Tensões, conflitos e relações de serviço no transporte coletivo em Campos dos Goytacazes

June 15, 2017 | Autor: A. Gualande Junior | Categoria: Sociologia Urbana, Antropologia Urbana, Pragmatismo
Share Embed


Descrição do Produto

Tensões, conflitos e relações de serviço no transporte coletivo em Campos dos Goytacazes Ailton Gualande Junior Universidade Federal Fluminense – COC/UFF [email protected] Resumo: Esta pesquisa se enquadra no projeto: Filas, esperas e tensões em pontos de ônibus em Campos dos Goytacazes, coordenado por Jussara Freire. Busco analisar diferentes modalidades de tensões e conflitos entre passageiros do transporte coletivo, operadores do sistema (rodoviários) e fiscais municipais em Campos dos Goytacazes/RJ. Nesse sentido, proponho mapear as moralidades que orientam as interações de face a face nas situações de copresença entre esses atores nas filas de espera dos pontos de ônibus e terminais rodoviários. Nesta observação de situações, privilegiei ambientes compartilhados por atores que exercem "ofícios do público" e usuários do serviço de transporte. Procurei entender os agenciamentos de momentos, lugares e homens com ênfase nos profissionais que orientam passageiros, administram os fluxos, controlam a prestação de serviços e, eventualmente, cuidam dos passageiros. Articularei esta análise situacional com a política urbana de transporte com a finalidade de compreender as gramáticas1 mobilizadas em torno deste serviço em Campos. Em síntese, a pesquisa possibilitará, de um lado, descrever parte do processo de vulnerabilidade do citadino (Joseph, 2000) campista pela lente dos transportes, por outro, permitirá problematizar a questão da composição dos espaços públicos brasileiros (Kant, 1991, 1999, 2001). Palavras-chave:

Sociologia

pragmatista,

espaço

público,

experiência

citadina,

moralidades.

1.Introdução Nesta pesquisa, serão apresentados os resultados de uma observação etnográfica realizada nos terminais rodoviários em Campos dos Goytacazes, cidade localizada no 1 O termo “gramática” se refere ao conjunto de regras a serem seguidas para agir de forma ajustada diante das outras pessoas que compartilham a mesma situação (LEMIEUX, 2000; BOLTANSKI, 1990 e THÉVENOT e BOLTANSKI, 1991). (Freire, 2005; p.94)

interior do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Nestes locais, os conflitos que envolvem usuários, operadores e fiscais estão relacionados com disputas entre diferentes modalidades de ordenamentos que entram em fricção nas situações. Neste quadro referencial, a ecologia humana permite retomar a questão da mobilidade e da acessibilidade aos espaços públicos a partir dos “locais-movimento da cidade” (Joseph, 2000a) como os terminais rodoviários, pontos de ônibus e estações de trem e metrô. Apresentação da pesquisa e entrada no campo. A dinâmica que envolve o transporte coletivo sempre foi vivenciada por mim de forma superficial. Somente a partir do ano de 2012, momento em que ingressei no quadro de agentes de fiscalização do transporte municipal passei a fazer parte deste mundo de forma mais intensa. Trabalhava em locais de grande movimentação como a rodoviária central e o terminal urbano. Nesses espaços públicos passei a ter contato com os profissionais que operam o sistema: despachantes, motoristas e cobradores. De forma análoga, mantinha estrita aproximação com os passageiros que diariamente procuram os fiscais para formular queixas do que percebem como injusto, e a violação de direitos. Experimentei por diversas vezes inquietações sobre a realidade que presenciava, como por exemplo, a questão dos cadeirantes e sua enorme dificuldade de acessibilidade no transporte. Por outro lado, os desacordos que envolviam despachantes/motoristas, fiscais e usuários não eram motivo de estranhamento de minha parte, uma vez que se constituíam rotineiramente. Esta situação se modificou a partir do momento em que paralelamente ao trabalho na fiscalização vivenciava uma imersão no curso de graduação em ciências sociais. Durante certo período tive contato com uma sociologia voltada para as questões urbanas e dos espaços públicos, o que me remetia a todo instante às minhas memórias como fiscal. Iniciou-se um processo de estranhamento do que havia experimentado. Percebi a riqueza que a minha condição proporcionava para uma observação fina dos espaços públicos. Decidi, então, procurar a coordenadora do grupo de pesquisas Cidades, espaços públicos e periferias - CEP28, Jussara Freire. Iniciamos um diálogo que culminou na transformação do meu local de trabalho como campo privilegiado para estudar os conflitos que emergem nas situações ordinárias no transporte. Meu desafio era o de estranhar as minhas próprias atitudes como fiscal, bem como os de meus colegas de trabalho. Tornei-me membro do grupo de pesquisas citado. Nas reuniões semanais, ocasiões em que todos os pesquisadores integrantes relatavam os avanços e resultados de suas pesquisas, pude estabelecer interlocuções importantes

para a construção de meu trabalho. Mesmo explorando campos diferentes, havia muitas convergências que permitiam estabelecer debates relevantes para os pesquisadores. Nesse sentido, apresento neste trabalho os resultados de uma análise conduzida por um pesquisador que é ao mesmo tempo um “nativo”. Procurei me distanciar ao máximo das categorias com as quais encontrava-me habituado. As situações relatadas incluem tanto observações presenciadas por mim na condição de fiscal, quanto como no papel de passageiro e observador. O que mais despertava meu interesse nesses espaços públicos era a presença contínua de uma interação tensa e conflituosa. Agressões verbais e insultos morais surgiam em situações específicas. Deparei-me, neste momento, com uma ampla literatura sobre o tema do transporte coletivo (e/ou informal) e dos conflitos que nele emergiam (Pires, 2011; Mamani, 2004; Caiafa, 2002), foco de inúmeros estudos voltados para suas formas e dimensões. Porém, estes estudos priorizam a análise das interações e conflitos nos momentos de circulação. Os fatos que presenciava na rodoviária e no terminal levaram-me a perceber a centralidade da observação das situações de espera compartilhada que antecedem o momento da circulação no interior dos ônibus. Nesse sentido, as filas de espera surgem como foco de análise desta pesquisa, uma vez que se apresentam como um ordenamento moral negociado face a face. Ao mesmo tempo, é a partir dela que grande parte dos conflitos entre os “profissionais do público” (Freire, 2014b) (despachantes, motoristas, fiscais) e os passageiros, emergem. 2.Metodologia A pesquisa se fundamenta em uma observação etnográfica nos pontos de ônibus de maior circulação (Rodoviária central e Terminal urbano), visto que são locais privilegiados para a investigação de situações de interação que são foco da pesquisa. Ao mesmo tempo, estes espaços públicos estão sob fiscalização dos agentes do IMTT 2. Trata-se de observar as tensões e conflitos que emergem nas situações de espera compartilhada pelo embarque ou desembarque. Desse modo, analiso as interações de face a face nas filas e nos pontos de ônibus para compreender a natureza dos conflitos e as formas como se tecem as “relações de serviço” (Joseph e Jeannot, 1995) entre os “profissionais do público” e os passageiros. Neste processo de imersão, inspiro-me nas 2 Instituto Municipal de Trânsito e Transporte – Órgão pertencente à prefeitura. É responsável pela fiscalização do transporte coletivo. Possui um quadro de funcionários públicos denominados fiscais de transporte coletivo.

contribuições de Foote White (1943) e sua proposta de observação participante, em que os pontos de ônibus tornam-se a 'esquina' onde realizo minhas observações. Este autor estudou as relações de sociabilidade estabelecidas entre os moradores de um determinado bairro na cidade de Chicago – EUA. Utilizou-se de uma imersão profunda nas interações com os moradores. Compartilhou durante anos a experiência cotidiana desses indivíduos. Ao dispor-se em uma das esquinas dessa localidade, tinha acesso a todos os os relatos dos acontecimentos que ali ocorriam. Ao mesmo tempo, dispunha de uma visibilidade privilegiada para observar as situações ordinárias que se desenrolavam naquele espaço. De forma análoga, pude experimentar nos pontos um contato face a face com fiscais, rodoviários e passageiros. Assim como Foote White, pude realizar uma observação participante. As percepções resultantes desta minha posição permitiram compreender como se tecem as sociabilidades e conflitos nas situações de espera compartilhada. Além deste recurso metodológico principal, realizo uma análise da legislação pertinente ao transporte (Leis, regulamentos, portarias, decretos) de âmbito nacional e municipal, com o objetivo de compreender as gramáticas que permeiam os dispositivos jurídicos que conduzem a política urbana de transporte. Esta ferramenta analítica permitiu compreender os modos pelas quais estas gramáticas são ressignificadas pelos atores nas situações tensas e conflituosas nos terminais rodoviários.

3.Resultados O espaço do ônibus e os atores que o compõem Todos os dias, de madrugada, ouve-se em determinados pontos da cidade, a “zoeira” dos motores que se aquecem ao serem ligados por seus condutores. Nas garagens, a efervescência da vida citadina anuncia-se. Homens e mulheres se aprontam para passarem as próximas oito horas acomodados em seus respectivos assentos. Motorista e cobrador analisam o intenso fluxo de pessoas no espaço do ônibus, pontos e terminais rodoviários. Essas personagens não só observam, mas compõem o público (Dewey, 1927) que transita pela cidade no que convencionou-se denominar de transporte coletivo. O motorista, habituado a seus automatismos, para no ponto quando alguém lhe sinaliza a intenção de embarcar. Olha para o retrovisor direito, diminui a velocidade e

para. Pressiona uma certa alavanca que se situa ao lado esquerdo, entre seu braço e a janela da poltrona. A porta se abre por meio do acionamento de um sistema de pressão. O passageiro, então, embarca. Apoia-se nas barras de ferro acopladas na escada de acesso ao ônibus. Finalmente alcança aquele corredor cercado por todos os lados. Posiciona-se de frente para o cobrador. Durante toda movimentação, o motorista analisou a situação por meio do retrovisor central que lhe proporciona uma visão ampla do interior do veículo. Assim que percebe o reflexo do passageiro, engata a primeira marcha, olha para o retrovisor esquerdo e arranca. Nesse momento, aquele indivíduo que alcançou o cobrador equilibra-se para não cair, decidido a pagar sua passagem. O cobrador, mais habituado aos solavancos, recebe o dinheiro e ao certificar-se que a quantia está correta, destrava a roleta para que o passageiro busque um assento livre. Estes dois profissionais do público (Freire, 2014b) trabalham em conjunto. Por vezes, o cobrador utiliza-se do som de uma moeda contra a roleta para sinalizar ao motorista que há pessoas com a intenção de embarcar. Ou, em outros momentos, o tilintar da moeda significa que o condutor pode arrancar, uma vez que todos os passageiros embarcaram. Este tipo interação ocorre principalmente em momentos de grande movimento, quando os pontos estão cheios e, consequentemente, os ônibus também. Nessas ocasiões a visibilidade do motorista através dos retrovisores fica prejudicada. Portanto, a execução de seus automatismos segue a sinalização de seu parceiro de trabalho. Estes profissionais experimentam em suas funções um estado de sociabilidade intensa. Mesmo quando não se engajam em uma conversa, a interação face a face é inevitável no espaço do ônibus. Nesse sentido, retomando Joseph (2000a), ambos podem ser considerados como homens públicos, uma vez que o serviço é realizado situacionalmente em um espaço cuja circulação e rotatividade de pessoas é considerável. O serviço de transporte coletivo em Campos dos Goytacazes. Em Campos dos Goytacazes, o serviço do transporte coletivo é oferecido de duas formas. De um lado, há uma estrutura de prestação deste serviço por meio de ônibus que pertencem a empresas. Por outro lado, há o Serviço de Transporte Alternativo Municipal – SETAMP, que foi instituído por lei de iniciativa do poder executivo no ano de 2011. Este tipo de transporte caracteriza-se pelo uso das denominadas vans (veículo com lotação máxima de 16 passageiros). Apesar de possuírem convergências em vários aspectos, estes dois modelos de prestação do serviço de transporte apresentam divergências significativas. Nesse sentido,

seria difícil conciliar minhas análises nestes dois campos distintos. A análise da legislação que rege o transporte permitiu compreender a natureza deste serviço. Sua denominação legal o referencia como transporte público coletivo de passageiros, caracterizando-o como serviço público. Portanto, a responsabilidade por sua oferta deveria ser do poder público competente, a prefeitura. Porém, dentro deste quadro atributivo, pode-se optar pela prestação indireta do serviço através de parceria com o setor privado por meio de concessão ou permissão. Nesse caso, há a prerrogativa da existência de um aparato de fiscalização por parte do poder concedente. Por meio desta prerrogativa é que existe a figura do fiscal de transporte. Este tem a função de garantir a prestação do serviço conforme as diretrizes estabelecidas pela prefeitura e por dispositivos legais. Nesse sentido, a Política nacional de Mobilidade Urbana, ao tratar dos direitos dos usuários, cita a lei 8.078 de 1990 como instrumento de garantia da efetivação de direitos. Esta lei dispõe sobre a proteção do consumidor. O passageiro é, então, encarado como comprador de um serviço. Assume, assim, a figura de cliente. Diante deste quadro geral, os resultados da presente pesquisa apontam para a constatação de que o serviço de transporte coletivo em Campos dos Goytacazes, quiçá, no Brasil apresenta-se como uma transação comercial, no sentido de que os passageiros – usuários – ficam condicionados a pagar uma certa quantia para que dele possam usufruir. Ou seja, o transporte hoje é considerado uma mercadoria. A postura dos operadores do transporte (despachantes, motoristas e cobradores) ligados às empresas privadas que oferecem o serviço é semelhante à lógica da transação comercial. Passageiros são vistos como potenciais consumidores de seus produtos – o direito de se locomover em seus coletivos – e, tendo isto em mente protagonizam disputas entre diferentes empresas que ofertam os mesmos itinerários. Em Campos, essa situação se apresenta em duas das linhas mais disputadas por despachantes – os itinerários que partem da rodoviária ou do terminal urbano em direção ao maior Shopping da cidade, ou, a linha - Rodoviária x Farol de São Tomé. Frequentemente despachantes discutem entre si quando sentem que sofreram prejuízo por conta da “malandragem” de uma empresa rival que teria “roubado seus passageiros”. É preciso frisar que os usuários disputados nessas situações são os denominados “pagantes”. Em relação aos “não pagantes” não há mobilização no sentido de cooptá-los. Pelo contrário, muitas vezes despachantes utilizam-se de manobras para repassar aos demais colegas um contingente de indivíduos que não pagam a passagem, numa atitude que visa exclusivamente o engrandecimento da margem de lucro da empresa para qual trabalha. Apesar deste comportamento, os operadores do sistema se referem aos

usuários como passageiros, e não como clientes. Ordens negociadas Nos espaços públicos observados nesta pesquisa, as filas se mostraram um aspecto importante da dinâmica do transporte. Constituem o ordenamento de fluxos dos passageiros. A fila, por meio de diversas regras, regula o ajuntamento disperso do ponto tem sua regra fundamental: o primeiro que chega será o primeiro a ser atendido e, no caso em análise, será o primeiro a embarcar no ônibus. Este princípio ordena as interações nestes momentos de espera comum. Esta percepção é compartilhada pelos usuários pelo fato de que a fila é regida pela espera da chegada do transporte coletivo e de seus horários. Ao chegar no ponto, o passageiro já calculou seu “tempo de transporte”, que não envolve apenas o tempo do trajeto, bem como aquele da chegada no ponto, do horário de saída do transporte e de possíveis atrasos. Neste sentido, o momento da fila é crucial. A posição do passageiro nela garante a fiabilidade de seu cálculo temporal para chegar ao seu destino pontualmente. Em quase todas situações que observei a regra do primeiro a chegar, primeiro a ser atendido, é naturalizada pelos passageiros quando as antecipações (como o horário do ônibus) são confiáveis. A formação da fila inicia-se quando uma pessoa se aproxima primeiro de uma determinada plataforma de onde partirá um ônibus nos próximos minutos. Posiciona-se próximo ao limite lateral da plataforma e ali permanece parada em pé. O segundo passageiro que também pretende embarcar no mesmo ônibus ao chegar ao local entende que a fila já foi iniciada por aquela outra pessoa que ali já se encontra esperando. Se não há a certeza do fato, é comum que se pergunte ao outro se está na fila. Dessa forma, este segundo passageiro se posiciona imediatamente atrás do primeiro. Essa ação é repetida pelos demais passageiros que chegam posteriormente. Logo, os passageiros definem a situação e como se ajustar a ela, ao mesmo tempo que esperam uma reciprocidade dos demais. Esta situação ordinária é exemplo da competência dos atores que em público são capazes de se ajustar ao enquadramento vigente. Como diria Joseph (2000a): Confrontados à pluralidade de mundos sociais, nossa competência social se mede pela nossa capacidade de entrar em acordo.(p. 9) Dessa forma, uma fila de ônibus pode ser definida como um compromisso entre diferentes sentidos de justiça que orientam as coordenações entre os atores nestas situações. Primeiramente, há prevalência de um ordenamento público, no qual o interesse coletivo é posto como ponto a ser preservado. Este entendimento é qualificado através da

percepção da igualdade entre todos os que compõem a fila. Portanto, a todos é garantido o direito de embarcar no ônibus. Ao mesmo tempo, entende-se que aos indivíduos que estão há mais tempo esperando, é garantido a primazia diante dos demais. Não há possibilidade de que algum indivíduo que não apresente uma razão pública desobedeça a regra e posicione-se à frente de outro que ali já se encontrava. Certa vez, na rodoviária de Farol de São Tomé (distrito praiano localizado a 50 km do centro de Campos), logo após um show em um dia de verão em que o sol brilhava intensamente, a rodoviária encontrava-se lotada. A fila cercava metade do edifício. O motorista do próximo ônibus que estacionaria na plataforma decidiu embarcar antecipadamente alguns familiares. Neste momento, foi possível observar que os passageiros que se encontravam na fila observavam a situação de longe e comentavam uns com os outros. O balançar de suas cabeças demonstrava desacordo com tal atitude. A delação entre eles era visível. A tensão aumentou quando o ônibus estacionou na plataforma. Alguns passageiros exaltados, já aos gritos, foram ao encontro do motorista. O conflito instaurou-se. Os reclamantes justificavam suas críticas segundo um ordenamento de igualdade que deveria ser preservada pelo cumprimento da ordem da fila. Nessa ocasião, as críticas eram públicas e aceitáveis pelos demais presentes. O motorista tentou em vão se defender das acusações. Sem uma justificativa que fosse densa o suficiente para sustentar sua argumentação, decidiu desembarcar aqueles indivíduos que haviam sido o motivo da disputa. Nesse sentido, a crise cessou a partir do momento que houve o restabelecimento do acordo aceitável por todos, sendo o de quem estava há mais tempo na fila deveria embarcar primeiro. Em ocasiões similares, observei que alguns pais e mães utilizam-se da permissão de embarque de crianças de até cinco anos pela porta da gratuidade para marcar assentos no ônibus. Por vezes, quando percebem que sua posição na fila não lhes garantirá uma viagem “confortável” (sentados), conduzem seus filhos até a escada do ônibus e os instruem a sentar em alguma poltrona. Assim, estará “marcando lugar”. Esta atitude muitas vezes passa despercebido principalmente quando não há muitos passageiros. Em outros momentos, tal atitude torna-se um problema e acaba por gerar desacordos por conta da percepção de que a regra da fila está sendo violada. O ordenamento baseado na igualdade é ameaçado assim que se inicia o embarque. Por vezes, percebi que havia tumulto no momento de entrada no veículo. Todos almejam uma poltrona livre para percorrerem o trajeto sentados. Outro fato curioso é a distinção na formação da fila nos dois pontos onde mais realizei observações. Na rodoviária centra é comum, principalmente nos horários de pico, perceber a existência das

filas, principalmente em plataformas específicas onde há um fluxo maior de passageiros. Já no terminal urbano, as filas são raras. A dimensão espacial auxilia a compreensão desta distinção. As plataformas do terminal não são muito espaçosos, e dividem o mesmo espaço com as vias de uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Portanto, não há espaço hábil para que sejam formadas filas, ainda que elas existam nesses locais, porém, timidamente. Dessa forma, os usuários permanecem dispersos. No momento de chegada do ônibus há uma mobilização no sentido de conseguir embarcar a tempo de encontrar um assento vazio. Nas palavras de um dos entrevistados, este momento é: “ um verdadeiro, salve-se quem puder!” Dispositivos jurídicos e análise situacional Nesta pesquisa, procuro estranhar e analisar as falas e ações de passageiros, operadores do sistema, fiscais e gestores públicos. Nesse sentido, a demonstração dos resultados partirá primeiramente da análise referente aos dispositivos jurídicos. Esta ferramenta analítica será intercalada com a apresentação de dados observados in situ nos locais onde a pesquisa foi realizada. O transporte é problematizado a partir das políticas de planejamento urbano. É tratado, segundo o conjunto de leis que o regem, como instrumento de promoção do desenvolvimento do espaço urbano. Dessa forma, percebe-se que a mobilidade dos citadinos é encarada como essencial num contexto de organização dos territórios urbanos. Nesse sentido, torna-se essencial empregar no quadro referencial aqui trabalhado, a ecologia humana, uma vez que a questão da mobilidade sempre esteve presente em suas discussões. Portanto, a acessibilidade aos espaços públicos e o estudo dos “locais-movimento da cidade” (Joseph, 2000a) como os terminais rodoviários e os pontos de ônibus são de extrema importância para análise sociológica aqui pretendida. O primeiro repertório para o qual chamo atenção é o da participação efetiva da população e de associações representativas dos vários segmentos da sociedade civil na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Especificamente no transporte coletivo, esta participação coletiva é denominada de “gestão democrática” do sistema. Se concretizaria através da criação de um conselho municipal para debater exclusivamente o tema. Sua função seria a de agregar em uma arena pública (Cefai; Mello; Mota; Veiga; 2011) os gestores municipais, os operadores do transporte e os usuários como forma de estabelecer diálogo. Este conselho municipal se projetaria como ferramenta amplificadora da voz dos

atores por meio de um canal institucional. Enfim, o conselho permitiria a formação de um público que se mobilizaria no sentido de apresentar e sustentar suas demandas. Nesse sentido, a concepção de aglutinação dos cidadãos na condução da política de mobilidade se orienta por um ordenamento de construção de um bem comum. No entanto, observei que em Campos, as ações executadas pelo poder público não têm contemplado a participação dos principais interessados, os usuários. O conselho municipal não existe, assim como nenhum outro canal oficial para apresentação de reivindicações. Este quadro de asfixia da voz tem criado na política de transporte municipal a condição de vulnerabilidade de uma ordem pública (Freire, 2005) uma vez que as mesmas críticas e reclamações se repetem frequentemente por um longo tempo (ônibus em más condições de uso; falta de rigor no cumprimento de horários; falta de abrangência de itinerários em novos territórios da cidade; pouca quantidade de veículos; desrespeito dos direitos de idosos e deficientes), sem, contudo, serem alvo de ações concretas por parte dos gestores públicos no sentido de amenizá-las. Por conta desta situação em que não há verbalização de demandas através de canais oficiais, observei com frequência nos momentos de indignação os usuários ameaçarem de recorrer à imprensa para tornar públicas suas denúncias. A ausência de possibilidade em publicizar problemas referentes ao transporte pode ser relacionada com esta ameaça de recorrer à imprensa em caso de conflito. Além disso, o recurso à imprensa aumenta o alcance da denúncia e é muitas vezes apresentada como meio de pressionar a resolução dos problemas pelos gestores públicos e empresariais. Desta forma, ouvi repetidas vezes o passageiro ameaçar o fiscal: “Se não fizerem nada vou chamar a televisão”. A questão da participação dos usuários se apresenta ainda de forma contundente através de outros dois repertórios: “Acessibilidade” e “universalidade”. O primeiro termo refere-se, primeiramente, à necessidade de que haja facilitação na disponibilização do serviço de transporte às pessoas de modo geral para que possibilite a todos autonomia nos deslocamentos. Sendo assim, entende-se como prerrogativa que o transporte seja acessível a todo cidadão. O segundo significado, a partir da análise da lei n° 10.098 , que dispõe sobre a promoção da acessibilidade dos deficientes e pessoas com mobilidade reduzida, diz respeito à adaptação dos equipamentos urbanos referentes à circulação. Portanto, tem como prerrogativa, adequar-se aos indivíduos com algum tipo de deficiência ou mobilidade reduzida, no sentido de permitir sua locomoção segundo necessidades próprias e de forma igualitária. Este preceito traduz-se, por exemplo, na necessidade de que todos os ônibus que operem no transporte possuam o elevador de acessibilidade, equipamento com modelagem ergonômica específica para os denominados cadeirantes.

Acessibilidade e universalidade, ambos ancoram-se na questão da sobrevalorização do interesse geral em relação ao individual. Nesse sentido, justifica-se pela ideia formal de que a igualdade deve ser norteadora na possibilidade de acesso aos espaços públicos. No entanto, minhas análises de campo apontam para um desencaixe entre estas prerrogativas presentes na legislação e o modo como são mobilizadas cotidianamente pelos operadores do sistema de transporte. A maior parte da frota de ônibus da cidade não possui o elevador de acessibilidade para o uso dos cadeirantes, e dentre a pequena parte que os possui é comum constatar que não funcionam adequadamente, ou simplesmente não funcionam. Certo dia, em uma de minhas idas ao campo, observava a tentativa de embarque de um cadeirante. Ao apontar o dedo em riste demonstrando a intenção de embarcar, o motorista parou prontamente. Desceu do ônibus e disse ao cadeirante: “Ó, não tava funcionando direito não, mas vamo tentar”, (referia-se ao elevador de acesso) ao que o cadeirante respondeu: “Não brinca, esse é o terceiro que eu tento embarcar e não consigo”. O motorista, então, fez a primeira tentativa de acionar o equipamento. Nesses momentos, ele deve se ausentar de seu posto habitual, a poltrona na qual manuseia o volante durante horas. Neste caso observado o cadeirante conseguiu embarcar. Diferentemente do último relato, na grande parte das situações observadas os acontecimentos possuem desfecho diferente. Certo dia na rodoviária, observei a presença de um cadeirante na fila de embarque para a localidade de Farol de São Tomé. Sabendo da existência frequente de controvérsias envolvendo este tipo de passageiro decidi analisar como a situação se definiria na sua tentativa de embarque. Ao chegar o primeiro coletivo, percebi que ao avistar o cadeirante o motorista esboçou reação de preocupação. Assim que desceu do ônibus dirigiu-se a este e disse: “O elevador não tá funcionando”. A resposta à afirmativa se condensou no balançar a cabeça como sinal de reprovação. Em seguida, indignado, o cadeirante exaltou-se e agrediu verbalmente o motorista, que defendeu-se argumentando que não tinha condições de sanar o problema. O elevador estava quebrado por falta de manutenção que é responsabilidade da empresa. Após suas justificativas, retirou-se do local. O cadeirante mostrava-se indignado com a situação. Dizia para quem estava próximo que estava cansado de passar por este tipo de constrangimento. Decidido a não calar-se, procurou o fiscal de transporte. Devido a euforia diante do acontecimento, a abordagem para com o fiscal foi tensa. Palavras de ordem foram proferidas no sentido de pressioná-lo a encontrar meios de resolver o problema. Como reação, o agente público saiu à procura do despachante da empresa à qual pertencia o ônibus com o equipamento

defeituoso. Reunidas as três personagens, instaurou-se o momento crítico. De um lado, as queixas do reclamante que demonstrava indignação por conta da violação de seus direitos. De outro lado, o acusado procurava argumentar em sua defesa. Os fiscais apresentaram-se como moderadores da disputa, ainda que pressionados por parte do reclamante a “tomar uma atitude”. O acusador apresentou na situação argumentos justos e justificáveis para embasar suas críticas (a garantia legal da obrigatoriedade do transporte oferecer acessibilidade e o dispositivo moral de efetivação de seu direito de se locomover). O acusado justificando justificou a inoperância do equipamento à ausência de manutenção, o que não era de sua alçada. O fiscal tentava mediar o conflito ouvindo atentamente ambas as partes, a fim de encontrar um acordo que encerrasse a controvérsia. O despachante afirmava não possuir outro veículo com acessibilidade para repor naquele momento. Diante do horizonte de incerteza quanto à garantia de que aquele passageiro iria ser transportado, o fiscal informou ao cadeirante que o máximo que poderiam fazer naquela ocasião era notificar a empresa para que o reparo no elevador fosse efetuado. Em caso de reincidência do problema a sanção cabível seria a multa. Como resposta, ouviu a seguinte frase: “Eu sempre passo por isso. É um absurdo e vocês não fazem nada. Como é que fica minha situação? Vou ter que chamar a InterTv3 pra mostrar o que tá acontecendo?”. Neste instante um dos ficais disse: “Infelizmente nós não podemos fazer mais do que isso”. De fato, os fiscais não poderiam ter feito nada além. O dispositivo legal que os ampara para atuar na fiscalização é ultrapassado, datando da década de 1980, portanto, não contempla sanções específicas contra a ausência de acessibilidade no transporte. Ainda que haja uma lei federal – 1.098 de 2000 – que trate especificamente sobre a promoção da acessibilidade nos espaços públicos para os indivíduos com deficiência ou mobilidade reduzida, e que inclui o sistema de transportes, esta não foi incorporada na dinâmica de atuação do serviço de fiscalização do transporte municipal em Campos. Ao perceber como os preceitos da acessibilidade e universalidade são mobilizados situacionalmente, verifica-se que estas controvérsias reforçam a “cidadania de geometria variável” (Lautier apud Freire, 2014), em que para motoristas e despachantes, atores como os deficientes físicos ou mesmo os idosos possuem uma “menor” prioridade no que se refere

ao direito de utilizar o serviço de transporte. Novamente, observa-se um

tratamento hierarquizado diante do acesso aos direitos (Kant, 1999). Aqueles que pagam pela prestação do serviço são privilegiados em detrimento dos que não pagam. Neste 3 Afiliada local da rede Globo de televisão.

quadro referencial, não há a percepção moral do compartilhamento de uma humanidade comum (Freire, 2014). Ao contrário, instala-se um regime de humanidade degradada, em que indivíduos que compõem o chamado grupo da gratuidade (idosos, deficientes e estudantes) não são vistos como merecedores de usufruir dos mesmos direitos de quem paga passagem. Na prática, esta moralidade se converte na ausência de atenção ao público “não pagante”. A presença de uma moral que hierarquiza o acesso ao serviço de transporte, baseada na variação de percepção do “merecimento” em utilizá-lo está intimamente ligada a uma questão mercantil. Entre os operadores do sistema ligados às empresas de ônibus há uma divisão em relação aos passageiros entre “pagantes” e “não pagantes”. É comum ouvir frases como: “o pagante tem o direito de ir sentado (no ônibus)”, “olha o tamanho da fila do idoso! Não tem como deixar todo mundo entrar de uma vez não. Não vai ter pagante quase nenhum no ônibus”. Nesse sentido, essas operações críticas ancoram-se segundo um ordenamento mercantil (Boltanski e Thévenot, 1999). Os atores em destaque são, de um lado, aqueles que podem comprar um produto ou serviço. Por outro lado, estão os fornecedores destes produtos ou mercadorias. Estabelecidos nessa ordem de grandeza, as trocas mercantis norteiam as relações entre os atores. Em inúmeras conversas com estes profissionais, ouvi repetidas vezes que suas ações no sentido de priorizar os “pagantes” era uma ordem da empresa ou do patrão. Dessa forma, procuravam meios de fazer com que o faturamento se mantivesse em um padrão ou que aumentasse. Essa lógica é, então, estimulada pelos patrões e incorporada nas rotinas dos “agentes das pontas” (Freire, 2014b) na dinâmica do transporte. Além de ser argumentado como uma ordem de seus superiores, há, por parte de algumas empresas de ônibus, um sistema de bônus para os profissionais que alcançarem determinadas metas de transporte de passageiros “pagantes” durante um dia de serviço. A discussão acerca da acessibilidade e os entraves em efetivá-la, fica evidente também, a existência de dificuldades na existência de uma universalidade e equidade nos modos de acessar o espaço público. Este preceito está presente na Política Nacional de Mobilidade Urbana, que foi instituída pela Lei Federal 12.587 de 2012. Dentre outros objetivos deste dispositivo, dois se destacam ao afirmarem que os transportes devem ter como uma de suas metas a redução da desigualdade e inclusão social de todos os cidadãos no âmbito dos deslocamentos e usos da cidade. Isto significa que há, no âmbito das políticas públicas a presença da gramática de universalização do acesso e utilização do serviço de transporte como modo de proporcionar o livre deslocamento das pessoas. Porém, a etnografia realizada permitiu perceber que há barreiras físicas e morais que

impedem ou dificultam a efetivação dessa garantia. Em conversas com despachantes e motoristas sobre sua relação com indivíduos que compõem o grupo da chamada gratuidade, foi comum ouvir frases como: “Esses velhos ficam passeando de um lado pro outro sem ter nada pra fazer, só porque não pagam passagem”. Novamente, confirma-se que o ordenamento mercantil norteia as ações destes profissionais. Questões relacionados aos idosos no transporte coletivo são alvo frequente de controvérsias. O direito que os assegura a gratuidade está disposto na Lei Federal 10.741 de 2003 em que é instituído o Estatuto do Idoso. Nele, é previsto apenas a necessidade de apresentação de um documento oficial que prove a sua idade – o idoso deve ter no mínimo 65 anos para efetivação deste direito -. Observei com frequência, situações em que idosos eram barrados no momento de embarque. Despachantes e motoristas se revezam na tarefa. Ambos, em momentos distintos dispõem-se na porta de acesso ao ônibus agindo como controladores de quem pode ou não embarcar. Nos dois pontos em que concentrei minhas análises verifiquei a formação de duas filas distintas. Uma formada por “pagantes” e outra pelos “não pagantes”. A mesma situação se repete inúmeras vezes: O veículo chega à plataforma e estaciona. As pessoas se preparam para embarcar. Apenas a porta de acesso aos “pagantes” se abre. Enquanto isso, os “não pagantes” permanecem aflitos e tensos por conta da não abertura da porta que lhes dá acesso. O motorista os vê mas ignora-os. É possível ouvir suas reclamações e a externalização de sua indignação. Certa vez, um idoso bateu à porta e disse ao condutor: “Como é que é? Não vai abrir não?”. Ignorado, este passageiro retirouse da fila por alguns instantes. Ao retornar, trouxe consigo o fiscal. Neste momento, observei uma diferença na postura do motorista. O fiscal ordenou que o motorista abrisse a porta, o que imediatamente foi obedecido, mesmo que de forma contrariada. Antes de subirem no ônibus alguns dos idosos reclamam ao fiscal: “Isso é um absurdo. A gente fica parado aqui enquanto o ônibus enche. Vocês têm que ver isso gente! Eu sou velho, não aguento ficar em pé não”. O fiscal dirigindo-se ao motorista disse: “Você sabe que não pode fazer isso. Depois a gente multa a empresa e vocês reclamam. A porta vai ficar aberta até o ônibus sair. Tá certo?”. O motorista fez sinal com a cabeça de que entendeu a ordem e a cumpriu. Um dos idosos ainda retrucou: “Vocês têm que ficar aqui o tempo todo. É sempre assim. Sempre barram a gente”. A presença permanente do fiscal até que o ônibus partisse garantiu que a que porta permanecesse aberta. Há ainda momentos em que idosos, deficientes e estudantes denunciam aos fiscais que determinado motorista não parou no ponto para seu embarque. Desse modo, decidi fazer observações em pontos de ônibus espalhados pela cidade para confirmar estas

denúncias. De fato, alguns motoristas ao perceberem que um idoso, por exemplo, faz sinal de parada e que não há nenhum passageiro “pagante” com a mesma intenção, ignoram o sinal do idoso não parando no ponto. Por conta da recorrência deste tipo de atitude é comum que um idoso peça para que outra pessoa que se encontre por perto sinalize a intenção de embarcar, pois confia que deste modo o ônibus parará. Nas tensões relacionadas com idosos observei que a publicização da contestação ou da indignação é acompanhada de outros recursos que funcionam como lembrete 'da lei' e 'dos seus direitos'. Nas situações tensas, os idosos costumam compartilhar com os fiscais que “não dependem de favor e boa vontade por serem idosos, mas que possuem o direito de ter acesso livre e irrestrito de forma gratuita”, alguns, inclusive demonstram que sabem da existência da lei que os ampara. O tratamento dispensado aos estudantes é outro ponto que gera controvérsias entre rodoviários e fiscais. A legislação que garante o passe livre estudantil é de caráter municipal. Em campos esta garantia está prevista na Lei orgânica do município e se estende aos estudantes das redes municipal, estadual e federal de ensino, desde que devidamente uniformizados. Estes, devem ainda, no momento do embarque mostrar ao motorista a carteirinha escolar como prova última de sua condição. Porém, diferentemente do acesso prioritário e irrestrito de que gozam os idosos, aos estudantes é assegurado apenas a “gratuidade”. Desse modo, tanto na rodoviária quanto no terminal estes indivíduos embarcam somente no instante em que o ônibus partirá. É comum que não formem uma fila. Dispõem-se de forma desorganizada e dispersa próxima a porta de embarque. Ao conversar com despachantes sobre a situação dos estudantes, foi comum ouvir expressões como: “Estudante é tudo baderneiro”, “os estudantes destroem os bancos, riscam tudo, são uns vândalos”, “eu não sou obrigado a carregar estudante não. A prefeitura tinha que botar ônibus exclusivo pra eles”, “você tem que ver na hora do almoço que loucura que ficam esses ônibus. Entopem de alunos, atrapalham os passageiros”. Essas falas apontam para duas justificativas defendidas pelos rodoviários de forma consistente. Primeiramente, acusam os alunos de provocarem baderna e depredação do patrimônio da empresa. Em segundo lugar, principalmente nos horários de pico, os estudantes são acusados de provocar desconforto aos passageiros “pagantes”, uma vez que se deslocam em grande número ao mesmo tempo superlotando os ônibus. Quanto a questão do “vandalismo” proclamado pelos rodoviários, não me ative a uma observação mais acurada, uma vez que o interior do veículo não foi local privilegiado de minhas análises.

Diante da exposição detalhada de diferentes situações em que há dificuldade extrema de efetivação de direitos no transporte, a presença de uma relação tensa e conflituosa entre operadores do sistema e os indivíduos que compõem o público dos “não pagantes” demonstra que há uma ressignificação da legislação do transporte que ancora-se no perfil do usuário. Esse processo gera controvérsias por conta da copresença de passageiros que percebem a predominância da grandeza mercantil e sua consequente diferenciação de tratamento. Essa distinção orienta a divisão moral entre os que pagam e os que não pagam pela utilização do transporte. Nesse sentido, os conflitos tornam-se latentes. Nos momentos em que os passageiros percebem o movimento de exclusão de seus direitos é comum que a indignação se encerre em um momento crítico. Nesses instantes de tensão, usuários e operadores do sistema justificam suas ações. Ambos utilizam-se de críticas para desconstruir os argumentos apresentados. A tensão pode se transformar em conflito aberto. É recorrente que nesses momentos haja o surgimento do insulto moral (Cardoso de Oliveira, 2008) caracterizado pela desqualificação e negação da identidade do outro. É uma forma de agressão que não se utiliza de violência física. As palavras são, nesse sentido, utilizadas com a intenção de atingir moralmente aquele contra quem há a sensação de indignação. Dessa forma, o conflito e seus desdobramentos pode ser analisado a partir da dimensão simbólica dos direitos (Cardoso de Oliveira, 2010), ou seja, a forma como são vivenciados pelos atores e como compõem interações conflituosas. O passageiro que se indigna com a supressão no cumprimento da partida de um ônibus previamente estabelecido de forma pública, sente que sua dignidade foi desconsiderada e seus direitos violados. Previsibilidade e fiabilidade são condições sagradas para quem utiliza o transporte diariamente. Há um cálculo temporal mentalmente realizado. Por fim, para além das denúncias de desrespeito dos direitos dos “não pagantes”, há ainda os casos de atrasos não justificados, supressão de horários e mudanças de itinerários empregados pelos operadores do sistema. Estas situações são foco permanente de controvérsias. Certo dia, ao passar pela rodoviária, os gritos de uma mulher instigaram minha curiosidade. Aproximei-me. De longe percebi que esta mulher estava indignada. Gesticulava com as mãos e gritava. Um ônibus estava parado na plataforma. Um grupo de pessoas estava redor desta mulher. O fiscal e um despachante formavam a cena. Ouvi que o ônibus estava atrasado há mais de uma hora e meia. O motivo era a falta de cobrador. O destino daquele itinerário referia-se a uma localidade distante e que, portanto, não era atendida por muitos horários. O momento crítico estava estabelecido. Em resposta aos gritos de protesto e de indignação que pressionavam por

uma atitude, o despachante repetia que não tinha condições de fazer nada, pois não havia substituto para o cobrador ausente. O fiscal tentou administrar o conflito, acalmando os ânimos e propondo um diálogo. Ouvia atentamente os passageiros e averiguava a fidedignidade das informações do despachante. Porém, o desacordo envolvia neste caso um clima de muita irritação e manifestação violenta de sentimentos. Nesse sentido, a mediação da crise tornou-se tarefa árdua, principalmente a partir do momento que o fiscal passou a ser acusado pelos passageiros de inanição. A cena durou longos minutos dos quais não se ouvia o burburinho típico da rodoviária, apenas os gritos. Diante do impasse, aquela mulher que chamou minha atenção e que se posicionava como personagem principal do conflito, exclamou de forma indignada: “Tem que botar fogo nesse ônibus. Só assim alguém vai fazer alguma coisa. Vamo botar fogo”. Os transeuntes ao redor balançavam a cabeça, como sinal de concordância. Todos repetiam a frase que passou a ser gritada. Rapidamente, insultos foram proferidos, o que intensificou o conflito. Após muita discussão entre a passageira revoltada, o despachante e o fiscal, finalmente outro cobrador apareceu em cena para substituir aquele que havia faltado. Sua chegada permitiu que o desacordo chegasse ao fim. Aquelas pessoas puderam, enfim, seguir para suas casas. O momento crítico nesta situação estabeleceu-se a partir do momento da percepção de que algo estava errado (o atraso). A tensão passa a permear as interações entre os envolvidos, uma vez que a justificativa para o problema (a falta do profissional encarregado de receber o pagamento pelas passagens) não é aceita como legítima (deveria haver outro cobrador para que em momentos como este os passageiros não ficassem sem a prestação do serviço). Depois de uma hora e meia de atraso e sem horizonte de resolução da controvérsia, o conflito se acirra com o surgimento dos insultos morais. O esquema denunciante/denunciado/juiz se desconfigura e se transforma em denunciante/denunciados. Nesse caso, os denunciados não compartilham o mesmo estatuto. As queixas são direcionadas aos dois, porém, com sentidos diferenciados. Em certo momento o fiscal deixa de interagir de forma direta com os passageiros por conta do escândalo. Pressiona o despachante para que haja uma solução no encerramento do impasse. A expressão – Botar fogo no ônibus – é frequente nos pontos que observei e, assim como na situação descrita acima, surge em momentos em que não há horizonte de resolução de um problema. Ainda que não ouvi relatos de ônibus que foram incendiados em Campos, esta situação indica a natureza do continuum entre tensão – indignação – conflito – e ameaça do recurso à força. Por outro lado, há casos concretos de apedrejamento de ônibus nesta cidade.

4.Conclusões Minhas observações permitiram compreender a sociabilidade urbana a partir das interações em lugares públicos de circulação. Os pontos de ônibus são lugares chave para compreender as experiências da cidade e, ao mesmo tempo, sua vulnerabilidade. A relevância da descrição da fila consiste nos desdobramentos que ela oferece para a compreensão das ordens negociadas nestas situações ordinárias, que se multiplicam na cidade. Dessa forma, o movimento analítico realizado nesta pesquisa demonstra a persistência de um nítido desencaixe entre os preceitos previstos nos dispositivos legais que regem os transportes e os modos como são ressignificados e vivenciados situacionalmente nos pontos de ônibus e terminais rodoviários. Este fato permite compreender, em parte, a especificidade dos conflitos e dos modos de administrá-los. Assim como nos estudos realizados por Kant de Lima (1991, 1999, 2001), temos de um lado, os direitos previstos em normas jurídicas que se orientam pela universalidade e igualdade que atingem a todos os cidadãos. Por outro lado, estes mesmos direitos são aplicados de forma particularizada e desigual no espaço público. Idosos, deficientes e estudantes vivenciam seu estatuto de “não pagantes” de forma diferenciada dos “pagantes”. No modelo brasileiro a igualdade na aplicação de direitos pressupõe que haja semelhança entre seus beneficiários. Aqueles que por razões específicas possuem direitos diferenciados como, por exemplo, os que compõem o grupo da “gratuidade”, são na maioria dos casos observados, tratados também de forma diferenciada. A legislação do transporte garante o acesso universal a todos os usuários sem distinção de qualquer espécie. Os direitos que o Estatuto do Idoso, a lei de promoção de acessibilidade, e o passe livre estudantil conferem aos passageiros não são internalizadas pelos operadores do transporte que relutam na sua aplicação universal. O mesmo pode ser dito em relação ao modo como despachantes e motoristas encaram as ações da fiscalização. Diversas vezes, quando sofrem algum tipo de sanção (multa, apreensão do ônibus) mobilizam justificativas no sentido de reverter a situação, mesmo tendo plena consciência da existência do erro que ensejou a aplicação da penalidade. Mostram-se contrariados e possuem o hábito de clamar pelo “bom senso” do fiscal. Este “bom senso” é, em outras palavras, uma argumentação velada pela não efetivação da sanção. As infrações costumam se repetir com frequência – descumprimento de horário; impedimento do embarque de idoso; desembarque em local inapropriado; ausência do certificado de

vistoria. Em síntese, a natureza dos conflitos aponta para múltiplos planos de vulnerabilidade da experiência citadina campista. Além disso, as formas de conduzir a administração coletiva pelo do governo municipal só realça e intensifica esta vulnerabilidade. Ainda que a legislação que regula o transporte dê ênfase à participação efetiva e democrática da população na definição de políticas de transporte, observa-se que a repetição dos conflitos aponta para a fraca vocalização institucional dos usuários deste serviço nas prioridades atribuídas ao transporte. 5.Referências bibliográficas BOLTANSKI, L. e THÉVENOT, L. (1999), A sociologia da capacidade crítica. European Journal of Social Theory, Londres, 559-377. BRASIL. Lei n° 8.987 de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 de fevereiro de 1995. p.1917 BRASIL. Lei n° 10.098 de 19 de dezembro de 2000. Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Diário Oficial Eletrônico, Brasília, DF, 20 de dezembro de 2000. p.2 BRASIL. Lei n° 10.257 de julho de 2001. Estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial Eletrônico da União, DF, 11 de julho de 2001. p.1 BRASIL. Lei n° 10.741 de 01 de outubro de 2003. Institui o Estatuto do idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 03 de outubro de 2003. p.1 BRASIL. Lei n° 12.587 de 03 de janeiro de 2012. Institui as diretrizes da política nacional de mobilidade urbana. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 04 de janeiro de 2012. p.1 CAIAFA, J. (2002), Jornadas Urbanas: exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV. CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. (2008), Existe violência sem agressão moral? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, p. 135-146. CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. (2010), A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos. Revista de Antropologia, São Paulo, SP, USP, v. 53, n° 2, p. 451- 474. CEFAI, D; MELLO, M.A.S; MOTA, F.R.; VEIGA, F.B.; (org.) (2011), Arenas Públicas: Por uma etnografia da vida associativa. Niterói, RJ: eduff

DEWEY, J. (1927), Democracia Cooperativa: Escritos Políticos Escolhidos de John Dewey. Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Cidades, 2008. Coordenado e traduzido por Thamy POGREBINSCHI. FREIRE, J. (2005), Sensos do justo e problemas públicos em Nova Iguaçu. Tese de doutorado, IUPERJ, mimeo. __________ (2014), 'Violência urbana' e 'cidadania’ na cidade do Rio de Janeiro: Tensões e disputas em torno das 'justas atribuições' do Estado. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 7, n° 1, Jan/fev/mar 2014, pp. 73-94.. __________ (2014b), Vulnerabilidades da experiência citadina e acesso aos espaços públicos urbanos em cidades do norte-fluminense. Projeto de pesquisa – FAPERJ. GOFFMAN, E. (2012), Os quadros da experiência: Uma perspectiva de análise. Petrópolis, RJ: Vozes. JOSEPH, I. (2000a), A escola de Chicago: Entrevista com Isaac Joseph. BIB, Rio de Janeiro, RJ, n. 49, 1° semestre, p. 3-13. JOSEPH, I. (2000b), Erving Goffman e a Microssociologia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora. JOSEPH, I. e Jeannot, G. (1995), Métiers du public. Les compétences de l'agent et l'espace de l'usager. Paris, Éditions du CNRS. KANT DE LIMA, R. (1991), Ordem Pública e Pública Desordem: Modelos Processuais de Controle Social em uma Perspectiva Comparada (Inquérito e Jury System). Anuário Antropológico 88, Brasília, BR, p. 21-44. KANT DE LIMA, R. (1999), Polícia, justiça e sociedade no Brasil: Uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público. Revista de sociologia e política, Curitiba, PR, n.13, p. 23-38, nov. KANT DE LIMA, R. (2001), Administração de conflitos, espaço público e cidadania. Uma perspectiva comparada. Civitas: Revista de Ciências Sociais (Impresso), Porto Alegre,RS, v. 1, n. 2, p. 11-16. LAUTIER, Bruno. (1997), Os amores tumultuados entre o Estado e a economia informal. Contemporaneidade e Educação, Vol. 2, n° 1. MAMAMI, H. (2004), Transporte informal e vida metropolitana: um estudo do Rio de Janeiro nos anos 90. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. PIRES, Lenin. (2011), Esculhamba, mas não esculacha! Uma etnografia dos usos urbanos dos trens da Central do Brasil. Niterói, RJ: Eduff. WHYTE, W. F. (2005), Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana

pobre e degradada. Rio de Janeiro: Zahar.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.