Tentaram a Deus em Seu coração (2011)

May 30, 2017 | Autor: Milton Torres | Categoria: Theology, Early Christianity, Trinity
Share Embed


Descrição do Produto

Copyright©Milton L. Torres 1ª edição - 500 exemplares 2011 Editoração: Patrick Ferreira Projeto Gráfico: Patrick Ferreira Revisão de Texto: Ozeas Caldas Moura Capa: Naasson Azevedo - NBAz Impressão e acabamento: Editora O Lutador IMPRESSO NO BRASIL/Printed in Brazil

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, incluídos textos, imagens e desenhos, por qualquer meio, quer por sistemas gráficos, reprográficos, fotográficos, etc., assim como memorização e/ou recuperação parcial, ou inclusão deste trabalho em qualquer sistema ou arquivo de processamento de dados, sem prévia autorização escrita do autor e da editora, sujeitando o infrator às penas da lei disciplinadora da espécie.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) T693t Torres, Milton Luiz Tentaram a Deus em Seu coração: a controvérsia antitrini tariana / Milton Luiz Torres. – Belo Horizonte: Edição do Autor, 2011. 144 p. Bibliografia. ISBN 978-85-911888-0-2

1. Deus – Trindade. I. Título.



CDD-231

“No Pai está a unidade, no Filho a igualdade, no Espírito Santo a harmonia da unidade com a igualdade; estes três atributos são todos um por causa do Pai, todos iguais por causa do Filho e todos harmoniosos por causa do Espírito Santo.”

Agostinho de Hipona, A doutrina cristã

Sumário

............................................

Introdução

1.

.........................................................09

Quem é o Jesus da Bíblia?

.................................15

2. São Jesus e o Espírito Santo

a mesma

Pessoa?

.............................................33

3.

Quem é o Deus da Bíblia?

.................................55

4. O que as línguas originais revelam

5.

sobre a

Trindade?

.............................................73

O que os manuscritos bíblicos revelam sobre a Trindade? .............................................87

6. Como a Igreja primitiva lidou com os

ataques à

Trindade?

.................................99

7. Como e por que surgiram os primeiros

ataques à

8.

Quem atacou a doutrina da Trindade?

9.

Trindade?

...............................113 .......123



Por que um vocabulário platônico para a Trindade? ............................................131



Considerações finais

Referências

...............................137

............................................141

Introdução

............................................

N

ão se pode crer na visão absolutamente cíclica da história, como esta é descrita por Toynbee (1961): “não há como escapar à conclusão de que somos as vítimas perpétuas da anedota cósmica que nos condena a suportar nossos sofrimentos, a superar nossas dificuldades e a nos purificar de nossos pecados só para saber, de antemão, que o lapso automático e inevitável de certa medida de tempo sem significado não pode falhar em embrutecer todos os esforços humanos”. Ao contrário disso, a história tem uma patente dimensão linear: podemos apelar a um evento único e grandioso que nunca há de ser repetido: Cristo morreu por nossos pecados. No entanto, parece que os historiadores que atribuem à história uma natureza cíclica mitigada não estão muito longe da verdade: há mesmo alguns eventos que se repetem ao longo da linha do tempo. O estudo do movimento antitrinitariano revela exatamente isso. Diversas vezes, o movimento nasceu e amadureceu, mas logo entrou em extinção. Esse desempenho intermitente dos opositores à doutrina da Trindade tem uma explicação existencial simples: as pessoas esquecem. Por essa razão, ao longo de sua história esporádica, o movimento renasceu das

10 | Tentaram a Deus no Seu coração próprias cinzas e da amnésia de sua refutação. Por isso, o leitor vai verificar que a bibliografia deste livro não é particularmente recente. Isso se deve ao fato de que as objeções antitrinitarianas tampouco o são. Se o antitrinitarianismo reaparece em nossos dias, ameaçando nossas igrejas com a sombra da heresia, isso se deve ao esquecimento de lições há muito ensinadas. Dessa maneira, o antitrinitarianismo não exige nada mais do que o mesmo remédio, nas mesmas doses, para que seja novamente exposto exatamente como aquilo que sempre foi: uma forma insustentável de interpretar as Escrituras. Por que, então, um novo livro? Porque aqueles que, hoje, se encontram facilmente à disposição da Igreja Adventista (WHIDDEN; MOON; REEVE, 2006; SILVA, 2009) se preocupam mais em fazer uma defesa histórica e teológica da doutrina da Trindade, mostrando sua antiguidade e pertinência hermenêutica, especialmente sob a ótica adventista. Ainda que limitados pelas dimensões modestas deste livro, meus objetivos são outros: tentar entender por que o movimento antitrinitariano eclodiu, sugerir quais são os fatores que predispõem a sua disseminação e, finalmente, reverter o argumento, comumente apresentado pelos antitrinitarianos, de que a doutrina da Trindade teve um desenvolvimento tardio na história do Cristianismo. É minha intenção mostrar que, em vez disso, foi o antitrinitarismo que surgiu tardiamente no cenário da Igreja cristã primitiva. Obviamente, não se pode prescindir de uma análise dos argumentos correntemente empregados pelos antitrinitarianos, a fim de que se perceba sua superficialidade e incoerência. Dessa forma,

| 11 os livros de Whidden, Moon e Reeve (2006) e Silva (2009) continuam essenciais, especialmente porque tive o cuidado de evitar repetir informações que possam ser encontradas neles (a não ser onde julguei necessário fazer algum tipo de complementação ou correção). Assim, o elemento mais original deste livro transcende o caráter analítico e hermenêutico da questão, e se concentra na própria natureza do antitrinitarianismo como filosofia oposta à ortodoxia cristã no passado e hoje em dia. Introdução

Na dimensão terminológica, três expressões descrevem o movimento que, ao longo da história, tem procurado desacreditar a doutrina da Trindade: unitarianismo, arianismo e antitrinitarianismo. O termo “unitarianismo” é o que menos convém porque dá a impressão de que acreditar na Trindade equivale a abrir mão da compreensão de que Deus é um. A doutrina da Trindade não é de forma alguma incompatível com a noção da unidade de Deus. “Arianismo” é o termo que, derivado do nome do principal representante do movimento, tem sido mais empregado, historicamente, para descrever aqueles que negam a natureza divina de Jesus Cristo e, por extensão, também a do Espírito Santo. É a esse termo historicamente estabelecido que Alexandre, patriarca de Alexandria (cf. Sócrates, História eclesiástica 1.6), dirigiu, no século IV, a crítica de se tratar da “derradeira heresia anticristã” (tên eschatên kai christomachon hairesin). Apesar disso, temos privilegiado, neste livro, a expressão “antitrinitarianismo” porque a consideramos mais exata quanto aos objetivos e índole de quem se levanta contra uma doutrina solidamente fundamentada nas Escrituras e intrínseca

12 | Tentaram a Deus no Seu coração à própria existência do Cristianismo. Não é possível deixar de cogitar que tipo de reação a controvérsia antitrinitariana pode causar no coração de Deus. Não que Deus esteja pouco familiarizado com a contumácia de Seu povo. Nossa obstinação, grande teimosia e renitência pirracenta encontram-se estampadas nas páginas da história. Parece que nunca saímos do deserto, que nunca transpusemos as águas do mar Vermelho, que nunca atravessamos o Jordão e entramos naquela terra que Ele nos prometeu. Parece que nunca superamos um grande desapontamento, que nunca se manifestou entre nós um espírito de profecia. Se a sensibilidade do salmista o levou a lamentar que, no deserto, “tentaram a Deus no seu coração [en tais kardiais autôn, LXX], pedindo alimento que lhes fosse do gosto” (Sl 78:18), podemos supor que a negação da divindade do Filho de Deus e da pessoalidade de Seu Espírito Santo representa uma ferida muito mais dolorosa no coração do Pai: “tentamos a Deus no Seu coração” [en têi kardiai autou]. É no intuito de amenizar nossa rebeldia e descrença, aliviando, assim, a dor no coração de Deus, que as páginas que se seguem foram escritas. Nelas, não tive a intenção de incluir ataques, desmentidos ou menosprezos. Afinal de contas, a leitura das Escrituras não nos treina para isso. O desejo é que a crença soberana na divindade do Filho e na existência pessoal do Espírito Santo possa fluir de cada linha para que compreendamos que Deus pode “nos preparar mesa no deserto” (Sl 78:19). Isto é, podemos ter acesso ao maná que cai do céu, podemos beber

| 13 da água que mana da Rocha e “jorra para a vida eterna” (Jo 4:14). Por essa razão, não precisamos pedir “alimento que seja de nosso gosto” (Sl 78:18), escolhendo as partes da Bíblia nas quais queremos crer. O pão que as Escrituras nos oferecem é o verdadeiro alimento do céu. Como espero explicitar neste livro, tanto as Escrituras quanto a história do Cristianismo apontam inequivocamente para a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Introdução

1

Quem

é o

Jesus

da

Bíblia?

............................................

A

dinâmica relação entre Pai e Filho, tanto antes da encarnação de Jesus quanto após esse evento dramático e transformador do curso da história humana, ainda deixa perplexos muitos dos estudiosos da Bíblia. As Escrituras nos impressionam com uma descrição admiravelmente isenta de complexidade e sofisticação. Será possível que o que a Bíblia narra acerca do relacionamento entre Pai e Filho é toda a verdade? A esse respeito, ali não há relatos de desavenças, ciúmes, intrigas, brigas pelo poder, conflitos de geração, diferenças de linguagem, incompreensões, atribuição mútua de culpa ou interesses mesquinhos, tentativas de controle ou qualquer outro dos impasses que caracterizam o relacionamento entre pai e filho no reino humano da vida neste planeta Terra. Pelo contrário, o que a Bíblia, de forma direta e franca, nos mostra é o perfil de um Filho assumidamente submisso à vontade do Pai. Isso nos incomoda, porque não podemos pintar o mesmo retrato de nós mesmos. Somos mesquinhos e rebeldes. Fazemos conta de tudo, até do dinheiro minguado que, às vezes, depositamos nas salvas durante a coleta das ofertas quando visitamos a casa de nosso Pai; até do tempo minguado que, em nossa condescendência,

16 | Tentaram a Deus no Seu coração concordamos em gastar na casa de nosso Pai, quando damos a impressão de que estamos visitando um idoso de parentesco remoto em um dos asilos da cidade. E, por essa razão, agimos com suspeita quando lemos, nas Escrituras, sobre a obediência incondicional de Jesus ao Pai. Será que Ele tinha outra opção? A obediência de Jesus era motivada por Seu status inferior em relação a um Pai exigente e controlador, que não lhe dava qualquer perspectiva de agir de modo diferente? A passagem de Fl 2:5-11 nos obriga a dar uma resposta negativa a essa indagação: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois Ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.” Por que Jesus foi tão obediente? Foi pelo prêmio? Afinal de contas, o texto diz “para que”, como se Paulo nos explicasse que, como alguns disseram de Jó, não era debalde que Jesus servia a Deus. Nós, às vezes, precisamos de racionalizações. Como nos incomoda a obediência de Jesus quando sentimos que nós mesmos não obedecemos como devíamos! Por isso, nós racionalizamos e, em nossa racionalização, concordamos que o Pai exaltou o Filho porque Ele se esvaziou, porque Ele

| 17 foi obediente, e porque Ele morreu na cruz. Todavia, tendemos a não aceitar que o Pai tenha exaltado o Filho por essas razões e pela razão adicional de que Jesus subsistia em forma de Deus. Aceitar que o obediente Jesus tinha o mesmo status divino de Seu Pai nos causa a inconveniência de que Jesus não tinha que obedecer, de que Ele não precisava ser exaltado pelo Pai além da glória da qual Ele já desfrutava, que Ele fez tudo o que fez, não por compulsão, mas porque era Sua natureza partilhar do mesmo despreendimento, da mesma compaixão, do mesmo amor incondicional pelas criaturas de Deus e pelo próprio Deus. Quem

é o

Jesus

da

Bíblia?

Essa incômoda passagem de uma das pequenas epístolas de Paulo tem levado alguns a racionalizar, a argumentar, às vezes até com veemência, que subsistir em forma de Deus é estar na posição mais exaltada em que um ser, fora Deus, poderia estar no Universo. Não é assim, porém, que Ellen G. White interpreta a passagem! Segundo ela, falando especificamente desta passagem, o apóstolo “apresenta a Cristo diante de nós como Ele era quando igual a Deus e quando recebia a adoração dos anjos” (Testimonies for the church, v. 4, p. 457).

O lugar de Cristo na história da redenção Será que há espaço, na história da redenção, para um golpe de estado, uma promoção de última hora em que Deus eleva o Filho à condição de chefe executivo da grande firma “Céu S.A.”, para preservar o sono dos acionistas inquietos diante

18 | Tentaram a Deus no Seu coração dos rumores de queda iminente da bolsa? Será que o plano da redenção, cuidadosamente preparado para conter os efeitos do pecado, dada a sua eventual entrada no mundo, necessitou de algum ajuste diante da oposição do inimigo de Deus? Algumas pessoas têm usado uma passagem de Ellen G. White para dizer que sim: “o grande Criador convocou os exércitos celestiais para, na presença de todos os anjos, conferir honra especial a Seu Filho. O Filho estava assentado no trono com o Pai, e a multidão celestial de santos anjos reunida ao redor. O Pai então fez saber que, por Sua própria decisão, Cristo, Seu Filho, devia ser considerado igual a Ele, assim que, em qualquer lugar que estivesse presente Seu Filho, isto valeria pela Sua própria presença. A palavra do Filho devia ser obedecida tão prontamente como a palavra do Pai. Seu Filho foi por Ele investido com autoridade para comandar os exércitos celestiais. Especialmente devia Seu Filho trabalhar em união com Ele na projetada criação da Terra e de cada ser vivente que devia existir sobre ela. O Filho levaria a cabo Sua vontade e Seus propósitos, mas nada faria por si mesmo. A vontade do Pai seria realizada nele” (História da redenção, p. 13). Uma passagem mais longa e completa da mesma autora esclarece que, nessa assembleia testemunhada pelo universo, não houve uma promoção retificadora do status de Jesus. A preempção divina simplesmente levou o Pai a reforçar aquilo que todos já sabiam: Jesus é o Senhor. “Lúcifer permitiu que sua inveja de Cristo prevalecesse e se tornou ainda mais determinado. Disputar a supremacia do Filho de Deus, desafiando assim a

| 19 sabedoria e amor do Criador, tornara-se o propósito desse príncipe dos anjos. Para tal objetivo estava ele a ponto de aplicar as energias daquela mente superior, que, abaixo da de Cristo, era a primeira dentre os exércitos de Deus. Mas Aquele que desejava que a vontade de todas as Suas criaturas ficasse livre, a ninguém deixou desprotegido do espantoso sofisma pelo qual a rebelião buscava se justificar. Antes que a grande disputa tivesse início, todos deveriam ter uma clara apresentação de Sua vontade, cuja sabedoria e bondade eram a fonte de toda sua alegria. O Rei do Universo convocou os exércitos celestiais perante Ele, para, em Sua presença, apresentar a verdadeira posição de Seu Filho, e mostrar a relação que Este mantinha para com todos os seres criados. O Filho de Deus partilhava do trono do Pai, e a glória do Ser eterno, existente por si mesmo, rodeava a ambos. Em redor do trono reuniam-se os santos anjos, em uma multidão vasta, inumerável – ‘milhões de milhões, e milhares de milhares’ (Ap 5:11), estando os mais exaltados anjos, como ministros e súditos, a regozijar-se na luz que, da presença da Divindade, caía sobre eles. Perante os habitantes do Céu, reunidos, o Rei declarou que ninguém, a não ser Cristo, o Unigênito de Deus, poderia penetrar inteiramente em Seus propósitos, e a Ele foi confiado executar os poderosos conselhos de Sua vontade. O Filho de Deus executara a vontade do Pai na criação de todos os exércitos do Céu; e a Ele, bem como a Deus, eram devidas as homenagens e fidelidade daqueles. Cristo ia ainda exercer o poder divino na criação da Terra e de seus habitantes. Em tudo isto, porém, não procuraria poder ou exaltação para si mesmo, contrários ao plano de Deus, mas exaltaria a glória do Pai, e Quem

é o

Jesus

da

Bíblia?

20 | Tentaram a Deus no Seu coração executaria Seus propósitos de beneficência e amor” (Patriarcas e profetas, p. 36). O lugar de Cristo na história da redenção sempre foi o de protagonista. Não se trata de alistar um agente externo e descomprometido para engrossar as fileiras do exército quando o general percebe que a batalha está meio perdida. Não se trata de mandar vir a arma secreta quando a peleja parece favorecer o oponente. O plano de Deus foi cuidadosamente preparado. Sua estratégia foi revelada a todo o universo. Deus jamais preferiu que esta batalha fosse travada. Assinalar a exaltada e poderosa condição do Filho foi um ato de preempção que o isenta de qualquer culpa pelas baixas testemunhadas ao longo da terrível guerra na qual nos encontramos imersos contra as potestades do ar.

O lugar de Cristo no seio do Pai Numa grosseira deturpação do que o texto grego nos diz, algumas pessoas têm proposto uma tradução particular para Jo 1:1. Em vez de aceitar a tradução dos especialistas em línguas bíblicas: “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, algumas pessoas pouco familiarizadas com o grego antigo propõem verter a passagem da seguinte maneira: “no princípio estava o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e Deus era o Verbo”. Essa tradução ignora a regra rudimentar, em grego, segundo a qual quando ocorre um predicado nominal, o sujeito

| 21 é geralmente marcado pelo artigo, enquanto o predicativo do sujeito não é. A frase theos ên ho logos deve, portanto, ser traduzida como “o Verbo era Deus”. Além disso, não há nenhuma possiblidade, nesse caso, de se traduzir o imperfeito ên como “estava”. Finalmente, a ideologia por trás da tradução “o Verbo estava em Deus” se volta para uma interpretação muito particular da relação entre o Pai e o Filho. Segundo seus propositores, “no princípio, o Filho estava dentro de Deus, não existia como ser separado de Deus”. Já no segundo século, Teófilo de Antioquia deturpava a interpretação dessa passagem, afirmando: “tendo, portanto, Deus o Seu próprio Verbo (logos) residindo em Sua mente, em Suas entranhas (idiois splagchnois), gerou-o (egennêsen auton) com Sua sabedoria, vomitando-o (exereuxamenos) antes de todas as coisas” (Ad Autolycum 2.10.7). Percebe-se, assim, como somos susceptíveis às confusões mentais oriundas de nosso distanciamento de Deus. Parece que o filósofo Heráclito tinha inteira razão quando afirmou: “os homens são ignorantes desse Verbo existente (logou toude eontos), tanto antes de ouvi-lo, quanto depois de ouvi-lo pela primeira vez” (Contra os lógicos 1.132). Quem

é o

Jesus

da

Bíblia?

Para justificar sua ideologia de que houve um tempo em que Jesus estava fisicamente dentro de Deus, algumas pessoas citam o texto de Jo 1:18, que diz: “ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”. De acordo com David Brown, no Comentário bíblico JamiesonFausset-Brown, “seio” é uma “palavra notável que expressa a existência consciente do Filho distinta da do Pai e Seu acesso

22 | Tentaram a Deus no Seu coração imediato e afetuoso a Ele, bem como Sua absoluta familiaridade com Ele”. Brown expressa, de forma bem precisa, o significado exato da expressão grega eis ton kolpon tou Patros, “no seio do Pai”. A palavra grega kolpos, de onde temos a expressão portuguesa “colposcopia”, é um eufemismo para “colo”, “regaço”. Ela não significa “peito” no sentido de parte superior da frente do corpo masculino. Os antitrinitarianos querem interpretar essa palavra como uma referência a uma parte interna do corpo de Deus porque defendem a ideia de que a criação de Adão e Eva é uma parábola da origem de Cristo. Segundo eles, assim como Eva teria sido tirada da costela de Adão, Cristo teria sido tirado da costela de Deus. Para justificar essa crença esdrúxula, recorrem a Jo 17:8, que diz “eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que tu me enviaste”. Assim, explicam que a frase “a expressão exata do Seu Ser” (de Hb 1:3) significa a imagem de Deus, pois do mesmo modo como Deus formou Eva a partir da costela, que fica na altura do seio (peito) de Adão, Cristo saiu do seio do Pai. Essa interpretação teogônica da criação de Cristo esbarra em uma série de dificuldades. Em primeiro lugar, deixa de compreender que Cristo “saiu” de Deus no sentido de Sua encarnação, para cumprir uma missão para a qual Ele mesmo havia se voluntariado. Ou seja, Cristo saiu da presença de Deus, a atmosfera do céu, para salvar a humanidade de seu estado de caos e pecado. Em segundo lugar, sua leitura de Hb 1:3 contradiz o que o contexto da passagem sugere: “Ele, que é o resplendor da

| 23 glória e a expressão exata do Seu ser, sustentando todas as coisas pela palavra do Seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas”. Esta é uma afirmação da natureza divina de Cristo que não faz qualquer referência a uma natureza física, derivada do poder criador do Pai. Em terceiro lugar, ela contradiz a declaração explícita de Ellen G. White de que “Cristo, igual a Deus, o brilho da glória do Pai, a expressão exata do Seu Ser (Hb 1:3), vestiu a Sua divindade com a humanidade e veio a esta Terra para sofrer e morrer pelos pecadores” (Mensagens escolhidas, v. 1, p. 308). Como se percebe, Ellen G. White entendia o texto de Hb 1:3 como uma prova da divindade de Cristo. E, finalmente, a ideia da criação de Cristo a partir do peito de Deus revive o antigo conceito pagão da teogonia. Os antigos escritores gregos acreditavam que deuses e semideuses nasciam das partes do corpo de divindades mais poderosas. Hesíodo, em sua obra Teogonia, descreve, por exemplo, como Atena, a deusa da sabedoria, nasceu da cabeça de Zeus. Os cristãos nunca ensinaram que o corpo de Deus se sujeita a produzir descendência para Deus. Quem

é o

Jesus

da

Bíblia?

Ainda no contexto do peito de Deus como local da criação de Cristo, os antitrinitarianos recorrem a Jo 1:1-2 para propor dois momentos distintos da existência de Cristo antes da encarnação. O texto diz que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus”. Nessa visão, o verso 1 situaria o Filho de Deus dentro do Pai (quando Ele não tinha ainda sido gerado), enquanto o verso 2 – abracadabra – já nos falaria do Filho após

24 | Tentaram a Deus no Seu coração este ter sido gerado, mas antes de Sua encarnação na Terra. Propositalmente, usei a palavra “abracadabra” para protestar contra o fato de que essa interpretação faz imensa violência ao relato bíblico e à estrutura do pensamento hebraico. Sem querer sugerir que o pensamento hebraico tem uma natureza monolítica e previsível, devo chamar a atenção para o fato de que os autores hebreus gostavam de recorrer a um artifício literário conhecido como “paralelismo”. O paralelismo consistia em expressar o mesmo conceito de duas formas distintas, mas semelhantes, a fim de aumentar as chances de que o mesmo pudesse ser claramente compreendido. Às vezes, o paralelismo ocorria com a inversão da ordem das palavras, assim enfatizando o elemento central da enunciação. Nesse caso, era conhecido como paralelismo quiástico. É exatamente isso o que ocorre nos dois versos sob discussão. Temos, no v. 1, a declaração de que “no princípio era o Verbo”. No verso 2, temos a inversão dos elementos da frase: “Ele estava no princípio”. A estrutura do paralelismo quiástico fica, portanto, bastante clara. Pela convenção literária do paralelismo, fica provado que as duas frases significam a mesma coisa! Isso é expresso de modo admirável por Ellen G. White, quando afirma: “Conquanto a Palavra de Deus fale da humanidade de Cristo quando este esteve sobre a Terra, ela também fala decididamente sobre Sua pré-existência. O Verbo existia como ser divino, mesmo como o eterno Filho de Deus, em união e unidade com o Pai. Desde a eternidade, Ele era o Mediador do concerto, Aquele

| 25 em quem todas as nações da Terra, judeus e gentios, se o aceitassem, deveriam ser abençoadas. ‘O Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus’. Antes de homens e anjos serem criados, o Verbo estava com Deus e era Deus” (Evangelismo, p. 615-616). Ela também afirma: “o Salvador era o brilho da glória de Seu Pai e a expressa imagem de Sua pessoa. Ele possuía majestade divina, perfeição e excelência. Ele era igual a Deus” (God’s amazing grace, p. 160). Quem

é o

Jesus

da

Bíblia?

O lugar do nome de Cristo nas Escrituras O texto de Hb 1:4 afirma que Cristo se tornou “tão superior aos anjos” que “herdou mais excelente nome do que eles”. O texto de Is 9:6 nos explica muito bem o contexto em que Jesus recebe o nome de Deus: “porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os Seus ombros; e o Seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz”. Diante dessas passagens obviamente favoráveis à compreensão de que Jesus era divino, os unitarianos racionalizam que ter o nome do Pai não significa ser o Pai. O depoimento de Glen Penton, professor de hebraico, sobre a importância da palavra shem (“nome”) na cultura hebraica contradiz essa posição dos antitrinitarianos. Segundo esse autor, “um significado comum de shem na Bíblia é a realidade essencial do que uma pessoa é, como em Pr 21:24; Êx 34:14”. Em Pr 21:24, está escrito: “quanto ao soberbo e pre-

26 | Tentaram a Deus no Seu coração sumido, zombador é seu nome; procede com indignação e arrogância”. Êx 34:14 contém a seguinte afirmação: “porque não adorarás outro deus; pois o nome do Senhor é Zeloso; sim, Deus zeloso é Ele”. Percebe-se claramente que há uma identificação absoluta e integral entre a pessoa e seu nome. Segundo Penton, “no hebraico bíblico, confiar no shem [nome] de alguém significa confiar nele pelo que ele é. Abençoar o shem [nome] de alguém significa abençoá-lo por quem ele é”. Dessa forma, declara Deus a Moisés, em Êx 33:12: “conheço-te pelo teu nome [shem]”. Por isso, podemos dizer que ter o nome “Deus Forte” (Is 9:6) significa ser Deus Forte!

O lugar do corpo de Cristo nas Escrituras Na visão unitariana, se Cristo é um ser criado, nada mais lógico do que lhe atribuir um corpo físico e angélico mesmo antes da encarnação. No entanto, esse procedimento cria o embaraçoso questionamento acerca do que teria acontecido a esse suposto corpo anterior por ocasião da encarnação, quando Cristo recebeu Seu corpo humano. Os antitrinitarianos têm, portanto, dificuldades em compreender quando as Escrituras se referem ao corpo humano de Cristo ou quando se referem ao suposto corpo angélico pré-existente à encarnação. Dessa forma, aplicam Hb 10:5 ao segundo caso: “por isso, ao entrar no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste; antes, um corpo me formaste”, embora o texto clara e expressamente indique

| 27 que fala do corpo encarnado de Cristo. De igual modo, aplicam Fl 2:6-8 ao suposto corpo angélico de Cristo, declarando que “esvaziar-se” significou, para Cristo, permitir que Seu corpo angélico fosse destruído e aniquilado. Quem

é o

Jesus

da

Bíblia?

Além disso, os unitarianos reivindicam que é um conceito espírita a ideia de que a natureza divina de Cristo, às vezes, transparecia como os trinitarianos sugerem em relação à transfiguração. Segundo os antitrinitarianos, o corpo divino, que Ele possuía no céu, antes de vir à Terra, teria sido aniquilado, deixando de existir. Tal fato impediria, então, que Cristo se apresentasse, em algum momento, como tendo uma natureza sobre-humana. Ellen G. White é taxativa ao dizer o contrário disso: “às vezes, Sua divindade irrompia na humanidade, e Ele transparecia como o Filho de Deus, o véu de Sua carne transparente demais para ocultar Sua majestade. Mas os homens que se diziam expositores das profecias recusaram-se a crer que Ele era o Cristo. Satanás tinha controle de sua mente, e eles se recusaram terminantemente a reconhecer a divindade de Jesus de Nazaré” (Review & Herald, 26-3-1901). Segundo Avita Ronell, em seu livro Stupidity, a ideologia da destruição do corpo de Deus é um corolário da ideologia da morte de Deus. Se Deus está morto, o corpo, então, se decompõe. Trata-se de uma preocupação recente resultante do slogan cético de que “Deus está morto”. Ou seja, até pouco tempo, os antitrinitarianos não tinham ainda se visto forçados a dar uma explicação plausível acerca do que teria acontecido ao corpo

28 | Tentaram a Deus no Seu coração angélico que postularam para Cristo antes de Sua encarnação. Todavia, com o interesse pós-moderno pelo “corpo em decomposição” de Deus, propuseram um aniquilamento, do qual as Escrituras não falam absolutamente nada, em relação ao corpo de Cristo.

O lugar da santidade na vida de Cristo O texto de Cl 2:9 declara: “porquanto, nele [isto é, em Cristo], habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade”. Essa passagem é uma verdadeira pedra no sapato dos antitrinitarianos. Como este texto declara explicitamente a Divindade de Cristo, os antitrinitarianos tentaram diminuir a força da declaração, comparando esta passagem com Ef 3:18-19, onde está escrito: “a fim de poderdes compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus”. Dessa forma, os antitrinitarianos afirmam que, se os seres humanos podem ser tomados da “plenitude de Deus”, então a “plenitude da Divindade” que habita corporalmente em Cristo pode não siginificar que Cristo é divino. Sendo assim, chegaram à conclusão de que “divindade” em ambos os textos significa “santidade”. Há inúmeros problemas com a interpretação de que santidade e divindade são conceitos equivalentes na Bíblia. Em primeiro lugar, há diferenças semânticas entre “plenitude

| 29 da Divindade” (Cl 2:9) e “plenitude de Deus” (Ef 3:18-19). A primeira expressão claramente se refere à natureza de Cristo, enquanto que a segunda expressão se refere à habitação de Deus no coração humano por intermédio do Espírito Santo. Em segundo lugar, se santidade e divindade significam a mesma coisa, estaria criado um caos hermenêutico que nos daria liberdade de interpretar a Bíblia de qualquer forma que quiséssemos. Em terceiro lugar, Ellen G. White dá uma interpretação muito mais plausível para Ef 3:18-19, que tem sido a forma como o adventismo histórico tem, coerentemente, visto essa passagem bíblica. Ela escreveu um artigo, publicado na Review & Herald (5-11-1908), justamente para explicar esta passagem, segundo o qual, participar da plenitude de Deus é receber uma porção plena do Espírito, como o Pai havia concedido a Jesus e a Abraão. Em um sermão pregado na Igreja Adventista de Santa Helena, em 20-2-1904, Ellen G. White cita 2 Pd 1:3-4: “pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a Sua própria glória e virtude, pelas quais nos têm sido doadas as Suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas vos torneis coparticipantes da natureza divina, livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo” e indaga: “Como, então, podemos ser participantes da natureza divina?” Sua própria resposta à indagação é comoventemente clara e coerente: “Vindo a Cristo do jeito como estamos, necessitados, indefesos, dependentes.” Em outro artigo da Review & Herald (15-08-1907), ela diz que participar da natureza divina é nos indentificar com Cristo na realização de Sua obra: “aqueles que trabalham na obra nesses Quem

é o

Jesus

da

Bíblia?

30 | Tentaram a Deus no Seu coração últimos dias precisam se identificar com Cristo. Precisam ser participantes da natureza divina.” De tudo o que sobressai da interpretação geralmente feita de Cl 2:9, Ef 3:18-19 e 2 Pd 1:3-4, a suma é que as Escrituras explicitamente colocam a “plenitude da Divindade” de Cristo em um contexto literal e o convite para que os seres humanos participem da “plenitude de Deus” ou da “natureza divina” em um contexto claramente exortatório e figurado.

Conclusão Ellen G. White afirma que “os homens que negam a divindade de Cristo, lançam fora a Bíblia” (Signs of the Times, 3-9-1894). Diante dessa consideração, “a questão que nós precisamos decidir agora é: vamos vestir a armadura da justiça? Vamos nos apegar à Divindade de Jesus Cristo, para que recebamos poder para vencer?” (Ellen G. White, Manuscrito 37, 1908). O que salta aos olhos, quando analisamos os esforços antitrinitarianos para explicar a natureza de Cristo a partir de sua compreensão do Verbo como ser criado e gerado pelo Pai, é que suas explicações são esdruxulamente incoerentes e inteiramente avessas às regras mais básicas de interpretação das Escrituras. Ou seja, se o Cristianismo ortodoxo está equivocado acerca da natureza divina do Verbo, é provável que estejamos equivocados acerca de todos os outros ensinamentos das Escrituras! Entretanto, não estamos equivocados. E a melhor forma de provar

| 31 isso é permitir que Jesus seja, verdadeiramente, Senhor e Deus de nossas vidas. Quem

é o

Jesus

da

Bíblia?

2

São Jesus e o Espírito Santo

a mesma pessoa?

............................................

E

m nossa época de pluralidade de crenças e completa liberdade de expressão, os ataques às doutrinas cristãs, conforme explicitadas nas Escrituras e tradicionalmente compreendidas pelos teólogos e fiéis, têm se tornado cada vez mais comuns. Essa situação adquire contornos de crise uma vez que a postura pós-moderna parece exigir certa passividade diante das diferenças ao mesmo tempo em que o bombardeio dos meios de comunicação contra as Escrituras se tornam mais e mais inclementes. Isto é, se levantamos a voz para denunciar os equívocos de tais posturas excessivamente permissivas, somos chamados de intolerantes. Por outro lado, se nos calamos, impõem sobre nós o rótulo de pessoas incultas, destituídas de argumentação e credibilidade, indignas de atenção, escravas da fé cega. Diante dessa situação até certo ponto melindrosa, nos propomos a desenvolver uma breve reflexão sobre a possibilidade de que Jesus e o Espírito Santo sejam, de fato, uma única pessoa. Esse argumento tem sido recentemente proposto por movimentos dissidentes que tentam negar a pessoalidade e a personalidade do Espírito Santo, bem como solapar a crença na doutrina das três pessoas divinas que compõem a Divindade. Ao defender essa posição, seus propositores procuram mostrar que, quando se referem ao “outro Consolador”, à intercessão em favor dos crentes e à distribuição de dons à Igreja, as Escrituras estão descrevendo a obra de Jesus, codificada sob a forma de enigmáticas referências ao Espírito Santo.

34 | Tentaram a Deus no Seu coração É Jesus o “outro Consolador” de Jo 14? Em João 14:16-19, está escrito: “E eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre; o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós. Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis; porque eu vivo, e vós vivereis.” Infelizmente, uma compreensão inadequada desta passagem tem levado alguns a concluir que a promessa nela contida de que Jesus não deixaria os discípulos órfãos e de que Ele voltaria para eles, aponta para o retorno de Jesus à Terra para realizar a obra do Espírito Santo. A maioria dos teólogos crê, contrariamente a essa ideia, que Jesus se referia, aqui, a Sua volta por ocasião da ressurreição. A vinda do Conselheiro é obviamente condicionada pela morte e ressurreição de Jesus. Devemos nos lembrar que a promessa de Jesus, nesse contexto, foi motivada por uma declaração de Tomé: “Senhor, nós não sabemos para onde vais” (Jo 14:5). Diante disso, o Senhor Jesus explica que rogaria ao Pai por outro Consolador e que este ficaria com os discípulos para sempre. Até aqui, a afirmativa de Jesus só respondia em parte à inquietação dos discípulos, seu temor de serem abandonados. Contudo, Tomé havia feito referência específica à curiosidade dos discípulos quanto ao que aconteceria ao Mestre e, por essa razão, Jesus acrescenta que voltaria para eles, mas o mundo não mais o veria. Imediatamente após a ressurreição, Jesus não mais se manifesta para as pessoas do mundo (a não ser para aqueles

| 35 que, por causa de Sua autorrevelação, vêm a se converter). Para defender seu ponto de vista de que Jesus está falando de si mesmo ao se referir ao outro Consolador, os que pensam assim primeiramente argumentam que nem o mundo nem os discípulos conheciam o Espírito Santo e que, já que os discípulos conheciam muito bem a Jesus, o Espírito e Jesus necessitavam, por conseguinte, ser a mesma pessoa. Segundo esse modo de pensar, a declaração de Jesus de que os discípulos o veriam ainda, cumprir-se-ia por ocasião de Seu retorno como “o outro Consolador”. Essa posição não leva em consideração, porém, que o Espírito Santo já havia sido derramado sobre os discípulos, segundo a promessa de João Batista (Mr 1:8; 6:13), só que não de forma plena (Lc 24:49; Jo 20:21-22; At 1:5). Ninguém vem a Jesus senão pela atuação do Espírito Santo. A própria condição de discípulos já lhes garantia um conhecimento (ainda que parcial) do Espírito. São Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

O segundo argumento empregado para provar uma suposta identificação de Jesus como “o outro Consolador” é o da comparação das expressões “outro Consolador” (Jo 14:16-19) e “outro discípulo”: “então Pedro saiu com o outro discípulo, e foram ao sepulcro; e os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais apressadamente do que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro” (Jo 20:3-4). Argumentam, portanto, que, se João podia se chamar de “outro discípulo”, o Salvador podia se referir a si mesmo como “outro Consolador”. É verdade que, ocasionalmente, Jesus se referia a si mesmo na terceira pessoa (Mt 12:40; 17:9; Lc 24:15-16, 26, 27); no entanto, nunca por

36 | Tentaram a Deus no Seu coração meio da palavra “outro”. Todas as vezes em que Jesus emprega essa palavra, está falando de outrem. Em Jo 5:43, afirma: “Eu vim em nome de meu Pai, e não me recebeis; se outro vier em seu próprio nome, certamente, o recebereis.” Em Jo 5:32, Jesus usa essa expressão para se referir a João Batista: “há outro que testifica de mim, e sei que o testemunho que Ele dá de mim é verdadeiro”. Finalmente, em Jo 15:24, declara: “se eu entre eles não fizesse tais obras, quais nenhum outro tem feito, não teriam pecado; mas agora, viram-nas e me odiaram a mim e a meu Pai”. João podia se referir a si mesmo como “o outro discípulo” porque havia mais discípulos; se Jesus é, porém, o único “Consolador”, como querem os dissidentes, seria ilógico que Ele se referisse a si mesmo como sendo “o outro Consolador”. Aliás, para que faça sentido o argumento de que Jesus podia usar a palavra “outro” em relação a si mesmo porque João a usava nesse sentido, seria necessário que, no texto empregado para defender essa ideia (Jo 20:3-4), João e Pedro fossem uma única pessoa. Ou seja, quando João se chama de “outro discípulo”, ele não quer dizer que ele e Pedro são uma única pessoa. Pelo contrário, ele está afirmando que eram duas pessoas diferentes. Da mesma forma, quando Jesus chama o Espírito Santo de “outro Consolador”, está afirmando que Ele mesmo e o Espírito Santo constituem duas pessoas diferentes. Finalmente, temos, inclusive, uma advertência do após-

| 37 tolo São Paulo para que não preguemos “outro Jesus” ou “outro São Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

Espírito”: “porque, se alguém for pregar-vos outro Jesus que nós não temos pregado, ou se recebeis outro Espírito que não recebestes, ou outro evangelho que não abraçastes, com razão o sofrereis” (2 Co 11:4). Ellen White nos esclarece a exposição de Jesus quando afirma: “prejudicado pela humanidade, Cristo não podia estar em todos os lugares pessoalmente. Portanto, era de seu interesse [dos discípulos] que Ele fosse para o Pai e enviasse o Espírito para ser Seu sucessor na Terra” (The faith I live by, p. 56). Ora, não podemos falar de um sucessor para o Presidente da República, até que uma pessoa diferente assuma o cargo. Da mesma forma, não podemos conceber que Ellen White fale de um sucessor de Jesus se, de fato, o Espírito Santo é apenas um nome diferente para o Senhor Jesus Cristo.

At 2:33 prova que o Espírito Santo não é uma pessoa? O texto de At 2:33 tem sido usado, em tempos recentes, para supostamente provar que o Espírito Santo não é uma pessoa. Os argumentos principais, com base nesse texto, correm em duas linhas principais: que o verso especificamente se refere ao Espírito Santo por meio do pronome demonstrativo “isso”, de valor neutro, e que o verbo “derramar” deixa claro que o Espírito Santo não é uma pessoa, mas uma espécie de força, uma coisa ou objeto. O texto em questão reza: “Exaltado, pois, à destra

38 | Tentaram a Deus no Seu coração de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis”. O primeiro argumento, que considera desrespeitoso o emprego da palavra “isto” (touto, em grego) em relação a uma pessoa divina, esbarra em uma dificuldade intransponível. O uso de “isto” se deve ao fato de que a expressão “Espírito Santo” (pneuma hagion) é neutra em grego. Diferentemente do português, que é uma língua que conta com apenas dois gêneros, o grego (como o latim) possui três gêneros. No português, definimos como masculinos ou femininos mesmo os objetos assexuados. Assim, “mar” é masculino e “mensagem” é feminino. Em grego, porém, é comum o emprego do gênero neutro quando não queremos fazer referência explícita ao sexo. Dessa forma, a palavra “bebê” (brephos, em grego), de ocorrência comum no evangelho de Lucas (Lc 1:41, 44; 2:12, 16), ou a expressão “filhinhos” (teknia), bastante empregada pelo apóstolo João em suas epístolas, são ambas expressões neutras, sem qualquer referência ao sexo das pessoas envolvidas. A mesma coisa acontece, em inglês, quando os americanos se referem ao Espírito Santo, a um bebê ou a uma criança como it (“isso”). A título de exemplo, pode-se citar o cartaz promocional do filme “It” (traduzido em português como “A coisa”), baseado no livro homônimo, de Stephen King, publicado em 1986. O cartaz mostra uma figura de palhaço com o traço distintivo de possuir garras em vez de dedos. A referência do título do filme a um ser no gênero neutro de modo algum invalida sua pessoalidade e personalidade.

| 39 Acontece, de fato, que a tradução de At 2:33 ao portuSão Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

guês deixa explícito que a língua grega trata a expressão “Espírito Santo” como neutra. Se os que defendem a impessoalidade do Espírito Santo fizerem uma pesquisa cuidadosa no grego, vão descobrir que este não é o único caso. Isso ocorre também em Jo 14:16-17, embora, ali, a tradução não o deixe explícito. Por outro lado, em outras passagens (como, por exemplo, Jo 14:26; 16:7-8, 13-14), João emprega o pronome masculino ekeinos (“este” ou “ele”) para se referir ao Espírito Santo, mostrando que os gêneros masculino e neutro não são atribuídos, de forma consistente, à terceira pessoa da Divindade. Deus não é nem homem nem mulher, pois “Deus é espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4:24). Em todo caso, percebe-se que tanto bíblica quanto linguisticamente, o gênero de uma palavra não determina a pessoalidade do ser a que ela se refere. Em relação ao segundo argumento, pode-se mesmo dizer que o verbo “derramar” nunca tem seres pessoais como seu objeto? Não, não se pode afirmar isso. Em realidade, uma breve pesquisa na internet me mostrou dois textos em que o verbo “derramar” foi empregado exatamente assim. Um jornal de esportes noticiou, em Portugal: “o jogo foi desfigurado como um espetáculo, mas ainda atraente. O Liverpool derramou homens em frente... estilo italiano, defendendo” (Desporto notícias, 20-2-2008). Percebe-se, neste caso, que o time inglês adotou o estilo defensivo das equipes italianas, derramando jogadores à

40 | Tentaram a Deus no Seu coração frente da defesa. Pode-se, então, derramar uma pessoa? Parece que sim, desde que estejamos falando em linguagem figurada. O poema de Gustavo Bicalho nos mostra exatamente isso: Segunda-feira. Perde-se a hora. O relógio evaporou - Moço, me vê um copo d’água? - Acabou. A avenida derrama gente. Sublimo. O poeta descreve como seu eu lírico despertou atrasado na segunda-feira, entrou em um estabelecimento em busca de água, não a encontrou, voltou à avenida repleta de pessoas e, finalmente, revelou aos leitores todas essas dificuldades.

Quando a Bíblia fala que o Espírito é derramado sobre

toda a carne (Joel 2:28), está usando linguagem figurada, do mesmo modo que o faz quando diz que a cólera de Deus se derrama como fogo (Na 1:6; Ap 16:1) ou que o amor divino está derramado em nossos corações (Rm 5:5). De acordo com Ellen White, “nenhum princípio intangível, nenhuma essência impessoal ou mera abstração, pode satisfazer as necessidades e os anseios dos seres humanos nesta vida de lutas contra o pecado. Não é suficiente crer em uma lei ou em uma força, em coisas que não têm piedade e nunca escutam um pedido de ajuda. Nós precisamos saber que há um braço todo-poderoso que há de nos

| 41 levantar, que há um Amigo infinito que se compadece de nós” São Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

(The faith I live by, p. 53).

Pode-se entender a palavra “Espírito” como linguagem figurada para “mente” ou “vida”? Partindo de um raciocínio semelhante ao usado na seção anterior para argumentar que a expressão “derramar o Espírito Santo” não deve ser entendida literalmente, pode-se defender a ideia de que a expressão “Espírito Santo” seja simplesmente usada na Bíblia em sentido figurado com o significado de “mente” e “vida”? Não. Em todas as ocasiões em que a palavra “espírito” tem esse sentido figurado (como, por exemplo, em 1 Re 21:4-5; Dn 2:1-3; 1 Co 14:14; 2 Co 7:13; Fm 25), ela nunca vem seguida do adjetivo “santo”. Além disso, segundo Ellen White, “Cristo labutou por Sua vide. Príncipe do céu, Ele era ainda o intercessor pelo homem, e Ele tinha poder com Deus, e prevalecia em favor de si mesmo e de Seu povo. Manhã após manhã Ele comungava com o Pai celestial, recebendo dele um batismo diário do Espírito Santo” (Signs of the Times, 21-111895). Jesus, na Terra, recebia o batismo diário do Espírito Santo. Ele não podia, portanto, ser batizado com Sua própria mente!

Pela mesma razão, não devemos entender a declaração

de 1 Co 2:11 como se significasse, de modo redundante, que somente Deus entende as coisas de Deus: “porque qual dos

42 | Tentaram a Deus no Seu coração homens sabe as coisas do homem, senão o Seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus”. Ellen White explica muito bem essa passagem, quando afirma que “o Espírito Santo tem personalidade; do contrário, Ele não poderia dar testemunho a nossos espíritos e com nossos espíritos de que somos filhos de Deus. Ele deve também ser uma pessoa divina; de outra forma, Ele não poderia perscrutar os segredos ocultos na mente de Deus” (Evangelismo, p. 617). Por isso, tampouco devemos interpretar Rm 8:26, de modo figurado, como se sugerisse que é o “espírito” (ou “mente”) de Cristo que realiza a intercessão em favor dos homens: “também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis”. Os que defendem a ideia de que as referências à intercessão do Espírito Santo simplesmente representam, de forma figurada, a intercessão do próprio Jesus, o fazem motivados por uma compreensão inadequada de 1 Tm 2:5, passagem que afirma que há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem. Essas pessoas passam por alto a compreensão teológica do que se convencionou chamar de “a economia da Divindade”. Ou seja, embora Jesus tenha participado da criação de modo tão efetivo quanto o Pai, apenas este último recebe geralmente o epíteto de Criador. Da mesma forma, embora o Pai tenha participado da redenção de modo tão efetivo quanto Jesus, é a este último que geralmente designamos

| 43 como Redentor. Ou seja, as pessoas divinas têm unidade de propósito e de ação, mas cada uma delas, em certo sentido, se destaca em relação a algum aspecto específico de Sua atuação. Por isso, afirmar que Jesus é o único Mediador não contradiz o ensinamento bíblico de que o Espírito intercede pelo homem. São Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

Além disso, temos descrições detalhadas que nos são dadas pelo Espírito de Profecia e que mostram que, em vez de contraditórias, as atuações de Jesus e do Espírito Santo como intercessores, são, de fato, complementares. “Quando Cristo cessar a Sua obra como Mediador em favor do homem, então o tempo de tribulação vai começar. Então, o caso de cada alma terá sido decidido, e não mais haverá sangue expiatório para purificar do pecado. Quando Jesus deixar Sua posição como Intercessor do homem diante de Deus, o solene anúncio será feito: ‘o injusto continue sendo injusto… o justo continue a ser justo’ Ap 22:11. Então, a restrição do Espírito de Deus será retirada da Terra” (Patriarcas e Profetas, p. 201). “Enquanto Jesus permanecer como Intercessor pelo homem no santuário celestial, a influência restritiva do Espírito Santo é sentida pelos governantes e pelo povo” (Spirit of Prophecy, v. 4, p. 429). “Enquanto Jesus, nosso Intercessor, suplica por nós no céu, o Espírito Santo opera em nós, para que queiramos e efetuemos a Sua vontade. O céu todo se interessa pela salvação da alma” (Signs of the Times, 3-10-1892). Como se percebe, após Sua morte, Jesus é Intercessor no céu, no santuário celestial. O Espírito Santo intercede a partir

44 | Tentaram a Deus no Seu coração da Terra, convencendo-nos “do pecado, da justiça e do juízo” (Jo 16:8)! Nada impede, porém, de acordo com a economia da Divindade, que tanto Jesus quanto o Espírito Santo sejam identificados como intercessores. O Espírito Santo intercede e Cristo também intercede. Segundo Rm 8:34, “quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós”.

A distribuição de dons à Igreja prova que Jesus e o Espírito Santo são a mesma pessoa? No capítulo 2 de Atos, o apóstolo Lucas descreve como o Espírito Santo concedeu o dom de língua à Igreja primitiva. No entanto, em Ef 4:8, temos a declaração de que foi Jesus quem distribuiu os dons espirituais à Igreja: “quando Ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens”. Essas declarações provam que Jesus e o Espírito Santo são a mesma pessoa? De modo algum. Textos do Espírito de Profecia e outras passagens escriturísticas nos revelam que Jesus e o Espírito Santo participaram, conjuntamente, da obra da distribuição de dons. Ao sugerir temas de pregação aos pastores evangelistas, Ellen White fez a seguinte declaração: “sejam estes os nossos temas: Cristo crucificado por nossos pecados, Cristo ressuscitado dos mortos, Cristo como nosso Intercessor diante de Deus; e intimamente ligado a esses é a obra do Espírito Santo, o representante de Cristo, enviado com poder divino e

| 45 dons para os homens” (Evangelismo, p. 187). O Espírito Santo distribui os dons como representante de Cristo. São Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

Jesus é a fonte dos dons, o Espírito Santo os entrega a nós! Todavia, a terceira pessoa da Divindade conta com o consentimento dos demais membros da Divindade para fazê-lo segundo Seu próprio beneplácito. Está escrito em 1 Co 12:11 que “um só e o mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um, individualmente”. Além disso, temos uma declaração de Ellen White que nos esclarece que Jesus está com o Espírito Santo quando este realiza Sua obra: “quando as provações obscurecerem a alma, lembrem-se das palavras de Cristo, lembrem-se de que Ele é uma presença invisível na pessoa do Espírito Santo, e Ele será a paz e o consolo dados a vocês, manifestando-lhes que Ele está com vocês, o Sol da Justiça, que expulsa as trevas” (Filhas de Deus, p. 185).

Existem problemas com os antigos manuscritos bíblicos em relação aos textos que falam do Pai, do Filho e do Espírito Santo? Não se pode dizer que os antigos manuscritos bíblicos apresentam evidência contrária à personalidade e pessoalidade do Espírito Santo, embora, com isso, não estejamos dizendo que tais referências sejam totalmente isentas de dificuldades. São duas as passagens disputadas: 1 Jo 5:7-8 e Mt 28:19. No entanto, apenas uma delas é problemática. Como sabemos

46 | Tentaram a Deus no Seu coração exatamente onde reside a dificuldade, a Igreja Adventista (bem como as demais denominações cristãs) tem se eximido de usar essa passagem para fundamentar seus ensinamentos sobre a pessoa do Espírito Santo. No caso de 1 Jo 5:7-8, ocorre o que se convencionou chamar de “vírgula joanina” ou “parêntese joanino”: “porque três são os que testificam [no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na Terra]: o Espírito, a água e o sangue, e os três são unânimes num só propósito”. Apenas oito manuscritos contêm o texto que aparece, aqui, entre colchetes. Como explicar, então, que o texto tenha sido incluído nas Escrituras? Trata-se do caso único de um lamentável descuido por parte dos filólogos, os especialistas que estudam os manuscritos antigos. No início do século XVI, surgiu a necessidade de se preparar um texto grego que servisse de base para as traduções da Bíblia para as línguas modernas. Desde a divisão do Império Romano, o Ocidente havia abraçado a assim-chamada Vulgata, a tradução latina das Escrituras, fazendo dela a base de sua devoção, enquanto o Oriente continuava a usar o texto grego. Quando o latim caiu em desuso e foi suplantado pelas línguas nacionais (inglês, francês, italiano, espanhol e português, entre outras), surgiu a necessidade de se prepararem traduções que pudessem ser lidas na língua do povo. O natural, nesse caso, foi buscar os manuscritos hebraicos e gregos (mais próximos do texto original) para que as novas traduções se pudessem basear

| 47 neles. Como o Ocidente não mais falava grego, foi com certa dificuldade que se juntaram alguns desses manuscritos. São Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

Em 1514, foi preparada uma versão erudita, denominada de Poliglota Complutense, em que as diferentes colunas apresentavam o texto bíblico em hebraico, grego e latim, daí a denominação de “poliglota”. Essa versão não logrou prestígio e foi logo substituída pelo texto grego do Novo Testamento preparado por Desidério Erasmo, também conhecido como Erasmo de Roterdã, um distinto estudioso da língua grega. Em pouco tempo, o Novo Testamento de Erasmo vendeu três mil cópias. Isso despertou a insatisfação dos estudiosos que haviam contribuído para a elaboração da Poliglota Complutense, que passaram a criticar supostos defeitos no texto de Erasmo. É verdade que o texto de Erasmo, excessivamente dependente de fontes bizantinas, não tinha a mesma precisão e confiabilidade que têm os textos que atualmente servem de base às traduções. Apesar disso, estava livre de erro quanto à principal crítica que lhe era feita por seus opositores: não continha o assim-chamado “parêntese joanino”. Erasmo cedeu às pressões de seus rivais e acabou incluindo, na terceira edição de seu Novo Testamento Grego, um texto que ele sabia não fazer parte original das Escrituras. O texto de Erasmo foi usado na preparação do “Texto Recebido”, que, eventualmente, serviu de base para traduções tão prestigiosas como a versão do rei Tiago (King James Version), em inglês, e a Bíblia Almeida, em português.

O texto de 1 Jo 5:7-8 não consta da grande maioria dos

48 | Tentaram a Deus no Seu coração manuscritos antigos, não é citado pelos pais da Igreja nem por Ellen White. Não deve, portanto, ser considerado autêntico. A Igreja Adventista, porém, sempre reconheceu esse fato e, como Instituição, esforça-se por não o usar como base de suas doutrinas fundamentais. O Comentário bíblico adventista (v. 7, p. 675), publicado há muitos anos, contém a seguinte explicação acerca da passagem: “as palavras em questão têm sido amplamente usadas em defesa da doutrina da Trindade, mas em virtude da evidência esmagadora contra sua autenticidade, elas não devem ser usadas com esse objetivo”. Pode-se ver, portanto, que a passagem não contraria a crença adventista na personalidade e pessoalidade do Espírito Santo que foi, inclusive, desenvolvida sem necessitar dela. O outro texto geralmente apontado como problemático é o de Mt 28:19: “ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”. O problema surgiu com base em um rodapé da Bíblia de Jerusalém (e outras fontes católicas e seculares) que declara: “é possível que essa fórmula reflita influência do uso litúrgico posteriormente fixado na comunidade primitiva”. Apesar de críticos descrentes considerarem que o texto não faça parte do original, não há nenhuma evidência nos manuscritos antigos que confirme sua suposição. O Códice Sinaítico, geralmente citado como melhor e mais confiável manuscrito do Novo Testamento, foi encontrado, em 1844, por Tischendorf. Trata-se de um manuscrito completo

| 49 pertencente ao século IV A.D. e, como era de se esperar, contém Mt 28:19. Como já afirmamos, não há nenhum manuscrito antigo que omita a passagem. Ellen White cita o verso inteiro cinquenta vezes e nunca levanta qualquer dúvida quanto a sua autenticidade. Ela esclarece: “o Consolador que Cristo prometeu enviar depois de subir aos céus, é o Espírito em toda a plenitude da Divindade, que torna manifesto o poder da graça divina para todos os que recebem e creem em Cristo como Salvador pessoal. Há três pessoas vivas no trio celestial. No nome desses três poderes, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, os que recebem a Cristo pela fé viva são batizados, e esses poderes cooperarão com os súditos obedientes do céu em seus esforços para viver uma nova vida em Cristo” (Bible Training School, 1-3-1906). O Espírito de Profecia valida, assim, o batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. São Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

Mesmo assim, alguns dissidentes afirmam que ser mencionado na fórmula de batismo não é garantia de igualdade. Na tentativa de comprovar essa suposição, mencionam o texto de 1 Tm 5:21, que diz: “conjuro-te, perante Deus, e Cristo Jesus, e os anjos eleitos, que guardes estes conselhos, sem prevenção, nada fazendo com parcialidade”. Argumentam que, ao escrever a Timóteo, Paulo fez referências consecutivas ao Pai, ao Filho e aos anjos e que, nem por isso, essas pessoas podem ser consideradas em pé de igualdade. É preciso lembrar, porém, que os dois textos têm status diferenciados. No caso da Grande Comissão de Mt 28:19, temos uma fórmula litúrgica recomendada pelo próprio Cristo. No caso do conselho de Paulo a Timóteo, temos

50 | Tentaram a Deus no Seu coração apenas uma recomendação pastoral. A fórmula do batismo tem sido repetida, ao longo dos séculos, toda vez que uma pessoa é batizada, reconhecendo a autoridade conjunta do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O conselho de Paulo a Timóteo tem aplicação principalmente local ou em outros casos esporádicos, sem reclamar a autoridade da Divindade para seu cumprimento. Além disso, a autoridade das três pessoas da Divindade é reiterada em outras fórmulas litúrgicas como, por exemplo, na assimchamada bênção apostólica: “a graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós” (2 Co 13:13). Como se percebe, a referência triúna ao Pai, Filho e Espírito Santo ocorre, no Novo Testamento, em um contexto claramente autoritativo, razão por que versos assim acabaram incorporados à liturgia da adoração. Para diminuir o valor da bênção apostólica como evidência para a personalidade e pessoalidade do Espírito, os dissidentes afirmam que ser mencionado na bênção apostólica não é garantia de igualdade. Como acabamos de explicar, esse argumento não é convincente em relação a Mt 28:19 e tampouco o é em relação a 2 Co 13:13. Por isso, os dissidentes recorrem a outro artifício. Explicam que, como não está escrito “comunhão com o Espírito Santo”, mas “comunhão do Espírito Santo”, o Espírito Santo não pode ser uma pessoa! Isso não é verdade, porém, nem em grego nem em português. O grego, que não contém preposição aqui, poderia ser perfeitamente traduzido como “a comunhão que o Espírito Santo tem conosco” (genitivo subjetivo), em vez de “a comunhão que temos com o Espírito

| 51 Santo” (genitivo objetivo). Isso é possível toda vez que um caso genitivo (no caso, “do Espírito Santo”) é usado com referência a um substantivo abstrato (no caso, “comunhão”). São Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

Conforme afirmamos antes, esse não é um fenômeno peculiar à língua grega e ocorre também em português. A expressão “amor de mãe” pode significar, em português, tanto “amor que se tem pela mãe” quanto “amor que a mãe tem pelo filho”. Como a palavra “amor” é um substantivo abstrato, o genitivo que o segue (“de mãe”) pode ser interpretado tanto como adjunto adnominal (“amor que a mãe tem”) quanto como complemento nominal (“amor que se tem pela mãe”). O mesmo não ocorre, porém, com a expressão “a invenção da imprensa”. Embora “invenção” seja um substantivo abstrato, só se pode pensar que a imprensa foi inventada e não que inventou alguém. Nesse caso, a ambiguidade se desfaz porque o genitivo só tem valor de paciente, devendo, por isso, ser interpretado como complemento nominal. Todavia, no caso de “a comunhão do Espírito”, não há nenhuma razão linguística ou teológica para que optemos por uma leitura unilateral que só contemple o aspecto paciente do relacionamento, sem levar em consideração a agência do Espírito Santo. A referência triúna às pessoas da Divindade é um fenômeno teologicamente conhecido como “relacionamento coordenado”, conforme explica Wayne Grudem, em sua obra Systematic theology. Outro exemplo desse fenômeno, além dos já estudados aqui, inclui 1 Pe 1:2: “eleitos, segundo a presciên-

52 | Tentaram a Deus no Seu coração cia de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo, graça e paz vos sejam multiplicadas”. Além de ser linguística e teologicamente comprovada, a personalidade do Espírito Santo é ainda amplamente defendida por Ellen G. White: “precisamos perceber que o Espírito Santo é tanto uma pessoa quanto Deus é uma pessoa” (The faith I live by, p. 52).

Conclusão Recentemente temos testemunhado uma crescente resistência à doutrina histórica da personalidade e pessoalidade do Espírito Santo. Pode-se sugerir que esse ponto de discordância constitui uma das evidências de que nos aproximamos vertiginosamente da consumação dos séculos. As Escrituras profetizaram que haveria, na época final da história humana, uma drástica subversão da verdade. No início do tempo do fim, ocorreu a morte de Jesus. Depois, ensinou-se a “morte de Deus”. E, agora, passa-se, com dedos longos e penetrantes, à negação da existência do Espírito Santo. Por que é tão importante que a Igreja Adventista se mantenha fiel à sua compreensão histórica da doutrina da Divindade? Ellen G. White esclarece que “só se pode resistir ao pecado ou vencê-lo pela poderosa agência da terceira pessoa da Divindade, que viria não com energia modificada, mas na plenitude do poder divino” (The faith I live by, p. 52). Há interesses perversos em que seja negado aos crentes o acesso ao poder que pode capacitá-los a viverem uma vitoriosa

São Jesus

e o Espírito

Santo

a mesma pessoa?

| 53

vida cristã. A tomada de uma posição firme contra o manuseio das Escrituras com o propósito de deturpar os ensinamentos que hão de nos preparar para a vitória final é descrito por Ellen G. White como constituindo um grande teste em que todos nós teremos que ser aprovados. Segundo ela, “Deus está testando a fidelidade de Seu povo, provando-o para ver que uso farão da preciosa bênção que lhes confiou. Essa bênção veio de nosso Intercessor e Advogado nas cortes do céu; mas Satanás estava pronto para entrar em qualquer avenida que lhe abríssemos, para que pudesse transformar a luz e a bênção em trevas e maldição. Como pode a bênção se transformar em maldição? Persuadindo o agente humano a não cuidar da luz, ou a não revelar ao mundo que ela tem poder para transformar o caráter . Cheio do Espírito, o agente humano deve se consagrar a Ele para cooperar com os agentes divinos” (Review and Herald, 6-2-1894). Não podemos nos vangloriar de que tenhamos uma compreensão completa da natureza e do papel do Espírito Santo, mas temos informações suficientes nas Escrituras para que possamos declarar, com confiança, que Ele é o Amigo que pode nos conduzir, durante os momentos de crise, a um entendimento mais adequado das Escrituras. Rejeitar esse tipo de ajuda nos predispõe ao fracasso e ao erro. “A natureza do Espírito Santo é um mistério. Os homens não podem explicá-la, porque o Senhor não a revelou a eles. Os homens que têm explicações fantasiosas ajuntarão algumas passagens das Escrituras e darão

54 | Tentaram a Deus no Seu coração a elas uma interpretação humana; mas a aceitação dessas opiniões não fortalecerá a Igreja. Com respeito a tais mistérios, que são profundos demais para a compreensão humana, o silêncio é ouro” (Ellen G. White, The faith I live by, p. 54).

3

Quem

é o Deus da

Bíblia?

............................................

A

interpretação é uma arte. No entanto, ao mesmo tempo, ela requer ciência. Isto é, nem todo mundo compreende o que lê. O eunuco de At 8:31 é um exemplo de uma pessoa que lia, mas não entendia: “Como poderei entender, se alguém não me explicar?” Felizmente, há, nas Escrituras, a promessa de que o Espírito Santo nos guiará a toda verdade (Jo 16:13). Apesar disso, não significa que, sozinhos, seremos capazes de chegar a uma compreensão adequada de toda a verdade bíblica. Às vezes, para que compreendamos um texto de forma satisfatória, precisamos orar a respeito e contar com o auxílio de uma pessoa mais experiente no manuseio das Escrituras. Foi o que ocorreu com o eunuco e Felipe. Desafortunadamente, alguns membros da Igreja Adventista têm sido incomodados recentemente pelo assédio de algumas pessoas que não têm conseguido compreender, de modo satisfatório, alguns textos bíblicos pertinentes à natureza da Divindade. Essas interpretações deficientes ocorrem geralmente por uma das seguintes razões ou pela combinação das mesmas. Em primeiro lugar, o tema é profundo. Em segundo lugar, o desconhecimento das línguas bíblicas e do processo de transmissão das Escrituras

56 | Tentaram a Deus no Seu coração pode prejudicar uma apreciação devida do assunto. Em terceiro lugar, alguma mágoa mal resolvida em relação a algum pastor ou membro pode contribuir para o surgimento de uma interpretação tendenciosa. Quando confrontadas com “a revelação do mistério guardado em silêncio nos tempos eternos” (Rm 16:25), algumas pessoas têm indagado: Deus é uma, duas ou três pessoas? Quem é Deus? Estas são perguntas legítimas e merecem respostas teologicamente honestas e fundamentadas biblicamente. Apesar disso, estamos falando de um mistério e os mistérios nem sempre se apresentam de forma lógica e racional, especialmente quando lidamos com um mistério divino. Por outro lado, as Escrituras nos dão vislumbres suficientes da Pessoa de Deus para que tenhamos convicção de que não estamos às escuras no que diz respeito à identidade de Deus.

Em que sentido Deus é um? Diante do uso do pronome “mim” na declaração de Êx 20:3, algumas pessoas têm sugerido que, ao dizer “Não terás outros deuses diante de mim”, Deus se individualiza como uma pessoa única, assim excluindo a divindade de Jesus Cristo e do Espírito Santo. Esse argumento pode ser facilmente refutado quando recorremos aos textos bíblicos nos quais Deus se apresenta no plural. Em Gn 1:26, lemos: “Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa

| 57 semelhança”. Em Gn 11:7, está escrito: “Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem de outro”. Em Is 6:8, encontramos a seguinte indagação de Deus: “A quem enviarei, e quem há de ir por nós?” Para escapar a essa argumentação irrefutável, os que descreem do ensinamento bíblico da natureza triúna de Deus, recorrem à explicação de que, por ter sido escrito pelo dedo de Deus, o trecho mais confiável da Bíblia é o relato dos Dez Mandamentos e, por isso, devemos privilegiar a compreensão individualizada da natureza de Deus, em detrimento das passagens que atestam quanto a Sua natureza triúna. É, no entanto, teologicamente contraproducente estabelecer uma hierarquia de confiabilidade dos textos bíblicos. A Bíblia é toda confiável (2 Tm 3:16). Segundo Ellen G. White, “os homens que negam a divindade de Cristo, lançam fora a Bíblia” (Signs of the Times, 3-9-1894). Além disso, quando Ellen G. White aplica o texto de Tiago 2:19 a Jesus, ela demonstra que a unicidade de Deus não exclui a essência divina do Senhor Jesus. “Muitos têm uma fé nominal em Cristo, mas nada sabem daquela dependência vital daquele que se apropria dos méritos de um Salvador crucificado e ressurreto. Dessa fé nominal fala Tiago: ‘Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios creem e tremem’” (Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 389). Ela explica isso claramente quando afirma: “No batismo do Salvador, Satanás estava entre as testemunhas. Ele viu a glória do Pai envolvendo o Filho. Ele ouviu a voz de Jeová testificando da divindade de Jesus” (O Desejado de todas as nações, p. 116). Quem

é o Deus da

Bíblia?

58 | Tentaram a Deus no Seu coração A declaração bíblica de que “Deus é um só” deve ser entendida em contraste com o politeísmo rompante que prevalecia na época em que o evangelho começou a ser pregado. Ela é comparável à declaração escriturística de que homem e mulher podem se tornar uma só carne pela união do matrimônio. Isto é, a Trindade está unida de forma tão íntima e pessoal que “Deus é um só” em essência e propósito.

Em que sentido Deus é o Deus de Jesus? Um argumento comum entre os objetores à doutrina da Trindade é que, se o próprio Jesus identifica a Deus como sendo Seu Deus, então Ele não pode estar em pé de igualdade com o Pai. Em Mt 27:46, registram-se as palavras de Jesus: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Além disso, em Jo 20:17, encontramos Sua declaração: “subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”. Esse argumento tem origem em uma lógica que não leva em consideração a encarnação de Jesus. Como homem, Jesus está sujeito à vontade de Deus da mesma forma como os demais seres humanos deveriam estar. Mesmo após a Sua ressurreição, Jesus não perdeu a natureza humana que havia recentemente adquirido. Deus será, para sempre, o Deus do homem Jesus. Esses textos podem ser entendidos de forma bem diferente. Segundo Ellen G. White, quando Jesus disse “subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”, Sua intenção era

| 59 demonstrar que “a família do céu e a família da Terra são uma” (O Desejado de todas as nações, p. 835). O testemunho da Igreja e das Escrituras corroboram essa interpretação. De acordo com 1 Co 8:6, “para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também, por Ele”. A família do céu está unida no propósito de salvar a humanidade. A morte e a ressurreição de Jesus nos dão essa garantia. Ellen G. White descreveu a reação da Igreja primitiva a esses eventos ímpares da história da salvação: “Eis o povo vindo de todas as direções para ouvir os discípulos testemunharem da verdade como ela existe em Jesus. Eles se apertam, enchendo o templo. Os sacerdotes e os príncipes estão ali, o olhar escuro da maldade ainda em suas fisionomias, seus corações ainda cheios de duradouro ódio contra Cristo, suas mãos ainda sujas com o sangue derramado quando eles crucificaram o Redentor do mundo. Eles pensaram que encontrariam os apóstolos acovardados sob a mão forte da opressão e do assassínio, mas eles os encontram erguidos acima de todo temor e cheios do Espírito, proclamando, com poder, a divindade de Jesus de Nazaré. Eles os ouvem declarar, com coragem, que Aquele a quem tão recentemente humilharam, ridicularizaram, espancaram com mãos cruéis e crucificaram, é o Príncipe da vida, agora exaltado à destra de Deus” (Atos dos apóstolos, p. 42). Os discípulos custaram, mas chegaram eventualmente à imprescindível compreensão de que Jesus é Deus. Admira-nos, porém, que, apesar de expressa de forma tão enfática nas Escrituras, alguns duvidem hoje dessa verdade. Quem

é o Deus da

Bíblia?

60 | Tentaram a Deus no Seu coração Em que sentido Deus é maior do que Jesus? O único Deus verdadeiro se revelou supremamente na pessoa de Seu Filho (Jo 1:18). O conhecimento de Deus não pode ser separado do conhecimento de Jesus Cristo. Por isso, em Jo 17:3, está escrito: “e a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”. Por outro lado, Jesus declara, em Jo 14:28, que “se me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai, pois o Pai é maior do que eu”. O contexto da passagem mostra que Jesus está lidando com o que perturba os discípulos e lutando com o medo deles. É interessante que “o mesmo evento que destruiu as esperanças dos discípulos convenceu a José e Nicodemos da divindade de Jesus. Seus temores foram vencidos pela coragem de uma fé firme e inabalável” (O Desejado de todas as nações, p. 775-776). Jesus se preocupa com a reação dos discípulos a Sua partida repetidamente anunciada. Ele está dizendo: fiquem tranquilos, pois tudo está sob controle. Assim, Jesus lhes explica que está voltando para uma esfera que é maior do que aquela em que estava naquele momento. Há um admirável equilíbrio teológico no evangelho de João: Jesus pertence ao mesmo patamar que Deus (1:1, 18; 5:16-18; 10:30; 20:28), mas está em dependência íntima de Deus (4:34; 5:19-30; 8:29; 12:48-49). Os gnósticos enfatizavam a primeira tendência; os arianos, a segunda; João, as duas. A expressão “maior do que” de Jo 14:28 é, em grego,

| 61 meizôn (masculino). Sua compreensão depende de uma perspectiva. Quando digo que a rainha Elizabete é maior do que eu, não significa que ela é mais ser humano do que eu. A categoria “maior do que” não pode ser legitimamente entendida como referência à ontologia. A rainha é maior do que eu em autoridade, majestade, riqueza, influência, fama e outras coisas... A declaração de Jesus de que o Pai é maior do que Ele só pode ser apreciada devidamente se Jesus e o Pai têm a mesma natureza. Seria ridículo, por exemplo, que alguém dissesse “Deus é maior do que um inseto”. Usamos a expressão em relação a pessoas que podem ser comparadas. Assim, em Jo 10:29-36, está escrito: “Aquilo que meu Pai me deu é maior [meizon, neutro] do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar. Eu e o Pai somos um. Então, daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, dizeis: Tu blasfemas; porque declarei: sou Filho de Deus?” Como se percebe, pelo contexto mais amplo da passagem, os judeus reagiram com horror à declaração de Jesus porque entenderam que Jesus se fazia Deus. De fato, “às vezes, Sua divindade irrompia na humanidade, e Ele transparecia como o Filho de Deus, o véu de Sua carne transparente demais para ocultar Sua majestade. Mas os homens que se diziam expositores das profecias recusaram a crer que Ele era o Cristo. Satanás tinha controle de sua mente, e eles se recusaram terminantemente a reconhecer a divindade de Jesus de Nazaré” (Ellen G. White, Review & Herald, 26-3-1901). “Ao rejeitar a prova da divindade de Jesus, esses sacerdotes e príncipes se trancaram em escuridão impenetrável. Eles se colocaram inteiramente sob o domínio de Satanás” (O Desejado de todas as nações, p. 541). Além disso, Quem

é o Deus da

Bíblia?

62 | Tentaram a Deus no Seu coração quando João registra as palavras de Jesus “Eu e o Pai somos um”, o grego não traz heis (“um”, numeral masculino), mas hen (neutro). Isso enfatiza que não se trata de ser uma só pessoa, mas uma só essência.

Em que sentido Deus é o cabeça de Cristo? A passagem de 1 Co 11:3 traz uma declaração do apóstolo Paulo que tem sido usada para afirmar a inferioridade de Cristo em relação ao Pai: “quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem, o cabeça da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo.” Essa interpretação se baseia principalmente em uma compreensão peculiar do que os teólogos convencionam chamar de “headship theology” (ou “teologia da sujeição”). Segundo esse modo de entender, nas passagens que mencionam o termo grego kephalê, a palavra “cabeça” indicaria superioridade. Dessa forma, textos como 1 Co 11:5, 10; Ef 1:22; 4:15; 5:23; Cl 1:18 e 2:10, 18-19 indicariam que o homem é superior à mulher; Cristo, ao homem; e Deus, a Cristo. Trata-se, no entanto, de uma interpretação grosseira dessas passagens. As Escrituras deixam claro que Deus nunca pretendeu que o homem se considerasse melhor do que a mulher, fazendo dela sua serva ou escrava. A intenção de Deus era que ela lhe fosse uma auxiliadora idônea. Igualmente, a teologia paulina não apresenta a Deus como superior, em natureza, ao Senhor Jesus. Muitos teólogos, hoje, nos advertem contra nossas pressuposições. Há mesmo uma corrente crescente de estudiosos das Escrituras que

| 63 não têm certeza se a palavra “cabeça” tem, em grego, o sentido de domínio que ela tem atualmente (BEDALE, 1954, p. 212; HOOKER, 1964, p. 411; JERVIS, 1993, p. 240; KAPSALIS, 2001, p. 115-116), pois a palavra “cabeça” era usada figuradamente, pelo menos em hebraico, para se referir à nascente de um rio (como, por exemplo, em Gn 2:10). Quem

é o Deus da

Bíblia?

Em grego, kephalê (“cabeça”) e archê (“princípio, fonte”) são as principais palavras usadas na Septuaginta para traduzir o termo hebraico para “cabeça”. Nos escritos de João Crisóstomo, os dois termos parecem equivalentes. Numa passagem em que o teólogo reprova o comportamento da mulher dominadora que tenta controlar o marido, ele afirma: “a mulher não permite que o marido permaneça na terra de kephalê, mas deslocando-o de sua posição por meio de sua astúcia e impetuosidade, e empurrando-o para a posição de submissão que cabia a ela, ela se torna kephalê (cabeça) e archê (princípio ou fonte)” (João Crisóstomo, De virginitate 53.15-19). Dessa forma, é possível que dizer que o homem é o cabeça da mulher signifique simplesmente que ele foi criado primeiro e, depois, a mulher, a partir de sua costela. Assim também, dizer que Deus é o cabeça de Cristo pode simplesmente significar que Deus é a origem do Filho, mas no sentido de que o enviou para se fazer carne e habitar entre os homens. Nessa interpretação, kephalê significa metaforicamente “origem” ou “fonte” (Jo 1:14). Para Crisóstomo, é inaceitável, que o homem se sujeite ao domínio da mulher, especialmente no caso das uniões ilícitas:

64 | Tentaram a Deus no Seu coração “é uma grande vergonha quando o que é de cima (ta anô) fica por baixo, e a cabeça fica por baixo enquanto o corpo fica por cima. Se isso é vergonhoso no casamento, muito mais nesse tipo de união; não apenas é terrível que isso constitua transgressão da lei divina mas também que se atribua a mais perversa glória à mulher e a si mesmo. Se amaziar-se é vergonhoso, quanto mais tornar-se escravo daquela com quem se amazia!” (João Crisóstomo, Quod regulares feminae viris cohabitare non debeant 7.77-82). Todavia, Crisóstomo nitidamente põe marido e mulher em condição de igualdade na Igreja. Segundo ele (De Christi divinitate 48.808), “o homem é o cabeça da mulher e ela é a auxiliadora do homem. Por isso, não se deve permitir que a cabeça (hê kephalê) transponha a soleira do templo desacompanhada do corpo (chôris tou sômatos) nem que o corpo (to sôma) compareça sem a cabeça (chôris tês kephalês). Mas o homem por inteiro (holoklêros) deve entrar aqui, acompanhado inclusive dos filhos”. Após examinar os escritos de João Crisóstomo, Kapsalis (2001, p. 113) afirma que, embora Crisóstomo advogue que o homem é o cabeça da mulher, ele crê que ambos são ontologicamente iguais, da mesma forma que Cristo e as demais pessoas da Trindade são iguais em essência. Com respeito à assim-chamada “teologia da sujeição”, Crisóstomo entendia que ela só fazia sentido nos moldes do perfeito relacionamento existente entre os membros da Trindade. Crisóstomo nunca entendeu a palavra kephalê no sentido de que Cristo era subordinado ou inferior ao Pai. Ele firmemente cria que o Filho e o Pai tinham a mesma essência. De qualquer forma,

| 65 em seu comentário sobre 1 Co 11:3, João Crisóstomo declara que ninguém pode ser tão louco a ponto de pensar que cabeça e corpo não tenham a mesma essência. Ou seja, o principal ponto da metáfora é justamente mostrar que Deus e Cristo são ambos divinos, pois não se pode conceber uma cabeça divina em um corpo humano. Quem

é o Deus da

Bíblia?

De acordo com Cl 2:9, em Cristo “habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade”. Nessa mesma passagem, Paulo adverte que ninguém deve “ostentar a cabeça”, kratôn tên kephalên (Cl 2:9-11). O verbo grego krateô é o mesmo que deu origem, em português, à palavra “democracia”. Ele significa “dominar”. De acordo com o apóstolo, ninguém deve ostentar a cabeça porque isso seria equivalente a ter uma “mente carnal” (nous tês sarkos). Quem tem uma mente carnal se preocupa com a primazia. Por isso, algumas pessoas acham que é uma questão vital definirmos se Deus manda em Cristo ou se ambos mandam de forma igual. Insisto que isso é um comportamento carnal que não encontra nenhuma expressão no relacionamento do Pai com o Filho. Ao se fazer carne, Jesus demonstrou que estava disposto a, “subsistindo em forma de Deus”, não julgar “como usurpação o ser igual a Deus” (Fi 2:5). Não há por que nos intimidarmos pela linguagem teológica de Paulo nesta passagem. A palavra “subsistindo” (hyparchôn) significa, em grego, simplesmente “sendo”. Ou seja, sendo igual a Deus, Jesus decidiu se encarnar, velando Sua divindade. Decidiu que não valeria a pena continuar no céu apenas desfrutando de Sua

66 | Tentaram a Deus no Seu coração divindade. Ele se dispôs, humildemente, a assumir todo o ônus por nossa desobediência.

Em que sentido o processo de tradução das Escrituras pode ter prejudicado a revelação da real natureza de Cristo? Os objetores à doutrina da Trindade, com frequência, rejeitam as passagens mais contundentes que garantem a divindade de Jesus como tendo sido adulteradas pelo processo de tradução. Como essas pessoas não possuem conhecimento satisfatório das línguas bíblicas, recorrem a traduções obscuras para justificar seu ponto de vista. Como essas pessoas são, às vezes, movidas mais pela emoção do que pela razão, mesmo essas traduções obscuras não dizem o que tais pessoas afirmam que elas dizem. Um dos textos comumente rejeitados pelos objetores é Rm 9:5: “deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém!” No entanto, não há nenhuma razão para se pensar que este texto tenha sido traduzido de forma equivocada. Não há sequer variantes textuais importantes para a leitura preservada nos principais manuscritos. O grego diz que Jesus é Deus e assim deve ser entendido. No caso de Tito 2:13, os objetores argumentam que a palavra grega kai (“e”), na passagem, não garante que o texto se refira apenas a uma pessoa: “aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo

| 67 Jesus”. Em sua concepção, o que o texto afirmaria seria que a Igreja aguarda a manifestação da glória de Deus e também da glória do Senhor Jesus, e não que a Igreja aguarda a manifestação da glória de Jesus, nosso grande Deus e Salvador. Isso contraria, porém, a assim-chamada regra de Sharp. Granville Sharp, filólogo e abolucionista, descobriu que o kai grego liga referências à mesma pessoa quando a primeira referência é precedida do artigo e a segunda não, estando ambas no mesmo caso gramatical. Essa regra tem sido praticamente aceita com unanimidade pelos gramáticos gregos. Isso significa que não há outra forma de compreender o texto, a não ser aceitar que ele fala de Jesus como “grande Deus e Salvador”. Quem

é o Deus da

Bíblia?

Demonstrando pouco conhecimento em relação ao processo de transmissão das Escrituras, os objetores geralmente afirmam que Jo 1:18 foi traduzido como “ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou” quando, em vez disso, deveria conter a tradução “Filho unigênito”, assim eliminando a referência explícita à divindade de Jesus. Não se trata, porém, de um problema de tradução, mas de uma controvérsia crítico-textual. Manuscritos menos confiáveis, como o Códice Alexandrino (que traz um texto bizantino inferior), contêm a expressão monogenês huios (“Filho unigênito”). Todavia, os manuscritos mais antigos e confiáveis (que trazem o superior texto alexandrino), como, por exemplo, o renomado Códice Sinaítico (do Museu Britânico), contêm a expressão monogenês theos (“Deus unigênito”). Então, não se trata de recorrer a traduções, mas aos manuscritos mais antigos

68 | Tentaram a Deus no Seu coração e esses são unânimes em enfatizar a divindade de Jesus. No caso de 1 Tm 6:13-16, objeção é feita, às vezes, a que o texto possa se referir a Jesus. O texto reza: “Exorto-te, perante Deus, que preserva a vida de todas as coisas, e perante Cristo Jesus, que, diante de Pôncio Pilatos, fez a boa confissão, que guardes o mandato imaculado, irrepreensível, até à manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo; a qual, em suas épocas determinadas, há de ser revelada pelo bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver. A Ele honra e poder eterno. Amém!” Argumenta-se, nesse caso, que, uma vez que Jesus esteve na Terra e foi visto por inúmeras pessoas, não, pode, portanto, ser identificado com aquele “a quem homem algum jamais viu”. Entretanto, a interpretação de que o texto não se refere a Jesus Cristo não é a melhor por duas razões. Em primeiro lugar, o texto declara explicitamente que o que está sendo discutido é a manifestação de Jesus. Em segundo lugar, em consonância com Mt 11:27, passagem na qual Jesus afirma que tudo lhe foi entregue por Seu Pai e que “ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”, fica claro que nenhum homem jamais viu a Jesus em Seu pleno e exaltado estado. Ninguém o conhece plenamente. Portanto, não há impedimento algum a que o texto de 1 Tm 6:13-16 seja aplicado a Jesus, embora seja possível que Deus, o Pai, também esteja presente na passagem.

| 69 Uma das coisas mais interessantes acerca da maneira como os objetores à doutrina da Trindade procuram justificar sua descrença em algumas declarações explícitas da Bíblia é o fato de buscarem traduções pouco usadas pelos evangélicos e que, eles asseveram, concordam com eles na questão antitrinitariana. No entanto, quando examinamos tais traduções percebemos que mesmo elas não dão apoio ao antitrinitarianismo. No caso de Jo 1:1, por exemplo, tem sido argumentado que algumas traduções da Bíblia não concordam com a tradução mais difundida: “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Recorrendo a uma tradução espanhola da Vulgata e à Bíblia dos Franciscanos Capuchinhos, alguns preferem sua própria interpretação dessas traduções a aceitar o texto grego como este nos foi transmitido. Todavia, mesmo essas traduções ainda dizem a mesma coisa que o texto grego: que “o Verbo era Deus”! A tradução espanhola da Vulgata Latina, por Dom Felix Torres Amat, afirma: “en el principio era ya el Verbo, y el Verbo estaba em Dios, y el Verbo era Dios”. A Bíblia dos Franciscanos Capuchinhos traduz o versículo da seguinte forma: “no princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus”. Em nenhum dos dois casos, há qualquer desqualificação ao fato de que o Verbo é Deus. Essa situação me faz lembrar, porém, da advertência de Ellen G. White: “os grandes homens da Terra … se declararam suficientes para compreender mistérios divinos… Mas caíram presa fácil das sutilezas de Satanás… Eles se desviaram da Fonte de toda sabedoria e adoraram o intelecto. A mensagem e os mensageiros de Deus foram criticados e descartados como estando abaixo de suas excelsas ideias humanas… Quem

é o Deus da

Bíblia?

70 | Tentaram a Deus no Seu coração E eles negaram a divindade de Jesus Cristo e ridicularizaram a ideia de Sua pré-existência antes que assumisse Sua natureza humana” (Signs of the Times, 7-3-1895). Finalmente, há acusações de que o texto de Hb 1:8 tem sido incorretamente interpretado pela Igreja cristã. O texto afirma: “mas acerca do Filho: O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre; e: Cetro de equidade é o cetro do Seu reino”. Os objetores insistem que o melhor seria considerar a expressão ho theos (“ó Deus”) como nominativo e não como vocativo. Dessa forma, o versículo seria traduzido como “Deus é o teu trono para sempre”. No entanto, A. T. Robertson, um dos mais respeitados professores de grego bíblico, afirma o seguinte sobre esse versículo: “não é certo que ho theos seja o vocativo aqui, embora seja possível, ou que ho theos seja o nominativo (sujeito ou predicado). As duas possibilidades fazem sentido.” Como as duas traduções são possíveis, a melhor tradução é aquela que se harmoniza com as demais passagens das Escrituras que, de forma invariável, apontam para a divindade de Jesus. Conclusão Os objetores à doutrina da Trindade gostam de se referir a traduções supostamente mais fiéis. Estas podem ser quaisquer traduções, desde que pareçam se aproximar de seu pensamento. Citam, principalmente, a versão espanhola Reyna Valera, as versões menos importantes da língua inglesa e obscuras versões católicas. Entretanto, em nenhum dos casos investigados, essas versões dão qualquer apoio a uma posição antitrinitariana. Para

| 71 certificar-nos disso, bastaria que o indagássemos aos próprios tradutores, todos eles, neste caso, confessadamente favoráveis à doutrina da Trindade. Quem

é o Deus da

Bíblia?

O procedimento de fundamentar uma posição teológica com referência a uma tradução não é um caminho seguro. O ideal é fundamentar uma posição teológica com referência ao texto grego ou hebraico. Além disso, quem não conhece as línguas bíblicas deveria se eximir de emitir opiniões categóricas a respeito do processo de tradução da Bíblia. O Deus que a Bíblia nos revela é um Deus acostumado à vida em comunidade, com uma admirável clareza de propósito e indissolúvel consistência de comportamento, disposto a todos os riscos e condescendências para preservar a integridade daqueles a quem ama, e intensamente comunicativo e afetuoso. O Pai, o Filho e o Espírito Santo formam a eterna comunidade que fez do amor uma lei soberana em todo o universo. A unidade e firmeza de propósito que nos têm demonstrado revelam, sem sombra de dúvida, que Deus é um, único, inimitável, incomparável, inefável. Deus não se ufana de superioridades, não busca a primazia, não sucumbe à soberba. Deus é o cabeça, mas, além disso, é principalmente o coração. E como bate o coração de Deus! no ritmo cardíaco do amor sem limites. Finalmente, Deus toma a iniciativa de se comunicar com os seres humanos. Completamente isento de egoísmos, Ele nos deixa participar. Ele deu inteligência aos seres humanos para se expressarem através de signos, entre os quais o alfabeto; nos deu os perga-

72 | Tentaram a Deus no Seu coração minhos; inspirou os profetas, que registraram Sua mensagem nas Escrituras, de certo modo permitindo que se tornassem os escritores de Sua carta de amor para a humanidade. E, uma vez escrita, Deus preservou essa carta com o cuidado que um pai amoroso entesoura um bilhete importante que foi preparado para os filhos amados. Confiar em Deus é confiar na Bíblia e vicee-versa. Deus fala todas as línguas do universo e compreende nossa tosca linguagem de sinais (pois Ele lê o nosso íntimo de forma muito mais precisa do que nossos ouvidos podem captar Sua voz) e usa o cofre de nosso coração, nossa consciência, nossos talentos para guardar Suas palavras de modo indelével.

4

O que

as línguas

originais revelam sobre a doutrina da Trindade? ............................................

A

redescoberta por parte de alguns irmãos leigos, nos Estados Unidos, de um livro originalmente publicado em 1845 por um autor não-adventista tem causado recentemente um reexame da doutrina da Trindade. Trata-se da obra Principal passages of the Scriptures which relate to the doctrine of the Trinity (“Principais passagens das Escrituras que se relacionam com a doutrina da Trindade”), de George W. Burnap. Também no Brasil os argumentos apresentados por Burnap têm sido repetidos, de forma superficial e pouco crítica, em diversas páginas da internet e em obras de circulação impressa. Entre as ideias defendidas por aquele autor do século XIX, encontram-se sua apreciação de que a fórmula batismal de Mateus não é suficientemente antiga (p. 13-17), sua interpretação de que o Espírito Santo e Jesus são, de fato, a mesma pessoa (p. 330) e o ensino de que, às vezes, as Escrituras se referem à mente de Deus pela denominação de “Espírito de Deus” (p.

74 | Tentaram a Deus no Seu coração 341). Finalmente, Burnap objeta à Trindade com base na análise que faz das palavras hebraicas echad e Elohim, bem como dos assim-chamados adjetivos tríplices. É exatamente este último argumento que se pretende analisar neste capítulo.

O termo echad Os que aceitam as ideias de Burnap argumentam que a palavra hebraica echad teria exatamente o mesmo significado da palavra portuguesa “um” e que, em português, esta palavra é sempre empregada para se referir a algo único: “um carro, um garçom, um computador, um frentista, um amigo”. Dessa forma, a palavra “um” seria sempre usada para se referir a uma pessoa ou a um objeto. Isso não é, porém, verdadeiro nem em relação ao português nem em relação ao hebraico. Em português, podemos usar a palavra “um” para nos referirmos a “um casal, um time, uma dupla, um povo, uma manada, uma amizade”, o que prova que obviamente esta palavra não se refere exclusivamente a uma pessoa ou objeto, podendo também ser usada para se referir a mais de uma pessoa ou objeto bem como a um ser abstrato. A palavra echad, em hebraico, também pode ter por referência mais de um objeto ou pessoa. Em Gn 2:24, lemos: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornandose os dois uma (echad) só carne”. Neste verso, percebemos que echad se refere a duas pessoas que formam uma única carne. Em Gn 11:6, lemos “e o Senhor disse: Eis que o povo é um (echad),

| 75 e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer.” Percebe-se, portanto, que o termo echad pode ser usado mesmo em relação a uma multidão, ou seja, em relação a muitas pessoas. Em Êx 24:3, a Palavra de Deus expressa que “veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os estatutos; então, todo o povo respondeu a uma (echad) voz e disse: Tudo o que falou o Senhor faremos”. Não foi somente uma pessoa que falou, mas várias pessoas falaram. A expressão “a uma voz” indica, porém, que falaram movidos pelo mesmo sentimento. Ou seja, havia concordância em sua expressão da mesma forma que havia unidade no primeiro casal do Éden. Percebe-se, portanto, que, em vez de indicar singularidade de uma pessoa ou objeto, o termo echad pode indicar unidade entre duas ou várias pessoas, exatamente como ocorre quando esta palavra é usada em relação às pessoas da Divindade. O que

as línguas originais revelam sobre a Trindade?

O termo Elohim Outro argumento empregado contra a Trindade diz respeito ao suposto fato de que a palavra hebraica Elohim pode ser tanto plural ou singular, dependendo a definição de seu número do contexto em que se encontra usada. Todavia, deve-se ter em mente que o número e o gênero das palavras são realidades gramaticais e não contextuais. A palavra Elohim tem sempre um sentido plural implícito, que lhe é atribuído pelo sufixo –im, à semelhança dos coletivos em português. A palavra Elohim é

76 | Tentaram a Deus no Seu coração geralmente traduzida no plural quando não se refere ao Deus de Israel. Em Sl 82:6, está escrito: “Eu disse: sois deuses (Elohim), sois todos filhos do Altíssimo”. Jz 2:12 afirma: “Deixaram o Senhor, Deus de seus pais, que os tirara da terra do Egito, e foram-se após outros deuses” (Elohim). J. Weingreen, na gramática A practical grammar for classical Hebrew, publicada pela Universidade de Oxford, apresenta o sufixo como sendo o formador do plural das formas mais simples dos substantivos masculinos e femininos (p. 69-71). Então, como explicar que o termo seja geralmente usado com verbo no singular quando empregado em relação ao Deus de Israel? Isso se dá para enfatizar a unidade que existe entre as três pessoas da Divindade e para realçar a majestade de Deus. Essa ênfase na majestade ocorre, por exemplo, no caso de Gn 23:5-6, “os hititas responderam a Abraão: Ouve-nos, senhor: tu és príncipe de Deus (Elohim) entre nós; sepulta numa das nossas melhores sepulturas a tua morta; nenhum de nós te vedará a sua sepultura, para sepultares a tua morta”. Literalmente os hititas haviam dito a Abraão: “tu és como um Deus majestoso para nós”. Note-se, além disso, que, às vezes, quando um verbo no singular tem por sujeito a palavra Elohim, há geralmente evidência suficiente para que se perceba um elemento de pluralidade envolvido na afirmação. Isso ocorre, por exemplo, em Gn 1:26, “também disse Deus (Elohim): Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. Mesmo diante dessa evidência incontestável, alguns ainda afirmam que “usamos palavras do singular quando queremos nos referir a uma pessoa

| 77 só. Quando nos referimos a mais de uma pessoa, utilizamos o plural”. Esse é obviamente um equívoco grosseiro, pois verbo no singular não implica em sujeito necessariamente individual. Em Js 24:21, lemos: “então, disse o povo a Josué: Não; antes, serviremos ao Senhor.” Como se percebe, nada impede que um verbo no singular tenha por sujeito uma palavra que expresse pluralidade. O que

as línguas originais revelam sobre a Trindade?

Além disso, há outras expressões que ocasionalmente são empregadas no plural, nas Escrituras, em referência a Deus. Ou seja, Elohim não é a única denominação plural, em hebraico, que é usada em relação a Deus. Edward Bickersteth nos dá três exemplos disso. A palavra “Criador” na conhecida declaração bíblica “lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade” (Ec 12:1) está no plural. Em Is 54:5, na declaração “teu Criador é teu marido”, são usadas duas palavras no plural: “Criador” e “marido”. Finalmente, em Sl 149:2, a palavra “Criador” de “regozije-se Israel no seu Criador” também está no plural. Soa estranho que o livro sagrado do povo antigo mais conhecido por causa de seu posicionamento abertamente antagônico ao politeísmo tenha empregado consistentemente palavras no plural para se referir a seu Deus. Será que isso ocorreu porque havia uma necessidade “estranha” mas insuperável que os forçou a tal? Será que sua língua era tão pobre que não lhes poderia fornecer um termo melhor? Será que a inspiração não foi suficientemente clara a ponto de lhes conceder sabedoria para evitar essas expressões embaraçosas? Ora a língua hebraica era copiosa e versátil; o termo Eloah (“deus”, no singular) lhes

78 | Tentaram a Deus no Seu coração estava à disposição. Portanto, não se pode explicar o recorrente uso de expressões no plural para fazer referência a Deus, a não ser pela consideração de que Deus, sendo único, apresenta-se como sendo mais de uma pessoa.

A expressão “Santo, Santo, Santo” Os opositores à doutrina da Trindade também argumentam que a interpretação tradicional dada pelos cristãos à expressão “Santo, Santo, Santo”, os assim-chamados adjetivos tríplices indicativos da Trindade, não leva em consideração que essa repetição constitui mero reforço superlativo em vez de sugerir a existência de mais de uma pessoa na Divindade. Em Is 6:3, lemos: “e clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a Terra está cheia da Sua glória”. De acordo com essa perspectiva, a repetição do adjetivo significa simplesmente que Deus é “santíssimo” e não que há mais de uma pessoa na Divindade. Trata-se, porém, de uma especulação. Porque nós usamos, hoje em dia, a repetição de palavras com o propósito de ênfase não significa que essa fosse exclusivamente a intenção dos autores antigos. A prestigiosa gramática de J. Weingreen, já citada acima, nos informa (p. 136) que o hebraico geralmente indica o superlativo acrescentando o artigo ao adjetivo e uma espécie de prefixo à palavra com a qual a comparação é feita ou, então, o adjetivo é colocado no assim-chamado “estado constructo” e fica dependente da palavra com a qual se estabelece a comparação. De

| 79 acordo com Aguiar (p. 335), parece estar claro que expressões como “Rei dos reis” e “vaidade de vaidades” (Ec 1:2; 12:8) compreendem estruturas produzidas a fim de se construir o superlativo por meio de repetição. No entanto, simplesmente não há evidência suficiente de que a repetição de “santo, santo, santo” tenha tido exclusivamente a intenção de representar o caráter absolutamente santo da Divindade sem também se referir à natureza de Sua pessoa. O conceito da triunidade de Deus só ficará explícito e totalmente claro no Novo Testamento. No Antigo Testamento, tal conceito aparece em forma embrionária. Um texto que muito se aproxima da ideia de um Deus triúno é o capítulo 13 de Juízes. O que está claro e explícito no Antigo Testamento é que Deus é mais de uma pessoa. O que

as línguas originais revelam sobre a Trindade?

Apesar disso, nas Escrituras, as referências tríplices à Divindade são comuns. Na bênção araônica, nós encontramos um bom exemplo disso: “o Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; o Senhor sobre ti levante o rosto e te dê a paz” (Nm 6:24-26). É possível, portanto, que essas repetições tríplices indiquem, no Antigo Testamento, uma antecipação da ênfase que é dada à pessoa de Deus pelos autores do Novo Testamento quanto à natureza triúna da Divindade. De fato, interpretarmos o emprego tríplice do adjetivo “santo” como referência à Trindade está em perfeita harmonia com a forma como os primeiros cristãos interpretaram essa ocorrência da palavra “santo”. Já no segundo século, era comum

80 | Tentaram a Deus no Seu coração que os cristãos buscassem expressões tríplices nas Escrituras e as associassem com a doutrina da Trindade. Nessa época, por exemplo, Orígenes (Fragmenta in Lucam 182.6) comenta a parábola do amigo importuno (Lc 11:5) e declara que os três pães ali mencionados representavam o desejo de Jesus de alimentar o povo “com a teologia da Trindade” (têi peri tês Triados theologiai). Finalmente, Burnap usa o argumento pouco convincente de que os judeus sabiam muito bem o hebraico e que, nem por isso, entenderam o caráter triúno da Divindade. Segundo essa linha de raciocínio, a evidência linguística não deveria ser, portanto, usada para provar a Trindade. Se fôssemos seguir esse raciocínio, tampouco poderíamos usar a evidência linguística para provar a messianidade de Jesus, já que os judeus entendiam muito bem o hebraico e, nem por isso, compreenderam que Jesus era o Messias. O que estou afirmando é que saber grego ou hebraico, por si só, não garante que compreendamos perfeitamente os ensinamentos das Escrituras; entretanto, não levar em consideração essas línguas certamente há de prejudicar nossa avaliação de seu conteúdo. A Bíblia tem sido traduzida com absoluta confiabilidade para as diversas línguas modernas. Ninguém precisa saber grego ou hebraico para ser salvo. Por outro lado, sem uma compreensão adequada dessas línguas, nunca poderemos estar seguros de que compreendemos os significados mais profundos de algumas passagens. Em minha opinião de especialista, a evidência linguística é absolutamente favorável a uma compreensão triúna da Divindade.

| 81 O que o livro de Burnap prova é que a doutrina da Trindade foi intensamente discutida no período de formação da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Tanto que os Testemunhas de Jeová a rejeitaram nessa época. Os pioneiros adventistas recebiam visões de Deus, mas não receberam nenhuma revelação de Deus de que a crença na Trindade era incompatível com Sua vontade. Pelo contrário, o que se percebeu foi que alguns deles deixaram suas crenças antitrinitarianas e abraçaram a verdade da natureza triúna da Divindade. Os argumentos de Burnap não convenceram naquela época e, se estão causando dúvidas nas pessoas atualmente, isso se explica de duas formas: em primeiro lugar, há uma maior susceptibilidade de quem não estuda as Escrituras por conta própria; em segundo lugar, infelizmente experimentamos um desejo constante e doentio por novidades. Isso já havia sido profetizado na Palavra de Deus: “pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos” (2 Tm 4:3). De acordo com Ellen G. White (The faith I live by, p. 53), “há muitos que creem e professam reclamar a promessa do Senhor; eles falam sobre Cristo e sobre o Espírito Santo, entretanto, não recebem nenhum benefício. Eles não entregam a alma para que esta seja guiada e controlada pelos agentes divinos.” O que

as línguas originais revelam sobre a Trindade?

O termo monogenês Whidden, Moon e Reeve (2006, p. 108-111) preferem negar que o termo monogenês (“unigênito”), empregado em Jo

82 | Tentaram a Deus no Seu coração 3:16, carregue, em si, a ideia de geração. Para isso, esses autores preferem ligar o radical dessa palavra ao verbo ginomai (“vir a ser”) e não ao verbo gennaô (“gerar”). Em minha opinião, esse é um procedimento inútil por duas razões: em primeiro lugar, há um parentesco direto entre os dois verbos em questão. Isso equivaleria a dizer que monogenês não é irmão de gennaô, mas seu primo! Em segundo lugar, durante a história do Cristianismo primitivo, os hereges (que falavam grego) sempre insistiram em que o termo monogenês tinha em si a ideia de geração. Whidden, Moon e Reeve (2006, p. 108-111) estão corretos quando não aceitam que Jesus tenha sido gerado pelo Pai em algum ponto da história antes da encarnação. Todavia, não há necessidade de negarmos a etimologia óbvia de termos como monogenês (“unigênito”) e prôtotokos (“primogênito”), empregado em Cl 1:15-18, para entendermos a realidade da natureza divina de Jesus. Quando as Escrituras optaram por usar a metáfora da filiação para descrever o relacionamento das duas primeiras pessoas da Divindade, esses termos se tornaram candidatos óbvios para fazer essa descrição. Não há cabimento em tirar os termos monogenês e prôtotokos do campo semântico da filiação, quando Jesus é enfaticamente identificado, nas Escrituras, como Filho (hyios) de Deus! Jesus é hyios, monogenês e prôtotokos em um mesmo sentido figurado. Nesse contexto, não é de admirar que o Suidas, um léxico elaborado, no século X, pela consulta aos escólios dos principais autores antigos, defina o termo agapêton (“amado”) como sendo to êgapêmenon ê to monogenês, “o que é amado ou unigênito”. É nesse sentido

| 83 preciso que os autores antigos empregam o termo monogenês tanto em relação a Jesus quanto em relação a Isaque. O Suidas ainda nos informa que monogenês é equivalente à palavra têlygetos, usada várias vezes por Homero para se referir a Telêmaco, o filho de Ulisses, protagonista da Odisseia, para descrever a maturidade e o grande afeto que o rapaz desfrutava de seu pai. Não é, portanto, a etimologia que define o significado de uma palavra, mas seu uso concreto no contexto em que aparece. O que

as línguas originais revelam sobre a Trindade?

Conclusão Se se busca escolher uma passagem do Novo Testamento que seja inteiramente dedicada à adoração do Pai, não se pode talvez encontrar um outro texto que seja tão satisfatório em relação a essa exigência quanto aquele que expressa a oração diária que Jesus ensinou a Seus discípulos. Nessa prece amada por todos os cristãos, Jesus parece ocultar a Sua glória para que, como irmão primogênito, nos possa conduzir ao trono da graça, ensinando-nos a clamar “Aba, Pai”. Não obstante, se compararmos seus dizeres com outras passagens das Escrituras, perceberemos que essa petição pode ser perfeitamente dirigida ao próprio Jesus. Quando as Escrituras chamam uma das pessoas da Divindade de “Pai”, elas geralmente se referem a Deus, o Pai. No entanto, a expressão “Pai nosso que estás nos céus” encontra ressonância na declaração joanina de que “ninguém subiu ao

84 | Tentaram a Deus no Seu coração céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu” (Jo 3:13). “Santificado seja o Teu nome” é equivalente à declaração paulina de que o nome de Jesus será glorificado ( 2 Ts 1:12). “Teu reino venha” nos faz lembrar que o reino eterno pertence ao “nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pd 1: 11). “Seja feita a Tua vontade” chama nossa atenção para o fato de que é a Cristo, o Senhor, que estamos servindo (Cl 3:24). “Assim na terra como no céu” anuncia que Cristo, “depois de ir para o céu, está à destra de Deus, ficandolhe subordinados anjos, e potestades, e poderes” (1 Pd 3: 22). “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje” nos recorda a profecia de que Cristo “como pastor, apascentará o Seu rebanho; entre os Seus braços recolherá os cordeirinhos e os levará no seio; as que amamentam Ele guiará mansamente” (Is 40: 11). A petição “perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” ecoa nas palavras inspiradas de Paulo: “assim como o Senhor vos perdoou, assim também perdoai vós” (Cl 3:18). A frase “e não nos deixes cair em tentação” só é possível se, como ovelhas, seguirmos o nosso Pastor (Jo 10: 3, 27). “Mas livra-nos do mal” encontra a resposta divina no fato de que Cristo “se entregou a Si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (Gl 1:4). Finalmente, a declaração “pois Teu é o reino, o poder e a glória para sempre, amém” corresponde a que Cristo “nos constituiu reino, sacerdotes para o Seu Deus e Pai, a Ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos, amém!” (Ap 1:6). Sem querer negar que, na economia da Trindade, há aspectos singulares no papel desempenhado

| 85 pelo Pai na criação e na redenção da humanidade, os paralelos encontrados na oração do Senhor provam que podemos, sem indiscrição, em todas as preces que elevarmos aos céus, honrar o Filho na mesma intensidade e sinceridade com que honramos o Pai. Apesar disso, devemos lembrar que, biblicamente falando, as orações devem ser feitas ao Pai, em nome de Jesus, como o próprio Jesus ensinou. O que

as línguas originais revelam sobre a Trindade?

Além disso, o Salmo 23, um dos textos mais conhecidos e amados das Escrituras, embora se aplique primariamente à pessoa do Pai, pode ser seguramente relacionado à pessoa de Cristo Jesus que, por essa razão, fica em pé de igualdade, em nosso coração, com o Pai: “o Senhor [Jeová] é o meu pastor; nada me faltará”. Jesus é chamado por Hb 13:20 de “o grande pastor das ovelhas”. Pedro o chama de “supremo pastor” (1 Pe 5:4) e “pastor e bispo da vossa alma” (1 Pe 2:25). O próprio Jesus atribui a si mesmo o título de pastor (Jo 10:14-16). Finalmente, Ap 7:17 nos diz que Jesus nos “apascentará e conduzirá para as fontes de água da vida”. Como se percebe, há uma plena e material identificação de natureza, propósitos, substância e poderes divinos entre o Pai e o Filho nas Escrituras. Afirmar a divindade do Pai equivale a afirmar a divindade do Filho. Negar a divindade do Filho significa negar também a divindade do Pai. Em Sl 2:7, encontramos a declaração de Deus: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei”. Esta passagem tem sido tradicionalmente compreendida como se referindo à encarnação ou à unção de Jesus como Messias. Por isso, o salmo termina

86 | Tentaram a Deus no Seu coração com a advertência: “Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira. Bem-aventurados todos os que nele se refugiam”. A não ser que aceitemos a divindade de Cristo, como será possível harmonizar esse salmo com a declaração de Jr 17:5, na qual nos é dito que é “maldito o homem que confia no homem”? Nossa segurança não se encontra, portanto, em incertos agentes humanos, mas na solidez do evangelho do Deus que se fez carne e habitou entre nós.

5

O que

os manuscritos

bíblicos revelam sobre a Trindade? ............................................

N

o início do século XVI, surgiu a necessidade de se preparar um texto grego que servisse de base para as traduções da Bíblia para as línguas nacionais. Desde a divisão do Império Romano, o Ocidente havia abraçado a assimchamada Vulgata, a tradução latina das Escrituras, fazendo dela a base de sua devoção, enquanto o Oriente continuava a usar o texto grego. Foi Jerônimo (347-420 A.D.) que, por volta do ano 382, preparou essa versão latina baseada em antigos manuscritos gregos. A tradução se chamou Vulgata porque esta palavra significa “popular” em latim. A Vulgata foi, durante muito tempo, a mais popular versão das Escrituras, especialmente a partir do Concílio de Trento (1545-1563). Quando o latim caiu em desuso e foi substituído pelas línguas nacionais (inglês, francês, italiano, espanhol e português, entre outras), surgiu a necessidade de se prepararem traduções que pudessem ser lidas na língua do povo. O natural, nesse caso, foi buscar os manuscritos hebraicos e gregos (mais próximos do

88 | Tentaram a Deus no Seu coração texto original) para que as novas traduções se pudessem basear neles. Como o Ocidente não mais falava grego, foi com certa dificuldade que se juntaram alguns desses manuscritos. O texto grego que serviu de base para as traduções do Novo Testamento para as línguas nacionais da Europa continha diversas leituras que não eram as mais antigas ou autoritativas. Na época em que essas traduções foram feitas, a filologia, isto é, a ciência que estuda o processo de cópia e transmissão dos textos antigos, ainda inexistia. Como resultado disso, o assimchamado Textus Receptus (ou “Texto Recebido”), publicado em 1550 e que serviu de base para as diversas traduções, continha imperfeições. Esse texto havia se baseado amplamente no Novo Testamento Grego, produzido por Desidério Erasmo (14691536), um distinto estudioso da língua grega, e impresso na Basileia, em 1516. Não tendo conseguido nenhum manuscrito com o texto completo do Novo Testamento, Erasmo de Roterdã dependeu principalmente de dois manuscritos da biblioteca monástica da Basileia, datáveis do século XII e pertencentes à chamada tradição bizantina, considerada a mais recente e mais pobre. A primeira edição desse texto foi chamada pelo próprio Erasmo de Novum instrumentum. Com o desenvolvimento da filologia e a descoberta dos grandes códices, verificou-se que era possível estudar a genealogia dos manuscritos, identificando seu parentesco e antiguidade. Nos primórdios da Igreja, quatro cidades se tornaram os principais centros de cópias dos manuscritos bíblicos: Ale-

| 89 xandria, Roma, Cesareia e Constantinopla. Dessas, Alexandria tem a reputação de ter produzido os melhores e mais confiáveis manuscritos. Constantinopla, no entanto, é considerada como a menos confiável, pois seus copistas embelezavam o texto original e se esforçavam por harmonizar as aparentes discordâncias entre os autores bíblicos. Os manuscritos produzidos em Alexandria trazem o que se convencionou chamar de texto alexandrino, carcaterizado por uma quase absoluta fidelidade ao original, sem qualquer intenção de intervenção por parte dos copistas. Os manuscritos produzidos em Constantinopla trazem o assim-chamado texto bizantino, caracterizado pelo esforço constante por parte dos copistas de embelezar e corrigir o texto bíblico de acordo com suas pressuposições teológicas. O que

os manuscritos bíblicos revelam sobre a Trindade?

Apesar do rápido crescimento da filologia como ciência, a postura cuidadosa, tradicional e conservadora dos cristãos os levou a só muito lentamente incorporar essas excepcionais descobertas à Bíblia, corrigindo-a e atualizando-a. Como consequência disso, algumas poucas leituras imprecisas continuaram a ser incluídas no corpo das Escrituras por mais tempo do que o necessário. Felizmente, as inúmeras revisões que o texto bíblico sofreu ao longo dos anos, com base nos princípios científicos do estudo dos antigos manuscritos, nas mãos de estudiosos competentes e dedicados, nos garantem que temos um texto que, sem dúvida, está muito perto dos originais. Embora hoje tenhamos um texto grego do Novo Testamento que está baseado nos mais antigos e autoritativos

90 | Tentaram a Deus no Seu coração manuscritos, os antitrinitarianos levantam a suspeita de que as passagens que fundamentam a crença cristã na Trindade não sejam sustentadas pela evidência disponível nos manuscritos antigos. Entretanto, muitas de suas objeções foram propostas numa época em que as correções e atualizações que a Bíblia sofreu nos dois últimos séculos ainda não tinham ocorrido. Isso tem duas consequências para a posição antitrinitariana: em primeiro lugar, são feitas objeções a incorreções que já foram corrigidas pela crítica textual e, em segundo lugar, são feitas objeções a leituras que a crítica textual já demonstrou serem corretas e acima de qualquer suspeita. No dois casos, a posição unitariana é enfraquecida. Isto é, ou reclamam do que já foi corrigido ou do que sabemos estar correto.

O parêntese joanino No caso de 1 Jo 5:7-8, ocorre o que se convencionou chamar de “vírgula” ou “parêntese joanino”: “porque três são os que testificam [no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na Terra]: o Espírito, a água e o sangue, e os três são unânimes num só propósito”. Apenas oito manuscritos contêm o texto que aparece, aqui, entre colchetes: 61 (do séc. XVI), 88 (do séc. XVI), 221 (do séc. X), 429 (do séc. XVI), 629 (do séc. XVI), 636 (do séc. XVI), 918 (do séc. XVI) e 2318 (do séc. XVIII). Não há nem a remota possibilidade de que o texto seja autêntico. Muitos editores preferem manter essas palavras no texto, mas tomam o

| 91 cuidado de incluí-las entre colchetes. Na opinião do Prof. Wilson Paroschi, em seu livro Crítica textual do Novo Testamento (p. 100), a parte entre colchetes foi muito provavelmente incorporada ao texto de 1 Jo 5:7-8 a partir de um comentário anotado à margem de algum manuscrito. O que

os manuscritos bíblicos revelam sobre a Trindade?

Como explicar, então, que o texto tenha sido incluído nas Escrituras? Trata-se do caso único de um lamentável descuido por parte dos filólogos, os especialistas que estudam os manuscritos antigos. Em 1514, foi preparada uma versão erudita, denominada de Poliglota Complutense, em que as diferentes colunas apresentavam o texto bíblico em hebraico, grego e latim, daí a denominação de “poliglota”. Essa versão não logrou prestígio e foi logo substituída pelo texto grego do Novo Testamento (Novum instrumentum) preparado por Erasmo de Roterdã. Em pouco tempo, o Novo Testamento de Erasmo vendeu três mil cópias. Isso despertou a insatisfação dos estudiosos que haviam contribuído para a elaboração da Poliglota Complutense, que passaram a criticar supostos defeitos no texto de Erasmo. É verdade que o texto de Erasmo, excessivamente dependente de fontes bizantinas, não tinha a mesma precisão e confiabilidade que têm os textos que atualmente servem de base às traduções. Apesar disso, estava livre de erro quanto à principal crítica que lhe era feita por seus opositores: não continha o assim-chamado “parêntese joanino”. Erasmo cedeu às pressões de seus rivais e acabou incluindo, na terceira edição de seu Novo Testamento Grego, uma leitura que ele sabia não fazer parte original das Escrituras e, por essa razão, amplamente

92 | Tentaram a Deus no Seu coração advertiu, numa nota marginal, que o manuscrito que continha essa leitura havia sido preparado unicamente para confundi-lo. Como já afirmamos, o texto de Erasmo foi usado na preparação do “Texto Recebido”, que, eventualmente, serviu de base para os textos dos quais derivariam traduções tão prestigiosas como a versão do rei Tiago (King James Version), em inglês, e a Bíblia Almeida, em português. O texto entre colchetes de 1 Jo 5:7-8 não consta da esmagadora maioria dos manuscritos antigos e não aparece nos manuscritos mais antigos de nenhuma das principais traduções da Bíblia, exceto os manuscritos da Vulgata a partir do século VI. Essa leitura só foi citada, pela primeira vez, no século IV, no assim-chamado Liber apologeticus, de um certo Prisciliano. Não deve, portanto, ser considerado autêntico. Por outro lado, a Igreja Adventista sempre reconheceu esse fato e, como Instituição, jamais procurou usá-lo como base de suas doutrinas fundamentais. O Comentário bíblico adventista (v. 7, p. 675), publicado há muitos anos, contém a seguinte explicação acerca da passagem: “as palavras em questão têm sido amplamente usadas em defesa da doutrina da Trindade, mas em virtude da evidência esmagadora contra sua autenticidade, elas não devem ser usadas com esse objetivo”. Pode-se ver, portanto, que a passagem não contraria a crença adventista na personalidade e pessoalidade do Espírito Santo que foi, inclusive, desenvolvida sem necessitar dela.

O que

os manuscritos bíblicos revelam sobre a Trindade?

A fórmula batismal

| 93

Existem aproximadamente cinco mil manuscritos do Novo Testamento, de reconhecida antiguidade. Dos autores antigos, Homero, Virgílio e Plutarco são aqueles dos quais temos mais manuscritos antigos: cerca de cem de cada um. O mais antigo dos manuscritos clássicos é aquele pertencente a Homero. No entanto, além de incompleto, data ao século IV a.C., portanto quinhentos anos depois do período de escritura do texto original. A lacuna temporal que separa o mais antigo manuscrito do Novo Testamento do período de sua escritura é de aproximadamente cem anos. Com exceção do Novo Testamento e da Septuaginta, não há nenhum manuscrito completo, em grego ou latim, anterior ao século VI A.D.; tudo isso mostra que a crítica textual do Novo Testamento é a mais confiável de todas. É importante determinar a confiabilidade dos estudos dos manuscritos do Novo Testamento porque outro texto geralmente apontado como problemático é o de Mt 28:19: “ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”. O problema surgiu, no século XIX, quando escritores antitrinitarianos fizeram estudos que tentavam demonstrar que a Grande Comissão originalmente ordenava o batismo apenas em nome de Jesus. Alguns teólogos proeminentes aceitaram esses estudos e passaram a questionar a integridade do texto de Mateus. Bultman (1951, p. 133), por exemplo, questiona a historicidade da parte final da fórmula batismal. Com base nesses estudiosos e em um rodapé da Bíblia

94 | Tentaram a Deus no Seu coração de Jerusalém que declara: “é possível que essa fórmula reflita influência do uso litúrgico posteriormente fixado na comunidade primitiva”, os antitrinitarianos têm tentado negar que a Grande Comissão dê apoio à doutrina da Trindade. Apesar de críticos descrentes e alguns teólogos considerarem que o texto não faz parte do original, não há, de fato, nenhuma evidência nos manuscritos antigos que confirme sua suposição. O Códice Sinaítico, geralmente citado como melhor e mais confiável manuscrito do Novo Testamento, foi encontrado, em 1844, por Tischendorf. Trata-se de um manuscrito completo pertencente ao século IV A.D. e, como era de se esperar, contém Mt 28:19. Como já afirmamos, não há nenhum manuscrito antigo que omita a passagem. Ellen White cita o verso inteiro cerca de cinquenta vezes e nunca levanta qualquer dúvida quanto a sua autenticidade. Ela esclarece: “o Consolador que Cristo prometeu enviar depois de subir aos céus, é o Espírito em toda a plenitude da Divindade, que torna manifesto o poder da graça divina para todos os que recebem e creem em Cristo como Salvador pessoal. Há três pessoas vivas no trio celestial. No nome desses três poderes, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, os que recebem a Cristo pela fé viva são batizados, e esses poderes cooperarão com os súditos obedientes do céu em seus esforços para viver uma nova vida em Cristo” (Bible Training School, 1-3-1906). O Espírito de Profecia valida, assim, o batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

De acordo com Kennicott (2004) e Conybeare (2007),

| 95 a razão mais forte apresentada para se descartar a fórmula batismal, conforme esta se encontra registrada no evangelho de Mateus, é que Eusébio de Cesareia, o famoso teólogo e historiador eclesiástico, a registra com referência apenas ao nome de Jesus, sem mencionar o nome do Pai e do Espírito Santo. Todavia, Eusébio de Cesareia tinha confessas simpatias para com o movimento ariano. Portanto, não se pode estranhar que seus escritos não contenham a fórmula batismal com a menção trinitariana. É, de fato, muito mais plausível imaginar que um historiador tenha eliminado os nomes do Pai e do Espírito Santo do que imaginar que todos os outros os tenham acrescentado. Sócrates Escolástico, que também escreveu uma História eclesiástica, retomando o texto de Eusébio exatamente no ponto onde este havia interrompido sua narrativa, é um exemplo de historiador antigo que registra integralmente a fórmula batismal de Mateus. Segundo ele (1.7), “conforme também nosso Senhor, enviando Seus discípulos para a pregação, disse: - Ide e fazei O que

os manuscritos bíblicos revelam sobre a Trindade?

discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.

1 Tm 3:16 O texto de 1 Tm 3:16 continha uma incorreção que foi remediada após a descoberta dos grandes códices, isto é, dos manuscritos mais antigos que foram trazidos à luz pelo diligente trabalho de arqueólogos, filólogos e estudiosos da Antiguidade. O texto, como se encontra registrado nos manuscritos mais

96 | Tentaram a Deus no Seu coração antigos e confiáveis, reza: “Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória.” O Textus Receptus continha a expressão “Deus foi manifestado na carne...” Com a ajuda de manuscritos mais antigos do que aqueles usados para a preparação do Textus Receptus, Isaque Newton foi o primeiro a perceber que a expressão “Deus” não era parte integrante do original grego. O manuscrito mais antigo a conter a expressão theos ephanerôthê (“Deus foi manifestado”) é o códice 044, um manuscrito uncial pertencente ao século IX. Os manuscritos mais antigos contêm a expressão hos ephanerôthê (“Aquele que foi manifestado”). Isso ocorre, por exemplo, com os códices Sinaítico (séc. IV), Alexandrino (séc. V) e Ephraemi Rescriptus (séc. V), três dos mais antigos e confiáveis manuscritos do Novo Testamento. No entanto, nesses três manuscritos, aparece a palavra theos (“Deus”) nas entrelinhas, escrita por uma outra mão, logo acima da palavra hos (“Aquele que”) que foi grafada pela mão do copista original. Apesar disso, a leitura inferior foi corrigida em praticamente todas as versões atuais do Novo Testamento.

At 20:28 Em At 20:28 está escrito: “atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos,

| 97 para pastoreardes a Igreja de Deus, a qual Ele comprou com o Seu próprio sangue.” Esta é a leitura dos códices Sinaítico e Vaticano, ambos pertencentes ao século IV, ambos contendo um texto do tipo alexandrino. Encontramos, porém, a seguinte variante para At 20:28: “a Igreja do Senhor, a qual Ele comprou com o Seu próprio sangue.” Os principais manuscritos que trazem essa leitura são os códices Alexandrino (séc. V), Ephraemi Rescriptus (séc. V) e Claromontano (séc. VI) bem como o papiro 74 (séc. VII). Embora haja o testemunho tanto favorável quanto desfavorável do texto alexandrino às duas variantes, percebese que a expressão “Igreja de Deus” tem um testemunho mais antigo. Por essa razão, os especialistas em crítica textual têm defendido, com quase unanimidade, que a leitura “Igreja de Deus” fazia parte do original. A. T. Robertson, em sua obra Word pictures of the New Testament, afirma taxativamente que a leitura “Igreja de Deus” é a correta. O que

os manuscritos bíblicos revelam sobre a Trindade?

Conclusão Como se percebe, a cópia e a transmissão do texto sagrado sofreram por causa das vicissitudes ao longo dos séculos. Todavia, a ideia de que o Deus que foi capaz de inspirar os profetas e os demais autores bíblicos a colocarem por escrito Sua vontade para a humanidade seria incapaz de preservar o que escreveram da adulteração por parte de pessoas malintencionadas, não parece lógica. Na história da transmissão do texto bíblico, percebemos nitidamente a atuação de Deus para

98 | Tentaram a Deus no Seu coração preservar incontaminada a verdade das Escrituras. A descoberta e a recuperação do Códice Sinaítico, em 1844, por parte de Tischendorf foram, por exemplo, verdadeiros milagres. Os especialistas em crítica textual e demais estudiosos dos manuscritos bíblicos encontram-se atentos para preservar as melhores leituras dos manuscritos antigos. A crença na natureza triúna da Divindade nunca foi posta em cheque pelo estudo desses manuscritos. Em todas as situações em que ficou comprovada uma inexatidão no processo de transmissão do texto, os tradutores se mostraram mais do que dispostos a corrigi-las. É lamentável, no entanto, que aqueles que defendem o antitrinitarianismo não se deixem convencer quando inúmeras provas lhes são apresentadas de que as Escrituras explicitamente confessam a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

6

Como

a igreja

cristã primitiva lidou com os ataques à doutrina da Trindade? ............................................

A

doutrina da Trindade é reconhecidamente um assunto difícil de compreender. A palavra Trindade (triás) não aparece nenhuma vez nas Escrituras, tendo sido usada, pela primeira vez, por Teófilo de Antioquia, por volta do ano 180 A.D., em um tratado por ele composto na esperança de converter a Autólico, um pagão a quem dedicou o livro: “da mesma forma, os três dias que antecederam a criação dos astros são um tipo da Trindade (typoi eisin tês triados): Deus, Seu Verbo (logos) e Sua Sabedoria (sophia)” (Ad Autolycum 2.15.16-17). Parece, porém, que Teófilo de Antioquia não cria tecnicamente na Trindade. Segundo ele (Ad Autolycum 2.10.7), Deus tinha Seu próprio Verbo (logos) “residindo em Sua mente” (endiatheton), “em Suas próprias entranhas” (en tois idiois splagchnois). Deus o teria, então, gerado com Sua sabedoria, “vomitando-o” (exereuxamenos) “antes de todas as coisas” (pro tôn holôn). É difícil, porém, determinar se Teófilo está falando literalmente ou

100 | Tentaram a Deus no Seu coração não, uma vez que o termo logos significava também “palavra” e “razão”. O autor pode simplesmente estar falando que Deus usou a razão (ou a palavra) para criar o universo. As coisas se complicam ainda mais quando, logo abaixo, Teófilo afirma que “o Santo Verbo” (ho logos ho hagios) “sempre esteve presente” (aei symparôn) com o Pai (Ad Autolycum 2.10.26). Orígenes e Clemente de Alexandria, até onde se saiba, foram os primeiros a usarem o termo em sentido comprovadamente igual ao que dele fazemos uso hoje em dia, tendo escrito logo depois de Teófilo de Antioquia. Orígenes afirmou a seu respeito: “pois a Santa Trindade (triás hagia), Aquela que passa vida para todas as coisas, conduzindo-as da não existência (ex ouk ontôn) à existência (eis to einai), é vida” (Expositio in Proverbia 17.196.21). Clemente de Alexandria declarou: “está disponível para os iniciados (teleiôsin) e os diligentes (speudousin) o conhecimento racional (hê gnôsis hê logikê) cujo fundamento (themelios) é a Santa Trindade (hê hagia triás): a fé, a esperança e o amor” (Stromata 4.7.54). Durante esse período, a Trindade já era a doutrina central da teologia cristã. O ensinamento de que existe somente um Deus, em três Pessoas, com uma única substância é, estritamente falando, um mistério. Ele não pode ser compreendido pela razão humana sem o auxílio da revelação e não pode ser demonstrado pela razão depois de revelado. Trata-se de um mistério além dos poderes da razão humana. No entanto, embora acima da razão, a doutrina da Trindade não contradiz a razão.

| 101 A maior dificuldade dos antitrinitarianos é que qualquer explicação que proponham para substituir e extirpar a doutrina da Trindade da crença cristã, os acaba levando a contrariar explicitamente tanto as Escrituras quanto a razão humana. Segundo Ellen G. White (O Desejado de todas as nações, p. 551), “os próprios esforços, feitos para impedir a ressurreição de Cristo, são os mais convincentes argumentos em prová-la”. Da mesma forma, podemos dizer que os próprios esforços feitos para desacreditar a doutrina da Trindade e incapazes de dar uma explicação alternativa que se harmonize com os ensinamentos explícitos das Escrituras, são a prova mais contundente da veracidade da natureza triúna de Deus, conforme esta é ensinada na Bíblia. Como

a igreja primitiva lidou com os ataques àTrindade?

W. Palmer, em seu livro Origines liturgica, explica por que as discussões sobre a Trindade apareceram tardiamente na história do Cristianismo. Em primeiro lugar, essa foi uma doutrina que triunfou indisputável no seio do Cristianismo primitivo, sem a necessidade de ser defendida. Em segundo lugar, os cristãos primitivos não tiveram, desde o início, a preocupação de expressar de forma teológica suas principais doutrinas. Eles buscavam essa formulação apenas quando surgia alguma heresia que ameaçava a unidade da Igreja. Além disso, a principal fonte de heresias não estava no seio da Igreja. As heresias surgiam mormente de pessoas que nunca haviam estado na Igreja ou que dela haviam saído. Em terceiro lugar, a doutrina da Trindade e a oração do Senhor eram consideradas crenças muito profundas para serem usadas inicialmente na evangelização das pessoas.

102 | Tentaram a Deus no Seu coração Os cristãos eram absolutamente proibidos de revelar esses ensinamentos às pessoas que se preparavam para o batismo (os assim-chamados “catecúmenos”) ou para os descrentes. Essa timidez em tratar dos temas profundos das Escrituras com as pessoas comuns do povo era conhecida teologicamente como disciplina arcani, um exemplo da qual pode ser encontrado no texto de Clemente de Alexandria. Segundo ele (Stromata 1.1.12; 5.3; 6.1; 7.18), “nós precisamos ocultar a sabedoria falada em mistério que o Filho de Deus nos ensinou. Assim, o profeta Isaías teve a língua purificada com fogo para que pudesse declarar a visão, e nossos ouvidos precisam ser santificados tanto quanto nossa língua, se pretendemos ser os receptáculos da verdade... As Escrituras nos ordenam a não jogar pérolas aos porcos, pois essas verdades puras e cheias de luz só provocam risos quando expostas às massas”. Nos escritos dos primeiros cristãos, mesmo quando estes se defendiam das calúnias de seus inimigos e perseguidores, havia certa relutância em tratar do assunto da Trindade. Diante dessa reticência injustificável, Orígenes insistia: “é bom que sejam revelados até mesmo os fundamentos do mundo (ta themelia tês oikoumenês) para que seja contemplada a Santa Trindade (triás hagia), que governa as coisas criadas” (Selecta in Psalmos 12.1229.26). Apesar disso, prevalecia a ideia de que os mistérios da fé cristã deveriam ser guardados em segredo, conforme expressa Sozômenos (História eclesiástica 1.20): “tais assuntos devem ser mantidos secretos, uma vez que precisam ser conhecidos apenas pelos iniciados (mystais) e seus mestres

| 103 (mystagôgois)”, evitando-se que caiam no domínio dos “nãoiniciados” (tôn amyêtôn). Segundo Newman (1890a, p. 137), a relutância da Igreja cristã primitiva em discutir os assuntos mais profundos da fé só vai começar a diminuir a partir do Concílio de Niceia. Como

a igreja primitiva lidou com os ataques àTrindade?

Por causa dessa disciplina de nossos antepassados, os inimigos da ortodoxia têm até hoje a impressão de que a Igreja primitiva guardou silêncio excessivo com respeito ao assunto da Trindade. Os antitrinitarianos acusam a Igreja de ter inventado a doutrina da Trindade no século IV. Na verdade, antes do século IV, a Igreja tinha a crença inequívoca de que a Divindade tem uma natureza triúna. Foi o antitrinitarianismo que surgiu no século IV.

As primeiras investidas de Ário contra a doutrina da Trindade Maimbourg, em sua obra History of Arianism, explica como a controvérsia trinitariana, também conhecida como “controvérsia ariana”, chegou até a Igreja, que desfrutava, naquela época, dos benefícios da paz a ela trazida pela conversão do imperador Constantino. Foi nesse período de intenso sincretismo religioso que surgiu o antitrinitarianismo. Durante esse tempo, um certo Ário se mudou de sua terra natal, na Líbia, para Alexandria, no Egito. Naquela grande metrópole da Antiguidade, esperava obter o sucesso que sua modesta terra natal lhe negava.

104 | Tentaram a Deus no Seu coração Pedro, Patriarca de Alexandria, logo percebeu que sua comunidade estava sendo afetada pelos estranhos ensinamentos de Melício, bispo de Sicópole, na região de Tebas, a quem se associara Ário. A princípio, Ário cedeu aos apelos de Pedro e rompeu relações com Melício. Por essa razão, o Patriarca de Alexandria decidiu ordená-lo diácono. Todavia, Pedro foi advertido por um sonho de que Ário continuava a negar a divindade de Cristo. Por insistência de seus conselheiros, o Patriarca confrontou o herege, o que resultou na excomunhão deste. Após a morte de Pedro, seu sucessor Aquilas fez nova tentativa de conciliar Ário com os ensinamentos ortodoxos do Cristianismo. Quando Ário se mostrou aberto ao diálogo, o novo Patriarca o ordenou ao sacerdócio, colocando sob seus cuidados a congregação de Lauro, uma das igrejas mais importantes de Alexandria, e, além disso, lhe deu o cargo de professor de teologia. Após adquirir a reputação de homem letrado e sacerdote bem sucedido, Ário concorreu com Alexandre para a função de Patriarca de Alexandria no lugar de Aquilas. No entanto, foi Alexandre que se sagrou vencedor. A partir daí, Ário lhe dedicou ódio ferino. A paz concedida pelo imperador Constantino possibilitou que Ário atraísse multidões a suas aulas de teologia. Com o pretexto de atacar o sabelianismo, heresia que ensinava que as pessoas da Trindade eram simples manifestações distintas da mesma pessoa, por volta de 320 A.D., Ário passou a professar o antitrinitarianismo. Como resultado disso, o Patriarca Alexandre convocou uma conferência perante a qual Ário expôs sua ideia de que Deus havia criado a Jesus ex nihilo

| 105 (“do nada”), dando-lhe um status superior ao dos homens e anjos. Ao dizer que Cristo havia sido criado do nada e que tinha propensão para o pecado, Ário foi original. Não há registro de nenhuma declaração semelhante a essa que lhe seja anterior. Todavia, ao negar a divindade de Cristo, estava simplesmente seguindo a Ébion, Artemas e Teódoto. De acordo com Atanásio, Ário também declarou que Cristo tinha corpo, mas não tinha alma e, por isso, foi incapaz de experimentar sofrimento real na cruz. No final da conferência, Alexandre demitiu Ário de suas funções como professor de teologia e o proibiu de pregar essas ideias. Como

a igreja primitiva lidou com os ataques àTrindade?

Segundo Epifânio (Heresia 69), Carpones e Sarmates, dois sacerdotes presentes à conferência, tomaram as dores de Ário e passaram a pregar sua doutrina. Além disso, Ário não respeitou a proibição que lhe havia sido imposta e pregava livremente sobre o assunto, especialmente quando visitava os fiéis em seus lares. De acordo com Sócrates e Epifânio, Alexandre convocou uma reunião com cem bispos para deliberar sobre a situação. A decisão do concílio foi a de destituir Ário do sacerdócio, eliminar seu nome do rol de membros e expulsá-lo da cidade de Alexandria. Ário se escondeu na grande metrópole a fim de evitar o exílio. De acordo com o historiador eclesiástico Sozômenos, Ário conseguiu mais prosélitos durante esse período de pregações secretas do que havia conseguido em suas conferências públicas. O mesmo autor afirma, em História eclesiástica 1.14, que muitos desses prosélitos eram apenas pessoas

106 | Tentaram a Deus no Seu coração enfatuadas pelo gosto de novidades e pela perversa inclinação para desfrutar daquilo que era proibido.

Ário recruta o apoio de pessoas importantes A partir da perseguição empreendida pelo Patriarca de Alexandria, Ário passou a contar com o apoio de Eusébio, bispo da Nicomédia, na Bitínia. O bispo, por sua vez, conseguiu recoltar o apoio de Constância, irmã do imperador Constantino e esposa de Licínio, que residia no palácio construído pelo ex-imperador Diocleciano, na Nicomédia. Após trocarem correspondências, Eusébio da Nicomédia prometeu angariar também o apoio de Eusébio de Cesareia para Ário. Enquanto isso, Alexandre intensificava a caçada a Ário em Alexandria. Isso obrigou o herege a fugir para a Palestina. Ali, segundo Sócrates (História eclesiástica 1.13), ele conquistou a simpatia de Eusébio de Cesareia, Paulino de Tiro e Patrófilo de Sitópole, três expoentes da Igreja cristã do século IV. Eusébio da Nicomédia então convidou Ário a visitar a princesa Constância na Bitínia. De acordo com Epifânio (Heresia 69), Ário estava, assim, seguindo os passos da serpente que, para levar a humanidade ao erro, primeiramente seduziu Eva. Para agradar a seu mentor da Nicomédia, Eusébio de Cesareia escreveu uma carta de apoio a Ário e a enviou ao Patriarca de Alexandria, alguns parágrafos da qual estão conservados nos escritos de Atanásio. Jerônimo, o tradutor da Vulgata, reagiu com indignação à carta. Ele, de fato, nos revela que, durante o período de perseguição,

| 107 Eusébio de Cesareia havia renegado a fé para escapar da morte. Tendo preservado a própria vida por esse expediente, passou o restante dela vacilando entre uma posição e outra, desde que, dessa forma, conseguisse avançar em suas ambições políticas. Alexandre de Alexandria reagiu, mesmo correndo o risco de ser mal interpretado pelos poderosos da corte de Constância. Ele escreveu uma carta aberta na qual narrou os conflitos e os problemas que Ário havia criado em sua cidade. Alexandre não poupou os dois Eusébios e expôs seu envolvimento na disseminação da heresia. A carta foi preservada pelo historiador Sócrates (História eclesiástica 1.3), e Epifânio (Heresia 69) nos conta que setenta cópias da mesma ainda circulavam em seu tempo. A carta produziu reações diversas; no entanto, a maioria abandonou sua posição antitrinitariana por causa da minuciosa exposição da doutrina da Trindade feita pelo patriarca. Além disso, Eusébio de Nicomédia tornou-se, por algum tempo, mais discreto em seu apoio a Ário. Quando Alexandre escreveu uma Como

a igreja primitiva lidou com os ataques àTrindade?

segunda carta expondo a falta de ética de alguns bispos no caso de Ário, Eusébio da Nicomédia perdeu a paciência, convocou um concílio e exigiu que Alexandre aceitasse o arianismo sob pena de ser excomungado como herege. De acordo com Sócrates (História eclesiástica 1.3), isso equivaleu a uma declaração de guerra. Os dois partidos se arregimentaram um contra o outro de modo que foi criada uma desordem sem precedentes na história do Cristianismo. Eusébio de Cesareia (Vida de Constantino 3.4) relata que, nas vilas e nas cidades, cristãos empunhavam armas contra cristãos a fim de decidirem, pela força, a questão da divindade de Cristo.

108 | Tentaram a Deus no Seu coração Nesse momento delicado, Ário retornou a Alexandria e liderou seus seguidores na guerra civil que se instaurou na metrópole. Enquanto isso, Constantino havia derrotado seus oponentes e se tornado monarca sobre todo o Império Romano. Profundamente abalado com as notícias dos distúrbios em Alexandria e irritado com o opróbrio que tais conflitos estavam trazendo à fé cristã, o imperador enviou Eusébio de Cesareia e Hósio, homens de sua confiança, para pacificarem a cidade. O historiador Sozômenos (História eclesiástica 1.15) relata que Eusébio de Cesareia aproveitou a oportunidade para colocar a maior parte da culpa no Patriarca de Alexandria. Epifânio (Heresia 69), por sua vez, nos relata que Hósio, sacerdote que quase sofreu o martírio durante a perseguição imposta por Diocleciano, estava mais inclinado a dar razão ao Patriarca de Alexandria. Estava instaurado um impasse na delegação enviada pelo imperador. O relatório de Hósio sugeria que uma autoridade maior fosse instituída para pôr fim aos desentendimentos. O imperador decidiu convocar um concílio geral com a presença de tantos bispos quantos pudessem comparecer, para solucionar o impasse, ficando a parte derrotada obrigada a se submeter ao partido vencedor.

O concílio de Niceia Para a realização de seu concílio geral, Constantino escolheu a cidade de Niceia, uma agradável vila em uma frutífera planície no coração da Bitínia. Constantino mantinha sua

| 109 corte na Nicomédia porque o imperador ainda demoraria dois anos para construir Constantinopla, a nova capital do Império Romano. Mais de 300 bispos compareceram com seus principais conselheiros. Entre eles, três grandes patriarcas se fizeram presentes: Alexandre de Alexandria, Eustátio de Antioquia e Macário de Jerusalém. O imperador assumiu todos os custos dessas viagens e da hospedagem dos clérigos. Como

a igreja primitiva lidou com os ataques àTrindade?

Alguns dos convidados, como Hósio, por exemplo, haviam sofrido torturas durante a perseguição imposta pelo ex-imperador Diocleciano. No entanto, os que mais impressionaram os presentes foram os assim-chamados “confessores”, aqueles homens que haviam sido torturados pelos romanos para que renunciassem à sua crença na divindade de Jesus, mas que haviam se mantido fiéis à sua fé: Potamos de Heracleia, no Egito, cujos olhos haviam sido arrancados por ordem do ex-imperador Maximino; Panútio que, no furor da perseguição, havia tido um olho furado e um braço cortado; Paulo de Nova Cesareia, às margens do Eufrates, que, na perseguição imposta por Licínio, havia tido ambas as mãos queimadas; Espiridião de Tremitunta, no Chipre, que havia perdido uma perna na perseguição de Maximino. Eusébio da Nicomédia se fez acompanhar de Eusébio de Cesareia, Máris da Calcedônia e Teógnis de Niceia. Sobre esses bispos repousava a suspeita, às vezes confirmada, de que tinham renegado sua fé na divindade de Cristo durante as perseguições impostas pelos imperadores romanos e, por isso, se

110 | Tentaram a Deus no Seu coração sentiam melindrados, recusando-se a admitir que o haviam feito por temor de perderem a própria vida. De acordo com Sozômenos (História eclesiástica 1.17), muitos filósofos pagãos vieram a Niceia, durante o concílio, no intuito de desafiar os religiosos cristãos a darem contas de sua fé e crenças. Rufino (1.5) narra o confronto entre Espiridião de Tremitunta e um jovem filósofo que o desafiava. O filósofo acabou cedendo ao testemunho veemente de um homem que tinha validado sua fé na divindade de Cristo sem, para isso, hesitar colocar sua própria vida em perigo. Como resultado disso, Gregório, um presbítero que apoiava a doutrina de Ário, passou para o partido ortodoxo. O concílio, realizado no palácio de Constantino, teve início em 19 de junho de 325. O imperador fez um discurso inicial, apelando para que os dois partidos fossem mais tolerantes um com o outro. Em seguida, Constantino queimou os muitos libelos que haviam sido trazidos ao seu conhecimento, dando a entender que todas as diferenças seriam resolvidas pela decisão do concílio. Segundo a descrição de Eusébio de Cesareia (Vida de Constantino 1.11), o Patriarca de Alexandria se sentou à frente do grupo à esquerda do imperador e o Patriarca de Antioquia, do grupo à direita, sendo a Bíblia colocada em um trono entre as duas fileiras. Sozômenos (1.16-18) narra que Ário foi o primeiro a discursar. O Patriarca de Alexandria havia escolhido a Atanásio, então apenas um jovem diácono em Alexandria, para representar a causa daqueles que criam na divindade de Jesus. Após os dois discursos, Eusébio de Nicomédia teceu considerações grandiloquentes. O partido ortodoxo reagiu com a leitura

| 111 da carta de Eusébio que defendia o arianismo bem como com a leitura da decisão tomada no concílio de Alexandria, convocado pelo Patriarca daquela cidade. Os dois partidos não se entendiam e, em consequência disso, a reunião foi interrompida. Como

a igreja primitiva lidou com os ataques àTrindade?

Quando os delegados foram reconvocados, coube a palavra a Eustátio, patriarca de Antioquia. O patriarca fez um cáustico discurso contra Ário (preservado em Teodoreto 1.7), expressando sua opinião de que o herege imitava a Satanás quando este tentou roubar a divindade de Jesus, com suas tentações. Ao término de suas palavras, todos os presentes voltaram os olhares para o imperador. O discurso de Constantino, preservado em Teodoreto, Eusébio de Cesareia e Sozômenos, foi feito em latim e traduzido, por um secretário, para o grego. Nele, o imperador repreendeu solenemente os dois partidos por sua obstinação em se apegar aos próprios pontos de vista. Uma vez mais, os representantes dos dois lados começaram a discursar. Ao fim desses discursos, o imperador solicitou a votação dos presentes. A grande maioria votou, segundo sua fé, que Jesus era divino, eterno, nunca fora criado, tinha a mesma substância do Pai, e que Ário deveria ser anatemizado. Os antitrinitarianos se recusaram, no entanto, a assinar o documento com essa redação. A reunião foi mais uma vez interrompida e o grupo foi reconvocado, no dia seguinte, para que suas assinaturas fossem colhidas. De acordo com Atanásio, Sócrates e Sozômenos, Eusébio de Cesareia mudou de opinião, durante a noite, e assinou o documento pela manhã. Surpreso com a decisão do amigo, Eusébio da Nicomédia propôs uma nova redação para a declaração do concílio, eliminando o anátema a

112 | Tentaram a Deus no Seu coração Ário e a referência ao fato de que o Pai e o Filho tinham a mesma substância. Teodoreto nos informa que o concílio se manteve firme em não aceitar a proposta de Eusébio. Nesse momento, a maioria dos que apoiavam o bispo da Nicomédia já estava disposta a assinar o documento. Os únicos que se mantiveram irredutíveis foram Eusébio da Nicomédia e Teógnis de Niceia. Diante de sua recusa, o concílio votou por sua exoneração dos cargos que ocupavam, substituindo-os em suas igrejas por Anfionte e Crestos, respectivamente. Melício, o primeiro que havia apoiado o arianismo, manteve o título de bispo, mas foi proibido de pregar. Ário foi anatemizado e degredado; seu livro, intitulado Thalia (“festa”), foi proibido, bem como a literatura do filósofo pagão Porfírio, que havia inspirado alguns dos argumentos de Ário. Diante do veredito do concílio, Eusébio da Nicomédia, Teógnis de Niceia e Ário tomaram a decisão de assinar o documento final do concílio e solicitaram a revogação das sentenças ou o arrefecimento de seu rigor. O concílio aceitou o pedido dos três, com a condição de que concordassem em se manter longe da cidade de Alexandria. Os trabalhos do concílio foram concluídos no dia 25 de agosto de 325.

7

Como

e por

que surgiram os primeiros ataques à Trindade? ............................................

D

e acordo com Gwatkin (1990), o arianismo tinha começado com um vigor que prometia uma grande carreira e, de fato, em poucos anos, já não tinha qualquer concorrente à supremacia no Oriente. Não obstante, sua força entrou em colapso no momento em que o Concílio de Niceia começou. Depois disso, o antitrinitarianismo murchou diante da reprovação universal que lhe dedicou o mundo cristão. Os delegados ao Concílio de Niceia praticamente o rejeitaram por unanimidade e o fato de terem assinado um documento os ajudou a se manterem fiéis a sua decisão. O arianismo pareceu inevitavelmente perdido ao final do concílio. Contudo, o conflito estava longe do fim. Foram necessários ainda mais de cinquenta anos para sua pacificação. Mesmo quando extinto por Teodósio (379-395) como poder político no Império, o arianismo resistiu entre os povos do norte. Só quando os godos caíram em Aquitânia (507) e na Itália (553), e os visigodos e lombardos

114 | Tentaram a Deus no Seu coração se converteram no final do século VI, o arianismo chegou ao fim de sua carreira. Resta-nos, portanto, a indagação: por que o Concílio de Niceia não foi suficiente para causar a extinção imediata do arianismo? A força desse movimento mostra que ele não foi simplesmente a eclosão de um surto de maldade. A doutrina ariana tinha seus atrativos: ela era mais simples do que a ortodoxia, mais simétrica do que o semiarianismo, e mais humana do que o sabelianismo. Por outro lado, seus ensinamentos eram ilógicos e pouco espirituais, constituindo claramente um passo para trás na direção do paganismo. Ao tentar esclarecer a unidade de Deus, a doutrina ariana abriu as portas para o politeísmo. Ao criar uma explicação fantástica para a encarnação, o arianismo prescindiu da revelação de um Deus de amor, pois seu Deus é infinitamente abstrato e misterioso, estando condenado a viver para sempre separado do mundo sob pena de este se dissolver ao Seu toque. Não abria espaço para a doutrina da expiação, pois atribuía a Jesus uma natureza incerta, corrompendo o valor de Seu sacrifício. Tampouco abria espaço para a santificação, pois degradava o Espírito Santo a uma posição de sujeição muito abaixo daquela ocupada pelos animais inferiores. Newman (1890a, p. 25-26) sugere que a sobrevivência da pregação ariana se deveu principalmente a sua conexão com o movimento sofístico. Embora condenado por todo o mundo cristão no Concílio de Niceia, em poucos anos o arianismo se reergueu, conquistou o apoio da corte imperial, alcançou

| 115 as maiores autoridades da Igreja e passou a tiranizar a grande maioria de membros que continuavam fiéis à ortodoxia. Epifânio atribui às habilidades de argumentação um papel destacado na pregação ariana. Segundo ele (Heresia 69.15), os debatedores arianos faziam ataques inesperados e se apegavam aos pontos fracos de seus opositores como os cães ferozes o fazem às suas vítimas, sem lhes dar jamais a chance de discutir os pontos fortes de sua convicção. Ou seja, o arianismo teria triunfado, a princípio, porque é mais fácil semear a dúvida do que ensinar a fé. Como

e por que surgiram os primeiros ataques à Trindade?

Apesar de serem inegáveis as habilidades sofísticas dos primeiros antitrinitarianos, praticamente todas as autoridades antigas comentam que o sucesso do arianismo nasceu e morreu com o comando ariano do palácio imperial. Parece claro que o arianismo floresceu com as intrigas da corte. Por essa razão, o arianismo não achou nenhuma guarida legítima no Ocidente. Apesar disso, obviamente o movimento foi muito maior do que uma facção meramente política. Ao contrário do que ensinavam os gregos, o Cristianismo herdou do judaísmo a crença na unidade de Deus e de Sua natureza distinta do todo ou das partes do universo. Com o aparecimento do ebionismo e do gnosticismo, os intelectuais do terceiro século já se encontravam dispostos a acrescentar o nome de Cristo ao panteão dos deuses grecoromanos. A razão disso era que, desde o princípio, a doutrina cristã da divindade de Cristo foi tão firmemente estabelecida quanto havia sido a doutrina judaica da unidade de Deus. Os primeiros escritores cristãos estavam tão convencidos dessa

116 | Tentaram a Deus no Seu coração verdade que sequer concebiam a possibilidade de discordância. O que eles queriam, de fato, era simplesmente repetir o testemunho dos apóstolos e não discuti-lo. Seu principal objetivo era mostrar a correspondência entre a vida e morte de Cristo e as antigas predições a respeito do Messias. Sendo assim, eles não perceberam que os intelectuais de sua época achariam difícil harmonizar divindade com sofrimento. Essa aparente contradição foi a principal pedra de tropeço para gregos e romanos, não a ressurreição. Os ebionitas diziam que, se Cristo sofreu, não era Deus (racionalismo). Os docetistas diziam que, se era divino, Seus sofrimentos não foram reais (misticismo). No século IV, o sabelianismo e o arianismo se apresentaram como alternativas para resolver esse impasse, mas nem um nem outro satisfizeram as condições do problema. O arianismo propôs uma trindade externa, com um ser não criado e dois seres criados. O sabelianismo propôs uma trindade econômica, em que os três seres eram simplesmente aspectos (prosôpa) da Divindade. A ortodoxia reagiu, afirmando que a Trindade contava com personalidades (hypostaseis) eternas dentro da mesma natureza divina. Pelas razões expressas acima, Gwatkin (1900) chegou à conclusão de que o aparecimento do arianismo por volta do ano 318 não foi um acidente histórico, mas o resultado direto de movimentos anteriores e de uma inevitável reação das formas de pensamento judaicas e pagãs contra o estabelecimento de uma visão distintamente cristã da Divindade. Isso explica também por que o arianismo teve algum sucesso no Oriente, sem

| 117 ter nenhum sucesso no Ocidente. A Igreja do Oriente, com um nível educacional muito mais elevado, sempre se demonstrou aberta ao diálogo com os filósofos e intelectuais da época. Dessa forma, o arianismo seria uma espécie de meio termo que livrava os cristãos das perseguições mais duras por parte do governo romano (pois negava a natureza divina de Cristo) e tornava o Cristianismo mais palatável ao gosto pagão (pois resolvia o problema da conciliação entre a natureza sobrenatural de Cristo e o sofrimento real que este experimentou na cruz). Como

e por que surgiram os primeiros ataques à Trindade?

Antioquia, na Síria, parece ter sido o local onde, pela primeira vez, se ouviu falar de uma pregação antitrinitariana. A cidade havia sido a sede do movimento missionário que apoiou a pregação do apóstolo Paulo na Ásia Menor e na Europa. O rápido crescimento do Cristianismo naquela metrópole parece tê-la deixado predisposta à eclosão de movimentos heréticos. Já em 272 A.D., foi realizado um concílio naquela cidade que culminou com a exoneração de Paulo de Samósata, até então o bispo de Antioquia, sob suspeita de que ele entretinha noções heréticas com respeito à natureza de Cristo (Eusébio de Cesareia, História eclesiástica 7.30; Atanásio, Epistula ad Monachos 71). Paulo de Samósata parece ter sido sofista antes de sua conversão. Seja como for, acabou criando uma seita que só veio a desaparecer no século V. Todavia, aquele que expressaria, de forma mais elaborada, os princípios do arianismo seria outro intelectual de Antioquia: Luciano, a quem se atribui a terceira edição da Septuaginta. Acredita-se que Luciano de Antioquia teria sido o mestre daqueles que iriam se tornar os principais

118 | Tentaram a Deus no Seu coração defensores do arianismo: o próprio Ário, Eusébio da Nicomédia, Leôncio, Eudoxo e Astério, entre outros. As graves suspeitas de que Eusébio de Cesareia e Paulino de Tiro tenham sido arianos convictos, encontram confirmação adicional no fato de que o primeiro tenha estudado em Antioquia (embora não tivesse a Luciano como mestre) e o segundo tenha sido ali ordenado ao sacerdócio. Os três bispos que sucederam a Paulo de Samósata excomungaram a Luciano. É curioso, porém, que Luciano, perto do fim de sua vida, renunciou a suas ideias antitrinitarianas, sendo, por isso, elogiado por Teodósio, João Crisóstomo, Rufino e Jerônimo. Alexandria foi uma estufa natural para o crescimento do arianismo. Da mesma forma que em Antioquia, a influência judaica dominava vários aspectos da vida cultural da grande metrópole grega do Egito. Sócrates chega a supor que Alexandria teria sido o local do aparecimento do movimento: “esse mal começou na igreja de Alexandria, espalhou-se por todo o Egito e Líbia bem como pela região superior de Tebas; infestou até as demais províncias e cidades” (História eclesiástica 1.6). No entanto, a influência dos intelectuais gregos era sentida de forma muito mais acentuada em Alexandria do que em Antioquia. Talvez por essa razão, a linha de ação antiariana de Atanásio tivesse obtido tanto sucesso em Alexandria que, por volta de 339, já não havia nenhum membro do clero que professasse o arianismo e, por volta de 346, o movimento já estava totalmente extinto no Egito. Quando, anos mais tarde, chegaram George (356) e Lúcio (373) a Alexandria, estes trouxeram de outras

| 119 terras o seu arianismo. De acordo com Newman (1890a, p. 9), no período entre o Concílio de Niceia (325) e a morte do imperador Constâncio (361), Antioquia se tornou a capital das heresias, tendo abraçado importantes movimentos dissidentes como o arianismo e o movimento quartodecimal (que prescrevia que os cristãos guardassem a páscoa à moda judaica), enquanto Alexandria se transformou, no mesmo período, na capital da ortodoxia. A influência de Antioquia se estendeu por toda a Síria e também sobre a Frígia, Galácia, Capadócia e Paflagônia. Alguns escritores antigos (Sócrates, História eclesiástica 4.28; Epifânio, Heresia 47.1; 48.14) descrevem essa influência como sendo marcada por um aguçado gosto pela novidade, espírito de insubordinação e separatismo, e orgulho espiritual. O que os gálatas foram para o primeiro século, Montano e Novatiano se tornaram para o segundo e terceiro séculos, respectivamente. Ambos eram originários desse círculo de influências. Na carta de Alexandre aos cristãos de Constantinopla, preservada por Como

e por que surgiram os primeiros ataques à Trindade?

Teodósio (História eclesiástica 1.4), o patriarca de Alexandria declara: “vós bem sabeis que essa heresia [o arianismo] pertence a Ébion e Artemas, sendo uma imitação a Paulo de Samósata, bispo de Antioquia, que foi excomungado em um concílio geral com a presença de bispos de várias localidades... Os hereges de nossa época beberam das borras da impiedade desses homens e são sua prole secreta; Ário e Aquilas, e seu partido de malfeitores, incitados como estão a excessos maiores ainda pelos três prelados da Síria... foram expulsos da Igreja, de acordo com o ensinamento de São Paulo: ‘se algum homem vos ensinar outro evangelho, seja anátema’.”

120 | Tentaram a Deus no Seu coração O Ocidente mal se deu conta da controvérsia com os arianos até que esta lhe foi trazida pelo imperador Constâncio. Os cristãos do Ocidente tinham pouca literatura sobre o assunto e desconheciam quase que completamente sua história. Por isso, sua primeira decisão foi acatar a resolução do concílio de Niceia. A partir daí, defrontaram-se com a imensa dificuldade em traduzir os termos técnicos do documento niceno, escrito em grego, para o latim. Por essa razão e sob a influência de Eusébio de Cesareia, os cristãos do Ocidente tentaram adiar, por tanto tempo quanto possível, sua assinatura do documento niceno. O conflito não foi, como se pode pensar, o confronto entre a inocência da fé e as maquinações diabólicas dos inimigos da verdade. Tratou-se simplesmente da disputa de duas formas de teologia: uma versão mais conservadora e mais fiel às Escrituras e outra mais reacionária e de maior apelo aos pagãos, que tinham muita dificuldade em compreender a razão do caráter exclusivo da adoração ao Deus dos cristãos. O arianismo exerceu, assim, um poderoso apelo aos indecisos que, por meio dele, podiam ter acesso aos benefícios espirituais, sociais e intelectuais da nova religião, sem ter que abrir mão de seu sincretismo religioso. Inúmeros foram os fatores que possibilitaram a sobrevivência do arianismo mesmo após o concílio de Niceia. O apoio dos filósofos neoplatônicos foi um elemento decisivo para a difusão do antitrinitarianismo. Além disso, os judeus geralmente favoreciam o lado ariano (principalmente os judaizantes em geral, os ebionitas, os ceríntios e a seita dos nazarenos) e a corte imperial lhe tinha simpatias. Finalmente, quando a ameaça do

| 121 sabelianismo começou a se espalhar, mesmo alguns dos mais ortodoxos membros do clero consentiram no uso de argumentos arianos para fazer frente àquele movimento. Com a exoneração de Eustátio do patriarcado de Antioquia, em 330, começou um período em que os defensores do documento de Niceia foram intensamente perseguidos. Atanásio foi exonerado de Tiro, em 335, e Marcelo perdeu seu cargo alguns meses depois. Apesar disso, o concílio de Sárdica, em 343, continuou a defender os principais pontos do consenso de Niceia, embora algumas concessões fossem feitas. Depois disso, o embate só foi retomado quando, em 360, Constâncio convocou o concílio de Constantinopla. Com a ascensão de Constâncio ao trono, sua corte se tornou muito mais permeável à intriga do que fora nos tempos de Constantino. Com o apoio do Oriente e na segurança da nova capital, o jovem imperador inclinou-se para o arianismo e começou a hostilizar os cristãos ortodoxos de Alexandria e Roma. Em 360, o arianismo subiu ao poder e ali permaneceu Como

e por que surgiram os primeiros ataques à Trindade?

por vinte anos. Em 361, Juliano se tornou imperador e abraçou a política de fomentar as disputas internas do Cristianismo para que, assim, pudesse restaurar a religião pagã. Com essa motivação, Juliano assinou um indulto perdoando a todos aqueles que tinham sofrido o exílio por razões religiosas. O tiro, porém, saiu pela culatra. Com a liberdade de discutir e decidir suas diferenças religiosas, os cristãos fizeram grandes progressos em direção a uma solução pacífica para essas divergências, durante o curto reinado de Juliano. Todavia, a morte prematura do imperador

122 | Tentaram a Deus no Seu coração adiou esse resultado por quase vinte anos. O imperador Valente trouxe de volta a política de apoio aos arianos. Contudo, Atanásio continuou lutando pela conciliação até sua morte, em 373. Como resultado disso, o antitrinitarianismo foi perdendo ímpeto. Alguns anos depois, distúrbios populares em Constantinopla marcaram a última demonstração de força do partido ariano. A partir do Concílio Geral, que ocorreu em Constantinopla, em 381, o Cristianismo fez uma clara opção pela crença ortodoxa da divindade de Cristo.

8

Quem

atacou

a doutrina da Trindade? ............................................

L

istas dos primeiros pregadores antitrinitarianos são dadas, com umas poucas diferenças, pelos escritores do quarto século (como, por exemplo, Sócrates, em História eclesiástica 1.6; Epifânio, em Adversus haereses 3.159; Atanásio, em De decretis Nicaenae synodi 35.6; e Teodoreto, em História eclesiástica 25.7). No século V, também encontramos listas semelhantes (como, por exemplo, a de Sozômenos, em História eclesiástica 1.15.7). Os nomes geralmente mencionados incluem os de Ário, Aquilas (ou Aquiles), Aitales, Carpones, outro Ário, Sarmates, Euzoio, Lúcio, Juliano, Menas, Heládio, Caio, Segundo e Teonas. Apesar de relativamente numerosas, todas essas listas são encabeçadas por Ário. Ário era um diligente pregador que aproveitava todas as oportunidades para propagar suas opiniões. Sua criatividade o levou a imaginar formas diferentes de impressionar as pessoas. Com efeito, ele compôs canções para serem usadas, com facilidade, por viajantes e marinheiros, as quais ele encheu

124 | Tentaram a Deus no Seu coração com seus ensinamentos. Por sua natureza jovial, essas canções caíram no gosto popular. Para as pessoas mais educadas, Ário compôs um tratado teológico sob a forma de romance, intitulado Thalia, várias passagens do qual encontram-se preservadas. Numa dessas passagens, citada por Atanásio (De decretis Nicaenae synodi 16.3), Ário declara: pollous lalei logous ho Theos, poion autôn ara legomen huion kai logon monogenê tou Patros? (“Deus usa muitos verbos, qual deles devemos, então, chamar de Filho e unigênito Verbo do Pai?”). Em outra passagem, também citada por Atanásio (De synodis Arimini in Italia et Seleuciae in Isauria 15.3), Ário afirma: êgoun trias esti, doxais ouk homoiais anepimiktoi heautais eisin hai hypostaseis autôn, mia tês mias endoxotera doxais ep’ apeiron (“há uma Trindade, mas Suas pessoas não são de glória idêntica; uma delas sendo infinitamente mais gloriosa do que outra”).

Em um de seus discursos, Atanásio nos apresenta um

resumo dos três principais ensinamentos de Ário: em primeiro lugar, que Jesus foi criado do nada; em segundo lugar, que Seu livre arbítrio lhe concedia a capacidade de mudar (podendo, inclusive, pecar, caso assim desejasse); e, finalmente, que nem o Filho nem o Espírito Santo possuem a mesma substância do Pai. Na mesma obra, Atanásio nos informa que a presença de Ário provocava uma reação tão forte em seus contemporâneos que estes o chamavam de “precursor do Anticristo” e era comum que as pessoas incultas fugissem dele quando o avistavam.

Após a derrota antitrinitariana no Concílio de Niceia,

| 125 Ário dedicou-se ao ensino clandestino de suas ideias. De acordo com os historiadores antigos (Sócrates, História eclesiástica 1.37-38; Sozômenos, História eclesiástica 2.29-30), no fim de sua carreira, foi convocado pelo imperador para se explicar. Apresentou, porém, uma declaração de fé inteiramente constituída de palavras ambíguas de modo que, a partir dela, era praticamente impossível determinar quais eram, de fato, suas crenças. Só não foi inteiramente perdoado de sua heresia, porque veio a falecer logo depois. Segundo Epifânio (Heresia 76.4), depois da morte de Ário, seus discípulos acabaram obtendo a reputação de serem mestres das ambiguidades. Quem

atacou a doutrina da Trindade?

Os arianos mais radicais ficaram conhecidos na história como “anomeanos” ou “exucontianos”, dos quais os mais famosos foram Aécio e Eunômio. O termo “anomeano” vem da palavra grega anomoios, que significa “diferente”, pois os arianos ensinavam que Cristo era de uma essência diferente da do Pai. O termo “exucontianos” vem da expressão grega ex ouk ontôn, que significa “do nada”, pois eles também ensinavam que Cristo havia sido criado “do nada” (ex nihilo, em latim) pelo Pai. O credo de Eunômio afirmava: heis esti Theos agennêtos kai anarchos oute pro heautou echôn tina onta (“só há um Deus autoexistente e sem princípio, não havendo nada antes dele”). Para os discípulos de Ário, Deus criou o Filho e o Filho criou o Espírito Santo. Segundo Epifânio, Aécio tinha tanta convicção de seu arianismo que costumava dizer: outôs oida ton Theon hôsper emauton, kai ou tosouton oida emauton hôs ton Theon (“conheço a Deus tão bem como conheço a mim

126 | Tentaram a Deus no Seu coração mesmo; e não conheço a mim mesmo tão bem como conheço a Deus”). De acordo com Sócrates (História eclesiástica 4.7), Eunômio, da mesma forma, se gabava de que “Deus mesmo não sabe nada sobre Sua própria essência que nós [isto é, os arianos] não saibamos” (ho Theos peri tês heautou ousias ouden pleon emôn epistatai). Chocados com essas declarações arrogantes, alguns arianos migraram para uma corrente menos radical, autodenominando-se de “semiarianos”. Os principais integrantes dessa vertente foram Basílio, bispo de Ancara, e Mardônio, bispo de Constantinopla. Mardônio não descria da divindade de Jesus, mas afirmava que o Espírito Santo havia sido criado com os anjos. Quando os arianos estiveram no poder, principalmente sob a influência de Eusébio da Nicomédia e de Eusébio de Cesareia ou durante o reinado de Constâncio e Valente, os antitrinitarianos se tornaram terríveis perseguidores dos cristãos ortodoxos. A perseguição de Valente foi tão intensa que Temístio, certo intelectual pagão, intercedeu em favor dos cristãos ortodoxos. Como prova disso, não somente temos o discurso de Temístio (Oratio 12), mas também os relatos de Sócrates (História eclesiástica 4.32) e Sozômenos (História eclesiástica 6.36). Os arianos acabaram enfraquecidos por causa de suas divisões e as perseguições que também promoviam contra seus próprios dissidentes. Além disso, o movimento sempre teve maior adesão entre o clero do que entre o povo. Finalmente,

| 127 quando o imperador Teodósio cortou o apoio do governo a seus defensores, o arianismo ruiu como um edifício condenado. Apesar de suprimido no Oriente, o arianismo ainda resistiu por mais tempo no Ocidente, especialmente entre os godos, os vândalos e os lombardos. Quando Belisário venceu os bárbaros, o arianismo também chegou ao fim no Ocidente. Quem

atacou a doutrina da Trindade?

Após a Reforma, o antitrinitarianismo voltou a surgir, tendo chegado, inclusive, a alcançar alguma simpatia de Erasmo de Roterdã. Aproximadamente na mesma época, o jesuíta Petávio atacou a historicidade e confiabilidade do concílio de Niceia. A partir da metade do século XII, esporadicamente surgiam estudiosos que atacavam a doutrina da Trindade, dos quais os principais foram Pedro Abelardo, Gilberto Porretano, Joaquim Abbas, Mateus Gibraldo, Gregório Paulo, João Paulo Alciato, George Blandrata e Pedro Gonésio. Seus ataques à doutrina da Trindade produziram, no entanto, o florescimento de inúmeras obras em sua defesa. Com efeito, o antitrinitarianismo foi devidamente combatido no século XVII, sobressaindo-se os esforços de Daniel Whitby, com sua obra Tractatus de vera Christi deitate, publicada originalmente em 1691. No início do século XVIII, porém, o antitrinitarianismo voltou à carga com Thomas Chubbius, um leigo da igreja anglicana que deu início a um movimento neoariano. Chubbius afirmava que, assim como Cristo ignorava o dia de Sua volta (Mr 13:32), o Filho ignorava também o grau de Sua inferioridade em relação ao Pai e, por essa razão, às vezes, dava a impressão de

128 | Tentaram a Deus no Seu coração igualdade com Ele. Os oito argumentos de seu livro, publicado em 1715, em favor da superioridade do Pai foram devidamente refutados por Pfeil, em 1741. No caso específico da suposta ignorância de Cristo com respeito a Sua relação com o Pai ou outra coisa qualquer, Pfeil explica que isso se devia à natureza theantrópica (divina e humana) de Jesus. Isto é, Cristo, em Sua natureza humana, ignorava o dia da volta do Filho à Terra, mas não em Sua onisciente natureza divina. Escrevendo em latim, Pfeil deixa claro que algumas das dificuldades de Chubbius (que escrevia em inglês) se originavam de seu desconhecimento da língua grega. A título de exemplo, podemos mencionar outro aspecto de sua interpretação de Mr 13:32. O texto da versão inglesa empregada por Chubbius afirma que “a respeito daquele dia e hora nenhum homem sabe, não, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o Pai”. Com base na tradução “nenhum homem” (no man), Chubbius defendia que o texto falava de mensageiros humanos (anjos) e que Cristo era, portanto, simplesmente um homem. Isto é, “nenhum homem” sabia, inclusive Cristo e os demais mensageiros humanos de Deus. Ora, a expressão grega, no verso em questão, é oudeis, que significa “ninguém”, sem qualquer referência ao aspecto humano. Por isso, Pfeil declara: Chubbius errorem hunc haussise videtur ex versionem, qua usus est domestica, quae vocem oudeis transtulit per no man, communem huius linguae idiotismum: prodidit ignorantiam graecae linguae, “Chubbius cometeu um erro por causa da versão que costumava usar e que traduziu o vocábulo oudeis por no man, uma expressão comum em sua língua: mostrou sua ignorância da língua grega”.

| 129 O século XIX viu as publicações de outro notório antitrinitariano: George W. Burnap, cuja obra Principal passages of the Scriptures which relate to the doctrine of the Trinity, publicada em 1845 estabelece as bases do unitarianismo, o rótulo que os antitrinitarianos passaram a preferir na denominação de seu movimento. É principalmente nas conclusões de Burnap que muitos dos advogados do antitrinitarianismo baseiam sua fé, hoje em dia. Burnap, no entanto, pouco acrescentou de novo aos antigos argumentos, seu mérito residindo principalmente no fato de ter coletado, em um só volume, os principais elementos tradicionalmente usados pelos antitrinitarianos para atacarem a ortodoxia cristã. Quem

atacou a doutrina da Trindade?

9

Por

que os primeiros cristãos

adotaram um vocabulário platônico



para expressar a doutrina da Trindade? ............................................

U

ma das objeções hoje feitas à maneira como a Igreja primitiva expressou a doutrina da Trindade quando esta sofreu os primeiros ataques antitrinitarianos diz respeito ao vocabulário que os cristãos inicialmente utilizaram para expressar as bases teológicas da doutrina. Quando, no prólogo de seu evangelho, o apóstolo João recorreu ao vocábulo logos (“Verbo”) para se referir à pessoa de Cristo, este discípulo de Jesus deu início a uma colaboração com a filosofia grega que tem persistido no Cristianismo desde essa época. O termo logos tinha uma associação tão profunda com a filosofia grega, especialmente com o neoplatonismo incipiente de sua época, que é absolutamente surpreendente que o apóstolo o tenha escolhido. O uso daquela palavra deve ter produzido um efeito profundo nos leitores do apóstolo. Grosso modo, seria como se um pregador adventista subisse ao púlpito hoje e iniciasse o sermão com as palavras: “no princípio era o orixá, e o orixá

132 | Tentaram a Deus no Seu coração estava com Deus e o orixá era Deus”. O apóstolo, no entanto, não pretendia, com isso, defender o sincretismo religioso. Isto é, João não empregou esse vocábulo de carga filosófica simplesmente para dizer ao mundo grego que cristãos e pagãos estavam ambos justificados quanto às práticas de culto que adotavam. Sua intenção parece ter sido, em vez disso, empregar um vocábulo que, sendo muito bem conhecido por seus leitores, lhes daria ao menos uma vaga ideia do conceito que o apóstolo lhes desejava ensinar. De qualquer forma, percebe-se claramente, na história da Igreja cristã primitiva, que a prática iniciada por João não morreu com ele. Quando a doutrina da Trindade sofreu ataques antitrinitarianos no fim do século III e, principalmente, durante o século IV, os cristãos continuaram a empregar conceitos platônicos para uma exposição mais detalhada da natureza triúna da Divindade. Resta-nos, portanto, a pergunta: por que o fizeram? A primeira razão de se fazer uso de um vocabulário platônico ou neoplatônico é que, com isso, os primeiros cristãos tiveram benefícios práticos. A primeira vantagem foi a de que a complexa doutrina da Trindade podia ser expressa a qualquer pessoa de certa cultura (e já sabemos que a disciplina arcani impedia que as pessoas comuns tivessem acesso aos ensinamentos mais profundos da fé cristã), sem que, para isso, fosse necessária a criação de todo um aparato intelectual novo que lhe desse suporte. Além disso, um gentio daquela época se sentiria muito mais à vontade se, didaticamente, a discussão partisse dos

| 133 elementos com os quais se encontrava familiarizado para, gradativamente, decifrar o quase hermético mistério da Trindade. Finalmente, o ouvinte percebia que a compreensão da doutrina da Trindade não requeria esforço superior àquele que já fazia para dominar os conceitos da filosofia grega. Por

que um vocabulário platônico para a Trindade?

A segunda razão é que os cristãos daquela época, especialmente em Alexandria, entretinham a esperança de que a filosofia grega tivesse derivado de uma sabedoria que era mais do que simplesmente humana. Clemente de Alexandria (Stromata 6.8) afirma, por exemplo: “se alguém me disser que os gregos desenvolveram sua filosofia com base exclusivamente na sabedoria humana, eu responderei que as Escrituras dizem que a sabedoria é enviada por Deus (theopempton)... A filosofia dos gregos, limitada (merikê) como ela é, contém os rudimentos (stoikeiôtikê) daquele conhecimento (epistêmê) que é realmente perfeito (teleia) e que está além deste mundo, que se preocupa com os objetos materiais e mais espirituais, que olho não viu, nem ouvido ouviu, nem subiu ao coração dos homens e que nos foram patenteados pelo Grande Mestre, que revela primeiramente o santo dos santos (hagia hagiôn) para, depois, revelar o santíssimo (ta hagiôtera), em uma escala ascendente, para aqueles que são genuinamente os herdeiros da adoção de Deus”. Além do termo logos (“Verbo”), cujo uso se tornou consagrado a partir de seu emprego pelo apóstolo João, outras expressões platônicas são encontradas repetidas vezes nas discussões dos primeiros cristãos acerca da Trindade, além do

134 | Tentaram a Deus no Seu coração próprio termo triás (“Trindade”), como, por exemplo, a noção de que o Pai é o primeiro princípio (archikê hypostasis) e o Filho, o segundo princípio, e a denominação de demiurgo (“artífice”) para o Criador do universo. Como logos, o termo demiurgo foi empregado pelos cristãos desde o primeiro século, quando apareceu no comentário de Clemente de Roma (35.3) a 1 Coríntios. Apesar de suas vantagens imediatas para os primeiros cristãos, o recurso ao vocabulário platônico teve um efeito colateral negativo no desenvolvimento posterior do Cristianismo. Em primeiro lugar, o platonismo se tornou o refúgio natural para os hereges arianos quando estes foram expulsos das igrejas ortodoxas. É interessante que aqueles que fazem objeções à formulação inicial da doutrina da Trindade porque esta supostamente contaria com elementos contaminantes da filosofia grega, passam por alto o fato de que o arianismo recorreu de forma muito mais intensa aos elementos do neoplatonismo. Tão forte foi a influência da sofística e filosofia gregas no desenvolvimento do arianismo que Newman (1890a, p. 109) chama o arianismo de “sistema aristotélico-judaico, cujo misticismo e excentricidades beiram a insanidade”. Em seu lado judaico, o arianismo rejeitou a divindade de Cristo como os judeus o haviam feito. A concepção judaica do Messias era essencialmente carnal e os judeus não podiam sequer conceber a possibilidade de um messias que não os libertasse do jugo romano. Em segundo lugar, quando, no final do segundo século, o filósofo cristão Amônio se converteu ao paganismo, ele deu

| 135 origem a uma nova heresia, o “neologismo” ou “ecletismo”. Segundo essa concepção, divulgada pelo próprio Amônio e pelo filósofo Plotino, durante o século III, os profetas bíblicos e os apóstolos do Novo Testamento eram inspirados, mas não de forma exclusiva e peculiar, sendo colocados no mesmo nível de Platão e dos demais sábios que haviam vivido entre os homens. Em sua forma mais ampla, o neologismo defende que tudo o que há de verdadeiro e bom nas religiões do mundo teve origem em Deus. O imperador Juliano eventualmente abraçou essa filosofia religiosa, substituindo, em sua corte, os bispos que gravitavam em torno de Constâncio, o imperador anterior, por um séquito de filósofos. Por

que um vocabulário platônico para a Trindade?

Os arianos e os filósofos ecléticos compartilhavam as seguintes posições: a negação da divindade de Cristo, a subordinação dos primeiros princípios (archikai hypostaseis) uns aos outros, o uso seletivo de fontes e o recurso à argumentação sofística. As ligações históricas entre o ecleticismo e o arianismo são inegáveis. Zenóbia, a princesa síria que se tornou uma espécie de madrinha do antitrinitarianismo no Oriente, teve por instrutor a Longino, discípulo de Amiano. O mesmo Longino foi, mais tarde, professor de Porfírio, o principal representante da filosofia eclética e um dos mais ferrenhos inimigos do Cristianismo primitivo. A Síria se tornou tão importante para o desenvolvimento do ecletismo (como também foi do arianismo) que Amélio, o sucessor de Plotino, transferiu a sede da escola eclética de Roma para Laodiceia da Síria.

136 | Tentaram a Deus no Seu coração A cidade de Alexandria, conhecida mundialmente pelo elevado nível educacional de sua população, sempre esteve mais bem preparada para combater as heresias. O arianismo e o ecletismo prosperaram principalmente na Síria, mas foram devidamente combatidos em Alexandria. A acusação de que os primeiros cristãos fizeram uso indevido da filosofia grega para estabelecer as bases intelectuais da doutrina da Trindade é inteiramente desprovida de evidências. Os primeiros cristãos simplesmente fizeram uso do vocabulário que estava universalmente disponível para comunicarem, de forma eficiente, a compreensão que haviam derivado de seu estudo das Escrituras. Essa acusação leviana de que os cristãos teriam sido assim influenciados por conceitos pagãos na construção de uma doutrina sem base bíblica é semelhante a se declararmos, em nossos dias, que o fato de hoje escrevermos livros cristãos com o auxílio do computador significa que os ensinamentos cristãos estão sendo contaminados por conceitos da informática. Ou seja, a língua grega e o conteúdo cultural a ela associado foram simplesmente o veículo que se encontrava à disposição para que os cristãos anunciassem, por seu intermédio, os preceitos que se encontravam estabelecidos nas Escrituras.

Considerações

finais

............................................

B

ickersteth cita Griesbach, quando afirma que “tão numerosos e claros são os argumentos e testemunhos das Escrituras em favor da Deidade de Cristo que não se pode imaginar como, diante da admissão da autoridade divina das Escrituras e mediante o respeito a regras justas de interpretação, essa doutrina possa ser questionada por alguém”. Newman (1890a) cogita que a única explicação plausível para a disseminação tão rápida das ideias arianas tenha se devido ao status do qual as Escrituras gozavam na Antiguidade tardia. Segundo ele, a Bíblia era vista mais como um depositário dos ensinamentos dos profetas e apóstolos do que como um veículo de ensino. Por essa mesma razão, Newman (1890a, p. 17-18) sugere que a principal motivação para a disseminação das ideias arianas foi a tendência judaizante das igrejas sob a influência de Antioquia, especialmente na Frígia, Galácia, Capadócia e Paflagônia. É possível que, se tendências judaizantes retornarem ao seio da Igreja cristã, experimentemos as mesmas pressões para negar a divindade de Cristo e a natureza pessoal do Espírito Santo. Como vimos nos capítulos anteriores, inúmeras foram as

138 | Tentaram a Deus no Seu coração causas para a ascensão e a disseminação do antitrinitarianismo: a assim-chamada disciplina arcani que impedia que os cristãos comuns discutissem abertamente os assuntos mais profundos das Escrituras, o status secundário ao qual a Bíblia foi relegada (principalmente no final do terceiro e início do quarto século), o estilo de debate teológico que era geralmente imposto pelos hereges e que dependia principalmente de estratégias derivadas do movimento da segunda sofística e de estudos particulares nas casas dos menos avisados, o apelo específico às camadas menos esclarecidas da população cristã e, finalmente, o forte teor judaizante da pregação ariana. O mecanismo de disseminação do arianismo partiu de uma metodologia que lhe conquistou algum sucesso no seio do Cristianismo primitivo. Ário começou lançando suas indagações para debate público, e formou um séquito de seguidores a partir das pessoas teologicamente despreparadas que conseguiu convencer e a quem treinou para repetir seus argumentos. Não hesitou em se associar tanto a judeus quanto a pagãos a fim de se opor aos ensinamentos da Igreja. Gregório de Nazianzo (Oratio 1.135; 2.79) menciona ainda outro elemento presente na estratégia de Ário e seus seguidores: a contínua desestabilização da ordem e da hierarquia da Igreja. Os ataques eram feitos, portanto, à doutrina e aos pastores da Igreja. Dessa forma, como cogita Newman (1890a, p. 145), a doutrina sistemática da Trindade pode ser considerada como a sombra projetada para a contemplação do intelecto, do Objeto

| 139 real expresso nas Escrituras. Trata-se de uma representação econômica e, portanto, imperfeita, que envolve mistérios aparentes, transmitidos pelos apóstolos ao coração do crente, que foram mantidos sigilosos na infância do Cristianismo, quando a fé e a obediência eram vigorosas, mas cuja exposição se tornou necessária quando a razão se tornou um ídolo para aqueles que careciam de espiritualidade. Considerações Finais

Pode nos parecer estranho que os cristãos primitivos hesitassem tanto em discorrer acerca de uma doutrina tão importante. No entanto, na antiga mentalidade oriental tudo o que produzia reverência era mantido a uma distância segura das prossecuções mundanas. Por essa mesma razão, os judeus antigos evitaram, durante tanto tempo, pronunciar o nome de Deus que, eventualmente, vieram a se esquecer dele. Assim, devida instrução nos temas mais profundos das Escrituras ficava reservada àqueles que já haviam sido batizados. Essa estratégia se tornou excessivamente onerosa à Igreja do século IV. A história mostra, assim, que, para evitar outra crise antitrinitariana, alguns cuidados precisam ser tomados, o primeiro dos quais seria conceder instrução adequada àqueles que se unem à Igreja por intermédio do batismo. Em segundo lugar, é necessário privilegiar as Escrituras como base para o ensino das doutrinas cristãs. Em terceiro lugar, precisamos desencorajar uma imitação excessiva das antigas práticas judaicas. O judaísmo não é a mesma coisa que o Cristianismo, e temo que os contínuos ataques à doutrina da divindade de Cristo e do

140 | Tentaram a Deus no Seu coração Espírito Santo, em nossa Igreja, tenham como agenda secreta o desejo de nos tornar mais semelhantes aos judeus. Os adventistas do sétimo dia já guardam o sábado e seguem algumas das leis dietéticas abraçadas também pelos judeus. Isso pode sugerir a alguns que temos uma ligação mais forte e mais intrínseca com o judaísmo do que ocorre de fato. Por isso, existe, em diversos níveis da Igreja, um verdadeiro encantamento com as tradições judaicas. Não se trata de ignorarmos a rica herança judaica que nos foi passada por meio da Bíblia Hebraica. Só precisamos ter o cuidado de não misturar as coisas. Não deve haver compartilhamento de identidades. Os adventistas não são judeus, embora os admiremos e os respeitemos. Nós nunca seremos judeus porque jamais estaremos dispostos a abrir mão de nossa fé inabalável na divindade de nosso Senhor e Salvador. De qualquer forma, faz sentido recordar a admoestação dada pelo apóstolo Paulo à Igreja primitiva: “E até importa que haja entre vós heresias, para que os que são sinceros se manifestem entre vós” (1 Co 11:19, ARC).

Referências

............................................

AGUIAR, Adenilton Tavares de. Passagem do tempo e desconstrução de identidade: um diálogo entre Virginia Woolf, Lispector e o Qoheleth. ����������������������������������� Revista Formadores: Vivências e Estudos, Cachoeira, v. 2, n. 2, p. 327-337, 2008. BEDALE, S. The meaning of kephalê in the Pauline epistles. Journal of Theological Studies, v. 5, p. 211-215, 1954. BIBLE RESEARCH. The Johannine comma: 1 Jo 5:7-8. 2009. Disponível em: www.bible-researcher.com/comma.html. Acesso em: 10 dez 2009. BICKERSTETH, Edward Henry. The Trinity: the Classical study on Biblical Trinitarianism. Grand Rapids: Kregel, 2000 [1892]. BULTMAN, R. Kerygma of the Hellenistic church and the sacraments. 1951. BURNAP, George W. Principal passages of the Scriptures which relate to the doctrine of the Trinity. Boston: James Monroe, 1845. CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CONYBEARE, Frederick C. The history of New Testament criticism. Whitefish, MT: Kessinger, 2007 [1910].

142 | Tentaram a Deus no Seu coração GRUDEM, Wayne. Systematic theology: an introduction to Biblical doctrine. Grand Rapids: Zondervan, 1994. GWATKIN, Henry Melvill. Studies of Arianism: chiefly referring to the character and chronology of the reaction which followed the Council of Nicaea. 2. ed. Cambridge: Deighton Bell & Co., 1900. HOOKER, M. D. Authority on her head: an examination of 1 Co 11:10. New Testament Studies, n. 10, p. 410-416, 1964. JAMIESON, Robert; FAUSSET, A. R. BROWN, David. The commentary critical and explanatory on the whole Bible. 1871. Disponível em: www.biblestudytools.com/commentaries/ jamieson-fausset-brown. Acesso em: 10 dez 2009. JERVIS, L. Ann. But I want to know: Paul’s midrashic intertextual response to the Corinthian worshipers (1 Co 11:2-16). Journal of Biblical Literature, n. 112, p. 231-246, 1993. KAPSALIS, Maria-Fotini Polidodis. Image as authority in the writings of John Chrysostom. 2001. 228 f. Tese de Doutorado. Department of Theology of the Toronto School of Theology. 2001. KENNICOTT, Mark. An honest look at Matthew 28:19: a call to Biblical authenticity. 2004. Disponível em: www.focus-search. com/shc/mat2819.html. Acesso em: 12 dez 2009. MAIMBOURG, M. History of Arianism. Londres: W. Roberts, 1728. 2 v. NEWMAN, John Henry C. The Arians of the fourth century. 6. ed. Londres: Longmans, Green & Co., 1890a. __________ (Trad.). Select treatises of St. Athanasius in controversy with the Arians. Londres: Longmans, Green & Co., 1890b.

| 143 NICHOL, Francis D. (Ed.). Comentario biblico adventista del septimo dia. Buenos Aires: Associación Casa Editora Sudamericana, 1996. Referências

PALMER, William. Origines liturgicae: antiquities of the English ritual. Londres: BiblioBazaar, 2008 [1845]. PAROSCHI, Wilson. Crítica textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993. PENTON, Glen. Shem. 2009. Disponível em: http://bethabraham.org/shem.html. Acesso em: 10 dez 2009. PFEIL, Ioannes Gebhardus. Disputatio theologica: exhibens vindicias potiorum Christi testimoniorum quibus superioritatem Patris affirmare videtur contra neo arrianos et imprimis Thomam Chubbium. Magdeburg: Io. Henrici Grunert, 1741. ROBERTSON, A. T. Word pictures of the New Testament. Broadman, 1960. RONELL, Avita. Stupidity. Champaign, ILL: University of Illinois Press, 2003. SILVA, Demóstenes N. Perguntas e respostas sobre a Trindade. Série Perguntas e Respostas. Cachoeira, BA: CEPLIB, 2009. TAYLOR, Abraham. The true Scripture doctrine of the holy and ever-blessed Trinity, stated and defended in opposition to the Arian scheme. Londres: Bible & Crown, 1727. TOYNBEE, Arnold J. A study of history. Oxford: Oxford University Press, 1961. WEINGREEN, J. A practical grammar for Classical Hebrew. 2. ed. Oxford: Clarendon, 1959. WHIDDEN, Woodrow; MOON, Jerry; REEVE, John W. A

144 | Tentaram a Deus no Seu coração Trindade: como entender os mistérios da pessoa de Deus na Bíblia e na história do Cristianismo. 2. ed. Tatuí, SP: CPB, 2006. WHITBY, Daniel. Tractatus de vera Christi deitate: adversus Arii et socini haereses. Ann Arbor, MICH: UMI, 1999 [1691].

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.