Tentativa Impossível - Anotação a Acórdão do STJ português

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P. Saragoça da Matta

Tentativa Impossível Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Janeiro de 19981

I) Intróito O Acórdão que nos é dado anotar apresenta como objecto problemático a punibilidade da tentativa impossível. Cabe referir desde já o sentido da jurisprudência fixada pelo STJ, para que depois se proceda à respectiva análise por confronto com os entendimentos doutrinais sobre a mesma questão. Assim que tal alta instância tenha sustentado e feito sumariar o seguinte: “a inidoneidade do meio

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pode ser absoluta ou relativa. A primeira existirá quando o meio for, por natureza, inapto para produzir o resultado. A segunda verifica-se quando, sendo o meio em si mesmo, idóneo, ou apto, se torna inapto para produzir o resultado. Ao exigir-se, no nº 3 do artº 23º do CP, que a inaptidão do meio seja manifesta, para que a tentativa não seja punível, tem-se em vista a inidoneidade absoluta”. Da matéria fáctica dada como provada nos autos que deram origem ao Acórdão em análise, e com o propósito específico de aferir do acerto do decidido no estrito âmbito da punibilidade da tentativa impossível, selecciona-se o seguinte: -

o agente, pelas 14:00 horas do dia 4 de Janeiro de 1997, quebrou um vidro de um janela de guilhotina, correu os fechos que cerravam a janela e levantou a parte inferior da mesma, tudo com o propósito de se introduzir no interior da residência;

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o agente, quando levantava a janela, foi surpreendido por um dos habitantes da residência, tendo desistido dos seus intentos;

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sucede que por dentro da janela cujo vidro o agente havia partido e que tinha levantado, se encontravam grades com a mesma configuração da janela (i.e., cuja “malha” tinha forma e dimensões iguais às dos caixilhos das janelas), de modo a não serem notadas do exterior e a impedirem a entrada no interior da residência de quem quer, do que o agente só se apercebeu após ter subido a parte de baixo da janela, concomitantemente com o momento em que foi surpreendido por terceiro.

O Tribunal de 1ª Instância absolveu o agente ponderando que o caso consubstanciava uma situação de tentativa não punível por inidoneidade absoluta do meio utilizado. E argumentava em abono da

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conclusão retirada com o facto de as ditas grades não permitirem a introdução do arguido na residência, sendo certo que este não era portador de qualquer instrumento que lhe facultasse ultrapassar o obstáculo – i.e., estar-se-ia “perante um caso de inidoneidade absoluta (…) pois segundo 1

In Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, Ano VI – 1998, Tomo I, pp. 151-153.

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as regras da experiência comum e perante o circunstancialismo que rodeou a infracção, nomeadamente a hora, que tornava difícil o acesso a meios sofisticados (…) é manifesto que o arguido não conseguiria realizar os seus intentos”2. Em sentido oposto se posicionou o Ministério Público, quando na motivação do recurso interposto sustentou, nas palavras do próprio Acórdão, que “a impossibilidade de o arguido conseguir a concretização do seu desiderato não lhe era manifesta, nem para si, nem para a generalidade das pessoas, designadamente no momento em que formulou o desejo de levar por diante o seu acto”. Termos em que se estaria perante um caso de tentativa punível. Perante tal factualidade e linhas argumentativas, o Tribunal a quo entendeu que “o arguido, quebrando o

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vidro da janela e correndo os fechos que a cerravam e levantando a parte inferior da mesma, que era de guilhotina (als. a), b) e c) supra), usou meio idóneo ou apto para consumar o tipo de crime que se propunha levar a cabo; porém, tal meio tornou-se depois inapto dadas as circunstâncias; é uma inidoneidade superveniente que se integra no conceito de inidoneidade, relativa e não absoluta pelo que não é manifesta. Por outro lado, com a sua conduta denotou perigosidade em relação ao bem jurídico protegido pela Ordem Jurídica, pelo que merece ser punido.”3 Daí ter concluído estar em face de tentativa impossível punível. Mas para concluir nesse sentido, e estribando-se na autoridade de Cavaleiro de Ferreira, o STJ partiu do seguinte entendimento de inaptidão do meio empregado, prevista no artigo 23º nº 3 do CP: “Há inidoneidade absoluta do meio quando este é por sua natureza inapto para produzir o resultado; há inidoneidade relativa se o meio em si mesmo idóneo ou apto se

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torna inapto pela maneira ou circunstâncias em que foi empregado. O Código Penal, nesta via, indica a inidoneidade absoluta qualificando-a como manifesta, enquanto a inidoneidade relativa não manifesta já não afecta a inidoneidade dos actos de execução essenciais ao facto ilícito na tentativa.”4

II) Problematização A questão da punibilidade da tentativa impossível surge, no plano da dogmática penal, como uma das questões que reputamos de maior interesse e complexidade. É questão inscrita no capítulo do íter criminis, ou, como também é conhecido, dos graus de perfeição do facto, sendo alvo de dedicada atenção dos penalistas quer no que respeita à fundamentação filosófica e dogmática da punição da

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tentativa, quer no que concerne ao enquadramento e medida prática da reacção criminal devida.

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Idem, p. 152. Idem, p. 153. 4 Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, vol. I, 1985, p. 272, citado no aresto em análise a p. 152. 3

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Antes de mais, a questão que se põe é a de saber se a fundamentação da punição da tentativa se encontra no dever censurar a intenção criminosa do agente ou no reagir contra o atentado ao bem jurídico protegido pelo tipo5/6. Paralelamente, discutem-se as características essenciais da tentativa, como tal se apontando, genericamente, a delimitação objectiva e subjectiva da tentativa pela exigência de dolo e início de execução, o que permite distinguir a tentativa dos actos preparatórios, a montante, e do crime consumado, a jusante. Especificamente no que concerne à punibilidade da tentativa impossível, surgiram historicamente duas tendências, uma de pendor objectivo – de que foi paladino Feuerbach – e que negava a punibilidade da tentativa impossível, e outra de pendor subjectivo – encabeçada por Tittmann – que aceitava em

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certos casos tal punibilidade. Na esteira do mesmo autor, podemos dizer que o fundamento para a punibilidade da tentativa deve buscar-se na conduta antijurídica do agente enquanto causadora de efeitos nocivos na colectividade, o que constitui adesão à chamada teoria individual-objectiva, ou teoria da impressão7. No entanto, não cabe no âmbito restrito do presente escrito apresentar esquematicamente toda a dogmática relativa à tentativa, mas apenas apreciar da conformidade do decidido no aresto em análise com o entendimento dogmático actual sobre a punibilidade da tentativa impossível, razão pela qual se passa topicamente à analise esperada.

Entende-se estar-se perante uma tentativa impossível, segundo a formulação de Jescheck, quando a acção dirigida à realização de um tipo penal não pode chegar à consumação nas circunstâncias

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respectivas, seja por razões fácticas seja por razões jurídicas. O fundamento que aqui se perfilha para a punibilidade da tentativa impossível é, simultaneamente, a quebra que a actuação do agente causa no sentimento de segurança e na paz da comunidade jurídica, e a necessidade de infirmação da vontade contrária ao Direito8. Tal entendimento não conflitua com o desenho legal instituído no artigo 23º do CP, sendo certo também que nessa disposição normativa, encontra igualmente respaldo a tipologia 5

Assim também Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª Edición, Traducción de José Luis Manzanares Samaniego, Editorial Comares, Granada, 1993, p. 463, se bem que indicando a questão de um ponto de vista meramente histórico. 6 Perfilam-se, quanto à ratio da punição da tentativa, três posições doutrinais: a) a chamada teoria objectiva, para a qual a punibilidade da tentativa encontra-se exclusivamente no facto de a conduta do agente colocar em perigo o bem jurídico tutelado pelo tipo; b) a teoria subjectiva, segundo a qual a justificação legal para tal punição é a vontade ilícita (antijurídica) actuada pelo agente; e c) a teoria subjectiva-objectiva, que como teoria eclética que é, parte da construção própria da teoria subjectiva, e combina-a com elementos objectivos. No dizer de Jescheck, op. Cit., p. 465, a teoria eclética entende ser “fundamento da punição da tentativa a vontade contrária a uma norma de conduta, mas só se afirma o merecimento de pena da exteriorização da vontade dirigida ao facto quando com ela possa perturbar-se profundamente a confiança da colectividade na vigência do ordenamento jurídico, assim como o sentimento de segurança jurídica, e, consequentemente, resultar prejudicada a paz jurídica”. 7 Mais precisamente, teoria da impressão do facto sobre a colectividade, segundo a qual só merece pena a manifestação de vontade que possa influir na confiança da colectividade na vigência do Direito. Daí que modernamente se funde a punibilidade da tentativa na necessidade de manutenção da ordem jurídica. Igual sentido se encontra na formulação de Jescheck, op. Cit., p. 466 e de Jakobs, … , p. 590, segundo o qual se afere da “manifestação de uma infracção à norma num comportamento típico”. 8 Solução aliás consentânea com a relevância dada à prevenção geral enquanto fim do Direito Penal.

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dogmática sobre casos de impossibilidade da tentativa, a saber, situações de inidoneidade do objecto, do sujeito e do meio9/10. O caso que é decidido no aresto em apreço 11 constitui precisamente um dos exemplos scholæ de tentativa impossível utilizado para justificar o entendimento atrás apresentado àcerca do fundamento da punição de tais situações, pois o agente mostrou-se capaz de realizar o facto, e a ausência do resultado pode dever-se apenas ao acaso. Como escreve Jescheck, “a confiança da colectividade na vigência do ordenamento jurídico, como um dos poderes que configuram objectivamente a vida social, perder-seia se ficasse impune quem seriamente se propôs realizar um crime e deu início à respectiva execução”. Por isso bem andou o STJ ao infirmar a decisão anteriormente proferida pelo Tribunal de

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Comarca, pois que o raciocínio que tal Tribunal utilizou na apreciação da matéria fáctica se encontrava claramente viciado. É que não cabe apreciar do facto de o arguido ser ou não ser portador de “qualquer instrumento que lhe facultasse ultrapassar o dito obstáculo” sem antes analisar sobre a notoriedade do obstáculo para o agente e para a generalidade das pessoas. Como resulta patente, o Tribunal de Comarca inverteu a ordem lógica do raciocínio subjacente à punição da tentativa impossível, assim chegando a uma conclusão errónea e, diga-se, injusta em face dos princípios e fins do Direito Penal, em geral, e da reacção contra tentativas inidóneas, em particular. Mas o que acaba de se dizer não significa integral adesão ao caminho seguido pelo STJ para inverter o decidido, optando pela condenação do agente. Bem ao invés, também a construção do STJ nos merece reparos, como se passa a esclarecer.

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Como ensina a doutrina, “a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime. Assim, a inidoneidade do meio ou a carência do objecto, salvo nos casos em que são manifestas, não constituem obstáculo à

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A doutrina tem encontrado diversos exemplos para cada um destes “tipos” de inidoneidade, que ilustrativamente se passam a indicar: inidoneidade do objecto por razões fácticas: propósito de assassinar um cadáver; inidoneidade do objecto por razões jurídicas: tentativa de burla quando a vantagem patrimonial tem suporte legal, ou tentativa de furto com ignorância do consentimento do titular da coisa; inidoneidade do meio por razões fácticas: tentativa de provocar um aborto com aspirinas; inidoneidade do sujeito: crime específico próprio de funcionário público, por quem foi provido em tal função por acto viciado de nulidade. 10 Poderá, numa primeira abordagem, pensar-se que o 23º nº 3 não quadra às situações de inidoneidade do sujeito, uma vez que nele apenas se faz referência a “inaptidão do meio empregado” e a “inexistência do objecto essencial à consumação do crime”. Crê-se, porém, que poderá subsumir-se a situação de inidoneidade do sujeito a esta segunda situação legalmente prevista, pois que o objecto essencial à consumação de um crime, crime este que exija determinadas circunstâncias ou qualidades especiais do agente, só existirá verdadeiramente se o agente tiver tais circunstâncias ou possuir tais qualidades, sob pena de nem sequer estar a ser posto em perigo o bem jurídico que o tipo pretende tutelar, e com ele a incriminação alargada da respectiva tentativa. I.e., nesse caso não estaria o agente a por em crise a confiança da colectividade na vigência do ordenamento jurídico, pois não poderia, sem possuir tais especiais elementos da autoria, propor-se seriamente a realizar o crime em causa. Não obstante, não sendo este o momento nem o lugar para o desenvolvimento de tal linha argumentativa, deixa-se apenas este breve apontamento, cientes da corte de razões que se podem levantar contra o entendimento propugnado e inclusivamente de uma não definitividade e não generalização absoluta de tal entendimento em face de considerações tópicas que podem advir da ponderação da natureza específica dos chamados crimes específicos e da aceitação de conclusões próprias do âmbito da comparticipação nessa categoria de crimes. 11 Um facto que não chega a poder consumar-se porque o agente não reparou num obstáculo inultrapassável.

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existência da tentativa”12. Logo, para proceder a uma correcta interpretação e aplicação do disposto no artigo 23º nº 3 do CP, cabe fixar o correcto sentido normativo de três realidades distintas: a) a inaptidão do meio empregado; b) a inexistência do objecto essencial à consumação do crime; c) o facto de qualquer das circunstâncias referidas em a) e b) ser ou não manifesta. Assim, para descobrir o sentido com que a norma do 23º nº 3 CP deve valer, não basta discutir sobre a inaptidão do meio ou sobre a existência do objecto, sendo imprescindível conectar qualquer dessas discussões com a descoberta do sentido da expressão “manifesta”. Para tal propósito, que deve ser contemporâneo, senão prévio, ao desenvolvimento da outra análise, releva constatar que o anteprojecto do código não referia “manifesta” mas “aparente”. I.e., ao exigir a lei que a inidoneidade

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do meio ou a inexistência do objecto sejam “manifestas” (para que a tentativa não seja punível), o que se está a exigir é que tal circunstancialismo seja patente não na restrita perspectiva do agente, mas que o seja objectivamente, segundo as regras da experiência comum para a generalidade das pessoas 13. Ora, partindo das premissas dadas, não merece encómio o aresto em apreço quando remete, como justificação para o decidido, para a posição doutrinal que distingue a inidoneidade em absoluta ou relativa; e não o merece pois que tal distinção tem em vista permitir ao intérprete a compreensão do artigo 23º nº 3 do CP quando refere a “inaptidão do meio empregado”, e não quando utiliza a expressão “manifesta”. Ademais, não se pode aceitar que o caso vertente consubstancie uma situação em que o “meio” fosse considerado em abstracto apto mas deixasse de o ser em face de particulares circunstâncias. Ao invés, e sendo a realidade ontológica uma e única, o meio sempre foi, em rigor, inapto 14; questão distinta é

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saber se a inaptidão do meio era objectivamente manifesta, ou não, para o agente e para a generalidade das pessoas. Dito de outro modo, quando Cavaleiro de Ferreira distinguia a inidoneidade absoluta da relativa, dizendo que naquela o meio “é por sua natureza inapto para produzir o resultado”, enquanto que nesta “o meio em si mesmo idóneo ou apto se torna inapto pela maneira ou nas circunstâncias em que foi empregado”, estava a precisar o sentido com que deve valer a realidade atrás indicada sob a alínea a), i.e., quando e como é que estamos perante situações em que o meio empregado é apto ou inapto. E por isso a distinção entre inidoneidade absoluta e relativa se funda num critério (idoneidade do meio em relação à situação concreta), que não merece, enquanto tal, qualquer censura; todavia, não se compreende o que

possa o STJ ter retirado de tal critério ou distinção em ordem à resolução da situação que se lhe

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M. Maia Gonçalves, Código Penal Português – anotado e comentado e legislação complementar, 13ª Ed., Almedina, Coimbra, 1999, p. 136. 13 Há mesmo quem faça apelo às regras da causalidade adequada, o que não se afirma no texto por se entender que tal afirmação pode mais confundir do que esclarecer, por trazer para o seio da questão em análise uma outra por certo ainda mais polémica. 14 Pois as grades que impediam o acesso do agente, desprovido de especiais instrumentos destinados à sua remoção, sempre estiveram atrás da estrutura das janelas, invisíveis aos transeuntes. E sempre o estiveram com ou sem conhecimento disso por parte do agente, e com ou sem tentativa por si levada a cabo.

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colocava, uma vez que a questão que se punha era a de saber se a inidoneidade do meio utilizado pelo agente era ou não manifesta. Correctamente, segundo se crê, perspectivou o Ministério Público a questão, quando na sua motivação de recurso assentou a discussão essencialmente no facto de a inaptidão do meio usado ser ou não manifesta para o agente e para a generalidade das pessoas, “no momento em que (o agente) formulou o desejo de levar por diante o seu acto”. Em suma, não se pode aderir à fundamentação dada pelo STJ nem ao raciocínio por si utilizado quando escreve: “Dos factos acabados de destacar, resulta que o arguido (…) usou meio idóneo ou apto para consumar o tipo de crime que se propunha levar a cabo; porém, tal meio tornou-se depois inapto

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dadas as circunstâncias; é uma inidoneidade superveniente que se integra no conceito de inidoneidade, relativa e não absoluta pelo que não é manifesta”15.

Mas a decisão em apreço fundamenta-se ainda no facto de o agente “com a sua conduta (ter denotado) perigosidade em relação ao bem jurídico protegido pela Ordem Jurídica, pelo que merece ser punido”. Ora, também este inciso de fundamentação merece análise. Como ensina Jescheck, quer a tentativa possível quer a tentativa impossível encontram um primeiro fundamento no dano que causam à paz jurídica da colectividade; sucede é que na tentativa possível, além desse fundamento, um outro surge: a colocação em perigo do bem jurídico tutelado pelo tipo. Assim que entre tentativa possível e impossível haja alguns pontos de contacto, os quais emergem na exigência de requisitos legais

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comuns, v.g. a necessidade de o agente ter dado início à execução ( o que no nosso ordenamento resulta da interpretação conjugada dos artigos 22º e 23º do CP ), o que, diz Jescheck, “significa para a tentativa

impossível que a acção há-de considerar-se no campo da delimitação como se fosse idónea”16. Paralelamente, a tentativa deve conter em si um “mínimo de perigosidade”, mínimo esse que faltará, na formulação de Jescheck, “quando o acto, pela natureza do objecto sobre que recai ou o meio com que se realiza, não podia ‘de modo algum’ chegar à consumação e o autor o ignorava por incompreensão extrema”17. Ora, a delimitação deste segundo requisito (mínimo de perigosidade), segundo tal autor, apresenta dois “momentos”, um objectivo e outro subjectivo. A delimitação objectiva permite excluir do âmbito das

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E a adesão é negada não só com base no que ficou dito no texto, mas ainda pelos seguintes motivos: não se aceita o conceito de inidoneidade “superveniente” (conceito de conteúdo dogmático equívoco, que por certo se oporá a inidoneidade originária, como se se tratasse de um vício do negócio jurídico ou de uma situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações, em que às situações originárias se opõem situações verificadas após o início da relação negocial ou obrigacional); não se compreende “trânsito” feito pelos Egrégios Senhores Conselheiros entre inidoneidade

“superveniente” e inidoneidade relativa; não se compreende porquê é que a inidoneidade superveniente, sendo relativa, deixa de ser manifesta, a menos que o conceito de “manifesta” utilizado no aresto em apreço seja diverso do conceito comummente utilizado na doutrina. 16 Jescheck, op. cit., p. 481.

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tentativas puníveis aqueles casos em que não houve colocação do bem jurídico em perigo, nem abstracta nem concretamente. E aqui vem o afastamento radical entre o entendimento correcto e o subjacente ao aresto em análise. É que, como alerta o ilustre professor de Friburgo, “não deve reproduzir-se a este propósito a velha disputa sobre a delimitação entre tentativas absoluta e relativamente inidóneas”, precisamente o (erróneo) caminho percorrido pelo aresto em análise. E erróneo pelo seguinte: é que neste momento de delimitação objectiva, o critério a utilizar deve ser o da colocação em perigo do bem jurídico aos olhos do agente medianamente atento e com conhecimentos médios (agente esse que conhecendo o facto em apreço “não o possa tomar a sério”18), e não o critério utilizado na decisão apreciada, que comete dois “desvios” em relação ao trilho preferível: perde-se a

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analisar da aptidão do meio para a consumação do resultado esquecendo que o meio, de acordo com a realidade, sempre foi inapto; utiliza um conceito de inaptidão superveniente de todo desajustado da realidade e dos ensinamentos da doutrina sobre a questão; confunde os requisitos legais do artigo 23º nº 3, fazendo coincidir inidoneidade absoluta19 do meio com inidoneidade manifesta. Apenas a benefício de rigor, refira-se o segundo momento de delimitação do requisito em apreço ( mínimo de perigosidade), e que é uma delimitação subjectiva, no dizer de Jescheck. Neste momento, como ensina

a doutrina, excluem-se do âmbito das tentativas puníveis os casos em que o agente assentou numa “representação totalmente aberrante das relações causais comummente conhecidas”, pois que constituirá uma situação de “incompreensão extrema” do agente (à luz do critério do agente medianamente atento e com conhecimentos médios), nas palavras do mesmo autor. Ou seja, não constituirá

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incompreensão anormal por parte do agente, e gerará situação de tentativa punível, os casos em que o agente assenta numa “errónea representação da realidade fáctica, mesmo quando o autor podia ter evitado o erro prestando alguma atenção”, mas já se estará em face de tentativa não punível quando o agente só mercê de uma incompreensão extrema se não apercebeu da inidoneidade do meio utilizado ou da inexistência do objecto. Em suma, está-se no caso em apreço perante situação que claramente constitui uma tentativa punível, não só porque o agente desenvolveu actuação que de acordo com o seu plano global levaria à consumação do crime, mas também porque agente não desconhecia a realidade devido a uma anormal incompreensão, antes tendo assente o seu comportamento numa errónea representação da realidade fáctica. Mas não só, pois ainda outro argumento justifica a punição do comportamento descrito no acórdão em análise.

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Como ensina a doutrina, há situações em que o critério geral da teoria perfilhada ( conduta ilícita do agente enquanto causadora de efeitos nocivos na colectividade), merece ser alargado pelo afastamento de

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Jescheck, idem, ibidem. Jescheck, op. cit., pp. 481 e s. 19 Inidoneidade absoluta que se oporá a inidoneidade relativa, e que, como se disse, não só nada tem que ver com o maior ou menor grau de “evidência” da inidoneidade, como é “classificação” que serve apenas para aferir da idoneidade ou não do meio em face da concreta situação real que se depara ao agente (i.e., critério ou classificação que se refere apenas à inaptidão do meio empregado, na linguagem da lei, e que nada tem que ver com o facto de tal idoneidade ou inidoneidade ser ou não manifesta). 18

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um dos seus pressupostos, a saber, a exigência de que o facto cause uma “impressão” que perturbe gravemente o Direito. Na situação vertente, mesmo que a confiança da colectividade no império do Direito não fosse beliscada, ainda assim a tentativa era digna de punição do ponto de vista da prevenção geral, pois não se pode deixar impune quem seriamente se propõe a cometer um crime e dá início à respectiva execução, apenas não conseguindo consumá-lo por falta de atenção a um obstáculo que se opõe ao plano gizado. Por muito subjectivista que pareça a posição defendida, não julgamos que outro possa ser o entendimento dogmaticamente mais ajustado à realidade e mais consentâneo com o desenho legal da tentativa impossível constante do artigo 23º nº 3 do CP. Solução inversa, premiaria todos os agentes de crimes que não se chegam a consumar pelo simples facto de ter havido

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uma desatenção da sua parte quanto à existência de um obstáculo ao curso normal do plano criminoso, o que se julga ser completamente avesso ao escopo da norma referida.

III) Conclusão Em face de todo o exposto, cabe afirmar que a decisão que se analisa merece concordância no que concerne à condenação do arguido pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, maiores elogios merecendo por ter invertido uma totalmente desadequada decisão do Tribunal de Comarca. Não obstante, já não se acompanha nenhum dos momentos da fundamentação do aresto em apreço, quer porque se entende ser dogmaticamente incorrecta e artificiosa a construção feita, quer porque se considera padecer de uma errónea interpretação da Lei.

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Assim, em face do que ficou dito, cabe alinhar as críticas a tal sumário, o que se faz pelo modo seguinte: -

ontologicamente o arguido NÃO usou meio idóneo ou apto para consumar o tipo de crime que se propunha levar a cabo;

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o meio não era, prima facie, apto, tendo-se depois tornado inapto, “mercê das circunstâncias”;

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não colhe, pelo menos no caso vertente, o “conceito” de “inidoneidade superveniente”;

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não se encontra conexão dogmática entre inidoneidade superveniente e inidoneidade relativa, muito menos se encontrando tal conexão entre inidoneidade absoluta e manifesta;

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o artigo 23º nº 3, ao exigir que a inidoneidade do meio seja “manifesta”, não tem em vista a inidoneidade absoluta, sendo, além do mais, certo que se trata de categorização que parte de critérios distintos e com propósitos diversos.

30 Lisboa, 7 de Janeiro de 2000

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