas. Alguns dos clérigos que apoiavam Padre Cícero tiveram que pedir retratação, e os fiéis que acreditavam no milagre eram vistos pela igreja como idólatras. Ao Padre Cícero restou, no fim da vida, a tarefa de gerir Juazeiro. O santo e o político dividiam um só corpo. No momento de sua morte, no entanto, foi possível perceber que a imagem sagrada se elevara acima da função profana que o padre desempenhou. Em seu funeral estiveram presentes milhares de pessoas que se deslocaram de suas casas para dar adeus ao padrinho. Além disso, como afirma Francisco Régis Lopes, “contrariando algumas expectativas, as romarias não mostraram sinais de desânimo com a morte do Padre Cícero em 1934” (RAMOS, 1999, p. 42). Ralph Della Cava lembra ainda que, com a morte do padrinho, “os pessimistas começaram a cerrar as portas de suas lojas e a abandonar a cidade, cujos verdes campos eles pensavam que iriam fenecer” (DELLA CAVA, 1985, p. 312). Mas Juazeiro do Norte continuou a crescer e os romeiros continuaram a buscá-la. A cidade permaneceu sendo vivida e experimentada, embora as narrativas sobre ela tenham perdido força.

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As múltiplas histórias de Juazeiro Joaseiro, cidade fenômeno, tipica, original, sobre a qual muito foi dito e escripto, quer com emphasis, enaltecendo-a como grandioso milagre do Padre Cicero, louvando a acção umanitaria e criteriosa do padre e o seu feito sobre natural de ter criado em poucos annos uma cidade de mais de quarenta mil abitantes, cidade culta, progressista e adiantada em franca asenção; Outros consagraram Joaseiro como cidade santa, mecca cristã surta por milagre de Deus, aonde se encontra o cemitério espiritual e viático para a vida futura, anjo fundador, enviado por Cristo, ente sobre natural, messia e patriarca milagroso e imurtal, depois de ter feito em vida a anticamara do ceu em Joaseiro, ainda vigia e determina depois de morto tudo quanto é vida do lugar, quem enfim falou de Joaseiro como reducto sinistro de fanaticos vivendo a sombra e proteção de um caudilho rodeado de jagunços descrevendo a figura do Padre Cicero como fomentador de desordens, protegendo cangaceiros, bandoleiros e mesmo Lampeao com o seu sinistro bando de cabras, apontando Joaseiro como ultimo resto da tocaias de Canudos (ODÍSIO, 2006, p. 10).

É importante ressaltar que a obra de Agostinho Odísio guarda uma especificidade: a de ser um caderno de memórias aparentemente de foro privado. Assim, seu discurso possui certas peculiaridades em relação aos outros. Além disso, Agostinho Odísio não foi um mero visitante: ele viveu em Juazeiro, conheceu suas ruas e personagens típicas, passou por algumas agruras e, dessa maneira, teve uma experiência da cidade diferente daquela descrita por outros visitantes.

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De acordo com Francisco Régis Lopes Ramos, até a década de 1970, [...] quase todas as publicações sobre Juazeiro e seu “Patriarca” assumem uma postura maniqueísta. Uns escrevem com a intenção – nem sempre explícita – de defender e elogiar o movimento religioso e o crescimento da cidade. Outros pretendem mostrar que o fenômeno seria fruto do atraso (biológico, racial, político, econômico, cultural, racional, religioso...) ou de um simples embuste (RAMOS, 1999, p. 18).

Este trabalho considera a literatura de Agostinho Balmes Odísio como uma fonte e, simultaneamente, como um objeto que pode servir de meio para pensar sobre as representações de Juazeiro do Norte. O próprio Odísio lembra, em seu diário de viagem (10 de outubro de 1934), que as informações que colhera sobre Juazeiro do Norte não eram as melhores: As notícias que tivemos não são muito boas... Juazeiro é um lugar formado por elementos de todo o norte, pessoas foragidas, cangaceiro fugido da polícia, toda sorte de aventureiros e sertanejos, à sombra do Padre Cícero, o qual, sendo uma força que nenhum governo podia atacar, gozavam completa segurança. [...]. É tarde para retroceder e teremos que aguentar até ver o que dará tudo isto (ODÍSIO apud SIQUEIRA, 2011, p. 126).

Ao aportar na cidade, Agostinho começa um relato bemhumorado e, ao mesmo tempo, surpreendente. Ao longo de sua experiência em Juazeiro, tem a oportunidade de desfazer algumas das impressões terríveis que se fixaram em sua memória graças aos relatos de fortalezenses. Não deixou, no entanto, de tecer críticas mordazes que 135

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podem revelar algumas das misérias e tensões existentes em Juazeiro no período imediatamente posterior à partida do padrinho.

Juazeiro narrada Lourenço Filho descreve Juazeiro como “a Meca dos sertões cearenses – arraial e feira, antro e oficina, dentro de orações e hospício enorme” (LOURENÇO FILHO, s/d, p. 17). Afirma que “as habitações quase todas se copiam por fora, em muros mal-acabados, despidos ordinariamente de qualquer intenção estética, como se parecem no interior, pobríssimo e imundo”. (LOURENÇO FILHO, s/d, p. 44). Mais adiante, diz: Por fora, quase que só as distingue a numeração: um cartapácio com grosseiros algarismos, no geral seguidos das iniciais – P.C. –, e de cruzes, signos-desalomão, ou de outros símbolos de uma cabalística rudimentar. Não raro um “Viva o meu Padim Ciço” sparrama-se a carvão pela parede mal caiada, com muito fervor e nenhuma ortografia (LOURENÇO FILHO, s/d, p. 44).

O Dr. Moraes e Barros, em visita a Juazeiro do Norte, também teria dito que a periferia da cidade, “só de casebres e mocambos de meia agua, é de ingrata apparencia, mais semelhando colossal e disforme acampamento de festa de Santa Cruz” (BARROS apud BARTOLOMEU, 2010, p. 8), acrescentando ainda que existiriam mais de duas mil casas pertencentes ao Padre Cícero. Com efeito, a habitação em que Agotinho Odísio se instalaria anos depois é semelhante aos casebres descritos por Lourenço Filho e Moraes e Barros. Odísio afirma que era uma “tapera de pao a pique 136

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barro a vista, cheia de buracos os quaes nos deram um trabalho de dois dia para concertá-los, mais ar[r]anjar um pouco o chão de terra batida e colocar fechaduras (...)” (ODÍSIO, 2006, p. 5). Explica que moraria nessa casa porque as melhores residências, feitas de tijolos, eram ocupadas pelos proprietários, que construíam esses casebres para alugar às pessoas mais pobres. Acrescenta que algumas casas possuíam apenas fachadas de tijolos, mas o restante da estrutura era constituído por taipa. Para Lourenço Filho, além dessa face carente da cidade, existiriam dentro de Juazeiro duas ou três ruas calçadas, que se dariam “ao luxo de ter alguma coisa parecida com passeios laterais, três ou quatro construções de sobrado, casas com platibandas, ‘jacarés’ salientes e numeração mais discreta” (LOURENÇO FILHO, s/d, p. 47/48). Depois de apresentar o meio em que viviam os juazeirenses, Lourenço Filho dedica um capítulo de seu livro ao Padre Cícero, outro a Floro Bartolomeu, e outro a alguns eventos anedóticos e históricos relativos à cidade. Conclui afirmando que as coisas de Juazeiro são estranhas a tal ponto que “àqueles que nunca deixaram a estreita orla de civilização litorânea, de empréstimo, há de parecer que exageramos” (LOURENÇO FILHO, s/d, p. 177). Defende como solução para os problemas de Juazeiro a prioridade de “uma formação de elites, na ordem intelectual e na ordem moral” (LOURENÇO FILHO, s/d, p.178). O ensino primário viria em segundo plano, pois “a ação das elites formadas no cadinho dos centros superiores de cultura refletir-se-ia na consciência popular” (LOURENÇO FILHO, s/d, p.182). Agostinho Odísio discordaria dessa teoria. Apesar de defender o Padre Cícero quase sempre ao longo de seu texto, resolve tecer uma 137

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crítica sobre o trato dado pelo padrinho em relação ao problema da educação, e afirma: Que bom si o Padre Cícero em lugar de ter gasto tanto dinheiro em construir igrejas e mais igrejas, tivesse ao menos fundado uma escola para o seu povo, e em lugar de fazer política e torrentes de eloquências em seus discursos nos quais era um mestre, tivesse ensinado as primeiras letras aos meninos... (ODÍSIO, 2006, p. 61).

É preciso salientar, no entanto, que,

de

acordo com Floro

Bartolomeu, teriam existido em Juazeiro (1923) quatro escolas oficiais (número bem menor que aquele necessário para atender uma cidade que contava então com trinta mil habitantes): duas estaduais e duas municipais13. O padre, para suprir a necessidade de professores, “foi aproveitando as pessoas pobres que sabiam ler e escrever regularmente e dellas fazendo mestre-escolas”. (BARTOLOMEU, 2010, p. 94). Floro Bartolomeu acrescenta ainda: Essas escolas também são frequentadas por adultos, à noite, os quaes, para poderem ser eleitores, tomaram essa resolução. Posso invocar o testemunho do Sr. Daniel Carneiro, meu colega de bancada, que, assistindo à última eleição federal ali, viu não haver um eleitor votar sem assignar o nome. Si não têm boa calligraphia nem por isso fazem excepção, porquanto até lettrados não na possuem (BARTOLOMEU, 2010, p. 95).

13 Membro da comissão incumbida pelo Governo Federal de inspecionar as Obras do Nordeste, o Dr. Paulo de Moraes e Barros teria criticado duramente a cidade de Juazeiro do Norte. Floro Bartolomeu, insatisfeito, resolveu escrever um “Depoimento para a História”, com o objetivo de provar que as afirmações feitas por Moraes e Barros eram falsas.

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Pelo texto do deputado, é possível perceber que haveria alguma pressão para que os eleitores aprendessem ao menos a assinar o nome, mesmo que com dificuldade. Por fim, ele acrescenta alguns dados sobre as crianças que frequentavam essas escolas, afirmando que elas compareciam sem fardamento e nas horas de folga do serviço, o que confirma a existência de trabalho infantil em larga escala, fato também relatado por Agostinho Odísio: Continuamente vê-se nas ruas meninos e meninas esfar[r]apados, quasi nus, só cobertos de trapos immundos (…) carregando na cabeça feixes de lenha, balaios de fructas e toda qualidade de generos, andando o dia inteiro (...) oferecendo de porta em porta as suas mercadorias a venda, havendo entre eles criancinhas pequenas de cinco a seis anos ao máximo (ODÍSIO, 2006, p. s/n).

Mais adiante, Agostinho Odísio explica que boa parte dessas crianças não conhecera o pai, sendo sustentada apenas pela mãe, o que agravava a situação de extrema pobreza. Sobre o tema, Odísio afirma que as mulheres com filhos e sem maridos são comuns, (…) encontrando-se uma delas numa casa sim e outra também; muitos fatores são a causa deste facto; a miseria, indo o marido a procura de trabalho em outras zonas, as seccas, as revoluções, e mais que tudo a ignorancia; porem, apesar de ter tantas mulheres em disponibilidade, raro é aquella que cae em falta, porque aqui o povo desculpa e acha natural ser assassino, cangaceiro, ladrão, mas não aceitam ter em família uma “femea cadela” (ODÍSIO, 2006, p. 105).

Dessa maneira, o escultor esclarece o fenômeno de tais crianças sem pais. Elas eram, geralmente, filhas de mães viúvas ou separadas de 139

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seus maridos pelas contingências da vida, mas raramente seriam filhas de mães solteiras. É possível perceber o cuidado com a moralidade também num trecho do diário de Odísio em que ele afirma: A generalidade do povo não bebe álcool; não me refiro a cerveja, a qual tem preço proibitivo e não é vendida gelada, pois uma garrafa de prateleira custa três mil réis; falo da ‘branca’ aqui chamada ‘água ardente’, que, apesar de ser barata e BOA, não tem adeptos; nunca vi um bêbado, e pode-se afirmar que poucos ou quase ninguém ‘toma’ (...) (ODÍSIO, 2006, p. 105).

Apesar de ressaltar esses aspectos positivos da cidade, Odísio não deixa de se alarmar com grandes problemas urbanos que, até hoje, povoam Juazeiro do Norte: A higiente é pois palavra morta; existe é verdade a “Instituição Rockfeller” com seus impregados mata mosquitos que todas semanas visitam as casas procurando destruir as aguas paradas e focos de mosquitos, mas o que vale? Numa só sarjeta aonde se empoçam as águas que saem das casas destrói o trabalho de todos os mata mosquitos; e as sarjetas são muitas e com águas paradas dum fedor insuportavel na cidade toda (…) (ODÍSIO, 2006, p. 54).

Essa narrativa contém alguma atualidade. Em Juazeiro do Norte, as condições de higiene ainda são precárias até mesmo no Centro da cidade. A periferia vive numerosos problemas. As sarjetas mencionadas ainda prosperam e, apesar de terem se livrado da malária, os habitantes de Juazeiro hoje convivem com os mosquitos da dengue.

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Considerações Finais Será impossível apresentar neste artigo toda a riqueza do caderno de memórias de Agostinho Odísio e problematizar cada um dos temas discutidos por ele. Seu texto bem-humorado e repleto de causos traz uma leitura agradável e fluida sem perder a densidade e, por vezes, o caráter de denúncia. Talvez seja interessante terminar este trabalho com o sonho de Agostinho Odísio de que Juazeiro do Norte se tornasse uma cidade maior e melhor: (…) com Padre Cícero morto, desaparecido o porque das visitas dos romeiros ao lugar, a cidade terá que forçosamente tomar outro aspecto e o povo outro rumo; o[u] Juazeiro progride tornando-se cidade operosa, culta e progressista ou fatalmente retrocederá ficando Ítaca do sertão nordestino (ODÍSIO, 2006, p. /n).

A partir dessas linhas, possível levantar uma reflexão final: a cidade continuou a crescer, a receber romeiros, a cultuar o Padre Cícero. Mas teria se desenvolvido o bastante? Aparentemente, tal desenvolvimento não acompanhou plenamente o crescimento da cidade. Não é possível afirmar que Juazeiro do Norte retrocedeu, mas ainda falta muito para que ela se torne a cidade “culta e progressista” almejada por Agostinho Odísio.

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Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/oliveira-rosa-meire-diarios-publicosmundos-privados.pdf. Acesso em 05 de outubro de 2010.

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Artigo submetido em: 25/06/2013 Artigo aprovado para publicação: 05/10/2014

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Joselina da Silva2 e Reginaldo Ferreira Domingos3

Resumo O final da década de setenta e o início da de oitenta do século passado testemunharam, no Candomblé juazeirense, perseguições às religiões de matriz africana e aos seus praticantes, fato que contribuiu para o encerramento de algumas casas e o êxodo de vários sacerdotes e sacerdotisas. Tais atitudes repressivas fizeram com que nos anos noventa houvesse, por parte dos líderes religiosos, uma autoproteção e também certa proteção de seus espaços de cultos, evitando visibilidade. Essas atitudes permaneceram até pelo menos o ano de 2008. Esses espaços religiosos sempre foram vistos com olhares racistas, segregacionistas para com seus praticantes. Nos últimos quatro anos, vem ocorrendo um maior surgimento de terreiros de 1 Esta pesquisa se tornou possível graças à honrosa colaboração de vários dos seguidores de Candomblé da cidade de Juazeiro do Norte, entre eles Inácio Leite, conhecido como Pai Bira, Mãe Alice de Freitas e Pai Miguel, que são algumas das autoridades religiosas da cidade. Agradecemos também ao iniciado Antonio Júnior Sarmento e aos adeptos Karla Jaqueline e Diego César. Estes dois últimos – representantes do movimento negro local – têm sido incansáveis no apoio à construção das marchas pela liberdade religiosa. 2 Possui doutorado (2005) e mestrado (2001) em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi Professora Adjunta da Universidade Federal do Cariri, atualmente é docente da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Email: [email protected] 3 Graduado em História (2005) e especialista em História e Sociologia (2007) pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Mestre (2011) e doutorando em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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Candomblé na cidade. Dessa forma, objetivamos construir um levantamento para que se possa ilustrar a quantidade e os locais em que estão situados esses espaços ritualísticos. Para tanto, se faz necessária a compreensão acerca do contexto que tem permitido às religiões de matriz africana se afirmarem nesses últimos anos. Neste artigo, abordaremos apenas as casas de Candomblé. Esta é uma pesquisa que está sendo desenvolvida em dois âmbitos: na FACED (Faculdade de Educação), da UFC, como trabalho de doutoramento o qual pretende investigar – por uma perspectiva histórica e filosófica – a presença das religiões de base africana no interior caririense. O segundo, no N’BLAC (Núcleo Brasileiro, Latino-Americano e Caribenho de Estudos em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais), da Universidade Federal do Cariri. Palavras-chave: cultura negra, religiões de matriz africana, intolerância religiosa.

Abstract The end of the seventies and the early eighties of the last century witnessed in Juazeiro do Norte´s Candomblé, persecution of religions of African origin and its practitioners, which contributed to the closure of some houses and the exodus of many high-priests and priestesses. Such repressive attitudes have meant that in the nineties there was, by religious leaders, one self-protection and also some protection of its space services, avoiding visibility. These attitudes remained until at least 2008. These religious spaces were always seen with racist eyes, that used to segregate those who lived and transited there. In the last four years, there has been a greater appearance of Candomblé in the city. Thus, we tried to build a survey so you can illustrate the number of “terreiros” and where they are located. Therefore, it is necessary to understanding the context that has allowed the religions of African origin assert themselves in recent years. In this article, we will discuss only the houses of Candomblé. This is a research being developed in two areas: in Faculty of Education of the Universidade Federal do Ceará (UFC), as doctoral work which aims to investigate - by a historical and philosophical perspective - the presence of African-based religions in Cariri region. The second, in N’BLAC (Brazilian Center, Latin American and Caribbean Studies in Race Relations, Gender and Social Movements), in Universidade Federal do Cariri (UFCA). Key words: black culture, religions of African origin, religious intolerance.

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Introdução - Cultura negra e religião de base africana no Cariri cearense Este texto objetiva colaborar com a construção de um levantamento sobre o número de espaços ritualísticos voltados ao Candomblé na cidade de Juazeiro do Norte e de como seus seguidores vêm se organizando para fazer frente às perseguições contra eles perpetradas. Valemo-nos de entrevistas com líderes religiosos e ativistas dos movimentos negros. Analisamos também os prospectos de divulgação das caminhadas contra a intolerância religiosa organizadas naquela cidade. Vimos nesses referenciais documentos nos quais a expressão de denúncia e reação pode ser mais bem detectada. O final da década de setenta e o início de oitenta do século passado testemunharam perseguições às religiões de matriz africana e aos seus praticantes no Candomblé juazeirense, fato que contribuiu para o encerramento de algumas casas e o êxodo de vários sacerdotes e sacerdotisas. Tais atitudes repressivas fizeram com que nos anos noventa houvesse, por parte dos líderes religiosos, uma autoproteção e também a proteção dos seus espaços de cultos, evitando visibilidade. Essas atitudes permaneceram até pelo menos o ano de 2008. Esses espaços religiosos sempre foram alvo dos olhares racistas, segregacionistas para com seus praticantes. Nos últimos quatro anos, vem ocorrendo um maior surgimento de terreiros de Candomblé na cidade4. Diante disso, pretendemos estimular a discussão para que se possa compreender a razão desse 4

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Esta pesquisa foi realizada entre 2010 e 2013. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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crescimento. Paralelamente, uma das razões da existência das caminhadas organizadas pelos seguidores das religiões de matriz africana deve-se à maior organização dos fiéis e seguidores. A cidade de Juazeiro do Norte tem sido carregada do “mito” brasileiro e cearense, dos séculos XIX e XX, de um Brasil miscigenado sem negro e consequentemente sem racismo. É muito frequente ouvir que “no Ceará não tem negro”, frase que traz uma carga de ironia e marca de um equívoco histórico (CUNHA Jr., 1997; FUNES, 2004). Esta ideia subsidiada pela crença de que a escravidão teria sido pouco significativa compõe uma lógica incoerente e perversa, uma vez que, assim sendo, só é possível associar o negro à escravidão criminosa. Logo, acredita-se que no território cearense não houve negros porque a escravidão não existiu ou foi um escravismo relativamente pequeno com relação a outros estados brasileiros (CUNHA Jr., 2011; FUNES, 2004). É possível inferir tal afirmativa quando averiguamos os estudos realizados por Funes. O autor apresenta a sua tese afirmando que “na medida em que as fazendas vão sendo estabelecidas ao longo dos rios, os negros também foram ocupando estes espaços, não só como cativos, mas como trabalhadores livres, como proprietários” (FUNES, 2004, p. 104). O aumento demográfico nas terras cearenses e no Cariri traz esses africanos que, em suas bagagens, conduzem manifestações culturais e religiosas. É difícil aceitar a afirmação de que não há cultura e características negras na cidade, pois essa negritude se confirma pelas reminiscências arraigadas hoje, as quais vieram do período colonial (CUNHA Jr., 1997; CUNHA Jr. 2011; FUNES, 2004; NUNES, 2007). De acordo com os 148

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estudos de Nunes (2007), na região se encontram vários vestígios da presença negra. Os Reisados, as Congadas, a Dança do Coco, a Dança de São Gonçalo, os terreiros de Umbandas, Maneiro Pau, as Irmandades Católicas dos Homens Pretos, entre outras manifestações, são provas da existência de afrodescendentes nas terras caririenses. No trabalho que se dedicou a estudar os Reisados do Juazeiro do Norte, Nunes (2007) demonstra que a alta representação demográfica de população negra na região contribuiu para a continuidade e a resistência dos afro-brasileiros no Ceará. A existência destes hoje é expressiva na cidade e é constatada pela presença de várias formas culturais, entre as quais os cultos afro-brasileiros. Pode-se, dessa forma, conjecturar sobre os princípios do Candomblé na cidade de Juazeiro do Norte tendo em vista o grau de sua relevância, uma vez que é também na religião que os negros africanos e os afrodescendentes encontram seus alentos, sua segurança, reproduzem seu mundo e refazem a África. (OLIVEIRA, 2006; OLIVEIRA, 2007; LIGIÉRE, 1993). Em se tratando de práticas religiosas de matriz africana, podemos fazer algumas considerações gerais, porque, além da expiação sofrida à época da escravidão criminosa, ainda permanecem na sociedade ações que degradam a imagem dos afrodescendentes e sua cultura. Líderes evangélicos fanáticos e cheios de ações preconceituosas dizem que a cultura negra é coisa do diabo e é desprezível para uma sociedade que tem como fundamento de vida o cristianismo (JESUS, 2003). O que tem sido pregado atualmente é resultado de um conceito racista quanto às religiões de matriz africana e os elementos da cultura negra. Assim como 149

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diz Cunha, “a Umbanda e o Candomblé têm sido estigmatizados como coisa do demônio.” (CUNHA Jr., 2007, p. 5). Ações verbais depreciativas são constantes para com os praticantes. Tais atitudes vêm mais freqüência dos evangélicos pentecostais e dos neopentecostais. Infelizmente, em vários setores da sociedade, estas são vistas como atitudes comuns, não sendo consideradas como práticas de racismo (JESUS, 2003), realidade essa repleta de preconceito racial, em que o fato de participar de práticas religiosas afrodescendentes é motivo para “chacotas”, apelidos pejorativos e que ainda faz com que haja a negação por parte de alguns seguidores. Conversas com as lideranças femininas do Candomblé – no início desta investigação – demonstraram que havia pouca receptividade da sociedade juazeirense para com as casas de culto de matriz africana, e evitando dar maior ênfase ao fato, algumas de nossas entrevistadas relatassem a presença de policiais – em certas ocasiões – propondose a mandar encerrar os momentos de função religiosa, diante da argumentação de estarem desrespeitando as leis relativas ao silêncio. Outra informação nessa ordem se referia a momentos em que eram interrompidas oferendas em áreas públicas pela mesma força policial. Entretanto, mesmo diante desse contexto de discriminação – que é um modelo que guarda muita semelhança em âmbito nacional – para com as pessoas praticantes das religiões de matriz africana, o Cariri nos últimos anos vem reescrevendo sua própria história, de forma a permitir a visibilidade dos praticantes do Candomblé e a sua imersão no seio da sociedade. Podemos dizer que nos últimos quatro anos 150

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tem ocorrido um processo de afirmação e autoidentificação daqueles pertencentes aos cultos religiosos de raiz africana. O quadro a seguir pode ser uma das pistas que os ajudem a perceber o aumento em número de casas de seguidores do Candomblé na cidade5.

Responsável

Bairro

Mameto Maleozaze e Tata Ndenge Samuel

Limoeiro

Pai Bira de Omolu

Triângulo

Mãe Cicélia

Aeroporto

Isaac de logun Edé e Miguel de Oiyá

Aeroporto

Jacinta

João Cabral

João Paulo

João Cabral

Junior de Iansã 

João Cabral

Pai Francisco ou Jagumar de Xangô

João Cabral

Mãe Maria e Pai Cícero ou Pita

João Cabral

Francisco Cobra

Frei Damião

Neide de Oba

Frei Damião

Mãe Deleuy de Oxum

Bairro Salesianos

Esse total de casas está distribuído em seis diferentes bairros, sendo que em vários deles há de duas a três casas. Observamos, então, 5 Reiteramos que este texto se refere apenas às casas de Candomblé em Juazeiro. Quanto às casas de Umbanda e outras manifestações de matriz africanas, na cidade e na região, estamos em momento de pesquisa de campo e coleta dos dados.

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um número expressivo, se pensarmos que Juazeiro tem sido vista – da forma apontada anteriormente – como uma cidade apenas de manifestação cristã católica. Isso revela um processo de resistência por parte da religiosidade e de seus praticantes. Podemos afirmar que os manifestos realizados pelo povo de santo têm contribuído para uma reorganização da sociedade local, para a configuração dos terreiros e, também, para as práticas sociais dos iniciados nas religiões de matriz africana. Tais afirmativas são possíveis quando observamos, em conversa com o secretário da Associação Caririense Espírita e Umbanda (ACEU)6, durante pesquisa realizada no ano de 2010 no Programa de Pós-Graduação em Educação para elaboração de dissertação de Mestrado, que na região do Cariri, especificamente no centro Crajubar (Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha), havia registradas em documentos quatorze casas de Candomblé. Tais estatísticas nos permitem ter uma ideia da dimensão da presença e resistência da população afro-brasileira quando se trata da religiosidade. De acordo com o nosso informante, no ano de 2010 havia oito casas de Candomblé na cidade de Juazeiro, fato que muda quando observamos o quadro acima, em que já podemos afirmar a existência de pelo menos doze. Em sua fala, ele tem a preocupação de evidenciar que esses são números de cadastros na ACEU, e que tais dados não determinam de forma precisa a quantidade de terreiros de Umbandas e Candomblés na cidade. Porém, a partir das análises dessas informações, é plausível julgar que a presença dos cultos de origem africana é mantida como locus de resistência e propagação da cultura e de religião africana 6

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ACEU foi criada em 18 de abril de 1988. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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e afrodescendente. Ainda hoje podemos afirmar a existência de ações de discriminação para com as pessoas que praticam religiões de origem africana, porém em menor proporção quando visto de forma comparativa, ao longo dos últimos quarenta anos, quando líderes religiosos se viram obrigados a abandonar a cidade. O exemplo dessa mudança são as caminhadas contra a intolerância religiosa que vêm ocorrendo desde o ano de 2010. Logo, podemos entender que as mesmas são prova cabal dessa alteração social que, com as devidas proporções, tem acontecido no intuito de combater o racismo.

O movimento sai às ruas: Um olhar sobre as marchas e/ou caminhadas “Pelo direito de ter fé”7

As teorias, bem como os paradigmas, que se propõem a explicar os movimentos sociais são múltiplos. Variam em relação à escola de pensamento que os abriga, à influência do momento histórico em que estão sendo produzidos e ao campo analítico a partir do qual são observados. Momentos histórico-sociais diferentes vão contribuir diretamente para a constituição dos Novos Movimentos Sociais (NMS) (GOHN, 1997; SANTOS, 1999). A mobilização é o momento em que o movimento vem a público para pressionar a sociedade e mostrar sua força e suas potencialidades. Ela se dá em torno de uma demanda específica voltada para o presente, com objetivos definidos (MELLUCI, 7 Essa é a frase que abre o cartaz de divulgação da quarta caminhada religiosa ocorrida, em Juazeiro do Norte, no dia 21 de 2013.

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1996). O movimento negro brasileiro, em suas diferentes fases, tem como característica principal a mobilização. A literatura específica pontua inúmeras atividades de rua. A Frente Negra Brasileira dos anos trinta foi um dos marcos. Reuniões a céu aberto passaram a congregar um número cada vez maior de mulheres e homens negros, na Praça da Sé, em São Paulo. Outro marcante momento de mobilização foi a fundação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCDR) em São Paulo, em junho de 1978. Afro-brasileiros provenientes das mais distantes cidades do país congregaram-se nas escadarias do Teatro Municipal (CARDOSO, 2002; HANCHARD, 1994). Em 1988, durante os cem anos de assinatura da Lei Áurea, diversas atividades de rua – incluindo várias marchas – foram realizadas pelo território nacional (CONTINS, 1988). Pela repercussão alcançada na mídia, aquelas organizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro tomaram maior impacto. A mobilização na capital Carioca foi intitulada “Marcha contra a farsa da Abolição. 1888 – 1988. Nada mudou, vamos mudar”. Diferentes mobilizações públicas marcaram a passagem dos trezentos anos de morte do líder Zumbi dos Palmares, em 1995. Denominada Marcha Zumbi dos Palmares – contra o racismo, pela cidadania e pela vida, a atividade de referência ocorreu em Brasília, no dia 20 de novembro. Contou com cerca de trinta mil ativistas provenientes das cinco regiões do país8. A marcha da capital federal , que não foi a única, foi revestida de simbolismo pela abrangência dos temas envolvidos, assim como pelo fato de haver sido recebida pelo 8

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Fonte: www.palmares.gov.br/html/materiasi/marcha Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Passados dez anos, surgiu a Marcha Zumbi + 10, também no Distrito Federal, em novembro de 2005 (uma no dia 16 e outra no dia 22). Um dos objetivos da marcha – em ambas as datas – era levar o Senado Federal a assinar o Estatuto Nacional da Igualdade Racial. Cerca de 170 entidades participaram do ato público9. Parte da delegação brasileira presente na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Discriminações Correlatas (Durban/ 2001) – constituída pelo movimento negro – levou para as ruas de Durban ativistas provenientes de inúmeras cidades brasileiras, respaldados por dezenas de outros (as) das Américas e do Caribe. Transformaram as vias públicas em tribuna, dando eco às denuncias e demandas de direitos. Neste contexto, as marchas contra a intolerância religiosa podem ser vistas como mais uma das diferentes vertentes organizativas, a partir da via pública, já tradicionais, no fazer dos ativistas.

Caminhadas no interior caririense: Novas ações e novos espaços conquistados Prandi10 discorre sobre a origem da religião de matriz africana e sobre sua necessidade de reestruturação e readaptação, no decorrer dos séculos, instigado pela própria conjuntura sociocultural. Sodré (2006), por sua vez, segue sua análise dizendo que a afirmação do negro não se deu de forma pacata. O negro soteropolitano, por exemplo, não aceitou 9

Fonte: http://marchazumbimais10.blogspot.com

10 www.okitalande.com.br

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pacificamente as ordens de uma classe dominante capitalista. Em todo o país a resistência se dará – de maneira diferente – em acordo e em sincronia com a sua conjuntura, cada qual com suas peculiaridades. Assim, afirmamos que variadas ações foram tomadas pelas religiões de matrizes africanas na tentativa de se manterem vivas em meio às mudanças conjunturais. Não podemos esquecer que, ao mesmo tempo em que a religião sofre influências da cultura, da sociedade, da política e da economia, ela atua diretamente sobre estas. O Candomblé, como força expressiva, mesmo se dando no âmbito religioso, atingirá os mais diversos campos sociais. As ações realizadas pelos candomblecistas da cidade vão além do espaço religioso, o que nos dá elementos para considerar que o ato de resistir por parte dos terreiros ultrapassa as fronteiras dos lugares de cultos, chegando às ruas. Os frequentadores levam as raízes afrodescendentes ao ambiente público. O exemplo mais concreto desse rompimento e de resistência são as Caminhadas Contra a Intolerância Religiosa ou pela Liberdade Religiosa, que têm ocorrido nos últimos quatro anos. As manifestações ocorreram sempre nos dias 21 de Janeiro11 de cada ano e contaram com a participação e a organização do terreiro Omin Dandereci Mutaleji (casa sob a liderança da mãe Maria e do GRUNEC12) e do Movimento Negro. A primeira Caminhada de Combate à Intolerância Religiosa ocorreu em 2010. O sucesso desta levou à segunda, no ano 11

Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.

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Grupo de Valorização Negra do Cariri.

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seguinte, com o nome um pouco modificado: Segunda Caminhada Pela Paz e Contra a Intolerância Religiosa. Nos anos posteriores, a terceira e a quarta foram denominadas Caminhada Pela Liberdade Religiosa. Nestes eventos públicos, sempre estiveram presentes ativistas do movimento negro, acadêmicos, professores universitários, praticantes, frequentadores do Candomblé juazeirense e de outras religiões. Portanto, podemos analisar a frase que abre este tópico – “Pelo direito de ter fé” –, que foi a principal elaboração repetida e anunciada ao longo das quatro marchas. As caminhadas, em Juazeiro, caracterizam-se por serem organizadas por uma das casas de Candomblé da cidade, em parceria com o GRUNEC, como informava o panfleto de anúncio da caminhada de 2011: O Grupo de Valorização Negra do Cariri – GRUNEC – e a Casa de Candomblé Ile Axé Omindandereci e Mutalegi convidam a sociedade caririense para participar conosco neste dia 21 de Janeiro de 2011 da II Caminhada pela Paz Contra a Intolerância Religiosa - Somos Todos Filhos de Deus, a partir das 16h, saindo da Praça da Prefeitura com sentido Praça Padre Cícero.

Portanto, no que se refere à ocupação do espaço público, nos deparamos com a reflexão da simbologia das representações que os espaços urbanos têm em suas especialidades locais. Deste modo, na geografia social da cidade de Juazeiro, os pontos de início e fim da caminhada têm em si toda uma representação social. A Prefeitura, como na maioria das cidades brasileiras, representa a organização do poder político local e em Juazeiro não poderia ser 157

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diferente. Todavia, a prefeitura é o locus de encontro para o início da caminhada. No decorrer do percurso temos, entre um e outro ponto, cerca de cinco quarteirões. A rua coberta pelos integrantes da marcha é a artéria principal de escoamento de tráfego, entrando em direção ao centro comercial da cidade. A Rua São Pedro é caminho percorrido. O término do cortejo dá-se num dos mais importantes e representativos setores da cidade: a Praça Padre Cícero, localizada no centro financeiro e cultural da cidade. A concentração tem sido estabelecida para o final da tarde. Com as delongas naturais de uma atividade desta monta, podemos inferir que entre as 15h, horário de concentração, e 17h30min, horário, de encerramento do comércio, o grupo de manifestantes se desloca, mediante os olhares, certamente perplexos dos que saem do trabalho. Caso desejem, podem se somar ao grupo. Os espectadores são das mais variadas camadas sociais e religiões. Uns participam de forma tímida nas calçadas das lojas. Alguns iniciados se resguardam e preferem não revelar sua participação. Ao mesmo tempo, diversos ativistas dos movimentos sociais, praticantes ou não do Candomblé, caminham integralmente, demonstrando não temer represálias. Ainda num olhar sobre o panfleto, podemos nos deter sobre a seguinte formulação: a Constituição Brasileira de 1988 garante a liberdade religiosa, pois prevê no seu artigo Art. 5º, inciso VI, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias” (BRASIL, 1988). 158

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Neste momento, o panfleto faz alusão direta à Carta Magna e, portanto, reputa aos seguidores do Candomblé o seu direito a uma cidadania religiosa a ser exercida no interior de cada casa de culto. Percebe-se uma clara alusão aos fatos já rapidamente relatados aqui de possíveis interrupções por parte da força policial dos momentos de celebrações religiosas. Mais adiante, o panfleto que estamos analisando amplia a reflexão, recorre a dois documentos mais atuais e assim se refere: Além de outras legislações internas, a temática faz parte do Programa Nacional de Direitos Humanos, sendo que o Brasil é signatário da Declaração de Durban, de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, no ano de 2001 (DOMINGOS, DA SILVA, 2012).

Dessa forma, nos faz entender a importância do ato realizado pelos integrantes das religiões de origem africana. A marcha permite concretizar o que é negado pela ação legal. A omissão por parte do Estado em relação às questões sociais e neste caso, as raciais, leva às carências de grupos e, consequentemente, induz à invocação do direito e ao exercício da cidadania. Logo, o movimento, neste caso a caminhada, vai se caracterizando como entidade propositiva, de resistência e luta. Participação e controle constituem a dupla dimensão da ação coletiva. Os aparatos institucionais são pontos cruciais do processo de democratização e esta, por sua vez, leva à instrumentalização da sociedade na busca de direitos (MELUCCI, 2001; SOUSA, 2006; GOHN, 2003; GOHN, 2006). O movimento negro brasileiro, ao longo de sua história, tem diversos e representativos momentos em que utiliza os panfletos de 159

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divulgação, como púlpito a partir do qual suas reflexões e denúncias são emanadas. Assim, esses pequenos documentos ultrapassam a função de suporte para anúncio de uma atividade a ser realizada e adquirem o objetivo de formar e/ou informar o grupo que integra a atividade em questão, como também a sociedade, no geral. Dentro desta ordem, podemos colocar os panfletos de divulgação da marcha do ano de 2011, brevemente analisado aqui. A história do Brasil é repleta desses exemplos de intolerância. Por todo o período colonial e do Império, apenas uma religião era reconhecida pelo Estado. Aquele que professasse outra forma de fé sofria perseguições e só a muito custo conseguia manter sua religiosidade [...] Mesmo no período republicano, as perseguições perduraram, durante as quatro primeiras décadas do sec. XX. Foi intensa a invasão aos terreiros de Candomblé [...] Nas últimas décadas, é notória a ação de alguns grupos religiosos que, se valendo do poder econômico, usam a mídia para demonizar as religiões de matriz africana (DOMINGOS; DA SILVA, 2012).

Vemos, então, um exemplo de uma aula de história que se propõe a contextualizar o momento atual à luz de uma análise que remete, desde o passado, aos fatos ocorridos na contemporaneidade, no que se refere às perseguições sofridas pelos adeptos, o que, por conseguinte justificaria a realização da atividade pelas ruas da cidade. Infelizmente, um ordenamento jurídico não é o bastante para modificar determinados preconceitos de uma sociedade. Não basta a lei garantir a liberdade religiosa; se faz necessário que os seus cidadãos e cidadãs entendam o quanto é importante empreender ações de conscientização, as quais de fato disseminem o respeito entre os praticantes de

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diferentes religiões (DOMINGOS; DA SILVA, 2012).

Assim, as ações concretizadas nas ruas da cidade têm revelado a presença e permitido maior inserção social, o respeito para com os praticantes, bem como com seu exercício do sagrado. Outrossim, embora havendo uma maior abertura de espaços na sociedade local – no que tange à religiosidade de matriz africana –, ainda é possível detectar atitudes racistas e de retaliação. Exemplificamos com o presenciado pelos participantes da quarta caminhada, no ano de 2013, em que houve uma atitude desrespeitosa por parte de um sacerdote, diácono da Igreja Católica, da cidade de Juazeiro. Com gestos considerados obscenos, ergueu o dedo médio de sua mão para as pessoas presentes. Seguindo nesta mesma linha de raciocínio, de acordo com as falas de nossos interlocutores, vemos, então, que permanecem em vigor as ações de cunho racista na sociedade quando se trata das religiões de matriz africana. Refletir sobre a presença da religiosidade na cidade se faz necessário quando nos deparamos com atitudes aviltantes que ainda estão presentes nos dias de hoje.

Pensares conclusivos O Candomblé de Juazeiro do Norte, nos seus ritos sagrados, tem conseguido se manter, também, como fonte de resistência, praticando ações que ultrapassam o âmbito do espaço sagrado chegando aos espaços públicos por meio de atos políticos concretizados na marcha contra a intolerância religiosa. A não efetivação dos objetivos almejados é fator atuante e acirrado da luta e da mobilização. O grupo participa de eventos, expondo 161

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seus objetivos e suas ideologias, na busca por melhores condições para os praticantes do Candomblé na cidade de Juazeiro do Norte. Salientamos que este momento de mudança está ocorrendo em razão do processo de luta política a qual se concretiza por meio de um ato de cidadania. A Caminhada Contra a Intolerância Religiosa ou Caminhada Pela Liberdade Religiosa vem trazendo para a sociedade local a possibilidade das visibilidade aos praticantes de Candomblé e Umbanda e, por conseguinte, possibilitando um novo contexto históricosocial que instiga a sociedade local a perceber que há a necessidade de dialogar acerca do respeito com o outro. É importante destacar que ainda existe uma resistência dos não candomblecistas e umbandistas, ainda que no ato da caminhada esses contrários fiquem na posição de curiosos e de espectadores, porém essa ação de resistir não impede ou bloqueia o desejo e a autoestima de parte dos praticantes quando se trata de realizar a caminhada, a qual já está na sua quarta edição. O processo de resistência afrodescendente é garantido pelas ações “concreto-simbólicas” do povo de santo, nas roças (assim chamadas às casas de culto, pelos candomblecistas) juazeirenses, permitindonos concluir que essa luta assegura a propagação das práticas e da resistência dessa religiosidade no interior caririense. Os terreiros, com suas práticas religiosas e com sua presença, asseguram a participação e o pertencimento à região Sul cearense.

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O direito à saúde:

uma alternativa de combate ao racismo Otilia Aparecida Silva Souza1 e Hayane Mateus Silva Gomes2

Resumo Este trabalho procura investigar como o Estatuto da Igualdade Racial, especialmente no item relacionado à saúde, está sendo apreendido e utilizado pelos diversos segmentos que trabalham com a saúde pública e pela população afrodescendente que se utiliza dela nos municípios de Crato e Juazeiro do Norte, no Ceará. Ele é parte de uma pesquisa que está sendo executada desde março de 2011 através de um projeto de iniciação científica (PIBIC/URCA) da Universidade Regional do Cariri e o presente texto é um recorte do referido trabalho que tem como objetivo principal analisar a forma como essas instituições trabalham as questões voltadas à saúde das pessoas negras e como esse grupo concebe o atendimento que lhe é destinado nos serviços públicos de saúde. Palavras-chave: ações afirmativas, saúde, Estatuto da Igualdade Racial.

Abstract This study investigates how the Racial Equality Statute, particularly in the healthrelated item, is being seized and used by the various segments that work with public health and the public african descent who uses it in the municipalities of Crato and Juazeiro - Ceará. It is part of a research which being performed from March 2011 through an undergraduate research project (PIBIC / URCA) from Cariri Regional 1 Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (URCA), Doutoranda em Artes (UFMG/URCA). 2

Mestranda em Sociologia (UFPB). Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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University and this text is an excerpt of that study that has as main objective to analyze how these institutions work on health issues concerning to black people and how this group conceives the care which is intended for them in public health services. Keywords: affirmative action, health, Racial Equality Statute.

Introdução Nos últimos anos o governo brasileiro vem trabalhando com o intuito de implementar políticas públicas em favor de grupos historicamente discriminados através da realização de projetos que impulsionam o crescimento social e favorecem as manifestações culturais. Essa atitude se constitui como ‘uma resposta’ do Estado às desigualdades sociais e étnicas impostas pelo poder político e econômico que, ao longo dos séculos, tanto comprometeu o desenvolvimento da sociedade brasileira. Concebidas atualmente como Ações Afirmativas, essas iniciativas contribuem para a valorização social e a inserção de pessoas ou grupos discriminados no mercado de trabalho. Elas podem ser desenvolvidas pelo poder público ou privado e fazem parte do Programa Nacional de Ações Afirmativas (instituído pelo Governo Federal em 13 de maio de 2002) que tem como meta o combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional e a execução de medidas que favoreçam a igualdade e o acesso a bens fundamentais, como a educação e o emprego. De acordo com Sarmento (apud D’ANGELO, 2010), as políticas de Ações Afirmativas podem ser definidas como: 166

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medidas públicas ou privadas, de caráter coercitivo ou não, que visam promover a igualdade substancial, através da discriminação positiva de pessoas integrantes de grupos que estejam em situação desfavorável, e que sejam vítimas de discriminação e estigma social. Elas podem ter focos muito diversificados, como as mulheres, os portadores de deficiência, os indígenas ou os afrodescendentes e incidir nos campos mais variados, como educação superior, acesso a empregos privados ou cargos públicos (p. 21).

É possível perceber que as ações afirmativas se baseiam na concepção de igualdade, contrariando uma das principais características da sociedade brasileira que é a desigualdade social. Portanto, uma análise mais atenta nos faz refletir sobre a ambiguidade que esse tema sugere e nos impulsiona a procurar compreender como a questão da igualdade de direitos é tratada historicamente pelo Estado brasileiro através das Constituições, já que a desigualdade social sempre esteve presente na história do país. Mas, apesar da ‘marca definitiva’ do racismo na sociedade brasileira, é preciso admitir que no Brasil as tentativas de propor medidas que amenizem ou diminuam o problema das desigualdades étnicas são antigas, muito embora os esforços para execução e aplicabilidade dessas leis sejam quase inexistentes. Observando as Constituições Federais outorgadas no país, percebemos que o tema da igualdade está sempre presente, muito embora ele seja abordado de forma bastante ambígua. Na Constituição de 1824 o direito à igualdade excluía a população negra escravizada. Mais tarde, a primeira Constituição promulgada após a proclamação da República, apesar de reafirmar a igualdade de todos 167

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perante a lei, restringia o direito ao voto apenas para pessoas alfabetizadas impedindo aos negros o acesso às urnas, além de proibir também o voto feminino. Nas Constituições seguintes o tema da igualdade apresentava avanços e retrocessos: em 1934 a Carta condena a discriminação racial, mas defende o ensino da eugenia. As Cartas de 1967 e 1969 estabelecem uma relação entre o direito à igualdade e a proibição (e punição) do preconceito racial. No entanto, apesar dessas Constituições abordarem o preconceito étnico como uma atitude passível de punição legal, as Leis tornaram-se ineficazes porque exigiam da vítima que elas provassem “o especial motivo de agir” e as manifestações de racismo foram associadas à contravenções penais, o que reduzia consideravelmente o número de condenações pela prática do racismo (MOURA, 2010). Finalmente, a Constituição de 1988 protege contra discriminações sociais e aborda o tema da igualdade, considerando a sua relação com a desigualdade ao propor como objetivo fundamental a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem distinção de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Mas é a partir da promulgação da Lei Nº. 7.716 em 1989 que o problema do racismo na sociedade brasileira é tratado de forma mais coerente, pois ela define e estabelece punições para “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (BARROS, 2009, p.10). Essa determinação se configura como um marco na história do tratamento jurídico do racismo no Brasil. Pela primeira vez, as manifestações de preconceito contra as pessoas negras são tratadas como crime inafiançável e imprescritível, tornando o acusado sujeito à pena de reclusão nos termos da lei.

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Finalmente, em 2010 é instituído o Estatuto da Igualdade Racial e a partir da sua publicação, a desigualdade social passa a vista como consequência do racismo. Proposto pela primeira vez no ano 2000 pelo então deputado Paulo Paim, este projeto de Lei vinha, desde então, tramitando no Congresso quando foi finalmente aprovado em 20 de julho de 2010 com o compromisso de entrar em vigor noventa dias após a data de sua publicação. O Estatuto da Igualdade Racial objetiva “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica” (BRASIL, 2010). Nesse sentido, o Estatuto insere o debate sobre o racismo em diversos aspectos da vida social porque estabelece disposições que tratam do direito à saúde, à educação, à cultura, ao lazer, à liberdade de crenças e manifestações religiosas, ao acesso a terra e à moradia adequada. Propõe medidas de inclusão e submete as práticas de racismo a um julgamento digno, favorecendo a construção de uma sociedade mais justa e menos desigual, quando determina no Art. 4º - Parágrafo único: Os programas de ação afirmativa constituir-seão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do país (BRASIL, 2010).

Através desse argumento o governo federal reconhece oficialmente que o racismo é um forte determinante da desigualdade, 169

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da exclusão ou da inclusão desqualificada e, consequentemente, da concentração de renda. O Estado brasileiro se compromete assim, a saldar uma ‘dívida histórica’ provocada pelas diversas formas de ‘etnocídios’ praticadas contra a vida dos afrodescendentes ao longo da história deste país. Este trabalho se constitui, portanto, numa tentativa de investigar como o Estatuto da Igualdade Racial está sendo apreendido e utilizado pelos diversos segmentos que trabalham com a saúde pública e pela população afrodescendente que se utiliza dela nos municípios de Crato e Juazeiro do Norte, no Ceará. Ele é parte de uma pesquisa que está sendo executada desde março de 2011 através de um projeto de iniciação científica (PIBIC/URCA) dessa IES e o presente texto é apenas um recorte do referido trabalho que tem como objetivo principal analisar a forma como essas instituições trabalham as questões voltadas à saúde das pessoas negras e como esse grupo concebe o atendimento que lhe é destinado nos serviços públicos de saúde. As instituições públicas de saúde pesquisadas foram: Centro de Diabetes e Hipertensão Teodorico Teles e o Centro de Especialidades (na cidade do Crato) e o Hospital e Maternidade São Lucas (em Juazeiro do Norte). Essas instituições foram escolhidas porque respondem a alguns critérios que foram estabelecidos previamente: o Centro de Diabetes e Hipertensão Teodorico Teles e o Hospital e Maternidade São Lucas (referência em neonatologia e obstetrícia na região metropolitana do Cariri) são unidades de saúde que tratam especificamente de doenças e agravos de maior prevalência na população negra, enquanto o Centro de Especialidades do Crato é uma unidade que abriga especialistas de

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áreas diversas, o que possibilita uma observação mais detalhada sobre as relações entre pacientes e funcionários. Mas para saber como instituições de saúde e a população afrodescendente desses municípios estão concebendo o Estatuto, é importante perceber inicialmente como a sociedade se concebe tanto em relação a sua origem étnica como em relação a sua percepção sobre os conceitos de saúde e doença para, em seguida, tratarmos de forma mais específica das questões voltadas à saúde dos afrodescendentes brasileiros. Assim será possível conhecer as várias possibilidades de aplicação do Estatuto, identificar os obstáculos na sua execução e saber como as pessoas negras estão se utilizando dele nas instituições de saúde.

A saúde e o racismo na sociedade brasileira A Organização Mundial de Saúde concebe a saúde como “[...] o estado de completo bem-estar físico, mental e social, não só a ausência de doença” (Obtido em http//portal.mec.gov.br. Acesso em 15/09/2012). Percebemos na definição da OMS que o conceito de saúde vai além da ‘ausência de doença’ e compreende também os aspectos econômicos e culturais da sociedade, pois reconhece que ‘o estado de completo bem-estar’ só é possível quando o indivíduo possui condições dignas de sobrevivência e quando o seu estado de saúde não é comprometido por problemas externos ao seu corpo. Fica claro então, que a saúde não pode ser estudada isoladamente, mas sim considerando todos os aspectos mencionados anteriormente, tendo em vista que esses fatores dizem respeito e são essenciais para o desenvolvimento de qualquer 171

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indivíduo. Portanto, neste trabalho, a saúde será analisada a partir da representação que o fenômeno possui no senso comum e da forma como as instituições de saúde concebem a ideia de um programa voltado essencialmente para a pessoa negra. Diferentemente de algumas culturas orientais, no mundo ocidental é comum o homem só ter consciência ou só perceber a importância da saúde a partir da sua ausência, ou seja, quando está doente. No seu dia a dia, ele dificilmente consegue pensá-la como algo que está relacionado a sua existência ou a sua inserção no mundo. Em geral, o homem não tem consciência da saúde quando está sadio. Não a vive como algo especial. Simplesmente vive e isto resulta em algo natural. A menção à saúde, como um estado, é ocasional e poucas vezes se preocupa em pensar porque está com saúde. Isto muda quando se ‘sente’ doente, quando é despertado para uma necessidade de procura de algo desconhecido (LESSA, 1986, p.03).

A saúde é assim considerada como condição natural e a sua ‘ausência’ só é sentida quando, finalmente, a pessoa se depara com uma situação desconhecida em relação ao seu bem-estar físico. É nesse momento que a compreensão sobre o processo saúde/doença se manifesta de forma mais ampla pois o homem começa a refletir sobre o que é ser sadio e o que é estar doente. Nessa reflexão ele passa a questionar causas, sintomas e tratamentos da doença; quer saber por que foi escolhido para adoecer – ou, mais diretamente, por que foi vítima daquela doença.

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Simultaneamente, ele inicia a sua busca pelas possibilidades de tratamento e a procura por um atendimento de qualidade - especialmente no setor público - passa a ser utilizada como um parâmetro para que ele compreenda qual o significado da saúde para a sociedade da qual faz parte e, consequentemente, qual a importância de ser sadio nessa sociedade. Portanto, apenas quando um indivíduo adoece e tem que recorrer a um tratamento através do serviço público de saúde é que as noções de cidadania e de igualdade são assimiladas e inseridas no seu cotidiano. Percebemos então que é a partir da ausência de bons serviços públicos de saúde que grande parte da população passa a ter consciência sobre os direitos que lhe assistem. No que diz respeito aos afrodescendentes, o acesso à saúde adquire outros obstáculos: a presença do racismo na sociedade brasileira, que torna a vida do negro mais difícil em todos os aspectos, e a falta de conhecimento por parte dos profissionais de saúde sobre noções de igualdade, sobre os direitos e a saúde da pessoa negra. Mas, em relação ao negro, o que ele pensa sobre a sua saúde e sobre o atendimento que lhe é destinado nas unidades públicas de saúde? Para responder a essas questões é necessário compreender como o negro brasileiro se vê, como se compreende enquanto categoria étnica que é parte integrante de uma sociedade intensamente miscigenada. Como sabemos, o problema do racismo na sociedade brasileira atingiu proporções gigantescas, comprometendo inclusive, a percepção 173

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do próprio negro sobre a sua condição de excluído. Nesse sentido, assumir-se como negro no Brasil se constitui um ‘ato de coragem’, pois significa admitir todo o histórico de exploração e exclusão social a que foram submetidas as pessoas dessa etnia. Além disso, o país construiu, através de um esforço tenaz e continuado, a falsa ideia de uma democracia racial que supõe a existência de uma harmonia entre negros e brancos e extrapola o âmbito da desigualdade étnica, procurando omitir e mascarar o ‘preconceito nosso de cada dia’. A falsa democracia racial é associada a uma negação total do negro como um indivíduo ‘normal’, capaz de ser inserido na sociedade e de desempenhar as mesmas funções do branco. Assim, assumir-se como negro é complicado, pois, associada a sua condição de negro, existe uma série de estigmas que foram atribuídos a ele desde a escravidão já que “a diferença de pigmentação da pele tornou-se um elemento distintivo da posição social” (VALENTE, 1987, p.17). Portanto, quanto mais claro o indivíduo, melhor o seu status social e melhores também serão a sua aceitação na sociedade e, consequentemente, as funções que lhe serão destinadas. O fato de os negros não assumirem a sua identidade étnica influi também na concepção que eles têm a respeito dos seus direitos enquanto membros de categorias historicamente marginalizadas, interferindo, portanto, na forma como se concebem como cidadãos brasileiros, detentores de direitos e deveres. Nesse sentido, é comum negros serem discriminados e não perceberem (ou não admitirem) que estão sendo maltratados devido à cor da sua pele. Esse fato interfere no processo de construção de uma sociedade menos racista e menos

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desigual pois, na medida em que a discriminação não é questionada, torna-se mais difícil romper com ela. Fica difícil também para a população afrodescendente se afirmar em uma sociedade que procura o tempo todo negar o seu caráter racista e quando nela existem negros que não querem ou até não sabem reconhecer que estão sendo vítimas de racismo. Assim, algumas questões relacionadas aos direitos conquistados pelos negros (na educação, na cultura, na saúde) permanecem desconhecidas pela maioria deles e, consequentemente, fica mais difícil colocá-las em prática. No entanto, o Estatuto da Igualdade Racial (Capítulo I - Art. 6º) é bem claro quando garante o direito à saúde dos negros e estabelece normas específicas para o seu atendimento no serviço público: “O direito à saúde da população negra será garantido pelo poder público mediante políticas universais, sociais e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e de outros agravos”. A garantia desses direitos é ainda reforçada quando o Estatuto (Capítulo I - Art. 6º- § 1º) acrescenta em seguida: O acesso universal e igualitário ao Sistema Único de Saúde (SUS) para promoção, proteção e recuperação da saúde da população negra será de responsabilidade dos órgãos e instituições públicas federais, estaduais, distritais e municipais, da administração direta e indireta (BRASIL, 2010).

Mas o que percebemos é que há desconhecimento (ou negação) dessa Lei por parte dos órgãos de saúde, já que na prática as pessoas negras são cotidianamente discriminadas nos serviços públicos. 175

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E, mesmo considerando o fato de o Estatuto ter sido promulgado apenas em julho de 2010, não podemos esquecer que desde a Constituição de 1988 existe uma determinação de propor a redução das desigualdades sociais a partir da promoção do bem de todos, sem distinção de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Assim, podemos concluir que há descumprimento da Lei, pois a sociedade brasileira não concebe, na prática, a ideia de que todos são iguais e continua manifestando atitudes racistas no atendimento aos negros. Esse argumento foi confirmado no II Seminário Nacional da Saúde da População Negra (Rio de Janeiro – 2006), quando o então Ministro da Saúde, Agenor Álvares, afirmou que há diferença entre o atendimento ofertado à pessoa negra e aquele ofertado à pessoa não negra. Com essa afirmação, o governo brasileiro admite que é destinado ao negro um tratamento desigual e propõe medidas para a melhoria das condições de saúde dessa população (BOLETIM CRI, 2006). A prática do racismo é, finalmente, inserida nas discussões políticas de forma mais consciente e, através da fala do ministro, o governo reconhece oficialmente a existência do racismo institucional no serviço público de saúde. De acordo com Wieviorka (2007),

o

racismo institucional é

uma modalidade de racismo que mantêm os negros em situação de inferioridade por mecanismos não percebidos ou declarados, assegurando a reprodução da discriminação dos negros na moradia, na escola, no mercado de trabalho... [...] o problema não é mais a existência de doutrinas ou de ideologias que se valem mais ou menos explicitamente da ciência, não é nem mesmo o que pensam as pessoas ou qual é o conteúdo dos argumentos que utilizam ocasionalmente para

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justificar os seus atos racistas. É no funcionamento mesmo da sociedade, da qual o racismo constitui uma propriedade estrutural inscrita nos mecanismos rotineiros, assegurando a dominação e a inferiorização dos negros sem que ninguém tenha quase a necessidade de os teorizar ou de tentar justificá-los pela ciência. O racismo aparece assim como um sistema generalizado de discriminações que se alimentam ou se informam uns aos outros [...] (WIEVIORKA, 2007:30).

É, portanto, um tipo de racismo que se reproduz sem a presença de atores definidos e não prioriza o discurso, mas a prática, distanciandose de outras modalidades de racismo que se respaldavam num discurso científico. Nesse sentido, o racismo institucional pode ser utilizado pelo governo como um elemento indispensável para avaliar a qualidade dos serviços de saúde e impulsionar a elaboração de programas que objetivem a correção das desigualdades raciais e a promoção da igualdade de oportunidades. É importante mencionar que na última década o governo federal tem desenvolvido ações com o intuito de melhorar os serviços públicos de saúde e vários programas foram criados para esse fim, dentre os quais é importante citar: Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no SUS; Plano de Reorganização da Atenção à Hipertensão Arterial e ao Diabetes Mellitus; Programa de Atenção Integral aos Pacientes com Doença Falciforme; Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento; Programa Estratégico de Ações Afirmativas: População Negra e AIDS (BOLETIM CRI, 2006). Outra ação que merece destaque refere-se à criação, em 2007, da Política Nacional de Saúde 177

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Integral da População Negra (PNSIPN) elaborada pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, com assessoria do Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN). A PNSIPN inclui nos seus objetivos “o fomento à realização de estudos e pesquisas sobre racismo e saúde da população negra” e propõe “a ampliação e o fortalecimento da participação de lideranças da saúde da população negra nas instâncias de participação e controle social do SUS” (BRASIL, 2010). Percebemos que a PNSIPN propõe mudanças substanciais em relação ao tratamento destinado ao negro quando determina ações voltadas à sua participação política junto aos órgãos do governo responsáveis pela saúde e estabelece diretrizes no sentido de proporcionar à população negra o acesso aos programas de saúde citados anteriormente, já que eles relacionam-se diretamente ao diagnóstico e ao tratamento das doenças que acometem mais as pessoas negras.

A saúde da população negra No Brasil, algumas doenças são mais incidentes na população negra. Essa prevalência deve-se em grande parte ao processo de miscigenação ocorrido aqui com a vinda de escravos procedentes de várias regiões da África que possuíam características genéticas peculiares e, com a posterior miscigenação entre negros e brancos, fez surgir uma população com uma especificidade genética que a distingue de outras populações mundiais. Além de fatores genéticos, as condições socioeconômicas a que foram submetidos os negros desde o período colonial até os dias de hoje influenciaram fortemente a frequência, a distribuição e a causalidade das doenças mais incidentes na população 178

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afro-brasileira (BRASIL, 2007). Entre essas doenças podemos citar: anemia falciforme, hipertensão arterial, doença hipertensiva específica da gravidez e diabetes mellitus. A título de esclarecimento, faremos uma breve explanação sobre as principais características dessas doenças para que possamos entender como elas podem comprometer a vida das pessoas que são acometidas por elas. Anemia falciforme – [...] é a doença hereditária mais comum no Brasil. Com origem no continente africano, especificamente nas zonas endêmicas de malária, incide predominantemente sobre afrodescendentes. No Brasil, existe a predominância do tipo Banto, que, segundo a classificação médica, é a forma mais grave. Distribuída heterogeneamente no território nacional, é mais frequente nas regiões onde a proporção de população afrodescendente é maior, ou seja, no Nordeste do país. Sabe-se também que as diversas formas de anemia falciforme apresentam variadas manifestações clínicas, sendo em alguns casos assintomática e em outros de muita gravidade, levando a complicações que podem chegar a afetar quase todos os órgãos e sistemas, com alta morbidade e provocando uma redução significativa da esperança de vida (Disponível em: http//portaldasaude.saude.gov.br. Acesso em 10/08/2012).

De acordo com a Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo, os principais sintomas da doença são: crises dolorosas nos ossos, músculos e articulações, palidez, cansaço fácil, icterícia (cor amarelada no branco dos olhos), úlceras – sobretudo nas pernas – que se iniciam geralmente na adolescência e tendem a se tornar crônicas. Nas crianças, pode haver inchaço doloroso nas mãos e nos pés e retardo 179

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do crescimento (Disponível em http// aafesp.org.br. Acessado em 19/08/12). A hipertensão arterial é mais prevalente nos negros e aparece mais cedo e de forma mais grave nessa população, sendo também umas das principais causas de morte dos negros. Pesquisas recentes mostram uma maior probabilidade de aparecimento da doença nas mulheres negras e alertam para as consequências durante a gravidez e para a morte materna por toxemia decorrente da hipertensão arterial. As síndromes hipertensivas na gravidez podem se manifestar através da hipertensão arterial crônica e da pré-eclâmpsia (individualmente ou de forma associada) e se caracterizam por complicações que podem afetar a mulher e o feto na gravidez (Disponível em http// portaldasaude.saude. gov.br. Acessado em 10/08/12). Sendo a hipertensão arterial crônica mais frequente em mulheres negras do que em brancas e constituindo, per se, um importante fator de risco para a pré-eclâmpsia, as consequências para a mãe e para o feto são, coletivamente, piores na população de mulheres negras do que na de mulheres brancas. Individualmente, entretanto, uma mulher negra com o diagnóstico de hipertensão crônica tem a mesma probabilidade de desenvolver pré-eclâmpsia sobreposta do que uma mulher branca com o mesmo diagnóstico. O rastreamento de hipertensão crônica no acompanhamento pré-natal deve ser feito com ainda maior ênfase em mulheres negras, para se identificar mais precocemente as hipertensas crônicas, embora ainda não seja possível prever nem prevenir o desenvolvimento subsequente de pré-eclâmpsia sobreposta (BRASIL, 2001, p. 71/72).

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O diabetes mellitus é também uma doença que tem grande prevalência na população negra. Os principais sintomas são a perda de peso, a poliúria (eliminação de grande volume de urina) e a sede excessiva. No entanto ela pode se manifestar sem apresentar nenhum desses sintomas, tornando mais complicado ainda o diagnóstico precoce da doença. O diabetes mellitus é um distúrbio metabólico de etiologia múltipla, caracterizado por uma hiperglicemia crônica, decorrente tanto de uma deficiência de insulina, como da incapacidade de a insulina exercer adequadamente seus efeitos, ou de uma combinação, em graus variáveis, dessas condições. Após alguns anos de evolução, é frequentemente acompanhado por danos, disfunção e falência de vários órgãos ou sistemas, como olhos, rins, coração, nervos e vasos sanguíneos. O diabetes mellitus é um importante problema de saúde pública, pois é bastante frequente, está associado a complicações que comprometem a produtividade, a qualidade de vida e a sobrevida dos indivíduos, além de envolver altos custos no seu controle e no tratamento de suas complicações (BRASIL, 2001, p. 56).

Outro dado importante em relação à doença é o fato de ela atingir preferencialmente as mulheres, aumentando consideravelmente o risco de complicações em mulheres grávidas negras. Estudos recentes sobre o diabetes tipo II (a forma mais comum da doença) demonstraram que homens negros têm 9% a mais de probabilidade de desenvolver diabetes que os homens brancos, e no caso das mulheres negras esse índice vai para 50% em relação às mulheres brancas, o que justifica o fato de haver um alto índice de diabetes gestacional em mulheres 181

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negras (Disponível em: http//portaldasaude.saude.gov.br. Acesso em 10/08/2012). Como é possível perceber, essas doenças são bem comuns na sociedade e são também fáceis de serem diagnosticadas: o diabetes é identificado através de um exame de sangue simples, possível de ser realizado em qualquer laboratório; a hipertensão pode ser diagnosticada através da aferição da pressão; e a anemia falciforme pode ser detectada, entre outros exames, através do teste do pezinho nos recém-nascidos. São, portanto, doenças de fácil diagnóstico, mas que, se não forem detectadas previamente, podem comprometer gravemente a vida das pessoas. No caso da anemia falciforme, os pacientes são submetidos a uma ‘sobrevida pois geralmente o problema se manifesta na infância e acompanha toda a vida do paciente sem que, muitas vezes, ele seja tratado da maneira adequada já que nem sempre os profissionais fazem o diagnóstico correto. A hipertensão e o diabetes deveriam ser considerados como problemas de saúde pública devido aos altos índices na população e ao fato de interferirem definitivamente na qualidade de vida das pessoas acometidas por elas. No entanto, através da pesquisa realizada nas instituições de saúde citadas anteriormente, percebemos que a maioria desses agravos não é tratada como deveria e muitas vezes eles nem são conhecidos. Essa falta de conhecimento foi facilmente comprovada e, em alguns profissionais, foi possível identificar exemplos de total desconhecimento relacionados a quase todas as enfermidades definidas anteriormente.

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No centro de saúde que atende especificamente pacientes de diabetes e hipertensão, a coordenadora, ao ser questionada sobre as doenças de maior prevalência nos negros, informou que só sabia do diabetes porque tinha estudado há algum tempo, mas em relação à hipertensão e outras doenças citadas na entrevista, ela nunca tinha sido informada (R. P. – Gerente do Centro de Diabetes e Hipertensão Teodorico Teles em entrevista concedida em 20/09/2012). É possível perceber também que os gestores da saúde nas secretarias municipais possuem pouco conhecimento sobre o que deveria ser a sua função enquanto administradores da saúde do município – ou seja, não sabem como trabalhar e demonstram pouco interesse em buscar informações a respeito de determinações federais sobre a saúde pública que, no fundo, só ajudariam no desenvolvimento do seu trabalho. Em pesquisas realizadas na primeira etapa deste trabalho com secretários de saúde foi fácil identificar o pouco conhecimento deles em relação ao Estatuto da Igualdade Racial. Percebemos também que, por não terem domínio sobre o assunto, alguns faziam questão de mostrar outros programas do Município ou insistiam em dizer que tudo era feito para o bem de toda a população, sem distinção de raças. No caso específico da Secretaria de Saúde do município de Crato, no ano de 2010 foi realizada uma reunião com coordenadores de várias unidades de saúde na qual, as informações referentes ao item da saúde do Estatuto da Igualdade Racial era um dos pontos de pauta. Nesse encontro uma representante do GRUNEC (Grupo de Valorização dos Negros do Cariri) foi convidada para esclarecer algumas questões 183

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sobre o assunto. De acordo com a assessora do então secretário de saúde, a reunião foi bastante proveitosa e muitos se comprometeram a cumprir as orientações do Estatuto. No entanto, como no Brasil os cargos públicos são ocupados a partir de critérios estabelecidos de acordo com os interesses de quem está no poder, muitos projetos são deixados de lado sem o menor respeito à população. No caso da Secretaria de Saúde do Crato, o então secretário não deu continuidade a essa iniciativa de orientar os profissionais sobre o Estatuto e logo em seguida se afastou do cargo. As pessoas que o substituíram sequer demonstraram conhecer o tema e nem tiveram interesse em se informar ou procurar capacitar os profissionais da área. Ainda em relação ao Centro de Diabetes e Hipertensão Teodorico Teles, ao ser questionada sobre o modo de orientar os profissionais em relação às determinações do Ministério da Saúde sobre a população negra, a coordenadora informou: Não sei quais são as normas, mas aqui trabalhamos no sentido da valorização dos pacientes e do local físico. Fazemos palestras para colocar em pauta os dois projetos existentes (diabetes infantil e tabagismo) e trazer melhorias para a população de uma forma geral, sem merecer brancos ou negros.

Quando foi questionada sobre a existência de algum trabalho voltado ao controle de diabetes e hipertensão, ela argumentou: [...] No Crato, já são cadastrados mais de 8.000 hipertensos nesta unidade, mas não temos projetos voltados para essa categoria. No diabetes, temos o projeto de diabetes infantil, que é comandado por uma doutora que é pediatra e é negra. Assim, quando tem uma criança que já está acima do peso

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ou com a taxa de glicemia alta, a doutora chama logo a família e conversa para organizar a alimentação, fazer exercício para reduzir o diabetes infantil.

É importante ressaltar que na maioria dos cadastros realizados nas instituições de saúde, a coleta do quesito cor é exigida, no entanto, parece não ter utilidade ou não ser levada em conta, pois nas entrevistas nenhum profissional mencionou nada a respeito desse dado, o que demonstra mais uma vez o despreparo ou a falta de compromisso dos profissionais envolvidos nos programas de saúde. A implantação da coleta do quesito cor nos protocolos de atendimento das instituições públicas de saúde é uma exigência estabelecida através da PNSIPN e também uma reivindicação de diversos segmentos do movimento negro pois é através dessa informação que se torna possível conhecer os indicadores relacionados aos processos de adoecimento e as causas de morte mais comuns na população negra (BRASIL, 2010). O relatório Saúde Brasil 2005: uma análise da situação de saúde foi elaborado com o intuito de obter informações sobre a saúde dos brasileiros. Para isso, coletou dados referentes a raça, cor e etnia e analisou aspectos relacionados ao nascimento (tipo de parto, baixo peso ao nascer, assistência pré-natal) e a morbi-mortalidade materno-infantil (BRASIL, 2010). Os resultados obtidos são preocupantes e colocam o Brasil numa situação bastante desconfortável em relação à saúde da população negra, pois todos os índices relativos a essa etnia comprovam que no país ainda existe uma imensa desigualdade entre brancos e negros, refletindo 185

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as características de uma sociedade intensamente estratificada social e etnicamente. Ainda de acordo com as informações obtidas no relatório, 62% das mães de nascidos brancos referiram ter passado por sete ou mais consultas de pré-natal, enquanto para as mães de nascidos pardos o índice cai para 37%. Foi constatado também que o número de morte de causas maternas entre as mulheres negras grávidas é bem maior do que entre as brancas, sendo a hipertensão própria da gravidez uma das maiores causas dessas mortes (BRASIL, 2010). O relatório destaca os dados referentes às crianças menores de 5 anos. O risco de uma criança preta ou parda morrer antes dos 5 anos por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o de uma criança branca. Também o risco de morte por desnutrição apresenta diferenças alarmantes, sendo 90% maior entre crianças pretas e pardas que entre brancas (BRASIL, 2010, p.14).

O fato de haver uma maior incidência de mortes entre crianças e mães negras não pode ser encarado como normal ou como mera coincidência. Deveria sim, ser concebido como um problema de saúde pública, tendo em vista que grande parte da população brasileira é composta por pessoas dessa etnia. Mas infelizmente o que tem se comprovado na prática é um total descaso em relação a esse assunto, já que mesmo diante da comprovação desses índices e das determinações do governo, pouco ou nada é feito para mudar esse quadro. Além disso, grande parte dos profissionais que ocupam cargos de extrema responsabilidade em unidades públicas de saúde não tem domínio nenhum sobre os programas citados anteriormente. 186

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É o que foi percebido através da fala de uma enfermeira que coordena uma unidade infantil de um hospital público que, ao ser questionada sobre o Estatuto da Igualdade Racial, disse: “Bem, eu já ouvi falar, mas não tenho um conhecimento bem a fundo do Estatuto” e, quando foi perguntada sobre o tipo de treinamento que era dado aos profissionais ela respondeu: “[...] eu não sei bem te responder porque essa não é a minha área. Mas acredito que existam políticas de socialização com os funcionários, estratégias para o bom funcionamento do hospital” (T. X. – Coordenadora da Unidade Infantil do Hospital e Maternidade São Lucas – entrevista concedida em 03/09/12). Percebemos

claramente

nessa

entrevista

que

faltam

conhecimentos básicos sobre a saúde da população negra. Falta, inclusive, a maturidade necessária para o desempenho de uma função tão importante. E, infelizmente, falta também compromisso por parte dos gestores municipais em preencher os cargos com profissionais competentes, capazes de resolver problemas essenciais que necessitam de medidas estruturais para serem executados. Na pesquisa foi possível observar também que no hospital público especializado no atendimento às mulheres grávidas, não existe nenhum cartaz ou qualquer informação sobre síndrome hipertensiva na gravidez, anemia falciforme ou doenças relacionadas às pessoas negras; o que é extremamente contraditório quando se trata de uma unidade que é referência em neonatologia e obstetrícia na Região Metropolitana do Cariri. Com base nessas informações, é possível identificar claramente o não cumprimento das diretrizes estabelecidas pelo governo para a 187

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saúde dos negros. Mas não existe fiscalização ou acompanhamento algum em relação à implantação dos programas de saúde criados pelo governo, por isso é visível a falta de conhecimento dessas normas por parte das instituições e dos profissionais de saúde, o que torna mais grave ainda a situação dos negros que procuram as unidades de saúde, pois o racismo que é reafirmado dia a dia na sociedade brasileira através de atitude banais (na linguagem comum, nas tradições, na cultura – pelo seu entranhamento na história do país) assume proporções gigantescas quando se expressa nas instituições públicas. O racismo institucional se revela em ações corriqueiras, no dia a dia do trabalho através do despreparo dos funcionários no trato com o negro, ‘nos modos de agir e de olhar’ para ele, no privilégio que é dado ‘declaradamente’ a alguns enquanto os negros permanecem sempre no final das filas. Manifesta-se por meio de normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de trabalho, resultantes de ignorância, falta de atenção, preconceitos ou estereótipos racistas. Em qualquer caso, sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pela ação das instituições (BRASIL, 2010, p.16).

Atualmente, essa modalidade de racismo substitui as violentas atitudes racistas, tão comuns na maioria das instituições brasileiras, e surge assim, silencioso, sutil às vezes, mas sempre presente e sempre colocando à margem categorias sociais já discriminadas historicamente. O racismo institucional se confirmou facilmente nas unidades de saúde pesquisadas através da fala de alguns pacientes entrevistados: 188

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“[...] a partir do momento que você entra, as pessoas já olham pra você dos pés a cabeça, nos julgam pela nossa cor, pela nossa roupa. Acham que estão fazendo um favor, mas, na verdade, é um direito. Todos nós temos os mesmos direitos, por isso ninguém é melhor do que ninguém” (A. I. – 21 anos – Entrevista realizada em 28/07/2012). “[...] quando cheguei aqui no Posto pela primeira vez, muita gente olhou diferente pra mim porque sou negro e porque sou da Bahia. Quando sentei no banco, senti que uma senhora se sentiu incomodada com a minha presença e se afastou. Depois tentei me comunicar com algum atendente, mas foi inútil. Era como se ninguém me visse, me senti tão mal com todos me olhando daquela maneira [...]” (M. F. – 30 anos – 03/08/2012).

Contribui, portanto, para a reprodução da segregação étnicoracial, afastando as pessoas das instituições públicas e da possibilidade de garantir os seus direitos. Portanto, é importante que os afrodescendentes tenham conhecimento das leis que garantem os seus direitos de cidadãos brasileiros e dos programas sociais desenvolvidos pelo governo, pois uma das possibilidades de reafirmar a identidade deles é através da consciência sobre os seus próprios problemas e da consequente luta pela resolução deles. Mas, nesta pesquisa, nenhum paciente entrevistado mencionou conhecer o Estatuto; apenas informavam que não podiam ser discriminados pois acreditavam que, ‘no mundo, não existe ninguém melhor ou pior, todos são iguais’. Assim, neste trabalho, o racismo é abordado como uma prática construída historicamente e acreditamos que o seu estudo deve estar 189

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relacionado à ideia de identidade e aos conceitos de igualdade, diferença e desigualdade porque entendemos que esses conceitos não devem ser trabalhados isoladamente. As noções que possuímos sobre igualdade estão sempre acompanhadas das noções que possuímos sobre a diferença (WOODWARD apud SILVA, 2007), mas é importante esclarecer que esses conceitos não se opõem, apenas se confrontam e por isso a diferença não deve ser utilizada como justificativa para negar a igualdade. No entanto, a presença da escravidão no processo de formação da sociedade brasileira faz surgir no país uma forma diferenciada de pensar as relações sociais que passam a ser determinadas a partir do critério da cor das pessoas. Assim, as concepções sobre igualdade de direitos passam a ser intimamente relacionadas ao lugar que as pessoas ocupam na sociedade, e o cumprimento da lei no que diz respeito à igualdade de todos é totalmente desconsiderado quando a questão envolve negros, já que estes dificilmente têm consciência dos direitos que lhe assistem. O fato de, no Brasil, o critério da cor ser utilizado para definir direitos nega, inclusive, o princípio da diversidade que é inerente ao mundo humano e ao mundo animal e extrapola a determinação da Constituição Federal que assegura que todos são iguais perante a lei. Por outro lado, o conceito de igualdade tem também como contraponto o conceito de desigualdade e, quando pensamos em desigualdade, devemos considerar que ela se refere a uma realidade circunstancial e só pode ser compreendida a partir de um ponto de vista, de um espaço de reflexão. De acordo com Barros (2009): A desigualdade é sempre circunstancial, seja porque estará necessariamente localizada social e

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historicamente dentro de um processo, seja porque estará obrigatoriamente situada dentro de um determinado espaço de reflexão ou de interpretação que a especificará (um determinado espaço teórico definidor de critérios, por assim dizer). Falar sobre desigualdade implica nos colocarmos em um ponto de vista, em um certo patamar ou espaço de reflexão (econômico, político, jurídico, social, e assim por diante). Mais ainda, implica arbitrarmos ou estabelecermos critérios mais ou menos claros dentro de cada espaço potencial de reflexão (p. 22).

Portanto, quando falamos que no Brasil o tratamento destinado à saúde da pessoa negra é desigual estamos admitindo que, quando se trata de pessoas brancas, a realidade é diferente. E, como a desigualdade está relacionada à ‘circunstancialidade histórica’, é possível que essa situação seja revertida através da ação humana. Nesse sentido, o Estatuto da Igualdade Racial se constitui como uma ferramenta importantíssima no combate ao racismo pois introduz questões de extrema relevância para a compreensão da exclusão social que compromete a população negra no Brasil e propõe um debate sobre as perspectivas de mudança a partir da participação dos negros como ‘agentes políticos’ atuando a favor da sua própria história. O fato de o governo elaborar leis não resolve, por si só, o problema. É necessário que haja fiscalização e acompanhamento nas diversas instâncias para saber se essas leis estão sendo cumpridas de maneira efetiva, pois só assim elas passarão a ter sentido. Por isso, para que o Estatuto da Igualdade Social seja colocado em prática é necessário que exista um projeto do governo envolvendo a sociedade, as instituições de saúde e a população afrodescendente com 191

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o objetivo de orientar os diversos segmentos sociais sobre o Estatuto de uma forma geral, e sobre as questões relacionadas às consequências do racismo para a sociedade. Esse projeto deve propor inicialmente medidas educativas que insiram o debate sobre a diversidade étnica e sobre a existência do racismo, já que são duas características bem marcantes da sociedade brasileira, para, em seguida, introduzir as noções sobre igualdade de direitos, identidade étnica e cidadania. Só assim será mais fácil pensar numa sociedade mais consciente e mais habilitada para enfrentar os problemas e reivindicar os seus direitos.

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Referências Bibliográficas BARROS, José D’Assunção Barros. A construção social da cor – Diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2010. BRASIL. Manual de doenças mais importantes, por razões étnicas, na população brasileira afrodescendente. Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2001. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. Ministério da Saúde – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2010. BOLETIM CRI – Combate ao Racismo Institucional – Saúde e Comunicação para o Desenvolvimento. Brasília, 2006. DÁNGELO, Élcio. Estatuto da Igualdade Racial – Comentado. São Paulo: EDIJUR, 2010. LESSA, Z. L.. Reabilitação Social – Hanseníase e Educação em Saúde: O Confronto entre o Conhecimento Científico, Empírico e Teológico. São Paulo, 1986. Tese de Mestrado – F.S.P. São Paulo. ROSA, Daniel Polydoro. Constituição Federal 1988. São Paulo: Lex Editora, 2010. VALENTE, Ana Lúcia E. F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Ed. Moderna, 1987. WIEVIORKA, Michel. O racismo, uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença – uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

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Outras Fontes ASSOCIAÇÃO DA ANEMIA FALCIFORME DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em http// aafesp.org.br. Acesso em 19.08.2012. MANUAL DA ANEMIA FALCIFORME PARA A POPULAÇÃO. Disponível em http// saude.sp.gov.br. Acesso em 19/08/2012. MOURA, Bruno César. A Constitucionalidade das políticas de ações afirmativas em favor dos afrodescendentes. Disponível em http/ideario.org.br. Acesso em 01.12.2010. PORTAL DA SAÚDE. Disponível em http//portaldasaude.saude.gov.br. Acesso em 19/08/2012. SAÚDE. Disponível em http//portal.mec.gov.br. Acesso em 15/09/2012.

Artigo submetido em: 14/10/2012 Artigo aprovado em: 30/12/2013

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Artigo

Paisagens da memória:

os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil Mary Kenny1

Resumo No ano de 1932, os campos de concentração foram instituídos no Ceará, estado localizado no Nordeste brasileiro, como uma resposta ao deslocamento de milhares de pessoas pela terrível seca. A experiência dos campos, como relatada por aqueles que sobreviveram, era de privações e morte. Os moradores de Senador Pompeu, cidade que abrigou um desses campos, comemoram essa experiência com uma procissão anual ao cemitério local e estão tentando fazer com que as ruínas sejam tombadas. Assinalar tais lugares como patrimônio é uma maneira de intervir não somente economicamente, como turismo cultural, mas também através de processos ativos de conscientização ao transmitir a violência que ainda persiste na sociedade contemporânea. Palavras-chave: campos de concentração, refugiados da seca, Nordeste brasileiro, patrimônio, conscientização.

1 Professora na Eastern Connecticut State University. E-mail: kennym@ easternct.edu. Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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Abstract Concentration camps were established in the Northeastern Brazilian state of Ceará in 1932 as a response to the displacement of thousands by severe drought. The experience of the camps, as reported by those who survived them, was one of privation and death. Residents of Senador Pompeu, the site of one such camp, commemorate the experience with an annual procession to the cemetery and are attempting to have the ruins of the camp declared “heritage.” Marking such places as heritage is in many ways an intervention not only economically, as heritage tourism, but through the active critical processes of conscientization, communicating the violence that persists in contemporary society. Keywords: concentration camps, drought refugees, Northeastern Brazil, heritage, conscientization.

Em 1932, o estado nordestino brasileiro do Ceará construiu sete campos de concentração2 como uma estratégia de mitigação da seca para agilizar a distribuição de alimentos, reunir trabalhadores para projetos públicos e para o confinamento espacial dos retirantes, os refugiados da seca. Esse confinamento supostamente pretendia conter o contágio de doenças infecciosas e o comportamento instável resultado de uma grave seca. Os campos já haviam sido usados como uma estratégia de mitigação da seca em anos anteriores a 1932, embora nunca houvessem sido usados ao nível local antes (NEVES, 2000; VILLA, 2 “Campos de Concentração” é o termo usado em fontes primárias (ver: José Américo de Almeida, Ministério da Viação e Obras Públicas, Inspetoria Federal de Obras Contra As Secas, Relatório dos Trabalhos Realizados no Treino 1931–1933, Apresentado ao Ministro José de Almeida pelo Inspetor Luíza Augusto da Silva Vieira, CE, Fortaleza, 1934, p. 57; Estado de Ceará, Relatório, Administração, Interventor Federal Cap. Roberto Carneiro de Mendonça, 22 de setembro de 1931 a 5 de setembro de 1934 p. 62, 63, Decreto n. 566, 14 Abril, 1932). Eles também eram chamados de centros de trabalhadores desempregados, colônias de trabalhadores, colônias agrícolas (ARAGÃo e FROTA, 1984, p. 214) e currais (NEVES, 2003, p. 73).

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2000). Os censos destes confinamentos diferem durante o ano da seca, os resquícios dos campos e a memória local sobre eles variam. Em Senador Pompeu, uma cidade localizada a 272 km de Fortaleza, as ruínas dos edifícios administrativos de um antigo campo de concentração desempenham um papel mnemônico na comemoração dessa experiência histórica. A “função memória” (HODGKIN and RADSTONE, 2003) também se faz presente através da procissão a um cemitério isolado localizado a poucos quilômetros do centro da cidade. De acordo com Rodrigues (1999), todos aqueles que morreram nos campos foram enterrados ali, uma vez que suas fontes batismais eram desconhecidas e os seus restos mortais eram vistos como uma ameaça à saúde pública. Alguns moradores locais estão tentando fazer com que os campos sejam reconhecidos como patrimônio, como uma maneira de incrementar o turismo. O lugar serviria como um local para uma reflexão crítica sobre as necessidades sociais e políticas do presente. No entanto, o desafio na construção de significado, valor, memória e práticas sobre esse lugar, além de transformá-lo em “patrimônio”, está na conexão das narrativas sobre as vítimas da seca, encurraladas em um campo de concentração em 1932, e os interesses contemporâneos sociais, políticos e econômicos da comunidade.

A autópsia da história Quais são as maneiras pelas quais a maioria das experiências esquecidas ou ignoradas que aconteceram há mais de 70 anos é lembrada, comemorada e vivida? A tradição oral é vista como uma maneira de documentar essas histórias silenciosas, de desenterrar 199

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narrativas passadas, como uma “democratização do passado”, segundo o historiador social Jay Winter (1995, p. 281), como um recurso para a produção de histórias alternativas. De acordo com o historiador de tradições orais Alessandro Portelli, essas narrativas alternativas nos contam “não apenas o que as pessoas fizeram, mas o que eles queriam fazer, o que eles acreditavam que estavam fazendo e o que eles agora acham que fizeram” (1991, p.50). David Lowental afirma que a memória evolui filogeneticamente (1985, p. 18) mediada pelas transições do ciclo da vida, pela sedimentação das experiências de vida, pela mídia e por uma grande cultura política. A memória então é um processo, e não uma “bagagem despachada” (LOWENTHAL, 1985, p. 252–3). A “memória coletiva” tem sido uma ferramenta cultural útil no trabalho da memória associada à herança (SMITH, 2006, p. 59). Goffman (1986) sugeriu que as “memórias coletivas” são moldadas pelas “molduras sociais”. Esses esquemas simbólicos, discursivos e baseados em lugares, moldam o que o sociólogo Émile Durkheim descreveu há mais de um século como o “temperamento” do grupo, ou a “consciência compartilhada”, o “elo” que os mantêm unidos. Maurice Halbwachs (1992 [1925]), um aluno de Durkheim, argumentou que as memórias coletivas se apoiam nesses esquemas para descrever e explicar o passado. Por exemplo, no polígono da seca onde a cidade de Senador Pompeu está localizada, não há ninguém que tenha chegado à velhice sem haver presenciado pelo menos uma seca rigorosa (MELLO, 1964, p. 139). Nos relatos orais colhidos em 2002 e 2003, a seca foi um esboço discursivo poderoso para a memória coletiva.

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As lembranças são reinterpretadas pelas oportunidades, necessidades, significados e valores contemporâneos e, portanto, são vistas como fontes subjetivas, emocionais e duvidosas dos “fatos” históricos. No entanto, no final do século XX, a partir das repercussões dos movimentos sociais, particularmente a criação dos estados póscoloniais na África, a luta pelos direitos civis entre afro-americanos, os estudos culturais e a história social passam a considerar um problema a noção da história como factual, consensual e incontestável, ao chamar a atenção para as maneiras pelas quais o poder privilegia e naturaliza sua construção (HALL, 1999; HOBSBAWM, 1983; TROUILLOT, 1995). A palavra “Capital” é atribuída a certas lembranças que se tornam institucionalizadas como história (NORA, 1989, p.7), enquanto as memórias, identidades e os sentimentos de passados menos visíveis e audíveis são representados politicamente e economicamente como “impotentes” (LOWENTHAL, 1998, p.79). De acordo com Milan Kundera (COHEN, 2001, p. 243), elas são “ignoradas pela história”. A historiografia subalterna descentraliza as experiências dos grupos dominantes como universais e desafia as maneiras de identificar, falar e escrever a história ao direcionar a outras experiências, valores e maneiras de comunicar o passado. Esses processos efetivamente desafiam a autoridade da “história oficial” ao desmascarar a lacuna histórica e ao ressaltar as histórias silenciosas – as lembranças e as práticas ilegais daqueles há muito vistos como os sem história, entre eles negros, índios, mulheres e homossexuais (LYOTARD, 1984; 1989, p.132; WOLF, 1984). Essas estórias “obscuras” frustram as metanarrativas como andaimes da história, quebram o padrão histórico e corrigem a história incompleta (TROUILLOT, 1995, p.13). 201

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Fontes não textuais são aspectos importantes da memória coletiva e propiciam uma compreensão importante das maneiras pelas quais as pessoas percebem o passado (CONNERTON, 1989). A informação arquivística sobre a política dos campos não sugere nenhuma ideia sobre reprimir ou subjugar os retirantes; contudo, as narrativas falam sobre as condições sórdidas, morbidez, mortalidade, acúmulo de corpos em covas coletivas e extração parcial de fígados dos cadáveres, o que levou os ocupantes dos campos a perceberem que a intenção do governo era aniquilá-los. Em geral, os retirantes são “silenciados” nos arquivos, embora existam numerosas referências ao aspecto deles – esquálidos, maltrapilhos, famintos e doentes. Pouco se sabe sobre de onde vieram ou para onde foram quando a seca terminou. Aqueles que não sobreviveram, os anônimos mortos em covas sem nomes, são os ausentes. Geraldo Nobre, do Instituto do Ceará, comentou sobre a dificuldade em encontrar material escrito sobre os campos: “Claro que é difícil encontrar estes materiais; alguns foram queimados, outros escondidos, porque eles não queriam chamar a atenção sobre este fato ou lembrá-lo”. Um morador de Senador Pompeu comentou que a documentação do campo “(...) foi como uma água que evaporou, como a água que evaporou do açude durante a seca”. Várias pessoas com quem falei nas cidades de Crato e Senador Pompeu sabiam dos campos naquela época ou tinham ouvido falar sobre eles, mas não os consideravam importantes. Foi, como eles disseram: “tempos difíceis”, como tantos desde então.

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A Memória antagônica à história real pode colocar pessoas em risco e levar a investigações, acusações, intimidação, tortura e assassinato e, portanto, as memórias podem ser propositadamente esquecidas (ARIAS, 2002, p.25). No dia 10 de maio de 1932, Luíza Pereira Lobo, de 86 anos de idade, moradora de Senador Pompeu desde que tinha oito anos de idade, teve que caminhar 80 km até o campo, acompanhando seu pai; sua mãe grávida; oito irmãos e sua avó. Desde 1997 ela é entrevistada por jornalistas de revistas, como a Isto é e Época, por programas da rede de televisão Record, pelos jornais do Estado, como O Povo, Tribuna do Ceará, Diário do Nordeste, e por jornais regionais, como Cruzeiro do Sul (Ceará) e Diário Popular (São Paulo). As lembranças de Luíza e de outros sobreviventes dos campos foram a base para um filme sobre um dos campos chamado Cerca Seca, filmado em 1997 por Flavio Alves, um morador local. No ano 2000, um irmão de Flavio, chamado Valdecy, então candidato a prefeito, alegou que membros do partido da oposição haviam queimado a documentação e que o Centro dos Direitos Humanos os havia encontrado. O próprio Flavio havia sido sequestrado (NOCRATO, 2000). Ao gerar interesse em tomar conhecimento sobre esse material, Flavio, Valdecy e muitos outros estavam usando ferramentas culturais para negociar a maneira com que o passado foi entendido e representado e alguns acharam que essa associação com seus companheiros e as discussões sobre os campos poderiam colocá-los em perigo. Quando dona Luíza foi entrevistada, em 2002, ela havia sido ameaçada de perder o pagamento de sua aposentadoria caso ela “revolvesse o passado”, ao falar sobre sua experiência nos campos.

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Para estudar as maneiras de recordar, comemorar e comunicar as lembranças entre os retirantes e as maneiras pelas quais essas atividades expressam identidade, significado e valor, foi realizado um estudo arquivístico e de campo, no período referente aos meses de junho e julho de 2002 e 2003, no qual pudemos localizar vários ocupantes de antigos campos em Senador Pompeu, assim como pessoas que viveram naquela comunidade e em outras, onde os campos estavam localizados em 1932. Foi difícil localizar sobreviventes dos campos, uma vez que já haviam passado três quartos de século e, historicamente, aquela migração havia sido a única alternativa para a seca e a penúria na área (BROOKS, 1971; VIEIRA JÚNIOR, 2002). Também participamos em eventos comemorativos e falamos com muitos membros da comunidade sobre suas experiências, lembranças e conexão com o passado.

Os campos de concentração como uma política de mitigação da seca Em 150 anos, já são mais de três milhões de mortos devido à seca no Brasil (VILLA, 2000, p.250). Esforços anteriores para mitigar a seca incluíram tentativas de desenvolver uma forma alternativa de transporte para a região do semiárido, tais como a importação de camelos de Argel, a criação de nuvens artificiais e a transferência de água de um rio para outro (VILLA, 2000). Uma grave seca ocorrida entre os anos de 1877 e 1879 teve consequências significativas. Quase meio milhão de pessoas (64.000 em Fortaleza) ou 5% da população brasileira morreram (VILLA, 2000, 204

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p.13). O grande número de mortes, migração e perda do rebanho provocou uma importante mudança na demografia rural e uma quebra da economia. Os antagonismos de classe se intensificaram quando o “lugar” da burguesia urbana branca, vista como moderna, europeia e civilizada foi perturbado pela presença dos matutos ou caipiras que eram tidos como primitivos e incultos (NEVES, 2000, p.222; RIOS, 2001, p.20). Os efeitos das secas anteriores sobre os trabalhadores rurais haviam recebido pouca atenção. No entanto, durante essa seca, 114 mil retirantes pobres, famintos e doentes invadiram Fortaleza. Os relatórios os descreveram como arruaceiros viciados em caridade e, como uma mácula na paisagem (NEVES, 2000, p.27). Os rumores sobre violência, fanatismo, práticas primitivas, incluindo o canibalismo devido à fome, abundavam. Embora os retirantes, na sua grande maioria, procurassem comida perto dos mercados e longe das áreas residenciais (NEVES, 2000, p.145)3, sua simples presença causava pânico entre as elites urbanas que exigiam alguma forma de intervenção. As sugestões incluíam reassentamento forçado na Amazônia, alojamentos segregados ou acampamento em áreas rurais. O discurso persistente do medo finalmente os levou a serem confinados. As secas subsequentes resultaram em mais mortes e mais morbidez. Em 1909, a Inspetoria de Obras Contra os Efeitos da Seca (IOCS) foi criada com o objetivo de desenvolver uma maneira mais sistemática de evitar a seca e suas consequências. Uma nova classe profissional de 3 Ver Von Braun, Tekly, and Webb (1993) para a discussão dos movimentos da população durante a fome e Macrae and Zwi (1992) sobre a liberdade dos movimentos durante a seca.

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especialistas em seca foi encarregada de desenvolver uma infraestrutura para a região do semiárido e de implementar políticas de mitigação da seca. Uma vez que os retirantes estavam associados à violência, às doenças contagiosas e à degradação moral, colocá-los em currais era considerada medida necessária para proteger a saúde pública e manter a estabilidade civil. Em 1915, uma região de alagadiço foi estabelecida como um acampamento temporário e centro de distribuição de alimentos, em um esforço para evitar que os retirantes circulassem publicamente e para evitar saques aos armazéns. Outras secas levaram à criação de acampamentos temporários, currais e abrigos construídos para confinar os retirantes e regulamentar a distribuição de trabalho e provisões. Essas estruturas passaram a ser chamadas de “campos de concentração” (NEVES, 2000, p.32) ou, devido à alta mortalidade ali existente, de “campos da morte” (POMPEU SOBRINHO, 1953, p.32; NEVES, 2000, p.82). Em 1877, a seca marcou o início de uma sinecura burocrática chamada de “indústria da seca”. Os fundos eram desviados do bemestar público, dos projetos de mitigação da seca e do abastecimento emergencial, para políticos, técnicos, suas famílias e sócios, através de fraudes, lavagem de dinheiro e favoritismo. Embora a região tenha sido alvo de projetos emergenciais por mais de 100 anos, as políticas foram, em sua grande maioria, ineficazes para reduzir a vulnerabilidade da população (ARAÚJO, 2000, p.16; DUARTE, 1999). Em 1932, o Nordeste brasileiro sofreu uma das piores secas do século, que afetou a vida de 150 mil pessoas somente no Ceará. No início 206

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do ano, havia notícias de saques, pilhagem de armazéns e trens de carga que tinham acontecido em outras secas, mas ainda não existia nenhum plano concreto de mitigação da seca naquele lugar. Com o aumento do número de retirantes, sugeriu-se que eles fossem removidos para colônias agrícolas no Maranhão e no Piauí, ou para plantações de café em São Paulo. Esses estados se opuseram firmemente a essas sugestões, baseados no fato de que eles não tinham obrigação com o que era essencialmente o efeito colateral de um problema local. Eles também careciam de infraestrutura para atender à afluência dos refugiados da seca, especialmente depois da depressão de 1929 (VILLA, 2000, p.146147). Em abril de 1932, sete campos de concentração foram construídos para abrigar os serviços da seca, e para evitar que os refugiados inundassem Fortaleza. Os campos estavam localizados ao Sul, em Burity e Crato; no Centro, em Senador Pompeu (também chamado de Patú), Quixeramobim e Cariús (em São Matheus); e ao Norte, em Ipú. Urubu e Otávio Bonfim ficavam na periferia da capital (POMPEU SOBRINHO, 1953, p.43; NEVES, 2000, p.123). O maior campo ficava em Burity, com uma população de 60mil pessoas. Até janeiro de 1993, o número total de residentes contabilizados nos sete campos passou para 89.431 pessoas (NEVES, 2000, p.253). Além disso, para descentralizar os serviços da seca, os campos disponibilizavam trabalhadores para projetos de trabalhos públicos, chamados de “frentes produtivas de trabalho” e deslocavam também colonizadores para a Amazônia. Para ganhar seu sustento, os retirantes construíam estradas, ferrovias, açudes/barragens, trabalhavam em fazendas de criação de

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gado e como coveiros diante das fatalidades da seca (GREENFIELD, 1992, p.380; VILLA, 2000, p.71). O Estado reconhecia esses projetos como “estágios” para carpinteiros, pedreiros e mecânicos. Uma visão mais crítica os via como fornecedores de mão de obra barata para as elites nordestinas (LOWRY, 1997, p.125). Ironicamente, um dos antigos campos, o de Burity, é hoje uma fábrica onde os trabalhadores das comunidades locais de baixa renda cortam, colam e embalam toneladas de papel higiênico 12 horas ao dia. Os campos funcionaram cerca de um ano, até que a seca fosse oficialmente declarada como terminada. Dava-se, então, aos retirantes uma passagem de volta aos seus lugares de origem e algumas sementes (VILLA, 2000, p.155). Outros eram encorajados a migrar para o Pará, o Maranhão e para a Amazônia. As viúvas e os inválidos ficavam ali mesmo (VILLA, 2000, p.155), criando uma nova categoria demográfica, denominada de “as viúvas da seca”. Para muitos, havia poucos motivos para retornar, e havia um grande êxodo para o Sul do Brasil.

A vida no campo de concentração “Só quem sabia como aquilo realmente era eram as pessoas que estavam ali” Luiza Lobo

Fundada em 1896, a cidade de Senador Pompeu foi uma grande produtora e exportadora de algodão. Ali havia três refinarias. Atualmente, uma ferrovia de trem de carga corta a cidade. Em 1919, o IOCS fez um acordo com a empresa americana Dwight P. Robinson e a empresa inglesa Norton Griffith & Co., Ltd., para construir barragens no 208

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sertão4. A empresa americana construiu fábricas e as barragens de Poços dos Paus e Orós, enquanto a empresa britânica construiu barragens em Quixeramobim e Patú (Senador Pompeu). Em Senador Pompeu, eles contrataram trabalhadores locais e construíram 200 casas em um morro chamado Vila dos Operários, hoje chamada Vila dos Ingleses. Outros prédios foram construídos para administradores e gerentes. Havia uma escola, um hospital, uma farmácia, uma padaria, um galpão de pedra para os explosivos, um moinho para gerar energia e uma estação de trem. O prédio maior perto da estrada era do inspetor-geral, o que reflete, segundo Oriol Pi-Sunyer (2002, p. 216), a “cartografia do poder”. No entanto, a construção do açude de Patú foi suspensa em 1925, devido à insuficiência de fundos (POMPEU SOBRINHO, 1953, p. 355). Sete anos mais tarde, em maio de 1932, esses mesmos edifícios abrigaram 18.959 retirantes – entre homens e mulheres – e cerca de 10 mil crianças. Aqueles que haviam trabalhado em outros açudes foram enviados a Patú (POMPEU SOBRINHO, 1953:46), enquanto outros flagelados5 da região “invadiram” o campo. Estima-se que 1 mil pessoas morreram lá. Maria de Jesus da Silva, de 81 anos de idade, que havia encontrado o seu futuro marido ali, descreveu o lugar como o “curral da fome”, “cheio de morte, fome, tragédia”: 4 Sertão é a forma abreviada de “desertão” (SCHULLER, 1915, p. 365). A área constitui 27% da região Nordeste, que tem uma população de cerca de 12 milhões de habitantes. A área foi anteriormente habitada por índios cariris que se aliaram aos holandeses durante sua ocupação no Nordeste brasileiro no século XVII (SCHULLER, 1915, p. 366). 5 Flagelados são aqueles que sofrem uma calamidade, neste caso, a seca. O termo começou a ser usado em 1915.

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Tantas pessoas morriam ao mesmo tempo, que eles apenas jogavam os corpos uns sobre os outros. Então, eles retiravam parte do fígado dos mortos para exames. A comida doada era estragada e velha. As pessoas adoeciam. Eles não digeriam o feijão porque ele estava tão velho que chegavam a defecar o feijão inteiro. Eles retiravam os fígados... para fazer comida. As pessoas tinham um pequeno cartão que dava direito a pegar a comida. Elas ficavam numa fila. Mas não havia uma lista do registro das pessoas ou registro das mortes. Eles só colocavam terra sobre eles depois de 20 mortos. Na maioria, as pessoas morriam de fome. Eles diziam que havia um médico lá, mas não havia. Eu fiquei lá oito meses. Carne de boi era parte da comida doada, mas as pessoas influentes da cidade ficavam com as melhores partes, e o resto ia para os flagelados. Muitos ficaram ricos nessa época. O sangue dos touros era usado como alimento, e os comerciantes ficavam com as melhores partes. Os moradores dos campos testemunharam mortes lentas devido à fome e às doenças. Luíza Lobo disse que “o feijão era daquela cor”, apontando a minha camisa preta. “Eu não sei como era, era como a casca de uma árvore, e o café era horrível. Ambos eram misturados com sangue dos touros”. Outros falavam de pessoas que vomitavam e defecavam uma substância negra devido à comida adulterada, ambos sintomas da febre amarela. Os guardas ficavam nas saídas (o campo tinha 774 hectares) para evitar que os moradores fugissem (O POVO, 25 de maio de 1932). Havia uma prisão temporária para

aqueles que cometiam infrações (GIOVANAZZI, 1998, p.24). Essa prisão compulsória estava designada a manter os trabalhadores até o término da construção das barragens e a evitar que os retirantes circulassem publicamente. De acordo com Luíza Lobo, 210

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Ninguém podia entrar ou sair. Eu me lembro que eles vacinavam (ela me mostrou o seu braço)65. Meu pai... dizia que ele jamais nos deixaria ficar em um lugar como aquele de novo, encurralados. Minha mãe me mandava embora para evitar que eu visse certas coisas. Era uma mistura de gente... E teve uma menina que deu à luz, e a mãe matou o bebê. Ela colocou uma pedra enorme sobre ele, e os cachorros ficavam puxando a mão do bebê... As pessoas morriam na beira do rio. (…) As carroças levavam elas para o cemitério e jogavam eles todos juntos. (...) Os mais velhos pediam: “deixe a gente morrer primeiro”.

As sepulturas descritas nessas narrativas eram covas rasas e eram as escolhidas pelos urubus e cães vira-latas. As covas em cemitérios clandestinos continuam associadas aos cemitérios usados por esquadrões da morte como depósito dos desaparecidos. A raspagem da cabeça era obrigatória. Segundo Luíza Lobo, Estávamos todos morrendo de fome. Eles nos diziam para dormirmos no chão ou numa rede. (...) A gente tinha um cartão para a comida. (...) Havia tanta gente lá! As pessoas dormiam nos barrancos. Nós não tínhamos nada. Então, a comissão terminou7. Você já viu aquele cemitério? Está cheio de gente! Tinha um médico que dava remédio, um padre que 6 Havia uma resistência significativa às vacinações, que eram vistas como uma forma de invasão ao corpo. Muitos acreditavam que a intenção das vacinas era a de causar danos. 7 Comissão se refere a comissário, que era a comissão de um policial civil ou governamental cuja responsabilidade era a de organizar a distribuição de alimentos, gerenciar os trabalhos dos projetos públicos, manter a ordem interna e evitar que os retirantes circulassem fora dos campos (NEVES, 2003, p. 72).

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fazia confissões, batizava e casava as pessoas. Todos estavam morrendo de fome. Era uma fila grande para conseguir comida.

Há referências recorrentes sobre comida adulterada, descarte caótico dos mortos e colheita dos órgãos. Renata do Nascimento Pinto, professora de História do Centro dos Direitos Antônio Conselheiro, em Senador Pompeu, achou que era importante “contar a história” dos campos para evitar que ela voltasse a acontecer: O plano original da maioria das pessoas era migrar para Fortaleza e pedir ajuda ao governador, como havia sido feito no passado. Mas, então, eles construíram esses campos como uma maneira de evitar uma invasão na capital. E aqui eles já tinham suas casas, então, eles decidiram usar os retirantes para reativar a construção das barragens, usando as frentes produtivas de trabalho. As pessoas só podiam sair dali depois do final da seca. Eles davam comida de baixa qualidade e feijão que não cozinhava. Misturavam sangue de boi ao café. Tantas pessoas morriam que eles as colocavam todos juntos em um grande buraco e as enterravam juntos. Para evitar a putrefação dos corpos daqueles que morriam de manhã cedo, eles abriam o abdômen e retiravam o fígado para evitar o mau cheiro.

As narrativas refletem uma topografia corporal única: a remoção dos fígados “contaminados” com uma picareta ou um gancho e o arremesso do corpo dissecado em uma cova rasa. O simbolismo dos corpos desmembrados, a extração de partes para venda e o uso de partes contaminadas na comida para envenenar e matar os retirantes gera o sentimento de que a invasão desses corpos era intencional e rentável. Tais símbolos são comuns onde as disparidades intergrupais 212

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são significativas (GORDILLO, 2000, p. 34). Quando eu perguntei à enfermeira Júlia o que ela pensava a respeito das inúmeras referências aos fígados e ao desmembramento dos corpos, ela respondeu: “O fígado é interessante. Você pode cortá-lo quase todo, e ele, ainda assim, funciona. É extremamente resistente. Tudo passa pelo fígado, tudo”. Talvez a remoção do órgão, mesmo após a morte, codifique-a não somente como uma morte não natural, mas também reflita a capacidade de resistir às dificuldades e suportar tragédias. Há outras expressões populares que usam o fígado para sugerir fortaleza frente à resistência ou perigo, tais como “fígado de aço”, “você tem fígado para aguentar isso?” ou “tem que ter fígado para aguentar isso”. Um conto de fadas assustador chamado “Papa figo” fala sobre um pobre homem leproso que precisa de uma quantidade interminável de fígado de crianças para ser curado. E também há expressões como “vou comer o seu fígado” ou “essa mulher tem o fígado branco”, referindo-se a uma mulher viúva por muito tempo. Em um estudo sobre os Toba na Argentina, Gordillo (2002, p.42) afirma que imagens de amuletos de demônios canibais são encontradas particularmente em lugares de alta exploração capitalista, tais como plantações de açúcar, minas, fábricas, lugares onde corpos são explorados em troca de lucro. A personificação da memória nessas narrativas torna concreta a exploração de corpos, historicamente com os escravos e contemporaneamente com os trabalhadores (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1995, p.122). Elas também refletem a fragmentação do “corpo” familiar e comunitário. 213

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A amostra dos fígados fazia parte de um programa de fiscalização contra a febre amarela conduzido pela Fundação Rockefeller entre os anos de 1923 e 19408. As amostras eram obtidas através da viscerotomia pós-morte (LOWRY, 1999), ou por “liver punch”, a perfuração do fígado através um tubo externo e uma lâmina cortante (LÖWY, 1997, p. 134). Qualquer um que tivesse a coragem de realizar o procedimento poderia ser treinado a fazer a viscerotomia, independente de ter treinamento médico: “Uma pessoa experiente não levava mais do que 30 segundos. (...) Não era necessário tocar o cadáver com as mãos e ele podia permanecer no caixão quase que completamente vestido” (SOPER, RICKARD and CRAWFORD, 1934, p. 553-555). Se a primeira tentativa não desse certo, e a lâmina trouxesse apenas sangue, quem quer que estivesse realizando a viscerotomia deveria continuar o procedimento até obter o resultado desejado. Se todas as tentativas pela abertura principal fossem um fracasso, o instrumento podia ser introduzido em outra parte do corpo e todo o processo repetido (RICKARD, 1937, p.175).

Havia poucos médicos na área rural. Então, os “representantes” desses médicos, fossem eles farmacêuticos, coveiros ou tabeliães, eram contratados pelo Serviço de Viscerotomia para realizar as extrações. Eles recebiam uma soma fixa por cada procedimento. Um bônus de 150 mil réis (cerca de sete dólares) era dado a cada caso positivo de febre amarela (OFFICER, 2002). De acordo com Soper, Rickard and Crawford 8 A administração Vargas apoiava totalmente o Serviço da Febre Amarela (YFS) e seus procedimentos e pagava 80% dos custos do programa. No dia 23 de maio de 1932, o procedimento da viscerotomia foi autorizado pelo Decreto Presidencial n. 21.434. Todas as mortes que ocorreram dentro dos dez dias da doença estavam sob a jurisdição do programa YFS.

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(1934, p.553), “desde que o próprio tabelião tivesse interesse financeiro em assegurar o espécime desejado, este método era bastante eficiente”. O pessoal do laboratório relatou a apresentação de um grande número de material não humano (porco, cachorro, bode e vaca), fragmentos do mesmo fígado sob nomes diferentes, assim como partes do fígado dos que não haviam morrido da “febre amarela” (SOPER, RICKARD and CRAWFORD, 1934; HAMILTON and AZEVEDO, 1999; LÖWY, 1997, p. 135). Tudo isso reforçava a ideia entre os moradores dos campos de que, mesmo depois da morte, seus corpos eram comercializados. Os enterros eram proibidos sem a aprovação do representante da viscerotomia local (RICKARD, 1973). As suspeitas aumentaram em relação aos representantes do Serviço da Febre Amarela (YFS), e alguns deles foram atacados. A equipe da Fundação Rockfeller referiuse à resistência a esse procedimento invasivo como “ignorância”. No entanto, os representantes desse serviço eram subornados para que os seus parentes não fossem submetidos à viscerotomia. Aqueles que não cumpriam a lei eram multados e apesar disso, os mortos eram submetidos ao procedimento. Das 28 mil amostras provenientes de 1,5 mil viscerotomias realizadas entre maio de 1930 e junho de 1933, somente 54 resultaram positivas. No geral, há poucas referências a programas de ajuda emergencial que tenham dado resultado. As lembranças falam de currais simbólicos e materiais, ao comparar os mortos com os corpos quase mortos dos imigrantes fracos, famintos e doentes. Os moradores dos campos temiam não somente as mortes não naturais, mas serem colocados em túmulos provisórios e anônimos, e de ter os seus corpos desmembrados. 215

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As lembranças do campo “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento” Milan Kundera

Geógrafos culturais, historiadores ambientais e antropólogos usam os termos “paisagem” e “lugar” para descrever a “leitura” cultural dos espaços (DANIELS and COSGROVE, 1988; LEFEBVRE, 1991; HIRSCH and O’HANLOn, 1995). Os espaços tornam-se lugares ao adquirir significado através de experiências compartilhadas, estilos de vida e rituais que dão a eles um sentimento de pertencimento (LOVELL, 1998)9. De acordo com Tuan (1974), a nossa “posição” (gênero, idade, raça/ etnia, religião) produz lembranças e significados ligados aos lugares. O sentimento de pertencimento a um lugar é também reforçado através do conhecimento que temos do lugar ao qual não pertencemos, pelo controle espacial e pela exclusão tais como comunidades fortificadas (DOUGLAS, 1991, p.289). As ruínas do campo de concentração de Patú revelam-se como um lugar de exclusão. Em um lugar desolado e fora do Centro da cidade, esse lugar de memórias (NORA, 1989, p.7) é uma lembrança poderosa e tangível da história da região. As ruínas estão cobertas com cactos e abrigam animais sem donos como macacos, gatos, cães, bodes e galinhas. As paredes desmoronando estão cobertas com desenhos obscenos dos órgãos sexuais. Nos finais de semana, os trabalhadores locais frequentam o Sunset Bar, construído pelos ingleses como uma farmácia quando o açude de Patú estava sendo construído. Segundo 9 Ver também Appadurai (1996: 191), Rosaldo (1989), Rappaport (1989), Basso (1996), Santos-Granero (1998).

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Francis, Kelleher e Neophytou (2000), os cemitérios podem ser vistos como espaços que refletem tanto as relações entre os vivos e mortos, quanto processos sociais mais amplos. O cemitério de Patú é um mapa do poder e da hierarquia, da inclusão e da exclusão, tanto antes quanto depois da morte (HALLAM and HOCKEY, 2001, p. 90). Ele está sobrecarregado de almas de “mortos irrequietos”, aqueles cujas mortes foram por violência ou causas não naturais e que não tiveram um enterro decente. Seus “lugares” correspondem ao limiar entre a morte e depois da vida (HERTZ, 1960, p. 85; EARLE, 1995; GREEN, 1994). No cemitério também estão enterradas crianças de prostitutas ou pessoas pobres demais que não podem pagar um túmulo ou uma lápide permanente. De acordo com Nora (1989, p.22), a “memória topográfica” é a memória que está ligada a lugares. À primeira vista, há pouco o que ver em um cemitério: é silencioso, vazio, esquecido, “socialmente morto” pela sua insignificância (HALLAM e HOCKEY, 2001, p.8). No entanto, a ausência de rastros concretos é contestada pela presença barulhenta dos mortos, pelas centenas de corpos enterrados sob as ruínas e nas águas da barragem. Batizado recentemente como o “Santuário da Seca” pelo padre local, o cemitério é o lugar onde os intermediários sagrados estão presentes, onde se roga a Deus e aos santos por assistência, misericórdia e clemência. O novo padre de Senador Pompeu acha que o lugar é sagrado para todos, “mesmo para aqueles que são assassinos. De alguma forma, eles se identificam com o sofrimento ocorrido ali, com as pessoas vitimadas ali. Até mesmo os membros das gangues vão ali para rezar”. Os objetos deixados no cemitério- tais como, cabelos, cabeças, braços e pernas entalhados em madeira, fotografias, roupas, flores e bebidas- revelam as conversas simbólicas entre os que suplicavam, os 217

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santos ou outros rituais religiosos (FRANCIS, KELLEHER, NEOPHYTOU, 2000, p. 43) (Figure 1). Uma das demonstrações de “herança” do cemitério é através das comemorações. Desde 1992, algumas vezes ao ano, aproximadamente 4 mil moradores fazem uma caminhada de quatro quilômetros do Centro de Senador Pompeu até o Cemitério da Barragem de Patú para rezar e lamentar por aqueles que morreram no campo. Para eles, os mortos não são esquecidos. Durante a procissão, o padre faz reflexões sobre os que viviam encurralados naquele campo em 1932 e a contemporaneidade. Quando ele pergunta “quem entre vocês pede ajuda a essas almas perdidas?”, todos levantam a mão. O trabalho de memória também é realizado por uma ONG chamada de Equipe 1922, em homenagem ao ano em que os trabalhos na barragem foram suspensos. Embora os seus membros, assim como a maioria dos moradores do local, não estivessem no campo, eles estão solicitando que o local seja tombado. Ao mapear, restaurar e conservar esse lugar, eles esperam determinar como o passado é usado, ao identificá-lo como significativo na vida diária das pessoas para lembranças, reflexões, compromissos. Ao tornar o lugar um patrimônio, também roteiriza o que ele não é: um bordel de fim de semana, o “point” da juventude, um lugar abandonado e de má aparência, ou mesmo outro projeto falido do Estado. O historiador Kevin Lynch (citado em HAYDEN, 1995, p. 226) esclarece que “escolher o passado nos ajuda a construir um futuro”. Como diz Albuquerque Júnior (1999, p. 317 [tradução minha]), tornar o campo de concentração de Patú um lugar significativo ao se engajar em atividades tais como a documentação de

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suas histórias orais pode Continuar a contar a história não com as certezas que ela revela, mas sim com as dúvidas que ela levanta. (...) A história não é um bálsamo; é um fogo que se reduz às cinzas de nossas versões estabelecidas, que libera faíscas de dúvidas, que não torna as coisas mais claras ou dissipa a fumaça do passado, e sim procura entender como este fogo é produzido. (...)A história deveria queimar e perturbar.

Figura 1. Oferendas em um túmulo no cemitério da barragem de Patú Membros da Equipe 1922 acreditavam que o conhecimento sobre o campo havia sido silenciado junto com os mortos anônimos. Eles viam as lembranças dos velhos sobreviventes como recursos políticos na comunicação da história regional. Ao falar sobre experiências de desigualdade compartilhada, mais do que anonimato em uma massa amorfa de refugiados, os sobreviventes do campo conseguem legitimidade como agentes históricos. A Equipe 1922 quer que esse

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lugar desempenhe um papel fisicamente simbólico de conscientização10, com o objetivo de usá-lo como uma ferramenta de representação de queixas atuais. Como “vigilantes noturnos”, seus membros estão alerta às violações, tanto dos direitos humanos do passado quanto do presente (GRAMSCI, 1971). Eles almejam usar esse local como memória para desafiar a visão oficial sobre programas, tais como o desvio de fundos pela indústria da seca, que só tem causado injustiças e sofrimento. O Padre João Paulo Giovanazzi (1998), que viveu na comunidade por mais de 20 anos, se refere aos moradores como migalhas - não porque eles recebem suprimentos extras, mas porque eles mesmos são descartáveis. Os enormes gastos relacionados a atividades e projetos contra a seca produzem poucas mudanças na política de mitigação ou mesmo no status econômico de pequenos fazendeiros. A reforma agrária continua a ser um processo lento e altamente litigioso, uma forma de ativismo perigosa, além de que a maioria dos programas de previsão do clima e as intervenções contra a seca são incompatíveis com a necessidade de concentração e irrigação das terras e o acesso ao empréstimo do governo no sertão (ANDRADE, 1985; COELHO, 1985)11. A Equipe 1922 quer tornar a memória dos mortos presente através de filmes, fotos e tours culturais. Ao fazer o filme a que nos referimos antes, o membro da Equipe 1922 Flávio Alves contratou 300 10 Conscientização é um método baseado na educação, no pensamento crítico e na práxis que enfatiza a consciência na raiz da desigualdade socioeconômica e política (FREIRE, 1970; 1980, p. 26). 11 No Nordeste do Brasil, 75% dos reservatórios de água são privados (SUDENE, 1985). No Ceará, os açudes privados são construídos com dinheiro público (VILLA, 2000, p. 252). Eles beneficiam basicamente os grandes proprietários de terra (RIBEIRO, 2000, p. 245). Embora 40% da população do Ceará estejam envolvidos com a agricultura, só 94% têm acesso a terras irrigadas (LEMOS et al., n.d., p. 10).

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moradores locais (e 22 cães) como atores. Os atores foram pagos com 8 mil quilos de alimentos doados pela comunidade. Alguns estavam tão agradecidos com o que eles chamavam de “trabalho fácil”, que nenhum deles queria morrer no filme e assim perder o direito à comida. Essa equipe gostaria de ver esse lugar representando um papel mais amplo no turismo regional e, ao mesmo tempo, evitar a comercialização ou a “disneyficação” que começou no início de 1932, quando os membros do Touring Club, em uma visita a Fortaleza, incluíram em seu itinerário uma parada no campo de concentração de Pirambú para ver os efeitos da seca. (RIOS, 2001, p.27). O turismo cultural está cada vez mais sendo visto como uma maneira de conduzir esta área a uma “integração no desenvolvimento nacional brasileiro” (LIMA, 1998, p.65) e é frequentemente a única opção de falar sobre a violência estrutural. O sertão carece de formas de turismo como as de “sol, terra, mar, sexo e subserviência” (CRICK, 1996) que dominam as comunidades costeiras do Nordeste do Brasil. Em vez disso, o que é anunciado é uma imagem da “boa vida” no interior, onde as pessoas estão enraizadas na terra e os laços familiares são fortes (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p.200; OLIVEN, 1982, p.61; ORTIZ, 1988, p.37). As propagandas de turismo rural oferecem pacotes que prometem uma experiência nostálgica única – estadias em fazendas, tranquilidade, segurança, atividades de lazer para crianças em um ambiente natural – e idealizam e privilegiam formas de vida perdidas para a urbanização, o bem-estar social e a violência. A fazenda, efetivamente uma comunidade rural, oferece uma breve estada em um contexto em que nós imaginamos um fazendeiro benevolente e rigoroso, envolvido em uma rede de relações pessoais e mútuas, obscurecendo as 221

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realidades sociais e espaciais da vida rural. Em uma espécie de “nostalgia imperialista” (ROSALDO, 1989, p.108; HOOKS, 1992, p.25), esses lugares são idealizados como paisagens de lazer principalmente pelo que lhes falta, ou seja tecnologia, desigualdade econômica, acesso à educação e a cuidados médicos - as mesmas coisas que mantêm as pessoas presas aos ciclos do analfabetismo, da pobreza e da exclusão social em empregos mal remunerados e de poucas habilidades transferíveis. O consumo dessas mercadorias culturais geralmente reproduz as mesmas injustiças encontradas entre regiões e grupos étnicos. A pesquisa de George Yúdice sugere que a tendência em apontar a “cultura” como o “santo remédio” para o desenvolvimento e a erradicação da pobreza é o resultado da ausência do bem-estar social do Estado (EDELMAN and HAUGERUD, 2005, p. 2; FALCÃO, 2001). Isso deixa uma “cultura” sem definição como um palanque para escolas ruins, um veículo para resolver as tensões sociais, combater problemas como crime e desemprego, redução das injustiças estruturais e aumento do bem-estar e da autoestima das pessoas (YÚDICE, 2003, p.156). Isso faz com que se produza uma alta expectativa numa área onde 25% da população vivem com menos de dois dólares ao dia, e 13% vive com menos que um dólar ao dia (WORLD BANk, 2005). Em Senador Pompeu, reinventar uma forma de vida “tradicional” com o objetivo de gerar turismo nesse lugar de memórias promoveria um retrato de uma vida rural moderna, fumigada de influências estrangeiras e contemporâneas, reapresentando-a como fora do mercado pelos 70 anos passados. Neste processo, seria necessário provê-la do que há muito se faz ausente ali, como é o caso de infraestrutura, com boas

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rodovias, hospedarias e lazer, o que exige o turismo moderno. Aqueles que procuram uma “autêntica” experiência rural encontram ali o que ele realmente é: um lugar decadente frequentado pela juventude local e um bordel. Ironicamente, as metáforas originais usadas para descrever a região, que tradicionalmente reforçavam a ideia da área como problemática ao se referir aos flagelados maltrapilhos, coronéis cruéis, ativistas messiânicos fanáticos ou heróis primitivos, são exatamente as mesmas que atraem os atuais turistas (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999). A noção de que os “sertanejos” são arraigados à terra é desmentida pelas mudanças regionais, nacionais e globais na produção, nas leis e no uso da terra que trouxe esses trabalhadores sem-terra para essa área e agora os manda embora. Em Senador Pompeu, a praga do bicudo do algodoeiro e as mudanças na indústria do algodão fecharam seu principal exportador agrícola há muito tempo. Em um estudo feito no ano 2000 pela economista Francisca Martins Sousa, no Sul do Ceará, somente 20% dos pequenos fazendeiros entrevistados (N = 69) disseram que eles queriam que seus filhos permanecessem trabalhando na agricultura, embora 95% fossem donos das terras em que trabalhavam (SOUSA, 2004). O mercado de trabalho atual, a produção agroindustrial e a tecnologia fazem com que a subsistência agrícola seja, na maioria das vezes, uma ocupação vestigial. Uma proporção substancial da dieta dos moradores rurais vem de mercadorias enlatadas ou embaladas. A maioria das famílias sobrevive das aposentadorias de parentes mais velhos, que raramente alcançam mais do que um salário mínimo (cerca 223

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de R$ 678,00), ou recebe ajuda econômica daqueles que migraram para a cidade. Em Senador Pompeu, pouco menos dos seus 27 mil habitantes vive na zona rural, e quase metade da população tem menos de 19 anos de idade. Os jovens falam de si mesmos como estando em trânsito. Há muito pouco para eles, exceto migrar ou criar redes com pessoas que moram fora da área. Eles cobiçam empregos que não estejam ligados à agricultura, e deixam suas cidadezinhas sem nenhuma intenção de voltar. O consumismo ostentatório, os problemas sociais urbanos e os efeitos colaterais dos projetos agroindustriais, são óbvios para qualquer visitante e desafiam as noções de “tradições” folclóricas como formas dominantes de expressão cultural. Os carros tocam o último sucesso musical em volume estridente e os celulares dos vaqueiros, montados sobre seus cavalos, tocam constantemente. As gangues são onipresentes nas favelas e nas zonas urbanas. Na última festa realizada na cidade, três pessoas foram assassinadas. A maconha e as drogas injetáveis são facilmente encontradas. Redes de prostituição organizada agendam garotas para clientes locais. O roubo é comum, dando início a um próspero negócio de fabricação de grades de ferro forjado para portas, janelas, terraços e varandas. O turismo cultural se baseia na noção de uma comunidade “homogênea”, no consenso sobre o que é patrimônio e o que não é – uma noção perfeita, mas com pouco amparo na prática. A “memória coletiva” dos campos não abrange todos e alguns são cépticos sobre os benefícios do projeto de transformar o lugar em patrimônio cultural. Alguns rejeitam esses esforços porque é como “tirar vantagem do passado”,

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engajando-se em um ativismo social vazio, como uma maneira de obter benefícios financeiros. Por que se esforçar tanto se concentrando em algo que aconteceu há três quartos de século? O melhor é deixar os mortos em paz e apoiar questões mais urgentes para a comunidade, tais como geração de empregos. “Isto só vai dar dinheiro para o bolso de alguns, como a maioria dos projetos aqui. Muitas dessas pessoas nem mesmo moram aqui. Por que eles querem um projeto aqui12?”. As vantagens dos lugares como patrimônios e alvos de recursos para a comunidade e a irrelevância daqueles lugares para outros são parte da natureza política e dissonante do patrimônio (SMITH, 2006, p.80). No entanto, a materialização das lembranças das experiências dos refugiados da seca nos campos de concentração em 1932 como patrimônio aumenta a visibilidade de um passado obscurecido pelo “senso comum” da história como “inventado”, ou como parte do folclore regional. As ruínas do campo e o cemitério solitário em Senador Pompeu não são lugares que apenas representam o passado; através das lembranças e das comemorações, eles se engajam na história regional cujos múltiplos significados têm sido quase sempre silenciados ou ignorados. As lembranças das mortes, dos desmembramentos, da mercantilização das partes do corpo e as procissões ao “Santuário da Seca” são ferramentas culturais para comunicar o que Jay Winter (1995) chama de “crueldade prolongada”, a violência que persiste na sociedade contemporânea. Demarcar esses lugares como patrimônio é, de muitas formas, uma intervenção não somente econômica, como turismo cultural, mas também através de um ativo processo crítico de 12 Os irmãos Alves, fundadores da equipe de 1922, vivem em Fortaleza, embora eles tenham família em Senador Pompeu.

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conscientização que reinterpreta e molda as maneiras pelas quais as pessoas relembram e pensam sobre assustadores passados morais e sobre as geografias contemporâneas de exclusão (HARVEY, 1989). Assim como os campos, as favelas urbanas e rurais são como “currais” para os milhões que vivem em condições precárias. É o lugar onde muitos da área terminam, assim como os pobres o fizeram antes deles.

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Revista do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri, Crato -CE

Nominata de Pareceristas ad hoc da Revista Cadernos Tendências Nº 7, 2013 André Alcman Oliveira Damasceno Universidade Regional do Cariri Andrea Moraes Alves Universidade Federal do Rio de Janeiro Antônio da Silveira Brasil Junior Universidade Federal do Rio de Janeiro Berenice Alves de Melo Bento Universidade Federal do Rio Grande do Norte Antônio Cristian Saraiva Paiva Universidade Federal do Ceará Francimara Nogueira Teixeira Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará Iara Maria de Araújo Universidade Regional do Cariri Larissa Maués Pelúcio Silva Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015  ISSN: 1677-9460

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Revista do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri, Crato -CE

Leandro de Oliveira Universidade Regional do Cariri Marcelo Tavares Natividade Universidade de São Paulo Márcia Leitão Pinheiro Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro Maria Cláudia Coelho Universidade Estadual do Rio de Janeiro Naara Lúcia de Albuquerque Luna Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Océlio Teixeira de Souza Universidade Regional do Cariri Renata Marinho Paz Universidade Regional do Cariri Roberto Marques Universidade Regional do Cariri

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