TENTE, C. (2013) - Soluções defensivas das comunidades rurais no Alto Mondego entre os séculos IX e X”. FERNANDES, Isabel Cristina (Ed.) - II Simpósio Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (séculos VI a XVI), Lisboa, p. 43-49.

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Soluções defensivas das comunidades rurais no Alto Mondego entre os séculos IX e X CATARINA TENTE*

0. Introdução

A

BACIA do alto Mondego ocupa os actuais concelhos de Manteigas, da Guarda, de Celorico da Beira, de Fornos de Algodres, de Gouveia e de Mangualde (Fig.1). A definição deste território como área de estudo liga-se ao facto desta região se integrar simultaneamente na área viseense (ou na periferia da mesma) e ter sido uma terra de fronteira e de passagem durante a Alta Idade Média. O rio Mondego e a Serra da Estrela são os elementos geográficos que organizam e marcam o território. Aqui a altitude varia entre os 350 m e os 1900 m. Geologicamente a região é caracterizada pela presença dos granitos, dominantes, e dos xistos que se encontram ou expostos ou por debaixo de finas coberturas de solos ácidos, que aliás dificultam a preservação da matéria orgânica em contexto arqueológico. A investigação palinológica da Serra da Estrela (Charco da Candeeira e Lagoa Comprida) permitiu reconstituir-se um modelo bioclimático desde do Pleistocénico até à actualidade. E acordo com este modelo há uma evidente e acrescida desflorestação durante a Alta Idade Média (JANSSEN, WOLDRINGH, 1981; VAN DER KNAAP, VAN LEEUNWEN, 1995), facto que testemunha a exploração económica dos andares superior e médio da serra durante este período histórico.

Fig. 1 – Mapa de localização dos sítios arqueológicos mencionados no texto: 1 – Penedo dos Mouros; 2 – S. Gens; 3 – Soida.

Durante a Alta Idade Média esta região assumia-se como um espaço rural, para o qual não se dispõe de documentos até ao século XII, altura em que o espaço já se encontra politicamente estável e integra-

do no recém-formado reino de Portugal. Assim a investigação histórica tem assentado fundamentalmente na arqueologia. A investigação foi apoiada através de vários pequenos projectos financiados pelas autarquias de Gouveia e de Celorico da Beira. Foi, todavia, o projecto intitulado O Alto Mondego: território de fronteira entre Cristãos e Muçulmanos (PTDC/HAH/69806/2006), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, que permitiu o desenvolvimentos de várias campanhas de escavação em diversos sítios arqueológicos alto medievais. Em três destes foram identificadas estruturas defensivas que são o objecto de análise do presente artigo. 1. A evidência arqueológica Entre 2006 e 2010 foram realizadas várias campanhas de escavação arqueológica nos sítios da Soida, S. Gens e Penedo dos Mouros. A Soida, localiza-se no limite entre o concelho de Celorico da Beira e da Guarda. Trata-se de um sítio de montanha (apresenta cerca de 1000 m de altitude) que ocupa um dos últimos montes da vertente noroeste da Serra da Estrela. Entre 2006 e 2007 efectuaram-se ali duas campanhas de escavação dirigidas a seis sectores (Fig. 2). Em apenas três destes se identificaram vestígios de estruturas e contextos arqueológicos, normalmente de carácter doméstico (TENTE, 2011a). Ainda que o espaço intervencionado seja muito limitado face a área interna do povoado, foi possível reconhecer quer o perímetro do povoado quer a arquitectura da estrutura que o circundava e limitava. Esta estrutura (Fig. 3) era constituída por uma base larga (2,20 m a 2,70 m de largura) que se estruturava com dois paramentos de pedra não aparelhada, com um preenchimento em terra (sector II) ou em terra misturada com pedra miúda (sector III). Esta estrutura pétrea era completada por uma paliçada da qual se recuperaram vários restos carbonizados. O espaço cercado encerra uma área de grande dimensão que, todavia, é fundamentalmente constituída por terrenos de inclinação marcada, estando as unidades domésticas confinadas aos escassos espaços aplanados ali existentes Em 2008 e 2011 efectuaram-se igualmente campanhas de escavação no sítio arqueológico de S. Gens (Celorico da Beira). Os dados da intervenção de 2011 não estão ainda estudados pelo que só se apresenta os resultados da campanha de 2008. S. Gens localiza-se no vale definido pela confluência da Ribeira dos Tamanhos com o rio do Mondego. A sua implantação

Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (Séculos VI a XVI) – II Simpósio Internacional sobre Castelos. Lisboa, Edições Colibri, 2013, pp.

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não evidencia qualquer estratégia defensiva, pelo contrário, a sua estreita relação com o vale documenta que foi dada mais atenção à proximidade a este vale, que é particularmente produtivo do ponto de vista agrário, principalmente se o compararmos com os demais existentes na região.

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mentada por uma paliçada de madeira, cujos restos carbonizados foram igualmente identificados no decurso da escavação.

Fig. 4 – Levantamento topográfico do povoado de S. Gens: cinza escuro – troços de muralha visíveis; Núcleo I – núcleo I da necrópole constituído por 7 sepulturas escavadas na rocha.

Fig. 2 – Levantamento topográfico do povoado da Soida com sinalização dos sectores intervencionados.

Fig. 3 – Povoado da Soida, escavação do sector II onde se pode observar a técnica de construção da base pétrea/terra da estrutura defensiva.

Dentro do vale escolheu-se uma localização próxima de tors graníticos ali existentes. Estes são aproveitados para enquadrar a entrada do povoado, desempenhando o papel de torre roqueira de vigia. A única entrada estava virada ao vale da ribeira, exactamente do lado contrário onde se localiza a necrópole rupestre de mais de 50 sepulturas ali existente. O povoado, com planta de tendência ovalada (Fig. 4), estava delimitado por uma muralha construída em pedra não aparelhada empilhada sem qualquer material ligante. Esta base pétrea não terá ultrapassado um metro ou um metro e meio de altura, sendo comple-

O Penedo dos Mouros (Gouveia) foi o primeiro sítio arqueológico (Fig. 5) alto medieval intervencionado pela signatária. As primeiras escavações foram feitas no âmbito de um projecto de PNTA intitulado Plano Intervenção Arqueológica no concelho de Gouveia, que decorreu entre 1998 e 2001. A primeira campanha efectuada neste sítio realizou-se em 1999 em co-responsabilidade com Sandra Lourenço e Ana Rita Martins e dirigiu-se à área de acesso ao topo do tor granítico central que domina o sítio arqueológico (sector I). Sucederam-se mais duas campanhas em 200 e 2001 neste sector (Fig. 6). Foi, todavia o projecto financiado pela FCT que possibilitou a continuação das escavações e o estudo sistemático do espólio ali recolhido. Entre 2008 e 2010 realizam-se escavações no sector I dando continuidade aos trabalhos que ali haviam sido iniciados. Nesta campanha intervencionou-se igualmente o abrigo de pastor moderno/contemporâneo ali existente, que aproveitava um abrigo natural sobre rocha localizado na parede Nordeste do tor. O sítio é constituído por uma cerca/muralha de base pétrea de planta irregular que aproveita uma série de tors graníticos que integraram a estrutura por se constituírem como barreiras naturais. Na parte sudeste existe um grande tor que chega a atingir os 21m de altura no lado Este. Durante as escavações recuperaram-se enormes quantidades de carvões que resultam da combustão e colapso da super-estrutura de madeira que se encontrava acoplada a este tor. Aquela encaixava em vários entalhes ainda conservados nas paredes do batólito granítico e teria, pelo menos, dois pisos: o de entrada ao nível do solo, que era coberto por madeiramentos que constituíam o chão do piso superior; e um piso intermédio com chão de madeira e coberto, a

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partir do qual se acedia ao topo do tor. Na plataforma superior observam-se esculpidos na rocha buracos de poste, escadas e uma sepultura antropomórfica (TENTE, 2010). O sítio possui ainda uma área mais aplanada que se encontra a Norte e a Noroeste do tor, que se encontra circundada pela estrutura de amuralhada já referida. No lado Este foi ainda possível observar uma segunda linha de pedras que define uma área ovalada de menor dimensão (Fig. 6).

Fig. 5 – Vista Nordeste/Sudoeste do tor central do Penedo dos Mouros.

Fig. 6 – Levantamento topográfico do Penedo dos Mouros: I e II – sectores intervencionados; cinza escuro – troços da muralha visíveis; cinza claro - parede contemporânea do abrigo de pastor; A – sepultura escavada na rocha localizada no topo do tor.

O espaço controlado directamente pelo Penedo dos Mouros é o pequeno vale da Ribeira de Boco, um dos afluentes da margem esquerda do Mondego, que constitui uma área bem irrigada e com potencial agrícola. Não obstante a área do vale não ser extensa as condições que apresenta para a prática agrícola destacam-se, principalmente se se observar a zona

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envolvente que é constituída por terrenos esqueléticos de vertente onde escasseiam as rechãs agricultáveis. Uma vez mais a estratégia de selecção do local para implementação do povoado parece mais ligada ao vale e ao seu aproveitamento económico, garantindo assim o seu controlo e a facilidade de acesso. 3. Discussão A escavação destes três sítios evidenciou a existência de estruturas defensivas, que assumem soluções diversas. Uma das temáticas mais debatidas sobre o povoamento da Alta Idade Média é precisamente a que se relaciona com a necessidade das populações alto-medievais em encontrarem espaços defensivos. Tal necessidade ter-se-á expressado, em algumas regiões, num movimento ascendente, ou seja, numa subida das populações aos montes reocupando, muitas vezes, antigos espaços castrejos. A imagem que se construiu com base nos relatos de Hidácio é a de que as populações teriam fugido aos ataques dos povos germanos, refugiando-se nos povoados de altura. Essa imagem está hoje muito mais matizada, uma vez que se tem comprovado que, no início da ocupação da Península Ibérica pelos “povos bárbaros”, os ataques não eram generalizados e teriam afectado uma parte reduzida da população. Por outro lado, trabalhos arqueológicos realizados em alguns daqueles povoados de altura têm mostrado que, por vezes, a reocupação daqueles espaços remontariam ao século IV e, portanto, seriam anteriores aos ditos fenómenos de violência bárbara (MARTÍN VISO, 2008). A arqueologia e a leitura das “pizarras” visigodas, bem como uma releitura das fontes escritas, permitiram perceber que se trata de um fenómeno complexo, com várias causas, de expressão temporal diversa, e com um significado socioeconómico diferenciado. Actualmente há a percepção de que este fenómeno que não pode ser visto e interpretado como uma resposta a um mesmo problema, pois resulta de realidades muito distintas e que importa diferenciar e compreender. No Alto Mondego, e em geral nas Beiras, criou-se a ideia, infundada, de que haveria uma reocupação sistemática de castros proto-históricos, e que este seria o típico povoamento da Alta Idade Média. A ideia de grandes castros com ocupação da Idade do Ferro (os denominados “castros lusitanos”) perpetuou-se nas interpretações sobre a ocupação proto-histórica da região beirã, ainda que muitos destes povoados não apresentassem à sua superfície quaisquer materiais arqueológicos que os pudessem integrar indubitavelmente neste período. No entanto, no Alto Mondego, não se conhece até ao momento qualquer castro com uma ocupação pré-romana bem atestada que tenha tido uma reocupação medieval significativa. O único caso até agora devidamente documentado em termos arqueológicos é o Castro de Santiago (Fornos de Algodres), mas trata-se de uma fundação calcolítica e não de um sítio proto-histórico, do mesmo modo que a sua reocupação não ocorre durante a Alta Idade Média mas, muito provavelmen-

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te, na Plena/Baixa Idade Média (HENRIQUES, 1999). São também conhecidas ocupações muito localizadas em outros dois sítios que se podem integrar na categoria de castros, ou seja, de sítios de altura dotados de estruturas defensivas: o Monte Verão (Guarda) e o Castelo (Gouveia). Contudo, em nenhum é clara a sua função e cronologia pré-medieval, nem os vestígios alto-medievais que se conhecem habilitam a considerar que esses locais possam ter sido habitados de forma estável durante um período de tempo considerável. Pelo contrário, os dados disponíveis apontam para ocupações esporádicas, pontuais ou muito localizadas, como parece ser o caso do Castelo, onde dados de superfície apontam para uma ocupação alto-medieval de fraca expressão correlacionada certamente com as três sepulturas escavadas na rocha ali existentes. Os sistemas defensivos construídos na Soida e em S. Gens são muito diferentes destas outras realidades. As estruturas defensivas erigidas, que terão sido construídas eventualmente no século IX ou já no início do Século X, definem recintos que aproveitam os afloramentos e tors graníticos integrando-os quer como base de apoio para “torres” de vigia quer como elementos constituintes da própria cerca. Estes elementos naturais eram interligados por panos de muralha construída em pedra não aparelhada empilhada sem recurso a qualquer material ligante. As plantas que desenham são normalmente muito orgânicas, acompanhando a disposição dos elementos geológicos que as integram. No caso da Soida a planta é irregular e, em S. Gens adquire uma forma ovalada. Em ambos apenas se identificou uma entrada localizada num espaço onde se dispõe de penedos mais elevados que serviriam de base a uma espécie de “torres” de vigia e de controlo da entrada. Em S. Gens, estes tors têm esculpidos vários entalhes que suportavam plataformas semi-aéreas construídas em madeira. A muralha pétrea é normalmente constituída por dois paramentos sendo o seu preenchimento efectuado ou com terra, como no caso do sector II da Soida (Fig. 3), ou com pedra miúda, como documentado no sector III da Soida e em S. Gens (Fig. 7). Estas estruturas não deveriam ultrapassar o metro ou o metro e meio de altura, sendo completada por paliçadas de madeira que se dispunham ou directamente sobre a muralha, como parece ser o caso da Soida, ou sobre numa plataforma anexa pelo lado interior, como se documentou em S. Gens. As madeiras usadas na construção destas paliçadas foram parcialmente recuperadas em escavação em ambos os povoados e a sua análise permitiu a identificação das espécies utilizadas. Todavia, há que ressalvar que é por vezes difícil do ponto de vista do registo arqueológico isolar com total segurança os carvões pertencentes à paliçada dos restantes oriundos de outras estruturas existentes na proximidade da muralha dentro do povoado. Tal ocorre porque os postes que constituíam a paliçada depois de arderem tombaram sobre algumas dessas estruturas, também elas construídas com madeiras e outras matérias vegetais (TENTE, 2010).

Nos gráficos 1 e 2 apresentam-se os resultados da análise antracológica realizada por Paula Queiróz (QUEIRÓZ, 2009b e 2009c), onde se verifica que a árvore mais usada na construção destas estruturas é o carvalho negral (Quercus pyrenaica), seguidas das madeiras de castanheiro (Castanea sativa) e de azinheira (Quercus rotundifolia).´ Indeterminado Giesta (Genista florida tipo) Cornogodinho (Sorbus aucuparia) Carvalho-cerquinho (Quercus cf. faginea) Freixo (Fraxinus) Castanheiro (Castanea sativa)

Sector II Sector III

Carvalho-negral (Quercus pyrenaica) 0

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Gráfico 1 – Resultados da análise antracológica da Soida (valores em percentagem, tendo como universo um total 386 macrorrestos analisados), segundo QUEIROZ, 2009b.

Quercus sp. Carvalho-cerquinho (Quercus cf. faginea) Azinheira (Quercus rotundiflolia) Carvalho-negral (Quercus pyrenaica) 0

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Gráfico 2 – Resultados da análise antracológica de S. Gens (valores em percentagem, tendo como universo um total 747 macrorrestos analisados), segundo QUEIROZ, 2009c.

Fig. 7 – Aspecto da escavação do derrube pétreo da muralha de S. Gens (campanha de 2011, sector 4).

O Penedo dos Mouros possui todavia características algo diferentes de S. Gens e da Soida. Este sítio está igualmente dotado de um recinto amuralhado, construído em pedra, que se encontra já muito destruído, não sendo possível perceber se esta estrutura era completada por uma paliçada, à semelhança do que ocorre nas situações anteriormente descritas. A planta deste recinto é irregular e está delimitado a Nordeste por vários afloramentos de grande dimensão que constituem uma parede de transposição impossível; a Este e Sudoeste, foi construída a muralha, que protege exactamente as áreas mais vulneráveis; a Sudeste, o

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conjunto é completado por um grande tor que constituiu a base para uma super-estrutura em madeira que atingiria cerca de 21 m do lado Este. Esta estrutura em pedra e madeira contava com, pelo menos, dois andares, aos quais se acedia por escadarias escavadas na rocha ou constituídas por madeiramentos. O topo do tor seria uma área de vigia e não seria coberto, ao contrário dos pisos inferiores, que teriam coberturas em madeira e telha de meia cana. Para além de uma clara função defensiva, esta estrutura serviria também para guardar alguns bens, nomeadamente excedentes agrícolas, tais como as sementes de fava que aqui foram documentadas (QUEIROZ e RUAS, 2001; LEEUWAARDEN e QUEIROZ, 2003, TENTE, 2007 e TENTE, 2010). As madeiras desta estrutura foram igualmente recolhidas em escavação. Na sua construção (gráfico 3), foi usado essencialmente carvalho negral (Quercus pyrenaica) e castanheiro (Castanea sativa) que são árvores que podem atingir um grande porte. Aliás a dimensão das árvores seria fundamental para a construção desta estrutura, uma vez que tal implicou o uso de madeiramentos e traves de grande dimensão. Este conjunto central contava apenas com um acesso, virado ao vale (Norte). Este acesso estava ainda protegido com uma muralha de pedra não aparelhada, amontoada caoticamente, que desenhava uma planta semi-circular (sector I, Fig. 6). Do lado Sudoeste do tor, num abrigo natural aí existente (sector II, Fig. 6) foi instalado um curral (IPHES, 2010; TENTE, 2010). Urze roxa (Calluna vulgaris) Urze branca (Erica arborea) Pilriteiro (Crataegus monugyna Jacq.) Carrasco ou espinheiro (Quercus coccifera) Sobreiro (Quercus suber) Castanheiro (Castanea sativa) Carvalho-negral (Quercus pyrenaica) 0

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Gráfico 3 – Resultados da análise antracológica do Penedo dos Mouros (valores em percentagem, tendo como universo um total 391 macrorrestos analisados), segundo QUEIROZ e RUAS, 2001; LEEUWAARDEN e QUEIROZ, 2003; e QUEIROZ, 2009a.

Para além da estrutura amuralhada e da super-estrutura em madeira acoplada ao tor, a estratégia defensiva do Penedo dos Mouros assentava ainda na escolha da sua localização. O sítio encontra-se oculto na paisagem, seja qual for o ângulo de observação, o que apenas permite o controlo visual de um território limitado de poucos quilómetros quadrados e circunscrito praticamente ao vale da Ribeira de Boco. É na falta de campo de visão (quer a partir do sítio, quer a partir do exterior) que reside a estratégia de localização deste sítio, posicionado para passar despercebido. Este posicionamento geográfico indicia que o Penedo dos Mouros foi construído pela comunidade que explorava esse vale. O investimento aplicado na sua construção resulta de um trabalho comunitário que

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terá ocupado várias pessoas ao longo de diversos meses e reflecte algo mais profundo que se relaciona com alguma insegurança da região. As causas desta insegurança estão ainda por determinar mas certamente que estarão correlacionadas com o facto do alto Mondego ter sido espaço de fronteira durante muito tempo. Em S. Gens a escolha da localização em pleno vale não expressa nem qualquer controlo territorial significativo, nem um destaque na paisagem; antes pelo contrário, a visibilidade de dentro para fora é reduzida e limitada. Esta localização e seu dispositivo defensivo não apresentam, à partida, a mesma eficácia que o observado no Penedo dos Mouros. A paliçada e a falta de visibilidade abrangente de S. Gens comprometem a capacidade de defesa deste local. No entanto, o investimento efectuado na sua construção só se justifica face a necessidades concretas, necessidades essas que também se expressam contemporaneamente no Penedo dos Mouros e na Soida. O caso a Soida é, porém, diferente. Este habitat situa-se numa cumeada da serra e tem um controlo visual muito abrangente. Ou seja a estratégia de quem vê de dentro para fora é diferente dos demais sítios, mas quando se observa o sítio de fora para dentro evidencia-se novamente uma estratégia de permanecer invisível na paisagem. Apesar de se localizar num ponto alto não ocupa nem o ponto mais elevado, nem o mais destacado daquela cumeada. A sua localização na montanha potencializa a sua capacidade defensiva, por se tratar de um espaço de maior dificuldade de acesso, ainda que pelo seu lado Sul seja acessível para quem circulasse pelas linhas de festo da serra. A construção de estas estruturas defensivas durante o século IX, ou eventualmente já nos inícios da centúria seguinte, sugere que no alto Mondego viveram-se momentos de instabilidade político-militar que se prolongaram durante mais de um século, e que terá sido este ambiente instável e hostil o motor para que as populações se organizassem e procurassem soluções que lhes garantissem o mínimo de segurança. Infelizmente não se pode identificar os responsáveis pela construção e pela organização do trabalho que estas estruturas implicaram. Com base nos dados actualmente disponíveis é possível enunciar duas hipóteses interpretativas: a) Teriam sido as próprias comunidades camponesas a organizar-se comunitariamente de modo a colocarem de pé estruturas defensivas que lhes permitia um acréscimo de segurança no seu quotidiano. Esta segurança seria do usufruto de toda a comunidade e desse modo toda a comunidade teria contribuído para a sua erecção. b) A organização do trabalho e a mobilização de mão-de-obra investida na construção destas estruturas poderia ter implicado a intervenção directa de um grupo ou indivíduo destacado na comunidade. Neste caso, os construtores seriam exactamente os mesmos – os camponeses –, mas o actor principal teria sido um potente local. Quando se analisa mais concretamente o registo arqueológico do Penedo dos Mouros verifica-se que aqui o investimento de

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trabalho foi particularmente mais elevado que na Soida e em S. Gens, pois só assim teria sido possível erigir a impressionante estrutura de madeira que se encontrava acoplada ao tor granítico. Este sítio, na verdade, pode ser interpretado ainda de duas formas: como local efectivo de habitação de uma comunidade que explora o vale e os terrenos adjacentes, ou como o espaço de habitação fortificada de um potente que não só habitaria aí, como acumularia nesta estrutura as rendas cobradas à comunidade que habitaria no vale. Neste caso, a sua construção implicaria a utilização da mão-de-obra dos camponeses, possivelmente como forma de pagamento em trabalho as rendas que deviam a esse senhor. Se assim pode ter sido, é fundamental sublinhar o carácter local deste tipo de relação senhorial de cronologia recuada. Em qualquer dos casos, os agentes construtivos teriam um âmbito local e isso explica a razão de as soluções encontradas serem tão variadas e o facto destes povoados se correlacionarem com territórios relativamente limitados. Independentemente do agente, a causa da sua construção só pode estar relacionada com factores de instabilidade militar que se correlacionam com o facto do alto Mondego ter sido uma terra de fronteira entre os séculos VIII e XI. Tal não significa, porém, que as populações altas mondeguinas tenham construído estas estruturas por receio de ataques de exércitos ou de grupos de guerreiros ligados aos poderes estatais peninsulares. Ou seja, apesar de em termos genéricos esta região ter sido atravessada em determinados momentos por guerreiros quer cristãos quer muçulmanos, que levavam a cabo incursões a Norte e a Sul ou mesmo em regiões vizinhas como Viseu, tal pode não ter implicado necessariamente que as comunidades camponesas fossem alvo directo destas incursões. Todavia, o ambiente hostil e a instabilidade motivada por esta situação político-militar, aliada à eventual inexistência de um poder supra-local criaria as condições sociais para que fossem comuns as peleitas e os confrontos entre as várias comunidades camponesas e, esta sim, pode ter sido a causa da construção dos sistemas defensivos. Esta explicação, bem como a anterior, chocam, porém, com o facto de haver na Península Ibérica outras áreas de fronteira contemporâneas em que este fenómeno de fortificação não se encontra registado. Convém, contudo, sublinhar que a investigação arqueológica deste tipo de realidades ainda mal começou em muitas das regiões peninsulares, ou não começou de todo, pelo que é ainda imprudente fazer qualquer tipo de generalizações a este respeito. Em áreas mais estudadas e em que algumas generalizações são já possíveis a existência de fortificações em povoados de carácter ruralizado não são porém comuns. Nas várias aldeias que foram escavadas em extensão na vizinha Espanha, este tipo de estruturas não se documenta, bem como não se documentam nos casos estudados por H. Hamerow (2004 e 2009) no Noroeste da Europa. Também em França, os trabalhos de E. Peytreman (2003) ou de E. Zadora-Rio (2003 e 2009) documentam situações semelhantes, e nos casos em que se documentam

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fortificações estas integradas no processo de senhoralização, num claro fenómeno de encastelamento de cariz feudal. Apenas na Toscânia foram escavadas aldeias que dispõe de amuralhamentos ou paliçadas a proteger o interior do espaço habitado. Tal é o caso de Montarrenti (Siena), estudado por R. Francovich e R. Hodges. Neste caso particular a aldeia fortificada, implanta-se em altura e apresenta condições naturais de defesa, remontando a sua fundação ao século VII (VALENTI, 2009). Esta aldeia será subsequentemente sujeita a várias alterações internas que expressam a implementação do poder senhorial. Em Miranduolo, localizado igualmente na Toscânia, foi escavada uma outra aldeia que, no século IX ou X, é dotada de uma paliçada e de um duplo fosso, mas neste caso trata-se de um “progetto di riorganizazione che modificò la morfologia del rilievo isolando e difiendendo gli spazi destinati alla famiglia leader” (VALENTI, 2009: 71). A fortificação e o encastelamento na Toscânia está ainda documentado em outros sítios, mas quase sempre está relacionada com um processo de senhoralização com cronologias recuadas.

Gráfico 4 – Datações por radiocarbono realizadas sobre amostras de vida curta recolhidas nos níveis de destruição (Penedo dos Mouros) ou do último momento de ocupação (Soida e S. Gens) dos povoados (TENTE, CARVALHO, 2011).

Os povoados de Soida, S. Gens, e Penedo dos Mouros são abandonados após incêndios destrutivos que determinaram o abandono definitivo destes povoados. Um programa de datações por radiocarbono levado a cabo no âmbito do projecto de investigação (TENTE, CARVALHO, 2011) permitiu verificar que tais fenómenos destrutivos ocorreram invariavelmente na segunda metade do século X (Gráfico 4). Paralelamente, somente no século XI dispomos de dados que permitem observar a acção senhorial nestes territórios. Tais dados são intuídos da documentação escrita disponível para regiões vizinhas tal como os relativos à Campanha das Beira levada a cabo por Fernando, o Magno entre 1055 e 1064 e pela ausência de materiais arqueológicos inseríveis em períodos anteriores ao final do século XI/início do século XII nos registos arqueológicos dos castelos de Celorico da Beira e da Guarda. Tais observações parecem indicar que terá havido uma substituição na estratégia de ocupação do território ocorrida entre o final do século X e meados do século XI. A partir de então o poder senhorial começa-se a fazer sentir neste território (TENTE, 2011b) sob a forma de implementação de um sistema defensivo de carácter regional, que visa a defesa de um território mais amplo, nomeadamente aquela que garantia a defesa de Viseu e da via colimbriana.

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NOTA * Docente de arqueologia do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universida

de Nova de Lisboa, investigadora integrada Instituto de Estudos Medievais.

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