Tensões e sinergias entre o público e o privado, num campo em movimento: anotações para uma pauta de pesquisa em comunicação e saúde

June 4, 2017 | Autor: I. Araújo | Categoria: Comunicação E Saúde
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ARAÚJO, I. S.. Tensões e sinergias entre o público e o privado em um campo em movimento: anotações para uma pauta de pesquisa em Comunicação e Saúde. In: Paulo César Castro. (Org.). Dicotomia público/privado: estamos no caminho certo?. 1ed.Maceió: EDUFAL - Editora da Universidade Federal de Alagoas, 2015, v. 1, p. 167-186.

Tensões e sinergias entre o público e o privado, num campo em movimento: anotações para uma pauta de pesquisa em comunicação e saúde Inesita Soares de Araujo

1. Aproximações Esse texto é parte de um movimento em curso há mais de uma década no sentido de observar, compreender, enunciar e assim contribuir para o delineamento, a legitimação e a consolidação do campo da Comunicação e Saúde. Aqui, mobilizada pela proposta de pensar os fenômenos comunicacionais a partir da articulação entre o público e o privado, desejo compartilhar algumas percepções, inquietações e sinalizações de como este campo vem sendo palco, por um lado, por outro como vem lidando com essa articulação como objeto de pesquisa. O texto resulta da junção de dois modos de olhar o tema apresentados à sua vez em eventos científicos que tive a honra e o prazer de participar recentemente1, cujo eixo organizador dos debates foi a relação entre o público e o privado, observada sob a ótica comunicacional. Esse esforço de reflexão não tem sido só meu, pelo meu pertencimento ao Grupo de Pesquisa em Comunicação e Saúde do diretório do CNPq, ao LACES - Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde e ao PPGICS - Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde, os dois últimos vinculados ao Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz - Fundação Oswaldo Cruz. Nesta perspectiva, o sujeito da enunciação será coletivo a partir daqui, na primeira pessoa do plural, caracterizando-se a natureza polifônica desta fala. De que lugar institucional falamos? Da Fiocruz, instituição pública de saúde que se dedica à pesquisa, ao ensino e a serviços, no campo da saúde pública. Ali, a partir do LACES e do PPGICS, buscamos oferecer respostas comunicacionais às questões que a

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V Pentálogo do Centro Internacional de Semiótica e Comunicação, com o tema: Dicotomia Público Privado: estamos no caminho certo? (Japaratinga - AL, 22 a 26/09/15) e Seminário interdisciplinar Público/Privado: repensando as fronteiras (UFAL, Maceió-AL, 18 e19/09/15). 1

Saúde nos apresenta. Assim, nossos objetos são os da Saúde, porém recortados e abordados pela sua dimensão comunicacional. Não é a mesma coisa que falar institucionalmente do campo da Comunicação, onde os objetos são comunicacionais, tomando-se o campo da Saúde como um campo social que permite entender as questões comunicacionais. Essa diferença é sutil, mas produz impactos sobre as diversas escolhas de pesquisa e seus resultados.2 Por outro ângulo, nosso lugar de fala está vinculado à epistemologia do "e". Ou seja, Comunicação e Saúde, é a designação que nos identifica. Ela fala de um campo de interface entre outros dois, o da Comunicação e o da Saúde, e indica uma forma específica de ver, entender, atuar e de estabelecer vínculos entre eles. Distingue-se de outras designações similares, como comunicação para a saúde, em saúde e na saúde. As diferenças parecem inexistir e as distintas nomeações se naturalizaram como equivalentes, mas não o são. Como se sabe, todo ato de nomeação é ideológico, expressa concepções, privilegia temas e questões, remete a agendas e estratégias próprias (Cardoso e Araujo, 2009). As outras designações destacam a dimensão instrumental da comunicação, criam uma relação de subalternidade entre a saúde e a comunicação e perdem de vista sua dimensão de campo. Referenciam em geral um conjunto de instrumentos a serviço da circulação dos conhecimentos produzidos em outro campo. Já Comunicação e Saúde fala de dois campos, com suas histórias, formações discursivas, interesses e lutas, agendas e agentes, teorias e metodologias, que com suas diferentes discursividades estabelecem relações formadas por articulações e mútuos atravessamentos, ora tensos, ora sinérgicos, resultando daí uma terceira e específica discursividade. Nosso outro contexto epistemológico de fala localiza-se no campo da Saúde, que pode ser vista como um "objeto complexo, referenciado por meio de conceitos (...), apreensível empiricamente (...), analisável metodologicamente (...) e perceptível por seus efeitos sobre as condições de vida dos sujeitos (...)." (Almeida, 2013:26); um objeto e uma realidade que comportam, portanto, diversas possibilidades de entendimento, de apropriação e de modos de concretização, o que nos pede outra delimitação: falamos da Saúde Pública. Mais especificamente, da Saúde Coletiva, que 2

Essa observação não está respaldada num trabalho de análise sistemática de um corpo de pesquisas, emanando de uma prática de observação através da nossa trajetória de inserção nos dois campos. 2

resultou da crise do conceito biomédico na década de 70, permitindo a emergência de uma perspectiva mais ampla e compreensiva, que opera com a noção de sujeitos sociais e que nomeia um campo de saberes, de práticas e áreas profissionais, com dimensões técnicas, ideológicas, políticas, econômicas, culturais, subjetivas e simbólicas. Ao trazer os sujeitos para o centro da Saúde Pública, essa perspectiva criou espaços propícios ao desenvolvimento da interface Comunicação e Saúde (Araujo e Cuberli, 2014). O debate sobre o imbricamento entre o público e o privado é muito desenvolvido na Saúde, na qual há quase três décadas se vem produzindo teoricamente sobre o tema, por diversas interrelações.3 O SUS – Sistema Único de Saúde, instituído na constituição de 1988, foi objeto de luta intensa a este respeito e a proposta original era de que ele fosse só público, mais propriamente, estatal. Acabou vencendo a versão de um sistema suplementar ao sistema público, como sua parte constitutiva, configurando-se assim a saúde privada dentro da saúde pública. Isso nunca foi muito bem aceito por amplos setores, daí derivando-se toda uma área de debates políticos e acadêmicos, principalmente os relativos à economia da saúde. Os lugares de maior evidência desse imbricamento são o financiamento da saúde e a financeirização da assistência, a saúde suplementar e a judicialização da saúde (Viana Sobrinho, 2013). No entanto, a proposta de pensar de forma mais detida a relação entre o público e o privado na Saúde pelo enfoque comunicacional nos fez perceber a lacuna de estudos nesse sentido e, ao mesmo tempo, a abertura de todo um campo de possibilidades a explorar. Embora fosse um tema constante nas conversas e constatações informais e – hoje podemos ver – presente em quase todos os trabalhos que desenvolvemos no Laces, ainda não havíamos nos debruçado especificamente sobre esse imbricamento e suas consequências teóricas e metodológicas para nossa área de estudos. Em decorrência, o que aqui nos é dado compartilhar são constatações e questões que pedem aprofundamentos posteriores, daí resultando o título que escolhemos para este texto, que fala de apontamentos para uma pauta de pesquisa. Os comunicólogos e semiólogos muito avançaram conceitualmente sobre os

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É muito difícil nessa área citar autores, tal o grau de seu investimento pelo campo. Apenas como ponto de partida, se pode falar em Lígia Bahia, Emerson Mehry, Sara Escorel, Roseni Pinheiro, Mario Scheffer e Amélia Cohn. 3

termos dessa dicotomia, problematizando inclusive a ideia de serem termos dicotômicos. Não é nossa intenção nem objetivo entrar aqui de forma produtiva nesse rico debate. Apenas queremos comentar duas percepções que, reconhecemos, são menos teóricas do que políticas, tendo emanado das nossas observações do campo. Uma é que entendemos que, na saúde, se pode chamar verdadeiramente de público aquilo que foi fruto de um debate amplo, portanto corresponde a negociações entre uma pluralidade de interesses envolvidos (Araujo e Cardoso, 2007). Outra, que é a circulação que torna qualquer bem público, não apenas suas condições de produção. Pluralidade de interesses e circulação seriam condições complementares, operando em conjunto. Por esta perspectiva, qualquer ato ou política produzida por uma instância pública não seria necessariamente pública, dependendo para isto da conjugação de suas condições de produção e de circulação; decorre também que a noção de "público" teria uma relação congênita com a alteridade, portanto com a comunicação.

2. O público e o privado na Comunicação e Saúde Das constatações e reflexões suscitadas pelo contato com a temática das relações entre público e privado, optamos por tratar aqui de dois de seus aspectos: a emergência de novas vozes no cenário público da saúde e os temas de pesquisa – novos e já estabilizados – que permitem observar essas relações.

2.1 Os novos sujeitos da enunciação Uma das principais características do campo da Comunicação e Saúde é a disputa pela sua definição, que demarcará seu lugar institucional e a cota de poder de seus agentes e que passa basicamente pela definição da comunicação. Essas disputas ocorrem dentro do próprio campo, sendo que os congressos e os periódicos têm sido o cenário das batalhas. Mas, muitas vezes elas são pouco perceptíveis, porque os dispositivos de luta da perspectiva hegemônica contam com a histórica sedimentação de uma visão e sua naturalização. Estamos falando da visão que, ao conferir exclusividade à dimensão instrumental da comunicação, estabelece para ela um lugar subsidiário e aparentemente neutro no campo da saúde. No contraponto, encontramos a percepção de que é pela comunicação que se formam os sentidos da 4

vida e do mundo, sentidos que organizam as relações na sociedade; que se imprime sentido às realidades, portanto que se constroem as realidades. Se um lado problematiza, questiona, contrapõe e repropõe, o outro constrói seu regime de verdade sem aparentes embates, apenas apresentando resultados de pesquisas apoiadas em suas premissas teóricas, metodológicas e políticas, que na maioria das vezes nem são enunciadas. Estão em cena e em disputa abordagens conceituais

da

comunicação,

basicamente

as

de

matriz

transferencial

e

desenvolvimentista e as da matriz da produção social dos sentidos. Mas a natureza da pesquisa e seus objetos também podem ser vistos como foco de luta, para além das matrizes teóricas, caracterizando-se uma ingerência externa nesse âmbito, particularmente dos organismos internacionais da saúde e dos órgãos de fomento à pesquisa, que definem o que é prioritário, portanto financiável. Essa disputa pelo poder de fazer ver e fazer crer (Bourdieu, 1989) se estende a outros aspectos, as taxonomias por exemplo, um elemento vital na construção do campo. De que modo somos representados nas bases de dados, quando o somos? Atualmente, em boa parte das bases da saúde, quando utilizamos o descritor “comunicação”, obtemos em resposta textos sobre distúrbios da fala, técnicas de oratória, no máximo sobre a relação entre profissionais de saúde e pacientes. Essa é uma discussão necessária, mais relevante do que tem sido considerada, envolve inclusive o registro das palavras-chaves com que identificamos nossos textos, mas que não é aqui nosso objeto específico de atenção. Alguns ganhos podem ser contabilizados. A comunicação neste século vem sendo reconhecida como lugar de produção de conhecimento em saúde: temos editais com financiamento, prêmios científicos, periódicos especializados e há quase seis anos temos um Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde – o PPGICS, com vários mestres e doutores já titulados. Mesmo com esses avanços, o campo ainda se vê às voltas com lutas que persistem já por duas décadas, que opõem uma comunicação autoritária, concentradora da palavra, que cada vez mais cede espaços ao marketing social e à lógica publicitária e midiática, cujas palavras chaves são persuasão e prevenção, a uma comunicação que se baliza pela historicidade, pela centralidade conferida aos contextos, às mediações e que tem como princípio teórico a produção social dos sentidos. 5

É nesse campo que se processa uma grande mudança, marcada pela chegada de inumeráveis atores sociais e políticos, cujas vozes não eram ouvidas e que agora disputam um lugar no mercado simbólico da saúde. Podemos mesmo dizer que vivemos um momento histórico da passagem da prerrogativa do setor público de fazer comunicação em saúde para outro momento, em que a tecnologia permite que muitos façam essa comunicação. Antes, as vozes altissonantes, além da própria saúde, eram a da mídia, considerada principal concorrente e em escala bem mais modesta as igrejas evangélicas, no seu boom de crescimento e retomando a noção de doença como castigo pelo pecado. Hoje, aos jornais, rádios, tvs privadas e públicas e pastores somam-se os laboratórios farmacêuticos e clínicos, associações de portadores de agravos à saúde, médicos e profissionais de saúde, produtores de games digitais ou não, escolas, sindicatos, academias, associações profissionais, grupos de mães, condomínios, indivíduos ou comunidades virtuais de indivíduos, todo mundo quer falar – e de fato fala – sobre saúde. Muito nas redes e espaços digitais, mas também em outros lugares. Nos congressos da saúde, por exemplo, houve um boom de trabalhos abordando a comunicação, a maioria vindo de profissões que tinham sua voz restrita aos ambientes de trabalho, por exemplo, os profissionais da enfermagem e os assistentes sociais. A tecnologia tem sido a grande mola propulsora desse fenômeno, mas o movimento não se deve apenas a ela. Outros e importantes fatores podem ser contabilizados, entre os quais destacamos a centralidade da comunicação na vida da sociedade, que se agigantou nos últimos tempos e a exacerbação da importância da saúde, através principalmente dos processos de medicalização4 da vida. Mas também colaboraram as estratégias discursivas da própria Saúde, abrindo o campo através de convocações para combater a epidemias, por exemplo, a dengue. Nesse cenário, o campo da Saúde, mesmo considerando sua amplitude e força, vai aos poucos perdendo seu lugar hegemônico de produtor de comunicação. Enquanto isso, a mídia tradicional – audiovisual e impressa – amplia sua presença vigorosa, pelas

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Medicalização é fazer com que os fatos da vida se tornem problemas de saúde. Nos termos de um autor seminal, “Medicalização descreve um processo pelo qual problemas não-médicos tornam-se definidos e tratados como problemas médicos, usualmente em termos de doenças e desordens” (CONRAD, 1992: 209). A exacerbação do processo cria a tendência a que não se tenha saúde para viver, mas se viva para ter saúde. 6

associações com as redes sociais. Um bom exemplo é o que ocorre com no âmbito das epidemias. Atualmente, em boa parte dos casos, é a sociedade que notifica a Saúde da ocorrência de epidemias e cobra providências. As redes sociais dão o sinal de alerta, interagem discursivamente com a imprensa, que noticia os casos e cobra da Saúde, obrigando-a a se posicionar. O sistema público de vigilância da saúde é caro e lento, não acompanha a velocidade atual da circulação das notícias. Os sistemas técnicos de processamento das informações têm uma temporalidade diferente da midiática, têm que atender etapas que não são do tempo real. Daí decorre um descompasso dessa dinâmica com dinâmicas sociais, como das redes sociais. O fenômeno não é novo, por exemplo, na grande epidemia de dengue ocorrida na década de 80, quem primeiro sinalizou foi a população da região da Leopoldina, no Rio, que tomou a rua para denunciar, anunciar e se fazer ouvir. Só então a Saúde teve que literalmente tomar a fala, se pronunciar e tomar providências.5 Hoje, porém, as tecnologias digitais imprimiram enorme velocidade ao processo. O resultado é que a Saúde em geral responde à mídia, cedendo a ela seu protagonismo. No entanto, a mídia é parte do cenário anterior e o que caracteriza o atual é a chegada das novas e múltiplas vozes. Os discursos todos disputam espaços e concorrem pelos sentidos e nenhuma avaliação que apenas leve em consideração a mídia vai encontrar respostas satisfatórias. Há que se valer do conceito de mercado simbólico (Bourdieu, 1989), para uma aproximação ainda que não completa dessa pluralidade de discursos circulantes com sua respectiva produção de sentidos. A Saúde Pública reage lentamente a essa perda da centralidade como núcleo dispersor de informação e comunicação, buscando modernizar suas estratégias e recuperar seus espaços, basicamente ocupando a internet (blogs, facebook, twiter, sites). Mas, embora introduza algumas novidades, como a narrativa transmídia e o recurso a figuras midiáticas (Levy, 2013) segue operando com sua velha lógica centralizadora da palavra, desqualificando as competências e os saberes dos cidadãos e priorizando a fala normativa e prescritiva. Essa situação nos provoca enquanto pesquisadores, tanto do ponto de vista

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Agradeço a Janine Cardoso essa informação histórica, que faz entender que o fenômeno não é recente e sim se reveste de novas configurações tecnológicas; da mesma forma, seus vínculos com o fenômeno da midiatização, referido mais adiante. 7

conceitual quanto metodológico. Vemo-nos a braços com tudo isso sem termos resolvido adequadamente os problemas teóricos e metodológicos que nos ocupavam a duas décadas, que poderiam ser enquadrados em dois grandes grupos: os relativos à produção dos sentidos da saúde, fortemente centrados na própria saúde, na mídia, nas igrejas e na população; e os que procuravam evidenciar a comunicação como um processo social, produto e produtor das relações de poder e seu lugar como produtora e produto das desigualdades sociais, iniqüidades e inequidades em saúde. Da mesma forma, sem termos conseguido abalar seriamente a hegemonia do modelo transferencial, que – ao contrário – se fortalece extraordinariamente com o avanço da midiatização da Saúde. Hoje, a essas demandas se soma a necessidade de mapeamento do campo: que vozes o habitam, com que dispositivos semiológicos? De quais discursos lançam mão? Como? Mais que isso, a noção de campo continua adequada para ajudar a entender essa explosão de vozes? Se o pertencimento de um indivíduo a um campo se avalia pelos efeitos que ele sofre desse campo, como disse Bourdieu, teremos que admitir que operacionalmente seja muito difícil pesquisar. Até mesmo porque, quanto mais falantes, tanto mais campos em interface. Outro desafio metodológico é a “promiscuidade discursiva”, ou seja, todas essas vozes em circulação se apropriam dos discursos da mídia e da saúde, é raro alguma voz que aporte algo mais. Mas, esses dois principais núcleos discursivos também vivem uma relação promíscua. A Saúde pauta a mídia em termos de agenda e a mídia pauta a Saúde em termos de reação ao que a mídia denuncia, critica etc. A mídia usa recursos da Saúde, suas fontes de credibilidade e legitimação são os epidemiologistas, infectologistas, vozes da Saúde, geralmente da Saúde Pública. O fenômeno acentua-se com a minimização das redações, que leva ao aproveitamento integral dos pressreleases enviados pelos assessores de comunicação das instituições de saúde. Já a Saúde cada vez mais se apropria das lógicas midiáticas. Se antes havia profissionais de confiança do gestor para a gestão da comunicação, muitas vezes com estrada e ancoragens nas instituições de saúde, hoje vemos uma progressiva cessão de espaço para o mundo privado, favorecida pelo fato das políticas de comunicação consistirem desde sempre e cada vez mais em políticas de publicização. Falando num âmbito mais amplo, das instâncias federais, a prática de contratar agências de 8

publicidade para cuidar das “contas” públicas da Saúde vem sendo aperfeiçoada, ao se entregar a gestão da comunicação a altos funcionários das agências. Voltaremos mais adiante a este ponto. Esse imbricamento institucional entre as instâncias pública e privada, que resulta num imbricamento discursivo, apresenta um problema metodológico aos analistas de discursos: como identificar distintas gramáticas se as condições de produção apresentam esse grau de “promiscuidade”? Poderíamos perguntar mais: nesse novo cenário discursivo, ainda se mantém a pertinência de distinguir gramáticas? Quais seriam as novas perguntas a responder? Certamente uma delas versa sobre as novas legitimidades. Legitimidade, com sua correlata Voz Autorizada, tem sido um conceito importante nos estudos da Comunicação e Saúde. Como se sustenta nesse universo, em que as legitimidades tradicionais são substituídas não por outras, mas por uma pluralidade de outras, que frequentemente têm caráter momentâneo? Por vezes a legitimidade é a dos pares, como no caso de instâncias que agregam pessoas que sofrem do mesmo agravo de saúde6. Mas em outras, é fluida. A pergunta anterior seria então se o conceito de legitimidade ainda se sustenta como tal ou precisa ser revisto. Outra inquietação metodológica diz respeito à operacionalização do conceito de condições de produção e seu correlato materialidade discursiva, considerando não só os imbricamentos tratados acima, mas também os novos gêneros discursivos, marcados pela efemeridade e pela restrição prévia de tamanho e elenco convencionado de expressões. Esses e outros desafios se agigantam quando constatamos que a ampliação dos falantes amplia os campos em interface. As perguntas se atropelam: a pluralidade das vozes em si representa pluralidade de sentidos? Ou a reprodução exaustiva e massiva dos mesmos discursos nos leva para o fortalecimento do pensamento único, para a reiteração das vozes tradicionalmente autorizadas? Mercado simbólico, em que há lugar para todos, embora em condições desiguais de negociação, ou ecologia de vozes, em que o processo predatório promoveria uma sobrevivência seletiva? Não sabemos, não há pesquisas nesse sentido ainda. 6

Um bom exemplo são blogs de pessoas com anorexia ou bulimia nos quais se nega radicalmente a voz autorizada da saúde. 9

São tantas as questões e podem efetivamente configurar uma pauta de pesquisa para os próximos tempos. Vamos, porém, avançar no nosso intuito, identificando os temas através dos quais a relação entre o público e o privado vem permeando as pesquisas conduzidas no campo da Comunicação e Saúde e sugerindo alguns aspectos que nos demandam atenção dos pesquisadores.

2.2 O público e o privado nas pesquisas em Comunicação e Saúde Até mesmo pelo cenário exacerbadamente polifônico acima comentado, não poderíamos esgotar todas as possibilidades de pesquisa no campo. Procedemos então a um levantamento das pesquisas concluídas ou em andamento em alguns lugares representativos da produção sobre Comunicação e Saúde: o LACES, o PPGICS, o grupo de pesquisa Comunicação e Saúde/CNPq e de quatro grupos de pesquisa que se reúnem em congressos: da Intercom, da ALAIC e dois da ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva, sendo um geral e outro específico das Ciências Sociais e Humanas. Buscamos apenas pelos que, por seu tema ou recorte, permitem observar as tensões ou colocam em cena alguma discussão sobre as dimensões públicas/privadas do campo da Comunicação e Saúde, ainda que não conceitualmente. Ou seja, a relação público/privado não aparece nesses trabalhos como objeto específico de atenção teórica ou metodológica e sim como dimensões dos objetos, na maioria das vezes não explicitadas. Podemos dizer que, de um modo geral, todos os trabalhos de comunicação e saúde acabam pelo menos tangenciando o imbricamento entre o público e o privado, pela própria natureza e configuração política e institucional do campo da Saúde Pública, já comentadas, que reverbera nas questões que são apresentadas ao campo da Comunicação. No entanto, podemos identificar – numa aproximação preliminar – algumas temáticas que reúnem um número já significativo de trabalhos, que muitas vezes se interpenetram. Sem dúvida, o tema da Mídia se destaca numericamente entre os demais. A maior parte dos trabalhos busca observar a cobertura que os meios de comunicação fazem da saúde, sob o prisma da teoria produção social dos sentidos, sendo terreno fértil para caracterizar a interferência dos interesses privados na constituição semiológica da saúde. As pesquisas têm possibilitado mapear estratégias de sentido por parte não 10

apenas dos atores políticos do mundo privado que ocupam esses meios em defesa de seus interesses, mas também e fortemente das próprias empresas jornalísticas, confirmando sempre que a mídia é uma das grandes arenas de embates pelos rumos da saúde no país, um campo que movimenta vultosos recursos financeiros, públicos e privados. No entanto, em que pesem algumas exceções7, o papel da mídia na relação entre público e privado na saúde não tem sido contemplado adequadamente. Mesmo quando o que está em pauta é o fenômeno da midiatização8, que despontou recentemente como interesse de pesquisa e que permite observar os processos que vêm levando os campos sociais e as instituições a serem atravessados pelas tecnologias, ritmos, e lógicas da mídia, em alguma medida modelando suas práticas, embora de forma combinada com outros processos e outras tecnologias, lóticas e ritmos mais estabilizados; em decorrência, um conceito com extraordinário potencial teórico e metodológico para compreender no momento atual as tensões entre as dimensões pública e privada das instituições e suas práticas. O deslocamento da Saúde para a Mídia referido no tópico anterior do protagonismo em relação às epidemias pode também ser entendido como resultante do processo de midiatização, se o observarmos pelo prisma das temporalidades: o tempo lento da Saúde tem cada vez mais que ser ajustado às demandas produzidas pelo tempo ágil das redes sociais e dos meios de comunicação. Podemos considerar que um recorte pelo qual se pode perceber a presença mais concreta das tensões entre o público e o privado seja o das doenças midiáticas, contraposto ao das doenças negligenciadas. Interesses e lógicas de um e outro se imbricam na definição de que doença será midiatizada. A Aids e mais contemporaneamente o câncer são objeto de intensa e intensiva atenção dos mídias, enquanto as chamadas doenças negligenciadas, que são as “doenças de pobre” e por isso não atraem investimentos em pesquisas, desenvolvimento de fármacos, kits de diagnóstico, políticas de assistência etc, são também negligenciadas midiaticamente. O negligenciamento é resultado de muitos fatores, que incluem fortemente interesses 7

Refiro-me especificamente a alguns trabalhos do Observatório Saúde na Mídia (Laces, Fiocruz). O fenômeno da midiatização vem sendo tratado por importantes autores da comunicação. Uma obra que permite o acesso a várias de suas dimensões é “Midiatização e processos sociais na América Latina (2008). 8

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econômicos do mundo privado. Em contraposição, as doenças como o câncer ou a Aids adicionalmente têm a seu favor um bom coeficiente de espetacularidade, uma vez que também atingem as pessoas famosas. Outro cruzamento com o tema da mídia, interessante como lugar de observação, é o que se dá com o das políticas de saúde, particularmente as relacionadas a práticas sociais como amamentação e vacinação e a práticas cuja regulação é objeto de grandes disputas, como o consumo de drogas, a violência e o meio ambiente (com realce para as consequências do uso de agrotóxicos). Tanto em umas como em outras, os interesses públicos e privados se defrontam nos meios de comunicação, algumas vezes sendo este o palco definidor dos rumos que serão tomados. Comunicação e Controle Social pode ser uma forma de entender outro grupo de pesquisas que tanto aborda o controle sobre as políticas públicas de saúde, quanto sobre os meios de comunicação. Inversamente ao conceito sociológico, Controle Social na Saúde referencia o controle da sociedade sobre o Estado e as políticas públicas que lhes dizem respeito. Os dois grupos de trabalhos aqui reunidos falam desse controle. Os primeiros tratam das relações comunicacionais nos Conselhos de Saúde, uma instância institucional com presença em todo o país, mesmo nos pequenos municípios. Os conselhos têm em sua composição representantes do mundo público e do mundo privado da saúde, consistindo-se em uma grande arena para o jogo de interesses. Sendo espaços de disputas políticas, têm-se mostrado também lugares privilegiados para observação das estratégias de disputa do predomínio discursivo. Constitui um interesse mais antigo, mais consolidado, há pesquisas grandes, importantes, publicações, inclusive livros (Oliveira, 2006; Faria Neto, 2012) e o embate entre o público e o privado ali encontra sua referência. Os segundos falam dos trabalhos que monitoram e analisam criticamente os meios de comunicação, incluindo aqui os observatórios de mídia. Embora já tenhamos nos referido aos observatórios nos trabalhos dedicados à mídia e não sejam vistos habitualmente como parte do que se chama “controle social”, decidimos incluí-los aqui pelo fato de serem parte importante do que vem se convencionando chamar de “quinto poder”, a sociedade controlando sua mídia (Braga, 2006). É desta forma que podem ser inscritos no debate sobre o público e o privado porque são práticas que permitem, entre outros processos, expor e problematizar os modos de funcionamento 12

dos dispositivos midiáticos de produção dos sentidos. É por seus trabalhos que observamos, por exemplo, o movimento dos interesses privatistas na Saúde, o uso da saúde no manejo dos interesses político-eleitoreiros etc. Passemos a outro recorte temático de pesquisa Comunicação e Saúde que permite observar as tensões entre o público e o privado. Podemos englobar certo número de trabalhos na designação Comunicação e Vigilância em Saúde. Aqui encontramos preocupações referentes à legislação e regulação, publicidade e rotulagem de alimentos, bebidas, produtos de consumo infantil e medicamentos. São trabalhos que abordam os usos e abusos do mundo empresarial confrontados aos direitos individuais e coletivos tanto à saúde quanto à informação e à comunicação. É uma área de estudos mais recente, mas que se apresenta com vigor, tem amplas conexões com os campos político, legislativo, publicitário e midiático, podendo ser considerado um tema em ascensão. Os Novos espaços e formatos de comunicação constituem um grupo de trabalhos que, a exemplo do anterior, vem ganhando importância no cenário da pesquisa em Comunicação e Saúde e que do mesmo modo permitem observar as articulações entre as dimensões pública e privada das práticas sociais em saúde. Os estudos têm sido em geral de dois tipos: alguns analisam o impacto das tecnologias digitais e das redes sociais sobre a Comunicação e Saúde, acentuadamente sobre a relação entre médicos e serviços de saúde e pacientes ou usuários dos serviços, outros examinam os modos de ocupação pela Saúde Pública dos espaços digitais e redes sociais, portanto da relação entre Estado e Sociedade. No primeiro caso, temos nitidamente a informação privada formando e intervindo num cabedal de conhecimentos que vão incidir nas relações que se processam no âmbito dos serviços públicos. A maioria das fontes de consulta em saúde/doença na Internet procede de blogs e sites de laboratórios, hospitais e clínicas privadas, que objetivam induzir ao consumo de seus medicamentos. Na outra ponta dessa relação, as instituições de saúde pública resolveram enfim disputar esse espaço, ocupando-o com algumas inovações, mas mantendo seu dispositivo convencional, baseado numa comunicação linear, unidirecional, prescritiva e normativa, sem escuta, concentradora da fala autorizada (Levy, 2013). É uma ampla área de pesquisa, inclusive para observar a formação das novas 13

legitimidades, das novas vozes autorizadas. O cenário da Saúde – e conseqüentemente da Comunicação e Saúde - está sendo alterado significativamente pela Internet, que exacerba a diluição das fronteiras entre o que é público e o que é privado, mas também exacerba as disputas discursivas e de poder. O último grupo de trabalhos a ser aqui nomeado é o de Democratização da Comunicação e Saúde. Com um viés acentuadamente político, essas pesquisas mantêm forte identidade com o campo da economia política da comunicação, sendo talvez o grupo que mais explicitam as tensões entre o público e o privado, tendo como objeto de atenção os embates entre lógicas, interesses e direitos público e privado. Têm seu foco na democratização das tecnologias de informação e comunicação e dos meios de comunicação (acesso, redistribuição etc.) e assim como o grupo da Vigilância em Saúde, atravessam e são atravessados pelos campos político, legislativo e regulatório. Temos então um considerável elenco de trabalhos que permitem observar as articulações tensas ou sinérgicas entre o público e o privado, sejam estes considerados esferas, universos, campos, setores ou dimensões do mesmo processo social. No entanto, a abrangência da Comunicação e Saúde permite olhar outros ângulos da prática política e social que não foram ainda contemplados, mas que ampliam e potencializam esse movimento. Entre eles, escolhemos trazer o que adentra o terreno da gestão da comunicação no campo da Saúde Pública, o que implica incluir alguns elementos da própria gestão da Saúde. Sob a denominação Gestão da Saúde cabem praticamente todos os ângulos do debate sobre o tema que aqui nos mobiliza, muitos que realmente escapam do enfoque comunicacional, excetuando-se sempre sua dimensão simbólica. E é justamente pelo seu componente discursivo que nos aventuramos a trazer à baila dois aspectos que situados na encruzilhada entre público, privado e semiótica, aspectos estes que estão incluídos no grande tema da ocupação do setor público pelos interesses do setor privado, cuja expressão “complexo econômico-industrial da saúde” traduz bem sua complexidade. Ocupação extremamente eficaz e bem sucedida, porque sustentada por uma prática discursiva impecável do ponto de vista estratégico. Na impossibilidade espacial de desenvolver adequadamente essa ideia, nos atemos a uma expressão reveladora: “cliente”. O “cliente” destrói o SUS por dentro, pela

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linguagem9. Cliente é a terminologia que a saúde passou a adotar majoritariamente para se referir aos cidadãos, sob a alegação de que imprimiria maior profissionalismo à relação entre os serviços de saúde e os cidadãos. Corresponde a um processo de comodificação da saúde, que é deslocada do seu lugar de direito para o de mercadoria, bem ao gosto dos interesses privados e privatistas. O direito à saúde, direito de cidadania, é substituído pelo direito de consumidor. Todo o discurso governamental assumiu essa perspectiva, a ponto do SUS ser apregoado pelo próprio setor público como “seu melhor plano de saúde”, que foi o tema de uma campanha de comunicação. É muito fácil perceber que, nas instituições de saúde pública, o grande discurso que paira sobre todos os outros é o discurso da gestão, que adquire valor supremo. Pesquisa, ensino, ação social, tudo se submete à gestão, com seus instrumentos de controle transnomeados de eficiência. Porque é esse o x da questão: tudo vai sendo revestido por um discurso da eficiência como valor, que justifica e naturaliza essas práticas, que incluem as práticas de planejamento estratégico, os acordos de financiamento e patrocínio que acentuam simbolicamente a presença do setor privado e outras práticas de gestão. A propósito da gestão da comunicação, propriamente, optamos por ressaltar – ainda que muito brevemente – dois pontos já sinalizados no tópico sobre a multiplicação das vozes na saúde e que aqui acentuamos, em outro enquadramento, pela sua relevância de modo geral, por serem lugares de evidência clara e inequívoca sobre o movimento predatório do privado sobre o público na saúde, por atingirem em cheio a dimensão simbólica desse movimento e por estarem praticamente virgens como objeto de estudo. Nos últimos anos estamos fazendo um percurso gradativo, porém rápido de consolidação da ótica (portanto, dos interesses) privada no coração da comunicação oficial. Estamos nos referindo ao controle da comunicação do Ministério da Saúde, já de longa data convertidos à lógica publicitária, quando se passou a substituir pessoas da própria estrutura do ministério, vozes autorizadas em comunicação na saúde, por 9

Costumo fazer uma metáfora desse processo – e aqui o enunciador volta à primeira pessoa do singular – que remete ao candiru, pequeníssimo peixe dos rios de algumas regiões do Norte e Cetro Oeste brasileiro, o candiru, que penetra no corpo humano por alguns orifícios e “come por dentro”, por vezes levando à mutilação, por vezes à morte. 15

agências de publicidade, que trouxeram consigo todos os cânones e lógicas midiáticos como única possibilidade de comunicação com os cidadãos de todo o país e para qualquer finalidade. As agências passaram a deter as nada modestas “contas” da saúde pública. Do ministério, assessores de comunicação coordenavam, examinavam, agiam sobre o que era produzido. O mundo acadêmico e científico mantinha uma discussão ácida sobre a influência desse esquema na permanência do modelo campanhista e na sua modelagem, já que a lógica do cidadão era substituída pela lógica do consumidor, a saúde como bem a ser consumido e a palavra chave persuasão. Surpreendentemente, na era dos governos petistas, que se acreditava um tempo favorável a mudanças também na área da comunicação pública, inicia-se um movimento de substituição em muitas instituições da estrutura federal das equipes de comunicação por pessoal formado em marketing, culminando com uma mudança fundamental: funcionários graduados das agências detentoras das contas passaram a fazer a gestão da comunicação, das estratégias, das campanhas, da atuação nas redes sociais... Hoje não se trata mais de só elaborar e realizar campanhas encomendadas, mas o núcleo que produz campanhas está dentro da instância máxima pública de saúde. Assim, não só consolida-se o processo de midiatização, mas verifica-se uma hipertrofia do mundo privado (da publicidade, do marketing) dentro do mundo público. De um lugar privilegiado, um agente do mundo privado gerencia a comunicação pública sobre saúde, configurando uma situação em que o mundo privado gerencia recursos que o público injeta no privado. O outro ponto, diz respeito a outra face da gestão da comunicação, estabilizada como prática, que são os assessores de comunicação. O que aqui está em pauta é o papel das assessorias de comunicação como mediadores entre o público e o privado, mas que não podem ser vistos como simples estruturas de passagem. É ali, nessa instância que incide uma negociação simbólica entre o que vem das áreas técnicas e dos gestores e o que vai ser publicizado. Ou seja, que o setor público deseja que seja publicizado, isto é, circule e se torne de conhecimento amplo. Essas estruturas, que obtêm graus variáveis de credibilidade e valorização pelos gestores, têm como principal tarefa cuidar da visibilidade das demandas de saúde. Embora não seja consenso absoluto, a visibilidade desejada é através de dispositivos 16

privados, ou seja, a mídia. Ao mesmo tempo em que a mídia é considerada um dos inimigos da saúde, por distorcer notícias, criar pânico, veicular inverdades, evidenciar apenas os problemas etc, deseja-se ardentemente espaços na mídia, visibilidade midiática, embora uma visibilidade com governabilidade. Essa governabilidade se busca através de estruturas de comunicação, que são as assessorias - de imprensa, de comunicação. A saúde, como outras áreas, cria suas estruturas de produção de notícias, cuja tarefa central é produzir e enviar releases para os meios de comunicação, tarefa à qual contemporaneamente se soma a de alimentar as páginas da Internet, blogs, redes sociais, enfim, os dispositivos digitais de comunicação. O papel das assessorias é fundamental na articulação entre o público e o privado. Já há estudos10 constatando que uma grande parte dos press-releases são publicados tal e qual, por vezes incluída um título, uma imagem, um box, mas o texto permanece, fenômeno que se acentua com a atual minimização das redações. Mas, o que pode parecer positivo num debate do tipo “quem pauta quem?”, pode ser relativizado se considerarmos quem são os assessores de comunicação, as coisas não são lineares como podem parecer. São eles egressos de cursos universitários nos quais são preparados para “o mercado”. São selecionados para as instituições de saúde pelo seu conhecimento de mercado. E não têm muitas oportunidades de conhecerem o campo da saúde de forma mais aprofundada, porque não têm tempo para isso. Em pesquisa em âmbito nacional, na qual nos baseamos para essas afirmações (Araújo, Cardoso e Murtinho, 2011), constatamos que os poucos que fazem algum curso depois do ingresso como assessores recorrem a um MBA em gestão da comunicação, marketing ou assemelhados. Então, temos uma estrutura de mediação simbólica entre o setor público e o privado que é contratada e paga pelo público, mas os modos de produzir notícia, textos, visibilidade, são os modos do setor privado. Do ponto de vista político e das políticas, é algo que merece bem mais atenção do que recebe, inclusive estrategicamente fortalecer os assessores, como uma estrutura ainda endógena. Do ponto de vista da pesquisa sobre o tema que aqui nos mobiliza, é muito produtivo, pois temos vários níveis onde público e privado se tensionam, entram em acordo ou 10

Conferir com Pessoni e Siqueira Júnior, 2012. 17

disputam espaços e sentidos. Um tripé, que tem numa ponta um setor público, atravessado pela midiatização e pelo discurso empresarial da gestão; no outro a mídia, que precisa das notícias da saúde, suas fontes estão lá, mas também fazem operações discursivas ao encaixar aquelas notícias, mesmo que releases na íntegra, num outro contexto textual e discursivo; no terceiro ângulo, os leitores ou a audiência midiática, com tantas possíveis formas de apropriação, sobre as quais nada sabemos. Como moldura, uma progressiva abdicação do controle público sobre a atuação privada na comunicação pública.

3. Enfim, um fim É fácil perceber que a disputa semiótica na saúde aqui aportada não é ingênua, nem acidental, nem provisória. É parte de uma luta entre interesses públicos e privados no campo da saúde, integra disputas por modelos de funcionamento da sociedade. Hoje vivemos um momento em que o campo da C&S explodiu em termos de agentes que querem falar e conseguem fazer circular suas falas, de toda parte, em toda parte, implantando uma nova ecologia de vozes, que estão a caracterizar novos designs de saberes e a nos exigir novas pesquisas. O desafio de fazer pesquisa num campo de interface entre duas forças poderosas – a Comunicação, lugar da construção das realidades simbólicas, portanto da ação sobre o mundo e a Saúde, lugar em que o que está em jogo é a preservação e a qualidade da vida – se vê hoje maior pela passagem progressiva de uma situação histórica na qual a prerrogativa do fazer comunicação cabia ao setor público para outra, em que esse poder é tensionado, questionado e reivindicado por inumeráveis setores da sociedade, fortalecidos não só pelas tecnologias que favorecem a produção e a circulação de sentidos outros que não os oficiais, mas também pelos movimentos democratizantes do próprio campo da Saúde. Sendo um campo de permanentes disputas, a Comunicação e Saúde se vê, assim, mergulhado em outro patamar de questões políticas, teóricas e metodológicas, antes que tenha sido possível resolver a contento aquelas em torno das quais seus pesquisadores vêm se mobilizando, desde sua constituição ainda recente como campo. A explosão polifônica, ao tempo em que evidencia o esgotamento dos modelos 18

historicamente encastelados na saúde pública e assim contribui para uma maior abertura a questionamentos e a novos modelos, faz emergir com força e obriga a considerar o que desde quase sempre esteve em presente, mas o campo não privilegiou ainda como objeto específico de pesquisa com a importância que lhe é devida: as tensões entre duas faces do fenômeno comunicacional na saúde, do mesmo processo, o público e o privado. A poderosa dimensão simbólica desse processo, que assume concretude e visibilização nas práticas de comunicação está aí, a nos desafiar. O mapeamento que trouxemos na segunda parte desse texto teve como objetivo identificar temas que potencializam esse debate e que podem constituir uma pauta de pesquisa desde já, ao lado de outras que já nos pedem investimento.

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