Tendências e características da epidemia do HIV/Aids entre os povos indígenas UMA ABORDAGEM ETNOEPIDEMIOLÓGICA

July 14, 2017 | Autor: Ivo Brito | Categoria: Social epidemiology, Public Health, Medical Anthropology/ antropología médica
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Tendências e características da epidemia HIV?Aids entre os povos indígenas

Tendências e características da epidemia do HIV/Aids entre os povos indígenas UMA ABORDAGEM ETNOEPIDEMIOLÓGICA Ivo Brito *

Introdução

O

Brasil possui uma população indígena estimada em 350 mil índios, segundo informações divulgadas oficialmente pela Fundação Nacional de Saúde – Funasa.1 Já o Censo 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE,2 refere que mais de 701.462 mil pessoas definiram-se índios. Essa informação do censo é importante porque o levantamento realizado pela Funasa não considera a população indígena residente em áreas urbanas ou que se encontra desaldeada. É importante destacar que essa população desaldeada não perde seus vínculos e mantém contatos regulares e freqüentes com as comunidades de origem, ao mesmo tempo que interagem e estabelecem redes diferenciadas de contatos com a população envolvente, aumentando sua vulnerabilidade e a vulnerabilidade das comunidades às doenças. Essa rede de interação também se dá no sentido inverso. As frentes de expansão agropecuária, os projetos de mineração e de desenvolvimento – barragens, estradas e colonização agrícola – atraem contingentes populacionais significativos, provocando contatos interétnicos que repercutem nas condições de saúde das populações indígenas.

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Sociólogo, assessor técnico da Coordenação Nacional de DST/Aids, Ministério da Saúde.

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Ministério da Saúde, Fundação Nacional de Saúde, Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas, Brasília, dez 2000.

2

IBGE, Censo demográfico 2000. Tabulações avançadas, Rio de Janeiro, IBGE, 2000.

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Estudos recentes têm alertado para o fato de que a tendência à interiorização e à crescente expansão da epidemia do HIV/Aids nas regiões metropolitanas – principalmente nas regiões Centro-Oeste e Norte – estão associadas à mobilidade e às frentes de expansão relacionadas ao desenvolvimento.3 Esse processo de expansão não tem deixado de fora as populações indígenas. É assim importante compreender e possuir uma visão geral da epidemia de Aids na população indígena, partindo do pressuposto de que, por se tratar de doença que envolve as relações e os arranjos sexuais, as famílias, os casais e que se expande de uma pessoa para o grupo, sua dinâmica e as tendências são mais complexas nas comunidades indígenas.4

Etnoepidemiologia e Aids entre os povos indígenas: Diferencias de risco e vulnerabilidade O primeiro caso de Aids na população indígena foi notificado em 1988, no estado de Santa Catarina.5 Desde então, a epidemia passou a fazer parte da vida dos povos indígenas. Mesmo se considerado como caso isolado entre indígenas da Região Sul, é importante destacar que o mesmo surge em um contexto de fortes pressões externas, principalmente em função das transformações sócioeconômicas desencadeadas pela construção da Barragem Norte e exploração de madeiras em suas terras, como pelas relações de contato e redes de interação com a população envolvente. Na Tabela 1, temos a distribuição dos casos proporcionais de Aids, segundo faixa etária e sexo. É importante observar que o segmento mais atingido está na faixa etária entre 20 e 34 anos. É importante destacar que as mulheres vem se constituindo no grupo mais vulnerável, sendo, portanto, as que mais sofrem o impacto das mudanças sócio-culturais que afetam o grupo. Em geral, o aumento da freqüência de relacionamentos com pessoas fora do grupo, em particular de 3

Victor Leonardi, Fronteiras amazônicas do Brasil. Saúde e história social, Brasília/São Paulo, Paralelo 15/Marco Zero, 2000.

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Jonathan Mann (org), A Aids no mundo, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1993.

5

Flávio Wiik, “Contato, epidemia e corpo como agentes de transformação: Um estudo sobre a Aids entre os índios Xokléng de Santa Catarina”, Cadernos de Saúde Pública, Rio de janeiro, Vol. 17, n. 2, 2001, pp. 397-406.

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Tabela 1 Distribuição Proporcional dos casos de Aids entre a População Indígena – 2001 Grupo etário (anos) 15 a 19 20 a 24 25 a 29 30 a 34 35 a 39 40 a 44 45 a 49 50 a 64 Idade ignorada

TOTAL

01 02 06 07 04 03 -

23

Masculino (4,3%) (8,7%) (26,1%) (30,4%) (17,4%) (13,0%)

01 04 11 04 01 01 02

(100%)

24

Feminino (4,2%) (16,6%) (46,0%) (16,6%) (4,2%) (4,2%) (8,2%)

(100%)

02 06 17 11 05 04 02 03

50

Total (4,0%) (12,0%) (34,0%) (22,0%) (10,0%) (8,0%) (4,0%) (6,0%)

(100%)

Fonte: CN-DST/Aids - Ministério da Saúde.

homens índios que se deslocam com regularidade para as cidades e municípios próximos das aldeias ou que transitam das cidades para as aldeias, o aumento da prostituição de mulheres índias, o consumo de álcool e o arranjo sexual do grupo, são fatores responsáveis pelo crescimento da epidemia entre índios aldeados. Mas esses fatores só podem ser compreendidos se evidenciados os diferenciais de risco e de vulnerabilidade da população.6 As redes sociais que se formam são bastante complexas, o que exige um esforço no sentido de caracterização e de identificação dessas redes em suas dimensões antropológica e política, bem como o conhecimento exato de como operam essas redes no processo de disseminação de doenças. Portanto, cada grupo étnico deve ser contextualizado em sua situação particular e relacionados à dinâmica mais geral dos contatos interétnicos. O Quadro 1 mostra alguns dos indicadores utilizados para avaliação dos diferenciais de risco e vulnerabilidade. A Figura 1 mostra a distribuição regional dos casos de Aids na população indígena. Observa-se que a tendência de crescimento para a Região Centro-Oeste e Norte vem se acentuando. Quando os dados são desagregados, percebe-se que 6

Ministério da Saúde, Povos indígenas e a prevenção às DST, HIV e Aids. Manual de diretrizes técnicas, Brasília, 2000.

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Quadro 1 Indicadores para Diferenciais de Risco e Vulnerabilidade para os Povos Indígenas Externos

Internos

1. Exploração de recursos florestais. 2. Mineração e garimpagem em terras indígenas. 3. Estradas e/ou ferrovias 4. Arrendamento de terra indígena 5. Projetos do setor elétrico 6. Invasões 7. Núcleos rurais e projetos de colonização 8. Ocorrência de viajantes regulares 9. Presença de agências indigenistas

1. Nível do poder aquisitivo e escolaridade 2. Nível do poder político 3. Equilibrio das relações de parentesco e questões de gênero 4. Nível de conhecimento sobre situação de saúde e formas de transmissão de doenças 5. Moradores fixos extra-grupais e mobilidade de segmentos de maior status no grupo 6. Inter-relações grupais e inter-étnicas 7. Presença indígena em núcleos urbanos

Institucionais 1. Situação de regularização da terra da terra indígena 2. Existência de índios funcionários de instituições públicas que se deslocam com freqüência. 3. Existência de projetos de desenvolvimento comunitário 4. Existência de distritos sanitários especiais indígenas 5. Política de RH para formação de agentes indígenas de saúde

Figura 1 Distribuição Regional dos Casos de Aids na População Indígena – 2001

45% 40% 35% 30% 25% 20% 15% 10% 5% 0% Norte

Nordeste

Sudeste

4

Sul

Centro-oeste

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essa tendência de crescimento é mais expressiva no estado de Mato Grosso Sul, onde a população indígena residente em áreas urbanas vem sendo mais afetada. O fato de se localizarem em áreas urbanas e não disporem da atenção diferenciada dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI, essa população tem encontrado dificuldades na assimilação dos programas de prevenção, pois vêem seu acesso aos serviços de saúde e a garantia dos insumos de prevenção cada vez mais reduzidos. Por outro lado, os serviços de saúde não se encontram preparados para lidar de forma sistemática com as diferenças culturais e possíveis barreiras impostas pela representações e concepções de saúde dos povos indígenas. A Aids nem sempre é percebida como ameaça imediata. Em geral – dadas as características de sua manifestação clínica e de seus sintomas –, ela se apresenta no discurso sobre a corporalidade como algo que interpõe o físico e o cotidiano ao mundo simbólico, algo que altera a rotina coletiva da comunidade e se afirma como construção social. As pessoas vivenciam diferenciadamente cada momento, mas o vivenciam de forma coletiva e solidária. A morte social e o estigma não participam das sociedades indígenas, são das sociedades que se constituíram com base no individualismo e na intolerância. Assim, apesar da ameaça e do dano que a instalação de uma epidemia de Aids poderia trazer às comunidades indígenas, temos muito a aprender no que se refere à solidariedade e à sociabilidade dos processos saúde e doença.7

Aids entre povos indígenas: A resposta brasileira A epidemia da Aids é um fenômeno global e atinge diferenciadamente a população mundial. É uma epidemia que se expande por redes de contigüidade e por saltos, isto é, afeta pequenos grupos e comunidades locais, em suas mais

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Sobre as noções de corpo, corporalidade e processos de socialização, cf. os trabalho de Roberto Da Matta et alii, “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”, in Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil, São Paulo, Marco Zero, 1987; T. Turner, “Social body an embodied subject: Bodiliness, subjectivity, and socibility among the Kayapó”, in Cultural Anthropoloy, n. 10, 1995, pp. 143-170.

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diversas condições de desenvolvimento sócio-econômico.8 Para enfrentar a epidemia da Aids entre os povos indígenas, a CN-DST/Aids considera as seguintes estratégias técnicas: ‰ Apoio a projetos de intervenção comportamental e de ações de saúde executadas em parceria com organizações não-governamentais, indígenas e indigenistas, capacitando agentes indígenas de saúde e professores índios como multiplicadores de informação. ‰ Realização de encontros macrorregionais para definição de estratégias de prevenção em DST/Aids, controle social na área da saúde e mobilização dos povos indígenas, articulando as instituições de saúde do Sistema Único de Saúde, a Funai, organizações não-governamentais e as instituições representativas da comunidade indígena. ‰ Capacitação e formação de agentes indígenas e professores índios como multiplicadores de informação para desenvolvimento de ações de prevenção nas comunidades indígenas. ‰ Garantia de insumos de prevenção para o desenvolvimento de ações preventivas, em relação a saúde em geral e, em particular, as DST/Aids. ‰ Realização de inquéritos de soroprevalência em sítios selecionados – sentinelas – para identificação da situação de risco e exposição ao HIV/Aids e da sífilis, em segmentos de maior risco e vulnerabilidade da população indígena. ‰ Produção de documentos técnicos e de material instrucional para auxiliar a intervenção junto à comunidade indígena. ‰ Redução da prevalência das DST nas comunidades indígenas, apoiando o pessoal técnico dos DSEI e capacitando médicos e enfermeiros em abordagem sindrômica de DST. ‰ Sustentabilidade das ações de prevenção e das instituições da sociedade civil executoras de projetos de intervenção.

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Para uma melhor compreensão da relação entre processos de saúde globais e problemas locais, cf. o artigo de Maj-Lis Follér, “Interactions between global processes and local health problems: A human ecology approach to health among indigenous groups in the Amazon”, in Cadernos de Saúde Pública, n. 17, 2001, pp. 115-126.

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Estas estratégias só serão factíveis se implementadas em consonância com as políticas intersetoriais no campo social dirigidas aos povos indígenas. Não se pode enfrentar uma epidemia dessas proporções se não houver esforço coletivo, que envolva diretamente a sociedade e o Estado.

Referências bibliográficas DA MATTA, Roberto et alii. “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”, in Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil, São Paulo, Marco Zero, 1987. FOLLÉR, Maj-Lis. “Interactions between global processes and local health problems: A human ecology approach to health among indigenous groups in the Amazon”, in Cadernos de Saúde Pública, n. 17, 2001. IBGE. Censo demográfico 2000. Tabulações avançadas, Rio de Janeiro, IBGE, 2000. LEONARDI, Victor. Fronteiras amazônicas do Brasil. Saúde e história social, Brasília/São Paulo, Paralelo 15/Marco Zero, 2000. MANN, Jonathan (org). A Aids no mundo, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1993. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Povos indígenas e a prevenção às DST, HIV e Aids. Manual de diretrizes técnicas, Brasília, 2000. MINISTÉRIO DA SAÚDE/FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas, Brasília, dez 2000. TURNER, T. “Social body an embodied subject: Bodiliness, subjectivity, and socibility among the Kayapó”, in Cultural Anthropoloy, n. 10, 1995. WIIK, Flávio. “Contato, epidemia e corpo como agentes de transformação: Um estudo sobre a Aids entre os índios Xokléng de Santa Catarina”, Cadernos de Saúde Pública, Rio de janeiro, Vol. 17, n. 2, 2001. 

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