TEORIA CONSTITUCIONAL ANTILIBERAL NO BRASIL: Positivismo, Corporativismo e Cesarismo na formação do Estado Novo ROGERIO DULTRA DOS SANTOS

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TEORIA CONSTITUCIONAL ANTILIBERAL NO BRASIL: Positivismo, Corporativismo e Cesarismo na formação do Estado Novo

ROGERIO DULTRA DOS SANTOS

Rio de Janeiro 2009

ROGERIO DULTRA DOS SANTOS Graduado em Direito pela Universidade Católica de Salvador (UCSal-BA), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ), Professor do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Sociologia e Direito da UFF e do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).

TEORIA CONSTITUCIONAL ANTILIBERAL NO BRASIL: Positivismo, Corporativismo e Cesarismo na formação do Estado Novo

Rio de Janeiro 2009

Para meu filho Daniel

―ESTRANGEIRO - Será a violência justa, por ser rico o seu autor, e injusta por ser ele pobre? Ou seria melhor dizer que o chefe pode ou não lançar mão da persuasão, ser rico ou pobre, ater-se às leis escritas ou livrar-se delas, desde que governe utilmente? Não é nisto que reside a verdadeira fórmula de uma administração correta da cidade, segundo a qual o homem sábio e bom administrará os interesses do seu povo? Da mesma forma como o piloto, longe de escrever um código, mas tendo sempre sua atenção voltada para o bem do navio e seus marinheiros, estabelece a sua ciência como lei e salva tudo o que com ela navega, assim também, de igual modo, os chefes capazes de praticar esse método realizarão a constituição verdadeira, fazendo de sua arte uma força mais poderosa do que as leis. E não será verdade que os chefes sensatos podem fazer tudo, sem risco de erro, desde que observem esta única e grande regra: distribuir, em todas as ocasiões, entre todos os cidadãos, uma justiça perfeita, penetrada de razão e ciência, conseguindo não somente preservá-la, mas também, na medida do possível, torná-la melhor? JOVEM SÓCRATES – Estas últimas afirmações são, pelo menos incontestáveis. ESTRANGEIRO – Mas também é incontestável. JOVEM SÓCRATES – O quê? ESTRANGEIRO – Que a massa, qualquer que seja, jamais se apropriará perfeitamente de uma tal ciência de sorte a se tornar capaz de administrar com inteligência uma cidade e que, ao contrário, é a um pequeno número, a algumas unidades, a uma só, que é necessário pedir esta única constituição verdadeira (...)‖ Platão (428 A.C. – 347 D.C.)

―I cannot accept your canon that we are to judge Pope and King unlike other men with a favourable presumption that they did no wrong. If there is any presumption, it is the other way, against the holders of power, increasing as the power increases. Historic responsibility has to make up for the want of legal responsibility. Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely. Great men are almost always bad men, even when they exercise influence and not authority: still more when you superadd the tendency or certainty of corruption by full authority. There is no worse heresy than the fact that the office sanctifies the holder of it.‖ Lord Acton (1834 – 1902) ―Government is the empire of laws and not of men‖ James Harrington (1611 – 1677)

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho deriva de Tese de doutorado defendida no IUPERJ em setembro de 2006, perante banca examinadora composta pelo meu orientador, José Eisenberg, por Francisco Weffort, Gildo Marçal Brandão, Luiz Werneck Vianna e Renato Lessa. Agradeço profundamente o interesse com que examinaram o trabalho e a pertinência das observações realizadas. Estendo os meus agradecimentos a todos que colaboraram para a realização do doutorado, da tese e do presente livro: Adrian Sgarbi, André Lupi, Antonádia Monteiro Borges, Antonio Carlos Wolkmer, Argemiro Cardoso Martins, Bernardo Ferreira da Silva, Camila Cardoso de Mello Prando, Carlos Boucault, Cecilia Caballero Lois, Célia Barbosa, Christian Guy Caubet, Christian Cyril Lynch, Christiane Jalles de Paula, Cléber de Deus, Cléber Lázaro, Cristina Buarque de Hollanda, Douglas Guimarães Leite, Helga Gahyva, Jeanine Nicolazzi Philippi, João Augusto Mendes, Juliana Magalhães, Juliano Borges, Luciano Martorano, Luiz Henrique Cademartori, Luiz Magno Pinto Bastos Júnior, Marcelo Alves, Marcelo Jasmin, Marcelo Freitas de Luna, Marcelo Rosa, Paulo Emílio V. B. de Macedo, Roberto Di Senna, Rosa Alice Mosimann, Sérgio Graziano, Sérgio Urquhart Cademartori, Vera Karam, Vivian Ugá, Volney Campos dos Santos, Wilton Bisi Leonel e Yara Caubet. A Gisele, Felipe, Hugo e Daniel, pelo carinho com que me receberam e me recebem sempre.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 5 PARTE 1. DITADURA E ORDEM ANTILIBERAL EM CARL SCHMITT ........................................ 20 1. TEOLOGIA POLÍTICA ..................................................................................................................... 26 1.1 A secularização como conseqüência concreta do Romantismo Político ......................................... 34 1.2 A Soberania como exceção .......................................................................................................... 41 1.3 A Soberania como decisão ........................................................................................................... 47 2. DITADURA, DEMOCRACIA E ORDEM CONSTITUCIONAL ........................................................ 56 2.1 Democracia e representação: a formação do cesarismo plebiscitário ........................................... 59 2.2 A Ditadura cesarista como modelo de ordem constitucional ......................................................... 71 PARTE 2. DEMOCRACIA DE MASSAS E ORDEM CONSTITUCIONAL EM FRANCISCO CAMPOS .................................................................................................................................................. 85 3. TEMPO ROMÂNTICO: O RETORNO DE DOM QUIXOTE E A EMOCIONALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA POLÍTICA ................................................................................................................... 90 4. PRIMEIRA REPÚBLICA: DEMOCRACIA LIBERAL X UNIDADE NACIONAL ......................... 103 4.1 Tradição e mudança .................................................................................................................. 111 5. ESTADO NOVO, TEOLOGIA POLÍTICA E SOCIOLOGIA DE MASSAS..................................... 125 5.1 Modernidade política e ausência de sentido ............................................................................... 128 5.2 Técnica política e irracionalidade: o baixo profundo de Caliban ................................................ 138 PARTE 3. CORPORATIVISMO E ESTADO NOVO........................................................................... 160 6. A ORIGEM REMOTA DO ESTADO NOVO: POSITIVISMO CASTILHISTA ................................ 163 6.1 Comte e o positivismo de Castilhos ............................................................................................ 168 6.2 A Consolidação política da Constituição de 14 de Julho............................................................. 176 6.3 Ditadura positivista e Estado Novo ............................................................................................ 181 7. OLIVEIRA VIANNA E O NOVO ESTADO CORPORATIVO ......................................................... 190 7.1 O Estado corporativo: um direito novo ...................................................................................... 199 7.2 Um Direito corporativo definindo o Estado Novo ....................................................................... 208 PARTE 4. O CONSTITUCIONALISMO ANTILIBERAL DA CARTA DE 1937 ............................... 218 8. A ONDA DO CONSTITUCIONALISMO ANTILIBERAL NOS ANOS 30 ..................................... 220 8.1 Alemanha, Polônia e Brasil sob o jugo do constitucionalismo antiliberal.................................... 220 8.2 O Cesarismo plebiscitário e o antiliberalismo da constituição de 1937 ....................................... 233 CONCLUSÃO ........................................................................................................................................ 250 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................... 256 REFERÊNCIAS EXTERNAS ...................................................................................................................... 256 Textos de Carl Schmitt..................................................................................................................... 256 Textos sobre Carl Schmitt ................................................................................................................ 257 REFERÊNCIAS NACIONAIS ..................................................................................................................... 258 Textos de Francisco Campos ........................................................................................................... 258 Textos do e sobre o Estado Novo ..................................................................................................... 260 Textos gerais ................................................................................................................................... 261 REFERÊNCIAS SECUNDÁRIAS ................................................................................................................. 264

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INTRODUÇÃO

Nas sociedades contemporâneas a ditadura, como qualquer regime político, necessita legitimidade. Nas configurações habituais do que se classifica como Estado autoritário —de acordo com as idéias de tradição e tutela da sociedade—, há relação direta entre política e direito por haver aparência de regularidade jurídica nos procedimentos e centralização nos meios tradicionais de coerção física. A juridicidade da ditadura objetiva avalizar, no processo de legitimação que pode operar, uma aceitação social necessária à suspensão ou à paralisação de garantias institucionais legadas pelo constitucionalismo liberal. Estas garantias —direitos fundamentais, devido processo legal, representação política formalizada por processo eleitoral partidarizado— enfraqueceriam um Estado que, em situações-limite, deveria ser capaz de garantir a ordem social, isto é, a autoridade. Na primeira metade do século XX, a relação antagônica entre regimes ditos autoritários e modelos liberais de Estado foi simbolicamente ferida pela derrocada da democracia alemã —com o advento da constituição de Weimar— transformando-se em uma ditadura totalitária. A crença de que as normas e as instituições jurídicas deveriam ocupar o lugar central na estrutura de justificação política do Estado foi, paulatinamente, transformando-se em quimera. A redução ou aniquilamento das instituições de representação política, a centralização da burocracia, a censura da produção cultural, o poderio militar, os apelos por sacrifícios em nome da nação e a mobilização das massas para realizar ou justificar conquistas de cunho imperialista caracterizaram este novo perfil dos regimes políticos da época. Esse conjunto de fatores, forma específica de operar as instituições públicas, recebeu múltiplas denominações: ―napoleonismo‖, ―bonapartismo‖, ―cesarismo‖, ―imperialismo‖, ―ditadura‖ e, mais especificamente no século XX, ―fascismo‖ e ―totalitarismo‖. O adjetivo autoritário deriva de um conjunto de instituições do Direito Privado romano, relativas ao termo auctoritatis. O sentido público da idéia de autoridade indica, inicialmente, a figura do criador ou fundador da cidade, responsável pelo seu crescimento. O substantivo autoritarismo, por sua vez, supõe a utilização ―distorcida‖ da idéia 5

―legítima‖ de autoridade, na medida em que pressupõe uma estrutura política excessivamente hierárquica que concentra, em demasia, o poder político, prescindindo de instituições liberal-democráticas ou opondo-se diretamente ao seu funcionamento.1 Toda relação governante/governado implica, a partir de então, autoridade, mando e obediência, legitimáveis ou não, pela anuência dos governados. O conseqüente conceito de Estado autoritário é incapaz de definir, entretanto, o conteúdo ou a forma de determinada organização política. Em geral, o termo serve para assinalar manifestações políticas distintas do Estado liberal, limitando-se a identificar elementos de Estados não-liberais. O termo autoritário, em sua inconsistência conceitual é, portanto, marcadamente ideológico. Um número sensivelmente significativo de modelos de organização política passa a ser classificado como parte do conjunto de Estados autoritários, sem a preocupação com as distinções relativas a cada modelo. No Brasil, a instituição e o desenvolvimento problemáticos da 1ª República fizeram surgir propostas de centralização político-constitucional do país, então dividido pelas oligarquias regionais, estimuladas por certa interpretação do federalismo da Constituição de 1891. A proposta comum destas aproximações era vincular a idéia de autoridade à tradição, ao passado e à centralização política da ordem Imperial. Buscava-se uma civilização identificada com o modo de fazer política e com as instituições do Império. A literatura sobre o tema sedimenta o senso comum, que permanece: o termo autoritarismo é suficiente para classificar o conjunto doutrinário que orientava a formação de modelos de Estado politicamente centralizadores no Brasil. Reproduz, inclusive, a própria conceituação dos autores considerados autoritários, para os quais o termo Estado autoritário representa a relevância da idéia de autoridade. Nesse sentido, ignorou-se claramente a eclosão da doutrina antiliberal no Brasil dos anos 30 do século XX. A classificação de autoritarismo, para este conjunto de idéias, tem sido um tratamento que contamina a compreensão do que se pode denominar constitucionalismo antiliberal, que opera por elementos sensivelmente distintos daqueles vislumbrados na crítica à 1ª República. Talvez o equívoco da tradição, que vê no autoritarismo um conceito político suficientemente explicativo, tenha sido ignorar que o

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Cf. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Prerspectiva, 1972 (1954), pp. 133 e ss.

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constitucionalismo antiliberal não se constitui somente como uma usina de críticas ao Estado liberal, mas pressupõe um claro modelo de Estado que pretende, inclusive, operar dentro dos parâmetros de uma legitimação democrática distinta da democracia representativa. Nesse sentido, o antiliberalismo é, ao mesmo tempo: a) uma crítica ao direito, à política e às instituições liberais; b) uma aproximação constitucional vinculada à idéia de soberania como decisão personificada; c) um modelo de ordem democrática que se realiza pela mobilização irracional das massas por um César e; d) uma reorganização do Estado fundada na administrativização (burocratização) da legislação. O jurista alemão Carl Schmitt (1888-1985) é o responsável pelo modelo teórico de um Estado antiliberal, fundando-o na idéia de democracia substancial, que acabou por transformar-se no paradigma jurídico-constitucional das ditaduras ocidentais do século XX. A partir de Schmitt, a vaga conceituação de Estado autoritário toma uma forma mais precisa. Paralelamente à estrutura política dos Estados que se formam nesta época desenvolve-se uma doutrina cujo alvo é a fraqueza constitucional do Estado democráticoliberal para o qual a Constituição de Weimar, de 1919, é o modelo clássico. Em seu livro Teoria da Constituição (1928), Carl Schmitt realiza um ataque analítico a cada instituição constitucional de perfil liberal, sendo o seu modelo de ordem política —que deriva das críticas a Weimar—, aclamado como a saída intelectual para a crise das democracias contemporâneas, então ameaçadas pelo comunismo soviético. Schmitt preconiza a representação como relação de identidade entre um determinado povo e seu Líder, independente de intermediação institucional. O processo de governo pela opinião pública acontece sem discussão parlamentar, mas pela aclamação. A lei torna-se um ato de vontade do Líder que procede à regulação administrativa da vida ordinária. A democracia substancial, percebida pelo autor como um princípio jurídico-formal que significa unidade, é a materialização do poder de governo do Estado. O Estado democrático e antiliberal, ―povo em situação de unidade política‖, distingue-se de outras formas políticas por demandar homogeneidade nacional. Essa identidade entre ―dominadores e dominados‖ realiza-se, para Schmitt, através do processo de aclamação. A democracia substancial torna possível uma ditadura na medida em que o escopo e a amplitude da atuação jurídica e política do ditador dependem e se justificam através de seu critério pessoal.

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A especificidade do constitucionalismo antiliberal no Brasil sedimenta-se pelo influxo de correntes filosóficas e políticas que podem levar a uma distinção relevante, sendo o antiliberalismo de Schmitt o parâmetro teórico representativo do momento no que concerne à definição de um modelo de constitucionalismo antiliberal. Duas grandes linhagens de crítica à concepção constitucional republicana foram a formação doutrinária do castilhismo no Rio Grande do Sul e a idéia de Estado corporativo do pensador fluminense Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951). No castilhismo, corrente política organizada por Júlio Prates de Castilhos (1860-1903) e inspirada no positivismo de Augusto Comte, destacava-se um programa de ordenação social do Estado que tinha o objetivo de realizá-lo de forma ditatorial e distanciava-se de outras formas de governo por instituir uma disciplina moral rígida para os integrantes do partido. Berço político de Getúlio Vargas, o castilhismo influenciaria o estadista gaúcho na futura configuração do Estado Novo (1937-1945). Já em Oliveira Vianna, Vargas buscaria inspiração para a coordenação nacional de um programa de controle político das massas trabalhadoras através do corporativismo, isto é, das instituições de representação das classes intermediárias (os conselhos profissionais) e da construção da Justiça do Trabalho. A crítica ao modelo constitucional de 1891 e a criação de alternativas de perfil constitucional antiliberal, de ambos os modelos, ajudou a moldar o papel destacado desse modelo de institucionalidade que se forja com a Constituição de 10 de novembro de 1937, Carta que opera uma ruptura com o que se chama, comumente, de tradição autoritária nacional ao instalar uma ordem política voltada para os problemas característicos de uma sociedade em processo de industrialização e agitada pelas movimentações políticas da massa operária. Foi o jurista mineiro Francisco Luís da Silva Campos (1891-1968), redigindo a Constituição de 10 de novembro de 1937, que recepcionou e desenvolveu um modelo teórico-jurídico de Estado antiliberal, semelhante ao da Teoria da Constituição de Schmitt. Realizando uma apreciação sociológica detalhada do advento da sociedade de massa, Campos será o responsável tanto por sintetizar as aspirações políticas de Vargas quanto por condensar as perspectivas antiliberais implicadas na condução política do regime estadonovista, direcionando-as para a recepção de um novo modelo de Estado. A assunção das massas como um elemento central na organização do poder político e a compreensão constitucional a partir de um modelo jurídico calcado na escola schmittiana farão de 8

Campos o principal ideólogo do regime. Seja sua percepção sobre o fenômeno político, seja a institucionalidade que derivou do seu diálogo com o castilhismo de Vargas e com o corporativismo de Oliveira Vianna, distinguiam-se claramente do ―autoritarismo‖ embrionário —no desenvolvimento do modelo de Estado que seria possível na década de 30— de Alberto Torres, Plínio Salgado ou Alceu Amoroso Lima, para quem a finalidade de um regime político é a concentração da autoridade e a realização da ordem política. 2 Diferentemente destes autores, em Campos e Vianna a legitimação democrática antiliberal —plebiscitária ou corporativa— alia-se à necessidade de uma recomposição jurídica e estrutural do Estado. Francisco Campos, como quase todos estes outros autores e movimentos, é colocado numa vala comum por um conjunto de interpretações que encontra em Bolívar Lamounier o exemplo mais acabado. 3 Em seu consagrado artigo Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação (1978), ele defende um modelo típico de autoritarismo a partir do qual seria possível compreender A tradição autoritária brasileira. O autor pressupõe e mascara, no modelo que constrói, um ideário social, político e jurídico de caráter liberal, capital para que o enquadramento de um autor como Francisco Campos possa definir-se por elementos tão distantes de seu texto quanto de sua base filosófica e seus objetivos políticos. Talvez tenha faltado, a esta tradição, comparar a realidade política brasileira com as manifestações constitucionais em países como a Alemanha e a Polônia. Lá, a especificidade do modelo de Estado deixa ver, claramente, a distinção da idéia antiliberal, questão a ser enfrentada quando for apresentado o diagnóstico de Campos sobre a sociedade de massas. Nesse sentido, Francisco Campos tem uma distinção fundamental em relação àqueles autores citados: sua sociologia tem caráter universal, voltada para a análise do fenômeno das massas no mundo moderno. Daí que, a defesa da ditadura através do estado de exceção neste autor não diga respeito a nenhuma especificidade do estatismo brasileiro, a nenhum suposto autoritarismo característico da tradição ibérica brasileira. Campos é o autor isolado da Carta de 1937. É, então, o autor central desta tese que tem como objeto o 2

Uma argumentação em sentido diametralmente oposto pode ser encontrado em MEDEIROS, Jarbas. Ideologia autoritária no Brasil, 1930/1945. Prefácio de Raymundo Faoro. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1978. 3 A honrosa exceção é a recuperação recente de Oliveira Vianna. Ver, nesse sentido, BASTOS, Elide Rugai; MORAES, João Quartim de (Orgs.). O Pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Unicamp, 1993.

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aspecto político-jurídico do Estado Novo. Vale deixar claro, portanto, que: a) o Estado Novo não é a era Vargas; b) O Estado Novo é a junção das tradições do centralismo imperial, retomada por Oliveira Vianna, do castilhismo, presentificado no próprio Vargas, e do constitucionalismo antiliberal de Francisco Campos; e c) o elemento constitucional estudado faz parte do Estado Novo, mas não resume o Estado Novo. Isolando o aspecto constitucional do Estado Novo, e identificando a sociologia das massas e a teoria constitucional antiliberal que Francisco Campos atrela a ele, é possível identificar um tipo de Estado que tem particularidades não abrangidas pela idéia de Estado Autoritário. Uma outra hipótese diz respeito à classificação da ditadura estadonovista dentro dos modelos existentes. Ter-se-á, então, dentro das características que são levantadas, uma ditadura de tipo cesarista, pois ao lado do controle concentrado dos instrumentos clássicos de regulação —exército, burocracia, polícia e judiciário— somar-se-ia a necessidade de um suporte popular.4 Como Vargas tomara o poder com o apoio de uma coalizão, havia a necessidade política de garantir a continuidade desse apoio, mesmo em se considerando a presença de elementos carismáticos em sua liderança. Embora com problemas formais de vigência, a Constituição prestava-se ao papel, já que orientava largamente a produção legislativa do Estado Novo. Assim, o regime varguista não pode ser visto como uma simples usurpação tirânica do poder político, como um Estado ―híbrido, não dependente de apoio popular organizado na sociedade brasileira e sem qualquer base ideológica consistente‖,5 nem como um modelo de Estado autoritário vinculado exclusiva ou majoritariamente às idéias de hierarquia e tradição. A legitimidade aparece, nesse sentido, como fator determinante, inclusive da outorga de uma Constituição. Práticas plebiscitárias previstas por um regime que se arroga o título de constitucional, necessidade da aceitação popular e concentração do poder na figura do Presidente são características de uma forma de governo atenta à possibilidade de articulação política das massas, que se produzira, ainda na década de 20, através dos movimentos associativos dos trabalhadores urbanos. A solução do regime foi a de integrar 4

Cf. NEUMANN, Franz. Notes on the theory of dictatorship. In: NEUMANN, Franz. The Democratic and the authoritarian State: essays in political and legal theory. Edited and with a preface by Herbert Marcuse. New York/London: The Free Press/Collier-Macmillan Company, 1957, pp. 233-256, p. 236. 5 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Apresentação de Francisco de Assis Barbosa. Tradução coordenada por Ismênia Tunes Dantas. 13ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 54.

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burocraticamente essas manifestações num programa corporativista organizado pelo Estado. Evitava-se a capacidade de mobilização do mito da greve geral, como diria Francisco Campos, pela incorporação de sua energia ―polarizadora‖ ao quadro geral da administração pública. Para além da idéia de manipulação política que exaltaria a mobilização nacionalista do povo em detrimento da organização institucional, o Estado Novo recorreu à legitimação proporcionada pela produção administrativa das regras jurídicas. Embora cesarista e plebiscitária, a ditadura do Estado Novo não pode ser simplesmente classificada como totalitária por não identificar a fonte da autoridade jurídica na vontade exclusiva do Líder, mas em sua estrutura constitucional, de perfil antiliberal. Como futuro Ministro da Fazenda e dos Negócios Interiores do Estado Novo, Francisco Campos tinha diante de si a tarefa de ampliar a discricionariedade os instrumentos emergenciais até então utilizados com a autorização prévia do Congresso Nacional e a chancela das Forças Armadas. O estado de emergência, equiparado ao estado de guerra desde 1935, não sustentava politicamente o arranjo de forças que mantinha Vargas no poder. A justificativa para implantar uma nova ordem constitucional, despida dos limites liberais da Constituição de 1934, era uma necessidade política imperiosa. A ameaça extremista do comunismo, materializada pelo levante de 1935 e sedimentada pela farsa do Plano Cohen, já havia criado um clima de guerra civil. Como em uma ditadura romana, o Governo Provisório outorgava uma Constituição de gabinete a fim de permitir a utilização livre de meios excepcionais a fim de preservar a ordem social. Mas, enquanto em Roma a magistratura ditatorial era ―claramente definida em autorização, no escopo e na duração‖,6 o Estado Novo criara um sistema político completo que se fundava, extensivamente, nos poderes de um estado de emergência. A volta à normalidade far-se-ia através de uma confirmação plebiscitária da validade jurídica da Constituição. O plebiscito legitimador nunca aconteceu, e a estabilidade do regime dependeu do suporte popular à figura pessoal de Getúlio Vargas. O objetivo deste trabalho é reafirmar a influência desse espírito antiliberal que informava o constitucionalismo dos anos 30 e comprovar que o Estado Novo concretizouse como ordem política atrelada aos pressupostos constitucionais do antiliberalismo de massas de Francisco Campos, em diálogo com o positivismo castilhista e com o 6

Idem, p. 233.

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corporativismo de Oliveira Vianna. Demonstrar-se-á, nesse sentido, e em primeiro lugar, que Carl Schmitt realiza a síntese das críticas políticas e jurídicas que se faziam ao liberalismo desde a época da restauração. Influenciado por pensadores de perfil reacionário, como Donoso Cortés, Joseph De Maistre e Louis-Ambroise De Bonald, Schmitt representará o estado da arte da crítica à democracia liberal do regime constitucional da República de Weimar. A sua influência não se resume ao rótulo de ―Jurista Oficial do Reich‖ desde o início da década de 20, quando a República, já em crise, precisou lançar mão dos mais diferenciados institutos constitucionais de emergência, nem ao fato de ter sido o primeiro constitucionalista a chamar de Teoria da Constituição (Verfassunglehre) uma disciplina que objetiva apresentar a constituição burguesa como fenômeno político estrutural do ocidente.7 Além de ser traduzido em vida para diversas línguas e ser estudado como um dos maiores pensadores políticos do século XX, Schmitt organizou a defesa jurídica do golpe de Estado que permitiu a Hitler utilizar as prerrogativas do estado de emergência para instalar uma ditadura que daria origem ao regime nazista. As aproximações entre Carl Schmitt e Francisco Campos são, às vezes, mais profundas do que indica o contexto político da época. Será demarcada a proximidade conceitual e, em alguns momentos, a identidade textual entre esses dois autores. O modelo constitucional de Francisco Campos será examinado a fim de definir o quanto recebeu de influência e a que ponto moldou-se aos postulados do autor alemão. Legatários da mesma tradição reacionária, católica e antiliberal, Campos e Schmitt, constitucionalistas contemporâneos, emitem, não raro, as mesmas críticas ao seu tempo. A democracia liberal, o parlamentarismo, a divisão de poderes e a capacidade política que tem o liberalismo de definir os objetivos de sua ação política são dogmas negados por ambos os autores. Se o diagnóstico do mundo contemporâneo é semelhante —a democracia de massas é o objeto de ambos—, o remédio indicado para a crise do Estado liberal é praticamente o mesmo: a ditadura cesarista-plebiscitária e os instrumentos constitucionais de emergência. Em certas questões, como a crítica metafísica ao ethos liberal através do exemplo simbólico de civilização proporcionado pela figura literária de D. Quixote, Campos se adianta a Schmitt.

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BENDERSKY, Joseph W.. Carl Schmitt: theorist for the reich. Princeton: Princeton University Press, 1983.

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O Estado Novo, como regime político, reveste-se de um caráter exemplar. Não podendo ser simplesmente classificado como modelo de Estado autoritário, o regime aponta para uma incógnita. Se, efetivamente, Francisco Campos pode ser considerado o autor que deu forma jurídico-política ao Estado Novo, dentre outros regimes de exceção que estavam a ocorrer na América Latina, por exemplo, ele será destaque. A onda de ―reforço‖ da autoridade do poder executivo, que varreu o mundo após a quebra da Bolsa de Valores em 1929, não ocorreu sempre dentro dos mesmos parâmetros. No Brasil, o Estado Novo não representou uma centralização dos poderes no Executivo nem uma mera organização política de caráter corporativo. A incorporação social e cultural das massas, a crítica pormenorizada das instituições e da metafísica liberal, a oposição entre as democracias liberal e substantiva, a configuração constitucional de um presidencialismo de corte cesarista e a crítica à 1ª República a partir de uma filosofia da história de caráter decadentista são todos elementos que não estão presentes na tradição ―autoritária‖ que nasce da crítica à 1ª República. Esses caracteres são constitutivos do antiliberalismo do Estado Novo como institutos constitucionais, ou como elementos discursivos presentes no processo de legitimação pública do regime. Buscar-se-á, portanto, e em primeiro lugar, determinar o modelo de Estado de Schmitt, privilegiando um vocabulário conceitual específico, determinante de uma representação histórica da realidade. O momento em que surge o constitucionalismo antiliberal indica a presença de certas estruturas duradouras, o que levou alguns países da Europa (neste trabalho serão examinados, rapidamente, os exemplos da Alemanha e da Polônia) a apresentarem o modelo de Estado antiliberal como solução para uma determinada crise dos modelos de ordem constitucional e política. A ocorrência da Constituição de 1937 e do Estado Novo foram delimitados, então, concreta e estruturalmente, pelos conceitos disponíveis para mobilização. A ascensão de Estados vinculados a um modelo constitucional antiliberal, na primeira metade do século XX, é constituída pela linguagem da história, não se relacionando com uma seqüência natural e aleatória de fatos no tempo, mas sim, com uma narrativa elaborada de forma artificial, que justifica a síntese e a conseqüente manifestação do espírito antiliberal em lugares distintos de sua origem. Com a compreensão deste modelo, torna-se viável ler a ordem políticojurídica estabelecida por Schmitt como um paradigma que estrutura uma narrativa histórica 13

específica, e que permite a emergência das idéias e vocabulário antiliberais no Brasil. Notar-se-á que um componente nuclear do modelo antiliberal consiste nas idéias sobre o tempo e a política, ou como a ocorrência de eventos é delineada pela dimensão temporal, demandando uma inteligibilidade das seqüências de acontecimentos particulares e construindo, para tanto, uma determinada filosofia da história. 8 Não se procura, pois, estabelecer uma investigação sociológica em que a determinação histórica de cada experiência política ditatorial seria detalhadamente investigada em suas relações econômicas, sociais e políticas. 9 Também não é um estudo com o objetivo específico de determinar as ligações textuais entre os variados discursos antiliberais (Campos, Oliveira Vianna e Castilhismo) e o discurso de base, que seria o schmittiano, embora a eventual aproximação comparativa possibilite a determinação de um contexto relacional em suas nuances históricas. Trata-se, em verdade, de uma aproximação a partir da qual serão observadas tanto a identidade estrutural do discurso e de seus conceitos-chave que formulam as balizas tópicas do regime político investigado, quanto as convergências materiais e formais dos institutos constitucionais responsáveis pela configuração do modelo de Estado antiliberal, identificado no Brasil sob Vargas. Com efeito, pode-se sustentar que o paradigma de Estado schmittiano/campiano não se define somente como um conjunto de conceitos abstratos, mas como a necessidade, de natureza supranacional, de se resolver uma determinada crise do Estado e da ordem política, no momento em que ela tornou-se crucial. 10 A questão metodológica que se apresenta de imediato procura saber se os conceitos político-jurídicos determináveis na obra de Carl Schmitt podem, efetivamente, ser considerados de caráter estrutural, a fim de servirem de condição de existência para eventos históricos específicos. Ter a ordem jurídico-política schmittiana como paradigma conceitual demandaria, necessariamente, que fosse identificada sua inserção em pelo menos um dos

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Cf. POCOCK, John Greville Agard. The Machiavelklian moment: florentine political thought and the atlantic republican tradition. 2nd edition. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2003 (1975), pp. 3 e ss. 9 Exemplo clássico desse tipo de abordagem é o de POULANTZAS, Nicos. A Crise das ditaduras: Portugal, Grécia e Espanha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Embora não utilize o universo conceitual da historiografia contemporânea, é possível questionar até que ponto ele não estaria fazendo uma análise de estrutura, já que nada impede que o aporte lingüístico utilizado seja compreendido como uma forma de reconhecimento de condições que se repetem em variados eventos. 10 Cf. POCOCK, John Greville Agard. The Machiavelklian moment, pp. vii e ss.

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possíveis eventos combináveis pela utilização ou mobilização do conjunto de seus conceitos. No presente caso, a obra de Schmitt permite identificar o processo pelo qual deu-se a restrição das possibilidades político-jurídicas não-autoritárias e a construção de uma ordem especificamente antiliberal, em que o seu constitucionalismo esteve informado tanto pelo cesarismo quanto por uma sociologia de massas que o distinguia de outras ordens ditatoriais contemporâneas. O espírito antiliberal manifestou-se pela oposição constante de conceitos como ―decisão‖ e ―discussão‖, ―exceção‖ e ―normalidade‖, ―polarização‖ e ―despolitização‖, ―Teologia Política‖ e ―secularização‖, determinando, com isso, as questões vitais que mobilizaram a sociedade de então. Portanto, a obra schmittiana é perfeitamente válida como modelo conceitual por constituir-se, em parte, de um conjunto de conceitos diretamente colocados à disposição e efetivamente utilizados no contexto da crise institucional da República de Weimar. Em 1933, o próprio Schmitt defendeu a tese segundo a qual o Presidente do Reich poderia concentrar em si os poderes constitucionais pela suspensão de direitos fundamentais, assegurada no art. 48 da lei fundamental, tese que foi tomada como pretexto legítimo para a instalação de uma ditadura ―constitucional‖. Na primeira parte do trabalho, será discutido o legado teórico de Schmitt na configuração de um modelo teórico-jurídico representativo dos Estados constitucionais de perfil antiliberal do início do século XX. Atentar-se-á, especificamente, para a fundamentação da crítica metafísica ao liberalismo, para os apontamentos críticos às instituições liberais e para a configuração de uma ordem jurídico-constitucional de natureza propriamente antiliberal —através da definição de conceitos como estado de exceção, poder soberano, ditadura comissarial e ditadura soberana. Desenvolver-se-á, ainda na primeira parte, de que forma esta abordagem crítica dos sistemas constitucionais liberais orienta o estabelecimento de um modelo de ordem social especificamente antiliberal. Schmitt poderá ser, então, considerado um autor que, a partir desse pano de fundo teórico-cultural, foi capaz de construir instrumentos jurídico-conceituais responsáveis pela delimitação de um novo espaço institucional, exemplar, em que a concentração de poderes, a possibilidade da suspensão de direitos fundamentais e a paralisação das instituições representativas (partidos, associações e parlamento) formaram a tônica de um novo Estado que nasceu na década de 30. 15

Na segunda parte do trabalho será privilegiada uma aproximação analítica à obra de Francisco Campos com o objetivo de demonstrar que Campos constrói uma teoria política acabada, baseando-se numa filosofia da história decadentista e antiliberal. Em se estudando o conjunto de sua obra, nota-se uma preponderância de discursos realizados quando no exercício de cargos públicos, revestidos, quase sempre, de um aspecto oficial. Por esta razão, muitas vezes atribuiu-se um caráter de tensão entre elementos liberais e autoritários que transpareceriam em seus escritos. Demonstrar-se-á, contudo, que Campos é um autor antiliberal e hobbesiano, que recepciona elementos vinculados à doutrina liberal como simples instrumentos para a realização de sua visão de mundo, já que ele desenvolve um liberalismo instrumental, não havendo propriamente uma tensão entre elementos ideologicamente distintos em seu pensamento. Do seu discurso à herma de Afonso Pena, na década de 10 —quando defendia a tutela da República liberal pela elite jurídica formada nos moldes do Império—, até a sua avaliação decadentista da dispersão romântica das energias sociais no final dos anos 40, o antiliberalismo de Campos não é só convicto como monolítico. A sociologia desenvolvida pelo autor a fim de explicitar as aporias políticas de sua época configura uma sociedade de massas em que a única possibilidade de realização da política é a mobilização emocional do mito. Na terceira parte, serão desenvolvidos os fundamentos tanto da doutrina castilhista que será estudada como núcleo histórico da idéia de Estado de Getúlio Vargas, como do pensamento sócio-político de Oliveira Vianna que irá informar a reforma social e trabalhista durante o regime estadonovista. Ante uma situação política fragmentada pelos interesses oligárquicos, o Rio Grande do Sul destaca-se por construir, durante décadas, um regime fundado numa doutrina política incorporada como guia para a ação da maioria dos seus líderes políticos. A Constituição gaúcha de 14 de julho de 1891 representa, assim, a realização de uma teoria com intenção de reforçar o caráter modernizador, moralizante e público do Estado e objetiva servir de modelo para as instituições políticas nacionais. O comtismo gaúcho, orientado pelo líder Júlio de Castilhos, surge como a base teórico-prática que orientará Getúlio Vargas na condução de sua vida política. 11 Demonstrar-se-á que o Estado Novo pode ser lido, de certa forma, como uma extensão bastante modificada —pela mediação de Francisco Campos—, de alguns dos princípios políticos cardeais do 11

RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Castilhismo: uma filosofia da república. Brasília: Senado Federal, 2000.

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castilhismo, como a concentração do poder político no Executivo, a moralização da administração pública e a constitucionalização de direitos trabalhistas. O antiliberalismo explícito da Carta gaúcha será atacado ferozmente pelos constitucionalistas republicanos no Congresso Nacional. As diferenças existentes em relação à Constituição da República, de 24 de fevereiro de 1891, especialmente no que diz respeito à divisão de poderes, foi defendida pelos deputados gaúchos que buscava apoio na doutrina norte-americana. Participante ativo de todo este processo, Vargas representará a herança castilhista no cenário nacional. Já Oliveira Vianna significa para o Estado Novo, a necessidade de uma planificação do problema oligárquico em nível nacional. Contra as instituições liberais importadas sem preocupação com a realidade sociológica do Brasil, ele propõe um modelo centralizador e corporativo para o Estado, todo orientado para a organização solidária da ordem. A ordem política nacional carece, para o autor, de uma configuração jurídica em sintonia com a complexidade social. Reconhece, então, a necessidade de um novo modelo de juridicidade, fundado no realismo norte-americano e na resolução judicial de questões coletivas. A fonte privilegiada de Oliveira Vianna, nessa recomposição antiliberal da interpretação jurídica, é também Carl Schmitt. Para ambos, numa sociedade em que o caráter social dos conflitos é a tônica do momento, a necessidade de se atribuir poderes legislativos à autoridade administrativa é central. A sua crítica ao Estado liberal e à instituição de um parlamento incapaz de funcionar na regulação de problemas técnicos atenderá à legitimação do golpe de Estado, que é como classifica o imperativo moral e social do Estado Novo. O antiliberalismo de Oliveira Vianna —que não pode ser classificado simplesmente de autoritário— exalta a extensão dos poderes legislativos do Poder Executivo, nos mesmos moldes defendidos por Schmitt em seu livro Legalidade e Legitimidade (1932). Na última parte verificar-se-á de que forma o discurso de Campos produziu um modelo diferenciado de ditadura, que pode ser classificado de constitucional, antiliberal, cesarista e de massas. Francisco Campos será investigado como operador de instituições caras ao espírito antiliberal dos anos 30, quando por todo o ocidente o modelo de Estado liberal estava em franca decadência. Por conta de uma necessidade teórica e política, Campos utilizará uma classificação do Estado Novo que servirá, ao lado da interpretação política de Azevedo Amaral, em seu livro O Estado autoritário e a realidade nacional 17

(1938), à clarificação conceitual de uma tipologia dos Estados contemporâneos. Essa tipologia ficou mundialmente conhecida através da publicação posterior do livro de Karl Loewenstein, Brasil sob Vargas (1942), erroneamente reputado como o autor da diferenciação conceitual entre autoritarismo, fascismo e totalitarismo. Mas é em Francisco Campos e Azevedo Amaral que se configura, portanto, o início de uma tabulação teórica que fará um caminho acadêmico obscuro. Publicando a clássica distinção conceitual no livro de 1942, em que cita expressamente Francisco Campos e Azevedo Amaral, Loewenstein é a referência de Franz Neumann, em seu livro de crítica ao nacionalsocialismo, Behemoth (1942). A definição do totalitarismo como regime de governo que não diferencia a esfera privada dos interesses públicos e que redunda na eliminação da espontaneidade —ou da humanidade—, conceito originalmente presente no livro de Azevedo Amaral, aparece em Hannah Arendt, no livro As Origens do totalitarismo (1949). Esse caminho tortuoso, porém visivelmente identificável, é capaz de situar os autores brasileiros, juntamente com suas contribuições intelectuais, na configuração do constitucionalismo antiliberal dos anos 30 no Brasil, como verdadeiramente responsáveis por uma das definições conceituais mais importantes da teoria política do século XX. Neste contexto, a Constituição de 10 de novembro de 1937 surge como documento nuclear para a compreensão do processo de consolidação do Estado brasileiro. Ela concentra, em seu texto, a conjunção do ideário antiliberal nos moldes dos anos 30 no Brasil. Fechado o congresso Nacional, burocratizado o processo legislativo e o comando dos governos estaduais, estabelecido o processo de legitimação política no caráter provisional do texto constitucional, nos Conselhos técnicos e na chancela do Plebiscito, o Estado Novo pôde funcionar, paradoxalmente, como um regime político acabado, consolidando-se como o motor da modernização do Brasil. Se, por um lado, afastou os elementos institucionais e políticos do atraso, coordenando, das instituições públicas, a realização dos interesses sócio-econômicos da esfera privada, consolidou uma tradição jurídica avessa à legitimação pelo debate público e representativo distanciada, portanto, da idéia de autonomia individual. A ampliação do Estado e de sua burocracia não significou o alargamento do espaço público, mas a realização planificada dos interesses privados. Os interesses do Estado nacional, representados monoliticamente pelos dirigentes políticos do Estado Novo, não puderam vincular-se —por uma questão de princípios— aos interesses passíveis de 18

estabelecerem-se publicamente num espaço democrático de discussão. Definir esse paradoxo no exame da doutrina constitucional antiliberal do Estado Novo é o que pretende o presente trabalho.

***

Todos os textos em línguas estrangeiras foram traduzidos diretamente pelo doutorando. Os livros em alemão, dada a pouca familiaridade com a língua, foram traduzidos a partir do cotejo com edições em italiano, francês, inglês e espanhol. Não foi possível utilizar o original alemão do livro Hamlet ou Hécuba (1956), motivo pelo qual optou-se pela versão italiana, cotejando-a com a edição espanhola. Livros apenas consultados não foram referenciados. Todas as citações grifadas encontram-se nos originais, a não ser quando houver a indicação grifo nosso.

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PARTE 1. DITADURA E ORDEM ANTILIBERAL EM CARL SCHMITT

O constitucionalista católico alemão Carl Schmitt (1888-1985) representa, com sua obra, a condensação do pensamento jurídico antiliberal do século XX. Próximo a problemas de natureza burocrática e política ainda durante a Primeira Guerra, colocará a questão dos limites da atuação do Estado ante situações excepcionais definidas pela Constituição alemã como estado de guerra e de emergência. Estabelecido como professor de direito em Bonn a partir de 1919, Schmitt será convidado por Hugo Preuss —o autor da redação final da Constituição de Weimar—, a lecionar em Berlin. Com a queda da Bolsa de Valores, Schmitt passará a trabalhar com Johanes Popitz, Secretário do Ministro das Finanças do Reich. A sua atuação, em casos relativos à declaração de estado de emergência na Suprema Corte —a remoção do Gabinete Prussiano pelo Presidente do Reich com base no art. 48 da Constituição de Weimar— levou-o ao oficialato do conselho Prussiano de Estado.1 Como consultor jurídico do Reich, Schmitt colaborou praticamente com todos os Presidentes, desde Ebert até Hitler, para quem definiu o argumento da ditadura constitucional a fim de debelar a crise política de 1933. O golpe de Estado de Hitler, que instalou o regime nacional-socialista, foi arquitetado juridicamente por Schmitt, que ficaria vinculado ao regime até 1936. Com o fim da guerra, Schmitt sofreu o ostracismo dos colaboracionistas e, mesmo sendo ouvido apenas como testemunha no Julgamento de Nuremberg, ficou recluso, nos arredores de Plettenberg, praticamente até sua morte, sem ter retornado à vida política ativa. A partir dos anos 70 do século XX, iniciou-se uma recuperação do pensamento de Schmitt, que passou, inclusive, a servir de base para uma crítica da esquerda norteamericana às políticas de Estado contemporâneas.2 Schmitt publicou uma vastíssima obra que soma mais de 250 trabalhos, entre livros e artigos. Os de maior relevância, que permitem conhecer o pensamento político-jurídico do autor são: Romantismo político 1

Cf. SCHWAB, George. The Challenge of exception: an introduction to the political ideas of Carl Schmitt between 1921 & 1936. 2nd edition; with a new introduction. Connecticut: Greenwood Press, 1989 (1970), pp. 13-6. 2 Nesse sentido, constituem referência várias edições da revista Telos, que se dedicou, inclusive, à tradução de diversos artigos de Schmitt.

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(1919), A Ditadura (1921), Teologia política (1922/1933), A Situação histórico-espiritual do parlamentarismo contemporâneo (1923), Catolicismo romano e forma política (1924), Teoria da Constituição (1928), O Defensor da Constituição (1931), Legalidade e legitimidade (1932), O Conceito do político (1932) e Hamlet ou Hécuba (1956). Se for possível compreender a complexa e contraditória obra de Schmitt como portadora de uma sistematicidade intrínseca, ela estaria vinculada a um problema de fundo que é a derrocada do racionalismo moderno em geral —expressa politicamente no liberalismo—, a partir da qual o autor interpreta a crise política e institucional da Alemanha entre 1914 e 1933, como sugere Carlo Galli. 3 O livro de Schmitt que primeiro alcançou um público mais amplo e serve como introdução à grande parte de sua crítica ao sistema jurídico-político de fundamento liberal é Romantismo Político (1919).4 Seu objetivo, além de demonstrar que o romantismo é o fundamento metafísico do liberalismo —e de suas limitações teóricas e institucionais—, é identificar a burguesia européia enquanto classe que abraçou o romantismo como forma de expressão, estilizando os conflitos políticos, dissociando-os da realidade. Rompendo com a hermenêutica tradicional que classifica o romantismo como um modelo puramente referido às questões estéticas, Schmitt amplia este conceito a fim de que ele englobe manifestações de natureza política. 5 Esta obra é uma crítica direta ao que o autor identifica como o processo de despolitização instaurado pela ordem social liberal. O romantismo é identificado com o liberalismo através da investigação analítica da atitude espiritual do sujeito romântico, ou seja, do homem burguês: uma relação individualista com o mundo que objetiva transformálo em mera ocasião de gozo estético e que se contrapõe às múltiplas formas de cultura ou à ordem cultural tradicional. 6 O ator político romântico vê o mundo como um espaço que deve adaptar-se, constantemente, ao sentido estético das suas mais variadas manifestações. O mundo se transforma, assim, numa espécie de objeto pessoal do sujeito romântico, mudando de significado a seu bel-prazer. A realidade torna-se uma opção estética individual e adaptável ao gosto de quem a manipula.

3

GALLI, Carlo. Genealogia della politica: Carl Schmitt e la crisi del pensiero politico moderno. Bologna: Il Mulino, 1996, pp. VIII e ss. 4 As referências serão efetuadas a partir da Segunda edição, de 1925. 5 Cf. SCHMITT, Carl. Politische Romantik. Zweite Auflage. Berlin: Duncker & Humblot, 1998 (1925). 6 Idem, p. 14.

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O argumento de Schmitt pode ser sintetizado em dois pontos. Em primeiro lugar, o processo geral de estetização objetiva privatizar os domínios intelectuais ou espirituais da vida através da estética. O resultado é que a estética é absolutizada, e a religião, a moral, a ciência e a política são tratadas simplesmente como temas para a produção da crítica de arte ou para a produção artística pura e isolada do indivíduo: ―todas as diferenças e contrastes factuais, como bem e mal, amigo e inimigo, Cristo e Anti-Cristo, podem se tornar contrastes estéticos e objetos de intriga numa novela e podem ser esteticamente inseridos no efeito de uma obra de arte‖.7 O resultado da estetização é que estes conflitos sociais passam a ser percebidos e tratados, não mais como diferenças reais —são harmonizados, isto é, deslocados de sua realidade concreta, transportados para o mundo imaginário construído pelo sujeito romântico, possuidor de uma espécie de

onipotência

hermenêutica— e passam a produzir exclusivamente um efeito estético, para deleite dos sentidos. Em razão disso, os conflitos políticos representarão apenas uma oportunidade de conversa e argumentação entre homens isolados em seus universos compreensivos autoreferentes, sem que se pretenda sua resolução prática. Em segundo lugar, Schmitt busca o critério ou princípio capaz de identificar a estrutura intelectual —a fórmula metafísica— que está por trás do romantismo. A metafísica do movimento romântico caracteriza-se por sua atitude em relação ao mundo, especificada pelo conceito desintegrativo de occasio, manifesto nas idéias de ocasião, oportunidade e chance, em contraposição polêmica ao conceito ordenador e normativo de causa, que significa a força da causalidade calculável e normativa do mundo. Assim, seguindo a tradição da filosofia de Malebranche, para quem o mundo surge como mera ocasião para a manifestação da autoridade divina, ―[e]sta atitude caracteristicamente ocasional pode persistir ao mesmo tempo em que alguma outra coisa tome o lugar de Deus como fator decisivo e autoridade última, como por exemplo, o Estado, o povo, ou mesmo o sujeito individual‖. Neste caso, indivíduos isolados tomam o mundo como occasio para a sua manifestação estética, sendo a formulação de Schmitt: o romantismo é o ocasionalismo subjetificado, uma forma secularizada da atitude metafísica do ocasionalismo deísta originário.8 Para Schmitt, portanto, o ocasionalismo se transforma na atitude filosófica

7 8

Idem, p. 17. Idem, p. 18.

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estruturante do liberalismo burguês com conseqüências práticas na esfera do político. Considera o romantismo problemático na medida em que tende à ―poetização dos conflitos políticos‖, eliminando qualquer decisão palpável. 9 Esta incapacidade do liberalismo de conduzir a dinâmica concreta da política a partir da tomada de decisão remete à crise do Estado liberal durante os anos 30 do século XX. Para Schmitt, o Estado burguês e suas instituições —condensadas numa Teoria Constitucional liberal— explicam, pelas suas características intrínsecas, esta incapacidade. Ante uma situação histórica de crise institucional, Schmitt figurou como o autor que já entendera sob que condições uma reforma constitucional poderia legitimar uma nova ordem política. Para que se possa examinar: a) de que forma o constitucionalismo schmittiano condensou conceitualmente as transformações do Estado contemporâneo; b) como Schmitt tornou-se o autor fundamental para a compreensão dos regimes ditatoriais do século XX e c) quais são os elementos fundamentais do pensamento schmittiano que poderão ser identificados no constitucionalismo antiliberal brasileiro —estudado na obra de Francisco Campos—, a exposição a seguir está dividida em duas partes. Na parte inicial, denominada Teologia Política, é explicitado de que forma a sua crítica aos fundamentos filosóficos do liberalismo redunda numa análise da modernidade política em que o liberalismo, como visão de mundo, operará como magicização, isto é, como encobrimento discursivo ou estético dos ―fatores reais de poder‖. A idéia política do poder soberano e da soberania será reconfigurada pela teoria schmittiana que, em examinando a Teoria do Estado liberal, percebe sua limitação operacional nos casos excepcionais. O direito liberal só consegue operar na normalidade e o conceito de soberania a ele vinculado carece de capacidade de decisão. Como Schmitt vislumbra situações de crise, faz-se necessário um outro instrumental teórico-prático para sustentar a necessidade política e pessoal de decidir, problema encontrado, inclusive, nos escritos mais antigos do autor, quando seu alvo era a visão liberal de Kelsen sobre a aplicação judicial do direito. O modelo de Estado soberano que desponta da obra de Schmitt se apóia, portanto, num Estado árbitro enquanto força que submete os conflitos sociais a sua regulação e cuja funcionalidade remete à pacificação através de decisão legitimada constitucionalmente. A 9

Cf. LESSA, Renato de Andrade. A Política como ela é...: Carl Schmitt e o realismo político como agonia e aposta. In: LESSA, Renato. Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, pp. 15-61., p. 32.

23

Teologia Política de Schmitt não deixa de operar, igualmente, uma magicização do mundo, ao defender a teologia como um instrumento ainda válido para interpretar a modernidade política. Na segunda parte, denominada Ditadura, democracia e ordem antiliberal, será definida a crítica de Schmitt às instituições liberais. A atitude romântica representará, nesse sentido, o processo pelo qual o liberalismo colocar-se-á no mundo, evitando decidir sobre o político, sobre a sobrevivência do Estado e da própria comunidade. O liberalismo manifestar-se-á, portanto, historicamente, por instituições políticas como o parlamento, lugar de discussão, e não de decisão. O objetivo desse momento de exposição do pensamento político de Schmitt é qualificá-lo como o autor que estabeleceu um modelo de ordem política vinculada aos ―poderes de emergência‖, ou seja, aos institutos jurídicoconstitucionais de que o Estado pode lançar mão para debelar crises variadas pelo uso autorizado —e, portanto, constitucional— da força. Schmitt será examinado, então, como o renovador da teoria romana da ditadura na modernidade, que se opõe diretamente ao liberalismo por considerar o espaço político como o lugar da decisão por excelência. Em conseqüência, a idéia é estabelecer Schmitt como aquele que irá condensar, através de sua crítica liberal, os fundamentos para a construção de um ―constitucionalismo de crise‖ a ser utilizado durante o século XX nas mais diversas situações políticas. A onda extremista que varre a primeira metade do século passado encontrou em Schmitt um autor que viabilizou um instrumental necessário à realização de uma ―razão de Estado‖ que não pretende limitar-se a institutos de força cerceados, normativamente, por constituições de corte liberal. O Estado schmittiano é o Estado em que as instituições de controle formal da atividade administrativa e legislativa não podem subsistir. Um Estado sem parlamento, sem processo de representação política formalizado em instituições, um Estado plebiscitário e que funciona pela aclamação do Presidente pelas massas é o modelo que surgirá do exame de parte de sua obra. Esse modelo de ordem política será mobilizado na formação de várias constituições pelo mundo. A importância do estudo, neste trabalho, do modelo schmittiano, é que servirá de subsídio ao exame da relação entre suas idéias e o modelo brasileiro que se conforma, à mesma época. Assim, depois de se estabelecer o modelo de ordem política de Schmitt, que se traduz, em primeiro lugar, pela crítica aos fundamentos do liberalismo e, em segundo, às instituições liberais e de construção de uma ordem política que funciona 24

utilizando instrumentos de emergência, examinar-se-á o modelo paralelo —e especular— de ditadura no Brasil através do seu autor, Francisco Campos.

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1. TEOLOGIA POLÍTICA

A oposição entre pensamento e existência é, para Schmitt, o problema filosófico da modernidade. E como a manifestação política da atitude romântica deriva de uma percepção individual do mundo, só é possível acessar seus fundamentos contextualizando a situação intelectual em que o romantismo está inserido. 10 Para Schmitt —e isto fica claro num texto posterior, derivado de uma conferência em Barcelona, A Era das neutralizações e despolitizações (1929)—, os conhecimentos histórico e cultural são sempre parciais porque auto-referentes, vinculados que estão ao contexto específico em que foram formulados. O problema é ter a consciência de que o conhecimento é contextual e de que a situação histórica só é compreendida através das necessidades e das características centrais do próprio tempo histórico.11 Na crítica mais famosa ao esforço teórico de combate aos fundamentos do liberalismo efetuada por Schmitt nos anos trinta, em Notas sobre Carl Schmitt: o conceito do político (1932), Leo Strauss diz que o ataque leva em conta o fato — manifesto através de suas instituições políticas características— segundo o qual o liberalismo falhou na implementação de suas instituições. 12 Há que considerar, a despeito desta constatação, Schmitt não deixa de frisar a consistência sistemática do pensamento liberal, ainda não substituído por nenhum outro sistema. É uma perspectiva claramente presente na investigação sobre a metafísica subjacente à formação intelectual do liberalismo, já que é possível sustentar que ele é representado —reconstituído— nos textos 10

Cf. SCHMITT, Carl. Politische Romantik, p. 62. Esta preocupação em estudar o contexto intelectual inscreve a pesquisa de Schmitt numa espécie de História conceitual das idéias. As definições que vão definir o apelo retórico de toda a sua filosofia política, já se encontram aqui delineadas com clareza. O próprio livro é aberto com o questionamento do método tradicional de investigação intelectual. As confusões gerais derivadas da incapacidade de decidir sobre o sentido das palavras e dos conceitos apontam, segundo Schmitt, para a falta de critérios satisfatórios. O ataque é contra as abordagens psicológicas e sociológicas na conceituação do romantismo, que confundem seus sintomas e conseqüências com características propriamente constitutivas. A busca de vinculação do romantismo com objetos considerados românticos e a possibilidade de derivar a natureza romântica destes objetos estão equivocadas. Como fica claro, no decorrer do livro, a conceituação do romantismo só pode derivar da investigação do próprio sujeito romântico, de suas conduta e relação específicas com o mundo. Idem, pp. 5-8. 11 Cf. SCHMITT, Carl. Das Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen. In: SCHMITT, Carl. Der Begriff des politischen: text von 1932 mit einem Vorwort und drei Corollarien. Berlin: Duncker & Humblot, 1996 (1932), pp. 79-95., p. 79. 12 Cf. STRAUSS, Leo. Notes on Carl Schmitt: the concept of the political. In: MEIER, Heinrich. Carl Schmitt and Leo Strauss: the hidden dialog. Translated by Harvey Lomax. Foreword by Joseph Cropsey. Chicago and London: The University of Chicago Press, pp. 91-119, p. 92.

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de Schmitt, como uma inversão, uma imagem em negativo de sua própria perspectiva do mundo político ou, como diz Strauss, como um liberalismo com polaridade oposta. 13 O caráter lírico que conforma a produtividade intelectual do romantismo significa a capacidade de paralisar a consistência dos sistemas filosóficos do racionalismo através da atribuição de um conteúdo sentimental aos seus conceitos. Segundo Schmitt, o romantismo se apropria, de forma distorcida, das variadas manifestações do racionalismo, como, por exemplo, a idéia de contrato social e seus derivados, transformando-as em mera ―fantasia romântica‖. Rousseau, ao invés de analisar o conceito de ―estado de natureza‖ como abstração intencional ou fato histórico —como, de resto, seriam as manifestações analíticas vinculadas à tradição do racionalismo—, transforma-o num idílio concreto, num devaneio campestre, numa peça literária —novelesca— cuja função exclusiva passa a ser o deleite dos sentidos.14 O que Schmitt destaca é que a reação conservadora ao racionalismo abstrato do século XVII, facilmente identificável em uma investigação histórica, contribuiu diretamente para forjar o romantismo político alemão da restauração 15 e, como se verá, para conformar o ethos político do século XX. O romantismo constitui-se uma fase intermediária do estético, entre o moralismo do século XVIII e o economicismo do século XX. O escopo de Schmitt, aqui, é demonstrar a origem da vinculação entre a mudança dos fundamentos culturais do espírito europeu e a conformação ideológica e prática de suas elites políticas. É n‘A Era das neutralizações e despolitizações, já citado, que Schmitt irá avançar esta idéia. O ―desenvolvimento metafísico‖ que ocorre entre os séculos XVII e XIX, relacionase, para Schmitt, com a identificação do ―núcleo da história moderna da Europa‖, isto é, com os passos em que se moveu o espírito europeu em certos centros de gravidade existencial, capazes de amalgamar a evolução cultural (Kulturentwicklung) da elite ativa e de externar seu pluralismo de idéias. 16 É um processo que indica as etapas de neutralização e despolitização que caracterizaram tanto a alternância das elites —e de suas convicções e argumentos— no poder político, quanto a alteração do ―conteúdo de seus interesses

13

Idem, p. 117. Cf. SCHMITT, Carl. Politische Romantik, pp. 66 e ss. 15 Idem, p. 67. 16 Cf. SCHMITT, Carl. Das Zeitalter der Neutralisierungen, pp. 80-1. 14

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espirituais, o princípio de sua atuação, o segredo de seus êxitos políticos e a disposição das grandes massas em deixarem-se impressionar por uma determinada classe de sugestões‖.17 Assim, do século XVI para o XVII ocorre o deslocamento da teologia para a metafísica e o cientificismo como esferas centrais de referência cultural. O racionalismo metafísico do século XVII cede lugar, já no século XVIII, ao conceito mítico de virtú, que se sustenta mesmo ante o romantismo de Rousseau. O século XIX surge como o século do romantismo em interação com o economicismo. Finalmente, o século XX tem como conceito espiritual central —e graças à estetização do economicismo efetuada pelo romantismo ainda no século XIX— o progresso técnico, informado por um forte elemento mágico. Como ocorre com qualquer conceito espiritual central, com o progresso técnico todos os problemas de natureza política, moral, religiosa, social e econômica são remetidos ao desenvolvimento técnico, que os engloba em sua ―realidade‖ e os resolve magicamente.18 Estas etapas de neutralização e despolitização querem significar o processo de encobrimento da realidade política concreta que acabará por gerar, no início do século XX o diagnóstico de falência das instituições liberais. Lembra Leo Strauss no texto já citado que, para Schmitt, As circunstâncias desta falência são as que seguem: O liberalismo negou o político; ainda assim, o liberalismo não eliminou o político da face da terra, mas só o escondeu; o liberalismo conduziu ao que o político está comprometido por meio de um modo anti-político de discurso. O liberalismo não matou, assim, o político, mas só o entendimento do político.19 A incapacidade de o liberalismo compreender a esfera do político e sua impotência institucional

na

organização

da

sociabilidade

são

caracteres

identificáveis

no

antiliberalismo brasileiro dos anos 30 do século XX. O constitucionalismo antiliberal de Francisco Campos servir-se-á, largamente, desses argumentos, tanto em sua crítica do federalismo da 1ª República, quanto na proposição normativa da ditadura estadonovista. De qualquer sorte, para reconstruir intelectualmente este processo de derrocada concreta do que o liberalismo construiu durante a modernidade política, Schmitt sustenta que a neutralização e a despolitização manifestam-se como secularização de conceitos centrais (Zentralbegriffe), cujo sentido específico se constitui no domínio de cada campo espiritual 17

Idem, p. 82. Idem, passim. 19 STRAUSS, Leo. Notes on Carl Schmitt, p. 92. 18

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ou cultural de cada século, e cujo conteúdo histórico concreto só pode ser compreendido, e definido, a partir de seu posicionamento em relação àquele âmbito ou esfera cultural central (Zentralgebiete).20 Nesse sentido, a neutralização e a despolitização de conceitos centrais representam a magicização de uma narrativa epocal sobre a realidade. As explicações sobre o mundo irão mudar de acordo com esses conceitos culturais centrais e, para cada época, prevalecerá um modo de entendimento do mundo centralizado pelo conceito preponderante. Para Schmitt, opera-se, nesta dinâmica, tanto uma conformação monolítica do entendimento do mundo —já que no século XX, por exemplo, todos os fenômenos, inclusive os de natureza política, serão interpretados a partir da idéia de progresso técnico— quanto uma magicização do mundo, pois a idéia de ―progresso técnico‖ neutraliza a possibilidade de se acatar a compreensão de determinada configuração política como sendo, por exemplo, derivada de interesses econômicos obtusos. 21 Nesse sentido, a técnica, por si só, não garante a ordenação do mundo a partir de princípios compartilhados, apenas realiza-se como instrumento destituído de sentido. Para Schmitt, este fator fundamental representa um dos elementos desagregadores derivados do ethos românticoliberal na modernidade política. Se a crise do racionalismo moderno ocidental é identificada pela reconstrução genealógica da atitude romântica, como aparece a própria modernidade política na obra de Schmitt? Na conformação das etapas históricas do processo de modernização, a aproximação analítica de Schmitt utiliza o conceito de secularização (Säkularisierung), para que se compreenda as esferas culturais centrais (Zentralgebiete), capazes de revelar — 20

Cf. SCHMITT, Carl. Das Zeitalter der Neutralisierungen, p. 86. Em Heidegger, contemporâneo de Schmitt que debate sobre o mesmo objeto, a questão da técnica aparece como tendência fundamental do mundo contemporâneo, mas numa perspectiva que não é a da decadência da modernidade pela ocultação do elemento mágico. A técnica pode oferecer perigo, mas também salvação. Originalmente vinculada à idéia grega de desocultamento, descobrimento da verdade, a técnica, quando está referida à modernidade, opera como produtora de energia, não podendo ser compreendida como simples ferramenta, controlável pela vontade humana. A técnica moderna caracteriza-se tanto pela revelação —como na antigüidade—, quanto pela interação prospectiva com a natureza. Tudo se torna presente, apto a ser utilizado nessa relação entre tecnologia e natureza, o que significa impor uma nova organização para o mundo. Opondo-se à revelação, se na modernidade o homem não está em contato com a sua essência, torna-se incapaz de vislumbrar, com clareza, esse processo de desocultamento proporcionado pela técnica. A conseqüência é um perigo vinculado não à técnica, que não é demoníaca, mas à essência da técnica. O perigo de uma interpretação equivocada da verdade está pari passu com a idéia de que a técnica pode proporcionar salvação, no momento em que o homem passa a questionar-lhe os perigos. Cf. HEIDEGGER, Martin. A Questão da técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão et alli. Petrópolis: Vozes, 2002; O´BRIEN, Mahon. Commentary on Heidegger‘s ―The Question Concerning Technology‖. In: Thinking Together. Proceedings of the IWM Junior Fellows' Conference, Winter 2003, ed. A. Cashin and J. Jirsa, Vienna: IWM Junior Visiting Fellows' Conferences, 2004. Vol. 16. 21

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no momento em que se lhes identifica a existência— o papel de despolitização e neutralização da metafísica liberal, sustentáculo de uma subjetividade que subsiste sem seriedade moral nem energia política. O Romantismo Político responderá, assim, pela eliminação da responsabilidade ou da responsabilização política do homem como sujeito da história. Mas não é pela análise exclusiva da atitude metafísica liberal que a interpretação da modernidade política torna-se complexa em Schmitt. Ela explica-se, adicionalmente, pelos conceitos nucleares de uma certa Teoria do Estado que parte substancial da obra de Schmitt tem o objetivo de refundar. É nesse constitucionalismo schmittiano em estado embrionário —só plenamente desenvolvido em seu livro Teoria da Constituição— que será possível observar a formação intelectual de seu antiliberalismo. É onde, começa a se delinear um projeto de sociabilidade, um conjunto de elementos que conformarão as instituições constitucionais antiliberais, fazendo do autor uma espécie de pólo aglutinador do espírito do tempo, alguém que soube expressar didaticamente a crítica ao modelo de Estado que pretendia, nas primeiras décadas do século XX, transformar-se em paradigma. Nesse sentido, modernidade política é a expressão de uma complexa idéia normativa de ordem políticojurídica que é possível extrair da sistemática reconstrução conceitual, revelada pela centralidade do conceito de secularização no conjunto dos textos de Schmitt na fase de Weimar. A detalhada crítica da estrutura jurídica liberal que Schmitt constrói em seus textos dos anos 20 do século XX é o caminho que torna possível a apresentação de um modelo diferenciado de juridicidade, não mais estabelecido pela idéia de regularidade impessoal, de racionalidade e regularidade normativas. Schmitt desloca a fundamentação do direito em direção à materialidade e à pessoalidade da decisão política fundamental. Acusado de ter uma aproximação do político —ela mesma— ocasional e, portanto, romântica, como já sustentava Karl Löwith no texto O Decisionismo (ocasional) de Carl Schmitt (1935)22 22

E que foi publicado sob o pseudônimo de Hugo Fiala, por estar Löwith exilado na Itália. Nesta época, Schmitt chegou a acreditar que por trás do pseudônimo estaria Georg Lukàcs. Para Löwith, no que concerne seu argumento principal, o decisionismo de Schmitt é romântico: arbitrariamente individualista, vinculado à construção de uma visão de mundo específica e a uma ordem social determinada subjetivamente (vontade), ele é ocasional. A guerra como fundamento do político não passaria, assim, de um obscuro mito romântico elevado a fundador da atividade política moderna. Cf. LÖWITH, Karl. Le Décisionnisme (occasionnel) de Carl Schmitt. Traduit par Mira Köller et Dominique Séglard. In: Les Temps Modernes. Paris: Galimard, nov. 1991, nº 544, 47º Année, pp. 15-50.

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Schmitt tentou contrapor a sistematicidade de seu método conceitual como antídoto. Na sua Teologia política: quatro capítulos sobre a teoria da soberania (1922),23 sustenta que ―todos os conceitos fecundos (prägnanten Begriffe) da moderna Teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados‖. 24 O reconhecimento do elemento pessoal na decisão política não faz Schmitt desacreditar da objetividade de sua aproximação ao estudo do pensamento liberal. Este último é lido pelo autor alemão como o responsável pelo afastamento entre história e política: o fato de que a decisão política concreta se realiza sem a mediação de um entendimento da organização do poder, que se torna abstrato. A ―história desses conceitos importantes‖ e de sua mitificação pelo pensamento liberal se fará a partir de uma exposição da Teoria do Estado e da Constituição seguida de uma consideração sobre o funcionamento concreto ou do ―exercício imediato‖ do conceito na história. O resultado do cotejamento entre uma proposta teórica de Estado e de Constituição e a prática histórica da sociabilidade, é a distinção entre as variadas concepções da Teoria do Estado: especialmente a de corte romântico e a de perfil antiliberal. Torna-se possível, então, uma explicação jurídico-científica do conceito de Teoria do Estado, capaz de esclarecer a relação entre idéia e realização. 25 Ou seja, a sociologia dos conceitos de Schmitt permitiria, segundo ele, uma análise capaz de provar identidades intelectuais entre a estrutura de conceitos metafísicos e a estrutura política de uma época. Hans Blumenberg, em A Legitimidade da era moderna (1966) critica a utilização do termo secularização por Schmitt, por este sustentar uma continuidade histórica entre o medievo e a modernidade, elevando o político à categoria de substância atemporal, e por estar dissociado de sua significação histórica original (jurídico-canônica) sendo, portanto, uma noção imprecisa. Ele vê o emprego schmittiano da secularização como uma crítica à modernidade que de certa forma mantém a teologia com o status de instrumento de inteligibilidade do mundo. Schmitt trabalharia com uma idéia de secularização que ocultaria a lógica operativa da teologia, mas não eliminaria o "caráter mágico" do metadiscurso da racionalidade moderna. Não seria problemático se o objetivo de Schmitt

23

SCHMITT, Carl. Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. Berlin: Duncker & Humblot, 1996 (1922/1933), passim. 24 Idem, p. 43. (grifo nosso) 25 Cf. SCHMITT, Carl. Die Diktatur, p. XIX.

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não fosse, segundo Blumenberg, manter funcionando, exatamente, a força da teologia.26 Para Schmitt, a tese segundo a qual a modernidade opera uma ―desteologização‖ dos conceitos políticos significa, em verdade, a ―despolitização‖ daqueles conceitos. A sociologia dos conceitos de Schmitt atua ao reverso da secularização: é, pode-se dizer, uma ―reteologização‖ que se pretende realizar ―às claras‖, assumindo as relações necessárias entre elementos teológicos e políticos. A determinação da historicidade e da precariedade temporal do conceito é necessária para que se compreenda a dinâmica da Teoria do Estado. Já o processo de secularização de conceitos —que é produzido em determinados momentos da modernidade— tem como função afastar da existência histórica os elementos que constituem a compreensão de uma época e a possibilidade de atuação política nesta. Sua conseqüência é que a Teoria do Estado opera através de crenças cujo fundamento originário (genético) é de caráter irracional. A imagem metafísica que ―reflete‖ determinada organização política é capaz de revelar a função de ―arcana‖ da Teoria do Estado, isto é, a sua função oculta de mistificação das formas políticas da modernidade e, portanto, de ―continuidade‖ secreta da tradição teológica. 27 Deste modo, quem analisa estes conceitos pode observar que, segundo esta literatura, o Estado intervém em todos os terrenos, ora decidindo uma controvérsia como um deus ex machina no caminho da legislação positiva, para a qual o livre ato de realização jurídica não soube levar a uma solução em geral convincente, ora como o benévolo e misericordioso, que por meio de indultos e anistias demonstra sua superioridade sobre suas próprias leis. 28 Reconhecer elementos de natureza transcendente como fundamentos ocultos da idéia de poder político na modernidade indica um método de investigação conceitual que busca demonstrar esta marcante ausência ou ocultação do caráter transcendente do conceito de poder político. O fato de que uma crítica à Teoria do Estado permite identificar a lógica de funcionamento da política moderna significa dizer, como Galli, que ―a soberania é, para Schmitt, a função que permite a compreensão estrutural e o governo da lógica real da

26

BLUMENBERG, Hans. The Legitimacy of the modern age. Cambridge: MIT Press, 1983. (Studies in contemporary German Social thought)., pp. 88 e ss. 27 Nesse sentido, GALLI, Carlo. Genealogia della politica, p. 354. 28 SCHMITT, Carl. Politische Theologie, p. 44.

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modernidade‖. 29 A modernidade, para Schmitt, deveria operar dentro da lógica política da autoridade, dada a sacralização do poder político que deriva da ―teologização‖ da política: o espaço do político é o da centralização do poder, da soberania. Este desdobramento crítico da sociologia conceitual schmittiana é utilizado, portanto, para realizar uma genealogia refundante do conceito moderno de soberania, que está na base de entendimento da forma e da substância da política moderna européia. Na verdade, os limites objetivos estabelecidos por cada época histórica na conformação da modernidade definem as funções e os próprios limites dos conceitos gerados por ela, fazendo com que a teologia política de Schmitt possa ser definida como esta ―hermenêutica‖ da metafísica fundadora das esferas culturais centrais (Zentralgebietes), que se manifesta historicamente através da exceção (Ausnahme) ―ao pensar e estruturar a política como uma ordem unitária organizada em torno a um centro soberano ou para representar a idéia ausente de ordem‖. 30 A teologia política schmittiana pretende ser um antídoto à neutralização e à despolitização da compreensão política postas pelo liberalismo. Na medida em que busca afirmar a ordem política como derivada de uma decisão, isto é, de uma ação no mundo, o autor paradoxalmente nega a possibilidade de se ver o fenômeno político através de qualquer elemento de natureza mágica ou estética, mas de uma ação que remete à personalidade e à existência do sujeito político implicado naquela decisão. Entretanto, não passará incólume à formulação da ordem política schmittiana essa ligação genética entre a sacralização da soberania, em termos modernos, e a ―magicização‖ do

operador

concreto

da

decisão

política.

Essas

idéias

desembocarão

num

constitucionalismo vinculado à figura pessoal de um César. A magistratura romana servirá,

29

GALLI, Carlo. Genealogia della politica, p. 353. Idem, pp. 355 e 432, nota 30. Nesse sentido podem ser colocados fortemente em questão –como um malentendido– as abordagens que identificam a teologia de Schmitt com uma visão de mundo impregnada (direcionada) por elementos religiosos, como uma teoria da fé na verdade da revelação, a qual poderia ser compartilhada mesmo por quem rejeitasse as opções e a fé do próprio Schmitt, conforme, por exemplo, MEIER, Henrich. Preface to american edition. In: MEIER, Henrich. Carl Schmitt and Leo Strauss, p. xv. Para Galli, em resumo, ―O objeto de Teologia Política não é uma reflexão geral sobre os nexos entre religião e poder, nem o seu objetivo é uma sacralização do poder ou uma restauração dos valores da tradição. Na Teologia Política Schmitt pensa primordialmente o estatuto ontológico e epistemológico da política moderna, a legitimidade da modernidade entendida como secularização (...) na teologia política schmittiana é inscrita a impossibilidade da política se esta é compreendida como um agir fornido de senso substancial‖. Desta forma, Schmitt foge à possibilidade de estar construindo uma filosofia da história que eventualmente atribua sentido lógico, progresso ou projeto ao desenvolvimento sempre indeterminado dos desígnios epocais. Cf. Galli, Carlo. Genealogia della politica, p. 357. 30

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então, de inspiração para uma ordem política que se fará à imagem e semelhança da decisão judicial contemporânea.

1.1 A secularização como conseqüência concreta do Romantismo Político

A filosofia política de Schmitt leva-o à investigação do processo de sedimentação do modelo de sociabilidade liberal na modernidade, elemento necessário à posterior construção de um Estado em consonância com o ethos econômico característico do século XIX. Aqui, Schmitt realizará uma crítica à tecnicização do modelo liberal de Estado não porque o considera um instrumento possível de ordem, mas porque os controles institucionais do liberalismo não são capazes de definir uma direção necessária à realização da técnica política. Conceito nuclear do pensamento schmittiano que marca sua diferenciação crítica em relação à filosofia da história —com sua idéia de progresso universal, ininterrupto e necessário—, a secularização (Säkularisierung) de conceitos como Deus, progresso, liberdade, Estado, esfera pública, manifesta-se histórica e concretamente na modernidade européia em quatro passos, correspondentes a quatro séculos, ―e vão do teológico ao metafísico, daí ao humanitário-moral e deste ao econômico‖.31 Não se filiando a uma acepção iluminista da história, Schmitt vê o desenrolar da modernidade como um processo de redução paulatina da compreensão do mundo. É, nesse sentido, um autor decadentista já que, para ele, o progresso técnico não fornece à humanidade instrumentos de libertação do mundo, mas meios para que o homem não seja capaz de conduzir a sua vida de forma autônoma: o ápice desse processo é a construção do Estado neutro e agnóstico do liberalismo. Para Schmitt, Todos os conceitos da esfera do espírito, incluindo o próprio conceito de espírito, são em si mesmos pluralistas e se compreendem unicamente a partir da existência política concreta. Do mesmo modo que cada nação possui seu próprio conceito de nação e encontra suas próprias características constitutivas da nacionalidade em si mesma e em nenhum outro lugar, assim também cada cultura e cada época cultural possuem seu próprio conceito de cultura. Todas as idéias essenciais da esfera espiritual do homem são algo de existencial e não normativo. 32 31 32

Cf. SCHMITT, Carl. Das Zeitalter der Neutralisierungen, p. 80. Idem, p. 84.

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O paradoxo percebido por Schmitt é que, quanto mais neutros os conceitos políticos pretendem ser —a fim de evitar os conflitos de origem teológica e estimular, a partir do século XVI, a concórdia geral na Europa—, mais distantes da historicidade que os constitui, mais afastados das esferas centrais de referência e mais incapazes de revelar suas raízes políticas concretas se tornam. Isto porque o processo de neutralização —representado em seu ápice pelo romantismo político— procura a generalização abstrata de conceitos normativos que pretendem ser dotados de universalidade e necessidade, isto é, objetiva ser inquestionável. 33 Neste sentido, o conceito schmittiano de secularização remete à precisa noção de uma ―transposição de crenças e modelos de comportamento da esfera religiosa para a secular‖, como lembra Giacomo Marramao, no seu Poder e secularização: as categorias do tempo (1983).34 Assim, o conceito não se refere à dessacralização (Entzauberung) do mundo (Weber), nem como declínio da religião, ruptura da sociedade com a religião, ou como ―mundanização‖, o que remeteria a um processo de racionalização das esferas da cultura, já que estariam as mesmas numa relação de emancipação com a esfera religiosa —como, de resto, sugere o termo Säkularisierung.35 Em Schmitt, a questão central que envolve a construção sociológica do conceito de secularização não passa, como eventualmente pode parecer, pela recuperação de uma analogia funcional (ou da descendência ou ascendência substancial) entre os fundamentos do pensamento teológico e os fundamentos do pensamento político moderno. Schmitt não quer saber se é a teologia que comanda a política no seu entendimento de mundo ou vice-versa. O relevante é a identificação da origem genealógica da ordem política concreta que formou a modernidade e a construção de um conseqüente ―stato neutrale ed agnostico‖ derivado do processo de 33

Cf. SCHMITT, Carl. Das Zeitalter der Neutralisierungen, p. 88. MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização: as categorias do tempo. Tradução de Guilherme Alberto Gomes de Andrade. São Paulo: UNESP, 1995 (1983), p. 61, n. 8. Schmitt não fala propriamente de transposição (Überschreitzung), mas de reocupação (Umbesetzung) de uma posição funcional, embora o termo correto para a construção de sua sociologia dos conceitos presente no seu Teologia Política (1922) seja efetivamente o primeiro, segundo a interpretação de GALLI, Carlo. Genealogia della politica, pp. 348-9 e pp. 428-9, n. 24. 35 Cf. MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização, pp. 60-61, n. 8. A abrangência semântica relativa ao uso histórico do termo é vasta. No século XVIII indicava o retorno voluntário de elementos eclesiásticos (como bens, prédios e funções (como a educação universitária)) ao mundo. Em seguida, passou a significar a expropriação desses elementos eclesiásticos pelo poder temporal principesco na época da reforma protestante). Com a sociologia, passou a significar a transição da fase comunal (de vínculo obrigacional) para a fase societal (caracterizada pela vontade eletiva contratual). Sobre a polêmica contemporânea das definições do conceito, ver MARRAMAO, pp. 29 e ss. 34

35

secularização, de neutralização da política pelo pensamento liberal. 36 Este Estado neutro foi justificado em sua existência, no final do século XIX, pela própria neutralidade —sintoma daquela neutralidade cultural geral, característica do liberalismo, que neutraliza o poder político na ausência de uma decisão concreta que ponha fim ao conflito que o constitui e define.37 É, portanto, do ocultar artificial da teologia que trata o autor. Ele sustenta que a reconstrução genealógica da ordem concreta do agir político moderno demonstra a progressiva neutralização (Neutralisierung) daqueles âmbitos culturais centrais que caracterizam uma inicial conflituosidade —caso da teologia do século XVI— que deveriam ser deslocados e abandonados como domínios culturais centrais. A esperança moderna volta-se para os sucessivos deslocamentos neutralizadores do conflito e do caráter político inerentes à existência concreta, e para a constituição de novos centros de gravidade que tragam ―um mínimo de concórdia (Übereinstimmung) e premissas comuns que garantam segurança, evidência, entendimento e paz‖ e possam garantir a formação de um espaço absoluta e definitivamente neutro representado, para Schmitt, pela fé contemporânea na técnica, pois aparentemente ―não há nada mais neutro que a técnica‖. 38 Todos os conflitos gerados pelas esferas culturais anteriores (conflitos de ordem teológica, moral e econômica) são, enfim, deslocados para o âmbito privado e, no seu lugar, aparece a fé na técnica, este instrumento cuja objetividade reconfortante parece ofuscar totalmente quaisquer conflitos que contaminavam, com facilidade, as esferas culturais anteriores. Para Schmitt a técnica, por ser apenas um instrumento cego —porque serve a qualquer um— não é uma arma neutra.39 Como qualquer um pode servir-se da técnica como uma arma, não se pode retirar da imanência do técnico nem mesmo a neutralidade: o domínio técnico não decide humanamente, espiritualmente, moralmente e muito menos neutralmente. Assim, Um progresso técnico não necessita ser nem metafísico, nem moral e nem mesmo um progresso econômico. E se hoje muitos homens seguem esperando do aperfeiçoamento técnico um progresso humanitário-moral, é pelo fato de estarem vinculando técnica e moral de forma mágica e, além disso, estão pressupondo não com pequena ingenuidade que o grandioso instrumental da técnica contemporânea só será utilizado no sentido que eles mesmos lhe dariam. Sociologicamente, 36

Cf. GALLI, Carlo. Genealogia della politica, p. 349. Cf. SCHMITT, Carl. Das Zeitalter der Neutralisierungen, pp. 87-89. 38 Idem, p. 89. 39 Idem, p. 90. 37

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significa que crêem que vão ser os senhores destas armas terríveis e que podem, portanto, reclamar o enorme poder vinculado a elas. 40 Da técnica, não se pode extrair nenhuma conseqüência cultural e, portanto, nenhum específico elemento ideativo, social ou institucional de natureza política. Ela é resultado do processo moderno de secularização gerado pela fé em uma metafísica ativista, ou seja, a ―fé num poder e num domínio sem limites do homem sobre a natureza‖. Esta desintegração de qualquer possibilidade de aproximação cultural do mundo, isto é, de uma interpretação que não leve em conta somente as distinções extraídas da técnica, é o paradoxo contemporâneo que Schmitt identifica através do processo de secularização. E este é um paradoxo, já que a técnica não gera a pacificação da neutralidade. É em relação a ela que o político se reconstitui. É a partir da definição de quem será capaz de dominar a técnica como instrumento que será possível prever como os conflitos serão tratados no decorrer do século XX.41 A questão que importa marcar nesta análise do processo de secularização é que o caminho que vai da teologia, da metafísica e da moral até a economia e a técnica tem seu ponto de inflexão na estética e o romantismo, que representa especificamente esta ―via do consumo e gozo estéticos, (...) é a mais segura e cômoda para a economicização universal da vida espiritual e para uma constituição espiritual que encontra suas categorias centrais da existência humana na produção e no consumo‖. 42 O gênio romântico importa histórica e politicamente por facilitar a transformação do conceito metafísico de Deus e do absoluto em sua representação através da história e da humanidade.43 O processo de secularização do conceito da metafísica tradicional (Deus) e de sua representação mágica a partir de duas realidades universais —a humanidade (o povo) e a história— que se transformam em divindades ordenadoras do mundo, revela o caráter religioso da Revolução francesa (e da própria Restauração) e a conseqüente sacralização da política. Este é o ponto de inflexão do argumento de Schmitt, que indica a passagem do romantismo como movimento estético

40

Idem, pp. 90-1. Idem, pp. 93-5. 42 Idem, p. 83. 43 Cf. SCHMITT, Carl. Politische Romantik, p. 68. 41

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para a inclusão do elemento político que irá vincular a estética romântica com a subjetividade burguesa.44 O problema a ser desvendado neste ponto é, para Schmitt, a diferença entre a filosofia da história proposta pelo Iluminismo da Revolução Francesa e a concepção de tradição histórica desenvolvida pelos filósofos contra-revolucionários. Enquanto o pathos tradicional contra-revolucionário —especialmente Bonald e De Maistre— percebe que o desenvolvimento das monarquias no tempo histórico dá origem ao sentimento nacional da comunidade humana, Schmitt considera a própria idéia de nação como sobreposição de princípios religiosos e políticos condensados na figura do monarca. A história trabalha através da solidificação temporal das tradições monárquica e religiosa —―o princípio monárquico corresponde à idéia teísta de um Deus pessoal‖—, responsáveis pela gestação das inúmeras gerações necessárias à formação da comunidade concretamente existente. Isto significa dizer que o caráter nacional deriva do poder que os indivíduos adquirem no decorrer do tempo histórico, assegurado pela delimitação espacial da comunidade, isto é, a nacionalidade. Para os contra-revolucionários, a sociedade humana contém uma determinação histórica que é o caráter nacional e a moralidade pública que nele subjaz. 45 Para os arautos da Revolução Francesa, por outro lado, a importância do tempo histórico e da consolidação da política —do caráter nacional, fundamento do poder constituinte— através da tradição é igualmente aceita, mas sob o viés do poder criativo da própria história. O povo deixa de ser seu próprio demiurgo e, inspirado em Rousseau, o desenvolvimento histórico transforma-se em poder arbitrário e criativo derivado da duração temporal que justifica, no transcorrer do tempo, instituições como os direitos do homem. 46 Esta recepção da história como a produtora do Volkgeist, como um ―criador supra-humano‖ é o elemento que clamará, já no século XIX, pelo posicionamento do sujeito romântico. Com o final da tradição, o romantismo não podia vincular-se, sem mais, à noção do ego como motor da história, ou seja, com o papel criador atribuído ao sujeito, já que criação significa decisão concreta e tomada de posição política. A escolha liberal e romântica para justificar a revolução é a abstração metafísica de um direito sem origem concreta, universalizado. Assim, o sujeito romântico não se compromete com o agir histórico e une44

Idem, pp. 68-9. Idem, pp. 69-71. 46 Idem, p. 72. 45

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se à promessa de um eterno devir, estratégia que permite a utilização de seus conceitos da história quanto do povo. O estado de feliz ingenuidade de Rousseau, origem da idéia contratualista de povo como demiurgo, é recebido pelo romantismo como a possibilidade de perene negação da racionalidade do real, como a ―eterna promessa do poder eterno, eternamente conservado porque eternamente irrealizado‖. A inocência da criança, em sua infinita indisciplina existencial, sobrepõe-se à determinação do homem adulto, cuja realidade é limitada por sua educação e profissão dentro da organização social. Já a história torna-se, ao mesmo tempo, o instrumento que comprova as limitações do presente, da realidade concreta e, também, o instrumento que aponta a possibilidade de negar o aqui e o agora para construir, idealmente, perspectivas infinitas de futuro. Quando cada instante pode ser convertido em um momento histórico e cada pensamento em um mote para a conversação, a história transforma-se em filosofia da história, porque permite ao sujeito romântico construir, a seu bel-prazer, novas realidades manipuláveis através do discurso, como uma novela fantástica. 47 Ao mesmo tempo em que não se compromete politicamente com a realidade concreta, o sujeito romântico transforma-se no demiurgo do futuro através da construção discursiva de uma filosofia da história. 48 O deslocamento que o ocasionalismo romântico realiza em relação ao deísta situa-se no fato de que a atividade concreta do indivíduo passa a consistir ―somente na animação fantasiosa de seu afeto‖. O que significa que o indivíduo romântico torna-se eticamente responsável apenas pelo seu ego autônomo.49 O emancipado e isolado indivíduo do mundo liberal-burguês toma de Deus o lugar do absoluto. É somente no mundo burguês que o indivíduo pode reivindicar —sem que isto se transforme em um conflito real ou político— que a única coisa que interessa é a sua experiência. A contradição essencial do sujeito romântico é que ―na passividade orgânica

47

Idem, pp. 80-5. O que se pode dizer, então, do ocasionalismo romântico, em comparação com o ocasionalismo deísta no que respeita ao poder humano sobre a realidade? O sistema ético do ocasionalismo tradicional de Malebranche situa a ação humana em nível exclusivo da emoção. A criação divina do mundo, para os autores contra-revolucionários, é acompanhada pelo homem através de seus sentimentos e é assim que ele participa deste processo. Onde a realidade é percebida clara e corretamente, o homem ainda é consciente e responsável, consigo e com sua comunidade, mesmo sendo uma occasio nas mãos de Deus. A liberdade da vontade do indivíduo ainda se manifesta eticamente em sua relação com o mundo real. No caso específico do romantismo, o sujeito individual toma o mundo como uma oportunidade de manifestação estética. Idem, p. 102. 49 Idem, p. 101. 48

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de sua estrutura ocasional, deseja ser produtivo sem se tornar ativo‖, caso em que ele não tem nenhum interesse em transformar o mundo ou em marcá-lo com sua experiência pessoal, mas apenas em observar a atividade intelectual garantida pela segurança burguesa. Uma atividade intelectual específica do romantismo político realiza-se através da crítica, ou seja, da manifestação de antíteses, ênfases, comparações e pontos de vista sobre eventos políticos que excitam, ocasionalmente, sua imaginação, ―mas sempre sem tomar sua própria decisão e assumir sua própria responsabilidade e risco‖. Esta ―variabilidade do conteúdo político não é acidental, mas a conseqüência da atitude ocasional, e isto está profundamente enraizado na natureza do romântico, e sua essência é a passividade‖. 50 Em Schmitt, ―o romântico usa a palavra histórico, assim como usa Cristandade, como uma capa para sua passividade‖, o que significa que não há atividade política concreta para o romantismo. Onde ―o Estado é uma obra de arte‖, a conversação sobre a política nada mais é do que uma mera ocasião para o gozo estético criativo do sujeito romântico.51 As manifestações líricas e fantasiosas do romantismo político não podem, enfim, se transformar no fundamento de uma comunidade política concreta. A intoxicação de sociabilidade não é a base de uma associação (Verbindung) duradoura, a ironia e a intriga não são pontos de cristalização social e a necessidade de não estar só, mas de pairar sobre a agitação de uma estimulante conversação, não é capaz de erguer nenhuma ordem social. Isto porque nenhuma sociedade pode encontrar uma ordem sem um conceito do que é normal e do que é certo. O normal é um conceito não-romântico porque cada norma destrói a independência ocasional do romântico. Ante um conceito normativo, mesmo a antítese e o contraste românticos entram em colapso. 52 À comunidade política não é dado prescindir, portanto, de um liame moral compartilhado pelos seus integrantes, isto é, de um conjunto de valores estabelecidos intersubjetivamente. Uma situação onde a sociabilidade se sujeita à pluralidade infinita de possibilidades avaliativas é uma situação que se manifesta historicamente, segundo Schmitt, através da articulação estética de antíteses de natureza retórica. A conversação política, de fundamento exclusivamente retórico, isto é, meramente estética, é o encontro entre liberalismo e romantismo, onde cada indivíduo é protegido, em seus direitos, do despotismo de Estado,

50

Idem, pp. 165 e 119. Idem, pp. 122 (grifo nosso) e 127. 52 Idem, p. 167. 51

40

pelo fato de o próprio indivíduo ser considerado, pela ―filosofia‖ romântica, um Estado.53 Nesta situação, é vedado aludir, efetivamente, a uma ordem coletiva onde decisões e compromissos possam ser estabelecidos. O objetivo de Schmitt passa a ser, portanto, a configuração de uma ordem política antiliberal, que permita a representação do corpo social como uma unidade e não uma sociabilidade anárquica, vinculada aos desejos individuais do sujeito romântico. Sua teologia política opera, como

insiste Blumenberg, no

reconhecimento do caráter ―mágico‖ da política, balizado por essa unificação do corpo político, figurado no soberano, que realiza a decisão sobre a existência da comunidade política. No Brasil, o mesmo movimento de crítica ao liberalismo como romantismo e de busca por um Estado que reconheça a necessidade de decisão, e que oriente de forma substancial a organização da sociedade, se fará através de Francisco Campos. Na trilha de Schmitt, Campos irá repudiar o Estado neutro do liberalismo e a romântica dissolução moral do mundo pela estetização da vida. O seu objetivo de ordenação civilizatória da orbe estará ligado, como em Schmitt, à revelação proporcionada pela teologia.

1.2 A Soberania como exceção

Estabelecidas as bases do que se pode chamar de filosofia política antiliberal —a crítica antiliberal fundamental, ao sujeito burguês e ao Estado que dali pode advir— passarse-á à tarefa que mais importa, isto é, à consolidação de um modelo de organização política de caráter antiliberal no pensamento de Schmitt. Assim, para reconstruir uma definição da soberania como conceito limite ou extremo, que represente a recuperação originária de um esquema da Teoria do Estado que no século XIX já havia se tornado abstrato —ao sustentar que ―soberania é o poder supremo, não derivado‖— e que indique a forma concreta de seu surgimento, Schmitt estabelece que toda ordem, seja jurídica, política, sejam a segurança e a ordem públicas, deriva de uma decisão (Entscheidung) sobre um caso excepcional. Isto significa que a soberania tem como função real (ou fática) determinar o que pode constituir ordem e segurança quando elas são perturbadas. O que Schmitt quer 53

Idem, p. 144.

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especificar é o fato de que o desenvolvimento histórico do conceito de soberania não acompanhou o desenrolar das lutas pelo poder político concreto, dando origem a uma lacuna na formação lógica do conceito jurídico de soberania, pois o fundamento da ordem jurídica é uma decisão, não uma norma. A fórmula vazia de sentido ―poder supremo, não derivado‖ carece de ―um desenvolvimento dialético a partir da imanência de sua conceitualidade‖. Os significados possíveis desta fórmula só são utilizáveis em um contexto em que a legitimidade do espaço político se curve aos interesses do momento, já que na realidade política não existe um poder supremo que funcione segundo uma pretensa causalidade da manifestação do direito, uma idéia de irrefragabilidade da norma que quer encontrar paralelo nas leis da natureza. Como ―o poder nada prova através do direito‖, resta assumir a definição que atribua autonomia ao conceito de soberania frente àquela literatura jurídica de origem liberal. Assim, a única definição passível do resgate concreto da historicidade do conceito em discussão dispõe: ―É soberano quem decide sobre o estado de exceção (Ausnamezustand)‖. O poder político é, portanto, estruturalmente provisional. O conceito schmittiano de soberania é clarificado, então, a partir do desenvolvimento de dois conceitos ligados a sua identificação: decisão e exceção. Enquanto exceção diz respeito a um estado ou situação (Zustand) excepcional e conflitivo, não previsto pela ordem jurídica e que se define ―como um caso de extrema necessidade, de perigo para a existência do Estado ou algo como tal, mas [que] não pode ser circunscrito numa tipificação (tatbestandsmäβig)‖, decisão remete ao caráter pessoal da manifestação concreta do poder político, configurando o que será chamado, por Schmitt, de fundamento do pensamento jurídico-político decisionista.54 Esta conceituação diferenciada da soberania obriga Schmitt a recuperar a percepção do Estado como ordem social que opera à imagem e semelhança de uma pessoa humana. A própria decisão se realiza através de uma pessoa fisicamente identificável (o Presidente da República, por exemplo). À decisão sobre a aplicação constitucional do estado de exceção, a partir da qual será possível construir sua teoria da soberania, Schmitt acrescenta a necessidade de se verificar a singularidade do caso excepcional, acontecimento particular que contextualiza a decisão soberana. O poder soberano, com o caso particular em pauta,

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SCHMITT, Carl. Politische Theologie, pp. 16; 25; 26; 13; 14.

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torna-se a realização concreta da ordem política pretendida. Esse caso particular não é um caso típico, mas um caso historicamente situado. A impossibilidade de circunscrever o estado de exceção remete ao reconhecimento do sentido da palavra tipificação (tatbestandsmäβig), utilizada por Schmitt, inicialmente de natureza jurídica, pois tipo (tatbestand) é o termo técnico para a descrição legal de um fato ou ação. É, porém, tanto uma referência à limitação da tradicional abordagem jurídica ao tema do estado de exceção quanto à impossibilidade de determinar, concretamente, sua existência, seus desdobramentos e ações possíveis ante um hipotético —e, para Schmitt, inexistente— caso típico de exceção, o que remete ao conceito de tipo presente na sociologia de Weber.55 O que é descartado, logo de início, é a normalidade limitativa produzida pela constitucionalização da situação excepcional, como ocorre com o conceito de estado de sítio. Assim, neste momento do texto de Schmitt, os problemas identificados são a ausência histórica e a eventual limitação conceitual de uma descrição do estado excepcional na ordem jurídica vigente e a dificuldade de caracterizá-lo na prática. Para o autor, uma Constituição somente pode indicar a quem é permitido atuar em tal circunstância, quem deve agir no estado de exceção: Se esta ação não está submetida a nenhum controle, se não se distribui —como na prática da Constituição fundada no Estado de Direito— entre diversas instâncias que se limitam e se equilibram mutuamente, então é evidentemente claro quem é o soberano. Ele decide tanto sobre o caso de exceção extrema, como sobre o que deve ser feito para remediá-lo. Ele se situa fora da ordem jurídica vigente e, contudo, pertence a ela, pois é responsável pela decisão de se a Constituição pode suspenderse in toto. Todas as tendências do desenvolvimento do moderno Estado de Direito apontam o eliminar do soberano neste sentido. 56 Assim, o Estado funciona, na determinante concreta da situação em que aplica o estado de exceção como um modelo especial de juiz que, autorizado pelo direito, mas não necessariamente limitado por ele, decide, de forma soberana, sobre como a normalidade jurídica e social deve ser reintroduzida. Giorgio Agamben lembra, no livro Estado de exceção (2003), que a soberania deve ser examinada enquanto manifestação originária de uma forma jurídica específica, pois tem como escopo regular ou reinstalar a ordem jurídica

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Como, de resto, se pode concluir do fato de ser Weber um interlocutor privilegiado na seqüência do argumento, referente ao conceito de forma sociológica e jurídica na definição da soberania. Idem, pp.34 e ss. 56 Idem, p. 14.

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numa situação de desordem somente mensurada de forma objetiva pelo próprio soberano.57 O duplo sentido do conceito de estado de exceção (jurídico e político) remete, portanto, à origem dual do conceito de soberania, que não pode ser absorvido por uma definição exclusivamente jurídica, a não ser que se reconheça sua precedência em relação à própria ordem jurídica, ou seja, que se identifique com clareza seu caráter concreto. Um poder excepcional, segundo Schmitt, deve ser supremo e sem limites. Em razão disso não é conveniente identificar o poder soberano a remédios constitucionais como o estado de sítio, o decreto de emergência ou uma medida policial qualquer, pois todas estas faculdades extraordinárias estão juridicamente limitadas em suas concretizações, limitadas pelo regulamento da Constituição do Estado de Direito ―que, ao dividir as competências e instaurar o mútuo controle, procura adiar (hinauszuschieben) a questão da soberania o máximo possível‖. 58 Schmitt reconhece que, ao se definir a soberania a partir da decisão sobre como resolver ou pôr fim a um caso de desordem excepcional, o que se está realizando é uma circunscrição jurídica das faculdades concedidas. Esta limitação jurídica da capacidade de ação significa sua substancial repressão (zurückgedrängt). Mesmo reprimida, no entanto, a soberania não desaparece, basicamente porque esta identificação da juridicidade da situação excepcional é de natureza intelectual. 59 A decisão de um poder soberano personalizado, que aqui pode ser remetido à figura de um juiz, não significa, assim, a ausência completa da juridicidade. Tem-se a possibilidade normativa da suspensão de toda ordem jurídica vigente para que não se deixe de identificar concretamente a própria existência do Estado, a fim de preservá-lo. A decisão que reconhece e declara o estado de exceção recobre-se de um sentido jurídico, pois funciona como elemento criador de condições concretas de normalidade para que um preceito jurídico qualquer possa ter validade. Como a norma precisa de um ―meio homogêneo‖ para valer —uma sociedade estabilizada—, a situação de normalidade faz parte da ―validez imanente‖ do direito.60 Para Hasso Hofmann, como a eficácia da norma jurídica passa a depender da idéia de normalidade, ela só pode ser um conceito sociológico e não normativo. Nesse sentido, a homogeneidade do meio, que

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Cf. AGAMBEN, Giorgio. Stato di eccezione (Homo sacer, II, I). Torino: Bollati Boringhieri, 2003, p. 9. SCHMITT, Carl. Politische Theologie, pp. 17-8. 59 Idem, ibidem. 60 Idem, p. 19. 58

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garante a realização do direito, pode ser caracterizada como um ―princípio unitário de estrutura da realidade social‖ e indica a relação entre ordenamento e normalidade factual: a homogeneidade é, para Schmitt, a essência da unidade política. 61 O estabelecimento desta situação de ordem das condições de vida demonstra quem é o soberano ―O caso de exceção revela a essência da autoridade estatal da maneira mais clara. Nele, a decisão se separa da norma jurídica e (em uma formulação paradoxal) a autoridade demonstra que não necessita ter direito para criar direito‖. A tentativa da Teoria do Estado liberal de regulação jurídica minuciosa dos casos em que a exceção se faz necessária para preservar a ordem, não passa, para Schmitt, da tentativa da ―circunscrever com exatidão o caso em que o direito se autosuspende‖. 62 Como a ordem social só existe por conta da decisão soberana que reconhece a existência da situação excepcional e providencia sua eliminação, é possível sustentar, como o faz Agamben, que ―A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia que esta instaura não é (ou ao menos pretende não ser) sem relação com a ordem jurídica‖.63 Assim, a definição da essência —jurídica e/ou política— do estado de exceção diz respeito ao local onde ele se situa. Para Schmitt, fica patente que a busca de claridade conceitual na definição da soberania não é possível através do exame da situação normal, pois ―O normal não demonstra nada, a exceção demonstra tudo‖. 64 O estado excepcional pode ser dimensionado a partir do momento em que Schmitt o identifica com o estado de necessidade —termo que, para Agamben, é a fonte doutrinária da discussão sobre o estado de exceção. O estado de necessidade define uma situação onde a lei perde o seu caráter obrigatório e se torna, ela própria, ―o fundamento último e a fonte mesma da lei‖, pois tem o poder geral de justificar uma ação inicialmente ilícita, transformando-a em algo permitido pelo direito. A teoria medieval do Estado sustentava que ―a necessidade age aqui como uma justificação de uma transgressão em um único e específico caso através de uma exceção‖. Mas é somente nos autores do final do século XIX e início do século XX que a idéia de necessidade vai receber o significado de um ―estado‖ da lei, onde deixa de significar uma situação isolada e singular de não obrigatoriedade da lei e se reveste efetivamente de fundamento da ordem jurídica. O motivo desta transformação, segundo Agamben, é que os 61

Cf. HOFMANN, Hasso. Legitimità contro legalità: la filosofia política di Carl Schmitt. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1999, p. 96. 62 SCHMITT, Carl. Politische Theologie, pp. 19-20. 63 AGAMBEN, Giorgio. Stato di eccezione, p. 34. 64 SCHMITT, Carl. Politische Theologie, p. 21.

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juristas, de Jellinek a Duguit, ―vêem na necessidade o fundamento de validade dos decretos com força de lei, emanados pelo executivo, no estado de exceção‖. 65 O problema, aqui, é objetivar uma situação concreta que só pode ser mensurada subjetivamente. A determinação das circunstâncias em que o estado de necessidade (e o de exceção) está confirmado depende, portanto, de uma decisão de caráter pessoal. Isso significa que, com a teoria da soberania schmittiana, o direito passa a demandar uma validade substancial e não meramente formal. A ordem social que emana de uma decisão nos moldes ―judiciais‖, isto é, de uma decisão que só tem validade em relação à situação concreta para a qual existe é uma ordem social que necessariamente deve se referenciar pelo Estado. Assim, em Schmitt, a decisão soberana não regula somente a existência do direito, mas permite a existência, a partir de determinados parâmetros, da própria sociedade. O fato de legitimar uma Constituição situa-se, desta forma, fora de sua dinâmica jurídica, tendo a ver especificamente com a ordem política que dá autoridade à Constituição. Da mesma forma que no conjunto conceitual schmittiano, a eclosão do antiliberalismo no Brasil levanta a necessidade de se desvincular a democracia do liberalismo. Tanto em Francisco Campos, como em Oliveira Vianna, notar-se-á a configuração de um modelo de ordem democrática sem as amarras formais das instituições liberal-parlamentares. A sociedade de massas, vista pelo antiliberalismo brasileiro como um

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AGAMBEN, Giorgio. Stato di eccezione, pp. 35-7. Vale lembrar que o objetivo de Agamben é identificar o processo histórico-jurídico a partir do qual o estado de exceção passa a ser uma forma corriqueira de regulação da ordem social nas democracias contemporâneas. Para esta autor, ―a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que seja eventualmente não declarado em sentido técnico) se transformou em uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, mesmo daqueles considerados democráticos. (...) Este deslocamento de uma medida provisória e excepcional em técnica de governo ameaça transformar radicalmente —e já tem de fato sensivelmente transformado— a estrutura e o sentido da distinção tradicional das formas de constituição. O estado de exceção se apresenta, nesta perspectiva, antes como um limiar de indeterminação entre democracia e absolutismo‖. (p. 11). Foi por esta razão que Agamben fixou-se em Schmitt para desenvolver esta análise dos fundamentos propriamente jurídicos da conformação do estado de exceção, pois é com Schmitt que o problema toma dimensões históricas dramáticas, já que a discussão conjuntural específica concerne a possibilidade da suspensão da ordem constitucional da República de Weimar a partir de uma interpretação extensiva do Art. 48 da Constituição de Weimar que previa a possibilidade da declaração do estado de exceção pelo Presidente do Reich. No seu livro O Guardião da Constituição (1931), Schmitt defende que as ―medidas necessárias‖ previstas na primeira parte do §2º do art. 48 não poderiam ser limitadas pela estipulação, no mesmo parágrafo, dos direitos a serem suspensos pelo Presidente, se este tem o aval do Reichstag (Parlamento). Com a autorização parlamentar o Presidente poderia soberanamente infringir a maioria dos artigos da Constituição que se tornassem impedimento para a restauração da ordem social. Cf. SCHMITT, Carl. Der Hüter der Verfassung. Berlin: Duncker & Humblot, 1996 (1931), e Cf. BENDERSKY, Joseph W. Carl Schmitt: theorist for the reich. Princeton: Princeton University Press, 1983, pp. 74 e ss.

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fenômeno universal, informará a proposição de uma ditadura nos moldes cesaristas, em que o elemento pessoal será determinante à fundamentação e à centralização do poder político.

1.3 A Soberania como decisão 66

O elemento pessoal (existencial) da decisão que reconhece e instaura o estado de exceção também indica a persistência de Schmitt em realizar uma crítica à compreensão liberal do direito condensada no pensamento do jurista austríaco Hans Kelsen. Em Problemas fundamentais da doutrina do Direito Público (1911), Kelsen apontava a idéia de proposição jurídica —um juízo hipotético realizado pela ciência jurídica— como caminho para classificar, de forma exclusivamente jurídico-normativa, os atos executivos do Estado, identificando-os com o próprio ordenamento jurídico. Dez anos antes de escrever Teologia Política, em seu primeiro livro: Direito e juízo: uma investigação sobre o problema da prática jurídica (1912),67 Schmitt levanta o problema do elemento decisionístico contido na prática judicial, numa polêmica direta com Kelsen. Através da compreensão do que Schmitt classifica como caráter normativo do conteúdo da decisão judicial, torna-se possível apreender, com maior precisão, o conceito posterior de decisão soberana como determinante do poder jurídico-político concreto. Compreender, na obra de Schmitt, como

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A primeira parte da argumentação desenvolvida a seguir está estruturada segundo um artigo produzido como estudo preparatório para esta tese. Cf. SANTOS, Rogerio Dultra dos. Direito e decisão judicial: Carl Schmitt e os fundamentos normativos da homogeneidade política. In: CADEMARTORI, Luiz Henrique. Temas de política e direito constitucional contemporâneos. Florianópolis: Momento Atual, 2004, pp. 2131. 67 SCHMITT, Carl. Gesetz und Urteil: Eine Untersuchung zum Problem der Rechtspraxis. Berlin: Otto Liebmann, 1912.

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o juiz decide é compreender de que forma o poder soberano atua.68 Para Schmitt, a questão nuclear da teoria jurídica contemporânea é a indeterminação legal, isto é, o fato de normas jurídicas gerais e abstratas estarem impossibilitadas de revelar um sentido preciso no momento de sua aplicação judicial ao caso concreto. Esta percepção opera em contraposição ao dogma positivista da completude do ordenamento jurídico, segundo o qual a decisão judicial sobre um caso concreto deriva lógica e dedutivamente da lei. 69 Para Schmitt, o juiz que necessita especificar a legalidade de sua decisão não tem, na lei pura e simples, um alicerce seguro.70 A questão a ser colocada, então, é: ―quando uma decisão judicial é correta?‖, ou melhor, ―Sobre qual princípio normativo está fundada a moderna prática jurídica?‖.71 Expressa dessa maneira, a prática do direito não pode ser limitada por um critério inócuo como a ―conformidade com a lei‖, pois decisões que não atingem o sentido da lei — que, na aplicação, é indeterminado— podem ocorrer e devem ser, por este exclusivo critério, consideradas como pertencentes ao ordenamento jurídico, já que se manifestam sob a forma legal. Este é o caso clássico, lembra Schmitt, de uma concepção nova do direito apta a obter reconhecimento utilizando o sentido literal da lei contra seu objetivo inicial, como ocorre na peça O Mercador de Veneza de Shakespeare. 72 Se decisões contra legem ou independentes da lei podem advir, a única forma de preservar o estatuto de autoridade da decisão é estabelecer sua especificidade legal, ou seja, é necessária a construção de um princípio metodológico hipotético que possa dar fundamento jurídico 68

Esta ―confusão‖ entre poder soberano e atividade judicial pode ser lida como pertencente a uma tradição que identifica no núcleo da formação do Estado, particularmente na Alemanha, o papel histórico do Poder Judiciário que, durante muito tempo, foi a instituição que permitiu o reconhecimento da unidade do Estado alemão. Para além desse fato, o poder judiciário representa, também, a afirmação de uma casta aristocrática que reproduzia o antigo regime pela sucessão hereditária e pela composição política de suas decisões com o poder soberano de direito. Schmitt, autor que não esconde sua simpatia pelos autores reacionários, encontra, assim, desde seus primeiros escritos, uma forma de retorno ao modelo monárquico de poder político, dizimado pela Revolução burguesa. A decisão soberana representa, portanto, um vínculo com a tradição, implícito no texto. Sob os auspícios de seu constitucionalismo antiliberal, assenta a falta estruturante de um poder incontrastável como na época dos reis. 69 Cf. HOFMANN, Hasso. Legitimità contro legalità, pp. 66-7. 70 Nem na lei, nem na dedução lógica, ou em princípios de razão de conteúdo imutável, ou na opinião do povo, nem na boa fé, no uso, nas ―normas de cultura‖ ou mesmo na representação normativa do ―direito livre‖. Cf. SCHMITT, Carl. Gesetz und Urteil, pp. 5 e ss, pp. 20 e ss. e Cf. HOFMANN, Hasso. Legitimità contro legalità, p. 68. 71 Cf. SCHMITT, Carl. Gesetz und Urteil, p. 1. 72 Idem, p. 112. Quando Portia, travestida de advogado, impede a condenação de seu amado, alegando a impossibilidade empírica da aplicação exata da pena, já que seria impossível retirar tão-somente uma libra de carne do lado esquerdo do peito, sem derramar uma gota de sangue a mais.

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autônomo —independente da pretensão de legalidade estrita— à prática judicial, manifesto na seguinte fórmula: ―Uma decisão judicial é correta hoje se se puder assumir que um outro juiz tenha decidido no mesmo sentido. ‗Um outro juiz‘ refere-se aqui ao tipo empírico do jurista moderno e legalmente formado‖.73 ―Um outro juiz‖ representa a tradição da prática judicial. Assim, para que uma decisão judicial seja válida juridicamente (seja ―correta‖) —numa prática corriqueira, que não pretende resolver os casos difíceis ou estabelecer princípios gerais destituídos de significado normativo—, é preciso, qualquer que seja a direção da sentença, que o juiz esteja sempre se reportando, não necessariamente ao sentido da lei, mas ao sentido das decisões que anteriormente foram prolatadas. A tradição judicial, mais que o estatuto legal, passa a ser o fundamento de sentido da prática do juiz e o seu âmbito de especificidade legal. O argumento de Schmitt não aponta, como poder-se-ia inicialmente pensar, para uma discricionariedade livre, mas remete a um elemento personalista da decisão em contraposição, por exemplo, ao formalismo abstrato do liberalismo jurídico de Kelsen. Para Schmitt, o formalismo kelseniano peca por creditar a legitimidade da decisão judicial exclusivamente ao fato de o juízo ser normativamente competente para prolatá-la,

73

Idem, p. 71. A questão do método, nesse texto de Schmitt, está vinculada a um posicionamento que não se identifica totalmente com a sua posterior idéia de método definida a partir da claridade conceitual (relativa à conformação histórica e concreta de um modelo capaz de determinar o sentido de uma interpretação específica da realidade). O que Schmitt defende em sua obra de juventude é um juízo hipotético que se relaciona com a realidade, mas que a transcende por ser a-histórico e puramente racional. Sua relação com a realidade concreta é de conformação –enquanto princípio diretivo da própria realidade– e não de simples interpretação. De fato persiste, em ambas as posições epistemológicas, a existencialidade como diretiva, mas sua posição no modelo schmittiano difere sensivelmente em cada um desses momentos de seu pensamento.

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reconhecendo uma esfera limitada de discricionariedade —validada pela norma jurídica geral— dentro da qual o juiz é livre para determinar o sentido da norma em concreto.74 Para Kelsen, a elaboração da norma individual, no momento em que se aplica a lei, é uma função da vontade, contanto que se preencha, com esta, o limite da norma geral, ou seja, se com a vontade, a moldura formal estabelecida pela norma jurídica é respeitada no momento da definição do conteúdo concreto da sentença, sendo a norma um marco com várias possibilidades de execução. Desse modo, a lei, quando aplicada a um caso concreto, não pode gerar uma única decisão correta. A teoria que objetivaria normatizar o conteúdo da decisão judicial, externada — segundo Kelsen— pela dogmática tradicional, seria a tentativa inócua de ―desenvolver um método que autorize a preencher retamente o marco verificado‖. 75 Assim, a validade em que se apóia a prática da aplicação da lei tem um caráter absolutamente político-jurídico, pois nada que se realize para além do demarcado pela norma jurídica pode ser considerado puramente normativo. Este ponto de vista torna o ato jurisdicional uma apreciação volitiva daquele que está autorizado, pelo próprio direito, a realizá-lo, ou seja: o juiz, ao aplicar a lei, decide politicamente, a partir de limitações formais impostas pela norma, qual a norma individual, dentre várias possíveis, a ser aplicada. A aplicação do direito é um ato intelectual a que se soma a vontade, competente por uma autorização normativa do Estado.

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As diferenças entre o formalismo, o liberalismo, o realismo jurídico e o decisionismo de Schmitt, no que diz respeito ao grau de determinação das regras jurídicas prescritivas podem ser assim resumidas (seguindo Scheuerman): 1) o antigo formalismo liberal considera a exegese vinculada à ―vontade do legislador‖ a única possibilidade de aplicação correta do direito, estabelecendo a tese da determinação estrita das normas jurídicas (Montesquieu); 2) o liberalismo jurídico positivista declara uma esfera limitada de discricionaridade da decisão judicial, na tese da indeterminação limitada das normas (Kelsen e Hart); 3) o realismo e o liberalismo jurídicos contemporâneos, reconhecendo que a lei somente serve de guia mínimo para sua interpretação e aplicação –atividades que são naturalmente muito mais abertas por vincularem-se a casos concretos–, endossam a tese da sobredeterminação das normas, indicando a regularidade da decisão judicial tanto na sobreposição das regras do mercado econômico livre (Posner), quanto na limitação realizada por ideais liberais de eqüidade e justiça (Dworkin); finalmente, 4) o decisionismo de Schmitt sustenta que a norma jurídica não é princípio regulativo eficaz da decisão, e abraça a tese da indeterminação do conteúdo da decisão, cuja conseqüência é a necessidade de construir uma teoria normativa cujo fundamento de validade do direito não está na norma, mas na decisão pessoal/tradicional do aplicador da lei. Cf. SCHEUERMAN, William. Carl Schmitt: the end of law. Lanham, Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1999, pp. 8 e ss.; Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2ª edição. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 388-393.; Cf. McCORMICK, John P. Carl Schmitt’s critique of liberalism: against politics as technology. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, pp. 206 e ss.; e Cf. HOFMANN, Hasso. Legitimità contro legalità, p. 76. 75 Cf. KELSEN, Hans. La Teoría pura del derecho: introducción a la problemática científica del derecho. Traducción por Jorge G. Tejerina. Buenos Aires: 1941 (1934), pp. 131-136.

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Não existe a possibilidade de se evitar a pluralidade das alternativas possíveis na resolução de cada caso, a não ser por uma decisão política do próprio juiz. 76 Já na abordagem decisionista de Schmitt —e devido à sua pretensão de identificar o elemento normativo da decisão judicial—, a objetividade (normatividade) jurisprudencial existe e é constituída consensualmente (racionalmente), entre iguais. É possível afirmar que essa igualdade constitui-se a partir de uma elite estruturada existencial e historicamente através da manifestação reiterada de uma decisão que garante a continuação —idealizada— da realização do passado. Nesse sentido, decidir, tanto política quanto juridicamente, significa definir a própria individualidade como unidade autêntica com um destino ou um objetivo determinado: a reafirmação da ordem. Para Hasso Hofmann, Schmitt tenta afastarse, sem sucesso, da problemática kelseniana estabelecida em seu primeiro texto, através da divisão metodológica entre as questões derivadas do estudo da ciência do direito (subsunção da validade de uma norma jurídica por outra em um determinado ordenamento) e da aplicação prática do direito (método de interpretação da norma jurídica com vistas à aplicação judicial). Quando Schmitt pergunta-se sobre a juridicidade da decisão judicial, nada mais faz do que identificar a problemática da aplicação do direito como sendo expressamente normativa, o que, se elimina a ilusória distinção de Kelsen entre conhecimento e aplicação, faz por reconhecer a decisão judicial como problema da ciência do direito.77 A asserção metafísica implícita em Schmitt, neste ponto, é que o juiz, ao suprimir as lacunas na aplicação da lei ao caso concreto, é a ―humanidade‖, a ―vida‖ do direito. É esta substância vital, expressa na decisão do juiz no caso excepcional, que deve ser matizada por uma abordagem através da teoria do direito —da constituição de um juízo hipotéticonormativo. A pretensão do liberalismo, de assegurar o formalismo da jurisprudência, não passa de quimera, na medida em que não permite a participação do elemento pessoal. A pessoalidade é uma característica constitutiva do Estado em formação no século XX, cuja atuação interventiva —na realização de políticas de governo ou na atuação organizativa da burocracia— solicita estruturalmente uma legislação mais aberta e menos discernível. Segundo John McCormick, o que Schmitt critica é o fato de que ―Ao reprimir o Estado, os

76 77

Idem, p. 132. Cf. HOFMANN, Hasso. Legitimità contro legalità, pp. 66-7.

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formalistas legais não somente não previnem o funcionamento arbitrário do Estado, como permitem que sua atividade prolifere em extensão, e de forma não detectável, em um grau maior‖.78 A motivação da decisão judicial deve ter como objetivo ―institucional‖, então, a condução a um convencimento geral sobre a própria decisão. Assim, argumentará Schmitt, o que dá legitimidade à decisão é o efeito de convencimento produzido por ela: ―o que constitui a justeza da decisão não é o fato do juiz se comportar conforme a um comando, mas que este satisfaça o princípio da determinação jurídica‖. 79 Este princípio representa, epistemologicamente, a tentativa de superar a antítese kantiana entre ser e dever-ser, entre fato e norma, através da justificação do ato, da práxis judicial, por si mesma. 80 O pensamento jurídico é estruturado, pois, para gerar e se ver realizado através de uma decisão concreta, de natureza política porque consensual, estamental, personalíssima e, especialmente, justificativa. Obviamente, a resposta de Schmitt à questão —o juiz deve se reportar à tradição, ao juiz ―outro‖ e daí retirar a medida concreta da decisão— marca o caráter político do direito. É possível afirmar, portanto, que Schmitt reitera, de certo modo, a visão estabelecida em 1912, em seu ensaio de juventude, segundo o qual a regularidade jurídica deve ser preservada através da homogeneidade dos juízes. 81 O Schmitt do Defensor da Constituição (1931) se remete ao livro Direito e juízo para afirmar o caráter substancial do decisionismo: ―em toda decisão, inclusive na de um tribunal que decide processualmente subsumindo conforme os fatos, existe um elemento de pura decisão, que não pode ser derivado do conteúdo da norma‖. Esta decisão se realiza —continua—, ―através da eliminação (Beseitigung) autoritária da dúvida‖. 82 Para o autor, portanto, se a ―perspicácia logicista‖ dos argumentos trazidos ao direito pode suscitar sempre dúvidas novas, o sentido e o objeto da sentença —que é a decisão— é sempre eliminá-las de forma autêntica, realizando a prestação jurisdicional. A necessidade de um juízo lógico-hipotético que fundamente de maneira objetiva a decisão, não faz mais parte do universo conceitual do decisionismo schmittiano dos trabalhos 78

Cf. McCORMICK, John P. Schmittian positions on law and politics?: CLS and Derrida. In: CARDOZO LAW REVIEW. Carl Schmitt: legacy and prospects - A International Conference in New York City. New York: Yeshiva University, maio 2000, vol. 21, nº. 5-6, pp. 1693-1722., pp. 1697-8. 79 Cf. SCHMITT, Carl. Gesetz und Urteil, pp. 97-8. 80 Cf. HOFMANN, Hasso. Legittimità contro legalità, p. 72. 81 Ver, nesse sentido, SCHEUERMAN, William. Carl Schmitt, p. 115. 82 Cf. SCHMITT, Carl. Der Hüter der Verfassung, pp. 45-6.

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futuros, mas a objetividade política alcançada pela decisão judicial continua representando que o direito torna-se incontestável em sua demonstração através da personalização concreta e o papel da tradição na construção de um juízo normativo sobre a conformação da decisão. A pessoalidade da manifestação jurídica a legitima política e socialmente. A decisão, em si, transforma-se, no trabalho posterior de Schmitt, em origem e fundamento de toda a fenomenologia do direito,83 o que equivale a dizer que as manifestações concretas do direito só são possíveis —o direito só se realiza— por emanarem de um ato decisório de caráter pessoal. Não só isto: a decisão passa a fundar a própria ordem social, como no caso da decisão soberana, da decisão política ordenativa da qual origina o pensamento decisionista propriamente dito, como sustenta no livro Sobre os três modos de pensar a ciência jurídica (1934). A partir do filósofo inglês Thomas Hobbes, segundo Schmitt, [t]odo direito, todas as normas e leis, todas as interpretações de leis, todas as ordens são para ele essencialmente decisões do soberano, e o soberano não é um monarca legítimo ou uma instância competente, mas o soberano é exatamente aquele que decide soberanamente. Direito é lei e lei é o comando que decide uma disputa jurídica: Auctoritas, non veritas facit legem.84 A decisão significa o surgimento de uma vontade soberana que elimina a desordem existente no estado de natureza através da fundação da ordem Estatal: ―[a] decisão soberana é o princípio absoluto‖, numa referência à Hobbes, uma ―ditadura estatal‖ criadora, estabelecida sobre a insegurança anárquica pré e infra-estatal. 85 É quando o soberano, efetivamente, atua como um juiz que decide de acordo com a contingência, o contexto concreto que informa o caso excepcional. A necessidade que tem Hobbes de compreender os desígnios concretos da realidade social leva-o, como jurista, a identificar a decisão como a forma fundamental da unidade do Estado —lembra Schmitt, na Teologia Política: A forma pela qual [Hobbes] procurava se encontrava na decisão concreta, tomada por uma instância específica. Sendo a decisão independente, o sujeito que decide passa a ter um significado desligado do conteúdo da decisão. O importante para a realidade da vida jurídica é quem toma a decisão. 86

83

Cf. HOFMANN, Hasso. Legittimità contro legalità, p. 78. Cf. SCHMITT, Carl. Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens. Berlin: Duncker & Humblot, 1993 (1934), p. 23. 85 Idem, p. 24. (grifo do autor). 86 SCHMITT, Carl. Politische Theologie, p. 40. 84

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O entender a decisão como determinante de uma forma específica de organização jurídico-política (o Estado ditatorial), contaminou os filósofos católicos contrarevolucionários, que negavam a conversação eterna como uma metafísica romântica e assumiam que o tempo histórico da política sempre exige uma decisão.87 A história da Revolução Francesa mostra que um modelo de relação entre política e Estado estava sendo efetivado pela burguesia: substituir, exatamente, a resolução do conflito através da decisão, pelo entabular de uma discussão. Numa época de crise social não é possível pôr fim aos conflitos orientando a atividade política para discursos na imprensa e no Parlamento. Supor o caso extremo sempre presente —comparado por Donoso Cortés ao juízo final— é o que leva seu decisionismo identificar, na ditadura, o oposto da discussão.88 A caracterização da decisão política soberana —que procura romper com as características do Estado liberal clássico e, portanto, escapar do romantismo político— aponta igualmente para uma formação específica do Estado. Ela é anterior a Hobbes e permanece pela conformação da Teoria do Estado da maioria dos pensadores políticos modernos da tradição mobilizada, geralmente por Schmitt, e que o autor vê surgir na teoria política de Maquiavel: o estado técnico, cujo funcionamento não leva em conta a atuação estatal ou é indiferente a seu fim político. Para Schmitt, portanto, se o direito é necessário como forma do Estado, por excelência, a legitimação da ordem política não se dá pela via jurídica a não ser que ela esteja informada pela autoridade existencial da decisão soberana. Enquanto as instituições jurídicas liberais, informadas pela metafísica romântica, não têm a capacidade de operar a partir da legitimidade substancial da decisão soberana, estão cumprindo o papel histórico de neutralização da esfera política. O romantismo político representa, então, o liberalismo como a forma política que refuta o espaço da decisão, fundamento da ação concreta do homem no mundo. Enquanto o romantismo político prevalece como forma de atuação no mundo, a política fica à mercê dos instrumentos amorais e culturalmente cegos da técnica. O homem perde, assim, a capacidade de orientar87

Idem, p. 59. Idem, p. 67. Juan Donoso Cortés (1809-1853), ensaísta católico espanhol, é um dos autores fundamentais quando se trata de construir a visão de mundo schmittiana, objeto de variados estudos do autor, referenciado, diretamente, como fonte de sua Teologia Política. É o pensador que estabelece, numa perspectiva próxima, se não idêntica de Schmitt, a relação entre teologia e política, reclamando em seu Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo, em discussão com Proudhon, a existência de questões teológicas em todas as questões políticas, dada a existência de Deus e ao fato de que tudo está disposto pelo entendimento divino. Cf. CORTÉS, Juan Donoso. Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo. Edición preparada por José Vila Selma. Madrid: Editora Nacional, 1978. 88

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se por uma decisão que o representa no mundo, ficando cerceado por uma conflituosidade que não consegue eliminar. Essa orientação só pode ser recuperada, segundo Schmitt, pelo reconhecimento da força estruturante da decisão soberana, da manifestação excepcional da soberania. O que está descartado pela Teoria do Estado liberal. Sob o liberalismo, portanto, os antagonismos sociais se acumulam até transformar-se em crise. Um modo de verificar até onde o liberalismo é capaz de produzir a crise é a avaliação de suas instituições propriamente ditas, objetivo da discussão a seguir. Vale anotar, por último, que no antiliberalismo brasileiro, constituído a partir da recepção do modelo schmittiano e das experiências constitucionais alemã e polonesa, a ditadura reveste-se de um caráter material, o direito não se resumindo aos aspectos puramente normativos técnicos de sua aplicação. O poder político, concentrado no Executivo, avocará a produção e o controle da legislação — por conta, inclusive, da responsabilidade pessoal do Presidente da República sobre a constituição da ordem social—, bem como demandará a coletivização de sua aplicação, o que fará Oliveira Vianna classificar essa transferência de funções, no constitucionalismo antiliberal brasileiro, de administrativização dos poderes legislativo e judiciário.

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2. DITADURA, DEMOCRACIA E ORDEM CONSTITUCIONAL

No primeiro capítulo foi demonstrado como Schmitt constrói seu arcabouço teórico básico a partir de uma crítica ao liberalismo. O estudo de seus trabalhos demonstra sua compreensão idiossincrática da formação do Estado moderno. Enquanto os contornos da manifestação existencial e histórica do liberalismo são classificados como romantismo político, a sua utópica interpretação do mundo agiria através do mecanismo intelectual de secularização, transpondo conceitos teológicos para compreender o fenômeno político. Nesse processo de secularização, o conceito de soberania foi paulatinamente restringido pela Teoria do Estado liberal a uma fórmula abstrata que, segundo Schmitt, eliminou o elemento de autoridade necessário ao reconhecimento político da soberania. Para contrapor-se a essa análise negativa da reconfiguração conceitual do Estado moderno realizada pelo liberalismo, Schmitt propõe aproximar o decisionismo do fenômeno político. Se a soberania do Estado representa uma normalidade inabalável que deve permanecer ativa sob pena de desconstituir sua naturalidade, Schmitt considera coerente sintetizar o repúdio à idéia de estado de exceção como conseqüência da eliminação da lógica do milagre realizada pelo racionalismo liberal, já que ela coloca em xeque a regra jurídica, isto é, macula a hegemonia da normalidade constitucional. 89 Interpretar o processo liberal de secularização a partir da tentativa de proscrição da lógica do milagre é, para Carlo Galli, o momento em que ―a teologia política de Schmitt se torna a compreensão epocal da necessidade da soberania decisionística: se o Moderno é inaugurado por uma catástrofe de 89

Cf. SCHMITT, Carl. Politische Theologie, p. 43. A acusação das doutrinas do Estado de Direito de fazerem teologia é também um ataque fundamentado e específico às acusações levianas e à posição teórica de Hans Kelsen. Para Schmitt, portanto, ―A ‗onipotência‘ do legislador moderno, mencionada em todo manual de Direito do Estado, não foi extraída da teologia apenas verbalmente. Mesmo nos detalhes da argumentação emergem reminiscências teológicas. // Naturalmente com intenções polêmicas. Na era positivista, gosta-se de criticar o adversário científico acusando-o de direção teológica ou metafísica. Quando a crítica é mais que mera afronta, conviria perguntar ao menos donde provém a inclinação por tais gafes teológicas e metafísicas; dever-se-ia investigar se isto será explicado historicamente, talvez como efeito secundário da teoria monárquica do Estado que identificava o Deus teísta com o rei, ou se talvez se fundamente em necessidades sistemáticas ou metodológicas. Gosto de admitir a existência de juristas cuja incapacidade de assimilar intelectualmente argumentos ou objeções contraditórios os leva a acreditar que o Estado surja de uma espécie de curto-circuito do pensamento, da mesma forma que certos metafísicos fazem o mau uso do nome de Deus para tais fins‖. Idem, pp. 44-45.

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paradigmas, a soberania decisionística, não a mediação, é o modo politicamente adequado de arbitrá-lo‖.90 A interpretação schmittiana da modernidade identifica, portanto, a crise de um modelo político que é constitutivo da própria modernidade. A este modelo político em colapso importa ativar a ação política concreta —através do Estado, epicentro da tensão. Isto implica, por outro lado, reconfigurar estruturalmente o Estado. A decisão soberana que se manifesta em caso de exceção transforma-se no instrumento atuante da política estatal no reconhecimento e no combate enérgico ao que abala a ordem estabelecida. Schmitt precisa do instrumento excepcional para realizar a potência do Estado. O caráter jurídico —e judicial— da decisão soberana remete à constituição de um Estado que mobiliza suas instituições no combate às controvérsias e outras crises possíveis. Como já era sabido pelos filósofos de Estado contra-revolucionários —entre as revoluções de 1789 e 1848 — ―a época exigiu (verlangt) uma decisão‖.91 Nesse sentido, mais do que estabelecer as características através das quais Schmitt identifica as fraquezas do que classifica como Estado burguês de Direito (bürgerlichen Rechtsstaates), mais relevante —para os objetivos desta tese—, é identificar qual é a resposta articulada pela sua obra. O modelo de ordem delineado por Schmitt se relaciona, obviamente, de forma direta —e tensa— tanto com a Teoria do Estado liberal quanto com o próprio Estado burguês de Direito, o que implica, de alguma forma, a determinação de seus elementos constitutivos. Mas esta tensão estabelecida por ele —que é de natureza crítica e reativa a uma determinada cosmovisão—, não impede que o foco deste trabalho seja dirigido menos ao diagnóstico do autor alemão e mais ao estabelecimento de seu modelo de ordem e conseqüente estrutura de funcionamento. No último capítulo de seu livro Teologia Política, Schmitt deixa claro que para De Maistre e Donoso Cortés, —que interpretam a atitude política liberal de transformar uma certa prática política de compromissos em atitude sistemática e metafísica como resultado de ―uma estranha confusão panteísta‖—, o valor do Estado deriva do fato deste ter o poder de realizar uma decisão última considerada infalível, isto é, para a qual não há possibilidade institucional de revisão.92 Por isto, ―suspender a decisão no momento crucial, negando 90

GALLI, Carlo. Genealogia della politica, p. 353. SCHMITT, Carl. Politische Theologie, p. 59. 92 Idem, pp. 60-66. 91

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inclusive que houvesse algo a decidir‖ é o tipo de atitude que não reconhece a possibilidade da existência do caso extremo, do conflito político de natureza existencial, que demarca a presença do próprio espaço da política. A atitude oposta, isto é, reduzir o Estado a uma decisão que não carece de justificativa, é uma ditadura pura e simples, mas não é legitimidade.93 Entre estes dois extremos encontra-se o caminho de Schmitt. É da configuração do modelo de Estado Schmittiano que será possível identificar os conceitos e as técnicas utilizadas quase que simultaneamente pelo constitucionalismo brasileiro. O momento antiliberal no Brasil dependerá, portanto, da incorporação de um conjunto de elementos doutrinários que se farão unidos pela forma de Estado organizada intelectualmente por Schmitt.

93

Idem, p. 69.

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2.1 Democracia e representação: a formação do cesarismo plebiscitário

Para compreender a passagem da crítica ao liberalismo até a ditadura como uma forma de manifestação legítima e jurídica da soberania —o que, na verdade, define um Estado autoritário e antiliberal—, é preciso estabelecer dois dos conceitos centrais mais importantes de Schmitt: democracia e representação política.94 Na verdade, compreender a ordem jurídico-social que pode ser apreendida do conjunto dos textos de Schmitt em sua fase weimariana, precede logicamente a arrumação estritamente constitucional de seu ―tipo ideal‖ de Estado —aquele capaz de superar situações de crise aguda através do enfeixamento do poder político institucionalizado e da decisão emergencial. Identificar a democracia e seu elo com o processo constituinte do Estado representativo é o primeiro passo para aproximar-se, de maneira consistente, de sua construção propriamente jurídicoconstitucional. No seu livro A Situação histórico-espiritual do parlamentarismo contemporâneo (1923) o autor argumenta que, com o surgimento das democracias de massa em meados do século XIX, o sistema representativo instituído através do Parlamento tornou-se incapaz de produzir a legitimidade necessária à geração de um governo estável, ou para assegurar a viabilidade concreta da democracia representativa, derivada da relação entre eleitores e parlamentares. 95

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Ver, nesse sentido, KAUFMANN, Matthias. ¿Derecho sin reglas? Los principios filosóficos de la teoría del Estado y del derecho de Carl Schmitt. Traducción de Jorge M. Seña. Revisión de Ernesto Garzón Valdés y Ruth Zimmerling. 3ª edición. México: Distribuciones Fontamara, 1999 (1989), p. 136. 95 SCHMITT, Carl. Die Geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. Berlin: Duncker & Humblot, 1996 (reimpressão da Segunda edição, de 1926). Nesse sentido, veja-se o estudo de Manuel Aragon, que demonstra o momento preciso em que o debate Schmitt/Kelsen retoma fôlego, agora no que concerne aos destinos da República democrática de Weimar (1919-1933). Cf. ARAGÓN, Manuel. Estúdio preliminar. In: SCHMITT, Carl. Sobre el parlamentarismo. Traducción de Thies Nelson y Rosa Grueso. 2ª edición. Madrid: Tecnos, 1996 (1990), pp. IX-XXXVI. É idêntica a opinião de GALLI, Carlo. Genealogia della politica, pp. 537 e ss., e em ZARONE, Giuseppe. Occasio e causa: metafisica e politica della volontà decisiva. In: RACINARO, Roberto. Tradizione e modernità nel pensiero politico di Carl Schmitt. Roma: Edizioni Scientifiche Italiane, 1987 (Publicazioni Dell‘Università degli Studi di Salerno, nº 19), pp.49-88, pp. 69 e ss.

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Inicialmente, Schmitt mostra que o direito de voto proporcional inaugura o princípio segundo o qual os parlamentares representam todo o povo, submetendo-se, no momento das decisões políticas, às suas próprias consciências, e não a um prévio acordo com seus eleitores mais próximos. Este fato suprime, em última análise, a legitimidade histórica e de princípio de um sistema que foi intelectualmente construído para estabelecer o vínculo direto —agora impossível— entre eleitor e parlamentar. Este vínculo, de aparente natureza ideal, objetiva ―realizar a identidade entre o Estado e o povo‖, mas esbarra na organização do sistema eleitoral, inadequado para fazer valer uma vontade popular concreta, não manipulável, nem parcial ou elitista.96 Na verdade, a democracia indireta transforma-se, neste contexto, em algo indistinto do sistema parlamentar. O problema é que a discussão e a publicidade, que seriam, segundo o autor, os princípios legitimadores da constituição histórica e das disposições e normas dos parlamentos europeus perderam a credibilidade. Schmitt responde com a possibilidade de identificar a vontade popular concreta através da manifestação simples e imediata da massa através da aclamação popular (Zuruf, acclamatio) ou por obra de um indivíduo que encarne esta vontade. 97 O autor se vincula, assim, ao cesarismo como forma política por excelência, a uma forma de Estado ditatorial centrada na figura mítica do Líder, que necessita se legitimar pela mobilização emocional (irracional) das massas e objetiva resolver ―por cima‖ as tensões sociais em movimento. Para Schmitt, a questão dos princípios na configuração do parlamentarismo é a base para o estabelecimento das características, das funções, da atuação e do próprio fundamento de qualquer sistema político, sendo inimaginável um intercâmbio ilimitado de princípios pertencentes a sistemas estruturalmente distintos.98 Os parlamentos do mundo atual, vinculados a uma democracia representativa de massas, caracterizar-se-iam pelo deslocamento (inclusive físico) do centro de decisão —dos plenários para os gabinetes—, do espaço público e da discussão racional para o espaço das negociações secretas e oportunistas de interesses econômicos que a esvazia. À crítica ao sistema parlamentar como um todo, Schmitt acrescenta a cota de responsabilidade dos partidos, que

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SCHMITT, Carl. Die Geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, pp. 22 / 35. Cf. SCHMITT, Carl. Vorbemerkung (über den Gegensatz von Parlamentarismus und Demokratie). In: SCHMITT, Carl. Die Geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, pp. 6-7 e 35. 98 Cf. SCHMITT, Carl. Vorbemerkung (über den Gegensatz von Parlamentarismus und Demokratie), p. 8. 97

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hoje já não se enfrentam como opiniões em discussão (diskutierende Meinungen), mas sim como poderosos grupos de poder social ou econômico, calculando os múltiplos interesses e suas possibilidades de alcançar o poder e realizando, a partir desta base fática, compromissos e coalizões. As massas são conquistadas através de um aparato de propaganda cujos melhores resultados estão baseados em um apelo às paixões e aos interesses imediatos.99 A Realpolitik resultante não assume seus pressupostos, e a realização da democracia liberal, que deveria significar consenso e aceitação, transforma-se em um instrumento prático e técnico completamente distanciado de um fundamento liberal: ―a crença no parlamentarismo, num government by discussion, pertence ao mundo intelectual do liberalismo. Não pertence à democracia‖. Assim, se o parlamentarismo não é naturalmente um instrumento da democracia, mas sim do liberalismo, o princípio representativo torna-se inviável e sem sentido. Tentar encontrar um novo princípio para a legitimação do parlamento como locus específico de elites políticas especialmente selecionadas para o desempenho público é não perceber a nova e desprezível (verachteten) configuração de uma classe dirigente voltada exclusivamente para suas desprezíveis negociatas.100 Um dos mais destacados intérpretes de Schmitt, o pensador italiano Carlo Galli, considera o conceito de democracia uma manifestação explícita da diferença teórica entre o antiliberalismo schmittiano e o pensamento liberal. Para se chegar à identificação de uma ―verdadeira democracia‖, ―liberalismo e democracia devem ser separados, para que se reconheça a estrutura heterogênea que constitui a moderna democracia de massas‖. 101 Para Schmitt, portanto, o núcleo da democracia —tendo-se afastado o liberalismo, que confundia seus pressupostos—, pode ser identificado como a homogeneidade política substancial, derivada da igualdade como manifestação institucional de uma organização social determinada. Homogeneidade implica tanto tratar igualmente o igual quanto tratar diferentemente o desigual e pode significar, como conseqüência lógica, o extermínio (Vernichtung) do heterogêneo. Para Schmitt, inclusive, ―a força política de uma democracia se evidencia em saber remover ou afastar o estranho e o diferente, o que ameaça a homogeneidade‖. Como exemplos de manifestação histórica dos fundamentos do conceito de homogeneidade, o autor indica que a substância da democracia, isto é, a substância da 99

Idem, p. 11. Idem, pp.13; 8. 101 Idem, p. 13. 100

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igualdade pode ser identificada através da religião, da virtude cívica e, a partir do século XIX, da nacionalidade e conseqüente constituição do Estado nacional. 102 Isto significa que o sentido schmittiano de democracia baseia-se na idéia de um povo situado concretamente no tempo e no espaço —comunidade nacional— capaz de manifestar politicamente a sua vontade, a concepção que entra em choque com a fórmula universalista e racional do liberalismo.103 Também a forma do exercício democrático, na visão de Schmitt, distingue-se da democracia liberal. As democracias contemporâneas estariam caracterizadas por se basearem, de fato, na homogeneidade substancial (que diferencia nacionais de estrangeiros, por exemplo) e não na idéia de humanidade universal: a igualdade absoluta dos direitos políticos é inviável por desprezar as individualidades, as diferenças naturais, as desigualdades de fato e a própria substância da identidade nacional, fundada nestes elementos. Schmitt credita à igualdade humanizadora do liberalismo a possibilidade de deslocar as desigualdades substanciais —que permaneceriam existindo, a despeito das pretensões liberais— para um outro âmbito, que não o político, fazendo com que ele perca a sua força coordenativa em detrimento da esfera econômica, por exemplo. Esta forma moral de compreensão e/ou visão de mundo, este humanitarismo —na perspectiva da Teoria do Estado liberal—, ―é a verdadeira razão do lamentável domínio do econômico sobre o Estado e a política‖.104 Para Schmitt, o exercício da democracia deve procurar sua origem moderna naquilo que há de mais profundo na proposta de Rousseau, um desenvolvimento essencial do conceito da volonté générale, —a idéia segundo a qual a homogeneidade conduz à unanimidade da vontade, gerando identidade entre governantes e governados. A volonté générale, a essência da democracia de Rousseau, é igual à homogeneidade. A partir deste panorama, Schmitt alcança suas conclusões lógicas: a) a democracia não se confunde com o liberalismo, por consistir não em igualdade formal, mas em igualdade substancial nacional (homogeneidade); b) na modernidade, a democracia de massas pode realizar-se sem utilizar o sistema de representação parlamentar, o que significa identidade entre representantes e representados; e, especialmente, c) um Estado anti-liberal, organizado como uma ditadura, 102

Idem, p. 14. Ver GALLI, Carlo. Genealogia della politica, p. 538. 104 SCHMITT, Carl. Vorbemerkung (über den Gegensatz von Parlamentarismus und Demokratie), p. 18. 103

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não é necessariamente anti-democrático, porque funciona através da educação da vontade do povo (numa espécie de jacobinismo) para alcançar a homogeneidade política. Nesse sentido, é possível sustentar, diz Schmitt, a legitimidade democrática da ditadura.105 A democracia plebiscitária aparece, então, como a forma adequada de manifestação e expressão vitais da volonté générale, realização daquele princípio da identidade — ―identidade do povo em sua existência concreta consigo mesmo como unidade política‖. 106 A volonté générale, uma vez realizada na aclamação, representa o poder constituinte exercitando-se publicamente, em contraposição direta com a forma vazia e artificial do voto individual, secreto, privado e escrutinado, que mantém a irresponsabilidade anônima de uma computação aritmética da representação indireta.107 A relevância do processo de representação política nos termos estabelecidos por Schmitt está na possibilidade da construção de uma ordem democrática que escape às armadilhas dos sistemas universalistas do liberalismo como na própria mecanização e desumanização das relações políticas das esferas técnica e econômica. Trata-se de uma leitura decadentista do progresso técnico, como já se viu, que faz com que o autor recupere uma leitura que identifica a idéia de representação política como antídoto espiritual à nova época. Busca a identificação da representação política com o modus operandi da Igreja Católica, considerando a técnica e a economia como conseqüência do desconhecimento da tradição, a necessidade da recuperar a força espiritual de uma instituição que dê conta das aporias da modernidade. Alguns anos antes de desenvolver sua análise sobre o processo de secularização na modernidade, pois, Schmitt já apontava, em um pequeno opúsculo denominado Catolicismo Romano e forma política (1923), que são múltiplos os mitos desenvolvidos pela cultura ocidental sobre o poder político representado pelo catolicismo romano.108 A origem desse sentimento anti-romano, o medo incomensurável do poderio desta instituição universal, mais que de sua enorme estrutura burocrática e imperial é sua idéia política fundamental: não há oposição que a Igreja não abarque, seja ela política, estética, social, ou qualquer outra oposição material. Institucionalmente e perante outras formas de 105

Idem, pp. 19 e ss. Cf. SCHMITT, Carl. Verfassungslehre, p. 223. 107 Cf. SCHMITT, Carl. Vorbemerkung (über den Gegensatz von Parlamentarismus und Demokratie), p. 22. 108 Cf. SCHMITT, Carl. Römischer Katholizismus und politische Form. Stuttgart: Klerr-Cotta, 1984 (reimpressão da segunda edição, de 1925), p. 5. 106

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organização, a Igreja constitui-se como uma complexio oppositorum. Assim, sustenta Schmitt que, Examinada através da idéia política do catolicismo, a essência da complexio oppositorum católica romana assenta em uma específica supremacia formal sobre as matérias da vida humana, tal como nenhum império conheceu até agora. Aqui se conseguiu assim uma configuração substancial da realidade histórica e social que, apesar de seu caráter formal, permanece na existência concreta, plenamente vital (lebensvoll) e, no entanto, racional no mais alto grau. Esta peculiaridade formal do catolicismo consiste na estrita aplicação do princípio da representação. Em sua especificidade encontra-se uma muito clara oposição ao pensamento econômicotécnico dominante.109 Em princípio, a Igreja personifica a idéia da unidade da oposição de complexidades, isto é, ela tem a capacidade formal de absorver os mais variados e dissonantes interesses e partidos, já que está configurada institucional e juridicamente como representante de um valor universal sintetizado na humanidade de Cristo. Este poder é racional na medida em que está ―interessado na direção normativa da vida social, que demonstra a si através de uma lógica especificamente jurídica‖, racionalidade que significa a forma jurídica através da qual uma vontade dogmática de decisão pode configurar, politicamente, a realidade. A força política do conceito de composição de complexidades é o fato de que, qualquer que seja a oposição existente, qualquer que seja o conflito entre sistemas políticos, a noção de representação da Igreja é capaz de abarcá-los todos e dar-lhes sentido. A idéia que dirige a composição das oposições as vê como instrumento de realização da própria idéia, não havendo a possibilidade de ver forma política ou instituição qualquer suplantarem a hegemonia da idéia que opera o sentido do mundo. 110 A capacidade formal da Igreja é vista como um poder sempre presente por estar autorizada pela representação com a ―Pessoa transcendente de Cristo‖, o que não significa, como lembra Galli, que exista uma ―eficácia política direta e imediata derivada desta capacidade formal‖. Em um mundo onde a realidade efetiva tem a ver com o processo produtivo, uma aliança entre Igreja e poder político não passaria de um devaneio romântico, ainda mais pelo fato de, no Estado moderno, prevalecer ―não mais a complexio, e sim a decisão através da racionalidade‖. A transcendência da representação, que encontra

109 110

Idem, p. 14. Idem, pp. 21 e 9.

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sua forma definitiva na complexio —a complexidade que abarca todas as oposições—, é uma idéia possível para a refundação da lógica institucional do Estado a partir da forma e decisão católicos pelo poder político soberano. Esta ―imitação‖ da ação representativa da Igreja pode afastar o Estado de uma racionalidade que não vise a unidade substancial como finalidade, mas apenas uma imanência vazia e instrumental. 111 O pensamento político não funciona se comparado, exclusivamente, a valores como os da produção e do consumo, pois ―[n]enhuma grande oposição social pode dissolver-se no econômico‖. A decisão sobre os rumos dos conflitos depende de um pathos de autoridade, de algo que signifique uma representação pessoal do que é próprio da humanidade —cultura, religião, política ou direito—, identificável em uma personalidade concreta. O pensamento econômico, referencial da instrumentalização da ação no mundo, aparece para Schmitt como racional apenas em seu processo produtivo, pois procura satisfazer a toda demanda, mas é absolutamente irracional no que tange às finalidades derivadas de sua realidade —a objetividade de seus valores está vinculada a coisas e não a valores, como a autoridade e a convicção—meramente técnica. Assim, a Igreja, para Schmitt, é a grande antítese do industrialismo capitalista já que este último não pode ser representado ou mesmo representar-se, por faltar-lhe a substância de uma dignidade pessoal. O princípio da complexio oppositorum permite —através da representação tradicional da Igreja, também política por presentificar diretamente o Império Romano—, pensar a representação política estatal, quando o Estado não se torna um simples autômato, ―desaparecendo‖ do mundo representativo. A representação se estabelece, portanto, como imputação (Zurechnung), responsável pela ação, como um princípio que revela e demanda a capacidade de legitimar-se de forma soberana.112 Essa perspectiva metafísica impede a Igreja de tensionar o mundo, pois decidir sobre o sentido é uma composição de complexidades que não se desfaz, ou melhor, que acaba por se transformar, instrumentalmente, em outra coisa, como em um processo de conciliação. No seu texto mais influente entre os constitucionalistas, Teoria da Constituição (1928), Schmitt realiza a primeira e mais detalhada análise das constituições burguesas modernas —e, em especial, da de Weimar (1919)— em que a distinção fundamental entre 111

Cf. GALLI, Carlo. Presentazione. In: SCHMITT, Carl. Catolicesimo romano e forma política (seguito da La Visibilità della Chiesa: uma riflessione scolastica). Milano: Giuffrè, 1986, pp. 3-27 e 14 e ss. 112 Cf. SCHMITT, Carl. Römischer Katholizismus und politische Form, pp. 23 e ss.

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os conceitos de representação política liberal e democrática substancial é desenvolvida detidamente. A representação (Repräsentation) é a forma política que dá existência ao Estado, um princípio político-formal que se manifesta na esfera do público. O representar, ―é fazer perceptível e presentificar (gegenwärtigen) um ser invisível através de um ser publicamente presente‖. Por ser um fenômeno existencial e político, significa a manifestação direta e independente do poder (poder constituinte, portanto) através de sua personificação no governo. Para Schmitt, um povo pode manifestar sua unidade diretamente, através do princípio da identidade, quando atua politicamente em sua realidade imediata, interferindo e ditando as questões públicas sem mediação, isto é, sem representação política. O princípio da representação, por outro lado, quer significar a impossibilidade real da presentificação do povo em identidade real, sendo a unidade possível apenas quando praticada por sujeitos representantes. 113 A relação entre a teoria constitucional antiliberal de Schmitt com o conceito de representação do filósofo inglês Thomas Hobbes em seu livro Leviatã (1651), é óbvia: a idéia de personalidade é fundamental para caracterizar o soberano representante. Persona é uma palavra de origem latina que, segundo o próprio Hobbes, significa o disfarce ou a aparência exterior de um homem, imitada no palco. (...) E personificar é representar, seja a si mesmo ou a outro; e daquele que representa outro diz-se portador de sua pessoa, ou que age em seu nome (...) Quanto às pessoas artificiais, em certos casos algumas de suas palavras e ações pertencem àqueles a quem representam. Nesses casos a pessoa é o ator, e aquele a quem pertencem suas palavras e ações é o autor, casos esses que o ator age por autoridade.(...) por autoridade se entende sempre o direito de praticar qualquer ação, e feito por autoridade significa sempre feito por comissão ou licença daquele a quem pertence ao direito.114 Hobbes irá justificar o poder soberano, no Leviatã, através da idéia de autorização. Este conceito indica uma renúncia ao direito a tudo e sua transferência, o que faz com que todos aqueles que participam do momento de autorização —o qual cria a pessoa artificial— sejam obrigados ―a reconhecer e a ser considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu soberano fizer e considerar bom fazer.‖ É graças a esta autoridade, cedida por cada um 113

Cf. SCHMITT, Carl. Verfassungslehre, pp. 205 e ss. HOBBES, Thomas. Leviathan. Introduction by C. B. McPherson. London: Penguin Books, 1985 (1651), Capítulo XVI, pp. 217-18. 114

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dos que realizam o pacto, e somente por este motivo, torna-se possível o uso do poder e da força necessários para inspirar o terror que permite a conformação das múltiplas vontades na direção da paz interna e externa. O que importa, no argumento de Hobbes, é marcar o reconhecimento do poder soberano pelos súditos e, desse modo, sua legitimação racional enquanto ato positivo de autorização, o que faz com que todos os sujeitos do processo político de criação do Estado sintam-se comprometidos, envolvidos, obrigados e, além disso, sejam efetivamente responsáveis por quaisquer atos cometidos pelo poder soberano deste ponto em diante. A formação da República ou Estado (Commonwealth), derivada desta relação de autoridade entre autores e ator, é um acontecimento jurídico e, de certa maneira, impessoal, em que os súditos são unificados na pessoa do soberano —o que equivale a uma perda da subjetividade política, da capacidade de decidir publicamente— sendo todos os atos deste último de exclusiva responsabilidade dos súditos, a quem ―pertencem todas as ações praticadas pelo representante‖, mas que só se realizam pela obra do soberano.115 Para Hobbes —razão pela qual Schmitt, recorrentemente, utiliza-se da estrutura hobbesiana na construção da sua idéia de soberania—, este processo de juridicização da autoridade de fazer e não-fazer na figura de uma personalidade artificial compara-se ao processo de alienação jurídica de crianças, imbecis e loucos, que por não terem o uso da razão, ―podem ser personificados por guardiões ou curadores, mas não podem ser autores (durante esse tempo) de nenhuma ação praticada por eles (...) Mas também isto só pode ter lugar num Estado civil, porque antes desse Estado não há domínio de pessoas‖. 116 Como crianças e imbecis, os homens cedem o direito de se conduzirem, sem esperar nada em troca a não ser evitar a possibilidade da morte violenta, ―cuidando de sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita‖. 117 A única diferença em relação ao pacto de curadores e imbecis é o caráter temporal, que no caso do pacto político é irreversível, a não ser que haja revolução, já que nenhum súdito pode libertar-se do processo de sujeição política, mesmo que sob pretexto de infração do pacto, pois o soberano não faz parte dele, mas recebe, unicamente, os benefícios do que foi pactuado entre os homens.

115

Idem, p. 229. Idem, pp. 229-30. 117 Idem, p. 219. 116

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O representante é uma pessoa artificial e, como sustenta Hanna Pitkin, no seu O Conceito de representação (1967), uma coisa que se expressa por palavras e realiza ações no lugar das pessoas naturais que representa. O que o distingue do conceito de pessoa artificial de Hobbes é que a artificialidade não está na idéia de personalidade, mas na de ―que a ação que [o soberano] está realizando não é (considerada) sua própria, mas de outra pessoa‖. Autoridade é, assim, o direito de uma pessoa realizar qualquer ato por autoridade, por ―comissão (commission), ou por licença daquele de quem é o direito‖. Quando o ator — que age por autoridade, no lugar do autor, representando-o— realiza um contrato, liga a este o autor. O fundamental na relação entre representante e representado é que a responsabilidade pelo ato em si é do representado, podendo o representante ter liberdade ilimitada para atuar.118 Para Schmitt, Hobbes constitui o Estado soberano como uma ditadura, na medida em que a decisão soberana que forma a lei civil é ―ditada‖, o poder do soberano fundandose, portanto, em um acordo mais ou menos tácito, mas sociologicamente não menos eficaz, no convencimento dos súditos, ainda quando este convencimento seja promovido justamente pelo Estado. Isto relembra o sistema do Caesarismus e de uma ditadura soberana, cujo fundamento é uma delegação absoluta.119 Se no texto A Ditadura a soberania aparece em seu fundamento comissarial, técnico, na Teoria da Constituição, sete anos depois, Schmitt necessita criar uma fundamentação com critério distintivo especificamente político. De qualquer sorte, a relação de representação em Schmitt ainda pode ser considerada, nesse texto mais recente, profundamente hobbesiana. Assim, a construção do conceito de representação pública como forma política (Repräsentation) é realizada em contraposição à idéia de representação privada ou relativa ao direito privado (Vertretung) ou mesmo à representação administrativa (comissarial) e técnico-econômica.120 Esta grande distinção, que opõe público e privado, serve para esclarecer que publicidade vincula-se, necessariamente, à criação de uma totalidade política, isto é, ao processo no qual o povo em unidade se reconhece como um conjunto de pessoas dignas de existência e faz-se representar. Ao 118

Cf. PITKIN, Hanna. The Concept of representation, pp. 15-9. SCHMITT, Carl. Die Diktatur, pp. 22 e ss. 120 Cf. SCHMITT, Carl. Verfassungslehre, pp. 208 e ss. Ver a seguir, no capítulo 2.2, a análise da ditadura comissarial e da ditadura soberana, a partir do livro A Ditadura, de 1921. 119

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contrário, a representação privada contempla as formas tradicionais de representação parcial, secreta, por mandato, articulada em órgãos encarregados, autorizados ou dependentes, onde está excluído o processo próprio de criação da unidade implicado na dialética da representação pública, onde ―o imperceptível se supõe como ausente e, no entanto, simultaneamente se faz presente‖.

Ela não passa, portanto, de um procedimento

puramente técnico, através do qual funções e finalidades práticas são previamente atribuídas e do qual se espera a simples e específica realização de tarefas. Não se trata de poder, independência e autoridade política. O Estado é, portanto, um ―status de um povo (...), o status da unidade política‖, ou seja, ―um povo em situação de unidade política.‖ 121 Assim, as instituições nacionais responsáveis pelo desenvolvimento desse ―Estado democrático‖ funcionam através de um processo de representação centralizado na figurachave do poder executivo que, ao invés de ser simplesmente o sujeito sobre o qual recai a representação política, atua como quem detém a substância cristalizada da representação espiritual do povo unido como nação. Somente esta forma de representação, que consegue expressar concretamente o substrato da composição da identidade popular, está apta a reinstalar a ordem nas situações excepcionais através da decisão juridicamente legítima. Assim, a representação e a decisão são os elementos pelos quais a soberania se constitui e se preserva, definitivamente, numa unidade política, a partir de ações pontuais, como o controle da imigração estrangeira, práticas colonialistas de estabilização política, desnaturalização e expatriação; por processos pacíficos de assimilação à nação dominante; por procedimentos violentos, como a ―eliminação (Beseitigung) do elemento alienígena mediante opressão, expulsão da população heterogênea e meios radicais similares‖. 122 A própria idéia de Constituição, nesse caso, poderá ser definida como uma decisão de conjunto sobre o modo e a forma da unidade política, decisão caracterizada pelo fato de ser existencial, popular e total. 123 A validade de uma Constituição deriva, portanto, de uma vontade unitária do poder constituinte concreto, identificado através da existência política do povo em representação pessoal. Assim, o próprio conceito de Constituição de Schmitt relaciona-se com o ato

121

Idem, pp. 205-15. Idem, pp. 205 e 231-2. 123 Idem, pp. 20 e ss. 122

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constituinte de uma determinada comunidade, com a vontade política existencial de quem tem o poder de pôr a Constituição. O pluralismo social, elemento que compõe a idéia de democracia substancial homogênea, aparentemente destoa da busca da igualdade concreta através da eliminação do heterônomo. Mas é o processo representativo, formalmente organizado à imagem da representação da Igreja e percebido como um complexo de oposições que permite compreender a perspectiva de Schmitt, que não pode ser interpretada —pelo menos nos textos da fase weimariana— como a antecipação de um modelo de Estado totalitário. A presença de homogeneidade solicita a conformação de uma certa ordem política, o que estimula a centralidade da decisão existencial soberana. Assim, um Estado de partidos é possível, mas deve estar resguardado pelo reconhecimento da especificidade dos sujeitos que o compõem (por um valor que destaque o indivíduo da massa) e pela condensação tanto de interesses quanto de partidos na figura do poder soberano. O Estado passa a não representar, portanto, interesses ou indivíduos ou ainda partidos de forma isolada ou fragmentária, estando excluída a possibilidade de uma relação política baseada numa relação de causa e efeito pura e simples. Mas, como no processo representativo da Igreja, o poder político representa uma unidade reconhecendo, entretanto, o complexio que o constitui originariamente. Os membros (indivíduos) que compõem a unidade da qual deriva o Estado comprometem-se, envolvem-se e obrigam-se a reconhecer (legitimar) esta instituição que lhes proporciona uma coerência existencial que, para Schmitt, está acima das alianças do jogo político reinante sob as instituições liberais. Nesse sentido, a possibilidade de fundir o modelo de representação política, criado por Schmitt, com uma economia de base técnica está completamente exaurida, o que não significa, para o autor, a impossibilidade de sobreposição e controle de uma magnitude por outra. Esse fato é que identifica o desdobramento contemporâneo da crise cultural e política da modernidade. Na verdade, somente quando a esfera da economia conformar-se como um poder político, o modelo representativo inspirado na Igreja pode ser enfrentado. Uma natureza representativa como a da Igreja, no entanto, capaz de aliar-se a qualquer forma política, encontra vantagem, pois realiza-se como representação do possível — materialmente existente— através da própria representação, o que não ocorre com recursos

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naturais, maquinário ou o processo produtivo, já fisicamente no mundo. 124 A questão voltará sempre a ser qual a legitimidade em que se baseia uma possível nova forma de domínio —como o predominantemente econômico—, já que o problema, do ponto de vista histórico e estratégico, coloca a Igreja, esta instituição capaz de fazer coexistir forma e decisão, ante o seguinte paradoxo: ―é hoje impotente ao nível político efetivo e na situação presente sua política é, ao mesmo tempo, impossível e necessária‖. 125 Uma ordem social controlada a partir de um poder político gerenciado pelo capital certamente não pode apoiar-se na lógica do consumo, pois nesta não há transcendência visível, nem, portanto, representação, ou autoridade. 126

2.2 A Ditadura cesarista como modelo de ordem constitucional

A impessoalidade da racionalidade tecnológica exclui, segundo Schmitt, a possibilidade de se realizar, material e formalmente, a representação de natureza pública, visto que os agrupamentos sociais se configuram a partir de polarizações com parâmetro no arranjo relativo ao processo produtivo. Ao pensar econômico falta a humanidade da idéia, que se manifesta, inclusive, através da linguagem e da retórica. Assim, uma ordem que não se realize juridicamente e um Estado que não funcione através do direito, além de se tornarem grandezas sociais que não comportam representação, ficam completamente despolitizadas. 127 A incapacidade do liberalismo em reconhecer a juridicidade da decisão excepcional faz com que ela seja sempre interpretada como um ato exterior e estranho ao direito. A história do conceito de ditadura revela um conjunto de aproximações teóricas marcadas por uma crescente instrumentalização que despolitiza e neutraliza o caráter representativo da decisão. O próprio conceito de decisão fica limitado por identificações

124

Cf. McCORMICK, John P. Carl Schmitt’s critique of liberalism, pp. 160-1. GALLI, Carlo. Presentazione. In: SCHMITT, Carl. Catolicesimo romano e forma política, p. 6. 126 Diz Schmitt que ―Na medida em que permanece um resto de idéia, domina também a opinião de que algo preexiste à realidade dada do material, de que há algo transcendente, o que significa que sempre existe uma autoridade que vem do alto‖. Cf. SCHMITT, Carl. Römischer Katholizismus und politische Form, p. 45. 127 Cf. SCHMITT, Carl. Römischer Katholizismus und politische Form, pp. 34 a 42. 125

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puramente materiais, o que denuncia um quadro aparente de irreversível privatização da experiência política na era moderna, idéia combatida por Schmitt.128 O argumento que subjaz à análise detalhada sobre as fórmulas variadas do conceito de ditadura em seu livro A Ditadura: do início do pensamento moderno até a luta de classes proletária (1921) é que a mesma foi se transformando, foi sendo construída e posta em prática, no decorrer dos tempos, como um instrumento técnico. A ditadura é vista, assim, como uma tecnologia voltada à realização de finalidades jurídicas, políticas ou filosófico-históricas precisas, como permitir a transição de um Estado de classes para um Estado comunista, pacificar um Estado em guerra civil ou organizá-lo para uma guerra externa. Esta forma confusa de abordagem traz uma série de contratempos, porque afasta o conceito de ditadura de um entendimento uniforme e sistemático. Suspender, excepcionalmente, um conjunto de normas que vigoram numa situação de normalidade passa a ser um ato de força, e a ditadura se transmuta em um instrumento político e fático sem nenhum vínculo direto ou necessário com o direito. Em sua genealogia, portanto, Schmitt deseja recuperar as pistas capazes de reinserir o conceito de ditadura na Teoria Geral do Direito e do Estado, superando a ambigüidade tradicional do termo. 129 Esse texto, um ano mais antigo que a Teologia Política, situa a questão da soberania dentro de um quadro conceitual que tenta preservá-la de uma aproximação mais clara com o cesarismo. Se no argumento e no texto de Teologia Política seu cesarismo é claro —e o desenvolvimento de sua obra em anos posteriores, especialmente a crítica ao parlamentarismo, definirá esta filiação—, no livro A Ditadura o autor pretende, desde o título, mas sem sucesso, marcar esta diferença. Para John McCormick, a necessidade de Schmitt de fortalecer o conceito de ditadura radica no fato de que a situação política da Alemanha, sob a Presidência de Friedrich Ebert, implicou a utilização extensiva dos poderes de exceção previstos na Constituição de Weimar. Nas páginas finais do livro aparecem quatro motivos políticos fundamentais que levam o autor a ler a Constituição de 1919 a partir da atuação ditatorial do Presidente: a) o retorno de poderosos grupos sociais ameaçando o Estado na forma de movimentos sindicais; b) a fácil evocação do poderio monárquico, que na história alemã recente havia dizimado revoltas de caráter religioso 128

Nesse sentido, ver GALLI, Carlo. Presentazione. In: SCHMITT, Carl. Catolicesimo romano e forma, p.

6. 129

Cf. SCHMITT, Carl. Die Diktatur, p. XIII: etimologicamente, todo aquele que ―dita‖ é um ditador.

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através da utilização de poderes emergenciais; c) a necessidade de neutralizar a ameaça do Estado populista soviético pela criação de uma direção carismática e plebiscitária para o Estado alemão, dando maior legitimidade à atuação do Presidente e; d) a necessidade de se criar um instrumento jurídico diferenciado que preenchesse o vácuo deixado pela Teoria do Estado liberal, naturalmente limitadora da soberania e, portanto, dos poderes de caráter excepcional. 130 No contexto da profunda e contínua crise da República de Weimar no início dos anos 20 do século XX, Schmitt tem a pretensão de realizar, não somente um estudo filológico ou histórico, mas de identificar a natureza e a amplitude dos poderes ditatoriais do Presidente do Reich segundo o art. 48 da Constituição de Weimar.131 Para além das questões políticas imediatamente atinentes aos interesses de um jurista influente nos destinos da Alemanha pós 1ª Guerra, transparece uma contraposição polêmica com o modelo de ditadura que Schmitt identifica no ideário liberal, e que ele classifica como o sentido político de ditadura.132 A incapacidade de o pensamento liberal compreender e tratar seriamente o conceito faz com que ele seja utilizado indevidamente para justificar ações políticas sem fundamento jurídico. Mais precisamente, ataca a construção de uma filosofia da história —presente também na posterior literatura socialista, herdeira desta 130

Cf. McCORMICK, John P. From constitutional technique to Caesarist ploy: Carl Schmitt on dictatorship liberalism and emergency powers. In: BAHER, Peter; RICHTER, Melvin (Edit.). Dictatorship in history and theory: bonapartism, caesarism, and totalitarianism. Washington, D. C. / Cambridge: German Historical Institute / Cambridge University Press, 2004, pp. 197-219, p. 201. 131 Cf. BENDERSKY, Joseph W. Carl Schmitt theorist for the Reich, pp. 34 e ss; 64 e ss. E SCHWAB, George. The Challenge of exception: an introduction to the political ideas of Carl Schmitt between 1921 & 1936. 2nd edition; with a new introduction. Connecticut: Greenwood Press, 1989 (1970), p. 29. O art. 48 da Constituição de Weimar diz o seguinte: ―Se um estado não cumprir as obrigações colocadas pela Constituição do Reich ou pelas leis do Reich, o Presidente do Reich pode obrigar através do uso de força armada.//No caso da segurança pública ser seriamente ameaçada ou perturbada, o Presidente do Reich pode fazer uso das medidas de necessidade para restabelecer a lei e a ordem, se necessário usando-se força armada. Na perseguição deste fim pode suspender os direitos civis descritos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 154, parcial ou inteiramente.//O Presidente do Reich deve informar o Reichstag imediatamente sobre todas as medidas empreendidas que são baseadas nos parágrafos 1 e 2 deste artigo. As medidas devem ser suspensas imediatamente se o Reichstag assim exigir.//Se o perigo for iminente, o Governo do Estado pode, para seu território específico, implementar as etapas como descrito no parágrafo 2. Estas etapas devem ser suspensas se assim exigido pelo Presidente do Reich ou pelo Reichstag. //Detalhes adicionais serão fornecidos pela lei do Reich.‖ DEUTSCHLAND. Die Verfassung des Deutschen Reichs vom 11. August 1919. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2005. Os artigos referenciados no texto do Art. 48 dizem respeito aos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição, como os de liberdade (Art. 114), de inviolabilidade de domicílio (Art. 115), de privacidade de correspondência (Art. 117), de liberdade de opinião e ausência de censura (Art. 118), de reunião (Art. 123), de associação, inclusive religiosa (Art. 124) e de herança (Art. 154). 132 Cf. SCHMITT, Carl. Die Diktatur, p. XIII.

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perspectiva— que, tendo o progresso da humanidade como bandeira, considera a ditadura uma prática política que objetiva, através da violência, afastar os empecilhos para a formação de um novo —e supostamente melhor— modelo de sociabilidade. É contra a radicalização do conceito de ditadura —que a Revolução francesa e o Bolchevismo tornaram possível—, 133 e por identificar a incapacidade do liberalismo de lidar com a dimensão constitucional —e, portanto, jurídica— do tema, que Schmitt se debruça em sua análise. O sentido político da ditadura, de acordo com a literatura burguesa tem três elementos centrais: o comando pessoal, apoiado no consentimento popular (ou seja, um fundamento democrático) e servido por um ―aparato de governo (Reigerungsapparates) fortemente centralizado‖.134 Apesar de estar citando autores variados, o adversário visado por Schmitt aqui parece ser Max Weber, cuja construção do conceito de cesarismo — composta exatamente pelos elementos supracitados— pode confundir, segundo Schmitt, a compreensão do real significado da ditadura. Na construção de tipo sociológico, Weber define o cesarismo como o domínio do gênio pessoal, que está em contradição ―com o princípio formalmente ‗democrático‘ da burocracia eletiva‖. Relativamente à organização técnico-política do Estado, sua dominação está fundada na figura de um César, que ocupa uma posição de ―homem de confiança das massas (do exército ou dos cidadãos) desligado de toda tradição e como soberano ilimitado e chefe de um quadro de oficiais e funcionários altamente qualificados‖. Como o cesarismo pode derivar de uma democracia, Weber aponta a possibilidade da formação de uma democracia plebiscitária, que seria ―uma espécie de dominação carismática oculta sob a forma de uma legitimidade derivada da vontade dos dominados e só por ela perdurável.‖ Assim, ―o chefe (demagogo) domina de fato em virtude da devoção e confiança pessoal de seu séqüito político.‖ Napoleão seria o puro dominador carismático plebiscitário que faz

133

Ver, nesse sentido, McCORMICK, John P. From constitutional technique to Caesarist ploy. É interessante notar que uma das maiores ameaças à República de Weimar, o socialismo da esquerda radical, é vista, por Schmitt, como tendo origem, pelo menos no que respeita a sua arma política fundamental —a ditadura do proletariado—, no ideário liberal. 134 Cf. SCHMITT, Carl. Die Diktatur, pp. XII-XIV.

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funcionar o império do gênio, mesmo que, no caso dos dois Napoleões, o plebiscito tenha se realizado a posteriori e apenas formalmente.135 O elemento importante, nesta definição de Weber, é que a legitimidade da dominação carismática plebiscitária está sustentada, inicialmente, na crença do prestígio pessoal, mas definitiva e rotineiramente apoiada numa burocracia ágil e rápida que se preocupa em eliminar todos os poderes intermediários. Em outros textos políticos, Weber também classifica de cesarismo o regime imperial de Bismarck, embora note — paradoxalmente— que este regime de força convivia, funcionalmente, com um sistema parlamentar e em uma democracia de massas. 136 Em existindo um líder de relevo, o sistema partidário se colocaria totalmente à sua disposição e à disposição das decisões de gabinete. Nessa situação ―a máquina do caucus carece quase de opinião e está completamente nas mãos do líder‖. Por fim, Weber denomina o comandante carismático do aparato eleitoral em uma democracia de massas de ―ditador do campo de batalha eleitoral‖. 137 Schmitt, por outro lado, chama a atenção para a juridicidade do conceito de ditadura e a constante necessidade de se colocar o direito como o parâmetro na constituição de uma ação ditatorial. A ordem normativa é a referência que Schmitt tenta estabelecer como ponto de partida e de chegada da prática ditatorial. Para um autor como Julian Freund —que segue de perto o argumento de Weber—, entretanto, a fundamentação do domínio carismático, por ser de natureza emocional e, portanto, irracional, tem apoio na ruptura da continuidade (legal ou tradicional) enquanto o processo de legitimação encontra sua origem e referência na pessoa do chefe, o que caracteriza o conjunto da experiência carismática como uma aventura sem limites materiais ou formais. Para Freund —que entende a representação como liberal—, o mais importante é que ―a noção carismática rejeita toda a representação (no sentido político)‖ necessitando, o tempo todo, referir-se a si mesma num movimento contínuo de epifania, o que é o oposto do processo de sucessão do poder

135

WEBER, Max. Economia y sociedad. Traducción de José Medina Echavarría et alli. México: Fondo de Cultura Económica, 1997 (1922), pp. 721, 215, 195 e 214. 136 WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionamento e da natureza dos partidos. Tradução de Karin Bakker de Araújo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993 (1918), 32. e Cf. BAHER, Peter. Max Weber and the avatars of caesarism. In: BAHER, Peter; RICHTER, Melvin (Edit.). Dictatorship in history and theory: bonapartism, caesarism, and totalitarianism. Washington, D. C. / Cambridge: German Historical Institute / Cambridge University Press, 2004, pp. 155-174., pp. 162-3. 137 WEBER, Max. Economia y sociedad, pp. 1086-7.

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político, da permanência e estabilidade das instituições. 138 Por conta destas inúmeras variáveis, cuja compilação pode exemplarmente ser vista em Weber, o sentido propriamente jurídico-constitucional da ditadura é diluído, ponto nodal da crítica de Schmitt às concepções de cunho liberal já que, segundo o uso lingüístico mais novo, é característica usual da ditadura a supressão da democracia sob uma base democrática, assim não existe maior diferença entre ditadura e cesarismo e lhe falta uma determinação essencial, que é o caráter comissarial da ditadura139 A juridicidade da ditadura é eliminada tanto pela literatura liberal quanto pela doutrina socialista pelo fato de ambas não relevarem ou até negarem, como é o caso de Weber, sua natureza especificamente representativa, na medida em que a importância dessas concepções está em seu caráter de ―sistema centralizado de governo‖.140 Assim sendo, o elemento pessoal do comando político-jurídico é desprezado (neutralizado, dirá Schmitt anos depois) pela necessidade de se identificarem estratégias e táticas diretivas para o alcance do objetivo final. Dizer que se eliminou, com as concepções liberais, o elemento propriamente jurídico do conceito, significa não que o liberalismo —como o vê Schmitt— não aproveita os instrumentos presentes no direito para que uma ditadura qualquer se realize, mas que nesta realização fica impossível identificar um elemento característico do direito e do Estado, que é o processo ou a relação de representação. A ditadura, nesses termos, é transitória, é um meio para um fim: Partindo precisamente do que deve justificar, a ditadura se torna uma supressão (Aufhebung) da situação jurídica em geral, porque significa a dominação de um procedimento que está interessado exclusivamente no alcance de um resultado concreto, mediante a eliminação do respeito essencial ao direito que tem o sujeito de direito a opor sua vontade, se esta vontade obstaculiza o resultado; e isto desencadeia a ruptura da finalidade com o direito.141 Qualquer justificação da ditadura como procedimento técnico —que nega o direito para realizá-lo— só é capaz de revelar o elemento material, ―o conteúdo‖ da ditadura, mas não sua fundamentação, autoridade ou legitimidade propriamente jurídica, pois ―um fim real ou ostensivo, bom que seja, não pode fundamentar nenhuma ruptura do direito‖. 138

FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa. Revisão de Paulo Guimarães do Couto. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987 (1966), pp. 169-170, p. 177. 139 SCHMITT, Carl. Die Diktatur, pp. XIV-XV. 140 Idem, ibidem. 141 Idem, p. XVIII.

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Schmitt sustenta que ao se considerar a ditadura uma resposta jurídica a uma finalidade prática, estar-se-ia compreendendo o direito como instrumento de natureza teleológica pura.142 O problema não é o de identificar como a ditadura funciona de fato, mas como é possível remeter este funcionamento a uma legitimação formal —o que leva necessariamente à questão da representação—, ou seja, a possibilidade de justificar, juridicamente, a divisão entre normas jurídicas e normas de realização do direito, segundo a famosa proposição schmittiana: Que toda ditadura contém uma exceção a uma norma não significa que seja uma negação causal (zufällige Negation) de uma norma qualquer. A dialética interna do conceito repousa no fato de que a norma, cujo comando (Herrschaft) na realidade histórico-política deve ser assegurado pela ditadura, é negada. Entre o comando da norma a realizar e o método de sua realização pode, portanto, existir uma oposição. Aqui reside a essência jurídico-filosófica da ditadura, a saber, a possibilidade geral de uma separação das normas de direito das normas de realização do direito.143 Estas normas de realização do direito, que funcionam como ditadura, necessitam sustentar-se como representações jurídicas formais sem o benefício prático que porventura possam trazer para o ordenamento jurídico do qual emanam. Necessitam, para serem legítimas, de uma correspondente apresentação normativa (normativen Vorstellung).144 Em primeiro lugar, uma ditadura realiza-se suspendendo o funcionamento normal de uma norma jurídica para, a partir da operacionalização de procedimentos garantir, num futuro predeterminado, que aquela norma volte a funcionar com eficácia. A ditadura é um meio concreto previsto pelo direito para, em suspendendo determinadas regras jurídicas, operar a realização de outras, ou do direito como um todo. A ditadura solicita, portanto, uma previsão constitucional o que, na concepção de Schmitt, significa a função do art. 48 da Constituição de Weimar: a legitimação constitucional para a ditadura. Em segundo lugar, sua finalidade imediata não é meramente prática —o que redundaria em uma zona de anomia—, mas a realização do direito, isto é, no processo de seu funcionamento, deve portar a juridicidade que a legitima. Para Schmitt não se justifica, portanto, um suposto direito natural, ou seja, uma ruptura (com o direito) fundada em princípios de justiça —ou o que quer que seja—, localizados para além do ordenamento jurídico positivo, já que esse conceito de ditadura é constitucional e, portanto, previsto no ordenamento jurídico. Mais 142

Idem, ibidem. Idem, p. XVII. 144 Idem, p. XVII. 143

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uma vez fica claro que o conceito schmittiano de soberania encontra guarida não só no direito, mas em seu conceito de Estado, operando na resolução de um caso prático em relação a um acontecimento concreto. Essa ―judicialização‖ do poder soberano e, conseqüentemente, do Estado, indica tanto a presença da idéia de personificação do poder —que ficaria mais clara no texto da Teologia Política—, quanto da manutenção da decisão como manifestação individual sobre um caso concreto, de acordo com o texto Direito e Juízo, de 1912. Transformar o Estado num árbitro significa, igualmente, condensar o poder: no Estado schmittiano, as funções legislativas, executivas e judiciais serão unidas na figura do soberano. A operacionalização da ditadura representa a natureza verdadeira do direito, pois demonstra seu caráter teleológico puro, ou seja, sua funcionalidade na proteção do Estado e do Direito. Operar a ditadura implica que a realização do direito pela sua suspensão autoriza, automaticamente, uma ação materialmente incondicionada, isto é, o ditador recebe a autorização do direito para agir sem necessidade de respeitar seus limites, elemento que remete à classificação fundamental de Jean Bodin, da qual se vale Schmitt: a distinção entre ditadura comissária (kommissarischer) e ditadura soberana (souveräner). Enquanto o primeiro tipo remete à idéia de reforma, o segundo indica uma ditadura da revolução, ―sob a base do pouvoir constituant do povo‖. Em ambos os tipos, após o século XVIII, o ditador aparece como comissário, ou seja, aquele que recebe autorização para realizar uma tarefa previamente determinada. A diferença consiste em que, no caso da ditadura comissária em sentido estrito, a comissão é atribuída pelo poder constituído, por uma norma jurídica presente em um ordenamento posto. No caso da ditadura soberana, a comissão, isto é, a autorização para a ação é realizada diretamente pelo poder constituinte do povo, sendo o comissário um ―comissário imediato do povo, um ditador que dita inclusive a seu comitente, sem deixar de se legitimar por ele‖. 145 Enquanto a ditadura comissária pretende esgotar-se quando obtiver sucesso no objetivo político que persegue (ordem social interna, vitória em conflito externo), a ditadura soberana pode perpetuar-se no tempo, pois a comissio soberana não tem limitação temporal.146 A transformação da idéia de ditadura —de comissarial para soberana—

145 146

Idem, p. XIX. Idem, p. XVI.

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realiza-se, para o autor, por conta do conceito marxista de ditadura do proletariado. Pois enquanto a utilização clássica do conceito representa a necessidade da reorganização de uma ordem previamente dada, mas sob a ameaça de dissolução, o conceito marxista de ditadura do proletariado representa a ação de uma elite radical que, fundada num processo histórico universal —numa filosofia da história— utiliza-se de meios violentos para alcançar, no futuro, um modo de vida não previamente definido no tempo nem definível a priori. Importa ressaltar que Schmitt identifica a radicalidade conceitual da ditadura do proletariado porque ela se vincula não a um indivíduo isolado, mas a uma classe de indivíduos —o proletariado—, sujeito atuante, por excelência, de uma ditadura.147 Nesse sentido, não é necessariamente contraditório, para Schmitt, que em uma ditadura que deriva da doutrina marxista —Kautsky, Lênin, Trotsky e Radek— exista a possibilidade da permanência de uma instituição democrático-liberal, como o parlamento. O que importa é: a) que o Estado proletário é somente uma transição final para o comunismo, objetivo alcançado através do meio técnico apropriado (ditadura), e b) que a ditadura só se implanta por exceção —e como ―estado de exceção‖—, pela ―coação das circunstâncias‖. 148 A idéia de finalidade é reputada capaz de trazer à luz o sentido preciso do conceito de ação ditatorial, que é a noção de um adversário concreto cuja eliminação é a finalidade imediata da ação, uma delimitação puramente fática e não jurídica que indica o caráter reativo, de ―legítima defesa‖, que caracteriza a ditadura. Na própria literatura marxista da primeira metade do século XX é possível encontrar respaldo para essa análise de Schmitt. Autores como Antônio Gramsci, contudo, farão questão de deixar claro que esta proposta analítica identifica-se perigosamente com o conceito de cesarismo, repudiado na construção do argumento schmittiano sobre a ditadura. Gramsci, nas suas notas sobre o cesarismo, afirma que em alguns momentos históricos específicos, o cesarismo ―representou a fase histórica de passagem de um tipo de Estado para outro, uma passagem em que as inovações foram tantas e de tal ordem que representaram uma transformação completa‖.149 Esse modelo exemplar de cesarismo — que o autor denomina de quantitativo/qualitativo— é uma forma social que traz a

147

Idem, p. XV. Idem, ibidem. 149 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Tradução de Luiz Mário Gazzaneo. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, pp. 63-7., p. 66. 148

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possibilidade de compreender os motivos da ascensão do fascismo e a derrocada do liberalismo na Itália.150 Para Gramsci, a inovação estrutural e social da ditadura, nos moldes de César e de Napoleão I —situação mais radical do que a simples ―evolução‖ de uma determinada estrutura política (ditadura quantitativa, como a de Napoleão III)—, é o ponto fundamental do conceito de ditadura quantitativa/qualitativa que retira dos dois primeiros personagens políticos. Gramsci —como Schmitt, quando analisa a ditadura do proletariado— não considera, necessariamente, o vínculo à figura ―heróica‖ de uma personalidade de destaque, já que pode haver um cesarismo regulado pelo próprio sistema parlamentar, num governo de compromissos e de coalizão.151 Nesse sentido, o cesarismo é uma força social que intervém de fora sob uma disputa entre forças progressivas e regressivas, ―submetendo o que restou de ambas‖, exprimindo sempre ―uma solução arbitral‖ e evitando, assim, uma catástrofe política potencial. 152 Na modernidade, o cesarismo se caracteriza pelo aprofundamento dos contrastes daquelas forças sociais antagônicas, que não podem mais fundirem-se: representa a manifestação da luta de classes. O cesarismo mantém-se, contudo, ante a necessidade de minar a força social antagônica, preservando-a através do controle policial. Nestes termos, Gramsci aproxima o fenômeno do cesarismo ao advento das vastas e modernas burocracias estatais e ―privadas‖ (sindicais e partidárias), da expansão do parlamentarismo, e do aparato repressivo do Estado, que alijam a população do processo decisório, transformando-a em massas. Assim, apenas de forma aparente, Gramsci transita pelo que Schmitt chama de conceito político de ditadura —cuja finalidade em si transcenderia a necessidade de legitimação. O cesarismo moderno é, na verdade, o modo de o Estado gerenciar a luta de classes através da força policial. Nesse sentido, o cesarismo é prenhe de juridicidade, pois é uma ―solução‖, um ―mecanismo‖ mobilizável pelo Estado para a realização de ―soluções de compromisso‖ entre forças antagônicas.

150

Cf. FONTANA, Benedetto. The Concept of caesarism in Gramsci. In: BAHER, Peter; RICHTER, Melvin (Edit.). Dictatorship in history and theory: bonapartism, caesarism, and totalitarianism. Washington, D. C. / Cambridge: German Historical Institute / Cambridge University Press, 2004, pp.175-195, pp. 176-77. 151 Esta avaliação, que em Gramsci representa os motivos pelos quais Mussolini chegou ao poder na Itália — de forma constitucional, pela formação de coalizões parlamentares— espelha o diagnóstico do próprio Schmitt sobre a ascensão de Hitler em Weimar. Ver, nesse sentido, SCHMITT, Carl. Presentazione all'edizione italiana. In: SCHMITT, Carl. Le categorie del “politico”: saggi di teoria politica. A cura di Gianfranco Miglio e di Pierangelo Schiera. Mulino: Sociedade editrice di Mulino, 1972. 152 Cf. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno, p. 66.

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A identificação do Estado moderno ditatorial aponta para a concepção de Estado técnico, característica, segundo Schmitt, do pensamento do Maquiavel d‘O Príncipe (1513). Entre meados dos anos trinta e meados dos anos quarenta do século XX surgiu uma interpretação segundo a qual a descrição maquiaveliana do Estado não poderia ser considerada nem como derivação de caráter pedagógico dos livros homônimos do renascimento humanista, classificado como espelhos para o Príncipe, nem como um tratado moral. 153 Esta era, por exemplo, a posição de Ernst Cassirer, no seu O Mito do Estado (1946), para quem O Príncipe é um livro técnico, que somente indica o que é útil e inútil na proteção dos novos principados contra os mais variados perigos. Para evitar estes perigos, o governante deve e pode lançar mãos ―de meios extraordinários‖. Por conta desta finalidade específica —manutenção do Estado— Maquiavel distancia-se de pensadores clássicos como Platão, uma vez que eles propõem uma Teoria do Estado legal. Para Cassirer, Maquiavel ―foi o primeiro a introduzir uma teoria que suprimiu ou minimizou esse aspecto específico. A sua arte de política era destinada e servia igualmente tanto para o Estado legal como para o ilegal.‖. 154 A interpretação da teoria do Estado de Maquiavel, determinada por um interesse puramente técnico, e a idéia de que a influência renascentista impelia o autor d‘O Príncipe e dos Discursos para a resolução de questões técnicas de sua arte, são elementos centrais na reconstrução histórica do conceito de ditadura realizada por Schmitt. A questão é que da ―tecnicidade‖ (Technizität) pura e objetiva é possível derivar a indiferença pela finalidade ou pelo resultado político concreto e concentrar a preocupação no ―como se ‗faz‘ algo‖. Assim a ―organização política do poder e a técnica de sua conservação e ampliação diferem segundo as distintas formas do Estado, mas é algo que sempre pode ser realizado de maneira objetiva‖. O Estado aparece, pela primeira vez, como um objeto a ser livremente moldado pelo engenho humano com a finalidade de realizar as tarefas racionalmente

153

Sobre as variadas interpretações de Maquiavel até meados do século XX ver o introdutório porém excelente texto de BERLIN, Isaiah. The Originality of Machiavelli. In: BERLIN, Isaiah. Against the current: essays in the history of ideas. Edited and with a bibliography by Henry Hardy. With a introduction by Roger Hausheer. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2001 (1979), pp. 25-79., pp. 29 e ss. 154 CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976 (1946), p. 172.

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dispostas como passíveis de concretização.155 São três as conseqüências imediatas na conformação do que será erigido por Maquiavel como o modelo de funcionamento do Estado moderno. Em primeiro lugar, o racionalismo técnico indica que o artífice construtor do Estado molda a multidão como um objeto, isto é, como algo irracional que precisa ser dominado e sem possibilidade de diálogo, contrato ou negociação.156 O Estado é o racional que comanda o irracional, é quem dirige a multidão ditando comportamento de acordo com a ―situação das coisas‖ (―Lage der Sache‖), é executivo em contraposição ao simples deliberativo. O meio em que surge a necessidade da decisão ditatorial define de que forma esta decisão será ditada a fim de alcançar um resultado concreto. É a exclusiva necessidade de realização de um resultado específico e concreto que, em segundo lugar, as considerações de caráter jurídico são consideradas como empecilhos —―inconvenientes e inúteis (unzweckmäβig und sachwidrig)‖— para a funcionalidade técnica da ditadura. Desse modo, o direito não pode condicionar o que é racionalmente criado para a resolução puramente técnica de uma necessidade concreta e imediata. Portanto, a capacidade de execução técnica do Estado ―não necessita da precedência de nenhuma norma em sentido jurídico‖ para acontecer.157 Como terceira conseqüência da ditadura em Maquiavel ―dentro do executivo, os órgãos de execução têm que se submeter incondicionalmente ao interesse do funcionamento técnico sem fricção (des technisch glatten Ablaufs).‖.158 O direito, em relação à ditadura, opõe-se diretamente à manifestação da essência do Estado enquanto executividade. Esta forma de realização não se coaduna com limites e regras, com discussão e consentimento.159 Estabelecidos os pressupostos de funcionamento do Executivo nenhum elemento alheio à pura técnica de execução dos objetivos traçados pode ser considerado. E, assim, de uma técnica política, constitui-se —―pelo racionalismo, tecnicidade e executividade‖— o Estado moderno propriamente dito, vinculado à teoria

155

Assim, em Maquiavel, a Ditadura pode surgir tanto como modelo de ordenação de uma República ameaçada por forças internas ou externas como pode figurar também como uma ―técnica racional do absolutismo político‖. Cf. SCHMITT, Carl. Die Diktatur, pp. 7 e ss. 156 Idem, pp. 9 e ss. 157 Idem, p. 11. 158 Idem, p. 12. (grifo nosso) 159 Este argumento schmittiano evoca claramente uma crítica trazida pela oração fúnebre de Péricles na História da Guerra do Peloponeso de Tucídides, que compara o governo democrático de Atenas com o Estado espartano, para o qual na situação de guerra ―reflexão traz a hesitação‖. Cf. TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Tradução do grego, introdução e notas por Mário da Gama Curi. 3ª edição. Brasília: UnB, 1999, p. 99.

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maquiaveliana da Razão de Estado.160 Se o Estado moderno é puramente executivo, como definir a presença da liberdade como elemento constitutivo do governo? Para Schmitt, aqui aparece a doutrina dos arcana imperii (segredos de estado) aplicada ao Estado moderno, isto é, a doutrina da utilização secreta de fraudes e ardis para confundir e tranqüilizar o povo, sendo a liberdade um destes simulacros –ou ―instituições decorativas‖– que não possuem, de fato, uma participação significante nas decisões políticas fundamentais. 161 Por fim, pode-se sustentar que, em Maquiavel, Schmitt, paradoxalmente, reconhece o início da configuração do elemento central de sua teoria: a normatividade do poder soberano manifesta na exceção está vinculada, diretamente, aos elementos concretos e imediatos da ordem política que se pretende criar ou manter. A finalidade técnica que orienta a constituição do poder político organizado acaba por justificar ―tudo aquilo que resulta necessário‖. O ponto de imputação da regularidade universal das teorias política e jurídica schmittiana indica a possibilidade real de instalação de uma unidade política existencial capaz de garantir a manifestação equilibrada da decisão. Para Schmitt, o que caracteriza formalmente a ditadura, o que a justifica juridicamente, portanto, é o poder de uma autoridade suprema em permitir uma exceção concreta. Nesse sentido, o poder ditatorial é provisional, determinado pela situação específica que demanda a exceção. 162 O direito perde a sua centralidade como órgão a partir do qual emana a validade da ordem estatal e dá lugar à decisão relacionada à ordem histórica concreta. A ordem jurídica não se desfaz, mas fica suspensa ou se submete às limitações que os fatos indicam. A autoridade dos fatos define, assim, a extensão da legalidade do direito. A utilização de uma teoria da ditadura soberana e a posterior conceituação da soberania, na obra de Schmitt, detinha um significado histórico preciso: favorecer um constitucionalismo de natureza antiliberal, capaz de reconhecer a juridicidade de um cesarismo plebiscitário que pusesse fim à situação de uma democracia liberal que perecia por falta de instrumentos políticos e jurídicos adequados para enfrentar a ameaça

160

―O serviço civil treinado militar e burocraticamente, os ‗executivos‘, constituem a medula (Kern) deste Estado, o qual por sua natureza é Executivo (der seinem Wesen nach Exekutive ist).‖. Cf. SCHMITT, Carl. Die Diktatur, p. 12. 161 Idem, pp. 13 e ss. 162 Idem, pp. XVIII e ss

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comunista. Assim, ―[u]m dos objetivos centrais do trabalho da fase weimariana de Schmitt é justificar poderes ditatoriais soberanos para o Reichpräsident da República‖. 163 No Brasil, a situação política, apesar de diversa, apontava para o mesmo tipo de solução constitucional. O conflito político entre as elites e entre estas e a classe operária em ebulição encaminhava-se para uma solução antiliberal, embora com pretensão conciliatória. O Estado Novo, fora as ações isoladas e violentas do Integralismo, não sofreu maiores contestações. Derrubando uma Constituição promulgada poucos anos antes, em 1934, o novo regime caracterizou-se por manter uma coerência doutrinária centralizada em sua justificativa político-constitucional. A fraqueza do regime democrático-liberal, a ameaça comunista e a necessidade da construção de uma ordem jurídica flexível o bastante —com poderes emergenciais suficientemente amplos— para enfrentar os desafios de um tempo marcado pelas agitações grevistas e de caráter ideológico, eram a tônica do tempo. Francisco Campos, como Schmitt, encontrará um terreno fértil para desenvolver os instrumentos jurídicos necessários à realização de um novo modelo de Estado e de uma nova configuração constitucional. Sua filosofia política, que reflete quase que in totum o modelo, flerta com os mesmos elementos da teoria política de Schmitt. Campos acabará construindo um constitucionalismo antiliberal e cesarista. A autoridade política da soberania antiliberal se manifesta, no Brasil, e com a configuração que lhe dá Campos, também como uma autoridade fundada na unidade entre soberano e povo. O César, mito político ele considera o único possível no direcionamento das massas urbanas, não pode depender de intermediários na definição das funções do governo. A dissolução da nacionalidade durante a 1ª República fará, na visão dos antiliberais brasileiros, que se evite, a todo custo, recorrer às instituições representativas de origem liberal. Como em Schmitt, o antiliberalismo no Brasil verá a instituição da ditadura como democrática e juridicamente legitimada pela Constituição. O objetivo da próxima parte deste trabalho é avaliar se esta aproximação é mimética o suficiente para se falar em filiação ideológica, identidade teórica ou equivalência epocal do pensamento de ambos. Nesse sentido, optar-se-á pelo estudo pormenorizado das categorias políticas fundamentais de Francisco Campos, a fim de compará-las com o modelo de ordem ditatorial encontrada em Schmitt.

163

Cf. McCORMICK, John P. From constitutional technique to Caesarist ploy, p. 203.

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PARTE 2. DEMOCRACIA DE MASSAS E ORDEM CONSTITUCIONAL EM FRANCISCO CAMPOS

A configuração institucional que instala o Estado Novo (1937-1945) é um objeto privilegiado quando se trata de relacionar a obra de Schmitt, como paradigma, à construção de um discurso constitucional antiliberal no Brasil nos anos 30 do século XX. Para o estabelecimento de um modelo de Estado com essas características, as fontes são os textos que, eventualmente, determinem as diretrizes políticas, jurídicas e governamentais do regime. No que respeita à construção de um discurso que funda e sustenta estas instituições jurídicas, os autores reputados como ideólogos assumidos do Estado Novo aparecem como referência obrigatória. É tradição do pensamento social e político sustentar que a formação de uma ideologia realista ou autoritária já está perfeitamente configurada nas primeiras décadas do século XX. Nesse momento, um conjunto de pensadores e atores políticos brasileiros —seja de forma original, seja recepcionando modelos interpretativos externos— coloca-se de forma crítica face à organização política e ao modelo de Estado do constitucionalismo da 1ª República, visando o estabelecimento de um novo desenho institucional, que realizasse os objetivos políticos de ordem social e unidade nacional. 1 A sedimentação ideológica do regime estadonovista estaria ligada —por esta avaliação da academia brasileira—, por um lado ao castilhismo e, por outro, ao corporativismo, com uma determinada recepção do fascismo e do autoritarismo. A definição das características centrais da Constituição de 1937 vincular-se-ia ideologicamente, também de forma preliminar, ao autoritarismo, cuja fonte, por excelência, é o pensamento do jurista mineiro Francisco Luiz da Silva Campos (1891-1968). Através da análise da crítica antiliberal ao regime liberal-republicano e de sua proposta centralizadora, serão investigados os fundamentos discursivos da configuração do 1

Cf. LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio et all (Orgs.). O Brasil republicano, volume 2: sociedade e instituições (18891930). 5ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997 (1978). (História Geral da Civilização Brasileira; v. 9). Capítulo X, pp. 345-374., pp. 345 e ss. Embora, como sustente o autor, não é possível estabelecer sua unidade ou coerência , ou mesmo sua importância.

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modelo jurídico-político estadonovista. A obra de Francisco Campos será desligada —nesta tese— do pensamento autoritário brasileiro, pelo fato de o autor desenvolver uma sociologia de massas, a partir da qual produzirá um diagnóstico da contemporaneidade, conectando a realidade política brasileira a fenômenos de caráter universal. O modelo de constitucionalismo que se forjará a partir desta sociologia específica, que aqui se define como antiliberal, será cristalizado, especificamente, na Constituição de 1937, mas pode ser identificado no conjunto da legislação do período, que se distingue pelo volume e pelo detalhamento na regulação da vida social. Campos foi um dos juristas mais influentes na configuração do Estado brasileiro durante o século XX. Responsável pela reorganização dos sistemas educacional, legal e constitucional durante o Estado Novo, foi uma das figuras essenciais na elaboração do Ato Institucional Nº 1 que deu origem ao regime militar (1964-1985). Como Ministro da Justiça e Negócios Interiores do Estado Novo, foi responsável pela reforma dos Códigos de Processo Civil, Penal e Processo Penal. Criou a Lei Orgânica dos Estados, que pretendia limitar o poder legislativo e administrativo, vinculando-os ao poder central; a Lei de Crimes contra a Economia Popular, a Lei de Segurança Nacional; as Leis de Naturalidade (naturalização, repressão política a estrangeiros, expulsão, extradição e imigração); a regulação da cobrança da dívida ativa da União; o Decreto-Lei contra o loteamento de terrenos; a Lei de Fronteiras, etc. O seu protagonismo, reconhecido oficialmente pelas publicações do regime Vargas, começou a consolidar-se quando de sua atuação no recém-inaugurado Ministério da Educação, durante o governo provisório, entre 1930 e 1932. Seu trabalho nesta área já vinha da época em que foi encarregado das profundas alterações nas instituições educacionais de Minas Gerais. A reforma dos ensinos primário e médio, em Minas, foi recebida como uma revolução nas práticas e nos princípios pedagógicos tradicionais. Campos colocou os professores do Estado no centro de um processo de formação que envolveu um sem-número de congressos, conferências, cursos no exterior e convites a professores estrangeiros para formar docentes no Brasil. 2 Na educação, os princípios fundamentais estavam ligados a uma moralização socializadora que pretendia integrar os 2

Cf. MORAES, Maria Célia Marcondes de. Reformas de ensino, modernização administrada: a experiência de Francisco Campos / anos vinte e trinta. Florianópolis: UFSC, Centro de Ciências da Educação, Núcleo de Publicações, 2000, passim.

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movimentos de conservação/mudança na adaptação a um novo tempo. 3 Como Ministro da educação e saúde pública, realizou uma grande reforma universitária, dando preferência às Universidades ao invés de centros universitários isolados, criou a Universidade do Rio de Janeiro e também idealizou a reforma do ensino secundário, que passou a ser um núcleo de formação independente do acesso à Universidade. Afastando-se das atividades políticas no final de 1932, retornou durante um ano, à advocacia em seu escritório no Rio de Janeiro, passando também a ministrar aulas de Filosofia do Direito na Faculdade Nacional de Direito (futuramente vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro). Assumiu, durante o mês de novembro de 1933 o cargo de Consultor Geral da República, mas logo se licenciou para representar o Brasil na Conferência Pan-Americana dos Estados. De 1935 até 1937, quando deixou o cargo de Secretário de Educação do antigo Distrito Federal para elaborar o Projeto da Constituição outorgada, Campos já era o jurista mais influente na política nacional. De 1937 a 1942 ocupou o cargo de Ministro da Justiça e Negócios Interiores, mantendo uma colaboração estreita, através de seus discursos, para a consolidação do modelo político do regime. 4 Após ficar claro que o Estado Novo, aliado aos Estados Unidos da América na 2ª Guerra Mundial, estreitaria os vínculos com as democracias liberais do ocidente, Francisco Campos rompeu com o Presidente Getúlio Vargas e com o Estado Novo em 1945, através de uma entrevista bombástica, na qual colocou em questão a legitimidade constitucional do regime —5 do qual já havia se afastado, quando o Brasil aderira às forças aliadas, em 1942, alegando problemas de saúde. A produção intelectual de Campos reúne uma quantidade razoável de trabalhos técnicos referentes à educação, alguns deles reunidos em dois livros, Pela civilização mineira: documentos de governo 1926-1930 (1930) e Educação e cultura (1940), algumas 3

Cf. MUANIS, Maria Comes. O Tempo e a nação: os discursos educacionais de Francisco Campos. Dissertação de mestrado (Sociologia). Rio de Janeiro: IUPERJ, 2002, 158 f. 4 Cf. MORAES, Maria Célia Marcondes de. Reformas de ensino, modernização administrada, pp. 154 e ss. e RANGEL, Altanir Vieira. Francisco Campos: o político do poder e o ideólogo. (Dissertação de Mestrado). 125 f. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1975, fls. 36-7. Rangel aponta que Campos foi um dos principais líderes da Revolução de 30 e que, pelo seu suporte à Revolução Constitucionalista de 1932 indispôs-se momentaneamente, em São Paulo, com o Governo Provisório de Vargas, sendo afastado de seu cargo de Ministro: ―No entanto, de 1932 a 1935, ocupa intermitentemente, como interino, a pasta da Justiça.‖. Idem, p. 38. 5 Cf. CAMPOS, Francisco. A Constituição de 1937 e sua vigência. Entrevista de Francisco Campos ao Correio da Manhã do Rio de Janeiro, em 3 de março de 1945. In: PORTO, Walter Costa. Constituições brasileiras: 1937. Brasília: MC&T, Centro de Estudos Estratégicos, 2001, pp. 39-52.

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compilações de seus discursos parlamentares, presentes nos livros Antecipações à reforma política (1940) e Discursos parlamentares (1979) e trabalhos de natureza técnico-jurídica nas áreas de Direito Constitucional, Administrativo, Comercial, Penal e Processual Penal. No que respeita a trabalhos jurídicos de âmbito mais geral, escreveu o livro o Animus na posse (1918), sobre Direito Reais, e o livro Introdução crítica à filosofia do direito (1918), no qual examina o papel da filosofia e da sociologia do direito a partir da discussão do neokantismo. Publica, ainda em 1916, um trabalho sobre economia política (A Doutrina da População), em que critica Marx e Malthus. Livros de caráter ensaístico e literário também são publicados no decorrer da sua vida, destacando-se Ciclo de Helena (1932) e Atualidade de D. Quixote (1948), o primeiro utilizado para uma candidatura infrutífera a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. O seu livro mais influente foi publicado quando já era Ministro da Justiça, O Estado Nacional: sua estrutura e seu conteúdo ideológico (1940). Neste livro, além de sua conferência no salão de Bellas Artes, A Política e o nosso tempo (1935), estão agrupados inúmeros artigos, entrevistas e discursos oficiais da época em que figurava como ator central do Estado Novo. Se por um lado se está diante de um ator político que despontou nacionalmente pelo seu trabalho à frente da pasta da educação —no processo de implantação dos princípios pedagógicos da Escola Nova, vinculada ao pensamento pragmático-liberal de Dewey—, se está, igualmente, ante o gestor jurídico central do regime constitucional originário das duas fases ditatoriais do Brasil: o Estado Novo e a ditadura militar de 1964. No ainda parlamentar mineiro, transparece a recepção da cultura política norte-americana, que dá vazão à sua aposta no direito como instrumento capaz de proporcionar a segurança necessária para o avanço social e a sedimentação da idéia de nação. No ideólogo da ditadura, a força da cultura reacionária européia guia a avaliação perturbadora dos desígnios de um tempo de irracionalidade e violência. Uma das hipóteses desse capítulo é que a incorporação de elementos liberais no discurso e na atividade política de Campos não representa um conflito ou uma tensão internos ao seu pensamento, mas a incorporação instrumental do liberalismo ou, mais especificamente, de alguns de seus elementos. Esse liberalismo instrumental de Campos sofre variações constantes, transparecendo com maior intensidade em seus discursos

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educacionais e quando percebe, no direito, um meio para a implementação de uma certa ordem cultural adaptada às sociedades de massas, que chamará de espírito nacional. Faz-se necessário, para as finalidades deste trabalho, estabelecer os pontos nodais tanto da crítica de Campos ao sistema político vinculado ao ideário liberal, quanto os elementos constitutivos de sua visão jurídica e da ordem social e política, fundamentais para se compreender a configuração do Estado Novo no que este tem de constitucionalismo antiliberal de perfil schmittiano. A trajetória política do jurista mineiro acompanhará o exame de textos escritos durante a maior parte de sua vida, lidos aqui como uma obra alinhavada pelos princípios cardeais da mutação do tempo histórico e da sociedade de massas, informados pelos fundamentos da ordem e da autoridade. A partir destes elementos, procurar-se-á identificar quais os conceitos centrais na formulação da Constituição de 1937 e da legislação que lhe é atrelada e que se configuram a partir do pensamento de Campos, podendo relacionar-se mediatamente com os tópicos discursivos identificáveis no modelo schmittiano. Considerar-se-á, especialmente, três momentos distintos da produção intelectual de Campos, que se destacam do conjunto de sua obra por colocar em pauta uma discussão de ordem filosófico-sociológica, nuclear para a inteligibilidade de sua visão de mundo, de sua atuação como autor da Constituição de 1937 e como um dos responsáveis pela configuração do Estado Novo. Em Atualidade de D. Quixote (1948), Democracia e unidade nacional (1914) e A Política e o nosso tempo (1935) Campos desenvolve, sem estar vinculado aos estritos limites de sua atividade política, as idéias de tempo histórico e de sociedade de massas, informadoras de uma filosofia da história capaz de servir de guia compreensivo de sua atividade intelectual.

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3.

TEMPO

ROMÂNTICO:

O

RETORNO

DE

DOM

QUIXOTE

E

A

EMOCIONALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA POLÍTICA

Francisco Campos não pode ser, apesar da marca da autoridade, facilmente classificado no que respeita às filiações ideológicas. Pode-se sustentar, contudo, que seu pensamento é guiado por uma convicção filosófica inicial de que o direito é o caminho da ordem, da segurança e da paz social, construído pela recepção do passado e representante da tradição.6 Sua filosofia, entretanto, quando voltada para o exame da contemporaneidade, abre-se para uma nova composição de sociedade, onde os valores tradicionais aparentemente não podem mais ser contemplados como guias adequados para a ação. Assim sendo, o objetivo é demonstrar que Campos pressupõe uma ordem social que não é vista ou sentida pela contemporaneidade de forma racional, necessitando ser revelada por uma força social polarizadora e indicadora de sentido. É a sociologia campiana, então, que se constituirá em dois momentos distintos. Na década de 10 do século XX, iria traçar o perfil necessário de uma específica auto-consciência do homem em sua relação com o mundo, estabelecendo a oposição entre uma situação subjetiva em que tudo é possível e a necessidade de uma organização emocional que fosse referendada pela tradição. A partir deste diagnóstico, o autor pretendia indicar o perfil de possíveis reformas institucionais que poderiam permitir o encontro do tempo com a nação. Na década de 30, a sua sociologia de massas seria refinada e, é possível afirmar, efetivamente estabelecida, em direção ao diagnóstico da irracionalidade da política, da impossibilidade de uma orientação racional pelos meios tradicionais da civilização e do direito. Um ensaio do final dos anos 40 demonstra a preocupação em estar constantemente refundando os princípios e conceitos pelos quais considera viável a atribuição de sentido histórico ao mundo contemporâneo. Em assim operando, o texto de Campos revela a marca

6

Cf. CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?). In: CAMPOS, Francisco. Antecipações à reforma política. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1940, pp. 3-13, p. 4.

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característica do constitucionalismo antiliberal. Em Atualidade de D. Quixote (1948),7 é possível identificar os valores através dos quais o autor compreende o mundo e nele se orienta, talvez com uma precisão maior do que em qualquer outro formato discursivo revelado em sua vida. Nesse texto, portanto, a filosofia campiana se expressa em sua maturidade sem as limitações do contorno jurídico da maioria de seus textos. A relação entre D. Quixote e Sancho Pança é lida como um processo tradicional de civilização — cujas raízes encontram-se na Ibéria da baixa Idade Média— que pode ser utilizado em oposição à dissipação cultural contemporânea. A cultura decaída da sociedade atual —o texto é publicado no final dos anos 40— é personificada no anti-heroísmo de Hamlet e Fausto. O objetivo do texto é a perscrutação de uma metáfora do desespero moderno — a relação entre o ―potencial emotivo do homem contemporâneo‖, representado pela passividade de Sancho Pança, e a força simbólica, a expressividade emblemática de uma vontade transformada em decisão na figura de D. Quixote. Esse desespero representa uma crise emocional cuja origem é a falta de um catalisador suficientemente autêntico, tanto para substituir ―o vazio da ausência divina‖, quanto para evitar ―o abuso moral, a degradação maquiavélica da inteligência que se propõe secretariar as massas para, traindoas, conduzi-las ao aprisco de César‖. Nesse ensaio, nuclear para uma avaliação global do pensamento de Campos, fica marcada a presença de conceitos que definem a percepção do fenômeno político e jurídico em boa parte de sua obra. Nesse D. Quixote, uma solução política —a revitalização das instituições naquilo que condensam de apelo emocional e ritualístico— é elevada ao status de cruzada e a autoridade evocada pelo vulto quixotesco é a não menos emblemática figura do Papa. No contexto político do fim dos anos 40, Campos está marcado pela proximidade com a doutrina social da Igreja Católica e pelo relativamente recente rompimento com Vargas. A doutrina católica de evangelização da sociedade brasileira —vinculada aos intelectuais do Centro D. Vital— indicará, para o autor, a necessidade de propor uma

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CAMPOS, Francisco. Atualidade de D. Quixote. Prefácio Abgar Renault. Belo Horizonte: Publicações da Secretaria da Educação do Estado de Minas Gerais, 1951. O texto, originalmente uma conferência, foi publicado pela primeira vez na revista Digesto Econômico, em fevereiro de 1948. Cf. MORAES, Maria Célia Marcondes de. Reformas de ensino, modernização administrada, p. 249, nota n.º 11.

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moralização da política, tema caro à UDN e ao movimento anti-getulista como um todo.8 Em seu ensaio, Campos aponta uma moralização pelos ritos sacros encontrada na ―verdadeira‖ democracia, uma pedagogia das massas realizada pela verdadeira elite, em contraposição aos ―intelectuais céticos e relativistas‖ construtores de pseudo-mitos, falsificadores do ideal de ação coletiva. O engajamento do catolicismo brasileiro nas questões políticas da época teria como objetivo de voltar a reconhecer Deus como fonte essencial de valores necessários à moralização dos homens. Para a doutrina social cristã, como para Campos, a crise do mundo transparece nos homens que, ou revelam-se, inicialmente, como meros seres da natureza, destituídos de uma moralidade que conduza suas vidas, ou como instrumentos de uma racionalização desumana. A ligação entre a doutrina democrática cristã, de natureza política, e a prática de recristianização da humanidade, um processo estritamente moral, é a educação. Nesse sentido é possível observar que, em Campos, a educação aparecerá, especificamente, como formação de elites.9 O fenômeno democrático é lido por Campos como uma manifestação da espontaneidade das massas e da necessidade de uma liderança prenhe de autoridade, conjunção política antecipada pelo clima da época —o século XX— e respaldada por uma elite esclarecida.10 No seu D. Quixote, Campos realizará uma crítica de caráter metafísico ao ―mundo racionalizado e técnico dos nossos dias‖, incapaz de dar resolução ao ―sentimento de insegurança e de fim de mundo‖. Esta ausência de uma meta-interpretação remete o autor a um ―cisma moral‖, que aponta uma crise de natureza emocional: o fim do

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Sobre as posições partidárias na campanha eleitoral de 1950, SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Apresentação de Francisco de Assis Barbosa. Tradução coordenada por Ismênia Tunes Dantas. 13ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2003. 9 Cf. CAMPOS, Francisco. Atualidade de D. Quixote, pp. 80-2. Sobre o Centro D. Vital nos anos 50 e a proposta política dos intelectuais católicos brasileiros, ver DE PAULA, Christiane Jalles. O Pensamento político de Gustavo Corção. Tese de Doutorado (Sociologia). Rio de Janeiro: IUPERJ (mimeo), 2006; PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Atlas, 1990 e BIGO, Pierre. A Doutrina social da Igreja. Tradução de equipe da PUC-Rio, sob orientação do Pe. Bastos D‘Ávila. São Paulo: Loyola, 1969, pp. 83 e 141. Cf. CAMPOS, Francisco. Educação e cultura. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1940. 10 Esse diagnóstico é constante em momentos significativamente diversos da obra de Campos. Cf. CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914), pp. 6 e ss.; CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo (1935). In: CAMPOS, Francisco.O Estado nacional: sua estructura, seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, pp. 1-32.; CAMPOS, Francisco. Atualidade de D. Quixote, pp. 78 e ss.

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grande modelo civilizacional, capaz de orientar o sentido do potencial emotivo do homem em sua composição entre natureza e cultura.11 O alvo do texto é a intelectualização individualista —romântica— que traz, através da cultura e das artes, a perda do ―caráter expressivo de experiências comuns ou coletivas para se limitarem a traduzir em enigmas simbólicos as idiossincrasias e perversões de almas solitárias‖. Esta banalização da vida individual que é também a derrocada da vida coletiva tem, portanto, uma origem ou, pelo menos, uma expressão estética, identificada no movimento de subjetificação da arte e de estetização da vida. Assim, num primeiro momento, o autor identifica a representação literária do caráter melífluo e musical de uma ―sentimentalidade, evasiva, ambígua e difusa, plana, como um vapor irisado, sobre uma razão que abdicou ou duvida de sua realidade‖. Esse processo de subjetificação da arte é, em seguida, vinculado à representação romântica de uma cultura incapaz de transformar pensamento em vontade e vontade em ação. Ambos os movimentos sofrem uma condensação no argumento do texto, e passam a ser exemplificados pelos personagens ―grises, moles e evasivos como as vegetações submarinas‖ de Shakespeare e Goethe, respectivamente Hamlet e Fausto. Enquanto estas duas personagens representam, para Campos, a indecisão e a instabilidade covarde, D.Quixote significará sua antítese literáriosimbólica, o espírito lógico, ―duro, definido, seco e uniforme como o granito, o ar e o céu mediterrâneos‖.12 Em oposição ao senso comum que lê D. Quixote como um lunático perdido em batalhas imaginárias e, por isto, em conflito constante com a realidade, Campos propõe uma interpretação sensivelmente diversa. Assim, no personagem luminar, sociável e comunicativo de Cervantes, pode-se perceber, em oposição a Hamlet e Fausto, que a razão é soberana: rege do alto o mundo da sensação e da sensibilidade que traz curvadas à autoridade do seu comando. (...) Os dois nórdicos são introspectivos ou introvertidos. Daí ser o monólogo o modo mais adequado às suas expansões. A linguagem de ambos é difícil como em geral a linguagem dos especulativos, pois se dirigem mais a si mesmos do que aos outros; neles a linguagem não é um meio de comunicação, mas apenas símbolo, ou mero instrumento destinado a aliviar a sua tensão interior. D. Quixote está permanentemente voltado para fora; alerta e vigilante em relação ao que se passa em torno dele como a sentinela à porta de uma fortaleza. Não há monólogos em D. Quixote.13 11

Cf. CAMPOS, Francisco. Atualidade de D. Quixote, pp. 68-75. Idem, pp. 68-70 e 50-1. 13 Idem, pp. 51-2. 12

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Funcionalmente, D. Quixote realiza um bem essencial, o papel histórico, ―o milagre de cumular de sentido aquele tosco alforje de couro do espírito do nosso pobre Sancho‖. 14 Para Campos, o processo de civilização a que aos poucos se submete e é submetido Sancho Pança —na sua convivência com o cotidiano quixotesco— afasta a ascendência prejudicial da pobreza de um espírito acostumado, exclusivamente, às satisfações mundanas, cheias de ilusões, superstições e cobiças vãs. Essas emoções toscas são deslocadas e direcionadas para um novo destino, dependente tanto da capacidade pedagógica de D. Quixote quanto da aptidão lentamente adquirida de Sancho Pança em compreender as possibilidades de uma vida de jovialidade e, principalmente, uma vida longe da pobreza espiritual. O caminho para a renovação espiritual de Sancho —isto é, o processo de sedução a partir do qual Sancho vislumbrará falsamente a futura satisfação de suas necessidades mundanas— é representado, alegoricamente, pelo reinado prometido por Quixote. A força de conservação que segura Sancho em sua original realidade —onde desenvolvera o gosto por um cotidiano insosso—, faz com que seja irrealizável ouvir os escrúpulos de uma consciência inexistente em si mesmo. O processo civilizatório de Sancho, realizado pelo contato com Quixote — seu contraste absoluto— e em oposição à incapacidade para a ação de um Hamlet e de um Fausto é, para Campos, a alegoria e o segredo da saída contemporânea, por isso a atualidade de D. Quixote, para quem ―o mundo pede uma cruzada‖: As verdadeiras causas do descontentamento, da inquietação, da angústia do homem contemporâneo não são de natureza econômica e política. São de ordem emocional. A emoção perdeu os pólos, os símbolos, os ideais por onde dar vazão ao imenso potencial que se acumulou durante séculos de abstinência e privação. (...) Esse mundo de hoje, que é como Sancho abandonado por seu amo, reclama a volta de D. Quixote, por sentir que sem ele a sua vida não teria sentido. De todos os lados, sob os mais diversos nomes e as mais contraditórias aparências, o que o homem de nossos dias pede e reclama, o que ansiosamente espera — é o retorno de D. Quixote.15 O texto contém tanto o diagnóstico quanto a teleologia de Campos ante a ausência de sentido da contemporaneidade. A crise do mundo se dá quando as emoções represadas não encontram mais que pálidas e canhestras reproduções de uma hierarquia perdida. É a angústia do homem sem a tradição do rito, dos símbolos e dos ideais que canalizam as 14 15

Idem, p. 45. Idem, pp. 83-6.

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emoções para a obediência a uma ordem. 16 Assim, uma perspectiva democrática que restabeleça sentido à sociabilidade humana requer a criação de um novo cerimonial, um rito capaz de ―embeber de novo as suas raízes no coração do povo‖ como a que operou, no processo de iluminação espiritual, D. Quixote com seu Sancho Pança. O caminho da democracia é complexo e cheio de insegurança, como o foi a aproximação da inteligência de Sancho com um D. Quixote aparentemente ―louco rematado‖. Sancho não foi capaz, num primeiro momento, de perceber a capacidade civilizatória de D. Quixote, confundindoa com uma postura de simples alucinação de um cavalheiro imaginário. Como alcançar a ―coroa‖, prometida ―como recompensa dos trabalhos e fadigas‖, o símbolo máximo da liberdade, se a garantia do sucesso futuro era exatamente aquela loucura personalizada no protagonista cervantino? Sancho a alcança —a condição de liberdade e de civilização—, no momento em que se contempla e se avalia, de forma auto-consciente e distante das limitações originárias de sua natureza, ou seja, de forma individualista. Pança educa-se através da convivência com D. Quixote para livremente tornar-se equilibrado e obediente, para ser povo, massa. A liberdade não serve para Sancho continuar em ligação com seus instintos telúricos, mas para se inserir na ordem civilizacional pressuposta na vontade quixotesca. Numa mimese de D. Quixote, considera-se ―de fora, do alto e de longe‖, passando, com esse movimento de auto-compreensão, a reconhecer a força das verdades eternas, como o fidalgo de La Mancha sempre pôde fazer. D. Quixote age sobre Sancho Pança como a Igreja poderá agir sobre o mundo, atribuindo sentido e vida: ―e a paz do Senhor descerá sobre as nossas cabeças e só então nos será dado na alegria provar daquele vinho da piedade e da misericórdia, de cuja embriaguez felicidade é o nome, e fora dela tédio, aridez, secura, areia do deserto, infecundidade e solidão‖.17 Com Sancho fecha-se o ciclo dos antagonismos dramáticos. D.Quixote representa a altivez de um ―foco solar‖, um espírito de fogo que consome a ―lama primordial‖, ―espessa e gelatinosa como o barro do Gênesis‖, e que em Sancho penetra como ―o fermento da eterna inquietude humana‖. D. Quixote torna-se, assim, o espírito ativo e o ―tom imperativo‖ de seu tempo, a força viva e civilizadora, capaz de libertar o mundo de seu cataclismo — ―a degradação maquiavélica da inteligência‖. Sancho Pança assume o lugar

16 17

Idem, p. 71. Idem, pp. 82, 1-11 e 22.

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do povo, ante sua hora primordial, outorgada em benemerência por Quixote e deve definirse após ter enfrentado a relação com a luz do entendimento: ―sapo ou estrela‖. Hamlet e Fausto são a desordem contemporânea, a estetização amorfa do mundo, representam o culto à personalidade e podem ser perfeitamente descritos, segundo Campos, como ―romances de tese‖. Neles, o mundo em si torna-se impotente e tudo se transforma em simples cogitação, isto é, ―o fantasma de idéias que não conseguem tomar contato com a realidade‖. 18 Campos critica, aqui, como Schmitt, a incapacidade do pensamento romântico de agir no mundo. Assim, enquanto Quixote representa uma atitude existencialista, que define a existência do homem no mundo a partir do conjunto de suas ações concretas, o romantismo indica a existência de homens apáticos, que impedem a própria experimentação da realidade. A conclamação de Campos nesta obra é representativa de uma forma de pensamento específica, o pensamento católico conservador. Esta crítica se coaduna com o reacionarismo católico de Schmitt, que compreende o liberalismo como representação romântica de mundo e clama igualmente pela ação e pela decisão concretas para reordenálo. A representação da tragédia de Hécuba, através da qual o personagem Hamlet pretende identificar a face dos supostos culpados pelo assassinato do Rei, representa a intrusão da política em uma narrativa onde, segundo Schmitt, a impossibilidade de conclusão é estrutural. A tragédia grega significaria, assim, o tempo histórico prenhe de decisão e vontade, quando a guerra forma o Estado e o poder sacro do soberano está em relação direta com o modelo literário de herói medieval e de virtude humanística. 19 A heroína trágica Hécuba —vingando de mão própria a morte de seus filhos—se não tem a mesma função simbólica em Schmitt que D. Quixote no ensaio de Campos, cumpre idêntico sentido metafísico.20 Representa o momento de autoconsciência pura voltada à decisão,

18

Idem, pp. 30-58. Cf. GALLI, Carlo. Presentazione dell‘edizione italiana. In: SCHMITT, Carl. Amleto o Ecuba, pp. 10-6. 20 Cf. EURÍPEDES. Hécuba. In: ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPEDES. Os Persas, Electra, Hécuba. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 4ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, pp. 151-219. 19

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livre, por sua ação relacionada ao mundo concreto.21 E, em posição análoga à de D. Quixote, opõe-se a Hamlet, o anti-herói covarde —como o vê Schmitt—, espectador inerte da dissolução de sua soberania ante as guerras civis religiosas, catástrofe, de resto, como diz Galli, já acontecida: a moderna destruição da ordem simbólica tradicional não é narrável por si (não é ―mito‖, se por mito se entende conto), mas por estar presente só em negativo; uma tragicidade, além do mais, sem catarse e sem ação, testemunho mudo (apesar de reconhecido ao nível público da Öffentlichkeit) de uma catástrofe já acontecida. (...) Enlaçado nessa fratura histórico-política, Hamlet/James é o código imediato (o mito vivente) da impotência do poder tradicional, entre uma universalidade perdida e uma particularidade ainda por vir: a sua inação é o trágico, não o seu agir.22 As

oposições

D.Quixote/Sancho/Hamlet

e

Hécuba/James/Hamlet

são

demonstrações filológicas de uma fratura política entre épocas distintas e, ao mesmo tempo, representam conceitos não substanciais, isto é, compreensíveis somente enquanto relação.23 Trata-se do deslinde de um processo que se perfaz como filosofia da história. Em ambos os autores, o presente é a dissolução que necessita ser convertida em decisão e ordem. A narrativa sobre o momento político presente faz referência obrigatória ao passado: avalia-o, determinando seus significado e valor, apontando para o futuro a necessidade de sua recuperação. Em Schmitt só se torna possível abarcar a profunda distância entre dois momentos políticos pela relação entre o jogo dramático decadente de Hamlet e a força trágica emergente de um fato histórico verdadeiramente acontecido — narrado por uma tragédia inserida na narrativa do drama. Analogamente, em Campos, a fraqueza leniente do individualismo de Hamlet e a ignorância naturalmente perversa de Sancho Pança estão em rota de colisão com a virilidade —evocada como cruzada— de D. Quixote. Em Schmitt, os opostos não se tocam, o antagonismo entre Hécuba e Hamlet é mediado, pois o tempo de Hamlet —a indecisão política— domina. A tragédia representa, literalmente, o tempo histórico, pois a decadência se completa e se confirma 21

No ensaio de Schmitt, a comparação entre Hamlet, Fausto e D. Quixote é igualmente apontada: ―Notoriamente, o espírito europeu, desde o Renascimento, se tem desmitificado e desmitologizado. Entretanto, a poesia européia criou três grandes figuras simbólicas: Dom Quixote, Hamlet e Fausto. Em todo caso, em uma delas, Hamlet, alcançou a condição de um mito. Todos os três são extraordinários leitores de livros, e portanto, se se pode dizer desse modo, de intelectuais. Todos os três foram trapaceados, vítimas de seus espíritos. E agora prestemos um pouco de atenção a sua origem e no seu nascimento: don Quixote é um espanhol, um bom católico; Fausto é alemão e protestante; Hamlet está entre os dois, no meio da fratura que determinou o destino da Europa‖. SCHMITT, Carl. Amleto o Ecuba, p. 97. 22 GALLI, Carlo. Presentazione dell‘edizione italiana. In: SCHMITT, Carl. Amleto o Ecuba, pp. 22-3. 23 Idem, p. 25.

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irremediavelmente. No texto de Campos, ao contrário, apesar de D. Quixote e Sancho Pança estarem, a princípio, no mesmo plano, o do passado, eles são símbolos atemporais. De um lado, Sancho Pança atravessa os tempos e, num presente repleto de indefinições, prestes a decidir-se: é preciso que seus instintos sejam contidos. Representa a força da natureza que carece do sentido que só a pedagogia de D. Quixote, recuperada pela evocação de Campos, pode alcançar. É nesses termos que D. Quixote, Hamlet e Sancho formam um complexo. O presente hamletiano domina, mas D.Quixote é invocado como força redentora capaz de, no presente, sobrepor-se a Hamlet e iluminar Sancho, diferentemente de Hécuba, convocada como testemunha impotente da decadência dramática. Apesar de não estar no mundo, ―no sentido do aqui e agora‖, D. Quixote é a vontade suficiente e necessária para mobilizar as emoções contemporâneas e lhes atribuir ordem.24 Apesar dessa distância entre o pessimismo de Schmitt e a crença de Campos, o sentido da narrativa é que a ordem simbólica tradicional, em ambos os autores, precisa ou deveria ser recuperada. Não se trata de perfazer, tão-somente, o caminho da derrocada da cultura conectada a uma tradição onde a substância do político se sobrepuja à forma do direito e do Estado. Em ambos os autores, Hamlet não é tradição, mas o símbolo do ethos romântico em ascensão, que degrada a vida social por imiscuir-se na história presente, destituída de significado. Em Schmitt, Hécuba é o grito desesperado de uma maternidade estéril, de futuro inexistente ao menos no alvorecer da modernidade. O D. Quixote evocado por Campos, por outro lado, só está em melhor situação por que é reconhecida sua eficácia simbólica. Apesar de grassar o desespero, a certeza do diagnóstico é o que permite estabelecer a vontade quixotesca como um guia para a ação. Efetivamente, a situação do homem contemporâneo, apesar de imersa no drama, é, para Campos, a sua própria possibilidade de redenção: Não encontrando pólos adequados por onde efetuar a descarga de seu potencial emotivo, este flui naturalmente pelos caminhos ocasionais ou circunstanciais que se oferecem à sua derivação — a agitação política, a sinistra mascarada das revoluções, os horrores da guerra, o crime, a literatura e a arte hermética dos intelectuais que pela insensibilização da zona afetiva da personalidade se vêem 24

Sobre a oposição Hamlet/Fausto e D. Quixote, vaticina finalmente que, ―[e]nquanto eles dizem: ‗talvez, eu penso, ser ou não ser, antes não houvera nascido‘, e pensam indefinidamente os mesmos pensamentos na balança imóvel do seu espírito, procurando fugir à ação no preciso momento em que parecem decidir-se por ela, pelo espírito de D. Quixote a decisão passou com a rapidez do raio e, já fora da bainha das reflexões, reluz a espada flamejante da sua vontade‖. CAMPOS, Francisco. Atualidade de D. Quixote, pp. 35-56.

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privados da virilidade, da sociabilidade, da alegria, do prazer de se comunicar com os outros. Todas essas deformações estão ligadas entre si por laços de intimidade e parentesco e têm uma raiz comum: não encontrando emprego adequado para seu potencial de emoções, o homem de hoje, angustiado e pervertido pela sua solidão emotiva, volta contra si mesmo e contra os seus semelhantes, como tomado pela raiva da destruição, poderosas energias, que, configuradas por um ideal, seriam criadoras, ou aumentariam nele a capacidade de exteriorizar a sua personalidade para melhor conhecer e dominar, pois só na ação, como diz Goethe, o homem se conhece25 Goethe, neste trecho, não poder ser confundido com seu personagem. O diagnóstico do autor alemão se conforma, assim, ao de Campos, segundo quem o romantismo do mundo contemporâneo se reflete na política. O argumento de ambos os autores se estrutura, no seu ápice, em uma palavra de ordem: é preciso agir no mundo. Isto significa agir sobre as emoções humanas, que são ―a raiz e a mãe da razão‖. Representam, no mundo contemporâneo, ―energia em estado de tensão‖, que precisa ser direcionada pela força vital do mito, em oposição a uma compreensão puramente técnica da cultura. Seguindo o raciocínio do autor, é preciso libertar o homem dos espíritos de Hamlet e Fausto, que significam a degradação, o vazio e a queda da civilização, pois com eles a vontade de decisão não é capaz de concretizar-se. A planificação da realidade, gerida por uma estetização que redunda em decadência, representa o tempo do cálculo e do consumo dominando as formas de vida. Para Campos, enfim, o homem se perde na medida em que abdica de Deus. 26 Não o Deus do além, mas aquele que dá ordem e sentido à cidade e à orbe. Deus, seu tempo e seus símbolos tornam-se anacrônicos e a virtude católica é afastada do mundo.27 O problema apontado por Campos é a secularização da política, momento em que deixa de ser natural a relação entre o poder temporal e as virtudes cristãs. Na parte final do texto, onde a crítica do mundo moderno é mais direta, a estrutura narrativa opera pela

25

Idem, pp. 69-77. Idem, p. 81. 27 Cf. ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo. 2ª edição. São Paulo: Unesp, 1997, pp. 16-7. 26

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contradição católica fundamental que, segundo o autor, seria a relação entre ordem e caos. 28 Em termos temporais, está se apontando a decadência, em termos morais, a dissolução, em termos políticos, a desordem, em termos estéticos a derivação ocasional das temáticas artísticas.29 Para o autor, a concepção romântica do mundo tem, portanto, a mesma conseqüência que lhe atribui Carl Schmitt num ensaio escrito cinco anos depois do D. Quixote. Em Hamlet ou Hécuba: o irromper do tempo no jogo do drama (1956), Schmitt investiga a conformação do Estado moderno na situação de dissolução da ordem simbólica tardo-medieval. Neste momento, como diz Carlo Galli na apresentação da edição italiana, a relação que opõe realidade e representação manifesta-se pelas cisões entre política e cultura, história e arte, entre a função do jogo e a essência do trágico:30 Hamlet permanece em complexo, na sua impostação, inteiramente uma peça de vingança, e o homicídio do pai e o matrimônio da mãe com o assassino conserva-se como a situação central e fundamental. Por conseqüência, Hamlet/James resta como o personagem importante, e a problematicidade da figura do vingador é de todo originada da coetânea presença deste filho de Mary Stuart. Em James, um rei inclinado ao interesse filosófico e teológico, se encarna, de fato, toda a laceração de uma época, de um século de cisma religiosa e de guerra civil confessional. É a partir deste dado que é possível clarear adequadamente aquele desvio do Hamlet shakespeareano de todos os outros modelos de vingadores, aquela peculiar hamletização do vingador (...). Emerge aqui, em primeiro plano, a relação entre tragédia e presente histórico contemporâneo.31 A interpretação schmittiana de Hamlet é semelhante ao papel que lhe atribui Francisco Campos. Em termos estéticos, Schmitt estuda de que forma, e sob quais condições, uma história que fala originalmente de vingança tem um protagonista anti-

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O conjunto de termos antitéticos na construção do quadro de crise temporal é vasto. Em poucas páginas, alguns foram selecionados a título de exemplo. Numa relação direta com os fundamentos da teologia cristã contrapondo-se, exatamente, à divisão pós-medieval e renascentista (mais especificamente maquiavélica) entre poder temporal e poder espiritual: antes e depois, bem e mal, dia e noite, luz e escuridão, antigo e moderno, ideal e ideologia, social e singular, natural e racional, liberdade e escravidão, popular e autoral, coletivo e solitário, cerimônia e confusão, comunhão e mistificação, verdade e paródia, energia e passividade, liturgia e instabilidade. É possível questionar se, teologicamente, a oposição católica fundamental não seria entre a ordem e o nada, já que Deus cria o mundo do nada e a relação entre ordem e caos remete à filosofia grega. Cf. CAMPOS, Francisco. Atualidade de D. Quixote, pp. 69-80.; Cf. ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico, pp. 14-5. 29 Cf. CAMPOS, Francisco. Atualidade de D. Quixote, p. 76. 30 Cf. GALLI, Carlo. Presentazione dell‘edizione italiana. In: SCHMITT, Carl. Amleto o Ecuba: L‘irrompere del tempo nel gioco del drama. Bologna: Il Mulino, 1983 (1956), pp. 5-35., pp. 8-9. 31 SCHMITT, Carl. Amleto o Ecuba, p. 65.

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heróico, um ―intelectual melancólico e duvidoso, incapaz de ação‖. 32 Shakespeare, preocupado em sobrepor uma trama dramática a uma questão política histórica —a dúvida sobre o papel da Rainha Mary Stuart na morte de seu marido e a pífia atuação política de seu filho, o príncipe James Stuart, na defesa ignóbil do direito divino do Rei—, acaba permitindo a existência de uma fissura narrativa que significa, para Schmitt, a irrupção do tempo histórico no jogo dramático. Em meio à presença de todas as personagens, é representada uma peça aparentemente sobre a vingança do filho pela morte do Rei — vingança que nunca se realiza— ou sobre a culpa da Rainha. A representação trágica, de tom claramente político, que surge dentro de um drama em princípio descolado dos fatos históricos, representa essa irrupção do tempo. Para Schmitt, que externa seu método de análise contextual informando a necessidade de se ler Hamlet a partir da concretude histórica que condiciona a obra de Shakespeare, ―Em tempos de crise religiosa, o mundo e a história universal perdem a certeza de suas formas e vem então à luz uma problematicidade humana na qual, se se fica limitada a uma tradição puramente estética, não é certa a criação de um herói de um drama de vingança‖. 33 Esse pano de fundo anti-romântico, que permite estabelecer um entendimento uniforme da crítica da modernidade nesses dois autores —Campos e Schmitt— confirma a metafísica anti-liberal no pensador brasileiro. Tal aproximação, que é possível apenas inferir em seus textos não-literários, é extraída da leitura de Atualidade de D. Quixote. A partir dessa crítica da modernidade, de onde Campos retira o diagnóstico de falta de sentido e indecisão da cultura contemporânea, e para o qual recomenda a necessidade de reordenação civilizacional pela vontade de ação, chega-se a um elemento fundamental de seu pensamento. A apreciação da realidade social remete Campos a considerar o fenômeno político como detentor de uma dinâmica predominantemente emocional. Sua análise da política chega a ser psicológica. Entender a operação da política através da força vital do mito introduz o elemento da irracionalidade na avaliação, tanto de Campos quanto de Schmitt. Esses dois autores, que vêem em D. Quixote a representação material da força necessária para operar a política, reconfiguram a aproximação tradicional da idéia de centralização do poder.

32 33

GALLI, Carlo. Presentazione dell‘edizione italiana. In: SCHMITT, Carl. Amleto o Ecuba, p. 10. SCHMITT, Carl. Amleto o Ecuba, pp. 58 e 69.

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Enquanto não há sociedade de massas, é possível falar em orientação e tutela da sociedade, através da utilização de instrumentos impregnados da pretensão de racionalidade, como a ordem jurídica. Mas eles patentearam a incapacidade do direito operar a ordenação social como sendo o diagnóstico do fim da hierarquia. A sociabilidade tradicional, que permitia a produção de uma estrutura de ordem e moralidade, dá lugar ao individualismo dissociador das massas urbanas, marca da decadência contemporânea. A implosão do indivíduo que interage pelo compartilhamento da cultura recomenda a reorganização civilizacional pela vontade de ação. Compreender este deslocamento da interpretação da política é a tarefa do próximo capítulo, onde será explorada a configuração do diagnóstico inicial de Campos, num texto da década de 10: Democracia e Unidade nacional. Numa sociedade em que as massas são apenas uma promessa, a desordem social ainda poderá ser orientada pelo espírito da tradição. A desrazão ainda será combatida pela autoridade. A questão que se coloca é que estas interpretações do fenômeno político —a existente em A Atualidade de D. Quixote e a que se realiza em Democracia e Unidade nacional— são distintas por conta da presença de uma avaliação sociológica igualmente diferenciada. Na análise que se segue, será preciso retornar às origens do pensamento de Campos para identificar o signo preciso da mudança.

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4. PRIMEIRA REPÚBLICA: DEMOCRACIA LIBERAL X UNIDADE NACIONAL

Em meados dos anos 10, a nostalgia da tradição já está presente em Francisco Campos, ainda estudante e membro do Centro Acadêmico da Faculdade Livre de Direito de Belo Horizonte. No final do curso, tem a incumbência de proferir uma palestra junto à herma do falecido Presidente Afonso Pena. Escreve, então fortemente influenciado pelos artigos de Alberto Torres, o pequeno texto Democracia e unidade nacional (1914),34 em que se pode notar a precoce compreensão da problemática brasileira na interpretação americanista que faz da 1ª República. Buscando uma explanação que desnudasse a ―solidariedade orgânica entre passado e presente‖, o autor se volta para os fundamentos da República e sua relação com um Império que desabava ―no meio da indiferença nacional‖. Assumindo enquanto romântico o levantar da herma de Afonso Pena, encontra no aforismo de Ralph Waldo Emerson (1803-1882) o mote discursivo a partir do qual irá construir seu argumento: ―Toda instituição é a sombra alongada de um homem‖. A solução de Campos será a necessidade de assunção pública, pelo homem de lei, de seu papel civilizatório ―sobre os instintos de perfectibilidade humana‖. 35 O americanismo de Campos resulta do fato de que, para o autor, a ordenação social deve se fazer por cima, pela compressão da lei, pelo Estado. Seu modelo de civilização

34

CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), pp. 3-13. Sabe-se pelo próprio texto, que o discurso de Campos foi proferido na inauguração da herma de Afonso Pena, fundador da Faculdade e seu primeiro professor, realizada pelo Centro Acadêmico da Faculdade Livre de Direito (fundado em 1908 e que viria a se chamar Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP) em 1973). Não se conseguiu determinar, com precisão, a data correta do texto. As fontes de informação utilizadas para estudar a obra de Francisco Campos remetem, todas, ao texto de Jarbas Medeiros, também impreciso (MEDEIROS, Jarbas. Ideologia autoritária no Brasil, 1930/1945, p. 9). A própria herma de Afonso Pena, uma pista importante, não está datada. 35 CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), pp. 3 a 5 e 12. O texto completo da citação referente ao ensaio Autoconfiança (Self-reliance) é: ―Cada homem verdadeiro é uma causa, um país, e uma idade; requer espaços e números e tempo infinitos para realizar inteiramente seu projeto; — e a posteridade parece seguir suas etapas como um trem comercial. Um César nasce, e para épocas futuras temos um Império Romano. Cristo é nascido, e milhões de mentes crescem e penetram (cleave) em seu gênio, que é confundido com a virtude e o possível do homem. Uma instituição é a sombra alongada de um homem; como o Monasticismo, do eremita Antony; a Reforma, de Lutero; o Quakerismo, de Fox; o Metodismo, de Wesley; a Abolição, de Clarkson. Scipio, Milton chamou ―o apogeu de Roma‖; e toda história resolve-se muito facilmente na biografia de algumas pessoas determinadas (stout) e sérias (earnest).‖ EMERSON, Ralph Waldo. Self-reliance and other essays. New York: Dover Thrift Editions, 1993 (1841), pp. 19-38.

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radica na recepção de um ponto de vista Anglo-Americano que não é o da Constituição da República de 1891, isto é, não diz respeito à descentralização, mas à unidade do poder político que, para ele, lhe falta. A lei, coordenada na sua confecção por homens têm origem em uma elite econômica e/ou representam uma cultura tradicionalmente privada mascara, sob a ordem pública pretendida, uma ordem privada igualmente desejada. Para Campos, os últimos 50 anos do Império foram anos liberais e, na República, sem a unidade nacional proporcionada pela concentração de poder político —que ―não permitia a tribos partidárias o privilégio dos órgãos representativos da nação‖—, passou a imperar ―a diferenciação da autoridade pelo triunfo das aspirações locais‖. 36 A crítica da desordem republicana nasce, portanto, vinculada a uma crítica do processo de representação política que assume um caráter predominantemente local quando do fim do Império. Mas é uma crítica que igualmente aponta para a dissolvência da produção econômica coordenada, situação em que a normalização das ―aspirações locais‖ se torna necessária. Como o próprio título do discurso indica, Campos sustenta existir contraste entre a essência da democracia e o princípio da unidade nacional. A tensão entre essas duas forças que orientam a organização social marca a construção de todo o argumento. Assim, ao espírito regionalista, separatista e individualista da democracia, vinculado às idéias de liberdade e igualdade, Campos contrapõe a necessidade de concentrar a autoridade, sua unidade e indivisibilidade como elementos capazes de preservar o princípio democrático sem colocar em risco a tendência à harmonia nacional. A democracia será defendida como manifestação da vontade, da lei e da práxis das instituições na conformidade de um plano que garanta historicamente a ―eficiência da ação no exercício do poder‖. Não será possível interpretar a democracia como instabilidade e conflito causados por um ―regime de mudanças periódicas de governo‖ como aquele defeso pelo republicanismo democrático instalado no país. 37 Assim, ante uma organização política abolida por um processo de acomodação informe e apático, o poder acaba por se refazer. Orientada por uma postura democrática que realiza uma incoerente ―diferenciação da autoridade‖, a nova ordem tem, como resultado, a multiplicação dos órgãos da soberania nacional. 38 Campos estabelece, então, o fundamento 36

CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), p. 7. Idem, passim. 38 Idem, p. 7. 37

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da distinção entre modelos de democracia que estaria subjacente à experiência histórica brasileira. Na transição do Império para a República, aponta o ―enfraquecimento da unidade nacional‖ pela recepção não balanceada da doutrina democrática de Jefferson que se contrapõe ao ―princípio hamiltoniano da concentração da autoridade nacional‖. 39 O paralelo entre o federalismo de Jefferson e o unitarismo de Hamilton já está presente, nesses primeiros anos da década de 10 do século XX, em Alberto Torres (1865-1917). Premida pela necessidade de construir uma organização política capaz de afrontar a metrópole inglesa, a recém-independente organização de Estados norte-americanos precisa a fórmula federalista através do famoso texto da Declaração da Independência (1776), assinado por Thomas Jefferson. Como Estados livres, as colônias americanas teriam, pelo texto da Declaração, poder absoluto para declarar guerra, estabelecer a paz, fazer alianças, definir as regras de comércio e organizar suas leis. 40 Contra esse federalismo radical insurge-se o movimento pela constitucionalização, quando Alexander Hamilton, em O Federalista (1788), deixará claro que uma simples confederação é incapaz de sustentar a existência de uma união suficientemente forte para garantir a segurança e a prosperidade da nação contra uma ―iminente anarquia‖. 41 Como no processo de constitucionalização, nos Estados Unidos da América, o Brasil deveria, necessariamente, estancar o desenvolvimento do ―princípio democrático da irresponsabilidade nacional‖. Para Campos, o ―problema democrático‖ brasileiro resolverse-ia pelo ―governo dos legistas‖, cujo papel deveria ser o de ―adaptar constantemente a construção legal dos textos às variações e às transformações de estrutura do organismo político, de sorte a (...) corrigir os vícios e os excessos do temperamento democrático‖. 42 Desposando este argumento, ele se alinha, claramente, à percepção sedimentada na 1ª República por conta das duras experiências ocorridas nos governos militares: as alterações 39

Idem, p. 8. Cf. JEFFERSON, Thomas. The Declaration of Independence. In: HUTCHINS, Robert Maynard (Ed.). American State papers; The Federalist; J. S. Mill. Chicago/London/Toronto: Encyclopaedia Britannica, INC., 1952, pp. 1-28., p. 3. 41 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The Federalist. In: HUTCHINS, Robert Maynard (Ed.). American State papers; The Federalist; J. S. Mill. Chicago/London/Toronto: Encyclopaedia Britannica, INC., 1952, pp.29-266., p. 63. Dirá Hamilton: ―Depois de uma inequívoca experiência da ineficiência do governo federal subsistente, vocês são conclamados a deliberar sobre uma nova Constituição para os Estados Unidos da América. O objeto traduz sua própria importância; compreendendo em suas conseqüências nada menos que a existência da UNIÃO, a segurança e o bem-estar das partes de que é composta‖. (Idem, p. 29). 42 CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), pp. 8 e 10. 40

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no comando ou na dinâmica do poder político precisariam legitimar-se, invariavelmente, pela Constituição.43 Assim, realizar constantemente a interpretação constitucional seria orientar-se pela ―inspiração nacional‖, naturalmente oposta aos ―conflitos democráticos‖, a serem neutralizados por ela. A democracia, portanto, deve representar o princípio da unidade e da responsabilidade nacionais, se colocando como um horizonte de sentido — ―um plano histórico, de onde se possa dominar a evolução política dos povos‖. Sustenta que Uma democracia de responsabilidade nacional, uma democracia em que a política seja nacionalmente eficaz e responsável, é aquela em que a nação contrabalança pela autoridade as tendências separatistas da liberdade e da igualdade. A democracia supõe, por conseguinte, ao lado da divisão territorial, política e administrativa, uma poderosa concentração da autoridade nacional e uma organização eficaz das responsabilidades, das experiências e das tradições nacionais. Esta unificação é a obra da consciência política da nação, da vontade dos homens e da educação coletiva pelas experiências nacionais. 44 O plano estabelecido pelo autor para dar conta do processo de unificação nacional através da atuação política dos juristas, está vinculado à sua concepção de opinião pública. É outro elemento do texto de Campos ligado à interpretação de Torres sobre a 1ª República. O autor mineiro refere-se à figura emblemática do Presidente Afonso Pena para espelhar a transição pacífica do Império para a República e, ao mesmo tempo, demandar o reconhecimento de que a República, no que respeita à construção da estabilidade política, dependia diretamente da tradição dos estadistas do Império.45 A idéia de continuidade, na constituição espiritual de um elo entre este novo modelo de ordem pública e a sociedade civil que necessita de orientação, não seria harmônica se Campos não identificasse a discrepância entre a tradição pacífica da unidade imperial e a organização problemática da democracia republicana. Falta à República um cimento social capaz de estruturar a unidade nacional, já que se está diante de um presidencialismo fraco e, a princípio, condenado à dissolução. O problema consiste no que Oliveira Vianna chamaria, alguns poucos anos 43

Cf. FAORO, Raimundo. Os Donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 2. 10ª ed. São Paulo: Globo/Publifolha, 2000 (1973), pp. 197 e ss. 44 CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), p. 12. 45 Idem, p. 6: ―O regime funcionava como um organismo embrionário, reclamando os cuidados e o prestígio dos homens sinceros, que, pela experiência e pelo estudo, influíssem diretamente sobre o seu desenvolvimento. Permanecer indiferente diante da iminência de uma catástrofe era ausência de altruísmo e obstinação de inteligência. Nem por egoísmo, nem por cegueira, o conselheiro Afonso Pena se abstivera da República: quando, portanto, foram reclamados os seus serviços, ele interveio, reatando o curso de sua tradição política e fazendo servir à República as virtudes do Império‖.

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depois, de ―idealismo da Constituição‖. Em Campos, o tema é claro e refere-se ao que ocorreu na 1ª República: A autoridade constitucional do poder central, insuficiente e mal delimitada, está sujeita a exercer-se violentamente contra os princípios legais da autonomia. De sorte que a nação, para defender as suas prerrogativas, começa a abandonar a constituição escrita, praticando infidelidades contra a letra e o espírito dos seus textos. E é o que nos acontece: um país em transformação acelerada, formando o seu caráter, e uma constituição morta, que nasceu inadaptável às condições orgânicas da nação.46 Uma Constituição escrita a partir da experiência de uma nação alienígena e historicamente vinculada a elementos orgânicos distintos era aplicada, sem flexibilidade, a uma realidade completamente díspar. E mais. Uma Constituição liberal, incapaz de lidar de forma segura com situações políticas excepcionais, mostra-se um instrumento à mercê da violação pela prática política. Esses dados revelam, para Campos, a receita do desastre. Para além da aproximação desse diagnóstico com o que Schmitt proporia anos depois, em 1928, concernente à Constituição de Weimar, está a filiação doutrinária de Campos aos argumentos de Alberto Torres no Organização nacional (1914) e n‘O Problema nacional brasileiro (1914), compilação de artigos escritos desde 1912. Nesses livros, Alberto Torres sustenta a necessidade de fundar uma ―solidariedade patriótica‖ que possibilite a união de interesses comuns, signo de uma sociabilidade desenvolvida na atenção aos problemas concretos de um país nascente. Nesse sentido, Alberto Torres advoga que se forme uma opinião capaz de agregar os espíritos em torno de um programa nacional que escape à idealização do mundo intelectual que está distante, no Brasil, dos problemas políticos e da ação pública propriamente dita: ―inteligência híbrida, incapaz de procriar‖. 47 O

programa

americano,

construído

por

Campos

na

recepção

do

elitismo/personalismo privatista de Emerson e na idéia de centralização de Madison encontra-se, especificamente neste ponto, em Alberto Torres, para quem, uma democracia como a instalada na nova República brasileira só pode ser considerada legítima se ao governo das leis se somar um regime de opinião pública ativa, que expresse a vontade coletiva e influencie a conformação das instituições. A idéia de ver nos juristas o centro irradiador da opinião pública nacional está claramente delineada. Se não aponta 46

Idem, p. 9. TORRES, Alberto. O Problema nacional brasileiro. 3ª ed. Brasília: Companhia Editora Nacional, 1978 (1914). (Coleção Brasiliana, n.º 16), pp. 84 e ss. 47

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expressamente para esta classe, define ser necessária a existência de um núcleo organizador daquela opinião. Assim, Alberto Torres argumenta, numa chave platônica —e no que será o centro ideativo do discurso de Campos—, que ―o mecanismo governamental, em todos os seus aparelhos, é não somente um núcleo de vida intelectual — em certos ramos, como na política, quase exclusivo — senão também o centro de onde saem, em grande parte, os recursos para a atividade cerebral do país‖. Advoga, portanto, a necessidade de se conduzir a intelectualidade brasileira à gerência da coisa pública, pois é desses homens que poderá nascer uma ―verdadeira democracia representativa‖, e é através deles que o espírito nacional pode nascer e prosperar. Está justificada a idéia de um estado forte que, estabelecendo-se contra a perspectiva liberal de limitação dos poderes públicos, possa enfrentar com ―autoridade‖ o papel ―de desenvolver o indivíduo e de coordenar a sociedade‖. No caso brasileiro trata-se, especialmente, do combate à oligarquização do Estado. O projeto de um modelo de civilização material, com laivos evolucionistas, representa um americanismo que legitima a participação burguesa no interior do Estado. Confirmando esta tese, da mesma forma como é possível atestar também no discurso de Campos, em Torres a ordem social mantém-se ―por simples tolerância costumeira‖, sendo o núcleo da crise brasileira o divórcio entre a sociedade e a política, isto é, o divórcio entre o público e o privado. Ele argumenta, então, que o conjunto de ações e pensamentos que orienta a vida política do país sofre de uma ―estranha falta de adaptação do saber e do patriotismo às peculiaridades da terra e do povo brasileiro‖. 48 O objetivo de se realizar instituições políticas e jurídicas de caráter nacional é a preservação do interesse geral contra os interesses individuais somados, sendo o Estado a unificação de vontades capaz de orientar uma ação de caráter nacional, gerando a vida do país, ou seja, defendendo os indivíduos ―contra os abusos do individualismo‖. 49 Sustenta, desta forma, uma restauração conservadora organizada pelas elites administrativas, quando diz que a formação artificial das nacionalidades, tal como a nossa, impõe, como necessidade imperativa, a formação, por convicção racional, da consciência nacional: a criação e o desenvolvimento, par en haut [pelo alto] — da inteligência para os hábitos, do raciocínio para os reflexos — do instinto de conservação e de progresso nacional. 50 48

CF. TORRES, Alberto. Organização nacional Brasília: Companhia Editora Nacional, 1978 (1914). (Coleção Brasiliana, n.º 17), pp. 90 e ss e 169 e ss. 49 Cf. TORRES, Alberto. O Problema nacional brasileiro, pp. 113 e ss. 50 Idem, pp. 129 e ss.

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A forma republicana e federativa do Estado brasileiro demonstra a necessidade operacional de um ―governo jurídico‖, capaz de transformar a ordem social em segurança, liberdade e propriedade.51 É em Torres que Campos encontra a crítica à Constituição como instrumento inadaptado e alienígena, transplantado do presidencialismo federalista norte-americano sem que se tivesse prestado atenção às necessidades do povo e à experiência legislativa pátria. Lá está a comparação entre o federalismo da Declaração de Independência e o perfil centralizador da Constituição dos Estados Unidos da América, necessária avaliação para que advirta sobre a abstração da Constituição brasileira. Nesse dois autores consolida-se, portanto, um projeto americanista distinto, que objetiva o progresso material pela coordenação privatista das instituições públicas. É especificamente em Alberto Torres que a relação entre a força normativa da Constituição e a configuração política de uma opinião pública mobilizada é definida como observação de natureza sociológica. A adaptação constitucional à realidade brasileira se dá, igualmente, pela ―plasticidade das formas jurídicas‖, os intérpretes realizando o importante papel de trazer à lei o ―espírito de seu tempo‖.52 Seguindo muito de perto o argumento de Torres, mas mantendo-se um autor original na definição do processo através do qual a opinião nacional deveria ser forjada, Campos tenta acenar com sua promessa: a justificação da função pública dos juristas. A saída — uma atividade política dos juristas na conformação hermenêutica da constituição de 1891— aventada por Campos para vencer o idealismo brasileiro não se completa sem que as idéias de nação e unidade nacional possam provocar um estado emocional de mobilização capaz de gerar uma particular ―experiência nacional‖. 53 Em primeiro lugar, o autor estabelece que uma experiência nacional só é possível quando homens de lei, respeitando a educação jurídica que tiveram na universidade, mantiverem o vigor da Constituição em seus governos. Estes homens, de formação específica, são aqueles que conservam, paradoxalmente, a tradição do espírito público no qual são forjados. Esses homens são ―garantias vivas‖ da evolução do país, formando, assim, uma verdadeira elite capaz de 51

Cf. TORRES, Alberto. Organização nacional., pp. 60 e ss. Idem, pp. 87 e ss. 53 Cf. CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), p. 11. 52

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operacionalizar espírito nacional. 54 A gênese de um ―ideal nacional‖ é remédio suficiente e eficaz à necessidade de mobilização das instituições políticas, o elemento preocupante na consolidação do Estado republicano. Sem a força do ideal, as instituições nascem mortas. Em segundo lugar, a experiência nacional sob um regime republicano e democrático depende da formação da opinião. Ecoando Torres, Campos entende que a democracia é ―incoerente, heterogênea e individualista; regime de mudanças periódicas de governo, de renovações e substituições de princípios e de homens, não tem continuidade de ação nem unidade de plano e de convicções‖. As soluções para essa inconstância de interesses, com a qual é necessário conviver numa democracia, são quatro: a educação coletiva do povo pelas experiências nacionais; a mobilização das instituições pela força espontânea das massas populares; a compreensão e o exercício de um desígnio coletivo, que arraste a nação a experiências proveitosas, com que possa corrigir ou orientar a sua opinião; a liberdade dos órgãos operatórios da soberania nacional pela libertação e pela educação do voto.55 O espírito nacional, o espírito do povo, deve ser criado com a mobilização das massas. A preocupação republicana de Campos é recuperar a unidade e a autoridade do Estado, através da conciliação dos interesses nacionais, para combater as facções partidárias e o federalismo desagregador. Como Torres, deseja evitar tanto o despotismo quanto a anarquia. Para que isso aconteça, considera necessário que a força do processo representativo faça sucumbir imediatamente os corpos coletivos, corporações predispostas à concentração de poder econômico em associações locais, tendentes a estimular a corrupção administrativa em larga escala. No artifício da construção da unidade nacional, núcleo de seu conceito de democracia, ante os instrumentos constitucionais insuficientes para o processo de organização do país, e para evitar a violência do Estado, ―O futuro da democracia depende do futuro da autoridade‖. A sensibilidade da nação à autoridade política vincula-se, então, à sensibilidade das leis e de sua autoridade às massas que a acompanham. 56 Considerando o texto da década de 10, ele representa uma fase de maturação intelectual de Francisco Campos. Apesar de o autor apontar para a mobilização das massas como um fator fundamental na consolidação do espaço público nacional, é admissível sustentar a proximidade de seus argumentos ao americanismo de Alberto Torres. 54

Idem, p. 10. Idem, p. 11. 56 Idem, pp. 8 a 13. 55

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Se o pensamento político de Torres, informado pelo mesmo elitismo de Campos, é geralmente situado no terreno do pensamento ―autoritário‖, ele próprio, nesse momento, poderia sofrer do mesmo rótulo, não fosse a presença marcante dessa incipiente avaliação da irracionalidade das massas, uma aproximação sociológica sui generis que marcará profundamente a percepção política e social de Campos nos anos seguintes.

4.1 Tradição e mudança

A relação entre cultura e constituição dos organismos do Estado no pensamento de Francisco Campos não está ligada, exclusivamente, a Alberto Torres e à recepção de um certo americanismo conservador e elitista. A relação dialética entre a construção do espírito nacional e a configuração das instituições do Estado, um dos motes do discurso de Campos, reflete a tradição do organicismo de Hegel, presente também, especificamente no final do século XIX, na obra do jurista alemão Bluntschli. Nesse sentido, Johann Kaspar Bluntschli, em A Teoria do Estado (1885), foi uma fonte privilegiada para os estudos desenvolvidos pelos constitucionalistas franceses, que criticariam essa idéia de organicidade, bem como alguns juristas brasileiros no começo da República. 57 Bluntschli estava influenciado pelo juízo hegeliano segundo o qual todas as instituições e idéias de natureza política devem ser estruturadas como partes de uma cultura total e que, por sua história, deve compreender, também, sua importância presente e o próprio valor futuro no desenvolvimento de uma

57

BLUNTSCHLI, Johann Kaspar. The theory of the state. lst. ed. Oxford: Clarendon Press, 1885, BNF de l'éd. de, Leiden: IDC [Document électronique], 1985, pp. 15 e ss. Sobre a utilização de Bluntschli como fonte abalizada, ver SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Comentários à Constituição brasileira de 1891. Brasília: Senado Federal, 2005, Ed. Fac-similar. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos Editor, 1918; VARELA, Alfredo. Direito constitucional brasileiro (Reforma das instituições nacionais). Brasília: Senado Federal, 2002, Ed. Fac-similar. Rio de Janeiro: Livraria H. Garnier, 1902 (1899). Carlos Maximiliano, no livro de Comentários à Constituição de 1891, considerado por Rui Barbosa o melhor já escrito, sustenta com base em Duguit e em Bluntschli que não há sinonímia entre democracia e liberdade, já que considera compatível a existência de regimes democráticos com ―o despotismo irresponsável das maiorias onipotentes‖, espécie de despotismo que é também anônimo e truculento. Cf. SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Comentários à Constituição brasileira de 1891, p. 125.

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cultura universal. 58 Em sua vinculação orgânica com a nação, as instituições políticas devem —segundo Hegel— encarnar as aspirações de caráter nacional detendo, por conta desta necessidade, a atitude de mutação constante. O objetivo original de Hegel era a crítica ao Estado alemão após o Tratado de Paz de Vestfália (1648), pois ponderava não haver possibilidade de se considerar como um Estado o conjunto anárquico de elementos independentes que conformavam a situação política após a queda do império. Quando os juristas, no final dos oitocentos, ecoaram as observações sobre a formação constitucional do Estado alemão anteriormente realizadas por Hegel numa situação análoga, o problema dos particularismos de uma divisão federativa saltou aos olhos imediatamente, em particular quando comparada à organização federal da América do Norte. À nacionalização cultural da Alemanha, claramente identificada, Hegel defendia uma nacionalização política que não era uma derivação óbvia da situação fragmentária existente. Hegel classificava, assim, ―o particularismo alemão como um amor anárquico pela ‗liberdade‘, que concebe erroneamente a liberdade como uma falta de disciplina e autoridade‖. No que respeita a um dos autores lidos pelo constitucionalismo brasileiro no final do século XIX e início do século XX, e dentre as características centrais na determinação do conceito orgânico de Estado derivado da filosofia política hegeliana, destacam-se, de Bluntschli: a) unidade, ou coesão da nação; b) distinção entre governantes e súditos; c) natureza orgânica da nação e do Estado, e; d) presença de personalidade (organismo que é moral e espiritual). 59 Os dois primeiros pontos que caracterizam o Estado como organismo são relativamente simples. Para Bluntschli, o organicismo é uma concepção geral retirada da vida ocidental e o seu livro tem, como objetivo, revelar o nascimento e o desenvolvimento desse fenômeno universal através da relação metodológica entre história e filosofia. De posse deste fundamento metodológico, o autor argumenta que a coesão nacional significa, para um Estado que pode estar dividido internamente em unidades políticas distintas, a existência de um todo coerente em sua organização interna. Presente sob as mais diversas formas, a distinção entre governantes e governados, a segunda característica de organicidade do Estado, é ―sempre necessária‖, para o autor, mesmo sob a mais radical 58

Cf. SABINE, George H. Historia de la teoría política. Revisada por Thomas Landon Torzón. México: Fondo de Cultura Económica, 1994, pp. 478 e ss. 59 Idem, p. 480; Cf. BLUNTSCHLI, Johann Kaspar. The theory of the state, p. 17.

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democracia, como a democracia direta ateniense, onde a assembléia dos cidadãos era o soberano, e os súditos, os atenienses como indivíduos isoladamente considerados. 60 Por sua vez, a definição geral do Estado se torna complexa quando da análise dos dois elementos subseqüentes. Em primeiro lugar, a ausência de poder soberano, a falta de obediência política e a auto-regulação geram o fim do Estado e a instalação da anarquia. Para Bluntschli, o conflito é natural e o poder soberano o único capaz de organizar a sociabilidade política. Como produto da atividade humana e pelo fato de ser possível deduzir a vida política da natureza humana (Aristóteles), o organismo estatal é ―uma cópia do organismo natural‖. Cópia em sentido específico, definido a partir de três elementos fundamentais: a união de elementos materiais a uma força vital (espiritual); o funcionamento de seus membros dependente e vinculado à satisfação do todo orgânico e; o organismo que se desenvolve por si, com um crescimento externamente verificável. Bluntschli compartilha com Hegel, desse modo, uma filosofia da história de caráter iluminista por ver o progresso da humanidade no desenvolvimento isolado de cada Estado, em relação dialética com a cultura social que configura suas instituições. Por último, sobre a presença de personalidade em um organismo político que equivale aos organismos naturais mais elevados, nas palavras do autor, o Estado ―é um organismo moral e espiritual, um grande corpo que é capaz de tomar para si os sentimentos e pensamentos da nação, de expressá-los em leis, e realizá-los em atos‖.61 O organicismo compreende, dentro de seus elementos, uma crítica direta ao individualismo. Às necessidades privadas é oposto o imperativo da participação coletiva na composição do corpo político. Uma realização pessoal realmente digna não pode materializar-se na esfera privada, o que deixa clara a razão pela qual Campos argumenta que é preciso considerar o indivíduo ―uma força original de transformações institucionais, que influi diretamente sobre as flutuações e as mudanças de plano no nível das sociedades‖.62 O estabelecimento do espírito nacional depende, para Campos, exatamente desta mobilização das opiniões, das virtudes, da educação política de líderes como Afonso Pena, e também do desígnio coletivo das massas expresso no processo de representação política. É possível sustentar, então, que no seu escrito da década de 10 Campos se alinha 60

Cf. BLUNTSCHLI, Johann Kaspar. The theory of the state, p. 17. Idem, pp. 5 a 21. 62 CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), p. 4. 61

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com uma interpretação orgânica da política e vê, na situação periclitante da ordem republicana, a necessidade de um remédio político eficaz para salvar o organismo da doença liberal. Em resumo, o elemento a ser destacado no discurso de Campos é a assunção de que o modelo de poder a ser esposado em um país tomado pelo exercício federalista é o da unificação planificadora do Estado a ser comandada do alto, através de uma elite jurídica imbuída do espírito público de interpretar a realidade nacional e vertê-la em instituições. O culto à legalidade, ferramenta política da 1ª República, é incorporado, pelo autor, como caminho único para a paz social e para a segurança jurídica — estabilização característica de uma interpretação americanista da Constituição republicana, e que se opõe ao federalismo. A conformação institucional não é, pois, uma via de mão única. Não só da força do Estado deriva a organização social. Para que os ―órgãos de expressão nacional‖ adquiram ―a plenitude de suas funções e da sua vitalidade‖, torna-se imperativa a presença da tradição cultural do direito, que ―imprime à mentalidade humana esta posição de equilíbrio, em que as forças de resistência do passado, compondo-se com as idéias, as tendências e as paixões liberais, consolidam a ordem vigente‖. 63 Para além do americanismo genético de Campos vinculado à modulação material da sociedade, transparece o ideal que futuramente iria se travestir, literariamente, na figura de D. Quixote: a ordenação simbólica da civilização. Se em D. Quixote o ritual sacro da cruzada católica poderá efetuar a reconquista do processo civilizatório, na 1ª República Campos aponta para a capacidade orientadora e ordenadora do direito e da lei como fiadores do futuro. A partir da capacidade centralizadora da lei, fica possível uma cultura política de âmbito nacional e a conseqüente civilização das massas. A lei não serve à transformação da política, mas pode garantir, por sua plasticidade característica, eficácia à idéia de integridade nacional. No que respeita a sua percepção da 1ª República, é certo que Campos opunha-se, frontalmente, à fragmentação do poder político e, em especial, ao fracionamento do ideal de nacionalidade, que chamou de ―patriotismo diferenciado‖.64 É o eco hegeliano de integração cultural na formação do Estado e a presença cristalina de um organicismo que remete à teoria do Estado de Bluntschli. Fica definida, assim, a função centralizadora da lei

63 64

Idem, p. 4. Idem, p. 9.

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contra a intensa desagregação de uma certa democracia individualista, vista como localismo interesseiro. Mais que uma reverência formal à lei —como sustenta o texto de Paulo Bonavides—,65 Campos compreende, em seu discurso, o sentido funcional e político do direito como estabilização e desenvolvimento da ordem social. Função de estabilização política e de agregação da sociedade —inclusive os interesses econômicos—, com as instituições do Estado, esta é a razão legítima do direito na criação de um Estado enquanto organismo. No reforço de seu americanismo, isto é, na distinção entre uma democracia de perfil liberal e um princípio democrático ligado à idéia de nação que coordene o desenvolvimento da sociedade há, nesse texto de Campos, uma oposição entre duas formas do exercício da política. De um lado o autor agrupa o liberalismo apaixonado e suas agitações partidárias de natureza impessoal, que ficou temporariamente satisfeito com o suprimento de seus apetites e aspirações nas décadas finais do Império, para além de suas próprias expectativas. De outro, a moderação e a virtude expressas na experiência do líder, na personalidade do estadista, guiando, por suas idéias, o aperfeiçoamento das instituições em direção ao futuro. Enquanto a incoerência e a mobilidade (no sentido aqui de volatilidade) do liberalismo e de suas instituições remete ao desequilíbrio e ao conflito, a continuidade da tradição e da severidade dos costumes políticos informa a conexão, a solidariedade ―entre o passado e o futuro‖, possibilitando ―a continuidade de ação e a proximidade de fins, que permitem às obras humanas durar e amadurecer‖. 66 À fraqueza e à desagregação do individualismo liberal, Campos opõe o patrimônio social e moral derivado da personalidade e do indivíduo. O que Campos sugere para resolver essa situação de conflito entre duas formas tão díspares de política, que significam também duas forças históricas consideráveis e presentes na República, é a idéia americanista de conciliação, como já foi visto acima, na oposição entre Jefferson e Hamilton. Pela primeira vez, a conciliação que iria se operar simbolicamente pela submissão de Sancho Pança ao espírito iluminado de D. Quixote aparece no pensamento de Campos de forma clara. Mas a questão, na 1ª República, é se essa conciliação, esse caminho do meio entre despotismo e anarquia, que foi o expediente

65 66

Cf. BONAVIDES, Paulo. Francisco Campos – o antiliberal, p. xvii. CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), p. 4.

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apreendido da história da América do Norte pode ser, no caso brasileiro, uma solução efetivamente eqüidistante. Agravados ―entre nós os inconvenientes do federalismo radical‖, cria-se, com a República, uma política ineficaz e fraca, pequena, em relação às dimensões continentais de um espírito nacional que precisa ser formado. 67 Assim, subjaz à grande resposta do texto, que é o governo dos legistas, a necessidade de —através da criação do espírito nacional, da autoridade—, zelar pela tradição. Apesar da argumentação de oposições apontar para uma dialética aparentemente equilibrada entre democracia liberal e autoridade nacional, entre a prática política da República e o espírito do Império, é com este último que Campos se alia no plano das idéias. O texto tenta demonstrar que, se a democracia liberal é um mal necessário, uma armadilha da história a ser encarada com a naturalidade daqueles fatos políticos universais, resta ao homem de ação, ao espírito fiel às tradições da monarquia, representado por Afonso Pena, interferir no novo tempo com suas virtudes, restabelecendo a ordem pedida. Afonso Pena tem, na 1ª República, o papel que D. Quixote representa na modernidade política no Francisco Campos dos anos 40. Ele considera a virtude cristalizada na ordem imperial como o elemento que permite a passagem do Império para a República, sem uma ruptura maior do que a mudança pacífica de regime político. A ordem imperial presente na República é o elemento que evita a ruptura histórica e concilia, conserva a tradição do passado na conformação das novas instituições. Enquanto a democracia liberal é esse movimento prenhe de energia vital, impulsionando a sociedade e as instituições para um novo tempo, a autoridade herdada do Império tem a responsabilidade de reprimir os ―excessos do temperamento democrático‖. O objetivo do autor é, portanto, atrelar à modernidade democrática a conservação da tradição e dos valores nacionais, vindos do império. O realismo de Campos é, desde cedo, o realismo das realizações heróicas. O ―grande homem‖ forjado no Império, visto como ―patrimônio‖ institucional e nacional, é o que procura o autor como ―símbolo humanista que é a base de todas as criações sociais‖. 68 Não há que se falar, portanto, como já sustentou Martha Rosemberg, numa tensão que significaria ―a coexistência de elementos de pensamento liberal e autoritário no seu discurso‖. Segundo Rosemberg, em sua dissertação de mestrado Ariel vencido? O

67 68

Idem, p. 9. Idem, pp. 12 e 3.

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pensamento político de Francisco Campos (1979), sua opção ―pelo Estado burocráticodesmobilizado, e a forma que tomou esse Estado, nascem dessa coexistência e dessa tensão‖. O argumento de Rosemberg assenta na tese de que as fontes de Francisco Campos na construção de sua visão de mundo estaria vinculada a pensadores clássicos do liberalismo e ao pensadores ―autoritários‖ enquanto seu conceito de direito, referido por Rosemberg como contrário à ―teoria da lei natural‖ e alinhado à idéia de ―lei positiva‖ de Kelsen, seria a prova de que Campos estaria operando naquela tensão entre liberalismo e autoritarismo. Em que pese a imprecisão conceitual quando aborda Campos, ou Kelsen, a autora apresenta uma seqüência de textos do autor mineiro com o fito de comprovar a tese da tensão entre liberalismo e autoritarismo que definirá como ―a luta do político com o jurista, do autoritário com o legalista‖. A constância da idéia liberal de direito nos variados textos de Campos sustenta —paradoxalmente— a afirmação de que ―[a] participação efetiva de Francisco Campos no Estado Novo vai representar uma quebra na sua produção intelectual‖ e seria, então, um jurista liberal que limitou-se, na ditadura Vargas, a esclarecer a opinião pública ―quanto a medidas tomadas e explicações sobre os trabalhos de elaboração dos novos códigos legais‖. 69 No texto da década de 10 produzido por Campos, Democracia e unidade nacional, a tensão existente é de natureza histórica, estabelecida no Brasil pela recepção acrítica do federalismo estadunidense. O autor aceita o fato de que a queda da Monarquia foi irrefragável, mas considera o desenvolvimento da República um conjunto de erros no que respeita às necessidades de unidade e ordem social e política, erros que têm a ver diretamente com o ideário da democracia liberal. Não se trata, portanto, de uma tensão interna ao pensamento ou ao sentido que o autor dá ao fenômeno político, pois a escolha lhe é clara: a ordem através da concentração de autoridade. Trata-se de compreender como é possível moldar uma realidade que está imersa no processo histórico de tensão entre a tradição dos interesses de âmbito nacional e a fragmentação causada pelo federalismo radical. Isto num momento em que o liberalismo é um dado inafastável dessa realidade. 69

Cf. ROSEMBERG, Martha. Ariel vencido? O pensamento político de Francisco Campos. (Dissertação de Mestrado – Ciência Política). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de são Paulo, 1979, f. 25-6;. 31 e ss. Para Maria Comes Muanis, da mesma forma, a ―inclassificabilidade‖ de Campos deriva da sua complexidade enquanto autor. Entretanto a autora sustenta que, apesar da obra de Campos ter sido construída para ―conquistar o público e principalmente possibilitar a construção de melhores arranjos políticos‖, ficando clara a mesma tensão entre os discursos educacionais de cunho liberal e as idéias políticas autoritárias. Cf. MUANIS, Maria Comes. O Tempo e a nação, f. 5-6 e 146-7.

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Campos percebe que não há como refugar o ideário republicano, com o espírito democrático do liberalismo. É uma realidade dada, mas é estranha ao autor como fenômeno político estrito por não comportar o essencial da dinâmica do poder. O problema é que, na República, a democracia liberal é importada sem que se faça uma mediação com a realidade, sem que haja adaptação principiológica ou institucional às idiossincrasias nacionais. Ante a iminência do desastre, a conciliação. A democracia liberal é incorporada a um projeto político por necessidade histórica, mas passa a ser vinculada ao princípio nacional da unidade da autoridade. É o que chama de ―a adaptação do federalismo à autoridade, o acordo da democracia com a nação, pela nacionalização da democracia e a incorporação de suas instituições ao espírito nacional‖. 70 Quando sustenta que é preciso ―a educação do espírito democrático pelo respeito à autoridade, e a conseqüente formação de uma opinião coletiva, que dê às instituições democráticas uma responsabilidade nacional‖, 71 Campos não está incorporando a democracia liberal —isto é, o liberalismo federalista— como elemento formador de sua concepção de mundo, está realizando um programa de tutela ideológica: é a manifestação de seu americanismo por cima. Se, posteriormente, observa-se, em sua obra, a utilização de elementos do liberalismo no estabelecimento de políticas de caráter variado, se são utilizados os princípios liberais de um direito que institucionaliza a ―responsabilidade nacional‖ e a ordem social, esse uso é puramente instrumental. O liberalismo é o meio de que o autor dispõe, oferecido pelo momento histórico em que a República domina a política, para materializar a idéia de autoridade. Campos deve, então, operar o liberalismo como instrumento através do qual faz-se necessário produzir ordem, autoridade e nacionalidade. Alguns anos depois Schmitt diria, sobre a capacidade da Igreja Católica Romana de operacionalizar ideologias em constante oposição que, ―[s]ob o ponto de vista de uma visão de mundo (Weltanschauung) todas as formas políticas e suas possibilidades são simples instrumentos de realização da idéia‖. 72 Em Campos a interpretação da oposição entre democracia liberal e ordem tradicional é a mesma que se encontra presente no Catolicismo Romano e forma política de Schmitt. É preciso integrar as operacionalizações opostas do 70

CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), p. 12. Idem, ibidem. 72 SCHMITT, Carl. Römischer Katolizismus und politische Form, p. 9. 71

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mundo político em um complexo que não significa propriamente uma síntese, mas uma conciliação que mantém, de certa forma, a integridade dos opostos. Não há fusão entre liberalismo e autoridade, mas uma composição entre ambos orientada pela idéia maior de realização da nacionalidade. Os dois instrumentos políticos, opostos de fato, necessitam conviver. É preciso deixar claro, contudo, que esta é uma composição em que a autoridade deve sobrepor-se à liberdade. É somente a partir de uma visão de mundo que lhes dê sentido conjunto, aproveitando o que de melhor ambos têm a oferecer e sem descaracterizálos como unidades distintas, que será possível a atribuição de sentido a ―um desígnio nacional consciente e voluntário, corrigindo a instabilidade do nível democrático e dando à política um centro de aplicação e de exercício nacionais‖. Daí Campos falar em harmonização, ―direção legal dos conflitos entre os interesses‖ e ―influência dos seus legistas na orientação das correntes nacionais‖. Como diz Schmitt referindo-se à força teológica da bíblia cristã, ―Velho e Novo testamento valem um ao lado do outro‖, pode dizer Francisco Campos quando define o programa social das academias de direito, formadoras dos legistas pátrios, que o seu maior objetivo é a realização do ―acordo da democracia com a nação‖.73 É preciso, entretanto, fazer uma ressalva. A partir de sua participação na vida pública como autor político, nem sempre ver-se-á um defensor cioso dos princípios fundamentais que regulam sua percepção de mundo. Francisco Campos é, antes de tudo, um ator interessado. Não é por outro motivo que, quando do seu rompimento público com Vargas, em 1945, renega sua participação como artífice de um Estado francamente antiliberal, negando a validade jurídica da Constituição de 1937 desde o momento em que o Presidente não convoca o plebiscito regularizador da vigência constitucional. Campos opera de forma explicitamente maquiaveliana quando diz, talvez denunciando subrepticiamente o seu lugar ideológico de fala: É necessário que nos antecipemos aos acontecimentos, se não queremos ser violentados por eles. Nisto, consiste a função da política. Não podemos, militarmente vitoriosos na guerra, deixar que subsistam motivos para sermos colocados, do ponto de vista ideológico, no campo dos vencidos. Atualizemos as nossas instituições políticas, transformando-as no sentido das correntes espirituais e culturais que já anunciam claramente a configuração do mundo de amanhã. Neste mundo não podemos ter o lugar que nos compete se não comparecermos com trajes 73

CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), pp. 10-2.

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que obedeçam aos padrões da propriedade e da decência, estabelecidos pelo comum acordo das nações vitoriosas.74 É uma fala histórica do perdedor, do autor que teve que recolher sua apreciação ideológica do espaço público para não perder o rumo do novo tempo. De alguém que precisa estar pronto a se adaptar a uma realidade que, no fundo, o violenta, mas que não pode ser superada naquele determinado tempo histórico. Talvez o professor Paulo Bonavides esteja equivocado, quando, comparando Campos a Schmitt, considera que o jurista brasileiro não cedeu a tentação do oportunismo e da ―ductibilidade política‖ de quem não teria coragem de assumir os seus próprios fundamentos ideológicos. 75 Schmitt, efetivamente, reescreveu seus textos e mudou a direção do seu pensamento, incorporando conceitos anti-semíticos para ser aceito pelo regime nacional-socialista, mas Campos não fez nada tão acintoso. Na verdade, após a ―aventura política‖ do Estado Novo, Campos recolher-se-á à vida privada, retornando, num último ato, verdadeiro canto do cisne, quando, às vésperas do golpe militar de 1964, é convidado a explicar de que forma é possível legitimar juridicamente a derrubada de uma Constituição. À teoria da revolução, mote discursivo escolhido para tranqüilizar os militares paradoxalmente zelosos de procedimento formalmente correto, Campos acrescenta a vontade nacional como fundamento do Poder Constituinte. Mesmo numa observação superficial do texto preambular do Ato Institucional, a presença dos conceitos políticos centrais de Campos é clara. 76 A representação da vontade da nação no ato revolucionário é vista como tão legítima quanto a representação da vontade pelo sufrágio. A idéia de nação é eleita como justificativa suficiente para que se elimine uma dada ordem jurídica em detrimento da ordem revolucionária. A revolução é mobilizada para legitimar um golpe de Estado. Isso não garante, entretanto, que todas as manifestações públicas, jurídicas ou oficiais de 74

CAMPOS, Francisco. A Constituição de 1937 e sua vigência. Entrevista de Francisco Campos ao Correio da Manhã do Rio de Janeiro, em 3 de março de 1945. In: PORTO, Walter Costa. Constituições brasileiras: 1937. Brasília: MC&T, Centro de Estudos Estratégicos, 2001, pp. 39-52, pp. 42-3. 75 BONAVIDES, Paulo. Francisco Campos – o antiliberal, p. xiii. 76 ―A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. // A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória‖. BRASIL. Ato Institucional N.º 1. Rio de Janeiro-GB, 9 de abril de 1964.

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Campos apontem necessariamente para a ratificação de seus princípios jurídico-políticos. Como ideólogo da ordem, cumpriu o papel de sustentar posições políticas às vezes diversas das suas, às vezes conflitantes com sua Weltanschaung, o que sempre gerava a necessidade de uma acomodação de sua pessoa na figuração da vida política. Não foram poucas as vezes em que optou por se licenciar de cargos públicos por motivos semelhantes. 77 Embora não possa ser identificada tão facilmente com a tradição autoritária brasileira, é também nesse movimento que se deve compreender a figuração de Campos como ator político. A sua relação com o liberalismo é de oposição ideativa, mas, ao mesmo tempo, não ignora a existência de suas instituições enquanto ainda não é possível se desfazer delas por cima, a partir de um movimento reconstitutivo da realidade existente — daí o constitucionalismo de Campos maturar-se posteriormente como antiliberal. O autor absorve instrumentalmente o liberalismo e suas instituições e utiliza-se de ambos para realizar seus objetivos de natureza política e ideológica. Não se está, portanto, ante um ator ingênuo, mas alguém que identifica, com precisão, seus inimigos e se comporta, em relação a eles, como um estratego que sabe compor e atacar de acordo com as circunstâncias. Como quando Campos renega a ordem política que ajudou a idealizar e a construir, alinhando-se, hipoteticamente, a um tempo histórico democrático-liberal —ou não assumindo suas discrepâncias ideológicas com ele. Nesse sentido, é importante marcar a distinção entre o alheamento do autor do núcleo de suas proposições teóricas mais gerais e sua vinculação ao conjunto de valores e instituições que, em determinado momento histórico, podem fazer diferença entre a vitória e a derrota no campo político. É fato que toda a argumentação de Campos está informada pela analogia epocal e que o objetivo do autor, ao estabelecer uma quantidade significativa de aproximações entre a experiência do passado monárquico e o horizonte de expectativas que constitui o presente Republicano, seja o de estabelecer uma clara relação de tutela do presente pelo passado. Esse programa de tutela filosófico-política, em que as possibilidades de futuro da democracia devem se encontrar limitadas pela necessidade de incorporar, em seu presente histórico, a idéia de integridade nacional é o topos central de Campos.78 O autor insiste,

77 78

Cf. MORAES, Maria Célia Marcondes de. Reformas de ensino, modernização administrada, passim. Cf. CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), p. 8.

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então, na idéia de renovação e sucessão, de composição, prosseguimento e continuidade de ação entre passado e futuro: através dos tempos, prosseguem as instituições o seu plano de organização prática, de acordo com as predisposições, tendências e inclinações primitivas, de sorte a estabelecer entre o passado e o futuro a continuidade de ação e a proximidade de fins, que permitem às obras humanas durar e amadurecer.79 Esse movimento é uma clara reação a uma época marcada pela mobilização de símbolos opostos. Para Campos, o equilíbrio e a moderação da tradição, a solidariedade das gerações que se sucediam marcando a unidade de uma época têm, nas tendências e paixões liberais, a indicação de uma catástrofe iminente, caso não consintam em colaborar com esse novo tempo. O tempo da república se mobiliza, então, em direção às instituições do passado que, ―reclamados os seus serviços‖, intervieram. A necessidade de estabilização é sentida pelo presente. A correção da democracia é solicitada por ela mesma. A tradição, respeitosa, só se manifestou quando convidada, embora soubesse, sempre, em que cursos turbados caminhava a República. Argumenta, então, que as instituições democráticoliberais padecem, por natureza, de uma instabilidade e de uma desordem que, sozinhas, são incapazes de vencer. Caracterizam-se pelo desenvolvimento precoce, pois são organismos embrionários que reclamam cuidados. Sem prestígio, por tratar-se de instituição recente, a República estava marcada por desequilíbrios de caráter que demandavam uma moderação que não lhe pertencia originalmente. 80 A relação entre o presente republicano e o passado monárquico institui-se, portanto, pelas necessidades do primeiro. A República reclama a tutela do passado. Campos deixa claro, entretanto, que a atuação das forças do Império não podem relacionar-se, de forma passiva, com a nova situação política. O Império deve organizar a república. Claro está o papel dos estadistas do Império quando operam o balanceamento necessário ao desenvolvimento das instituições da democracia: ―Eles deviam constituir contra o futuro a liga de resistência do passado: sem esta resistência, a nossa aceleração teria disparado na vertigem‖. O novo tempo, acometido de constante agitação política, atesta sua imoderação, sua incapacidade de, sozinho, fazer funcionar o país. Campos vê, no espírito democrático, a inconstância das movimentações políticas bruscas e irresponsáveis. A República é uma 79 80

Idem, pp. 3-4. Idem, p. 5.

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época de agitações e revoluções permanentes, cíclicas, que acabam mesmo por definir o espaço vazio das suas convicções: ―Ao período de perturbação orgânica nas instituições, sucedia aquela mesma época ‗sem fisionomia, sem emoções, sem crenças‘‖. O período de estabilidade está vinculado menos às características republicanas e mais ao caráter pendular do tempo. Nessa mesma época, mais à frente ―arrepiava-se de novo, em crispaturas, com a predominância das agitações políticas‖, dando seu veredito: ―Mais uma vez a democracia gastara o eixo de suas revoluções e queria mudar de posição: a instabilidade das instituições democráticas projetava sobre a vida nacional o seu caráter de equilíbrio provisório‖. 81 Todo movimento de agitação e instabilidade da República, fundado que está nos princípios da democracia liberal é, para Campos, uma ruptura com a tradição política caracterizada pela unidade harmônica do poder. Sempre que há essa ruptura, as anomalias democráticas eclodem: ―suspensões periódicas do funcionamento constitucional‖, ―crises de opinião‖, ―múltiplos imperialismos locais‖, ―a mais larga corrupção administrativa que se conhece‖, em suma: ―O princípio democrático da irresponsabilidade nacional gerou na luta dos direitos a injustiça, nas competições econômicas a desigualdade, nas disputas partidárias o privilégio da detenção das posições políticas por um único partido‖.82 Descolado do passado, o horizonte de expectativa da democracia liberal é o despotismo ou a anarquia. A infantilidade política da República só poderá colher um futuro alvissareiro se estiver ligada, conciliada, com a orientação madura e prudente do passado. É o espaço de experiência do passado que garante a possibilidade de o presente republicano esperar um futuro que se faça presente, transmudado em expectativa. O individualismo liberal não é capaz, juridicamente inclusive, de dar conta de si mesmo. E a tutela é a do 81

Idem, pp. 6-7. Este processo de tutela é político e econômico, como já se afirmou, já que o Estado é visto como um centro da autoridade que pode coordenar o processo de nacionalização —isto é, de desregionalização— de interesses. Consolidando o diagnóstico da primeira onda de críticas à 1ª República, em que Campos aparece como um interlocutor atento, Bolívar Lamounier, no texto O Modelo institucional dos anos trinta e a presente crise brasileira (1992), lê as primeiras décadas republicanas como excessivamente regionalistas. Lamounier vê, na revolução de 1930 e no Estado Novo, uma inflexão centralizadora que permitiu a gestão estatal do processo de industrialização do país. Três seriam as características principais do desenvolvimento do Estado brasileiro a partir dos anos 1930: a) o corporativismo, que objetivava a eliminação do pluralismo sindical e a organização compacta das massas; b) o consociativismo, conjunto de procedimentos que pretendia o desmonte do sistema oligárquico monopartidário nos Estados, visando a dissipação do poder político das maiorias organizadas em partidos e; c) o presidencialismo de corte plebiscitário, oposto direto do sistema de checks and balances norte-americano, que representou a personalização do Poder Executivo. LAMOUNIER, Bolívar. El Modelo institucional de los años treinta y la presente crisis brasileña. In: Desarrollo Económico. Vol.XXXII, Nº 126, 1992. 20 p. Disponível em: . Acesso em: 11 jan 2006. 82 CAMPOS, Francisco. Democracia e unidade nacional (1914?), pp. 6 a 8.

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direito. É a educação jurídica do Império que terá condição de lastrear ―o exercício imoderado do poder‖.83 Autonomia, portanto, não existe no presente, que solicita, constantemente, a tutela do passado. Só há heterodeterminação, sobretudo se a expectativa é o mínimo de ordem institucional possível para um governo que se pretende responsável. A capacidade crítica do novo regime, restrita exclusivamente ao seu motivo de existência, o ―federalismo radical‖, não se sustenta pelos seus inconvenientes.84 Por fim, a única consciência possível, por não se criar na autonomia, é a herdada por solidariedade de gerações: o discernimento da democracia é emprestado. Por condescendência do passado, a ―responsabilidade nacional da democracia será, por conseguinte, uma criação legal, e os homens de lei, os encarregados de garantir contra a anarquia democrática a autoridade da nação e contra o despotismo da nação a liberdade da democracia‖. 85 Sem muita parcimônia, Campos destrói a possibilidade de a liberdade democrática, representada pelo caráter moderno da República, ser, de alguma forma, viável politicamente, caso se coloque de forma autônoma e independente da tradição. Não existe a probabilidade de fundar novos princípios, pois a independência só gera anarquia. A democracia liberal, funcionando por si só, é sem sentido. E um determinado sentido só pode ser dado pela existência e pelo funcionamento da autoridade do passado, cuja reaparição obedece a uma demanda do próprio presente, que se encontra desarticulado.

83

Idem, pp. 6-9. ―Um ‗patriotismo diferenciado‘ cria entre as diversas províncias políticas barreiras de oposição e de rivalidades; as questões de limites (...) recrudescem as divergências, estimulando o espírito local contra o espírito mais largo da nacionalidade.‖. Idem, p. 9. 85 Idem, p. 13. 84

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5. ESTADO NOVO, TEOLOGIA POLÍTICA E SOCIOLOGIA DE MASSAS

A interpretação realizada no capítulo anterior aponta para um autor que poderia ser classificado, não sem uma certa dificuldade, como de pensamento ―autoritário‖. A crítica de Francisco Campos à democracia liberal, o seu clamor pela autoridade nacional, o recurso à tradição dos legistas, todos estes fatores o aproximam de uma crítica conservadora à 1ª República, que vê no reforço da ―autoridade‖ do Estado a saída para a fragmentação do poder político. A preocupação com as massas e a tensão temporal entre passado e futuro são idéias originais em relação às quais a classificação realizada pela tradição dos intérpretes brasileiros do ―autoritarismo‖ torna-se problemática. Existe, para Campos, no texto Democracia e unidade nacional, uma função clara do Estado que é a condução e mobilização das massas com elementos irracionais. Neste capítulo, o objetivo é estabelecer em que medida é possível manter essa classificação de autoritário e se Campos, autor do arranjo constitucional que sedimenta o regime estadonovista, pode ser considerado original em sua proposta de um constitucionalismo cesarista e plebiscitário de massas. Como é preciso estabelecer um determinado conceito de autoritarismo, optou-se pela construção metodológica de Bolívar Lamounier, em seu texto Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação (1978), conhecido por retratar um modelo de Estado autoritário que objetiva enquadrar alguns pensadores, como o próprio Francisco Campos, nesta tradição. Embora não seja objeto deste trabalho, no exame do modelo de ideologia de Estado de Lamounier talvez seja possível encontrar uma proximidade maior com o regime ditatorial de 1964 do que com a formação do Estado Novo. A tecnocracia economicista e a não-mobilização política da sociedade aparecem em destaque quando se examinam as ditaduras militares da América Latina nos anos 1960. Uma referência contemporânea ao texto de Lamounier é o conhecido trabalho de Guillermo O‘Donnell, 1966-1973 – O Estado Burocrático Autoritário (1976), que circulou nos anos 1970 em forma de artigos variados. Se esta hipótese procede, é fácil compreender a associação do antiliberalismo com um conceito de autoritarismo que importa exclusão dos setores subalternos do processo de 125

decisão política, o fechamento do acesso aos canais democráticos de governo, a racionalização técnica do planejamento econômico (não abrindo espaço para as questões de justiça social ligadas ao desenvolvimento econômico) e a eliminação dos partidos e organizações políticas de qualquer tipo. 86 O espírito combativo de uma parte da academia brasileira, no final dos anos 70, ainda sob a ditadura militar, pode explicar a utilização de elementos vinculados ao modelo de Estado tecnocrático na avaliação do Estado Novo. Francisco Campos, ator político de relevo na configuração do Estado Novo, constrói o seu próprio modelo de Estado antiliberal tendo como premissa básica o anacronismo das instituições da democracia liberal ante o tempo da sociedade de massas. Esta aproximação é completamente distinta da construção ideológica das ditaduras militares de trinta anos depois onde a questão econômica será o motor discursivo fundamental. No Estado Novo e, especialmente em Francisco Campos, o problema a ser resolvido era a formação de um modelo de Estado que pudesse favorecer a entrada do Brasil em um novo tempo: talvez um tema menos político do que metafísico. Na procura de uma compreensão dos alicerces filosóficos da visão de mundo campiana, para além dos dois textos já analisados, Atualidade de D. Quixote (1948) e Democracia e Unidade nacional (1914), o texto mais relevante do autor, com certeza o mais complexo, é a sua conferência pronunciada no salão da Escola de Bellas Artes, em 28 de setembro de 1935. Denominado A Política e o nosso tempo (1935), será publicado como texto de abertura do seu livro O Estado Nacional: sua estrutura e seu conteúdo ideológico (1940).87 Neste discurso, aparece o alargamento da questão do tempo histórico e de sua relação com o passado, podendo ser lido quase como uma continuação, como um desdobramento do seu argumento desenvolvido na década de 10. Há um ponto claro de aproximação desse texto de 1935 com aquele de 1914. Lá, Campos defendia a necessidade de o novo tempo ser tutelado pela tradição, já que a sua incapacidade de lidar com as mudanças vertiginosas da revolução democrática implicava a impossibilidade de identificar normas de ação e de organização. Aqui, a transformação do mundo contemporâneo não é acompanhada pari passu por uma mudança da representação intelectual que os homens

86

O‘DONNELL, Guillermo. Análise do autoritarismo burocrático. Tradução de Cláudia Schilling. São Paulo: Paz e Terra, 1990, pp. 59 e ss. 87 Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo (1935). In: CAMPOS, Francisco.O Estado nacional: sua estructura, seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, pp. 1-32.

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fazem dele. Assim, fica patente a incompreensibilidade estrutural que a nova dinâmica temporal gera. Nessa nova situação, a realidade não é mais alcançada por nenhum sistema interpretativo válido e reconhecido. Apesar disso, subsiste a presença do passado, numa tentativa inócua de dar sentido ao que é inédito e inapreensível pelos modelos racionais de inteligibilidade. O passado não consegue, contudo, penetrar no tempo presente e este último se isola, não desenvolvendo uma imediata autoconsciência. Como no discurso de 1914, o presente continua sem substância espiritual identificável. A tensão do texto de Campos deriva desta indefinição. É o que chama de aspecto trágico das épocas de transição: A época de transição é precisamente aquela em que o passado continua a interpretar o presente; em que o presente ainda não encontrou as suas formas espirituais, e as formas espirituais do passado, com que continuamos a vestir a imagem do mundo, se revelam inadequadas, obsoletas ou desconformes, pela sua rigidez, com um corpo de linhas ainda indefinidas ou cuja substância ainda não fixou seus pólos de condensação. Nós fomos educados pelo passado para um mundo que se supunha continuar a modelar-se pela sua imagem. (...) O que chamamos época de transição é exatamente esta época profundamente trágica em que se torna agudo o conflito entre as formas tradicionais do nosso espírito, aquelas em que fomos educados e de cujo ângulo tomamos a nossa perspectiva sobre o mundo, e as formas inéditas sob as quais os acontecimentos apresentam a sua configuração desconcertante.88 Se os homens precisam adaptar-se aos novos tempos, ainda estão realizando uma hermenêutica do mundo ancorada no passado: é a receita da catástrofe. O descompasso é sentido pelo autor como uma violência. A mudança epocal, em primeiro lugar, ocorre ―sem nenhuma atenção para com as nossas idéias e os nossos desejos‖ e a educação tradicional, relacionada a um mundo composto por ordem e hierarquia, não é capaz de antecipar de que forma o homem pode comportar-se ante a nova realidade. O mundo muda num sentido estranho paras as gerações já educadas ou em processo de educação e, ao mesmo tempo, é orientado por uma razão que não comporta a inteligibilidade da educação tradicional. A conseqüência desse primeiro conjunto de observações é que se torna necessário ―adaptar o homem ao ambiente espiritual do nosso tempo‖. 89 A adaptação surge como um processo contínuo —tende ao infinito—, onde o núcleo é simplesmente formal (o movimento, momento em que a educação passa a ser ―para o que der e vier‖), em oposição ao acúmulo

88 89

Idem, p. 5. Idem, p. 3.

127

de valores que vai se organizando por um determinado sistema, como no modelo de educação anterior, que detinha um caráter material.90 Para além da necessidade de adaptação do homem à constituição problemática e provisória de toda e qualquer situação, caráter estrutural da nova realidade, o autor reforça a imagem de perene transitoriedade do mundo, lembrando que ―[n]as épocas de transição, o presente, ainda não acabada a ressonância da sua hora, já se converteu em passado‖. Uma dimensão distinta do problema temporal colocado no texto de 1914 é aqui apontada. O passado não figura mais em sua função de opor resistência às inconstâncias de um presente sem rumo político definível. A aceleração do tempo elidiu a capacidade de oposição e de organização, pertencente à função de racionalização da política de cunho liberal. Predominam, sem limites, na configuração do que seja o espaço do político, ―a irracionalidade e o sentimento da mudança‖. 91 Eis aí a matéria sobre a qual deverá se erguer o novo edifício constitucional.

5.1 Modernidade política e ausência de sentido

Francisco Campos, como Carl Schmitt, desenvolve uma percepção específica da modernidade política que é o fundamento de sua visão de mundo e da relação deste com o direito. Em Schmitt, o processo de despolitização do mundo moderno coloca a estética romântico-liberal como ordem possível de sentido —na verdade, uma desordem ou uma ausência de sentido— em oposição às formas culturais tradicionais, investidas pela constante necessidade de enfrentar o conflito, agir e decidir em relação a ele. Para Campos, da mesma forma, a decadência de sentido do mundo contemporâneo vincula-se ao romantismo e, apesar de sua perspectiva antiintelectualista —que se utiliza de elementos irracionais como instrumentos de controle político—, não fornece ―novos conteúdos espirituais, a não ser a vaga indicação, tanto mais poderosa quanto mais vaga, de que os valores supremos da vida não constituem o objeto de conhecimento racional, podendo 90 91

Idem, pp. 6 e 7. Idem, pp. 5 e 14.

128

apenas ser traduzidos em símbolos ou em mitos‖.92 Como em Schmitt, Campos não identifica ordem e hierarquia de valores nesta nova época, mas o exato atributo de sua ausência. No ensaio A Teoria política do mito (1923), Schmitt realizará um estudo sobre o mito da violência (Georges Sorel) que tem muitos paralelos com o texto de Campos. O autor alemão realiza uma investigação teórica sobre o mito, relacionada às questões doutrinárias (capacidade do mito de redefinir a estrutura das relações e das instituições políticas tradicionais). Em Campos, o mito é um problema carente de compreensão, mas também uma nova forma de ação política vinculada a um novo tempo, a um novo mundo e, especialmente, a uma nova forma de manifestação ou de organização social que é a (des)organização do povo em massas. Enquanto Schmitt limita a apreciação da dinâmica do mito

em

sua

contraposição

à

organização

parlamentar,

criando

a

oposição

irracionalidade/racionalidade, Campos extrapola os limites de uma análise políticodoutrinária traçando uma nova interpretação da realidade contemporânea. Campos irá, então, defender a tese de que o caráter constitutivo específico do processo político contemporâneo é a irracionalidade característica que informa uma determinada configuração social e institucional. Como para o autor brasileiro, a reconceitualização dos elementos básicos da racionalidade política tradicional significa, para Carl Schmitt, a emocionalização desses conceitos. A justificativa mais ou menos racional para a utilização da força, no espaço social, foi substituída contemporaneamente por uma nova fé no instinto e na intuição que elimina a possibilidade de se confiar nos encaminhamentos políticos de uma deliberação racional de natureza parlamentar.93 O apelo à razão como centro decisório significa, da mesma forma, a submissão a uma lógica que violenta a individualidade concreta, por sua necessária submissão à unidade e centralização da vida —política e religiosa— articuladas pela Ilustração e pela racionalidade da democracia moderna. Schmitt já indica, de forma bastante clara, qual é o sentido dessa crítica: primeiramente uma crítica soreliana ao racionalismo absoluto e ao seu desdobramento em ditadura da razão e, em segundo lugar,

92

Idem, p. 11. Cf. SCHMITT, Carl. Politische Romantik, p. 66; Cf. SCHMITT, Carl. Die politische Theorie des Mythus, p. 12. 93

129

um estudo do mito como fundamento para uma doutrina da decisão ativa direta contra o racionalismo relativo da discussão pública e do parlamentarismo. 94 A fonte a partir da qual Campos, como Schmitt, intentam compreender essa mudança de orientação na época moderna é o livro de Georges Sorel, Reflexões sobre a violência (1906). No seu texto, Schmitt sustenta que ―[a] individualidade concreta, a realidade social da vida são violentados por todo sistema geral. O fanatismo da unidade, próprio da Ilustração, não é menos despótico que a unidade e identidade da moderna democracia‖. Em Francisco Campos, quando as formas tradicionais da vida privada não comportam mais existir, quando a progressiva aglomeração humana impele ao controle irracional das massas por um aparato político vinculado à mobilização das emoções, à razão se sobrepõe a função do mito. Tanto para Schmitt, quanto para Campos, o processo parlamentar representa a debilidade e a covardia de um sistema intelectual ancorado no liberalismo, incapaz de identificar no mito algo além de um ―instrumento passivo destinado a obedecer e executar os decretos da razão‖, e cujo processo de deliberação e discussão ―trai o mito e o grande entusiasmo (Begeisterung), que é o realmente importante‖. Ambos os autores têm, portanto, como objeto de crítica, o fundamento puramente intelectual da decisão política, elemento clássico da tradição liberal. 95 De qualquer sorte, os paralelos entre ambos os textos —o de Schmitt e o de Campos— são óbvios e, em algumas passagens, dado o recorte dos temas referentes ao livro de Sorel, a impressão é que Campos conhece aquela fonte. Para dar um único exemplo de reflexo textual, para além da crítica antiliberal ao parlamentarismo, da crítica ao mito da greve geral como eficaz na construção de uma nova realidade política e da apreciação positiva da irracionalidade da política, tem-se uma avaliação do mito da nacionalidade pelo

94

Cf. SCHMITT, Carl. Die politische Theorie des Mythus, p. 13. Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo (1935), pp. 12-8; Cf. SCHMITT, Carl. Die politische Theorie des Mythus, p. 13. 95

130

exemplo de Mussolini. O trecho do discurso de Mussolini, citado por ambos, é o mesmo.96 Mas a abordagem do autor brasileiro é significativamente mais densa e transcende a mera questão de crítica aos elementos liberais de uma certa prática política democrática. Campos está interessado em determinar os fundamentos, a estrutura e o modo de funcionamento das democracias de massa, pois as considera uma conseqüência necessária dos novos tempos. A relação entre a irracionalidade da política, que se revela sob uma sociedade de massas, e a reconfiguração do poder político é o objeto específico de seu estudo. Nesse sentido, podese reafirmar que esse discurso de Campos coloca-se numa perspectiva razoavelmente distinta do que se chama tradicionalmente de pensamento político autoritário brasileiro que Bolívar Lamounier definiu. Segundo Lamounier, algumas características específicas do autoritarismo brasileiro são mais ou menos identificáveis em pensadores que se dirigem de forma crítica e propositiva em relação à 1ª República e contra ela constroem um discurso persuasivo com o escopo de estabelecer um modelo institucional alternativo. 97 Em, Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação (1978), Lamounier constrói o que seria um modelo de interpretação do pensamento político autoritário brasileiro. Sua tese central é que a ideologia de Estado é um modelo ajustável ao 96

O mito do nacionalismo é, para Schmitt, oposto natural do bolchevista, do comunismo que funciona através da idéia mítica da greve geral. O sentido que Campos dá ao mito do nacionalismo, referindo-se a Mussolini, é o mesmo. Cf. Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo (1935), pp. 9-10; Cf. SCHMITT, Carl. Die politische Theorie des Mythus. In: SCHMITT, Carl. Positionen und Begriffe: im Kampf mit Weimar— Genf—Versailles 1923-1939. Dritte Auflage. Berlin: Duncker & Humblot, 1994, pp. 11-21, p. 20. Em Campos: ― Aconteceu, porém, que a técnica espiritual da violência, destinada por Sorel a dissolver a unidade do cosmos político, haveria de ser empregada logo depois no sentido absolutamente oposto, precisamente no sentido de pôr fim à luta de classes e reforçar a unidade política do Estado. Ao politeísmo político de Sorel, e pelos mesmos processos e intelectuais de que ele se servia, opunha-se, de maneira vitoriosa, a teologia monista do nacionalismo. Em seu discurso de outubro de 1922, em Nápoles, antes da marcha sobre Roma, dizia Mussolini, traindo a leitura recente de Sorel: ‗criamos nosso mito. O mito é uma crença, uma paixão. Não é necessário que seja uma realidade. É realidade efetiva, porque estímulo, esperança, fé e ânimo. Nosso mito é a nação; nossa fé, a grandeza da nação‘.‖. Em Schmitt: ―a energia nacional é mais forte que o mito da luta de classes. Os outros exemplos de mitos contemporâneos mencionados por Sorel também demonstram a superioridade do conceito nacional. (...) O fascismo italiano desenhou um retrato horripilante de seu inimigo comunista: o rosto mongólico do bolchevismo, que demonstrou ser mais eficaz que a imagem do burguês trazida pelo socialismo. Até o momento, só existe um caso de eliminação desdenhosa da democracia e do parlamentarismo mediante o apelo deliberado ao mito, e esse foi o exemplo da força irracional de um mito nacional. Em seu famoso discurso de outubro de 1922, em Nápoles, antes de marchar a Roma, Mussolini declarou: ‗Criamos um mito e o mito é uma fé. Um nobre entusiasmo que não necessita ser realidade; constitui um impulso e uma esperança, fé e valor. Nosso mito é a nação, a grande nação, a grande nação que queremos converter em realidade concreta.‘.‖. 97 Cf. LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação, p. 345.

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pensamento crítico da 1ª República e dos ideólogos autoritários da Revolução de 1930. A ideologia de Estado seria uma construção intelectual que representa e direciona um ―clima de idéias e de aspirações políticas‖ que emerge no final do século XIX e na primeira metade do século XX. Ela Condensa, em primeiro lugar, toda a reação filosófica ao iluminismo e ao utilitarismo. A importância disso para a construção ideológica do início deste século não é, porém, apenas a exponenciação do antiindividualismo, que as exegeses existentes registram ad nauseam. É sobretudo a constituição, como veremos em seguida, de uma visão do mundo político na qual são afugentadas todas as representações conducentes à noção de um ‗mercado político‘ exorcizado em proveito das representações fundadas no princípio da autoridade e em supostos consensos valorativos.98 O autor indica, então, oito componentes a partir dos quais esquematiza o modelo denominado ideologia de Estado: 1. Predomínio do princípio ―estatal‖ sobre o princípio de ―mercado‖; 2. Visão orgânico-corporativa da sociedade; 3. Objetivismo tecnocrático; 4. Visão autoritária do conflito social; 5. Não organização da ―sociedade civil‖; 6. Não mobilização política; 7. Elitismo e voluntarismo como visão dos processos de mudança política; 8. O Leviatã benevolente. O objetivismo tecnocrático é a única premissa que se encaixa, razoavelmente, no pensamento de Campos. Lamounier sustenta, nesse item que no pensamento autoritário a sociologia tem como tarefa a produção de um diagnóstico que conduzirá à utilização da tecnocracia como terapêutica. Por política, nessa ideologia, deve entender-se, de um lado, com valoração positiva, uma opção técnica respaldada num definitivo ato de vontade; e de outro, com valoração negativa, a atividade de partidos e instituições representativas: tudo o que produza desvios e incorreções no paradigma institucional, prejudicando a capacidade de ‗adaptação‘ da sociedade.99 Francisco Campos não pode, efetivamente, ser classificado como um autor nas mesmas dimensões de um Alberto Torres ou de um Oliveira Vianna. O pensamento filosófico-sociológico campiano não pode, assim, ser enquadrado numa visão de mundo que tem um escopo político tão pragmático como o de ―domesticar o Mercado, e particularmente o princípio de mercado atuante nas relações políticas‖. Em Francisco Campos, a ideologia opera tanto uma dissociação dos projetos derivados do pensamento

98 99

Idem, p. 357. Idem, p. 365.

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liberal clássico quanto das orientações autoritárias importadas para o Brasil nas primeiras décadas do século XX.100 É preciso ressaltar, entretanto, que essa interpretação de Lamounier poderia, eventualmente, ser validada para outros textos de Campos que se alinham com a defesa oficial e a legitimação do Estado Novo. Num primeiro momento, em considerando o discurso de 1914, se Campos se dirigia, efetivamente, à 1ª República, era por entendê-la como detentora de uma determinada fórmula política de caráter universal —a democracia liberal— que representava um novo tempo contra o qual a tradição política consolidada não só tinha condições, mas principalmente o dever de tutela —a manifestação do que Lamounier chama de ―Leviatã benevolente‖. Esta perspectiva de tutela da democracia liberal estará ausente no texto de 1935, que rompe com a lógica de interação epocal. Mesmo assim, no texto de 1914, a crise econômico-política do Estado republicano brasileiro era menos o objeto de intervenção crítica de Campos do que a nova época que implicava uma desestruturação da organização política e uma reestruturação dos valores e vice-versa. O futuro estava em aberto. Era, como sustentava Campos, apenas uma promessa. Nesse sentido, o contexto político era um pretexto para a manifestação de um juízo crítico de caráter universalista e não para uma análise de conjuntura. Com a aproximação das questões políticas de meados dos anos 30, tem-se, de novo, um quadro conjuntural que aponta para uma crise. 101 A forma de pô-la a termo, através de um ator político central no processo de renovação estrutural das instituições brasileiras durante o regime estadonovista pode, sim, ser lida como o assentamento de uma ideologia de Estado autoritário. Mas a teoria política e sociológica de Campos não pode e não deve ficar

reduzida

aos seus panfletos produzidos como

Ministro

da Justiça.

A

instrumentalização de um pensamento lavrado no discurso de 1935, operada pelo próprio autor, não tem como resultado lógico a redução do escopo teórico vislumbrado pelo texto 100

Idem, p. 358. No caso brasileiro, a recente revolução constitucionalista de São Paulo, a permanência indefinida de Vargas no governo provisório sem o respaldo do sufrágio, a configuração de uma nova Constituição fundada no exemplo catastrófico de Weimar e no esvaziamento da idéia de federalismo, bem como o recrudescimento dos antagonismos ideológicos entre fascistas e comunistas, tudo isso formava um complexo de problemas. No resto do mundo, destaca-se como influência direta tanto nas análises de Campos quanto no rumo que se iria tomar em direção ao Estado Novo, a consolidação do comunismo real da URSS e o conseqüente impacto de um modelo político diferenciado das democracias ocidentais, a incorporação das massas aos processos de natureza política, a crise do constitucionalismo social de Weimar, a dissolução do Parlamento alemão e a ascensão política de Hitler. 101

133

original. Razão pela qual não parece crível indicar, no caso específico desse discurso, que ―a transformação do pensamento político no período considerado dev[a] ser entendida basicamente como a formação de um sistema ideológico orientado no sentido de conceituar e legitimar a autoridade do Estado como princípio tutelar da sociedade‖. 102 Esta pode ser a interpretação global dos escritos oficiais de Campos, sem ser considerada o único sentido possível, ou o mais óbvio, da sua avaliação da contemporaneidade. O problema dessa afirmação diz respeito menos à idéia de conceituação e legitimação da autoridade e mais ao funcionamento dessa autoridade. Para se colocar em falseamento o modelo de Lamounier, fica estabelecida a impossibilidade de sustentar que o discurso de Campos refere-se ao conceito tradicional —racionalista— de autoridade. É possível identificar, no autor, o fato de que seu diagnóstico indica, no que respeita à modernidade política, a completa dissolução da idéia tradicional de autoridade, sempre ligada à organização social a partir de um determinado padrão ou hierarquia passível de apreensão racional. Para Campos —em seu texto de 1935—, o Estado, enquanto manifestação burocrático-administrativa, não tem mais o poder de controlar ou tutelar a sociedade por instituições como o sistema parlamentar, sua estrutura repressiva ou mesmo um determinado sistema eleitoral. Portanto, a idéia de que o Estado é um instrumento ou arquétipo da tutela da sociedade não se justifica. A classificação do autoritarismo de Campos como ideologia de Estado autoritário padece, portanto, de algumas limitações, que de toda forma já eram previstas por Lamounier, que considerou ―imprecisos e preliminares os contornos do modelo‖. 103 Pela relevância do texto —sempre referenciado como fonte de estudos para o pensamento autoritário no Brasil—, e por prestar-se ao esclarecimento pontual do texto A Política e o nosso tempo, torna-se fundamental compreender os seus limites numa possível apreensão dos elementos gerais do pensamento de Francisco Campos. O modelo de ideologia de Estado se contraporia, inicialmente, a uma ideologia de Mercado, pelo fato de que as relações de poder na primeira matriz se define[m] basicamente pela tendência a afugentar do terreno da organização e da ação políticas toda consideração de mercado, em proveito de representações 102

LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação, p. 356. 103 Idem, p. 358.

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hierárquico-coercitivas, via de regra associadas a noções de integração subjetiva ao nível de valores e lealdades.104 Mercado, para o autor, significa um conjunto de ―mecanismos de coordenação fundados em processos competitivos ou em ajustamentos automáticos compensatórios‖ que, de alguma maneira, poderiam trazer à racionalidade na organização social, em contraposição ao ―predomínio da matriz ‗estatal‘‖. Vale esclarecer, imediatamente, que o objeto de Campos em seu texto A Política e o nosso tempo está contido no próprio título: a definição do problema contemporâneo por excelência —a transitoriedade das situações e a ausência de valores—, capaz de gerar conflitos e adquirir um contorno trágico, é o que move os diagnósticos metafísicos e políticos de Campos. Para ele, o mundo moderno caracteriza-se pelo tempo em que predomina a relativização dos valores, numa ―sofística‖ —uma específica atitude espiritual— que elimina toda a substância de qualquer valor, inclusive a da verdade. A desmaterialização dos valores indica um novo sentido na composição social dos conflitos —se é que se pode utilizar esses termos— que não passa necessariamente pelo Estado, mas pela mobilização das emoções que se podem forjar, inclusive, pelas agremiações políticas proletárias, que se utilizam do mito da greve geral para alcançar a revolução. O que pode mobilizar as massas para a ação é a pergunta que subjaz ao argumento de Campos. Ademais, o mito, como essa força simbólica que movimenta o irracionalismo das massas não é, portanto, um valor de verdade: 105 não representa, em si mesmo, uma orientação de sentido para o mundo. Para uma sofística contemporânea que se utiliza da linguagem tradicional, a eliminação da substância de qualquer valor é o que marca sua diferença. A possibilidade de funcionamento meramente técnico que esta atitude argumentativa suscita é a base para a nova prática política que transparece na atualidade: Veremos, com efeito, como se constituiu uma teologia política que tem por substância a afirmação de que o seu dogma fundamental deve ser acreditado como verdadeiro, como quando declare que o seu valor não é precisamente um valor de verdade. A teologia soreliana do mito político não é mais do que uma aplicação (...) do pragmatismo anglo-saxão e do seu conceito de verdade. 106 O mito trabalha a partir de uma ausência de conteúdo moral, materializando-se unicamente como forma, ou como instrumento direcionado para a consecução de fins, sejam quais 104

Idem, p. 360. Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo (1935), p. 7. 106 Idem, ibidem. 105

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forem. Paradoxalmente, funciona a partir da crença em uma ―verdade‖ (meramente procedimental), que se confirma pela realização de uma finalidade qualquer no mundo. Campos afirma que o mito soreliano não tem propriamente um valor de verdade —não é nem absoluto, nem universal—, mas apenas permite a realização de ações concretas quando é aceito mediante crença por aqueles mobilizados para a transformação social. Desta forma, por exemplo, o mito da greve geral funcionará da mesma maneira que o mito da luta de classes, pois atua como um ―instrumento intelectual‖ capaz de mobilizar a natureza humana para a ação, através de idéias como de ―sentimentos de luta e violência‖. O mito é um instrumento especialmente adequado para lidar com o caráter irracional das massas. É possível afirmar, portanto, a partir do texto de Campos, que o mercado também teria condições de utilizar o mito como instrumento. Seria, então, a competição racional. Para Campos, o mito mobiliza o homem pela polarização, isto é, pela forja e pelo cultivo de ―uma imagem dotada de grande carga emocional‖. 107 A desubstancialização da produção da verdade no mundo contemporâneo é, portanto, um elemento caro ao predomínio da esfera instrumental da técnica. Campos argumenta que Toda técnica, ainda a do espírito, é indiferente aos fins. A técnica espiritual da violência (...) tinha por objetivo (...) dissolver a unidade do Estado, construída pelos juristas, graças ao emprego de métodos artificiosos de racionalização, próprios à teologia, no multiverso político do sindicalismo. 108 O alvo declarado deste ataque à técnica da violência é o próprio Sorel. Mais especificamente, Campos tenta indicar de que forma o instrumental soreliano recupera a irracionalidade da atuação desordenada das massas em contraposição, apenas aparente, à racionalidade de uma unidade política possível na ditadura. A ―teologia monista do nacionalismo‖ mussoliniano —que originalmente remete, segundo Campos, a Fichte— é o contraponto político à técnica da violência que estimula a luta de classes. Mussolini servirse-á da mesma técnica para ―pôr fim à luta de classes e reforçar a unidade política do Estado‖. As fórmulas jurídicas não conseguem sedimentar esse sentimento de unidade nacional como é capaz de fazer o sentimento fichteano de que ―a nação é o envoltório do eterno‖.109 Isso significa, em resumo, que o meio de mobilização das massas no mundo contemporâneo é, por excelência, a violência irracional da técnica do mito, utilizada como 107

Idem, p. 8. Idem, p. 9. 109 Idem, p. 10. 108

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condutor de uma nova forma de realização da política. A conseqüência dessa assertiva é que a luta de classes, necessária pela violência regeneradora que poderia gerar —segundo Sorel— é, na percepção de Campos, um instrumento fácil de ser incorporado pelo discurso aparentemente racional de um regime político igualmente fundado na força. É o mesmo caso da idéia de persuasão forense, como é das instituições vinculadas à democracia liberal. Sob o véu da deliberação parlamentar —feito à imagem e semelhança do mundo forense—, o regime democrático, quando vinculado ao liberalismo, tenta encobrir que não se trata, no processo político, de resolver uma divergência de idéias ou de pontos de vista intelectuais, mas de compor o antagonismo de interesses, cada um dos centros de conflito fazendo o possível para reunir a maior massa de forças a fim de que a decisão final lhe seja inteiramente favorável. 110 Não existe, portanto, o que direcione racionalmente esta ação da violência como técnica de controle político. Isso significa que não é possível classificar o argumento de Campos de forma planificada, como ideologia de Estado, já que qualquer força social, não só o Estado e não só a partir do Estado, pode utilizar-se do instrumento técnico do mito para a realização de seus objetivos políticos. Um fim politicamente válido, no sentido de ser concretamente realizável, não necessita pretender ordem social ou ordenação econômica. À revolução proporcionada pela greve geral não segue, necessariamente, planificação política e econômica, assim como —e seguindo o raciocínio de Campos— da deliberação parlamentar não derivam ―garantias de que as decisões políticas incorporarão no seu contexto os elementos de razão e de justiça, que formam, segundo o otimismo beato do sistema liberal, o fundo inalienável da natureza humana‖. 111 O caráter estritamente irracional do mito pode concorrer para a condensação das forças sociais em direção à guerra ou à barbárie. 112 Não seria essa uma boa interpretação para o mito do espaço vital hitleriano? Nesse sentido, e em avaliando a oposição ideologia de Estado e ideologia de mercado estabelecidas como componentes de estruturação do modelo de ideologia do Estado, não parece ser esta oposição de Lamounier válida na interpretação do presente texto.

110

Idem, p. 27. Idem, p. 19. 112 A questão relativa à classificação do modelo de Estado totalitário em Campos será desenvolvida no último capítulo deste trabalho. 111

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Não é possível identificar o Estado como pólo ativo no qual seja concentrável, exclusiva e incontestavelmente, a idéia de integração ou de organização política. O objetivo de Campos é outro, o de estabelecer os motivos de instabilidade das instituições políticas de cunho democrático-liberal e, em especial, o declínio atual do sistema parlamentar, em face da aparição sociológica do fenômeno das massas.113 A filosofia da história tecida pelo autor em seu discurso caminha para o estabelecimento do mito como instrumento passível de ser mobilizado para uma finalidade revolucionária, religiosa, política, etc. Um símbolo que emerge no discurso de Campos é o da personalidade como o mito político mais denso e mais compacto, o mito político por excelência. 114 Assim, a própria idéia de organização política é menos importante que o processo de reconfiguração da dinâmica política, que passa a depender de elementos que descentralizam o sentido racional ou tradicionalestamental da idéia de autoridade política. Nesse sentido, Campos não está fazendo teoria política normativa, mas sociologia política das massas. A autoridade pode ser lida em Campos, inclusive, como puramente moral, que objetiva reintegrar o mundo de sentido, como é o caso da exortação por uma cruzada que o autor realiza anos depois em A Atualidade de D. Quixote.

5.2 Técnica política e irracionalidade: o baixo profundo de Caliban

Um dos pontos mais relevantes do texto de Bolívar Lamounier é que o autoritarismo dos anos 1930 conferiu ao processo político a característica de desmobilizar a sociedade. Este argumento, que Lamounier explora no final dos anos 70 do século XX em relação, dentre outros, a Francisco Campos, foi posteriormente reforçado por estudos sobre os conservadores do pós-guerra, como Roberto Campos.115 Entretanto, a idéia de que o modelo de ordem política de Francisco Campos compreende a desmobilização das massas 113

Desse ponto do texto de Campos em diante, é possível identificar os mesmos argumentos e as mesmas críticas ao sistema parlamentar liberal, à democracia liberal e a mesma definição do conceito do político que realiza Carl Schmitt em duas obras centrais: A Situação histórico-espiritual do parlamentarismo contemporâneo (1923) e O Conceito do político (1932). 114 Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo (1935), p. 15. 115 Cf. SILVA, Ricardo. Ideologia do Estado autoritário no Brasil. Chapecó, SC: Argos, 2004, passim.

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(para o seu controle) contrasta com o juízo deste autor sobre a relação possível entre o Estado e as massas. Embora não seja o objetivo do texto de Campos saber como as massas se organizam efetivamente, isso permite antever de que modo a noção de dinâmica política encontra, no autor mineiro, um significado sensivelmente diverso daquele definido por Lamounier. O problema levantado por Francisco Campos no texto A Política e o nosso tempo radica num dos elementos centrais da futura composição do Estado Novo: a compreensão de que a política contemporânea é uma política de massas e deve configurar-se como uma política para as massas. A multidão, característica precisa e central do tempo histórico sob análise não representa, desta forma, um indício de que Campos esteja compreendendo a sociedade a partir de uma visão orgânico-corporativa, como pretende o segundo componente constitutivo do modelo de ideologia de Estado de Lamounier. Não se está falando, aqui, de classes intermediárias ou organizações sindicais ou de caráter corporativo como sujeitos atuantes na configuração do processo político-representativo, seja antiliberal ou democrático-liberal, como de fato, poder-se-á perceber na obra de Oliveira Vianna e nos escritos estritamente propagandísticos do Estado Novo que realizará o próprio Campos. No texto em exegese, a operacionalização da política deve levar em consideração, para o estabelecimento de uma estrutura capaz de render efeitos concretos, o fenômeno sociológico da sociedade de massas. As massas não são uma entidade capaz de classificação compartimentada e hierárquica, pois não são passíveis de decomposição. Não são nem um ente propriamente coletivo, já que uma das conseqüências do progresso técnico é exatamente a possibilidade do controle mediatizado. A multidão, condensada em massa, é uma conseqüência da ação instrumental das técnicas de propaganda, de caráter irracional, porque esta condensação pela propaganda opera através da mobilização emocional. A massa não se forma, portanto, de modo espontâneo, nem pode ser direcionada a partir de um conjunto de proposições políticas de caráter racional. 116 A opinião que se constitui através desse processo não é capaz de manifestar-se políticamente ―sobre a substância de nenhuma questão. Ela toma simplesmente seu partido, e por motivos tão remotos ou estranhos a qualquer nexo lógico ou reflexivo, que se torna 116

A diferença entre multidão e massa está no fato de que a multidão é um aglomerado informe de pessoas que não é passível de mobilização racional. A massa, por sua vez, é o estado em que se encontra a multidão quando mobilizada pelo mito.

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ininteligível ou irredutível a termos de razão o processo das suas inferências‖. Para o autor, a revelação dos verdadeiros processos pelos quais atua a democracia vinculada ao liberalismo é o princípio do fim dessa fusão, interligando democracia e liberalismo como geminativos. Numa sociedade de massas —argumenta—, a democracia não consegue operar pelos instrumentos e instituições legados pela tradição liberal. Vaticina que para ―as decisões políticas uma sala de parlamento tem hoje a mesma importância que uma sala de museu‖. Este modelo ―feminino‖ de organizar o processo político através da ―persuasão sofística‖, não suporta a estrutura econômica que se amplia e se densifica, revelando sua irracionalidade inerente e, portanto, o seu ―caráter trágico‖. Este progressivo afastar da ideologia liberal —que leva os regimes democráticos a se tornarem imunes à discussão como instrumento para decisões políticas—acaba, então, por substituir o artifício ―intelectualista‖ pelo processo democrático-ditatorial da vontade. A tese de Campos é, portanto, que ―a crise do liberalismo no seio da democracia é que suscitou os regimes totalitários, e não estes aquela crise.‖ A democracia pode, então, permanecer preservada se o processo de representação realizar-se por qualquer meio válido, como, por exemplo, a aclamação plebiscitária.117 À oposição entre liberalismo e democracia, Campos submete o impressionismo literário da relação entre o império da razão representado por Ariel e a sensualidade e torpeza das massas, identificadas na figura de Caliban. Antecipa a oposição entre D. Quixote e Sancho Pança, que mobilizará anos depois para representar a mesma oposição entre civilização e barbárie. Ariel e Caliban estão na peça A Tempestade (1611), de William Shakespeare, e são retratados por Ernest Renan, em seu livro Caliban (1878) como representantes do embate e da vitória das massas ignorantes da democracia igualitária e material sobre a cultura do governo aristocrático dos sábios. Próspero, personagem shakespeareano que, em tese, representaria a civilização e a conversão final de Caliban pela razão, é derrotado por ele na continuação de Renan. Escrevendo sob impacto da Comuna de 117

Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, pp. 25, 28 e 20. Uma concessão, dentre outras que se podem fazer, ao modelo de ideologia de Estado de Lamounier, é que efetivamente Campos se utiliza de metáforas organicistas ligadas à influências proto-fascistas, embora sejam referências relativas à formatação do texto e não ao seu sentido ou matéria propriamente ditos. Mas o que inexiste é um ―âmbito preferencial de representação da estrutura social e econômica‖. LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação, p. 360; CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, passim; Cf. SCHMITT, Carl. Die Geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, passim.

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Paris, Renan considera necessária a formação de uma elite cultural para o enfrentamento das massas irracionais em ebulição, especificamente as localizadas nas colônias da Europa.118 O que Francisco Campos vislumbra como destino do clima histórico das massas, como destino de Caliban, é o recrudescimento das tensões sociais, o que revela a incapacidade da tentativa liberal de racionalização do processo político. Ele aponta para o surgimento de um ―novo ciclo de cultura‖, que se coloca para a humanidade indicando a necessidade de perceber que a contemporaneidade enfrenta o desafio de uma forma espiritual nova. Seguindo um diagnóstico da formação do desenvolvimento cultural de épocas espirituais diversas —que está presente em Schmitt, mas que remonta a Comte— Campos identifica pelo menos duas fases anteriores de integração política: pela fé ―nas épocas de religião‖ e pela razão.119 O caráter técnico da ação política numa sociedade de massas é intrínseco e sua utilização corriqueira no serviço de interesses irracionais só se clarifica quando a mobilização das massas torna-se um problema logístico de monta. Assim, as grandes tensões políticas evocadas pelo clima das massas ―não se deixam resolver em termos intelectuais, nem em polêmica de idéias. O seu processo dialético não obedece às regras do jogo parlamentar e desconhece as premissas racionalistas do liberalismo‖. Nesse novo momento espiritual, portanto, quando as massas predominam e passam a desempenhar um papel fundamental na arena política, o seu controle é o objetivo do embate. No processo de mobilização das massas, a integração política pelas forças irracionais é total, porque o absoluto é uma categoria arcaica do espírito humano. A política transforma-se, desta maneira, em teologia. Não há formas relativas de integração política, e o homem pertence, alma e corpo, à Nação, ao Estado, ao partido, o que equivale a dizer que as formas políticas de integração parcial, como a política democrática da deliberação parlamentar, pela sua fraqueza e incompletude acabam, necessariamente, dando lugar a um modelo de democracia dissociado do liberalismo: a ditadura. Nesse sentido, o constitucionalismo liberal traz, dentro de si, elementos caros ao regime ditatorial: As decisões políticas fundamentais são declaradas tabu e integralmente subtraídas ao princípio da livre discussão. O sistema constitucional é dotado de um novo dogma, que consiste em pressupor acima da constituição escrita uma constituição 118

Cf. RETAMAR, Roberto Fernández. Caliban and other essays. Translated by Edward Baker. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989, p. 9. 119 Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, p. 14.

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não escrita, na qual se contém a regra fundamental de que os direitos de liberdade são concedidos sob a reserva de se não envolverem no seu exercício os dogmas básicos ou as decisões constitucionais relativas à substância do regime. A opinião demarca-se, dessa maneira, um campo reduzido de opção, no qual tão-somente se encontram as decisões secundárias ou os temas partidários que não interessam aos pólos extremos do processo político, exatamente aqueles em torno dos quais se organizam e concentram as constelações de interesse e de emoção de maior poder ou de mais intensa carga dinâmica. 120 A dogmatização da dinâmica política, à imagem e semelhança das teologias políticas antiliberais, significa a permanência de uma exterioridade de assentimento e conformidade. O resultado do histórico funcionamento da dinâmica liberal sob uma situação de predominância das massas é que a sua existência força uma ―brusca mutação‖ em direção às técnicas do Estado totalitário. Na verdade Campos informa que, dada a ascensão da sociedade de massas, a democracia não pode ficar limitada aos procedimentos forenses de deliberação liberal. A polarização dos conflitos políticos, sua exacerbação, retira do parlamento e das instituições liberais a força de persuasão. A democracia, como procedimento de legitimação das decisões políticas fundamentais, divorcia-se do liberalismo. O baixo profundo de Caliban, isto é, a manifestação das forças irracionais, do caráter trágico e da configuração ―demoníaca‖ do estilo das massas, emerge. A delicadeza da sofística liberal chega ao fim: Ariel é vencido. A democracia, destituída de sua capa liberal pela dinâmica da sociedade de massas, assume o aspecto de um ―sistema monista de integração política‖ através da imputação das decisões fundamentais a um centro de vontade cujo caráter irracional equivale ao processo decisionista ditatorial. 121 Campos opera, desta forma, a mesma integração lógica entre ditadura e democracia que realiza Schmitt alguns anos antes, afastando a vinculação necessária entre liberalismo e democracia. Como no discurso de Schmitt, A Era das neutralizações e despolitizações, de 1929, a noção de relativização do conhecimento histórico e a idéia de falência das instituições liberais estão ligadas à modificação, com o passar dos séculos, dos elementos culturais centrais da sociedade. O diagnóstico de Campos é praticamente idêntico ao de Schmitt: a neutralização da esfera política pela sua transformação em um problema de natureza

120 121

Idem, p. 21. Idem, pp. 19-24.

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meramente técnica. 122 Se Schmitt visualiza a idéia da neutralização dos conflitos políticos pela contemporânea fé no progresso técnico, e a paradoxal impossibilidade de pacificar os conflitos políticos através da técnica —por ser a técnica um instrumento de poder—, não é outra a percepção de Campos sobre o mesmo objeto As prodigiosas conquistas científicas e técnicas, que costumam ser um dos temas preferidos do otimismo beato nas suas exaltadas esperanças em relação à espécie humana e ao seu aperfeiçoamento moral e político, conferiram ao império do irracional poderes verdadeiramente extraordinários, mágicos ou surpreendentes. Aí está mais uma das antinomias que parecem inerentes à estrutura do espírito humano: a inteligência contribuindo para tornar mais irracional, ou ininteligível, o processo político. É possível hoje, efetivamente, e é o que acontece, transformar a tranqüila opinião pública do século passado em um estado de delírio ou de alucinação coletiva mediante os instrumentos de propagação, de intensificação e de contágio de emoções, tornadas possíveis precisamente graças aos progressos técnicos, que nos deram a imprensa de grande tiragem, com sua nova técnica de apresentação e de apreciação dos fatos, a radiodifusão, o cinema, os recentes processos de comunicação que conferem ao homem um tom aproximado ao da ubiqüidade, e, dentro em pouco, a televisão, tornando possível a nossa presença simultânea em diferentes pontos do espaço. Não é necessário o contato físico para que haja multidão. Durante toda a fase de campanha ou de propaganda política toda a nação é mobilizada em estado multitudinário. Nessa atmosfera de contemplação emotiva, seria ridículo admitir que os pronunciamentos da opinião possam ter outro caráter que não sejam o ditado por preferências ou tendências de ordem absolutamente irracional. 123 Pervertem-se, desta forma, tanto as tentativas de atribuir um caráter benéfico ao progresso técnico da humanidade quanto a perspectiva de que, através da técnica, é possível operar uma dessacralização da política. É uma leitura que, mais que antiliberal, pretende ser antiweberiana, constituindo-se no século passado, na Alemanha do início da década de 20, por autores como Georg Lukács e Carl Schmitt. Para Weber, a transformação do mundo num mecanismo causal, operada pelo racionalismo empírico, tem como conseqüência o elidir de uma cosmovisão abrangente o suficiente para prover de sentido uma orientação qualquer para a ação. A desmagificação opera uma perda de sentido existencial, uma desmitificação que implica o fim do império do destino, isto é, o fim progressivo de operações mentais de natureza irracional na atribuição de sentido, que se realizam tanto pela intelectualização das religiões quanto pela ciência. Mas a relação puramente mecânica, 122

Cf. SCHMITT, Carl. Das Zeitalter der Neutralisierungen, pp. 90 e ss.; Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, p. 24. 123 CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, p. 25.

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procedimental, do homem com o mundo —que se cristaliza na modernidade—, pode ser posta a serviço de quaisquer fins ou sentidos, e estará, portanto, sempre à mercê de uma colonização pelo irracional. 124 Em Campos —como em Schmitt—, a ciência e a técnica operam necessariamente no sentido de potencializar o lado operacional da irracionalidade do processo político, pois servem de instrumento cego para que a mítica contemporânea consiga a mobilização das massas. Em 1936, Campos lapida com clareza: ―[a] técnica, em si mesma, é, porém, indiferente aos valores‖. A técnica e a ciência operam uma espécie de reforço do encantamento do mundo, proporcionam o controle mágico das maiorias pela ―utilização da substancia irracional de que se compõe o tecido difuso e incoerente da opinião‖. Esta preponderância do irracional e do apego ao mito como fórmula que substitui a razão pela mobilização das paixões será interpretado por Campos como um processo que culmina em uma técnica de golpe de Estado, que classifica como ―primado do inconsciente coletivo‖. 125 A opinião pública, por ser o alvo natural da dinâmica política, comporta originariamente o modo de dominação estratégica, que sempre utiliza elementos irracionais: ―os processos democráticos nunca se destinam a convencer da verdade o adversário, mas a conquistar a maioria para, por intermédio da sua força, dominar ou governar o adversário‖. Portanto, esteja a dinâmica mítica encoberta ou não com a capa liberal, a diferença de situações consiste não na essência irracional, mas no ―deslocamento do centro de decisão política‖, que em princípio pode ser vislumbrado no sistema representativo e que, numa sociedade de massas, está no mito da greve geral, no mito nacionalista ou, preferencialmente, dada a sua força polarizadora, no mito do Líder. 126 Entre as massas e o mito não há intermediário operante senão os instrumentos e as técnicas facilitadoras de propagação. O meio é a propagação da mensagem mítica. O mito pode,

124

Cf. McCORMICK, John P. Carl Schmitt’s critique of liberalism, pp. 33 e ss; Cf. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 42; Cf. PIERUCCI, Antônio Flávio. O Desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2003, pp. 215 e ss; Cf. WEBER, Max. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi. 13ª ed. São Paulo: Editora Pioneira, 1999, pp. 130-1. 125 CAMPOS, Francisco. Os Valores espirituaes (1936). In: CAMPOS, Francisco. Educação e Cultura, p. 152. Schmitt já havia se expressado quase literalmente da mesma forma, em A Era das neutralizações e despolitizações (1929): ―a técnica em si mesma permanece, se posso dizer desta forma, culturalmente cega‖. Cf. SCHMITT, Carl. Das Zeitalter der Neutralisierungen, p. 90 e CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, p. 12. 126 Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, pp. 27-8.

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inclusive, operar como mito da racionalidade, seja, por exemplo, como o mito da racionalidade da dinâmica parlamentar, seja como o mito da racionalidade das trocas de mercado.

5.3 O Espírito do tempo rumo ao Estado Novo: uma ponte

O tema da crise política do liberalismo em Francisco Campos é mais um elemento que o distingue do pensamento autoritário brasileiro forjado na 1ª República. A exegese de sua sociologia política o afasta de outro ponto definido por Lamounier como característico da estrutura da ideologia de Estado autoritário. Dando continuidade à verificação da estrutura ideológica dos motes indicados como pertencentes ao pensamento campiano, surge, no texto de Lamounier, a questão da visão paternalista-autoritária do conflito social: a ideologia de Estado aproxima-se bastante da idéia de erradicação total do conflito pela adoção do modelo político (técnico) apropriado. Ao contrário, todavia, das doutrinas perfectibilistas, que estendem tal noção ao ponto de pretender a integração definitiva pela erradicação de toda forma de desigualdade e poder, a ideologia de Estado ressalva a necessidade da coerção organizada, e mesmo de seu fortalecimento, em função de sua peculiar teoria do conflito social como irracionalidade, manifestação dos impulsos infantis e malévolos da natureza humana. 127 Para que este componente seja bem explicitado, Lamounier sustenta que os conflitos sociais de natureza infra-estatal são passíveis de controle através do Estado, e que a ―permanência do conflito entre os grupos sociais, não a natureza dele, é que importa nesta perspectiva teórica‖. Ora, o que caracteriza o texto de Campos é o caráter polêmico que atribui ao fenômeno político. Para ele, ―[a]s grandes tensões políticas não se deixam resolver em termos intelectuais, nem em polêmica de idéias‖. A dinâmica política liberal, operando no sentido oposto (da composição persuasiva), torna-se incapaz de conduzir a opinião pública massificada. A oposição dos interesses em conflito é o que define, para Campos, o processo

127

LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação, p. 366.

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político. Ele se preocupa essencialmente, portanto, com a natureza do conflito, pois a partir dela será possível compreender de que forma pode ser integrado socialmente em sua irracionalidade congênita. Neste sentido, Lamounier pode ser contestado na sua premissa. Fica invalidada, igualmente, no que concerne ao texto de Francisco Campos, sua tese de que a ideologia de Estado autoritário filia-se a uma técnica de erradicação do conflito pela repressão do Estado. Na verdade, é o próprio Lamounier que retira a representatividade de Campos no que respeita à visão de conflito do pensamento autoritário brasileiro e afirma, acertadamente, que está claro, em Campos, o caráter onipresente e inamovível do conflito, em contraposição a uma inclinação do pensamento brasileiro para ―uma visão solidarista, como no corporativismo católico europeu do final do século‖. 128 Em Campos, como se explicita num trecho igualmente citado por Lamounier, o processo político é definido por uma dinâmica contínua de atenuação e tensionamento de campos sociais, políticos ou econômicos opostos, que pode facilmente se radicalizar e transformar-se em violência. Não é outro o acontecimento por conta da ―ressurreição do mito nacional‖ que traz, para o cenário internacional, um grau de tensão extremado pelo fato da existência do Estado totalitário —ou de massas— atrelado àquele mito. A função do mito nacional, no cenário de conflitos internacionais, é o de ―polarizar intensas cargas políticas‖, estimulando o ―armamentismo, [a] luta pelos mercados consumidores e pelas matérias primas‖. O caminho de Campos é explicitar seu conceito de política ou do fenômeno político através de sua dinâmica contemporânea e que, quando afastado das amarras formais e do otimismo ingênuo do liberalismo, revela a tensão real do irracionalismo, refratário à racionalização. Aqui, salienta, não interessa o fato de os regimes irracionais, como os totalitários, ganharem estabilidade através do estímulo permanente das massas a um estado de excitação hipnótica. O Estado total não é um Estado sem conflitos, mas um Estado que, como o Estado liberal, os têm ocultos, em potência. Campos sustenta, então, que Não é possível nenhuma integração política total enquanto o homem, definido por si mesmo como animal racional, conservar e defender, como vem fazendo com crescente veemência, o seu patrimônio hereditário. No dia em que a massa nacional fosse integrada politicamente de maneira a não deixar resíduos ela deixaria simplesmente de ser Estado, que é um conceito político, isto é, um conceito polêmico, a menos que, como entidade nacional, entrasse em relação de tensão com 128

Idem, p. 367 e CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, pp. 21; 31.

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outras massas nacionais. De igual modo, admitir a integração política da humanidade é postular um estado apolítico do homem, porque a humanidade não poderia constituir um termo da constelação polar em falta de outro termo que pudesse entrar em relação de conflito. 129 Esta talvez seja uma explicação sintética de um conceito que é o mais conhecido do pensamento político de Carl Schmitt. Campos, escrevendo apenas três anos depois da publicação do texto de Schmitt, já credita ao tema sociológico do conflito uma aproximação metafísica, como o faz o autor alemão. Isto significa dizer que Campos desloca a questão política do aspecto sociológico até então uma das linhas centrais de seu raciocínio no texto, para levantar princípios gerais de funcionamento da dinâmica social. No seu já clássico livro, O Conceito do político (1932), Schmitt desenvolve a idéia segundo a qual o processo de secularização do mundo, observada a preponderância da despolitização e da neutralização do espaço político contemporâneo através da crença na técnica, ocultou a distinção política fundamental: o conceito amigo-inimigo.130 Se a lógica da economia e da técnica impossibilita a percepção das clivagens sociais —como as diferenças culturais, sociais e de classe—, é no espaço político onde estas diferenças podem ser precisamente demarcadas. Em relação ao inimigo público, o inimigo próprio do espaço político, Schmitt não compreende ser possível a realização de um processo de negociação, de deliberação ou de troca. A distinção política implica a necessidade clara da sobrevivência. O inimigo, em utilizando um termo hobbesiano, está em situação constante de estado de natureza, disposto a enfrentar a possibilidade da morte violenta. Não cabe outra alternativa, para Schmitt, senão eliminá-lo. Como em Campos, Schmitt aponta a tradição e as instituições liberais do início do século XX como responsáveis, nas democracias de massa, pela ocultação dos compromissos e negociações de interesses que se faziam por baixo do processo público de debate parlamentar.131 Contra essa ―neutralização do Estado‖, a tecnicização das decisões

129

CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, p. 32. Campos não é, portanto, um autor que defenda o Estado totalitário, como, sem mais, defende BOMENY, Helena M. B. Três decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. pp. 137-166., p. 145. 130 Cf. SCHMITT, Carl. Der Begriff des politischen, passim. 131 Ver, nesse sentido, SCHMITT, Carl. Die Geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, passim.

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políticas fundamentais —a legitimação do direito através do simples procedimento de natureza formal, por exemplo—132 Schmitt opõe suas oito teses: a) O ―conceito de Estado pressupõe o conceito do político‖, pois o Estado é o status político de um povo que fornece a medida em caso de decisão, mas que não se confunde com ele; b) A última e mais fundamental distinção, o critério por excelência do político é a distinção entre amigo e inimigo. O inimigo define-se, exclusivamente, pelo critério político, sem a necessidade da utilização de critérios outros. Ele não precisa ser mau (moral), feio (estética), concorrente (economia). O conflito político passa, então, pela decisão de se esse outro, esse estrangeiro ―representa a negação da própria forma de existência‖; c) Os conceitos amigo e inimigo devem ser compreendidos a partir de sua concretude existencial, pública e a partir de seu sentido ―polêmico‖, não podendo ser confundidos com construções normativas ou de caráter privado. Esse antagonismo, de natureza essencialmente política, é uma contraposição extrema que pode redundar no aniquilamento do outro. A possibilidade da luta (Hobbes) está, portanto, sempre presente, sendo a guerra a ―relação extrema de inimizade‖ que dá à vida uma ―tensão especificamente política‖; d) O político consiste num comportamento informado pela possibilidade real de um conflito que pode pôr fim à existência dos contendores. A associação política se conforma de acordo com esta possibilidade extrema. Para Schmitt, a unidade desse agrupamento político terá sempre a última decisão sobre a resolução do conflito, sendo, portanto, soberana. A unidade política é, portanto, a unidade determinante, ―independentemente de quais forças retira seus motivos psicológicos últimos‖; e) A realização da guerra cabe à decisão do Estado, unidade essencialmente política. Mas, em situação normal, sua função consiste em produzir ―tranqüilidade, segurança e ordem‖ (Hobbes) e, com isso, fica autorizado a determinar seu ―inimigo interno‖. A existência política de um povo se dá, portanto, pela sua capacidade de determinar a distinção básica entre amigo e inimigo; f) ―A unidade política pressupõe a possibilidade real do inimigo e com isso pressupõe uma outra unidade política coexistente‖. O mundo é, portanto, um pluriverso 132

Cf. SCHMITT, Carl. Legalität und legitimitaät, passim.

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político e toda teoria do Estado é pluralista. Nesse sentido, o conceito liberal de humanidade exclui o conceito de inimigo, pela impossibilidade de se desenvolver uma tensão política sem a ameaça existencial de uma nação concreta estar presente; g) O liberalismo político nunca operou por uma oposição política e portanto, não foi capaz de construir uma teoria política do Estado, já que pretendeu submeter o político ao ético e ao econômico. Nesse sentido, uma noção ou um raciocínio propriamente dirigido à compreensão do político não pode tomar como ponto de partida o ―otimismo‖ antropológico —bondade intrínseca da humanidade— caro ao pensamento liberal; h) O estabelecimento de uma idéia propriamente política é inviável através do pensamento liberal, já que ele funciona exclusivamente dentro das esferas ética e econômica. A conseqüência disso é que o liberalismo pretende eliminar, do seu horizonte, as derivações extremas do político, das quais, na realidade, não consegue escapar.133 A partir dessas teses de perfil claramente hobbesiano, Schmitt condensa o seu programa de crítica doutrinária ao liberalismo político e ao tipo de Estado que não compreende a conflitividade natural do mundo contemporâneo. Comparando-se o conceito do político de Schmitt com o de Campos, constata-se que, em ambos, o conteúdo é o mesmo: a impossibilidade de controlar, de forma total, um processo cujo fundamento não pode ser resumido a uma apreensão racional. Em Francisco Campos, as oito teses são praticamente idênticas. 134 A idéia segundo a qual o Estado não se confunde com o político (tese (a)) encontra correspondência em Francisco Campos que não vê o Estado como a única força propriamente política na sociedade. Se o mito é a força mobilizante, o instrumento através do qual sujeitos políticos, de qualquer natureza, podem utilizá-lo, o Estado deixa de ser o elemento que representa exclusivamente o político. Os termos da tese (c) são idênticos no texto de Campos: a política, para o autor mineiro, é polêmica. E a polêmica só pode existir se for reconhecida a presença de, pelo menos, duas ―constelações polares‖, antagônicas, que entram em estado de tensão. Se a massa nacional fosse integrada universalmente de forma total, não haveria mais polêmica, o que corrobora a tese (f), segundo a qual o

133

Cf. SCHMITT, Carl. Der Begriff des politischen, pp. 20 e ss; 26 e ss; 28 e ss; 37 e ss; 45 e ss; 54 e ss; 59 e ss; 68 e ss. 134 As últimas duas não precisam mais de comprovação por argumentos, já que consistiram na maior parte do discurso de Campos.

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pluralismo da Teoria do Estado antiliberal significa o reconhecimento do político. Essa concepção informa o conceito de política enquanto oposição —a distinção política fundamental entre amigo e inimigo (tese (b))—, na medida em que Campos sustenta que a política é a relação de conflito entre duas entidades sociais, relação através da qual se forma o Estado. Por outro lado, se em Schmitt transparece a incomensurabilidade do processo decisório dos entraves à existência de uma unidade política (tese (d)), em Campos o processo político não é racional, mas decidido, também, através da vontade. A idéia de que cabe ao Estado a decisão da guerra tanto externa quanto interna (tese (e)) é particularmente relevante, pelo fato de indicar uma leitura mais sofisticada de Campos sobre o fenômeno da função do Estado em uma sociedade de massas. Para Campos, o Estado ―não é mais do que a projeção simbólica da unidade da nação‖. Essa irracionalidade da qual se origina a unidade das massas, significa que a integração política no Estado só funciona através da mobilização mítica, cuja função é exatamente ―disciplinar e utilizar essas forças‖ irracionais, abaladas por movimentações de exorcismo da autoridade imprimindo ―ordem, hierarquia, disciplina às tendências e paixões‖. 135 Numa situação onde a organização social lida com as massas, e mesmo quando as massas não predominam, é impossível eliminar conflitos internos, bandeira que propaga e intenta realizar o tipo de Estado totalitário. A esta incapacidade, à natureza móbil e angustiada das massas, o autor vincula a necessária aparição do César —―mito solar da personalidade‖, no lugar do mito da Nação— que exclui qualquer possibilidade de participação ativa das massas no processo político. Assim, parece que a conseqüência ―natural‖ de uma ordem política irracional, em seus fundamentos, é a cristalização da irracionalidade e o conseqüente controle através do líder político, o indivíduo que concentra em si —e por isto mesmo é capaz de regular— o pólo irradiador da inconseqüência das paixões humanas. Assim, ―o regime político das massas é o da ditadura‖.136 Por conta deste último elemento que transparece no texto de Campos, a aparição do César, um outro elemento constitutivo do modelo da ideologia de Estado autoritário de Lamounier pode ser questionado. A não-organização da “sociedade civil” é uma derivação do conceito de conflito social do pensamento autoritário brasileiro que, como o próprio

135 136

CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, pp. 12; 15. Idem, pp. 30; 16.

150

Lamounier sustenta, não é o mesmo que se encontra em Francisco Campos. Assim, e tendo em vista que a funcionalidade do mito está ligada à mobilização das emoções; que o processo político se configura pela existência de interesses em antagonismo natural; pelo fato de que o próprio conceito de política significa, para ele, uma oposição que define a configuração de uma certa estabilidade ou instabilidade das forças irracionais que comandam o processo de integração social e; pelo fato de a força política do mito funcionar como organização da multidão em massa, a multietudo em unidade; por tudo isso, em Campos, a ―sociedade civil‖ existe por que se mobiliza ou porque é mobilizável e porque é, conseqüentemente, organizável enquanto massa. No quesito da não mobilização, outro ponto do modelo de Lamounier, é ainda mais evidente a discrepância entre a ideologia de Estado autoritário e o texto de Campos. Lamounier, neste tópico, considera Francisco Campos como uma ilustração ―gráfica‖ de sua tese, segundo a qual o pensamento autoritário brasileiro ―não abriga uma intenção própria de mobilização plebiscitária‖. 137 A leitura da Constituição de 1937, de autoria quase exclusiva de Campos, poderia desfazer esse mal-entendido, já que o instrumento de consulta popular por excelência (representação política definida como legítima), é justamente o plebiscito. Mas seria abandonar a hipótese de que é possível encontrar os elementos necessários para refutar a associação entre Francisco Campos e a idéia da nãomobilização da sociedade civil de Lamounier já no discurso de 1935: As massas encontram-se sob a fascinação da personalidade carismática. Esta é o centro da integração política. Quanto mais volumosas e ativas as massas, tanto mais a integração política só se torna possível mediante o ditado de uma vontade pessoal. O regime político das massas é o da ditadura. A única forma natural de expressão da vontade das massas é o plebiscito, isto é, voto-aclamação, apelo, antes do que a escolha.138 Esse diagnóstico é obviamente marcado por uma forma específica, corretamente classificável de antiliberalismo, pois contém um modelo de organização política que além de prever a centralização do poder, tem um caráter mobilizador. O perfil sociológico do antiliberalismo não funciona a partir de uma comunidade solidária e ao mesmo tempo informe, capaz de ser moldada em qualquer direção. Grave é considerar que o modelo de 137

LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação, p. 369. 138 CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, p. 16.

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Estado que subjaz no discurso campiano é ainda o Estado tutelar de sua fase da 1ª República e que seu ponto seria a manutenção, pela desmobilização, de uma ―demarcação jurídica e burocrática entre Estado e Sociedade‖. 139 Se a aparição do César é uma ligação direta entre as massas e o mito político fundamental, não há necessidade de intermediários. Esse diagnóstico não pode ser lido como uma admoestação negativa dos destinos sombrios da humanidade. Campos não lamenta a existência da sociedade de massas. Procura entendê-la e adaptar-se a ela, o que significa o reconhecimento da mobilização organizada como uma conseqüência da irracionalidade: as massas são a matéria bruta capaz de corporificar a força política para o enfrentamento político propriamente dito. Isso permite questionar Lamounier quando discorre sobre as filiações teóricas de Campos: A opção pelo Rechstaat [Estado de Direito], pelo ideal de ordenação jurídica consagrado pelo constitucionalismo liberal, mas desta vez contra o liberalismo político. Enquanto se preserva, no terreno jurídico a intenção ―civilizatória‖ da elite cosmopolita, a racionalidade da esfera política é mais uma vez concebida como dominação cautelosa ou, para retomar a imagem de Oliveira Vianna, como adaptação às boas qualidades do país, extirpando-se as más. 140 O texto somente alude ao fato de que existe um liberalismo instrumental em Campos. Esta utilização interessada de instituições liberais para fins políticos específicos não significa uma opção pelo ideal de ordenação jurídica liberal, contra o liberalismo político, pois o constitucionalismo liberal tem como finalidade a implantação de instituições liberais que o materializam socialmente. Quando Francisco Campos refere-se ao processo de atribuição de sentido —que na contemporaneidade só se dá pelo mito—, não está recorrendo a nenhuma instituição liberal, muito menos a um suposto Estado de Direito, como sugere Lamounier, que não se utilizou das construções jurídico-políticas das correntes constitucionais de perfil antiliberal que existiam à época e às quais Francisco Campos estava alinhado. Nesse sentido é que Schmitt representa efetivamente uma condensação do espírito antiliberal do tempo, claramente distante de representações sociológicas simplistas e aproximações jurídicas datadas. O constitucionalismo de Schmitt é antiliberal como o é o de Francisco Campos. Em ambos os autores não se materializa, numa hipotética Constituição, nenhuma das instituições que garantem um procedimento 139

LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação, p. 369. 140 Idem, pp. 369-70.

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político fundado em princípios liberais. Em decorrência dessa filosofia política antiliberal, a sociedade ocidental ficou à mercê das ditaduras. O conceito puro de democracia que orienta a construção constitucional de ambos é a democracia substantiva ou substancial. Ela se opõe ao conceito de democracia formal ou procedimental do liberalismo. No conceito de democracia substancial, já como Ministro do Estado Novo, Campos usa a Teoria da Constituição (1928) de Schmitt como fonte, eventualmente citada em outros escritos. Em diálogo não assumido, Campos mostra ter clara a distinção entre dois modelos constitucionais, entre duas estruturas institucionais que não se confundem: as estruturas democráticas substantivas (antiliberais) e as democráticas formais (liberais). Ele demarca o conceito de democracia substantiva que passa a informar a composição constitucional do Estado Novo. Campos, na entrevista Problemas do Brasil e soluções do regime (1938), explica que A essência da democracia reside em que o Estado é constituído pela vontade daqueles que se acham submetidos ao mesmo Estado: reside na vontade do povo, como declara, logo de início, a atual Constituição. A afirmação de que o Estado é produzido pela vontade popular não implica a conclusão de que o sufrágio universal seja um sistema necessário de escolha, nem a de que o Presidente da República deva exercer o seu cargo por um curto período de tempo, não podendo ser reeleito. É absurdo tirar de uma noção meramente formal de democracia conclusões que a prática repele. Os meios pelos quais a vontade popular se pode fazer sentir têm de ser estabelecidos de acordo com a realidade social e não com os ensinamentos meramente dialéticos.141 Vincular-se a uma democracia procedimental, como a liberal significa, para Campos, organizar a sociedade através de uma democracia de meios, puramente técnica, ao invés dos fins, do conteúdo a ser realizado. Se o mesmo autor, em 1935, sustenta a irracionalidade da técnica e considera que a democracia liberal e suas instituições não são adequadas a uma sociedade de massas, não há que se falar em Estado de Direito em sua obra. A democracia substancial, lembra Schmitt, significa homogeneidade, identidade entre representante e representado, e se realiza através do processo de representação política direta, ou seja, pela aclamação do líder. Processo de natureza intrinsecamente irracional. A democracia formal, por outro lado, diz respeito à representação indireta, obedece a um número de procedimentos e de instituições que intermedeiam a relação política entre o 141

CAMPOS, Francisco. Problemas do Brasil e soluções do regime (1938). In: CAMPOS, Francisco. O Estado nacional, pp. 69-109, p. 75.

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povo e o Estado, garantindo formalmente a liberdade de manifestação, a partidarização, a pluralidade ideológica, etc. A democracia substancial representa a legitimação principiológica do cesarismo, da mobilização social irracional destituída de controles formais, ou seja, é contrária a procedimentos que pretendam garantir racionalidade ao processo político. Assim, não há nada mais distante do pensamento campiano que uma ―opção pelo Rechstaat‖. O Estado Novo teve uma Constituição, ou seja, recorreu à forma jurídica, mas ela não se sustentava, nem teórica nem instrumentalmente, em instituições de corte liberal. O Estado de Direito pressupõe divisão de poderes, representação parlamentar, sufrágio, garantias individuais, limitações constitucionais ao poder político, concentração da atividade legislativa no Poder Legislativo —e não no Poder Executivo— além de limitações formais e substanciais à decretação e permanência do estado de sítio, por exemplo. Nenhum desses institutos, no seu caráter estritamente liberal, pode ser encontrado na Constituição escrita por Campos. Logo, nem o Estado Novo sustenta-se juridicamente enquanto um Estado de Direito, nem Campos, como autor com ideal de um ordenamento jurídico consagrado pelo constitucionalismo liberal. Se fosse possível classificar a filosofia da história de Francisco Campos, especialmente a que se deduz do estudo do A Política e o nosso tempo, ela se chamaria decadentista. Se, durante a 1ª República, ele apostava na tradição e no governo da lei para tutelar a sociedade e as instituições liberais, consideradas irresponsáveis, nos anos 30, não se pode dizer o mesmo de sua visão sobre o fenômeno político. Campos está diante de uma sociedade atomizada e impessoal cujo volume físico não se presta a um processo tradicional de esclarecimento: a educação para o que der e vier não pode ser uma educação que inculca valores, um processo de aprendizagem relativo à possibilidade de hierarquização e ordenação do mundo. Esse mundo é, para Campos, ―refratário a um sistema interpretativo, em desacordo com a escala e o passo dos acontecimentos‖. 142 A possibilidade de se vislumbrar uma relação política com o mundo através da racionalidade e do embate intelectual das elites é exatamente o que Campos critica na postura democrático-liberal. Por esta razão, também nos dois últimos quesitos do modelo de Lamounier, Francisco Campos não pode ser encaixado como ideólogo autoritário nos 142

CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, p. 5.

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moldes do pensamento da 1ª República. O penúltimo ponto da ideologia de Estado autoritário de Lamounier é do elitismo golpista ao voluntarismo golpista. O programa autoritário teria um perfil Iluminista, já que o objetivo central é organizar o Estado ―por cima‖, direcionando a sociedade, num projeto ―altruísta e racional‖ que ―requer somente a persuasão das elites e um emprego limitado e temporário da força, até criar as condições para o esclarecimento dos menos esclarecidos‖. A mudança política, que significa o fortalecimento do Estado, ―aparece assim como combate intelectual, indispensável prelúdio de um grande ato de vontade‖. Lamounier sustentará, em último lugar, a idéia de que o pensamento autoritário brasileiro, no qual Campos estaria alinhado, está baseado no componente de o Leviatã benevolente. Para o autor, O Leviatã benevolente que aparece no pensamento autoritário brasileiro é o guardião e a força vital de uma sociedade igualmente benevolente, ―cordial‖ e cooperativa. Ele é benevolente porque a reflete em suas boas qualidades, e porque a corrige, severa mas afetuosamente, nas más: nos impulsos infantis do comportamento rebelde; nas ações altruístas, mas errôneas, porque carentes de esclarecimento; e sobretudo, naquelas que se alimentam de motivações alienígenas, alheias à sua índole e essência.143 Falar em elitismo golpista é, dessa forma, classificar a sociologia de Campos dentro de amarras teóricas insuficientes se relacionados à abrangência de seu diagnóstico. Campos é elitista, mas sua sociologia de massas não é somente elitista, e muito menos aponta para o caminho da racionalidade: o objetivo é a mobilização social —limitada à aclamação, é certo—, mas através do poder do mito político. A atomização dessa sociedade de massas não comporta uma interpretação solidarista. A sociedade de massas não é, nesse sentido, nem má, nem boa. É simplesmente inclassificável pela sua irracionalidade. É, como salienta Campos, destituída de valores, porque impulsionada pela mudança constante. Tal como em outros aspectos já ressaltados, também aqui Francisco Campos é um hobbesiano, sem dar a chancela a um Leviatã ―benevolente‖ ou ―cooperativo‖. Percebe a natureza humana, que emana deste discurso sob análise, como indeterminação, como sustentará Hobbes no Prefácio de 1647 à edição do De Cive: o homem é o lobo do homem, mas é também seu próprio Deus. Tem dentro de si a capacidade de destruir-se, mas comporta igualmente o dom de criar um artefato, à imagem e semelhança de Deus —quando Este cria o próprio 143

LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na primeira república: uma interpretação, p. 370.

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homem—, que é o Estado. Assim, o homem só se encontra em estado de natureza quando não há um poder comum e soberano que mantenha todos em respeito mútuo. O homem recorre a ele por calcular ser o meio de escapar à ameaça constante da morte violenta, quando não há Estado organizado. O homem só é ―naturalmente compelido a destruir e subjugar o outro‖ em uma situação onde essa ação é fundamental para garantir a própria sobrevivência.144 Campos, como herdeiro intelectual de Hobbes, identifica a contemporaneidade como um estado de natureza, mas que se mescla à vida social. Lembre-se que, em Hobbes, o estado de natureza é uma pressuposição lógica, ainda que a Inglaterra estivesse efetivamente passando por uma guerra civil para a qual o Leviatã seria uma espécie de antídoto. É um olhar hipotético para uma situação em que não há Estado organizado. Campos, ao contrário, está realizando, a princípio, uma análise sociológica. Logo, não pressupõe uma situação em que todos estão predispostos ao embate, ele está diagnosticando. ―Daí‖ —diz Campos— ―o caráter problemático de tudo: acelerado o ritmo da mudança, toda a situação passa a provisória, e a atitude do espírito há de ser uma atitude de permanente adaptação‖. O caráter problemático, inconstante e trágico do mundo contemporâneo não fornece às elites novos conteúdos espirituais. Se há apelo à solidariedade humana, é de natureza irracional, e se consegue mobilização suficiente para a integração das massas em regime de Estado, o homem deixa de pertencer a si mesmo e passa a ser propriedade ―alma e corpo‖ da Nação, do Estado, do partido: a personalidade e a liberdade tornam-se ―apenas ilusões do espírito humano‖. 145 Nesse sentido, o Leviatã campiano não é benevolente: é antiliberal, cesarista e dirigido para o controle emocional das massas. Assim, em que pese a possibilidade do estabelecimento de um modelo de entendimento do autoritarismo brasileiro que vem da 1ª República até os anos 30, não é o modelo capaz de enquadrar o pensamento de Campos. Em Francisco Campos: 1. Não há predomínio de nenhum princípio na condução das relações de poder além da irracionalidade do mito, seja ele a greve geral, a nação, o César. Existe, por conseguinte, uma indefinição estrutural dos rumos da sociedade contemporânea à espera de um mito

144 145

Idem, p. 370. Cf. CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, pp. 5; 11; 13.

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polarizador, que pode ser o César; 2. Há um processo duplo de sacralização e exacerbação dos efeitos da técnica quando utilizada para finalidades políticas (mobilização da opinião pública). A visão construída mostra uma sociedade originalmente multitudinária, de massas e, ao mesmo tempo, atomizada; 3. A ―sociedade civil‖ é passível de organização pelos efeitos do mito —a multidão se transforma em massa. A polarização é a manifestação concreta da dinâmica política; 4. A ―sociedade civil‖ é mobilizável. O plebiscito é o meio, por excelência, desta mobilização; 5. O modelo institucional que se deduz dessa aproximação sociológica é o de um Estado antiliberal cujo perfil clássico é uma ditadura. A utilização da forma jurídica é igualmente antiliberal, como seu constitucionalismo, fundado no conceito de democracia substantiva; 6. A filosofia da história campiana é de natureza decadentista, não sendo estritamente elitista nem iluminista. A mobilização plebiscitária através do mito é o reconhecimento e a manutenção da irracionalidade inerente às sociedades de massas. A educação não pode estar, portanto, fundada em valores; 7. Estado e sociedade não são entidades distintas e, portanto, inexiste ―benevolência‖ do Estado para com uma sociedade cooperativa. O Leviatã de Campos, conseqüência do tipo de sociedade de massas, funciona através de uma democracia antiliberal, do mito do César. A análise dos argumentos de Campos sobre as transformações políticas do início do século XX e suas conexões diretas com a necessidade de crítica dos fundamentos e do sistema político do liberalismo, faz vislumbrar uma proximidade intelectual com alguns conceitos-chave do pensamento conservador europeu, já presentes em seu texto de 1914. Mais especificamente, o próprio diagnóstico que Schmitt desenvolve, ainda na década de 20, acerca das limitações e aporias do modelo político liberal, está muito próximo daquele que Campos irá desembainhar às vésperas do golpe ditatorial de Getúlio Vargas. Já estando reconhecido como articulador central do Estado Novo, Campos fará uma avaliação da estrutura constitucional que dá amparo à situação política já esperada (para uma República em que a dúvida era a escolha entre integralismo ou autoritarismo, no combate à política liberal). 146 Autor exclusivo da Constituição de 1937, Campos tem em vista um Estado comandado pelo poder executivo, de inspiração teórica antiliberal.

146

Cf. IGLÉSIAS, Francisco. Trajetória política do Brasil: 1500-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 246 e ss.

157

Esta relação entre política e tempo definirá, pouco depois, as estratégias do próprio Francisco Campos como ator político de destaque no cenário nacional. Perceber que somente centralizando os meios de controle emocional das massas torna-se possível a direção do embate político levará à Atualidade de D. Quixote e à exortação a uma cruzada de caráter religioso. Apesar de improfícuo o resultado, em se tratando da política nacional dos anos 50, Campos realizava, decididamente, seu programa teórico dos anos 30. Embora a Atualidade de D. Quixote seja um texto posterior, explicita mais diretamente os fundamentos filosóficos de seu pensamento e se estabelece, sem solução de continuidade, em face de seus textos políticos da década de 30. Como em Schmitt, Campos tem um inimigo claro na atitude romântica, individualista, que o autor alemão identifica com o liberalismo político. A hamletização da política, nos moldes definidos pela interpretação de Schmitt, representa em Campos a permanência anacrônica de uma organização social delicada como o ―registro de voz de Ariel‖. Dada a eclosão das massas, de Caliban, o controle social e político deve passar, necessariamente, pela construção de uma dinâmica antiliberal, destituída da feminilidade do parlamentarismo e instrumentalizada pelas técnicas irracionalistas do mito soreliano. No que respeita à sintonia fina entre perspectiva teórica e atuação política, Campos colocar-se-á como mentor intelectual de um modelo de Estado não simplesmente autoritário, mas de um Estado antiliberal, plebiscitário e de massas. Embora todos esses autores e correntes tenham, efetivamente, colaborado com a conformação do Estado Novo como uma instituição de natureza política de caráter ditatorial, foram Francisco Campos e sua obra intelectual que deram origem aos caracteres que distinguiram o regime estadonovista de outras experiências da época. Nesse sentido, o Estado Novo, obra cuja estrutura político-constitucional está notoriamente ligada à ideação do autor, pretendeu ser mais que um Estado constituído nos moldes de uma ideologia do Estado autoritário. O Estado Novo se configurou, desde sua gênese, como um Estado constitucional antiliberal de massas, numa perspectiva que se esclarece conceitual e historicamente através do exemplo teórico e prático do próprio Brasil. Assim, mais do que um pensador que colabora, decisivamente, em sua perspectiva ―autoritária‖, Campos entra no cadinho ideológico que ajudou a formar o Estado Novo por conta de sua contribuição no

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perfil constitucional e na vocação para uma máquina de controle ideológico das massas que o regime de Vargas pretendeu ser.

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PARTE 3. CORPORATIVISMO E ESTADO NOVO

O antiliberalismo opõe-se ao romantismo político e constrói um modelo de ordem política cujo exemplo acabado encontra-se nas obras do jurista alemão Carl Schmitt. Como política de contenção do romantismo, ele pretende operar eliminando a metafísica romântica, isto é, combatendo o que percebe como a estetização do político. A conseqüente abstração (neutralização) do político redunda, segundo o modelo de análise antiliberal, na indecisão típica da Teoria do Estado liberal. O ‗eclipse‘ da soberania na teoria liberal corresponde à confiança cega e temerária na técnica. Em lugar da passividade característica do romantismo político, Schmitt proporá a recomposição do poder soberano e identificará na decisão judicial um modelo geneticamente ligado à soberania política. Assim sendo, a personalização do Estado viabiliza a eliminação da desordem social. A ordem social possível dentro dos moldes do antiliberalismo necessita de uma justificação, mas não a encontra no modelo democrático-representativo. A relação emocional e direta com as massas, a democracia plebiscitária, é o caminho que invalidaria, definitivamente, o modelo parlamentar da discussão. Assim, o liberalismo é separado definitivamente da democracia que o transforma em um conceito material que configura a identidade entre representante e representado. O Estado que surge é uma ditadura respaldada pela legitimidade do César e pela sua juridicidade intrínseca: não é limitada pelas normas, mas autorizada pelo direito. Este modelo de ordem, desenvolvido por Schmitt, é incorporado pelo constitucionalismo brasileiro, que encontra em Francisco Campos o seu mais acabado representante. Como um dos mais sofisticados críticos da 1ª República, Campos forma, inicialmente, a sua perspectiva teórica sob um conservadorismo vinculado à autoridade e à tradição, propondo a unificação do poder e a autoridade da lei como antídotos para a tendência anárquica e liberalizante da democracia. Nos anos 10 do século XX, Campos ainda estava imbuído do papel da autoridade dos juristas na missão civilizatória do Brasil. Como Alberto Torres, entendia só ser possível a aquisição do caráter nacional ―par haut‖, isto é, pela força do Estado politicamente unificado. Por outro lado, o símbolo de D. 160

Quixote em sua missão civilizatória de Sancho Pança indica, já na década de 40, a configuração teórica definitiva de um programa de coordenação emocional das massas. A modernidade representará, para o autor mineiro, a irracionalidade do espaço da política. A solidificação deste modelo interpretativo e a assunção estritamente antiliberal da sociedade contemporânea estão documentados em seu texto de 1935, quando o irracionalismo e a inconstância da contemporaneidade indicariam o anacronismo do fundamento intelectual da decisão política. Campos recupera o mito como motor da organização social e o César como exemplo, por excelência, da força mítica a operar na política. A ditadura consolida-se como o regime próprio das massas e Campos como um autor vinculado à tradição antiliberal especificamente schmittiana. Se em Campos o discurso antiliberal está plenamente configurado, distinguindo-se, inclusive, do autoritarismo construído pelo modelo de Lamounier, fica claro, no cotejo dos argumentos de Campos com a tradição brasileira classificada de autoritária, que os contrastes são marcantes. Existe, entretanto, uma linha de continuidade entre os autores do final do século XIX e começo do século XX com o pensamento campiano. Embora os diagnósticos sobre a realidade social brasileira sejam divergentes, há uma similaridade nos projetos de Estado e de Constituição. Nas próximas duas partes deste trabalho pretender-seá estabelecer o que foi incorporado das outras tradições ao modelo institucional estadonovista. Para tanto, será necessário examinar o positivismo castilhista —que operou a formação política de Getúlio Vargas—, e a sociologia corporativa de Oliveira Vianna. Em contraste com Campos, estas duas tradições exibirão uma doutrina política com visão de mundo não necessariamente marcada pela identificação de um inimigo (no caso de Campos, o liberalismo político e a dissolução da tradição). Se Campos esteve solidamente ancorado em uma tradição constitucional bem delimitada, e seus argumentos incorporam o antiliberalismo de Schmitt, a avaliação social realizada pelo castilhismo e por Oliveira Vianna tem, como referência, um conservadorismo encontrado na doutrina sociológica francesa e no pensamento político norte-americano. A configuração do Estado Novo como evento histórico derivado de um vocabulário conceitual antiliberal, incorporado pelos protagonistas do Estado Novo —e em especial por Francisco Campos—, não pode prescindir da delimitação teórico-doutrinária do próprio Getúlio Vargas. Ele foi o ator político que possibilitou a existência e que endossava in 161

totum o modelo de Estado —por tê-lo outorgado— derivado da Constituição produzida por Campos. Vargas, como gestor máximo do Estado Novo, representa a presença da percepção positivista da ordem social interpretada por Júlio de Castilhos a partir da doutrina de Augusto Comte —e materializada na Constituição de Rio Grande do Sul, de 1891— na definição das características gerais do regime. 1 Se, por um lado, Francisco Campos deu forma jurídica à Constituição partindo de princípios jurídico-constitucionais antiliberais configurados por uma tradição que se cristalizaria na obra de Carl Schmitt, a identidade entre a Carta de 10 de novembro e o modelo de Estado idealizado pelo castilhismo é derivada do próprio conjunto de valores jurídico-políticos de Vargas. Um problema enfrentado na exegese do tema é que o castilhismo nunca se consolidou como doutrina acabada, com um conjunto de textos que representasse as diretrizes e as características fundamentais do pensamento de Julio de Castilhos e porque nem se pode ler os vários escritos de Vargas como uma expressão pura e direta de uma eventualmente delimitada doutrina castilhista. Pode-se dizer, inclusive, que a atividade política de Vargas só representou de forma parcial a continuidade política do castilhismo no Rio Grande do Sul por ter substituído, no Governo Estadual, Borges de Medeiros em 1928. Não obstante, a ascensão política para o palco nacional, na década de 30, trouxe a Vargas a necessidade de uma releitura, de uma adaptação do seu modelo ideal de dinâmica institucional aos influxos de problemas diferenciados, mais complexos, referentes à necessidade de integração nacional, que se lhe foram colocados na ocasião. De qualquer forma, não é impossível compreender alguns elementos fortes do desenho Constitucional do Estado Novo, especialmente a reconfiguração da divisão de poderes, o papel preponderante do Executivo, a pouca expressão da representação através de eleições e a idéia geral de moralização do Estado sem que se remeta a uma de suas fontes nacionais mais expressivas na 1.ª República, o castilhismo.

1

Esta uma parte incontestável da tese de Ricardo Vélez Rodrigues, defendida como dissertação de mestrado em 1973, presente no livro Castilhismo: uma filosofia da República (1980), revisto e ampliado em 2000. Cf. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Castilhismo: uma filosofia da república. Brasília: Senado Federal, 2000. Ver a seguir.

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6. A ORIGEM REMOTA DO ESTADO NOVO: POSITIVISMO CASTILHISTA

Em 1925, ante as contestações veementes de adversários como Assis Brasil, o regime castilhista, então representado pelo Governador do Rio Grande do Sul Borges de Medeiros, necessitava de uma nova manifestação pública de apoio. Dirigindo-se para o seu 5º mandato, Medeiros estava sofrendo a segunda grande vaga de acusações contra o que se dizia ser um regime ditatorial e corrupto. Ainda no começo da primeira década do século, no Congresso Nacional, os deputados gaúchos se viram obrigados a utilizar, amplamente, a doutrina política norte-americana para defender o regime castilhista. Acusados, já naquele período, pela oposição comandada por Assis Brasil, os partidários da doutrina castilhista deveriam provar —e o fizeram com sucesso— a vinculação da Constituição promulgada por Júlio de Castilhos com os princípios liberais da Constituição Federal Republicana. Mais de quinze anos depois, o herdeiro de Castilhos recorreria ao cearense Raimundo de Monte Arraes para redigir o que seria o último livro de divulgação e defesa oficial da doutrina inspirada na sociologia de Augusto Comte. É unanimidade que, mesmo levando em conta o livro de Raimundo de Monte Arraes, O Rio Grande do Sul e as suas Instituições Governamentais (1925), encomendado, portanto, para justificar as seguidas reeleições de Medeiros, os únicos documentos que de alguma forma indicam os fundamentos básicos do pensamento castilhista são a Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul, de 14 de julho de 1891, sua legislação complementar e os comentários realizados pelo jurista gaúcho Joaquim Luís

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Osório, em Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul: comentário (1911).2 Na verdade, esse texto de Osório não é um livro tradicional de comentários, mas uma compilação dos argumentos centrais dos integrantes do Partido Republicano, em especial de Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Germano Hasslocher e Possidônio Cunha, para citar os parlamentares mais expressivos e com discursos tecnicamente vinculados à tradição jurídica anglo-saxã ou francesa. O tom geral desse ―comentário‖ é oficial e tem, como objetivo declarado, provar que o autor da Constituição, Júlio de Castilhos, seria ―o estadista máximo da República‖. O livro não deixa, entretanto, de levantar questões profundas relativas à fundamentação principiológica da Constituição, a maioria derivada dos longos trechos dos debates e discursos transcritos. Já a Constituição do Rio Grande do Sul, inteiramente redigida por Castilhos, representa um modelo de organização política preocupado, especialmente, com a moralidade da gestão pública —a busca pelo ―bem público‖— que necessita, conseqüentemente, tratar a administração do Estado a partir de critérios tidos como científicos —diminuindo a força das instituições de natureza políticorepresentativa, como o parlamento—, a cargo de um governante caracterizado primordialmente pela ―imaculada pureza de intenções‖.3 De qualquer sorte, estava marcada a idéia centralizadora como elemento fundamental da institucionalização constitucional do castilhismo, como se depreende do folheto que justifica o monumento público a Castilhos no Rio Grande do Sul:

2

O livro de Antônio Augusto Borges de Medeiros, sucessor de Júlio de Castilhos no governo do Rio Grande do Sul, que ficou no poder por quase 30 anos, cedendo sua reeleição ao cargo de governador de Estado a Getúlio Vargas, em 1928, é exceção. A obra é, aparentemente, um rompimento com o castilhismo e uma recepção do liberalismo democrata de Hans Kelsen, mas que indica uma proposta de reconfiguração do poder político com o escopo de centralizá-lo no que denominaria poder moderador. Esse livro, O Poder moderador na República Presidencial (1933), não deixa de ser, segundo Paim, um documento onde os princípios castilhistas revelam-se incontestes. Cf. PAIM, Antônio. Prefácio. In: MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. O Poder moderador na República Presidencial. Fac-símile. Brasília: Senado Federal, 2004 (1933), pp.XI-XVIII. Cf. PAIM, Antônio. Introdução. In: ARRAES, Raimundo de Monte. O Rio Grande do Sul e as suas instituições governamentais. Introdução de Antônio Paim. Brasília: Câmara dos Deputados/Editora da Universidade de Brasília, 1981 (1925), pp. 3-14, p. 10. OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul: comentário. Brasília: Câmara dos Deputados, Editora da Universidade de Brasília, 1982 (1911 a 1ª e 1923 a 2ª edição, com Apreciação geral por Borges de Medeiros). Na verdade, poucos são os ―comentários‖ realizados livremente por Osório. Quando isso acontece, a remissão indireta é feita aos administrativistas ou constitucionalistas mais relevantes da época, como a do Ministro do Supremo Tribunal Federal, João Barbalho Uchoa Cavalcanti, responsável, este sim, por um dos mais interessantes comentários à Constituição da República de 1891. Nesse sentido, CAVALCANTI, João Barbalho Uchoa. Constituição Federal Brasileira: comentários. Brasília: Senado Federal, 2002 (1902), (Edição Fac-símile). 3 PAIM, Antônio. Introdução. In: RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Castilhismo: uma filosofia da república. Brasília: Senado Federal, 2000, pp. 28., p. 24.

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O governo acha-se, em virtude de tais disposições, investido de uma grande soma de poderes, de acordo com o regime republicano, de plena confiança e inteira responsabilidade, o que permite-lhe realizar a conciliação da força com a liberdade e a ordem, conforme as aspirações e os exemplos dos Danton, dos Hobbes e dos Fredericos.4 Em oposição a esses fundamentos básicos —que remetem, inclusive, a uma complexidade ideológica do movimento vinculado aos grandes arquétipos de centralização política—, a configuração questionável do processo eleitoral, a centralização da função legislativa pelo presidente e a permanência no poder do Partido Republicano em geral e de Borges de Medeiros em particular, por vários e sucessivos mandatos, podem indicar o grau de oposição política sofrida pelo regime, especialmente aquela que pretendia confrontar a Constituição castilhista com a Constituição Federal Republicana. 5 Por outro lado, a permanência demonstra, igualmente, o sucesso do castilhismo como uma ―filosofia política‖ orientadora da prática política de gerações, como sustenta Ricardo Vélez Rodríguez no seu Castilhismo: uma filosofia da República (1980).6 O castilhismo pode ser considerado uma filosofia política ou uma doutrina na medida em que ele se orientava por princípios cardeais e indicava, como derivação, um sistema de governo definido. Seus princípios podem ser assim resumidos: a) a virtude como fundamento e finalidade da atividade política, manifesta através da ―pureza das intenções‖ do governante; b) a conseqüente construção da res pública vista como a realização concreta da virtude do governante; c) a autoridade do Estado organizada para tutelar a sociedade de forma moralizadora.7 Em relação aos princípios-guia do castilhismo, poder-se-ia indicar os pontos nodais que sustentavam um determinado sistema de governo, caracterizado, então: a) pelo reconhecimento da influência da sociologia positiva sobre a política, ou seja, pela pretensão de cientificidade do modelo de Estado proposto; b) por uma espécie de antiliberalismo institucional, isto é, a percepção da política de conciliação nos moldes liberais, realizada pela oposição (federalistas gaúchos), como deletéria; c) pela necessidade de burocratizar a máquina pública; d) pela idéia de ordem e de estabilidade social como fundamento da 4

RIO GRANDE DO SUL. Monumento a Júlio de Castilhos. In: PAIM, Antônio. A Querela do estatismo. Brasília: Editora do Senado Federal, 1998, pp. 87-8. 5 A melhor abordagem histórica e a mais documentada sobre os anos de castilhismo em particular e do regionalismo no Rio Grande do Sul, é o livro de LOVE, Joseph. O Regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 30. Tradução de Adalberto Marson. São Paulo: Perspectiva, 1975 (1971). 6 Cf. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Castilhismo, p. 23. 7 Até aqui, Cf. PAIM, Antônio. Introdução. In: RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Castilhismo, p.17.

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continuidade no poder e, e) pela recepção formal e parcimoniosa da idéia de representação, acarretando conseqüente desdém à obediência das regras do mecanismo eleitoral. A virtude, evocada por Castilhos, fundamenta organização moral da sociedade. O político gaúcho considera que a desordem social deriva da desordem individual, o que gera a necessidade de a virtude cívica comandar, tanto a formação dos líderes como a da república,8 o que trai tanto uma contraposição direta ao individualismo liberal quanto o reconhecimento de que a sua institucionalização, no Brasil, não permitiu o desenvolvimento das potencialidades inerentes à forma política liberal, gerando um Estado ou um modo de organização do Estado de natureza debilitada. Assim, o antiliberalismo que transparece em momentos pontuais do discurso castilhista é menos fundamento e mais contraposição política concreta aos adversários políticos históricos, os federalistas (liberais), é menos crítica metafísica aos princípios liberais —na chave da crítica schmittiana ao romantismo político— que uma crítica à institucionalização idealizada de princípios que não se coadunariam com a realidade política brasileira. A Constituição de 14 de Julho estabeleceu-se, como sustenta Helgio Trindade, no texto A “Ditadura republicana” no Rio Grande do Sul: positivismo e prática política no Brasil (1990), como derivação de uma leitura do positivismo comteano que foi mais política do que propriamente filosófico-religiosa. O projeto político de Castilhos, através da Constituição do Rio Grande do Sul, teve como objetivos a formação de uma ordem política antiliberal e de uma ―modernização conservadora‖ —a partir dos elementos institucionais e ideológicos vinculados à prática política do regime—, que irão se contrapor diretamente à nova classe dirigente que ascende ao poder com a República. 9 A Constituição castilhista tem, como característica principal, a concentração de poderes (nela chamados de órgãos) no Executivo e a redução drástica da abrangência e competência legislativas da Assembléia dos Representantes, que passa a ter o papel de fiscal orçamentária do poder central. Contendo diferenças estruturais relevantes em relação à Constituição da República promulgada em 24 de fevereiro de 1891, a Constituição do Rio 8

Cf. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Castilhismo, p. 107. Cf. TRINDADE, Helgio. La ―Dictature républicaine‖ au Rio Grande do Sul: positivisme et pratique politique au Brésil. In: Cahiers du Brésil Contemporain, 1990, n.º 12, 174 p. Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2005., 15 fs., fs. 4 e 10. O sentido do antiliberalismo no texto de Trindade não é o mesmo do antiliberalismo constitucional de Schmitt, mas aquele caro à tradição reacionária do século XIX. 9

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Grande do Sul é promulgada —segundo o mote positivista— ―em nome da Família, da Pátria e da Humanidade‖. 10 Apesar de conter elementos, em seu texto, que indicam a influência direta do positivismo, falta-lhe o peso de uma assembléia de caráter corporativo. Outra disjunção da Constituição gaúcha com a doutrina positivista é a renovação espiritual e moral que precede a transformação institucional. Para Castilhos, é o oposto, isto é, o Estado realiza o processo de moralização social através de seu exemplo, o que se contraporia diretamente a Comte.11 Talvez seja este o ponto principal de divergência entre o castilhismo e o comtismo. Para Antônio Paim, da mesma forma, Castilhos concebeu o novo sistema no plano puramente institucional, dispensando-se da fundamentação doutrinária correspondente, que se encontraria na obra de Comte. Primeiramente elaborou uma constituição Estadual inteiramente ao arrepio da Carta de 91. Nesse sistema, suprimiu-se o Parlamento. Ao executivo incumbia não apenas o governo, mas igualmente a elaboração das leis. Para distingui-lo de uma simples oligarquia, foram fixados em lei os crimes de responsabilidade do chefe de governo, e os procedimentos para julgá-lo, e formulado o Código da Magistratura. Com o propósito de tornar inatacável a honorabilidade do Executivo no tocante às questões financeiras, instituiu-se uma Assembléia, eleita por voto direto, incumbida de aprovar o Orçamento e receber as contas do governante. Para o desempenho de semelhante missão, reúne-se durante dois meses em cada exercício. A votação, para escolha de seus integrantes, efetiva-se mediante o voto a descoberto.12 Não cabe afirmar, portanto, que o castilhismo representou, tão somente, um desenvolvimento das oligarquias agrárias tradicionais do Rio Grande do Sul. Sua marca foi a tentativa de constituir o castilhismo como fundamento doutrinário de base filosóficocientífica para um grupo com claro objetivo de distinguir-se dos que comandavam as demais entidades da federação, centrando-se especificamente na austeridade administrativa, edificada na idéia de moralização da política. Para Trindade é marcante, na prática política do castilhismo, a utilização de uma profunda reforma educacional que pretendia possibilitar

10

Cf. RIO GRANDE DO SUL. Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul, Decretada e Promulgada pelo Congresso Constituinte em 14 de julho de 1891. In: OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul, pp. 285-302. (Apêndice) 11 Cf. TRINDADE, Helgio. La ―Dictature républicaine‖ au Rio Grande do Sul: positivisme et pratique politique au Brésil, f. 9. 12 PAIM, Antônio. Apresentação. In: OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul: comentário. Brasília: Câmara dos Deputados, Editora da Universidade de Brasília, 1982 (1923), pp.3-5.

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a reprodução da cultura castilhista, o que denota o caráter jacobino de seu projeto. 13 Na verdade, é possível falar em uma pedagogia política do castilhismo, que representa a idéia da doutrina querendo penetrar no espírito do povo gaúcho a ponto de poder produzir uma identidade entre a moralidade do Estado e a moral social. O Estado, nesse sentido, ampliava suas funções de planificação política englobando o papel —fundamental para os castilhistas— de moralização do espaço público.

6.1 Comte e o positivismo de Castilhos

A proposta constitucional de Castilhos revelava uma ruptura com o modelo tradicional de organização política que servia, até então, de base para o federalismo que se solidificava através da Constituição Federal. No Título IV ―Garantias gerais de ordem e progresso do Estado‖, a Constituição gaúcha prevê, no art. 71, a liberdade religiosa, a monogamia como condição essencial à organização da família, a instituição de concurso para provimento dos cargos públicos, a livre manifestação do pensamento e de associação e a igualdade jurídica no acesso aos cargos públicos como algumas das garantias que se somam às definidas pela Constituição Federal. A vinculação doutrinária ao comtismo trouxe novas instituições que se incorporaram à Constituição Gaúcha. Talvez o exemplo mais relevante, para além das questões relativas à concentração de poder político, seja o gérmen da tradição trabalhista que situou o Rio Grande do Sul como modelo nacional para a reforma que se faria no Estado Novo, sob os auspícios de Vargas, Oliveira Vianna e outros. Curiosamente, acrescenta, em seu artigo 74, que ―Ficam supridas quaisquer distinções entre os funcionários públicos do quadro e os simples jornaleiros, estendendo-se a estes as vantagens que gozarem aqueles‖. 14 Ora, uma das vantagens que distinguiam funcionários públicos dos simples trabalhadores ―diaristas‖, era o direito à aposentadoria, que se 13

Cf. TRINDADE, Helgio. La ―Dictature républicaine‖ au Rio Grande do Sul: positivisme et pratique politique au Brésil, fs. 12-3. 14 RIO GRANDE DO SUL. Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul, Decretada e Promulgada pelo Congresso Constituinte em 14 de julho de 1891, p. 299.

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estendia, por este artigo, aos diaristas que estivessem trabalhando para o Estado. Segundo o Desembargador Florêncio de Abreu, Face ao art. 74 da Carta de 14 de julho, os trabalhadores ao serviço do Estado do Rio Grande do Sul passaram a gozar, desde logo, do benefício da aposentação, em caso de invalidez; posteriormente, enquanto vigorou a mesma Carta política, a faixa de benefícios aos obreiros foi, paralela e sucessivamente, se ampliando, à medida que melhorava, gradativamente, a situação dos funcionários públicos, tendo menção especial no decreto n. 2.342, de 14 de julho de 1919.15 Fica, no texto, demonstrada a recepção de ―um ponto relevante da doutrina comteana, que é o da incorporação do proletariado à Sociedade moderna, a cuja margem se achava ele apenas acampado‖, o primeiro reconhecimento legal de direitos do trabalhador numa constituição, antes mesmo da Constituição do México de 1917 e da Constituição de Weimar, de 1919.16 Se a Constituição gaúcha não incorporou o princípio corporativo na configuração da Assembléia dos Representantes, introduziu a proteção à indústria em seus artigos, atividade característica do estágio positivo da organização social moderna segundo Comte. Enquanto os gaúchos se filiavam à atribuição de garantias trabalhistas através da Constituição Estadual após o término da 1.ª Guerra Mundial, Borges de Medeiros, então Presidente do Rio Grande do Sul, fez valer a doutrina comteana no que respeitava à permanência da autonomia federativa, lutando contra a implementação de reformas trabalhistas de caráter nacional e pela realização regional do programa corporativo de Comte. Sustenta Joseph Love que ―Borges encarava uma legislação trabalhista nacional como uma infração aos direitos dos Estados, embora ele favorecesse com verdadeiro paternalismo comtiano, a implantação de medidas de indenização aos trabalhadores‖. De qualquer sorte, apesar de seu federalismo, os gaúchos aquiescem sobre a necessidade de ver asseguradas, ainda assim, medidas protetivas de caráter nacional. Não é por outro motivo, que não a mobilização dos gaúchos contra os paulistas que No projeto convertido em lei, a 15 de janeiro de 1919, prevaleceu a posição gaúcha: a primeira lei de indenização brasileira aos trabalhadores — bastante tímida —

15

ABREU, Florêncio de. Movimento positivista no Rio Grande do Sul. Separata da Revista das Academias de Letras, n.º 72, p. 8, Rio de Janeiro: 1958. Apud: LINS, Ivan. História do positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964, pp. 185-6. 16 Idem, p. 184.

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dispunha que os empregadores pagassem três anos de salário em caso de incapacidade total, qualquer que fosse a causa do acidente. 17 De fato, a preocupação com a organização social do trabalho é central, no castilhismo, e posteriormente no Estado Novo. Desde o Rio Grande do Sul de Júlio de Castilhos é possível notar, portanto, a clara influência da sociologia de Augusto Comte e sua proposta de organização política fundada numa sociocracia. Com efeito, nos Opúsculos de filosofia social (1819-1828), ele já defendia, como objetivo da política positiva, encaminhar a organização de certos interesses, favoráveis ―à marcha da civilização‖, a serem estratificados em classes sociais e reconhecidos por classes intermediárias. O estabelecimento de uma hierarquia social é o cerne de uma Teoria Geral do Governo: ―Todo o seu artifício consiste assim, em cada época, em regularizar essa hierarquia espontânea que se forma no interior da sociedade, de modo a atenuar, tanto quanto possível, a influência funesta da divisão do trabalho relativamente à sua influência útil‖. 18 O princípio geral do castilhismo, a moralidade pública, é outro elemento já presente em Comte, a partir do qual desenvolverá a sua idéia de ordem social. No ataque antiliberal à critica da divisão entre poderes temporal e espiritual, cita De Maistre para indicar a necessidade de um governo moral, ―imperiosamente reclamado pelo estado presente das nações civilizadas‖, que se caracterizaria pelo benefício de uma ação espiritual capaz de evitar males como a guerra, além de trazer a disciplina moral, em falta pela decadência da teologia. Em sociedades onde princípios gerais não moldam a compreensão universal de cada indivíduo, é característica a ―falta quase total de moral pública‖, ficando aquele à mercê de ambições particulares só detidas por circunstâncias exteriores. E, ―no meio de todo esse caos moral, o egoísmo puro torna-se naturalmente o único móvel bastante enérgico para dirigir a existência ativa‖. 19 Nesses termos, o autor francês pode ser visto, inclusive, como a fonte teórica da perspectiva antiliberal do castilhismo gaúcho, já que conduz à construção lógica de seu modelo de sociabilidade pela crítica do liberalismo, assim como fará Schmitt um século depois. Para Comte, o princípio espiritual do 17

LOVE, Joseph. O Regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 30, pp. 191-2. O perfil da questão trabalhista no Estado Novo, apesar de apontar para a necessidade política de evitar greves e lock-outs não deixa de estar vinculado à influência positivista sobre Vargas. 18 COMTE, Auguste. Opúsculos de filosofia social (1819-1828). Tradução de Ivan Lins e João Francisco de Souza. Introdução Sofia Beatriz Lins Peixoto. Porto Alegre/São Paulo: Editora Globo/Editora da Universidade de São Paulo, 1972, p. 41; pp. 198 e ss. 19 Idem, pp. 186-188.

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liberalismo é o ―dogma da liberdade ilimitada de consciência‖, cujo núcleo é evitar o estabelecimento de um sistema qualquer de idéias comuns que permita organizar a sociedade. Este princípio realiza a anarquia social: o ―dogma da soberania popular‖ é a manifestação propriamente política do dogma da soberania da razão individual, cuja legitimação pretendida se dá através da crítica à ―decadência do sistema feudal e teológico‖. Criado para negar o controle do Estado e qualquer ordem social governativa que dirija o homem para objetivos comuns, o dogma da soberania popular com base na razão individual ―[t]ende, portanto, para o desmembramento geral do corpo político, levando a confiar o poder às classes menos civilizadas‖. 20 Contra essa ―doutrina crítica revolucionária‖, Comte estabelece um programa de estudos e ação que denomina sistema de política positiva, de caráter sociológico, pelo fato de ―a determinação do sistema, segundo o qual a sociedade é hoje levada a se reorganizar, deve deduzir-se, quase totalmente, da observação do passado‖. Na doutrina que repercutirá no pensamento de todo o século XIX, Comte indica o contra-princípio —não crítico, mas reconstrutivo da ordem social— que permitirá o estabelecimento de uma ordem social regular e estável. Para o autor, é ―sem dúvida, pelo restabelecimento de uma ordem moral que deve necessariamente começar essa vasta operação, sendo a reorganização dos espíritos, ao mesmo tempo, mais urgente e estando mais amadurecida do que a regulamentação das relações sociais‖. 21 Esta vasta operação só deve iniciar quando as constituições fundadas na metafísica liberal não mais exercerem influência. É no momento histórico a devir, livre de mentalidades cerceadas pelo espírito destrutivo e anárquico da crítica não-orgânica, que a política positiva —fundada na observação— permitirá a reorganização social: É provável, todavia, que a disposição ainda muito pronunciada nos povos, de pedir imediatamente instituições, ou, em outros termos, de querer reconstruir o poder temporal antes do espiritual, será, a princípio, poderoso obstáculo à adoção dessa marcha natural, única eficaz. 22 A conseqüência da situação de atraso, gerada por uma pouco desenvolta força de disciplina moral nas sociedades contemporâneas, faz com que Comte afirme que ―quanto menos energia tiver o governo moral em uma sociedade, mais indispensável se tornará adquirir 20

Idem, pp. 60-1. Idem, pp. 106 e 189. 22 Idem, p. 189. 21

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intensidade o governo material a fim de impedir a completa decomposição do corpo social‖. A força passa a ser o único instrumento legítimo de interação social de que dispõe o governo ante o estado de ―anarquia‖ em que se encontra a sociedade. Quando o interesse privado prevalecer sobre qualquer disciplina moral, integradora, a força será a moeda de troca que o Estado deverá utilizar para seus atos se revestirem de eficácia. É uma situação ―felizmente momentânea, (...) durante a transição do sistema teológico e militar para o positivo e industrial‖, e necessária quando se rompe a marcha natural da reconstrução do poder espiritual. 23 Para fazer avançar sua percepção crítica da ordem política fundada sob o liberalismo, Comte vai propor uma ordem social definitiva, caracterizada pela hierarquização social e por uma estrutura política de natureza corporativa, características a serem absorvidas pelo ideário castilhista quase sem mediação, já que é pacífica e documentada a leitura direta de seus textos pelos líderes castilhistas mais importantes, como Borges de Medeiros e Getúlio Vargas. ―Em uma sociedade de trabalhadores‖ — portanto— ―tudo tende naturalmente para a ordem‖, especialmente quando esses trabalhadores se organizam, numa sociedade industrial, sob a direção dos chefes de artes e ofícios. 24 O Castilhismo, em sua recepção específica do comtismo, era antiliberal na medida em que lia com restrições a prática política e a configuração das instituições dos Federalistas rio-grandenses ou, em nível nacional, da política dos governadores, que acabou por estimular a corrupção endêmica dos governos estaduais. Essa demarcação tardia dos problemas do federalismo, realizada por Borges de Medeiros, consubstancia-se como crítica da forma em que se recebeu e se adaptou as instituições políticas norte-americanas (leia-se aqui crítica ao idealismo liberal de Ruy Barbosa). É uma aproximação que pode ser considerada derivação da crítica antiliberal castilhista originária —e, portanto, regional—, que se nacionaliza no projeto varguista desenvolvido no começo dos anos 30. Paradoxalmente, na descrição dos pontos cardeais que envolveram a legitimação política da Constituição do Rio Grande do Sul, a tradição liberal sempre seria evocada como um modelo adequado, mas para realidades distintas das realidades política e institucional

23 24

Idem, p. 191. Idem, p. 45.

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brasileiras, numa espécie de antecipação à critica do liberalismo brasileiro realizada no final dos anos 20 por Oliveira Vianna. 25 João Camillo de Oliveira Torres, no seu O Positivismo no Brasil (1957), é um dos autores que identifica, no posterior regime estadonovista, a presença ou a continuidade do positivismo em Vargas, pelo menos nas características fundamentais de sua Constituição — que compara também à de Júlio de Castilhos, indicando influência ou pelo menos semelhança— e em alguns princípios de natureza política. A forma como os deputados gaúchos defenderam a vinculação entre a Constituição do Rio Grande do Sul e a Constituição Republicana de 1891 não deixa margem de dúvida de que o realismo, presente na argumentação de expoentes como Germano Hasslocher, levantando bibliografia vinculada à tradição liberal para defender o ―presidencialismo puro‖ da Constituição gaúcha, não prescinde do caráter positivista que fundamentava aquela carta política. A idéia de Torres é que existe continuidade entre o positivismo gaúcho do Partido Republicano e a idéia de Constituição e de Estado no Vargas que articula o golpe de 1937. Seguindo esse raciocínio, levanta a hipótese de que Vargas seria o responsável pelos lineamentos gerais do regime e que Francisco Campos figuraria apenas como o articulista que lhes daria forma jurídica. 26 A tranqüila incorporação da idéia de república em um ideário de natureza ditatorial é o ponto chave. Não são muitas as ditaduras que fazem circular com desenvoltura a palavra república e muito menos permitem que ela represente a recuperação de uma tradição desvinculada do governo dito ―autoritário‖. Comparar a visão em chave positiva —por um governo de perfil centralizador— de um termo que evoca não a concentração de poder, mas o seu compartilhamento com o povo, se deve, segundo Torres, à origem positivista da perspectiva política de Vargas. Nesse sentido, a redescrição —a inversão de valor— dos conceitos de representação política e de opinião pública, operada pelos 25

Cf. VIANNA, Francisco José de Oliveira. O Idealismo da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Nacional, 1927, e MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. O Poder moderador na República Presidencial, op. cit. Ver abaixo. 26 Cf. TORRES, João Camillo de Oliveira. O Positivismo no Brasil. Petrópolis/Rio de Janeiro/São Paulo/Belo Horizonte: Vozes, 1957, p. 17. Presidencialismo puro é expressão de Pedro Vergara em conferência intitulada Júlio de Castilhos e Getúlio Vargas e indica a possibilidade infinita de reeleição do presidente da província, a escolha do vice pelo presidente, a ampliação da atividade legislativa do poder executivo, etc. (p. 148). Diz Torres: ―valeria considerar a influência positivista [da Constituição gaúcha]. Esta não se conseguiu negar. Conhecendo-se a formação do principal autor e cotejando-se a lei magna dos gaúchos e os projetos de Teixeira Mendes, fica patente a filiação.‖ Ver p. 148, n. 3 e p. 17.

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deputados gaúchos, também indica aqui, no contexto histórico da defesa da Constituição riograndense, uma certa antecipação às limitações que imporá Oliveira Vianna aos mesmos temas. Nesse sentido, aponta Paim que A peculiaridade do castilhismo reside, pois, na admissão de que a posse do poder político constitui a condição essencial e suficiente para educar a sociedade na busca do bem comum. O bem comum deixa de ser uma barganha entre interesses, sustentados por grupos sociais diversificados, e passa a ser considerado como objeto de saber, de ciência. 27 Paim considera normal, portanto, que a construção do bem comum seja simplesmente o resultado de uma barganha de interesses entre sujeitos atomizados, isto é, um epifenômeno resultante da mão invisível existente no mundo privado. Aparentemente não reconhece o fato de que o conceito envolve a existência do espaço público a partir do qual se estabelecem politicamente os critérios para a definição do que seja bem comum. No castilhismo, a representação de interesses deixa de fazer-se plural pela centralização da autoridade e deixa, como conseqüência, de ser liberal. O que se destaca, na avaliação de Paim, é que o conceito de representação política passa a figurar com conteúdo diverso do modelo de representação liberal. O antiliberalismo castilhista recusa a idéia de interesse, contrapondo-se ao modelo privado do liberalismo e recepcionando um certo republicanismo no que respeita à finalidade do Estado. Para o castilhismo, a representação política tem relação direta com a idéia de competência administrativa. A administração pública é percebida como um ministério cuja finalidade é prestar um serviço público à sociedade e revela a força moral de um governo com clara a necessidade, segundo a aplicação mais rigorosa da doutrina positivista, da separação entre os poderes espiritual e temporal. Ainda fiel àquela teoria, essa separação significava, para Castilhos, materializar a liberdade de ensino, ―intimamente ligada à liberdade das profissões, abolidos todos os iníquos e anárquicos privilégios escolásticos‖. Castilhos ligava a noção de bem comum claramente aos escritos de Comte, vendo na Constituição do seu Estado um exemplo a ser seguido pela nação, pois [à] sua avantajada organização política e às suas leis cujo influxo moral tende a dilatar-se constantemente, visto que realizam com justeza a harmonia permanente da autoridade com a liberdade, da ordem normal com as expansões do progresso 27

PAIM, Antônio. Introdução. In: ARRAES, Raimundo de Monte. O Rio Grande do Sul e as suas instituições governamentais, p. 13.

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bem regulado; ao seu governo, tolerante e enérgico, que tem sabido manter incólumes os interesses primordiais da comunhão rio-grandense; à sua administração exemplarmente proba, solícita e precavida, que se reflete na contínua prosperidade dos negócios estaduais em todos os ramos; a tudo acresce atualmente o belo conjunto de futurosos institutos de ensino superior, que surgiram e funcionarão livremente, isentos de perturbadoras intrusões do Estado, independente de vexatória tutela oficial, fora da estufa de subvenções orçamentárias, que além de ilegítimas, são humilhantes.28 Castilhos termina sua pequena carta de louvor à iniciativa privada que estimula o aparecimento de instituições de ensino superior com a saudação positivista ―Saúde e fraternidade‖. Demonstra, nesse texto, não só o domínio da doutrina positivista —o que o confirma como um leitor de Comte sem intermediários— como também a estreita vinculação dos institutos da Constituição gaúcha com essa origem teórica. É possível concluir que não se trata, exclusivamente, da questão educacional, que em Comte autoriza a intervenção do Estado somente nos níveis de formação básica do indivíduo. Transparece, igualmente, a relação entre progresso econômico da sociedade e natureza ativa do governo na produção da prosperidade, elemento fundamental na associação entre governo e sociedade numa leitura do estágio positivo da humanidade, segundo Comte. O relevante é a independência teórica dos positivistas republicanos gaúchos de qualquer coordenação doutrinária do positivismo vinda eventualmente de outras paragens. O castilhismo coloca-se, desta forma, como um fenômeno teoricamente original e independente do processo de recepção do positivismo no Brasil operado no Rio de Janeiro pelo Apostolado Positivista onde, no final do século XIX, um conjunto de intelectuais e profissionais liberais fundou uma associação, para o estudo e a promoção das idéias positivistas, que pretendia ter um apelo político. O rigor religioso e dogmático na defesa da interpretação de Comte e de Laffite fizeram com que o Apostolado nunca obtivesse uma adesão muito superior à meia centena de afiliados. Ainda assim, autores como Miguel Lemos e Teixeira Mendes foram responsáveis por uma movimentação política de relevo quando do advento da República, através da proposta de um projeto de Constituição apreciado pelo Congresso Nacional. Com uma sugestão que não admitia muitas

28

CASTILHOS, Júlio Prates de. Carta ao Diretor da Faculdade de Medicina e Farmácia. In: A Filosofia política positivista I. Apresentação por Celina Junqueira. Introdução por Antônio Paim. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica/Rio/Conselho Federal de Cultura/Editora Documentário, 1979 (Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro, vol. XIV), pp.24-26., p. 25-6.

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contestações ou acordos, os membros do Apostolado Positivista se distanciavam, claramente, do movimento político castilhista, consolidado no espaço político brasileiro. Nesse sentido, não é possível afirmar a vinculação entre o Projeto de Constituição do Apostolado Positivista do Rio de Janeiro, apresentado à constituinte federal, e a configuração normativa da Constituição castilhista. Isto acontece pelo fato de Castilhos não necessitar e nem aparentemente ter necessitado de intermediários para estabelecer-se como ator político formado por uma clara determinação ideológica que remonta aos tempos da Faculdade de Direito de São Paulo, onde ele, Borges de Medeiros, Lindolfo Collor e outros predecessores de Vargas estabelecerem o positivismo como norte doutrinário de suas aproximações com a política.

6.2 A Consolidação política da Constituição de 14 de Julho

O processo que consolidou a Constituição de 14 de julho de 1891 foi longo e tumultuado, sendo o projeto político do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) logo acusado de ditatorial e antidemocrático. As acusações vieram da província, mas igualmente do Congresso Nacional, onde foi necessário defender a vinculação normativa e principiológica entre as Constituições gaúcha e federal. Nesses termos, pode-se indicar precisamente o conjunto de críticas ao modelo de governo consignado pelos castilhistas. Assis Brasil, um opositor político ferrenho de Júlio de Castilhos desde a ocasião da Constituinte gaúcha, escreve, em 1908, um libelo —que é, na verdade, o discurso de fundação do Partido Republicano Democrático, uma dissidência do PRR—, acusando-o de perverter os princípios cardeais da democracia e criticando a justificação de uma Constituição de perfil ditatorial, circunstancial e sem fundamento. O autor revela uma característica básica da Constituição, ―concebida e decretada em previsão de tempos revoltos e difíceis, que, segundo a opinião do seu autor e de muitos outros republicanos

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ilustres, reclamava a concentração do poder nas mãos do chefe do governo‖. 29 Para responder ao estado de intranqüilidade pelo qual passava o Rio Grande do Sul bastava a utilização pura e simples do instituto liberal do estado de sítio em lugar de uma Constituição que, pretensamente, seria reformada quando a ameaça da revolta cessasse. Para Assis Brasil, o movimento castilhista só se desenvolveu, no Rio Grande do Sul, por conta da exacerbação do personalismo em detrimento do princípio democrático: quando Campos Salles e seus aliados vislumbraram a possibilidade da candidatura de Castilhos à Presidência da República o ―instinto de conservação‖, o medo de que sua doutrina fosse imposta para todo o país, os fez recuar. Opina sobre a Constituição de Castilhos, a fim de indicar o caráter não positivista —por negar as idéias de moderação e tolerância, que prega o comtismo, ―em relação aos elementos constituintes da sociedade‖— dizendo, ainda, que ouviu do próprio Castilhos que o projeto da Constituição ―tinha dois fins: o 1.º era criar um aparelho capaz de agüentar a onda opositora que começava a invadir; o 2.º era tapar a boca —uso a sua própria expressão— aos então dissidentes Republicanos‖. Ele concluiu afirmando que nesse Estado, ―em que o Poder Executivo —o Presidente do Estado— também exerce as funções do Legislativo e domina o Judiciário, não há regime constitucional. Não basta a declaração de o haver, desde que ela não corresponde à realidade‖. 30 Quando houve a necessidade de se defender perante o Congresso Nacional o caráter republicano da Constituição gaúcha, o deputado castilhista Germano Hasslocher cita Madison para argumentar que, se a Constituição preserva o caráter eletivo e temporário do governo, indica que a sua origem deriva ―da grande massa popular‖. Assim, ―todo governo que tiver essa origem e feitio é republicano‖. 31 Não há necessidade, continua, de estabelecer a divisão de poderes nos moldes ingleses para que o essencial republicanismo da Constituição assim configurada se estabeleça de forma indelével. Sustenta, a partir de Madison, que a doutrina da radical separação de poderes lida em Montesquieu é falsa, e ―que a verdadeira interpretação que deve ser dada à teoria do grande pensador francês é que 29

BRASIL, Assis. Dictadura, Parlamentarismo, Democracia. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro, Freitas Bastos, Spicer & CIA., 1927, p. 40. 30 Idem, pp. 56-7: ―Campos Salles e os maiores admiradores de Júlio de Castilhos na política nacional, digo — estremeceram de horror quando palparam a hipótese de ser ele sagrado primeiro magistrado da nação‖. Ver pp. 94, 92 e 102. 31 HASSLOCHER, Germano. Discurso na Câmara Federal, sessão de 8 de junho de 1907. In: OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul, p. 23.

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só a reunião de todos os poderes em uma só mão é condenável‖. Na verdade, no que respeita à configuração da Assembléia, Hasslocher argumenta que ―[o] que é essencial é que a faculdade de tributar e autorizar despesas pertença exclusivamente a um poder que não o Executivo, independente e separado deste. Esta sim é a função capital do Legislativo e nela está toda a sua força.‖. Citando publicistas alemães, franceses ou norte-americanos (Bluntschli, Korkunow, Duguit e Summer Maine, por exemplo) Hasslocher considera que a radicalização da teoria da separação de poderes não pode servir para desconsiderar o fato de que um executivo forte não significa um legislativo desprovido da função essencial de determinar o orçamento executável. 32 Está reproduzida a idéia castilhista de limitação do executivo no que for necessário para garantir a preservação da lisura e da parcimônia na gestão do erário público. Para Júlio de Castilhos, a questão diz respeito à obediência ao princípio federativo da Constituição Federal, e não à sua forma na composição de poderes: no verdadeiro regime da República federativa não deviam os Estados ser coagidos a reproduzir automaticamente o modo de funcionarem os órgãos do governo federal, mas, sim, que deviam ficar simplesmente obrigados a ―respeitar os princípios constitucionais da União‖, isto é, o sistema republicano federativo, cujas supremas condições ou caracteres essenciais não envolvem, direta ou indiretamente, a exigência da modalidade concernente à denominada divisão dos três poderes.33 De fato, o ataque dos federalistas à Constituição gaúcha —que gerou a impugnação de diversos artigos no Congresso Constituinte— devia-se, dentre outros pontos, ao estabelecido no art. 6º,34 em que fica muito claro o não reconhecimento do princípio central da Constituição Federal de 1891 da divisão e harmonia dos poderes. O conceito de poder é substituído pelo de órgão (Presidência, Assembléia e Magistratura) componente de um único poder público. O fundamental, entretanto, é que em todo o debate travado —com as tradições inglesa, francesa, alemã e norte-americana mobilizadas na defesa enfática da Constituição riograndense, em detrimento de uma vinculação discursiva sub-reptícia a Comte— o caráter republicano não se elimina da Constituição assumidamente autoritária

32

Idem, pp. 73, 77 e ss. CASTILHOS, Júlio de. Manifesto ao Rio Grande do Sul. 20 de outubro de 1902. In: OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul, p. 87. 34 ―Art. 6º - O aparelho governativo tem por órgãos a Presidência do Estado, a Assembléia dos Representantes e a Magistratura, que funcionarão harmonicamente, sem prejuízo da independência que entre si devem guardar, na órbita da sua respectiva competência definida nesta Constituição.‖ Cf. RIO GRANDE DO SUL. Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul, Decretada e Promulgada pelo Congresso Constituinte em 14 de julho de 1891, p. 286. 33

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então defendida. É nesta direção que João Camillo de Oliveira Torres interpretará a conformação do Estado Novo como diretamente influenciada pela organização política de uma constituição que garante, ao chefe do executivo, a concentração das atividades mais caras ao governo do Estado, mas que afirma manter o caráter republicano. Conviria assinalar a ênfase com a qual se festejou o 50º aniversário da República. Um governo simplesmente antiliberal talvez não se sentisse à vontade para falar em república; os positivistas orgulhavam-se da palavra e a interpretavam segundo critérios muito pessoais e bem parecidos com o que vigorava depois de 10 de novembro. Convém registrar que o Estado Novo surgia, então, como a verdadeira realização da república, a continuação da obra de Deodoro, Benjamin e Floriano, encerrado o ―hiato‖ dos governos civis e antipositivistas. (...) Esse republicanismo ardente, associado à hostilidade às formas usuais de democracia era, de fato, a essência do positivismo político. E era visível em certos documentos do Estado Novo.35 Mas não é exclusivamente na concentração de funções do executivo que residiria a alegada vinculação entre a manifestação jurídica por excelência do castilhismo e o regime de seu mais destacado seguidor. Paralelo ao fato de que ―a suprema direção governamental e administrativa do Estado‖ estava sob a ―inteira responsabilidade‖ do Presidente, conforme preconizavam os Arts. 7º e 8º da Constituição do Rio Grande do Sul, já se apontava para a marcada característica da continuidade administrativa, através da ditatorial possibilidade da reeleição ―condicional e indefinida‖ —o Presidente pode ser reeleito ―se merecer o sufrágio de três quartas partes do eleitorado‖, segundo o art. 9º—, defendida desde sempre pelo próprio Júlio de Castilhos. 36 Argumentando que é ―uma visível anomalia a obrigatoriedade absoluta da substituição de um governante‖, especialmente quando ele justifica a permanência no cargo pela aprovação quase total de seus eleitores, pela competência administrativa, Júlio de Castilhos considera a reeleição uma condição substancial de um governo ―normal‖, configurando-se como ―exigência moralizadora‖, a oposição a esse axioma não passando de ―sofismas peculiares à metafísica democrática‖. 37 35

TORRES, João Camillo de Oliveira. O Positivismo no Brasil, pp. 17-8. Cf. OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul, pp. 86 e ss. 37 Para Castilhos, os princípios republicanos que devem ser respeitados na composição constitucional dos Estados, e que de nenhuma forma barram a possibilidade da reeleição, ―não são outros senão: 1º. a forma federativa presidencial; 2º. o regime representativo mediante o voto popular e a representação política; 3º. a temporariedade das funções políticas; 4º. a eletividade dos presidentes e dos membros das legislaturas; 5º. a responsabilidade política e civil dos membros e agentes do Poder Executivo; 6º. a declaração de direito ou as garantias de ordem e progresso.‖ CASTILHOS, Júlio de. Manifesto ao Rio Grande do Sul. 20 de outubro de 1902. In: OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul, pp. 87-91. 36

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Um ponto fundamental de alegada identidade entre a estrutura constitucional do castilhismo e o Estado Novo é a capacidade ampliada de produção legislativa do Poder executivo na Constituição do Rio Grande do Sul. O fundamento principal desse deslocamento era a avaliação negativa do governo parlamentar, especialmente no que respeita à alegada impossibilidade de debelar as crises políticas e sociais, pela substituição constante de seus agentes, pela incapacidade de gerir os negócios públicos ou, enfim, pela pressão constante dos parlamentares sobre o poder executivo, dificultando a operacionalização da máquina administrativa, conforme anota em discurso outro deputado gaúcho, Possidônio Cunha. Além disso, a dinâmica interna do parlamento configurar-se-ia, sempre, como um duelo vazio, uma encenação de resultados práticos pouco expressivos, onde qualquer novidade benéfica ao governo da coisa pública deriva da ―influência de uma figura culminante, que submete a si o rebanho das mediocridades que a cercam.‖. 38 A essa visão negativa da capacidade legislativa do parlamento opõe-se o entendimento de que o poder executivo, na dinâmica determinada pela Constituição em seus artigos 31 e 32, dispõe de um complexo mecanismo de chancela pública envolvendo os mais diversos atores políticos no processo de promulgação, o que garantiria à atividade legislativa não ser uma função ditatorial do Presidente. 39 Ocorre que este mesmo processo era controlado diretamente pelo executivo, que detinha a prerrogativa de indicar todos os cargos políticos capazes de obstar ou mesmo opinar sobre a confecção legislativa. Além disso, segundo o art. 34 as medidas de natureza administrativa seriam decretadas pelo Presidente sem que fosse necessária a observância do processo legislativo. Na prática, o Presidente da província detinha a exclusividade de decidir o que deveria ser considerado o direito no Rio Grande do 38

OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul, pp. 158-9. ―Art. 31- Ao presidente do Estado compete a promulgação das leis, conforme dispõe o n.º.1 do art. 20. // Art. 32- Antes de promulgar uma lei qualquer, salvo o caso a que se refere o art. 33, o presidente fará publicar com a maior amplitude o respectivo projeto acompanhado de uma detalhada exposição de motivos. // §1º.- O projeto e a exposição serão enviados diretamente aos intendentes municipais, que lhes darão a possível publicidade nos respectivos municípios. // §2º- Após o decurso de três meses, contados do dia em que o projeto for publicado na sede do governo, serão transmitidos ao presidente, pelas autoridades locais, todas as emendas e observações que forem formuladas por qualquer cidadão habitante do Estado. // §3º.- Examinando cuidadosamente essas emendas e observações, o presidente mantém inalterável o projeto, ou modificá-lo-á de acordo com as que julgar procedentes. // §4º.- Em ambos os casos do parágrafo antecedente, será o projeto, mediante promulgação, convertido em lei do Estado, a qual será revogada se a maioria dos conselhos municipais representar contra ela ao presidente.‖. Cf. RIO GRANDE DO SUL. Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul, Decretada e Promulgada pelo Congresso Constituinte em 14 de julho de 1891. In: OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul, pp. 285-302. (Apêndice) 39

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Sul. Assim, só soaria paradoxal a afirmação de Osório, para quem ―a autoridade do presidente está sempre sujeita ao império das leis que ele promulga e às quais deve obediência‖, se não fosse considerado que a soberania, pela Constituição gaúcha, implica um modelo de representação nos moldes hobbesianos, quando a lei se realiza como um comando do soberano, ―como a palavra daquele que tem direito de mando sobre outros‖. 40

6.3 Ditadura positivista e Estado Novo

O arranjo jurídico da Constituição do Rio Grande do Sul permite que ela seja considerada o fundamento de uma ditadura constitucional, tanto pelo fato de os governos castilhistas se arvorarem a realizar um modelo científico de administração pública, impossível de ser racionalmente questionado, como porque a classificação de ditadura constitucional era a leitura que faziam os adversários políticos imediatos do PRR. leitura corroborada por Comte, que valora positivamente o conceito. O termo ditadura positiva, em Comte, sempre esteve, no Brasil, marcado pela intervenção dos positivistas do Apostolado carioca que descreviam-na como um elemento a mais na composição conceitual da obra do autor francês. Uma outra manifestação contra o tema foi a aproximação realizada pelos adversários do castilhismo, notadamente por Assis Brasil, em 1908. O castilhismo foi visto como uma orientação política personalista e tirânica. É em Comte, portanto, que reside o núcleo da discussão sobre a configuração estrutural do Estado castilhista. O problema que se coloca é se o castilhismo, ao assumir a sociocracia comteana como tipo de Estado, incorpora todos os elementos do modelo de ditadura positiva, especialmente o modo de desenvolvimento político-econômico subjacente à dinâmica de governo. De fato, no seu Sistema de Política Positiva ou Tratado de sociologia instituindo a religião da humanidade (1851-1881), Comte indica que um sistema político pode ser governado exclusivamente pela imperatividade da força material. Se regras de convivência são de fato impostas, ―ditadas‖ pelo governante, todas as formas de governo são, em 40

OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul, p. 117; HOBBES, Thomas. Leviathan, Cap. XV, p. 217.

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verdade, ditatoriais, interpretação que indica um sentido para a ordenação social: o progresso pela industrialização e a ordem pela unidade social natural, que desponta no estágio da política positiva. Divide a evolução da instituição ditatorial em duas fases. Uma, que se poderia chamar de remota ou de sentido positivo, é a derivada da história romana, onde um sistema jurídico específico autorizava, para a segurança do Estado, a concentração de poder político, a suspensão da ordem jurídica e sua transmissão mediante aprovação pública, a ―sucessão sociocrática‖. A segunda fase está vinculada aos acontecimentos históricos que derivam das revoluções burguesas na Europa, onde os progressos do corpo social transcendem a influência dos ditadores, que continuam a carecer da aprovação social para permanecerem ditando a ―fortuna nacional‖. O problema é que, sob a necessidade do desenvolvimento sistemático da economia industrial, o tipo de governo originariamente ligado ao dos chefes de natureza militar não está mais adequado aos novos tempos. Assim, a constituição política da sociedade, vinculada anteriormente a um estabelecimento pela força, une-se à riqueza, característica do tempo industrial, 41 o que não implica dizer que a ditadura não seja historicamente relevante nem tenha um caráter intrinsecamente positivo, mas que o desenvolvimento natural da humanidade em direção à ordem e ao progresso prescinde de um modelo de organização política em que o processo de representação não passe pela manifestação organizada e coletiva das classes. Para Comte, o processo histórico de consolidação da sociedade industrial no Ocidente obedece a inflexões especiais que determinam o desenvolvimento específico de formas de governo, especialmente na Europa. Ele argumenta que o diagnóstico do atraso dos países vinculados ao tipo de governo retrógrado, ditatorial militar, é fulminante. Fazendo a distinção entre os desenvolvimentos econômico-políticos da Espanha, da Inglaterra e da França, indica que o modelo de trabalho, observado na colonização espanhola é, no fundo, de natureza degradante, pois que vinculado à conquista. Sustenta que A colonização ibérica tornou-se tão sistemática que se constituiu imediatamente em um elemento indispensável da política retrograda. Forneceu-lhe não somente recursos materiais, mas sobretudo uma diversão moral e mental que, distante da metrópole, dispersou as individualidades pouco disciplináveis. Pelo contrário, as colônias britânicas emanaram essencialmente das livres expedições, das quais os

41

Cf. COMTE, Auguste. Système de politique positive ou Traité de sociologie instituant la religion de l'humanité. Osnabrück : Otto Zeller, 1967 (1851-1881). Tome troisième, pp. 573 e ss e p. 394.

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fundadores privados, longe de sofrer o impulso ditatorial, fugiam freqüentemente à perseguição política ou religiosa. 42 Se a Espanha se adianta um século à Inglaterra e à França na dinâmica colonial, isso reverter-se-á em prejuízo, pois não há possibilidade de renúncia da supremacia espiritual de uma ditadura retrógrada (ou pré-moderna) cujo progresso depende exata e exclusivamente do concurso de uma ditadura nesses moldes. Na situação dos países colonizadores de modelo moderno e protestante, pois, segundo a avaliação comteana, a natureza do processo sustenta o desenvolvimento de uma sociedade onde a liberdade de discussão inaugura o modelo de ditadura republicana moderna. É o caso histórico da Inglaterra de Cromwell, primeiro a perceber a necessidade de um sistema político tendente à ―sociocracia final‖ de Comte. Para Joseph Love, no livro O Regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 30 (1971), Júlio de Castilhos foi um realizador fiel da doutrina política de Comte no que respeita à organização do governo e à sua conduta como líder, Castilhos extraiu de Comte a crença na forma de governo republicana e ditatorial: abraçou a fé de Comte pelo governo das classes conservadoras e defendeu fervorosamente a ordem como base do progresso social. ―Conservar melhorando‖ transformou-se no lema de Castilhos; em numerosas ocasiões, ele afirmou sua dívida teórica a Comte. Castilhos pode ser corretamente interpretado como um conservador, mas seu interesse pelos elementos progressistas do positivismo não era simples artifício; a filosofia social de Comte forneceu a Castilhos e a sua geração uma versão paternalista e altamente racionalista do liberalismo do século XIX. Em particular, Castilhos e outros positivistas adotaram do filósofo as idéias de defesa das liberdades individuais e a condenação da escravidão, e suas exigências quanto à separação entre a Igreja e o Estado, à educação primária universal e à intervenção estatal para proteger os operários industriais. 43 Definida a fonte doutrinária, fica clara a tendência natural da oposição ao castilhismo em classificá-lo como ditadura e mesmo a dos próprios castilhistas em se verem realizando uma ditadura científica, embora entre os dois lados, a valoração e mesmo a significação do termo tenha conotações distintas. É patente, no conceito comteano de ditadura republicana, a preocupação em realizar o bem público, numa dinâmica em que a

42 43

Idem, p. 575. LOVE, Joseph. O Regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 30, p. 39.

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participação política deve, necessariamente, manifestar-se.44 O que ocorre é que a Constituição de 14 de julho deu a Castilhos e sucessores um poder ditatorial de fato, só amainado pelo Tratado de Paz de Pedras Altas, de 1923, que pôs fim à guerra civil que se instalou no Estado contra o governo de Borges de Medeiros. Os pontos cardeais do Tratado, realizado com os partidários de Assis Brasil, indicam que, efetivamente, consolidava-se uma sistemática de perpetuação no poder pela via da hereditariedade sociocrática de Comte, em que os melhores quadros eram escolhidos para suceder o Presidente do Estado. As seis primeiras cláusulas, chanceladas pelo governo federal, determinam: PRIMEIRA – Reforma do Art. 9.º da Constituição, proibindo a reeleição do presidente para o período presidencial imediato. Idêntica disposição quanto aos intendentes. // SEGUNDA – Adaptação às eleições estaduais da legislação eleitoral federal. // TERCEIRA – Consignar no projeto de reforma judiciária uma disposição que conceda à justiça ordinária a atribuição de julgar os recursos referentes às eleições municipais. // QUARTA – As nomeações de intendentes provisórias serão sempre limitadas aos casos de completa acefalia administrativa, quando, em virtude de renúncia, morte, perda do cargo ou incapacidade física, ou por falta de eleição, não houve intendentes, vice-intendentes ou conselhos municipais. // QUINTA – Os intendentes provisórios procederão às eleições no prazo improrrogável de sessenta dias, a contar da data das respectivas nomeações. // SEXTA – O vice-presidente será eleito ao mesmo tempo e da mesma forma que o presidente. Se, no caso de vaga, por qualquer causa, o vice-presidente vier a suceder ao presidente antes de decorridos três anos do período presidencial, proceder-se-á à eleição dentro de sessenta dias. Idêntica disposição quanto aos vice-intendentes.45 Estas medidas indicam, em negativo, a intensidade da centralização política permitida juridicamente pela Constituição e exercida de fato pelo Presidente da Província. A cláusula constitucional que autorizava a reeleição, dogma castilhista da continuidade administrativa, é o ponto mais relevante da carta. Impediu o que seria a sexta reeleição de Borges de Medeiros e pôs fim a uma guerra civil que o opunha a Assis Brasil. Borges terminou seu mandato, mas teve que lutar, através da movimentação política de Getúlio Vargas na Câmara Federal, para evitar a intervenção federal no Estado. Esta luta se deu 44

Essa é, na verdade, a posição dos positivistas brasileiros, desde Teixeira Mendes e Miguel Lemos até seus seguidores contemporâneos. Ver, a título de exemplo, JUNIOR, João Ribeiro. Augusto Comte e o positivismo. Campinas: Edicamp, 2003, pp. 194 e ss. E LACERDA, Arthur Virmond de. A República positivista: teoria e ação no pensamento político de Augusto Comte. Paraná: Centro Positivista do Paraná, 1993, pp. 49 e ss. 45 TRATADO DE PAZ DE PEDRAS ALTAS. Rio Grande do Sul, 14 dez 1923. In: A Filosofia política positivista II. Apresentação por Celina Junqueira. Introdução por Antônio Paim. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica/Rio/Conselho Federal de Cultura/Editora Documentário, 1979 (Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro, vol. XV), pp.31-34., pp. 31-2.

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também no campo doutrinário. No momento em que tornou-se necessário defender a continuidade do castilhismo no Rio Grande do Sul, Raimundo de Monte Arraes é convidado por Borges de Medeiros a realizar uma defesa doutrinária do castilhismo como uma espécie de adaptação e renovação do sistema representativo.46 No livro já citado, O Rio Grande do Sul e as suas instituições governamentais (1925), Monte Arraes procura recuperar três momentos do ataque político à Constituição, em particular e ao regime castilhista em geral, os quais envolvem a questão da representatividade e da ―republicanidade‖ do governo, a problemática da divisão dos poderes segundo a Constituição de 14 de julho e a determinação das garantias constitucionais por ela delineadas.47 É possível afirmar que a obra em si é mais que um instrumento de propaganda. Sua qualidade se evidencia não pelo tom justificatório, mas pela capacidade em sintetizar os princípios castilhistas concernentes às instituições políticas fundamentais à realização da ordem e do progresso. Monte Arraes será vinculado, nos anos subseqüentes, não só à defesa do castilhismo, mas desenvolverá papel fundamental na consolidação política do Estado Novo, momento político para o qual, mais uma vez, servirá de ideólogo oficial ao analisar os pontos básicos da Constituição de 10 de novembro de 1937. Em sua contribuição político-doutrinária para a consolidação de Borges de Medeiros no Rio Grande do Sul, Monte Arraes intentará demonstrar que o princípio central a partir do qual o governante deve ser determinado, no momento da eleição, é a capacidade de ―bem servir ao interesse público‖. Utilizando-se basicamente da doutrina liberal inglesa e norte-americana —como os deputados gaúchos quando da primeira defesa do caráter republicano da Constituição gaúcha, ainda no começo da república—, afirma que a reeleição não equivale à hereditariedade (vitalícia por excelência) mas a uma estabilidade política, característica da própria Constituição Republicana dos Estados Unidos da América. Argumenta que as eleições sucessivas do presidente do Rio Grande do Sul em nada contrariam os propósitos e a finalidade da forma republicana, pois não responde à hereditariedade que ela aboliu, não ressuscita as classes privilegiadas enquistadas no seio das velhas monarquias, não viola a temporariedade adjeta à forma republicana, e nem sequer 46

Está é a segunda defesa nacional do Castilhismo, tendo a primeira se manifestado, quando da consolidação da Constituição Gaúcha no início dos 1900, perante a Assembléia Nacional. 47 Cf. ARRAES, Raimundo de Monte. O Rio Grande do Sul e as suas instituições governamentais, p. 17.

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chega à adoção da vitaliciedade — coisa, aliás, perfeitamente permitida dentro da constituição e do espírito do regime. 48 Para Monte Arraes, a reeleição sucessiva não macula o sistema representativo por estar prevista a realização de eleições periódicas, composta a massa eleitoral pelo conjunto da população apto a votar e porque não existe nenhum tipo de privilégio de classe na organização política do Estado. Ruy Barbosa, opositor direto do PRR, receberá, de Monte Arraes, um tratamento especial, por ser o mais proeminente defensor da doutrina liberal. 49 Para Monte Arraes, o regime representativo não é necessário ao estabelecimento da democracia e muito menos a divisão dos poderes à configuração de seu republicanismo: ―A tese inversa, sim, corresponde a um axioma: a existência dos poderes, órgãos da soberania, supõe a pré-existência do regime democrático, popular, representativo‖. A separação dos poderes é, para o autor, como uma norma simplesmente relativa ―e susceptível de grandes abrandamentos na sua aplicação‖.50 Em síntese, ao determinar que a separação não deve ser necessariamente de poderes, mas de funções; indicar que o presidente não tem a competência exclusiva de promulgar leis que dependem de aprovação dos Intendentes municipais; avaliar a independência da magistratura pelas garantias de inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade dos vencimentos; indicar a responsabilidade do presidente, etc., Monte Arraes só repetiu os argumentos a favor da Constituição do Rio Grande do Sul que já haviam sido esposados, nos primeiros anos do século, pelos representantes gaúchos na Câmara de Deputados. O importante é frisar que, para ele, a ―grandeza cívica‖ do Estado está diretamente relacionada com a riqueza de seu povo: ―[o] seu valor intelectual e moral se afere pelo brilho dos que o representam, política e socialmente, pela formação de uma verdadeira elite dirigente, que encabeça todos os domínios de sua administração (...)‖. A fórmula do sucesso político do povo gaúcho é a transmissão pacífica e constante do poder político entre

48

Idem, p. 46. Idem, pp. 34 e 59. Monte Arraes não perderá a oportunidade de realizar uma crítica à doutrina de Ruy, contra a percepção liberal desse autor, já que opõe a responsabilidade do governante à forma republicana, indicando a falsa junção entre ambos os elementos como uma característica dos governos liberais surgidos em oposição ao poderio do absolutismo. Em suma, uma crítica claramente antiliberal. (pp. 35-6). 50 Idem, pp. 60 e 75. 49

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uma elite burocrático-administrativa que representa o legado e a continuidade do castilhismo.51 A defesa do ethos castilhista não circulava somente pelas manifestações doutrinárias de seus defensores originais, mas principalmente pelos mais próximos descendentes políticos. A relação de Getúlio Vargas com a doutrina de Castilhos é tanto seu envolvimento direto em praticamente toda a história de ascensão do PRR no Rio Grande do Sul, passando pela sua formação positivista na Faculdade de Direito de Porto Alegre em 1907 —junto ao Bloco Acadêmico Castilhista, com João Neves da Fontoura, Firmino Paim Filho e Joaquim Maurício Cardoso—, quanto o papel central como Deputado pelo seu Estado na Câmara Federal, a partir do final de 1922. Por esta razão, cabe sustentar que a adesão ao positivismo, em Vargas, teve um caráter muito mais vinculado à constituição histórica de sua prática política que com sua particular absorção da doutrina de Comte, que leu, como leu Spencer, Darwin, Zola. 52 Essa prática política conserva, obviamente, os caracteres mais expressivos da tradição positivista-castilhista gaúcha, mas não se deixou enclausurar na ortodoxia doutrinária a ponto de permitir que sua personalidade fosse tragada pela inflexibilidade absoluta, como aconteceu com o próprio Castilhos. Muito pelo contrário, Vargas será considerado quase unanimemente, como um hábil conciliador, o que, em tese, o distanciaria de sua origem castilhista. 53 Ricardo Vélez Rodríguez aponta um fator importante para compreender a figura político-intelectual de Vargas na configuração do Estado Novo: a sua formação política, de caráter nacional, não se fez, exclusivamente, a partir do momento em que se torna Presidente do Rio Grande do Sul em 1928, mas especialmente durante seu mandato de Deputado, junto à Assembléia Nacional. 54 Como parlamentar, Vargas demonstrará que o horizonte originário do castilhismo haveria de ser suplantado pela aproximação com a sociologia dos discípulos de Le Play, especialmente Oliveira Vianna, cuja obra Populações meridionais do Brasil será efusivamente citada em discursos onde desenvolve a sua idéia de formação do Estado nacional. Para Vargas, a configuração sociológica do país obrigou-o 51

Idem, pp. 151-2. LOVE, Joseph. O Regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 30, pp. 233 e ss. 53 Idem, p. 235. 54 Cf. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Castilhismo, pp.229 e ss. O autor ressalta neste capítulo, intitulado ―Getúlio Vargas, parlamentar‖ alguns trechos que são especialmente esclarecedores. Os discursos aqui utilizados são os integrais, constantes nos Anais da Câmara dos Deputados. 52

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a organizar-se numa estrutura de Estados federativos, acostumados à autonomia. A Independência trouxe a necessidade política de centralização, que não passou —por conta, inclusive de seu sistema parlamentar deficiente e fraco ante o Poder Moderador e pela sua capacidade de absorver as autonomias regionais— de um ―regime artificial e transitório‖ que quebrantou ante a natural ―expansão dos foros regionais, reivindicando direitos, às vezes com armas na mão‖. 55 Justificando a assinatura do acordo político que havia posto fim às discussões parlamentares sobre a revisão da Constituição de 14 de julho, já num contexto em que o regime Republicano se encontrava consolidado, Vargas reforça a idéia de que o princípio fundamental que guiava a bancada gaúcha era o federalismo. A proteção do Estado — através da proteção a pontos básicos da constituição, como a limitada extensão da intervenção federal— significava a proteção de um ente e empecilho da federação e uma garantia contra a construção de um verdadeiro ―Estado unitário‖: ―Haviam estacado aí as tentativas intervencionistas que, se fossem além, poderiam desnaturar a federação consagrada pela República, como uma vitória definitiva de nossas aspirações liberais, refletidas na história e firmadas na força incoercível das próprias leis naturais‖. A destruição da autonomia dos Estados pelo cerceamento de direitos constitucionais conferidos, há décadas, pela República, era inadmissível. 56 Oliveira Viana, em 1925, faz perceber, pela avaliação sociológica da formação brasileira, que não há opção outra que não a defesa do federalismo contra as ingerências do poder político central, geralmente incapaz de fazer funcionar a máquina pública — organização do direito processual e da educação, por exemplo—

como os poderes

estaduais o fazem, e não —como sustenta Ricardo Vélez Rodríguez— , uma demonstração textual de que ―Getúlio descobriu (à luz da obra de Oliveira Vianna), no processo centralizador e unificador empreendido pelo Império, o modelo que ele próprio poria em execução anos mais tarde‖. Para Vargas, fazendo um uso não ortodoxo do ―arguto sociólogo‖, ―A federação implanta-se, entre nós, com caráter definitivo, por ser a única organização compatível com a vida orgânica do Brasil. Só a federação satisfaz à 55

Cf. VARGAS, Getúlio Dorneles. Discurso de 21 de outubro de 1925. In: BRASIL, Congresso Nacional. Diários da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1925, pp. 4699-4744. Fac-símile. Disponível em: . Acesso em: 23 set 2005, p. 4722. 56 Idem, pp. 4721-2.

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diversidade das nossas bases geográficas, das nossas tradições históricas, da nossa estrutura social‖.57 No texto não há como ligar as tendências notórias de Vargas em incorporar o perfil ditatorial do Rio Grande do Sul como organizado por Castilhos —e aqui os discursos parlamentares prestam-se, precisamente, à comprovação dessa idéia— à concepção de Estado nacional forte de Oliveira Vianna, que estaria sustentando uma saída em que a centralização determina o definhamento definitivo do federalismo executado pela 1.ª República. O Vargas castilhista não compartilha dos ideais de Oliveira Vianna, que torna central a configuração do Poder Moderador. Nesse momento, o unitarismo de Vianna opõese ao federalismo de Vargas. Porém, se a ligação entre o ator político gaúcho e o sociólogo fluminense não é próxima nesse momento, não deixará, no Estado Novo, de ser profunda. Talvez a citação valha como apontamento para o futuro, pois efetivamente Vargas sustenta: ―como bem observa Oliveira Vianna: ‗Não é possível nenhuma organização central forte em um país de base física vasta, de baixa densidão demográfica e de circulação rudimentar‘‖.58 Mas o contexto ainda é a federação. O problema é comprovar, historicamente, que a federação é o rumo do país na República e não que o Estado forte é possível antes de (ou para) o desenvolvimento do Brasil. Na verdade, é o modelo de Estado que se realiza estaticamente —através da Constituição— e na sua dinâmica —pela configuração de uma burocracia de caráter técnico-jurídico— o principal liame entre a visão política de Vargas e a percepção sociológica de Oliveira Vianna em seus prognósticos antiliberais. O modelo de Estado e de Constituição, Vargas os traz de casa. A visão política centralizadora também. Mas se Oliveira Vianna já aparece, para Vargas, à época, como o fundamento da interpretação do país, isto não ocorre por acaso. Quando tiver a necessidade de superar o desmantelamento da nação através da centralização do poder político é que Oliveira Vianna surge não somente como texto fundamental, mas igualmente como partícipe do Estado Novo.

57 58

Idem, p. 4723. Idem, p. 4722.

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7. OLIVEIRA VIANNA E O NOVO ESTADO CORPORATIVO

Com raízes no pensamento de Alberto Torres, influenciado por Le Play e em diálogo aberto com Spencer, Francisco José Oliveira Vianna (1883-1951) é o pensador que primeiro realizará uma densa avaliação sociológica da estrutura e da organização do Estado brasileiro, a partir dos anos 20, com o livro Populações meridionais no Brasil (1920), escrito ainda em 1918. Na configuração político-jurídica do Estado Novo é o responsável pela organização constitucional e execução (como consultor da Justiça do Trabalho no Governo provisório e como Ministro do Tribunal de Contas da União no Estado Novo) de um corporativismo cuja origem remota encontra-se em Durkheim (na sua análise das características de uma organização societária originalmente medieval, manifesta nas antigas corporações de ofício, chave hermenêutica das sociedades modernas).59 O modelo de Estado corporativo de Oliveira Vianna, cujo papel de representação política e de relação entre Estado e sociedade é realizado primordialmente pelo assento de representantes de classe junto aos órgãos do Estado —a representação classista sendo considerada inclusive mais legítima do que a representação parlamentar de cunho liberal— é o centro do trabalho intelectual desenvolvido pelo autor, e a base a partir da qual desenvolverá sua defesa do

59

Para Durkheim a sociedade política moderna é ―formada pela reunião mais ou menos considerável de grupos sociais secundários, submetidos a uma mesma autoridade, que por sua vez não depende de nenhuma autoridade superior regularmente constituída‖. A atenção do sociólogo francês volta-se para as organizações societais de natureza secundária (em sua maioria, de grupos profissionais distintos), que seriam ―a condição fundamental de toda organização mais elevada. Longe de estarem em oposição ao grupo social encarregado da autoridade soberana e que chamamos mais especialmente de Estado, é este que supõe sua existência; ele só existe onde eles existem.‖. DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia. Prefácio Hüseyin Nail Kubali. Introdução Georges Davy. Tradução Mônica Stähel. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 63-4. Para confirmar o corporativismo de Oliveira Vianna como geneticamente originado em Durkheim, posto que o autor brasileiro encontrava-se influenciado pela ciência social francesa (e esta, por sua vez, pelo autor das Lições de sociologia), ver VIANNA, Luiz Jorge Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos. In: BASTOS, Elide Rugai; MORAES, João Quartim de (Orgs.). O Pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Unicamp, 1993, pp. 351-404.

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Estado Novo, respectivamente nos livros Problemas de Direito Corporativo (1938) e O Idealismo da Constituição (1939), em 2ª edição.60 A análise sociológica de Oliveira Vianna importa na configuração dos fundamentos do Estado Novo por dar origem a um modelo de ordem política cujas características serão incorporadas à Constituição de 1937. Sua sociologia possibilitará identificar o paralelismo com o pensamento de Francisco Campos e a razão pela qual este último se torna o ―vencedor‖ na composição de um modelo político global a ser validado pelo regime estadonovista. Enquanto Campos sustentará, ainda nos anos 10 do século XX, um americanismo pelo alto, isto é, a idéia de uma sociedade material coordenada pelo Estado, Oliveira Vianna, nesta mesma década, perceberá, no Brasil, que a herança ibérica é positiva e que seu solidarismo intrínseco colabora na fixação de uma institucionalidade nos moldes anglo-saxões, muito mais do que as instituições que demandam uma opinião pública não existente. Contra o individualismo liberal —incapaz de se fixar como orientação cultural para um povo em atraso material—, Oliveira Vianna indica a matriz coorporativa como muito mais próxima do modelo de sociabilidade existente no país. No Estado Novo vencerá o americanismo de Campos, mas Oliveira Viana figurará como contraponto a ser considerado pelo caráter legitimador de sua proposta coorporativa ante a institucionalidade antiliberal. Desde seu texto O Idealismo na Constituição (1927), 1ª edição, Oliveira Vianna sustenta que a sociedade política brasileira carece de opinião pública ―organizada, arregimentada e militante‖ —com força moral suficiente para obrigar a classe política e aos detentores do poder a ouvi-la e considerá-la—61 o que leva a desconsiderar, junto à ausência do sentimento do interesse coletivo e à incapacidade de organização de classe, a 60

Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de Direito Corporativo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1938; VIANNA, Francisco José Oliveira. O Idealismo da Constituição. 2ª edição aumentada. São Paulo/Rio de Janeiro/Recife/Porto-Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939. (Série 5ª Bibliotheca Pedagógica Brasileira, Vol. 141). Este segundo livro é uma completa reescritura do livro homônimo publicado em 1924. Aqui, além da discussão sobre a constituição da opinião pública sob o regime parlamentar (comparando as limitações da organização política brasileira contrapondo-as à solidez da dinâmica política inglesa), Vianna organiza uma exposição sobre a história institucional brasileira, desde o império (―O primado do Poder Moderador‖), passando pela 1ª República (―O Primado do Poder Legislativo‖, originalmente o conteúdo da primeira edição) culminando, enquanto evolução histórica, no Estado Novo (―O Primado do Poder Executivo‖). Nas partes subseqüentes desenvolve sua tese do corporativismo aplicada à nova realidade política nacional, o que chama de idealismo (concreto e nacional, vinculado ao meio e à experiência social brasileira), opondo-a ao idealismo universal e racionalista do liberalismo. 61 VIANNA, Francisco José Oliveira. O Idealismo da Constituição. 1ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1927, pp. 43 e ss.

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possibilidade de um regime democrático parlamentar nos moldes anglo-saxões. A recepção, pela Constituição de 1891, do modelo de democracia parlamentar à inglesa foi a origem, para Oliveira Vianna, do reforço do localismo e do mandonismo durante a 1ª República. As oligarquias não são, para o Brasil interpretado pelo autor, um mal em si. É preciso, entretanto, orientá-las de maneira que escapem do unilateralismo e do exclusivismo por meio da constância segura e cogente de uma opinião pública que ainda inexiste. Fazem-se necessários interesses organizados politicamente por canais atuantes a fim de o próprio poder executivo escapar do imobilismo filial de uma sociedade silente e de um governo incapaz de moldar, com antecedência e meditação, um projeto de nação. A interação organizada entre opinião pública e poder político deveria forjar um governo que é o oposto do nosso ―governo das coteries politicantes‖. Está claro que é preciso um aperfeiçoamento que instaure uma opinião pública no país, objetivo irrealizável por uma simples reforma política. Ora —para o nosso caso, por exemplo— a verdade é que as reformas políticas, isto é, as reformas constitucionais, serão apenas auxiliares de outras reformas maiores, de caráter social e econômico, que deveremos realizar, se quisermos estabelecer aqui o ―regime democrático‖, o ―regime de opinião‖, o ―regime do governo do povo pelo povo‖. Pode-se dizer mesmo que o estabelecimento deste regime político em nosso povo é antes de tudo um problema social e econômico — e só secundariamente um problema político e constitucional. 62 Dentre as políticas capazes de implementar tal estado de coisas, Oliveira Vianna percebe imediatamente que o caminho da reforma política ―por cima‖, pela mudança pura e simples do sistema político, não é capaz de sustentar as instituições, numa realidade social completamente distinta —especialmente na sua constituição histórica— da sociedade anglo-saxã. É o caminho do ―velho idealismo dos ‗históricos‘‖ 63 e pontua, logo após seu diagnóstico, o das seguintes reformas de natureza econômica e social: o estabelecimento da ―pequena propriedade‖; um sistema de ―arrendamentos a longo prazo‖ ou um regime de caráter enfitêutico‖; a difusão do ―espírito 62

Idem, p. 64. Idem, pp. 67-8: ―Estes eram espíritos dedutivos, que partiam de certos postulados e deles extraiam os elementos estruturais do seu sistema político. Careciam do sentido objetivo da realidade e nem julgavam necessário possuí-lo. Tendo de organizar uma Constituição para o Brasil ou para o Camboja, para o povo inglês ou para um kraal da Hotentocia, criariam o mesmo sistema de governo, com as mesmas peças, as mesmas articulações, a mesma construtura, o mesmo modo de funcionamento, os mesmos freios, as mesmas válvulas de segurança: não lhe modificariam nada, não alterariam sequer o tamanho da cabeça de um parafuso — porque isto equivaleria a comprometer a ‗beleza do regime‘ ou quebrantar a ‗harmonia do sistema‘.‖ 63

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corporativo‖ e das ―instituições de solidariedade social‖; uma ―organização judiciária‖ expedita, pronta e eficaz; uma ―magistratura autônoma‖, com força moral e material para dominar o arbítrio dos mandões locais, etc. 64 Não basta organizar um sistema político de natureza autoritária para implantar —como se instrumento fosse— um regime de opinião pública no modelo anglo-saxão.65 Na verdade, desde Populações meridionais do Brasil (1920), Oliveira Vianna acredita na centralização do poder político no Império —obra de Bernardo de Vasconcelos e do Visconde do Uruguai— como a grande força centrípeta que conseguirá, pela constrição repressiva, libertar as províncias do caudilhismo e das oligarquias. 66 Esses fatores de ordem ―política e policial‖, cujo ápice será a função reguladora do poder pessoal do Imperador, cristalizou um parlamentarismo à brasileira, ―corrupção mais completa‖ do regime inglês, mas perfeitamente adaptado às necessidades de desmonte sistemático da política de clã e das facções regionalistas que tanto atormentaram o regime político imperial: ―absolutismo de fato sob a máscara vistosa do regime parlamentar‖. 67 Diferente do modelo parlamentar originário é o parlamento no Brasil, país que, com uma sociedade distinta, não permite a implantação ex nihilo de um sistema político alienígena sem distorções —uma estrutura institucional liberal calçada por um Estado funcionando repressivamente. Mas se o quadro doutrinário do liberalismo não se transplanta para o Brasil sem déficits e sem deformidades, outro problema demanda talvez maior atenção: a questão nacional. Como Francisco Campos, no texto de 1910, em que sustenta a oposição entre democracia liberal e unidade nacional, Oliveira Vianna compreende que consolidar o país depende da internalização, pelo povo, do ideal de nação e da construção de uma institucionalidade própria a partir deste princípio básico: O vasto quadro dos nossos poderes públicos nacionais, depois de 1822, não se forma, como se vê, sob a ação lenta e profunda de agentes históricos, que 64

Idem, pp. 65-6. É a tese de SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A Práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa. In: SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978, pp. 65-117. 66 Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. Populações meridionais do Brasil. In: VIANNA, Francisco José Oliveira. Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras. Introdução de Antônio Paim. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982, pp. 37-256., pp. 202-7. 67 Idem, pp. 221-5: ―Durante o meio século do seu reinado, ele [D. Pedro II] exerce, enfim, a mais nobre das ditaduras — aquela ‗ditadura da moralidade‘, de que fala um historiador [Oliveira Lima], e que é, sem dúvida, a mais poderosa força de retificação da moral, na ordem pública e privada, que jamais conheceu o nosso povo, desde o primeiro século cabralino‖. 65

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impusessem a sua criação e permanência como condição suprema de sobrevivência coletiva. Tal como se organiza, é, ao contrário, apenas a resultante de um grande ideal — o ideal de uma pequena minoria de grandes homens, com o espírito formado na contemplação das vastas edificações políticas européias, todos inspirados no alto desejo de fundarem, nesse recanto paradisíaco da América, ―um grande Império‖ — como os do Velho Mundo. No momento em que empreendermos o aparelhamento do nosso organismo político, se o Velho Mundo, ao invés desses grandes Impérios, em que se dividia, exibisse aos olhos dos nossos fundadores uma face coberta de um conglomerado de pequenas Repúblicas, —como o mundo grego com a sua luminosa constelação das cidades autônomas— nós não teríamos, por certo, fundado um Estado Nacional. Porque nada, nenhuma necessidade poderosa nos levava a isso — isto é, à integração do país dentro de uma possante armadura de poderes nacionais. Mesmo hoje, essa grande e patriótica aspiração dos nossos maiores é ainda um alto ideal, sobrepairante nas camadas superiores da nacionalidade. Não desceu ainda, nítido e lúcido até o seio do povo: nos campos, nas cidades, nos litorais, nos sertões. Não se fez ainda um grande ideal coletivo, em torno do qual gravitem as energias nacionais numa polaridade espontânea e consciente, como acontece com o inglês, o alemão, o francês, o americano, o japonês, ou o romano antigo — povos na subconsciência de cuja psique coletiva lateja e freme uma sorte de pressentimento místico da função do Estado como órgão supremo de uma grande missão nacional. 68 O núcleo do argumento é a configuração quase acidental de uma nacionalidade que molda a disposição do Brasil de configurar-se como Estado sobrevivente, como ordem social fundamentalmente estatal, passível, por conta deste elemento, de existência e de permanência. A conformação histórica e social não colabora para a funcionalização da ordem e esta se opera, exclusivamente, pelo ideal materializado na racionalidade públicoinstitucional. A fórmula inafastável, sob pena de desintegração territorial e política, traz, no entanto, um complicador explícito: a implantação da ordem —que se inicia no segundo reinado— é concomitante à constitucionalização da liberdade. O conflito entre autoridade e liberdade é anacrônico, pois se a ordem acontece ao mesmo tempo em que a liberdade se positiva constitucionalmente, o problema não radica na normatização da vida, mas na teorização da política que se faz à revelia do fator social. A ―ossificação da nacionalidade‖ demanda, portanto, um Estado de poder incontrastável tornando-se a solução ―racional, orgânica, essencialmente americana do problema de nossa organização política‖. 69 Não é, assim, o liberalismo, nem são os próceres liberais que organizarão o Brasil, ambos —teoria e prática política— tomados pelo idealismo universalista que suspende a capacidade de 68 69

Idem, p. 253. Idem, p. 279.

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identificar uma realidade dissonante de si. Torna-se necessário, para a construção futura do país, um tipo de ―subconsciência‖, de ―instinto visceral‖ de legalidade, de ―obediência à autoridade e à lei‖ que só pode ser estimulado por uma ―minoria diminutíssima‖ que renega o oxigênio liberal vindo da realidade única da Europa. Imbuída da compreensão devida do poder moral do Estado —os motivos de ordem psicológica que, segundo o jurista alemão Ihering, ―militam em favor do Estado quando a luta se estabelece entre ele e o povo‖— que não deixa de ser, também ela, liberal, por não deixar ―turvar, nunca, a consciência, que todos têm, das nossas realidades e dos nossos destinos americanos‖.70 Aparentemente, é possível considerar que Oliveira Vianna está trazendo a impossibilidade de realizar o liberalismo em razão das condições sociais do Brasil, mas que a consumação da doutrina liberal aparece-lhe como finalidade última. As idéias-chave de centralização, de um Estado forte e de unidade surgiriam, em verdade, como meros instrumentos através dos quais seriam reprimidos os elementos que dificultavam a implementação definitiva de uma ordem liberal. É a tese, desenvolvida por Wanderley Guilherme dos Santos no artigo A Práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa (1974), conhecida como a do autoritarismo instrumental de Oliveira Vianna: O liberalismo político seria impossível na ausência de uma sociedade liberal e a edificação de uma sociedade liberal requer um estado suficientemente forte para romper os elos da sociedade familística. O autoritarismo seria assim instrumental para criar as condições sociais que tornariam o liberalismo político viável. Esta análise foi aceita, e seguida, por número relativamente grande de políticos e analistas que, depois da Revolução de 1930, lutaram pelo estabelecimento de um governo forte como forma de destruir as bases da antiga sociedade não liberal. 71 Ainda que indique, na nota de apresentação, tratar-se de ensaio reflexivo sobre a utilização de idéias políticas de cunho liberal no Brasil como ―guias estratégicos para a ação política‖ e que, inclusive, não dispunha, à época, da bibliografia necessária à aproximação mais precisa ao tema, 72 Santos teve uma recepção significativa. Segundo José Murilo de Carvalho, sua tese é apropriada para um entendimento de autores liberais e conservadores alinhados pelo Império como Uruguai e Tavares Bastos. Mas Oliveira Vianna não seria um mero pragmático, importando um modelo de país como sentido político de sua prática institucional. Para Carvalho, a utopia de Oliveira Vianna radicava-se 70

Idem, pp. 279-80. (grifo nosso) SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A Práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa, p. 106. 72 Idem, p. 65. 71

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no iberismo, ou seja, na recusa do utilitarismo e do individualismo característicos de uma sociedade fundada no contrato e no mercado como ordenadores da vida econômica. A sociedade concebida pelo autor seria, pelo contrário, uma idealização Ibérica de origem católica ―fundada na cooperação, na incorporação, no predomínio do interesse coletivo sobre o individual, na regulação das forças sociais em função de um objetivo comunitário‖.73 Fica explícita a discordância de Oliveira Vianna com o modelo de sociedade proposto por Francisco Campos, para quem o Brasil, nos anos 30, já estava inserido na dinâmica das sociedades de massa, a atomização não-liberal sendo um pressuposto estrutural. Nesse modelo universalista, Campos só entende possível a ordem social, isto é, a organização política e econômica, pela coordenação das energias das massas pelo César, ou seja, pelo Estado. Mesmo em 1935, Campos permanece fiel ao seu americanismo pelo alto, contrapondo-se, sociologicamente, a Oliveira Vianna. A questão da ordem política sempre será o centro do interesse intelectual de Oliveira Vianna. Ordem política de realização complicada, dada a visão que tem da história da socialização brasileira. Num país marcado por um conjunto vicejante de particularismos e interesses abstrusos, a institucionalização da ordem supera as congêneres americanas pelo ―espírito conservador e prudente‖ de sua realização, cuja figura exemplar e, de certa forma, historicamente de vanguarda, é o Imperador D. Pedro II, que paradoxalmente se encontra submerso por um estado de coisas em que prevalece a desorganização das classes, a ausência do espírito público e da liberdade civil. O destino do Brasil aponta, já no 2º Império, como se deduz da leitura de O Ocaso do Império (1925), para o lugar civilizatório das instituições estatais em oposição à política dos interesses particularistas que já se via

73

Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Utopia de Oliveira Vianna. In: BASTOS, Elide Rugai; MORAES, João Quartim de (Orgs.). O Pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Unicamp, 1993, pp. 13-42, pp. 223.

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desde então, representada idealística e ideologicamente pelo espectro liberal. 74 Nesses termos, o horizonte de sentido de Oliveira Vianna não radica na crítica do processo histórico brasileiro como sendo de natureza negativa, a influência do iberismo sendo considerada um atraso. Indica, sim, o fato de nossas elites, no ocaso do Império e mesmo durante a República, terem perdido a ―noção de distintividade‖, por operarem em discordância da realidade social, privilegiando um ideal alienígena em detrimento de fatos e contingências apreciáveis pelo contato com a realidade. Para Luiz Jorge Werneck Vianna, no seu artigo Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos (1993), Constatar como o real é para em seguida operar sobre ele, consistiria num empreendimento prosaico e corrente, se em Oliveira Vianna isso não se manifestasse como enigmático: no plano da observação do real, ele se identifica com a contingência ibérica; no do dever ser, com a cultura política anglosaxônica.75 A transição de uma realidade ibérica para uma institucionalidade anglo-saxã não se resolve pelo autoritarismo instrumental. Se a organização social e política anglo-saxã concorda, diretamente, com a cultura política enraizada em países europeus, o mesmo não ocorre no Brasil. Aqui, por conta de sua natureza (clânica e, portanto, pouco complexa) o componente social possibilita a constituição da ordem a partir de um elemento externo, consubstanciado de forma bem sucedida na monarquia brasileira. Para Oliveira Vianna, segundo Werneck Vianna, ―o transplante das elites ibéricas teria gerado um novo estrato aristocrático, um patriciado rural de vocação doméstica e não guerreira, cujo padrão de 74

Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. O Ocaso do Império. Brasília: Senado Federal, 2004 (1925), p. 45: ―Em nosso País, com efeito, os partidos não disputam o poder para realizar idéias; o poder é disputado pelos proventos que concede os políticos e aos seus clãs. Há os proventos morais, que sempre dá a posse da autoridade; mas há também os proventos materiais, que essa posse também dá. Entre nós a política é, antes de tudo, um meio de vida: vive-se do Estado, como se vive da lavoura, do comércio e da indústria — e todos acham infinitamente mais doce viver do Estado do que de outra coisa.‖; ―Eram realmente os ministros os que deturpavam as intenções do monarca, os que faziam do ato da ‗consulta à nação‘ uma burla completa, exercendo sobre o partido contrário toda a sorte de perseguições, opressões e ilegalidades. D. Pedro bem o compreendia; mas, dentro do seu papel de rei constitucional, não podia agir corretivamente,nesses casos, senão de um modo discreto, com tato e extrema habilidade.‖ (pp. 58-9). A essa opinião da classe política — que engloba tanto os liberais quanto os conservadores que se alternavam no poder de acordo com a conveniência do Imperador— contrapõe-se a opinião sobre o monarca: ―Ninguém desempenhou mais a sério a sua função constitucional: foi durante cinqüenta anos o melhor empregado público do Brasil, o paradigma da classe, flor, exemplo e espelho de todos eles.‖ (pp. 54-5). E ―Este era, entretanto, o único que não merecia a condenação: ninguém lutava mais bravamente para conter os ministros dentro dos limites da legalidade, da imparcialidade e da justiça, com risco, às vezes, de provocar crises ministeriais‖. (p. 59). 75 VIANNA, Luiz Jorge Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos, p. 373.

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sociabilidade e de valores morais de ressonâncias clássicas se difundiria à volta de suas fazendas autárquicas — um oikos ao estilo romano‖.76 Não existe, portanto, uma oposição simétrica e intransponível entre a formação rural da sociedade brasileira e a civilização nos moldes da ordem social dos países anglo-saxões. O caminho de Oliveira Vianna está marcado pela paulatina assunção de que o dilema sociabilidade Ibérica versus normatividade anglo-saxã só se resolve integrando uma comunidade assentada numa cultura de paz, exemplo de uma ordenação social natural que subordina os interesses particulares aos gerais e públicos, gerenciados pelo Estado. A solução aparecerá de forma definitiva no livro Problemas de política objetiva (1930), que reconhece a participação coletiva como fator capital para a democracia e, conseqüentemente, considera central para a configuração da ordem política o elemento econômico. A corporificação dos interesses de classe torna-se capaz de organizar uma comunidade que transponha a atomização — característica da sociedade clânica— que, de resto, não se colocou como predicado da formação social brasileira, e aponta para a tendência contemporânea de centralização e estabilização da vida política —em franca oposição à política de federalização da 1ª República.77 O valor positivo da origem clânica consubstancia-se no fato de que há uma civilização no horizonte de Oliveira Vianna, mas esse modelo de sociabilidade não corresponde à compreensão individualista do liberalismo. Para Werneck Vianna, este é o enigma oliveiriano: Renovada pelos grupos intermediários, à maneira da cultura política anglo-saxônica, a Ibéria faz-se contemporânea ―saltando‖ o liberalismo — a ―humanidade civilizada‖ estaria abandonando a ―pura economia liberal‖. Os narodniks imaginavam ser possível o trânsito revolucionário da comuna camponesa ao socialismo, convertendo assim em vantagem o atraso social das relações agrárias na Rússia. De forma semelhante, Oliveira Vianna, este avesso do avesso dos populistas russos, quer atingir a moderna cultura política anglo-saxônica —para ele, o corporativismo e a administração técnica e científica da vida social—, passando por cima da ―etapa‖ liberal e extraindo ―vantagem‖ do atraso social do nosso povo76

Idem, p. 374. Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de política objectiva, pp. 117; 25 e ss. Diz o autor: ―Ora, em nossa democracia, o que vemos é justamente o contrário disso: ela se baseia em indivíduos — e não em classes; em indivíduos dissociados — e não em classes organizadas; e todo mal está nisso. É uma democracia em estado atomístico, como já o demonstramos uma vez [O idealismo da constituição] — porque em seu seio os cidadãos aparecem como átomos desprovidos de afinidades eletivas capazes de os levar a agregarem-se em organizações poderosas. Essa dissociação é devido a causas profundas, que residem, em parte, na nossa própria formação nacional [Populações meridionais do Brasil] e, em parte, nas concepções individualistas da Revolução Francesa, ainda dominantes infelizmente na mentalidade das nossas elites dirigentes [O Idealismo na evolução política do Império e da República].‖ (p. 120). 77

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massa, para o qual é exótica a institucionalidade política do liberalismo. Porque predomina no povo-massa uma orientação individualista e uma situação de atomização —diagnóstico do atraso—, deve-se procurar uma nova matriz de direito público —a ordenação corporativa moderna— que ―salte‖ o liberalismo e estabele[ça] supostos e instituições superiores. 78 Nesses termos, a integração do povo brasileiro só pode se realizar na medida em que se escape da extravagância da descentralização e se compreenda a necessidade de a coletividade submeter-se à nação de forma dogmática: em se realizando esse processo de nacionalização dos interesses, o ―povo tem o seu triunfo assegurado, conta e contará, é e será uma força de civilização, é e será um fator da história‖. Para Oliveira Vianna, portanto, o corporativismo representa a possibilidade pragmática de gerar um campo de força em torno dos problemas de ordem nacional, antecedendo-lhe, entretanto, a subordinação dos interesses clânicos, partidários, grupais ou individuais —característicos de uma sociedade que tende ao atomismo— ao interesse nacional, subordinação expressa ―pela capacidade de obediência e disciplina, pelo culto do Estado e de sua autoridade‖.79 Colocada a questão do lugar do direito no sistema normativo do autor, isto é, definida a função cultural e civilizatória do direito, a recepção do corporativismo pela Constituição de 1937 sempre foi, para Vianna, a manifestação de uma opção políticojurídica que se opunha a um modelo de direito de cunho liberal sem vínculo com o objetivo maior da formação da nacionalidade. Nesse sentido, o diagnóstico de Oliveira Vianna sobre os limites da institucionalidade liberal se coaduna com a apreciação de Francisco Campos sobre o mesmo tema. Em ambos, o direito liberal é um instrumento que inviabiliza a unidade nacional.

7.1 O Estado corporativo: um direito novo

Em sua apresentação do Problemas de Direito Corporativo —que compõe-se de artigos publicados no Jornal do Commercio a fim de justificar o anteprojeto que organizava 78

VIANNA, Luiz Jorge Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos, pp. 390-1. 79 VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de política objectiva, pp. 98-9.

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a Justiça do Trabalho e defendê-lo das críticas do Deputado e professor de direito paulista Waldemar Ferreira—, o conflito entre uma concepção individualista (nascida do Direito Romano e atualizada pelo Código Civil napoleônico) ―e a nova concepção [do Direito], nascida da crescente socialização da vida jurídica‖ dá-se pelo fato de indicar um deslocamento ―do Indivíduo para o Grupo e do Grupo para a Nação, compreendida esta como uma totalidade específica.‖. O ponto central do livro é a defesa do caráter normativo das decisões judiciais sobre questões trabalhistas, opondo-se ao seu tradicional caráter inter-partes. Suas idéias sendo consideradas incompatíveis com a Constituição de 1934, com o regime liberal-democrático instituído por ela, e com a natureza da Justiça do Trabalho que, segundo Waldemar Ferreira e outros, deve decidir caso a caso e não genericamente, Oliveira Vianna enfrentará a controvérsia atacando os fundamentos jurídicos dos oponentes.80 É na sociologia jurídica norte-americana, na escola do realismo jurídico clássico, caracterizada pelo antiformalismo no processo de compreensão e aplicação do direito, que Oliveira Vianna irá, inicialmente, buscar apoio para a defesa de um sistema judicial de composição dos conflitos coletivos de natureza trabalhista. Este sistema, fundado na idéia de que o sentido da norma deve ser definido a partir dos fatos, previa exatamente funções normativas e legislativas para a nova Justiça do Trabalho. Como no realismo norteamericano, o pragmatismo de Vianna deverá ser operado de forma sistêmica no que respeita às conseqüências esperadas, dado que está organizado institucionalmente. Somente neste sentido distancia-se do antiformalismo de Schmitt que, no âmbito da política legislativa, opera com a possibilidade de decisões ad hoc que visam proteger a existência

80

VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de Direito Corporativo, pp. 7. Todo o debate do livro respeita ao projeto da Justiça do Trabalho apresentado sob a égide da Constituição de 1934, sem mencionar os reflexos sobre a Constituição de 1937, como quer, equivocadamente, Jarbas Medeiros. Cf. MEDEIROS, Jarbas. Ideologia autoritária no Brasil, 1930/1945. Prefácio de Raymundo Faoro. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1978, p. 183. Um outro jurista que fará uma interpretação nos moldes liberais da Constituição de 1934, negando o caráter normativo das decisões da Justiça do Trabalho é Pontes de Miranda, que vaticina nos seus Comentários: ―A função da Justiça do Trabalho, ainda quando conciliadora, não é administrativa; é jurisdição, pois que atua em caso de controvérsia, dirime questões, como diz o próprio Art. 122. Não se trata de edição de normas para a generalidade, o que a faria legislativa; nem exerce a função com a discricionariedade que caracteriza o ato de administração, ainda quando se tem por fim aplicar a lei. A Justiça do Trabalho decide.‖. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Tomo II, artigos 104-187, disposições Transitórias. Emendas n. 1, n. 2 e n. 3. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1937, p. 337.

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da própria ordem política. 81 De qualquer sorte, para Oliveira Vianna não há que se falar — ante uma situação econômica e social cada vez mais complexa—, em avaliação meramente lógica ou filológica do direito, sendo necessária a incorporação de elementos políticos e sociais para entender o alcance das normas jurídicas. Citando um dos textos centrais de Carl Schmitt, Legalidade e legitimidade (1932),82 Oliveira Vianna aponta que a revelação da existência de novas fontes de normas jurídicas, fora das fontes instituídas pelo Estado —o ―Estado Legislador‖, de Carl Schmitt— normas estas elaboradas pelos grupos sociais e pelas coletividades organizadas, vivendo dentro do próprio Estado— forçou os intérpretes a abandonarem a preocupação exclusivista da norma legal e atentarem nestas outras realidades indissimuláveis e incompressíveis da vida jurídica.83 Seu argumento segue, em linhas gerais, o de Schmitt, para quem o caráter liberal, individualista e formalista da Constituição de Weimar, limitador das possibilidades de superação da crise da República, poderia ser combatido, em sua ingerência deletéria, pela legitimidade popular, democrática e presidencial contida no mesmo documento. Esta crítica ao formalismo do direito não é exclusiva da tradição realista dos EUA, como se vê pela alusão a Schmitt, nem vinculada exclusivamente a este autor, mas remonta à prática judicial européia e a correntes de pensamento que inserem elementos não formais no cotidiano da 81

Para Richard Posner, o pragmatismo norte-americano influencia diretamente as escolas jurídicas alemã e italiana, especialmente nazistas e fascistas, sendo William James o autor recorrentemente citado por aqueles que identificavam, no pragmatismo, uma filosofia da ação que se aproximava do ―entusiasmo pelo decisionismo, pela ação e pelo poder‖. O anti-formalismo que está na base da posição de Oliveira Vianna é, assim, um traço característico dos filósofos pragmáticos do começo do século XIX, para quem o racionalismo deveria ser substituído pelo empirismo como atitude filosófica fundamental (William James) e a verdade limitada a uma função instrumental ou funcional (John Dewey). Reproduzidos estes princípios pragmáticos fundamentais à esfera da aplicação e do estudo do direito, aparece, ainda no século XIX, o realismo jurídico de Oliver Wendell Holmes e outros que definiu o perfil dos maiores juristas norte-americanos do começo do século. Os juristas realistas das décadas 20 e 30 repudiavam, como crença ilusória, a idéia de que conceitos e regras gerais provêem significação lógica e confiável para decisões jurídicas, reivindicando para a função judicial um papel mais ativo na definição dos conflitos levados ao judiciário, vinculando suas decisões a fundamentos empíricos e não normativos. Cf. POSNER, Richard A. Legal Pragmatism. Excerpts for University College colloquium. London: University College, Jan, 2002. 106 fls., fl. 22 e ss; fls. 39 e ss; Cf. JAMES, William. Pragmatismo. In: James, Dewey, Veblen – Volume XL. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974, pp. 9 e ss. e DEWEY, John. Reconstrução em filosofia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, pp. 154-155; Cf. RODRIGUES, Lêda Boechat. Notícia Bio Bibliográfica. In: CARDOZO, Benjamin N.. A Natureza do processo e a evolução do direito. São Paulo: Nacional de Direito, 1956, pp. XX e ss. 82 No caso, a tradução francesa de 1936. 83 VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de Direito Corporativo, p. 22. Cf. McCORMICK, John P. Identifying or exploiting the paradoxes of constitutional Democracy?: An Introduction to Carl Schmitt‘s Legality and legitimacy. In: SCHMITT, Carl. Legality and legitimacy. Translated and edited by Jeffrey Seitzer with an introduction by John P. McCormick. Durham / London: 2004, pp. xiii-xliii. Ver abaixo.

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decisão judicial. O tema também foi estudado por Max Weber, que se interessava em avaliar o processo de desencantamento moderno e suas aporias, especialmente na forma jurídica de manifestação da legitimidade do Estado. Nos textos de Economia e sociedade – esboço de uma sociologia compreensiva (1922), considera que a necessidade do comércio capitalista exige a introdução de elementos materiais na decisão e, durante o século XIX, técnicas e normas antiformais como a livre apreciação da prova, o reconhecimento da intencionalidade, os fins penais de natureza utilitária, a mensuração da boa-fé e o repúdio aos contratos leoninos representam o caráter puramente ético de uma justiça material que se sobrepõe a uma legalidade formal. Lembra, igualmente, a formação de um pensamento judicial, posteriormente transformado em escola jurídica, que exige do juiz uma atividade ―criadora‖, especialmente nas lacunas e antinomias legais. A Escola de Direito Livre, citada como modelo de renovação das fontes do direito pelo próprio Oliveira Vianna, propondo a existência de uma judicatura ideal afastada do formalismo tendia a ―prescindir, cuidadosamente, de uma referência a tais normas abstratas e, pelo menos em caso de conflito, [tinha] que admitir estimações inteiramente concretas, ou seja, uma decisão não só não formal mas, inclusive, irracional‖. Para Weber, desta forma, o significado da fixação legislativa de uma norma jurídica é degradada ao papel de um mero ―sintoma‖ da decisão judicial. O jurista prático pretende a livre apreciação dos possíveis juízos de valor inevitavelmente concretos, conseqüência imediata do irracionalismo valorativo da Escola do Direito Livre.84 A capacidade lógica de Oliveira Vianna explorar a estrutura normativa tradicional de uma Constituição liberal —e aqui o alvo ainda é a Constituição de 1934— e dela retirar funções que a coloquem em xeque é uma característica que remonta ao escopo e ao tema do livro de Schmitt citado pelo autor. A existência de elementos materiais de natureza valorativa como normas constitucionais que não se reformam pela via normal das maiorias parlamentares simples —constituindo-se, segundo se classificaria posteriormente, como 84

Cf. WEBER, Max. Economía y sociedad...Op. cit., p. 653. A Escola de Direito Livre era do conhecimento genérico do realismo jurídico, como nota Benjamin Cardozo n‘A Natureza do processo e a evolução do direito (1932). Cardozo aponta a ―anarquia jurídica‖ ou o ―impressionismo judicial‖ da dita Escola, assumindo que a conhece através de um ensaio de Gény (igualmente referenciado por Vianna, que segue de perto o arrazoado histórico do livro de Cardozo aqui citado), e não diretamente através de seus autores (Ehrlich, Kantorowicz e Zitelmann), não reconhecendo, nas prática da decisão fundada individualmente na idéia de ―bom juiz‖ o procedimento jurisprudencial do realismo. Cf. CARDOZO, Benjamin N.. A Natureza do processo e a evolução do direito, p. 78. e Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de Direito Corporativo, p. 21.

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cláusulas pétreas— indica a possibilidade de uma nova aproximação hermenêutica. Nesta nova forma de interpretação constitucional, a exegese do texto não se realiza mais independentemente da realidade circundante, a partir de elementos imanentes ao próprio direito, mas passa a depender do mundo concreto, de inflexões da política e, principalmente, de decisões que extrapolam as competências tradicionalmente estabelecidas pela divisão do poder político, como a formulação de normas jurídicas por outro órgão que não o poder legislativo. Uma interpretação não convencional considera, pois, o aplicar, o executar do direito (da Constituição), para além do padrão jurídico liberal. Conforme Schmitt, ao poder executivo caberá, em variadas situações, ser o executor da Constituição mas, igualmente, o legislador extraordinário, nos casos de valores excepcionalmente ameaçados em uma situação de desordem, com o fito de proteger conteúdos definidos pelo texto constitucional por ações concretas de natureza excepcional. Quando a Constituição passa a cumprir funções de natureza material, garante a realização de valores, sobrepondo a natureza transitória da vontade parlamentar, tradicionalmente constituída por maiorias momentâneas e vinculada à estrutura puramente formal da lei. Isso significa, para Schmitt, que quando

uma

maioria parlamentar

fica

impedida

constitucionalmente de reformar a Constituição —quando a ―proteção da Constituição‖ torna-se essencial à sua realização—, o princípio democrático-formal das maiorias (princípio da legalidade) é substituído pela atuação democrático-substancial do Estado burocrático-administrativo executor, fundado na legitimidade da autorização plebiscitária ou nas cláusulas que prevêem a excepcionalidade de seu funcionamento (princípio da legitimidade), conforme estabelecido pelo notório art. 48 da Constituição de Weimar. É precisamente o que de acordo com Schmitt, ante a crise de estabilidade política e econômica da República, poderia acontecer com a Constituição, no ano de 1932.85 Funcionando como poder excepcional, o executivo pode legislar através de procedimento administrativo, argumento básico para o arrazoado de Oliveira Vianna. Um dos maiores críticos do processo de administrativização do poder legislativo foi o jurista e cientista político Franz Neumann (1900-1954), na época integrante do Instituto de Pesquisas Sociais, também conhecido como ―Escola de Frankfurt‖. Ele foi o responsável por uma das primeiras e mais contundentes avaliações do fenômeno nazi-fascista na 85

Cf. SCHMITT, Carl. Legalität und legitimitaät, pp. 57 e ss.; pp. 64 e ss.

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Alemanha, em seu livro Behemoth: estrutura e prática do nacional-socialismo (1942), estabelecendo de forma crítica os fundamentos políticos, doutrinários, sociais e econômicos do que chamou de ―capitalismo monopolista totalitário‖. Foi, igualmente, um incisivo crítico das reformas constitucionais que acabaram levando a Alemanha ao jugo de Hitler. Para Neumann, no artigo A Mudança da função do direito na sociedade moderna (1937), essa estratégia jurídica que surge na Alemanha como um programa de natureza conservadora configura-se uma necessidade política para restringir o poder do parlamento, que não mais representa, no processo de formulação legislativa da República de Weimar, os interesses do grande latifúndio, do capital, do exército e da burocracia. A generalidade da lei, que sob a configuração de princípios gerais do direito passou a ser —sob a influência teórica de Schmitt— a única forma de expressão do Parlamento, deslocou para a burocracia administrativa a regulação dos casos concretos, transformando o Poder Executivo em gestor da livre concorrência e em legislador de fato da ordem econômica e social. Para Neumann, a Constituição de Weimar, sob esse influxo interpretativo, viu renascer disfarçadamente um ―direito natural que passa então a exercer funções contra-revolucionárias‖.86 O autor resume as conseqüências de tal abordagem jurídica indicando que O período de 1918 a 1932 foi caracterizado pela quase universal aceitação da doutrina da escola do ―direito livre‖, pela destruição da racionalidade e calculabilidade do direito, pela restrição do sistema de contratos, pelo triunfo da idéia do comando sobre aquela do contrato e pela prevalência dos ―princípios gerais‖ sobre normas jurídicas genuínas. Os ―princípios gerais‖ transformaram todo o sistema legal. Mas a sua dependência numa ordem de valores extra-legal nega a racionalidade formal, gerando uma imensa quantidade de poder discricionário para o juiz e eliminando a linha de divisão entre o Judiciário e o Executivo, de modo que as decisões administrativas —isto é, decisões políticas— tomam a forma de decisões de cortes civis ordinárias. 87 A relação entre teoria do direito e reconfiguração da relação política entre os poderes está clara para Oliveira Vianna: o princípio da separação de poderes e a impossibilidade da delegação da função legislativa não devem ser ―entendidos de modo absoluto‖. Ele cita, exatamente, o exemplo da Alemanha, onde a derrogação do monopólio

86

Cf. NEUMANN, Franz. The Change in the Function of Law in Modern Society. In: NEUMANN, Franz. The Democratic and the authoritarian State: essays in political and legal theory. Edited and with a preface by Herbert Marcuse. New York/London: The Free Press/Collier-Macmillan Company, 1957 (1937), pp. 2268., pp. 47 e 52-3. 87 Idem, pp. 54-5.

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legislativo do Parlamento é uma prática geral, apesar das limitações constitucionais e, por conta disso surgem novos órgãos, dentro e fora da estrutura estatal, cuja função é a elaboração de normas legais. 88 A finalidade maior de qualquer modelo de organização política é a completa realização do direito dentro do Estado e a defesa da sociedade contra seus inimigos fora do Estado. A esse caráter pragmático das funções, por excelência, do direito, Oliveira Vianna acrescenta o caractere propriamente instrumental —e não absoluto— da dogmática jurídica: ―toda dogmática jurídica é sempre um sistema de princípios posto a serviço de um interesse prático, isto é, o interesse de dar a máxima força de coesão e expansão a uma determinada organização jurídica.‖. Por conta desse vínculo entre direito e realidade social, Oliveira Vianna colocar-se-á, igualmente, em oposição ao que considera o formalismo de autores como Kelsen —que veriam a conformação de um sistema jurídico como construção lógico-formal—, e indicar a necessidade de se ―apelar para os dados de natureza política‖ para interpretar e aplicar o direito. 89 A capacidade legislativa da autoridade administrativa é, dessa forma, um ―imperativo da realidade‖, pois a capacidade de detalhamento técnico dos inúmeros problemas do Estado em normas jurídicas é uma característica específica desses órgãos e, pelo contrário, se a atividade fosse realizada pelo Parlamento, ele seria reduzido à ineficiência completa. Para Oliveira Vianna, em resumo, é possível definir, a partir de uma nova hermenêutica, distante dos parâmetros jurídicos liberais, poderes normativos ―conferidos, implicitamente, aos órgãos corporativos da Justiça do Trabalho‖. 90 Na verdade, a argumentação presente no Problemas de política objetiva indica a dificuldade de realização efetiva da democracia, inclusive diante das limitações do Governo Provisório em que a prática legislativa, apesar de profícua, não logrou distanciar-se do 88

Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de Direito Corporativo, pp. 38-9 e ss. Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. O Idealismo da Constituição. 1ª edição, pp. 8, 24-6. Embora esteja claro, hoje, que a interpretação e a aplicação do direito, para Kelsen, não se podem realizar sem a presença estrutural de juízos de natureza política (da ―vontade‖, como diria textualmente o autor). Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2ª edição. 90 Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de Direito Corporativo, p. 43 e ss. Já dizia o autor em Problemas de política objetiva, que o pior preconceito contra os conselhos técnicos, contra a estrutura corporativa e suas capacidades de intervenção e mesmo de formulação de legislação específica, ―o mais grave, o mais absurdo, o mais anacrônico é a crença na competência onisciente dos Parlamentos e na sabedoria infusa dos homens que, em virtude do mecanismo do nosso sistema representativo, acontecem chegar ao poder.‖ Sabedoria infusa significando a suposta e obviamente falsa capacidade de bacharéis, depois de eleitos, tornarem-se milagrosamente capazes de dominar a informação técnica necessária para legislar competentemente sobre os mais variados temas técnicos. Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de política objectiva, p. 193. 89

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modelo tradicional de conformação endógena. Neste texto, o autor define a prática legislativa como formulação legal limitada à competência dos membros do governo e do parlamento. Democracia abalada, portanto, pela falha técnica de não colaboração dos especialistas e profissionais com experiência prática e pelo erro de psicologia política, de não angariar a ―adesão moral‖ do povo, impedido de participar na elaboração da lei, o que redunda em ineficácia da lei e em inacessibilidade e impermeabilidade dos centros legislativos e administrativos. Para Oliveira Vianna O princípio característico do governo democrático consiste em dar à totalidade dos cidadãos uma parte igual na direção dos negócios públicos — Diz Duguit. Ora, se assim é, o melhor caminho para realizarmos a democracia não é lutarmos, até com as armas na mão, para eleger deputados ao Parlamento; mas, desenvolver os Conselhos Técnicos e as organizações de classe, aumentar a sua importância, intensificar as suas funções consultivas e pré-legislativas, generalizar e sistematizar a praxe da sua consulta da parte dos poderes públicos. É este o verdadeiro caminho da democracia no Brasil. 91 O Poder legislativo deve, em resumo, delegar funções, a serem compartilhadas com a sociedade e autoridades administrativas, solidificando o ―movimento do ‗Estado Legislador‘, de Schmitt‖, por conta da ampliação da complexidade e da multiplicidade das funções que se depreende do mundo moderno. A complexidade social requer a necessidade de um poder político também de natureza complexa, capaz de funcionar amparado por múltiplas competências. Um mesmo poder precisa, então, funcionar a partir das competências executiva, judicial e legislativa: é o que Oliveira Vianna chama de administrativização do direito público, fenômeno derivado da necessidade de o Estado operar pelo princípio da eficiência do serviço público. Com a corporificação das estruturas dos Estados contemporâneos ocorrerá, por exemplo —e aqui se coloca a questão específica da transformação da Justiça do Trabalho—, a flexibilização e multiplicação dos ritos judiciais, o que redundará numa justiça de caráter administrativo, responsável por pautar o comportamento geral daquelas classes corporativamente orientadas, isto é, uma justiça que não estará mais pautada pela resolução inter-individual e exclusivamente jurídica dos conflitos.92

91 92

VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de política objectiva, p. 201. Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. Problemas de Direito Corporativo, pp. 48 a 57.

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Oliveira Vianna destaca, contudo, que o caráter erga omnes, a função de normatização genérica e não mais particularizada (caso a caso) da Justiça do Trabalho, não deriva do regime político de natureza corporativa, nem do modelo de Estado (fascista, totalitário ou liberal). O que dá fundamento à competência normativa dos tribunais do trabalho não é o regime político dominante num dado país; é a natureza mesma da decisão, é a peculiaridade do conflito a ser julgado, é a própria estrutura das organizações econômicas contemporâneas. O fundamento da normatividade é orgânico — e não político.93 Como para o autor essa nova característica é um dado da realidade, observável em vários países, um fato considerado normal pelos juristas de todo o mundo, não há que se contestar a constitucionalidade ou a legitimidade dessas funções normativas. O fenômeno revela um dado importante, que é a ―visível derrogação do princípio da separação dos poderes e do monopólio legislativo do Parlamento‖, mas indica que o caráter de tal transformação é de natureza institucional, dado que a corporativização intrínseca à atividade econômica obriga o Estado a uma descentralização autárquica de suas funções que desenvolve-se em detrimento de sua ―descentralização geográfica‖, e mesmo para constrangê-lo, estabelecendo-se como um contra-movimento às ―autarquias territoriais‖, fenômeno denominado de ―re-centralização das atividades administrativas‖, reduzindo o império dos interesses locais. 94 No que respeita especificamente à Justiça do Trabalho, a natureza da vida social e econômica indica as condições de trabalho devem ser de natureza coletiva. O Estado se vê, assim, obrigado — por uma ―lei sociológica‖— a dar ―força de norma geral‖ ao contrato coletivo e à convenção coletiva de trabalho. Nesse sentido, a flexibilização jurídica observada no funcionamento da Justiça do Trabalho caracterizar-se-á pelos seguintes pontos: a) os tribunais são corporativos e paritários; b) os ritos são breves e simples; c) os critérios decisórios são flexíveis e práticos; d) as decisões têm caráter condicionado e revogável; e) há ―refractariedade ao princípio da coisa julgada‖; f) a atividade funcional da justiça tem natureza regulamentar; e g) a dinâmica de mediação e da arbitragem aparece como critério para a formulação da decisão, redundando no afastamento da norma jurídica

93 94

Idem, p. 94. Idem, p. 49.

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abstrata como elemento balizador do caso real e sua substituição por ―standards legais, concretos, objetivos e flexíveis‖. 95 O Estado corporativo idealizado por Oliveira Vianna necessita, portanto, da formação de uma juridicidade completamente inusitada, fundada em elementos pragmáticos, que desloca as funções legislativas do Parlamento para o centro do Poder Executivo, ou para a manifestação das decisões judiciais. A configuração deste antiformalismo no direito faz surgir uma nova forma de Estado que, apesar de não prescindir da legitimação pelo procedimento legal e judicial, desloca a conformação formalmente democrática da lei para o espaço arbitrário da decisão administrativoburocrática. Carl Schmitt é a influência explícita e marcante desta rearticulação política fundamental. Ao recepcionar a idéia de ―Estado legislador‖ de Schmitt, e ao contextualizála numa situação de complexidade social, Oliveira Vianna coloca como necessária uma dinâmica jurídica e judicial marcadamente ideológica e ocasional.

7.2 Um Direito corporativo definindo o Estado Novo

Segundo Oliveira Vianna, é este regime jurídico que deve ser extraído, em síntese, de uma interpretação construtiva da Constituição de 1934, e é nesta Carta que se encontraria pela primeira vez materializada a posição corporativa do autor. O corporativismo será o resultado de sua avaliação sócio-econômica do Brasil contemporâneo e servirá de base para compreender as funções legislativas do Presidente da República estabelecidas pela Constituição de 1937, bem como para justificar a redução dos poderes legislativos do Parlamento e para a configuração diferenciada da organização federativa. Neste modelo institucional, o Poder Executivo garante a soberania nacional frente aos 95

Idem, pp. 140-1; 150-1; 102 a 115. O contrato coletivo de trabalho é ―um verdadeiro feixe de contratos individuais de trabalho: o seu caráter coletivo resulta do modo de execução do trabalho — e não da própria relação jurídica estabelecida: esta é sempre de natureza individual‖; já a convenção coletiva de trabalho insere-se em outra situação, em que ―não se contratam serviços e sim normas (preceitos, cláusulas, etc), pelas quais se deverão reger os futuros contratos de trabalho, sejam individuais, sejam coletivos. (...) a convenção coletiva é um pequeno ‗código de normas‘, a que ficarão subordinados todos os contratos de trabalho (individuais ou coletivos), que foram conchavados pelos membros dos grupos que pactuaram a convenção ou que pertençam às categorias profissionais interessadas.‘‖.

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poderes locais, através da administrativização das funções do Estado e da concentração de poderes nas mãos do Presidente da República. Jarbas Medeiros no seu Ideologia autoritária no Brasil, 1930/1945 (1978) sintetiza essa relação entre direito e organização política: Para Oliveira Vianna, em suma, os conflitos trabalhistas, a luta de classes, as greves, as sabotagens, a ―desordem geral‖, enfim, eram características do Estado liberal, intrinsecamente ―absenteísta‖. O Estado moderno, por ―intervencionista‖, colocaria um ponto final, justamente através da ―disciplina‖ das convenções coletivas do trabalho e da regulamentação estatal das categorias profissionais, a toda aquela ―desordem‖. Estado moderno, Estado popular, Estado autoritário, Estado corporativo e Estado nacional equivaler-se-iam no pensamento político de Oliveira Vianna: a questão social entre nós teria, assim, uma solução nacionalista, moderna, autoritária e corporativa. 96 Outra não é a opinião de Evaldo Amaro Vieira, que no livro Oliveira Vianna & o Estado Corporativo: um estudo sobre corporativismo e autoritarismo (1976), considera que a concepção um tanto eclética de Estado corporativo do autor que estuda indica, na realidade, a idéia de um ―Estado autoritário‖, cuja função seria forjar a consciência da nacionalidade no povo brasileiro, forçando o fim dos regionalismos fragmentadores. As condições sociais, políticas e econômicas do Brasil depois de 1930 apontavam para a impossibilidade do domínio exclusivo de uma classe sobre o Estado, estabelecendo-se o papel da burocracia estatal como a grande força motriz de organização da nação. 97 O próprio Oliveira Vianna confirma sua tendência unificadora em palestra irradiada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda: Os Regionalismos e a unidade nacional (1935), onde sustenta que a descentralização republicana retardou e perturbou o processo de unificação realizado pelo Império, que objetivava a unidade nacional do país ―pela centralização política e pela compressão administrativa, numa unidade moral, objetivada numa verdadeira consciência nacional‖. 98 Este sentimento de unidade nacional desenvolvido no Império é que teria sustentado a existência do país durante a República e é o mesmo sentimento que indicará a necessidade de escorar-se o primado do poder executivo no regime da Constituição de 1937, porque este regime, conforme o livro O Idealismo da Constituição, na 2ª edição, institui-se reagindo contra a ―preponderância do 96

MEDEIROS, Jarbas. Ideologia autoritária no Brasil, 1930/1945, p. 183. Cf. VIEIRA, Evaldo Amaro. Oliveira Vianna & o Estado Corporativo: um estudo sobre corporativismo e autoritarismo. São Paulo: Grijalbo, 1976, pp. 98 e ss. 98 VIANNA, Francisco José Oliveira. Os Regionalismos e a unidade nacional (1935). In: VIANNA, Francisco José Oliveira. Ensaios inéditos. Organização de Marcos Madeira. São Paulo: Unicamp, 1991, pp. 363-7., p. 365. 97

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Parlamento‖ e seus desdobramentos funcionais nefastos à unidade nacional, como o facciosismo, a ineficácia (―esterilidade‖) da ação legislativa, e a ausência do interesse coletivo ou nacional pelos partidos. Num texto parcialmente escrito em tom oficialesco, Oliveira Vianna acopla a crítica ao ambiente revolucionário internacional, de origem comunista, à análise da organização política do federalismo e dos grupos partidários sem ideologia definida que dominavam a Câmara através de suas máquinas eleitorais violentas e fraudulentas —na verdade uma censura à dinâmica da política dos governadores durante a 1ª República.99 Desta forma, portanto, justifica-se o golpe de Estado: Era esta a situação brasileira antes do golpe de 10 de Novembro. Cumpria, pois, salvar a soberania da Nação, o prestígio do governo central, os interesses fundamentais da ordem pública e da integridade nacional, ameaçada pela sublevação dos Estados em iminência de secessão. Era preciso operar um movimento pronto, enérgico, imediato de reação e defesa. Está claro que só por um golpe de Estado era possível isto.100 Esse tom apologético não abandonará toda a parte da 2ª edição do Idealismo da Constituição que descreve a estrutura e os fundamentos do regime político do Estado Novo a partir de uma exegese estreita, sucinta e protocolar da Constituição. Nem de longe esse momento do texto lembra o autor erudito e sutil de alhures. Impera, nesta 2ª edição, o divulgador do regime num exercício de legitimação pela autoridade intelectual, já que o que realmente faz é inserir não mais que 60 páginas novas a um conjunto de escritos esparsos e ao livro de mesmo nome publicado quase duas décadas antes. 101 Ainda assim, é possível destacar alguns pontos que determinam, com maior precisão, os fundamentos de sua adesão ao Estado Novo, especialmente a que se dá pela perspectiva do corporativismo como centro de produção da normatividade social do Estado. Oliveira Vianna pretende, com o seu modelo de Estado —a que se vincula sua interpretação jurídica—, arrefecer ou mesmo dar fim ao conflito social típico das sociedades de massa. O seu corporativismo objetiva eliminar a conformação democrática originária da República 99

Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. O Idealismo da Constituição. 2ª edição aumentada, pp. 122-3: ―Criou-se, assim, um ambiente de intranqüilidade geral, de conspirações latentes, de motins episódicos e locais e, por fim, de vastas articulações revolucionárias, a que se associaram, com o seu ouro e a sua técnica brutal e sanguinária, os agentes secretos da III Internacional.‖. 100 Idem, p. 124. 101 De fato, sobre o Estado novo, encontra-se um capítulo intitulado ―O Primado do Poder Executivo‖, que vai da página 121 à 180. É o texto ―oficial‖ do livro. A segunda parte, a ―Organização das fontes da opinião democrática‖ (pp. 181 a 250) tem maior interesse teórico por ser um texto mais denso, onde os lineamentos gerais da percepção da ordem democrática em Oliveira Vianna ficam mais claros.

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—com a representação parlamentar e a divisão de poderes características do ideal liberal que a sustenta— e substituí-la pela participação de grupos de interesse como fundamento das decisões administrativas do Estado. Essa nova democracia corporativa é, na verdade, um claro deslocamento da função democrática liberal, da representação política que se pretende universal, para uma representação de classe, ou seja, para a representação econômica, abertamente interessada, dos setores produtivos. Representação maculada, digase de passagem, pelo domínio oficial das agências administrativas do Estado sobre as organizações de classe, 102 configurando o fenômeno que ficou vulgarmente conhecido como peleguismo. Isto se define, paradoxalmente, como a redução, ou até a extinção, da função democrática que cumprem as instituições formalmente estabelecidas pelo Estado republicano. Nesse sentido, como aponta Franz Neumann no artigo O Conceito de liberdade política (1953) —que influenciou toda a literatura crítica ao Estado nacional-socialista, citando o conceito de volonté générale de Rousseau—, o interesse de grupo ou classe não coincide, necessariamente, com o interesse nacional, que estaria, supostamente, representado pelo Parlamento.103 Pelo contrário: em geral, não há como se garantir no sistema corporativo —em se seguindo o princípio liberal pressuposto por Neumann e negado por Oliveira Vianna, de que o interesse público estaria efetivamente representado no Parlamento—, que o Estado se comporte de forma a preservar o interesse público em detrimento dos interesses corporativos que imediatamente estão em pauta num processo que se mostra como o de chancela política desses mesmos interesses. Neumann considera que o modelo de política com fundamento corporativo traz, dentro de si, o gérmen das tendências antidemocráticas,104 o que, em se tratando de conformar essa leitura ao Estado Novo, não deixa de ser uma sutileza de estilo. A incorporação dos fundamentos teóricos do modelo de organização política de Oliveira Vianna na estrutura constitucional do Estado Novo foi considerável, em que pese a mediação do texto final da Constituição de 10 de novembro de 1937, composto por 102

Fenômeno idêntico estava acontecendo na Alemanha nacional-socialista, como relata NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and pratice of national socialism. London: Victor Gollancz LTD, 1942, p. 326. 103 Cf. NEUMANN, Franz. The Concept of political freedom. In: NEUMANN, Franz. The Democratic and the authoritarian State: essays in political and legal theory. Edited and with a preface by Herbert Marcuse. New York/London: The Free Press/Collier-Macmillan Company, 1957 (1953), pp. 160-200., p. 191. 104 Idem, p. 193.

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Francisco Campos. Não é por outro motivo, senão pelo fato de que o seu modelo de relação política entre um Legislativo anêmico e um Executivo fortificado foi realizado in totum pela Constituição, que o autor indica de forma precisa, que a capacidade regulamentar e legislativa do Presidente da República, com a nova engenharia constitucional, foi ―enormemente‖ ampliada: a lei, quando de iniciativa do Parlamento, limita-se, pela nova Constituição, a dispor e preceituar de modo geral, isto é, apenas sobre a substância e os princípios da matéria legislada. O resto, tudo o mais, fica para a legislação complementar do Governo — o que dá considerabilíssima amplitude aos poderes regulamentares do Executivo.105 A previsão de poderes legislativos para o Presidente significa, para o autor, que a movimentação administrativa do Estado torna-se mais livre, pois o chefe do Executivo legisla, edita leis, tem, em regra, a iniciativa de projetos de lei, é fonte de normas legais e as expede em forma de Decretos-Lei, seja por direito próprio (por autorização constitucional do art. 73 e em caso de recesso do Parlamento) ou por delegação do Parlamento. Essa redução da importância política do Parlamento opera, como bem aponta o próprio autor, contrariando os regimes de democracia liberal.106 A força legislativa do Presidente significa, em verdade, o seu reconhecimento como representante único da ―totalidade nacional‖. A questão primordial é a crítica subjacente ao poder legislativo do Parlamento, já que se pode apontar, com facilidade, a censura antiliberal da tradição jurídica alemã como origem direta do posicionamento de Oliveira Vianna cujo alcance, de resto, assemelha-se ao da crítica ao Parlamentarismo realizada por Francisco Campos, embora o tom deste último seja muito mais corrosivo. No capítulo em que discute os fundamentos políticos e lógicos do primado do Executivo, Oliveira Vianna argumenta que o Parlamento compõe-se de prepostos dos governadores e das oligarquias como resultado —evidenciado pelos fatos observados, ―da verdade‖ e ―da realidade‖—,do sistema eleitoral dividido em circunscrições ou círculos locais de eleitores. Diante disto, se o Parlamento representa os interesses locais e se os ―grandes interesses da nação‖ não podem se lhes subordinar, o Poder Executivo não pode submeter-se ao Parlamento. Destes fatos, conclui-se que a

105

VIANNA, Francisco José Oliveira. O Idealismo da Constituição. 2ª edição aumentada, p. 135. Oliveira Vianna acreditava que se o plebiscito fosse realizado, o conselho de Economia Nacional, órgão de natureza corporativa, tomaria o primeiro lugar como órgão representativo e a força do Parlamento estaria francamente decadente na formulação e na organização da política nacional. Idem, p. 141. 106

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Câmara não é uma ―representação da Nação, na sua unidade, na unidade da sua consciência e dos seus interesses; mas, simples e puramente, um conglomerado de representações locais‖. Oliveira Vianna vê um Estado democrático por ter assegurada a representação eletiva das câmaras, do Presidente e do Conselho Federal derivada da manifestação de um corpo eleitoral popular.107 Sobre a relação específica entre o executivo e o Parlamento na Constituição de 1937, Oliveira Vianna expressa a sensação de ―que o espírito da nova organização é de pouca confiança na opinião das assembléias políticas, de pura formação partidária‖, e que o Presidente não necessita mais lançar mão —como nas organizações liberais anteriores— do apoio de partidos, de ―‗conciliações‘, ‗coligações‘ ou ‗maiorias governamentais‘‖. Expressão de pura descrença na lisura da representação política liberal à qual credita a ausência de significação social ou de conteúdo coletivo,108 sendo esse papel de representação do interesse nacional melhor realizado pelas entidades corporativas e em especial pelo Presidente, já que avalia que, em Considerando a nação como uma unidade, como uma personalidade coletiva, como uma totalidade orgânica — e não como um conjunto geográfico de Províncias ou Estados, meramente ajuntados ou unidos — ninguém com mais autoridade para encarná-la na sua soberania do que ele [o Presidente], o único dos seus representantes que é escolhido por um círculo eleitoral, cujos limites coincidem com os do próprio território nacional. 109 Também para Carl Schmitt, a crítica ao sistema parlamentar é contemporânea ao seu nascimento na Baixa Idade Média e deriva de uma literatura ancorada na tradição de idéias corporativas (berufsständischer Ideen), alternativas corretivas ao sistema parlamentar.110 Apesar de não se filiar ao corporativismo, por compreender —como Gaetano Mosca e H. Berthélemy— que ele tem origem na transferência dos métodos da organização econômica para a vida política, Schmitt, em 1926, critica alguns aspectos idênticos aos que Oliveira Vianna realiza na sua avaliação negativa do parlamentarismo, em 1939. Dentre os elementos criticados, destacam-se: a) a necessidade de unidade na representação espiritual (Repräsentation) (Schmitt a classificará como uma homogeneidade anti-classista) através da aclamação do Presidente da república; e b) unidade essa que não 107

Idem, pp. 155, nota nº. 6; 159-60; 164. Idem, pp. 167-9. 109 Idem, p. 153. 110 Cf. SCHMITT, Carl. Die Geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, p. 28. 108

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precisa de intermediários para manifestar, por seus atos, a vontade do povo — intermediários que funcionam como simples representantes (Vertretung) de interesses privados, localizados ou de classe. O Presidente não figura, assim, como um emissário ou como um agente comissionado, mas como autor com liberdade ilimitada para agir em sua ação representativa. Em identidade absoluta com a totalidade do povo nacional, e operando pela distinção fundamental com os não-nacionais, o Presidente centraliza a função legislativa e a administra através de sua função executiva. A legislação, nesse sistema, emana da administração, e não de um Poder distinto do Executivo. Esses aspectos criticados por Schmitt são um ataque ao que considera o caráter não representativo do Parlamento, confirmado pelo fato de que há necessidade da disciplina de voto nos partidos, que representam interesses que não são de todo o povo. O resultado é que não há democracia de fato quando a representação se faz pelo Parlamento. 111 Esta ausência de representatividade torna necessário um processo que se manifeste pela unidade entre povo e representante, só realizada pela relação entre o chefe do poder executivo e a população homogeneizada. A distinção entre Schmitt e Oliveira Vianna é que Schmitt separa doutrinariamente a pretensão liberal de representação Parlamentar da opinião pública nacional, da representação de interesses que podem estar, por exemplo, vinculados às corporações. Oliveira Vianna, contudo, compreende a ausência de opinião da nação somente quando se refere à eleição colegiada de representantes para o Parlamento, identificando uma limitação da representatividade eleitoral, circunscrevendo a abrangência de uma representação maculada pelos interesses locais. Em Oliveira Vianna, opinião e interesse aparecem como sinônimos ou, pelo menos, numa relação de complementaridade: a opinião é o veículo organizado e constante de manifestação do interesse. Em Schmitt, opinião e interesse são, ambos, objetos de representação, com uma diferença: a opinião possibilita uma representação pública e o interesse apenas indica a possibilidade de representação parcial ou privada. Como o Presidente está em situação de identidade com o povo, a opinião pública pode manifestar-se apenas quando o Chefe do Executivo considerar o assunto relevante. Como faz Schmitt em relação à representação por aclamação, Oliveira

111

Idem, pp. 28-9 e 42.

214

Vianna define o caráter democrático do Estado Novo pelo fato de sua Constituição prever o ―apelo direto à opinião pública‖ para as questões de maior relevo.112 O ponto de interseção entre os dois autores é estarem ambos influenciados por uma aproximação crítica e antiliberal ao Parlamento e ao próprio presidencialismo — caminhando em direção a concepções de Estados ―fortes‖ ou ―autoritários‖ (caracterizados pelo poder planificador do Executivo). No autor brasileiro, o antiliberalismo tem a ver com a crítica ao federalismo a que a doutrina e a prática liberal estiveram ligadas durante a República, redundando na decadência do princípio da autoridade. Para o autor alemão, o antiliberalismo vincula-se à crise da República de Weimar, que se mostrou incapaz de impor a autoridade da lei através da dinâmica parlamentar de cunho liberal. Ambos irão propor, então, o reforço do Poder Executivo, com ampla discricionariedade, como antídoto para o princípio da liberdade que, para ambos, eclipsava o caráter decisório e substantivamente democrático da organização social a partir do Estado. Uma questão final sobre Oliveira Vianna aparece em sua direta contraposição a Francisco Campos no que respeita à compreensão da natureza do regime político de representação numa sociedade de massas. Para Campos, está claro que existe uma tendência universal para os movimentos de massa, que se formam pela capacidade mobilizadora do mito, seja o da greve geral, seja o mito da nação ou o do líder carismático. Campos vê a sociedade brasileira como um reflexo natural, uma extensão da sociedade européia no que se refere à sua dinâmica moderna de fenômeno de massa. Em Oliveira Vianna, por outro lado, a questão se coloca através da dinâmica representativa: os partidos no Brasil não passam de simples aglomerações oligárquicas, de clãs, de grupos improdutivos, cujo objetivo seria explorar o país através da atividade burocrática quando da conquista do poder. Por conta dessa incapacidade estrutural de representação de interesses gerais, os partidos não podem ter função representativa, sendo a extinção dos partidos políticos pelo Estado Novo ―um ato do mais puro realismo político‖. A questão da representação política, da constituição de fontes de opinião não deverá igualmente passar pela formação de partido único, que depende da formação de uma mística capaz de dar legitimidade à monopolização da máquina pública.

112

Cf. VIANNA, Francisco José Oliveira. O Idealismo da Constituição. 2ª edição aumentada, p. 163.

215

Não há, em nosso povo, na sua psicologia coletiva, condições para a construção de uma mística viva e orgânica, uma mística que se apodere da alma nacional e a mova num sentido nitidamente determinado. Para um objetivo preciso — como o nacionalismo imperialista dos italianos de Mussolini ou o Nacionalismo racista dos alemães de Hitler. Uma pequena corte ou falange de homens de elite poderá, aqui, tomar-se de uma mística e agir no sentido dela; não, um partido, mesmo que ele represente uma minoria da Nação e seja o único partido militante: faltam-nos as condições históricas, sociais e políticas que geraram, na velha Europa, estas místicas poderosas. Na Itália ou na Alemanha, estas místicas não surgiram pela vontade dos homens de gênio, que as encarnam — Mussolini ou Hitler; surgiram das circunstâncias dramáticas, que colocaram estas nações dentro do dilema — ―viver ou morrer‖: — e a fórmula da mística era justamente a fórmula da vida. 113 As condições sociais que se manifestam, claramente, na obra de Oliveira Vianna, como a dispersão populacional, a falta de conflitos de classe, a vida simples, a atmosfera de ―cordialidade‖, todos esses fatores indicam a impossibilidade de uma mística, ―de uma weltanschauung‖ popularizar-se. O autor contrapõe-se frontalmente a uma percepção que, certamente, considera idealista, na medida em que não leva em conta a especificidade sociológica da conformação social e política do Brasil. Qualquer mística operando no vácuo nivelar-se-á, fatalmente, à psicologia das oligarquias políticas, o partido único transformando-se em ―fermento de revoluções civis ou militares‖, mantido, unicamente, pela repressão violenta. Para Oliveira Vianna, a mística coletiva só se estabelece em situações muito específicas, onde a ameaça externa é uma realidade constante, onde o povo, estando em um pequeno território e ―com o inimigo à vista‖, pode ser tomado facilmente pelo fanatismo delirante de defesa ou salvação coletivas. O modelo de ordem política que vislumbra, o do ―Presidente Único‖, não passa pela conformação mítica, pela mobilização emocional das massas, pela legitimação ideológica de uma palavra de ordem específica. A solução do autor e sua interpretação para o Estado Novo são de uma organização nacional e orgânica, vinculadas que estão à história institucional do Brasil. Olhando para o momento histórico em que foi possível formar e desenvolver o sentido de nacionalidade, é ali —no modelo político-constitucional do Império— que encontrará a chave interpretativa do regime caracterizado pelos ―poderes e prerrogativas excepcionais‖ do Chefe de Estado: O ideal de um chefe de Estado é, em tal regime [Estado Novo], o de uma autoridade que se coloque justamente acima dos partidos e grupos de qualquer natureza, de modo a poder dirigir a Nação do alto, num sentido totalitário, agindo como uma 113

Idem, p. 203.

216

força de agregação e unificação — e não como uma força de desagregação e de luta.114 Se em Francisco Campos é encontrada uma justificação universal, moderna, técnica, cosmopolita, para o Estado Novo e para o regime de força que irá aglutinar a sociedade brasileira em torno de Getúlio Vargas e da Constituição de 1937, em Oliveira Vianna esta legitimação

política

do

regime

necessariamente

vem

do

período

áureo

da

institucionalização do Estado nacional, quando a predisposição de organização racional da sociedade foi implementada sem o descuido das necessidades ―espirituais‖ relativas ao princípio da unidade. Considere-se que, entre o Império e o Estado Novo, está o período conturbado da 1ª República. Após esse período de desestabilização do princípio da unidade nacional, Oliveira Vianna considera que a legitimação do novo regime republicano se dá pela organização social da massa, de cima para baixo, dependente que está da força constritiva da coordenação institucional da administração pública —o Presidente investido de um Poder Moderador— e da organização corporativa das classes produtoras, representantes do verdadeiro interesse nacional. Nessa ―Democracia autoritária‖, onde as corporações são o verdadeiro povo, e as eleições são dispensáveis, é a organização associativa que garante a opinião, orientadora do Estado.115

114 115

Idem, p. 208. Idem, pp. 215; 229-30; 211.

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PARTE 4. O CONSTITUCIONALISMO ANTILIBERAL DA CARTA DE 1937

A Constituição de 10 de novembro caracterizou-se, com o decorrer do tempo, como um documento polêmico. Desde o início de sua existência até 1946, quando foi promulgada uma nova Constituição, foi alvo de inúmeras críticas, sendo compreendida, até hoje, pelos adjetivos e características genericamente atribuídos a ela: fascista, autoritária, castilhista, anticonstitucional, ditatorial, caduca, meramente formal em sua vigência e inaplicada. De fato, a Constituição de 1937 veio a lume já legitimando o emprego imediato do estado de emergência, que —dentre outras características— retirava dos poderes legislativo e judiciário a competência jurídica de controlar e julgar os atos excepcionais do Presidente da República.1 Desde 18 de dezembro de 1935, entretanto, o Estado Novo já se tinha instalado de fato. Com o Decreto Legislativo n.° 6, a Constituição de 1934 é emendada para equiparar ao estado de guerra (art. 161) uma nova figura denominada comoção intestina grave.2 A partir de então, o Presidente da República —que já contava de fato com o apoio fundamental das Forças Armadas, que haveriam de decidir pelo golpe— teria o poder de suspender as garantias constitucionais que considerasse prejudiciais à segurança nacional. Esse Decreto foi prorrogado sucessivamente até novembro de 1937. Por sob estas movimentações de caráter essencialmente político, subsiste um modelo de constitucionalismo de perfil antiliberal que lhes confere um preciso sentido técnico-jurídico. A utilização indiscriminada de poderes emergenciais através de institutos jurídicos de caráter extraordinário, e a posterior elaboração de uma Constituição de perfil 1

Como reza seu penúltimo artigo, o Art. 186: ―É declarado em todo o País o estado de emergência‖. BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, p. 115. In: PORTO, Walter Costa. Constituições Brasileiras: 1937. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001, pp. 69 e ss. 2 VIANNA, Luiz Jorge Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 4ª edição revista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, pp. 252 e ss. ―EMENDA N.°1 — A Câmara dos Deputados, com a colaboração do Senado Federal, poderá autorizar o Presidente da República a declarar a comoção intestina grave, com finalidades subversivas das instituições políticas e sociais, equiparada ao estado de guerra, em qualquer parte do território nacional, observando-se o disposto no Art. 175, n.°1, §§ 7°, 12 e 13, e devendo o decreto de declaração da equiparação indicar as garantias constitucionais que não ficarão suspensas‖. BRASIL, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. In: POLETTI, Ronaldo. Constituições brasileiras: 1934. Brasília: Senado Federal e MCT, Centro de Estudos Estratégicos, 2001, pp. 115-188., p. 187.

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plebiscitário, levanta o problema sobre o tipo de Estado, sobre o modelo políticoconstitucional subjacente. O modelo teórico-conceitual antiliberal que informava o constitucionalismo da época, da qual Carl Schmitt é um expoente mais que reconhecido, tinha como suposição básica a convergência de várias circunstâncias que demandavam uma organização política de natureza cesarista, gerando a incapacidade (ou ineficácia) de um constitucionalismo de molde liberal. 3 O não reconhecimento do caráter jurídico das técnicas ou das normas que informam a estrutura constitucional de exceção seria, em conseqüência, para Schmitt, o pecado capital das ordens liberais, em crise já no início dos anos 30 do século XX. O deslocamento ideológico que sofreu o constitucionalismo ocidental nas primeiras décadas do século XX foi o fato através do qual tornou-se viável a legitimação de um aparato político letal. O Estado que nascia na Alemanha no início da década de 20 queria o controle social e político das massas trabalhadoras que tentavam se organizar. A exacerbação do modelo, o Estado nazista, não é objeto deste trabalho. Mas é possível vislumbrar o início da República de Weimar como a representação de um fenômeno de caráter mundial. A necessidade de um Estado social, que fosse capaz de ―fazer a revolução antes que o povo a fizesse‖, transformou-se, através de técnicas constitucionais caras à tradição reacionária, em necessidade de um Estado antiliberal.

3

Cf. McCORMICK, John P. From constitutional technique to Caesarist ploy, passim.

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8. A ONDA DO CONSTITUCIONALISMO ANTILIBERAL NOS ANOS 30

8.1 Alemanha, Polônia e Brasil sob o jugo do constitucionalismo antiliberal

A justificação jurídico-constitucional do Estado Novo acompanhou o movimento de administrativização do direito, isto é, a transferência do poder legislativo para a administração pública e a constitucionalização de instrumentos provisionais de manutenção do poder político, como o estado de emergência. Essas duas características eram compartilhadas por várias constituições do ocidente, mas, na América Latina, o Brasil destacou-se por aproximar um modelo de Estado que só emergiu com a derrocada da democracia de Weimar, expressa pelas alterações profundas na dinâmica constitucional, e com a consolidação da ditadura polonesa sob o marechal Pilsudsky. O paradigma da atuação constitucional por mecanismos de emergência consolidou-se no Reichspräsident Friedrich Ebert que, durante os anos iniciais da República de Weimar, seria influenciado por Carl Schmitt —que permaneceu como consultor jurídico principal de todos os Presidentes que sucederam Ebert, inclusive o próprio Hitler. A legitimidade jurídicoconstitucional para uma constante utilização dos mecanismos de emergência aconteceu através do famoso art. 48 da Constituição de 1919. Numa história republicana de pouco mais de 13 anos, os poderes emergenciais do art. 48 foram demandados mais de 250 vezes. A justificação da assembléia constituinte para a existência do art. 48, apesar da experiência nefasta do estado de guerra (Kriegszustand) do Império germânico —e mesmo consciente de que os poderes ali fixados ―iam muito longe‖—, fundou-se na ―necessidade do tempo‖. A subseqüente confusão entre legislação parlamentar e decretos administrativos, derivados da ampliação considerável da discricionariedade legislativa do Poder Executivo, deu origem à predominância do aparato técnico-burocrático na condução do processo de decisão política. 4 4

Cf. ROSSITER, Clinton. Constitutional dictatorship: crisis government in the modern democracies. Reprint of 1948 first edition. New York/Burlingame: Harcourt, Brace & World, INC., 1963, pp. 33 e ss.; Cf. SCHEUERMAN, William E.. Introduction. In: SCHEUERMAN, William E. (Editor). The Rule of Law under siege: selected essays of Franz L. Neumann and Otto Kirchheimer. Berkley/Los Angeles/London: University of California Press, 1996, pp. 1-28., p. 4.

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Segundo Franz Neumann, num dos primeiros textos de avaliação crítica sobre o definhar de Weimar, A Decadência da democracia alemã (1933), a situação política de um sistema constitucional que balançava entre liberalismo e socialismo era um equilíbrio tênue. A democracia coletivista que havia implantado os direitos trabalhistas não chegou a criar um Estado corporativo porque o poder político pertencia exclusivamente ao Parlamento. O poder não era, portanto, dividido com partidos ou sindicatos que, aliás, não estavam subordinados legalmente ao Estado, enquanto o Conselho Econômico Nacional não participava da legislação. A essa aparente trégua na luta de classes através da incorporação de direitos sociais na Constituição, combinados com uma estrutura liberal, devia-se ao fato de o objeto primordial do Reich ser ―evitar o bolchevismo‖. Enquanto perdurasse a situação de estabilidade econômica, o sistema capitalista poderia suportar em silêncio o conjunto de direitos sociais reconhecidos e implementados através da Constituição de 1919. Quando os lucros começaram a escassear, o movimento contra a organização social do trabalho —que originalmente havia sido criada a fim de abafar as reivindicações socialistas e comunistas— intensificou-se. O alvo passou a ser o sistema democrático liberal-parlamentar que, em funcionamento, representava a ―plataforma da emancipação trabalhista‖. 5 Para Neumann, havia um problema na estrutura constitucional que ajudou a enterrar rapidamente a República de Weimar num governo com poderes concentrados no Executivo. Enquanto a Constituição garantia a existência de inúmeros direitos sociais, que necessitavam da imediata e às vezes constante regulamentação, o Parlamento, desenhado nos moldes do liberalismo, não desenvolveu —nos anos da República— uma dinâmica eficaz em sua prática legislativa. A conseqüência foi o rápido deslocamento da competência regulamentar para o Gabinete de Ministros, vinculado ao Executivo, e a auto-limitação do Parlamento, que passou a legislar exclusivamente sobre princípios gerais, ―deixando a sua aplicação para os ministros (Blankettgesetze)‖.6 Um enorme poder foi transferido, portanto, para instâncias burocráticas vinculadas ao Poder Executivo o que, no entender de Neumann, fragilizou o controle parlamentar da produção legislativa, eliminou a dissidência 5

Cf. NEUMANN, Franz. The Decay of german democracy (1933). In: SCHEUERMAN, William E. (Editor). The Rule of Law under siege: selected essays of Franz L. Neumann and Otto Kirchheimer. Berkley/Los Angeles/London: University of California Press, 1996, pp. 29-43. 6 Idem, p. 35. O termo Blankettgesetze significa norma em branco, ou seja, uma norma que necessita ser preenchida com o conteúdo de outra para adquirir sentido e ter aplicação. No caso, o Executivo passou a se encarregar administrativamente do problema, numa corrupção gritante do princípio de divisão dos poderes.

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política dentro do parlamento (a formação do Gabinete era de coalizão), e deu um status de governo de fato à burocracia. Tanto na configuração dos poderes emergenciais contidos originalmente no art. 48 da Constituição de Weimar, quanto nos derivados da incapacidade política e legislativa do Parlamento em operar sob uma situação de aguda crise política, ―o desejo por um executivo forte e a demanda por poderes de emergência adequados eram, então, dois elementos para o mesmo problema‖. 7 Tratava-se da necessidade genética da República de resolver suas aporias políticas através de um sistema jurídico que incorporasse e legitimasse medidas de natureza emergencial. Um movimento constitucional antiliberal, capitaneado por Schmitt, passou a suprir com doutrina uma necessidade que remontava ao Império Prussiano e ao seu paradigmático estado de guerra (Kriegszustand). Seguindo de perto o exemplo alemão, o Brasil construía, desde 1935, um conceito antiliberal de defesa do Estado centralizado no instituto do estado de emergência. Nos art. 166 e ss. da Constituição de 1937, ficou definido um modelo de restrição de direitos que englobava a suspensão da liberdade de locomoção e de associação, a censura à correspondência privada e a suspensão das imunidades parlamentares. Já o art. 186 declarava, em todo o País, o estado de emergência. O texto que explicita a aproximação indelével do modelo constitucional do estado de emergência com o original estado de guerra prussiano, refletido na constituição de Weimar, é o § 2°, que emenda o art. 166 da Constituição de 1937 no ano de 1942 afirmando que Declarado o estado de emergência em todo o país, poderá o Presidente da República, no intuito de salvaguardar os interesses materiais e morais do Estado ou de seus nacionais, decretar, com prévia aquiescência do Poder Legislativo a suspensão das garantias constitucionais atribuídas à propriedade e à liberdade de pessoas físicas ou jurídicas, súditos de Estado estrangeiro, que, por qualquer forma, tenham praticado atos de agressão de que resultem prejuízos para os bens e direitos do Estado brasileiro, ou para a vida, os bens e os direitos das pessoas físicas ou jurídicas brasileiras, domiciliadas ou residentes no País. 8 Trata-se da mesma configuração de um instituto de natureza provisional que historicamente foi caracterizado pela ausência de limites formais. A força do estado de emergência, condicionado pelas características do estado de guerra prussiano está em sua capacidade de permitir a reconfiguração completa do modelo de governo sob a égide de 7 8

ROSSITER, Clinton. Constitutional dictatorship, p. 35. BRASIL, Lei Constitucional nº 5, de 10 de março de 1942, p. 119.

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uma mesma Constituição. Como a maioria dos modelos legislativos de estado de guerra, de beligerância, de emergência ou de ―comoção intestina‖, o art. 68 da Constituição Imperial Prussiana, em oposição aos inúmeros limites atribuídos pela clássica legislação liberal do estado de sítio, era uma autorização de fato ilimitada para o exercício antiliberal do poder político. As indefinições temporal, espacial e material de uma declaração de guerra deixa a seu promotor a liberdade de utilizá-la da maneira que melhor entender. Esta fórmula, claramente distanciada da idéia de norma jurídica de corte liberal, foi a inspiração dos parlamentares alemães em geral, e de Hugo Preuss em especial, para contornar a crise pela qual passava a Alemanha à época da reunião da assembléia constituinte weimariana, em 1919. 9 A ―republicanização‖ de um instituto imperial não conseguiu, contudo, garantir a estabilidade econômica demandada pela situação crítica da Alemanha derrotada após a 1ª Guerra Mundial. No momento em que o art. 48 da Constituição de Weimar passou a ter como função dar ao Poder Executivo competência legislativa, as novas responsabilidades constitucionais limitaram a autonomia dos sindicatos que perderam, gradualmente, suas funções originais por conta do processo de centralização política. As lideranças sindicais passaram a representar os trabalhadores em um sem número de organismos estatais, tornando-se politicamente fracas e dependentes de um Estado cada vez mais fascistizado e corporativista. Segundo Neumann, a alternativa impossível era a guerra civil. O Decreto de emergência, suspendendo indefinidamente os direitos civis no começo de 1933, foi o fiat constitucional para a instauração de uma ditadura que durou até 1945.10 Para se investigar além do fato como a ditadura hitlerista derivou de um estado antiliberal, fascista ou totalitário, ou como essas classificações podem ajudar na identificação conceitual do Estado Novo é preciso, inicialmente, situar o Brasil no mesmo período. Emergindo de uma aparente estabilidade política nacional derivada do Pacto dos Estados instituído pelo governo de Campos Salles (1898-1902), o Brasil tinha se caracterizado, nas primeiras décadas da 1ª República, pela aparente resolução de um 9

Cf. ROSSITER, Clinton. Constitutional dictatorship, p. 36: ―Art. 68. O Kaiser pode, se a segurança pública no território federal estiver ameaçada, declarar o estado de guerra em qualquer parte dele. Até a promulgação de um estatuto imperial regulando as condições, a forma de proclamação e os efeitos de tal declaração, as provisões que se aplicam são aquelas do estatuto Prussiano de 4 de Junho de 1851‖. Nenhum estatuto imperial foi promulgado, e a lei de 1851 ficou valendo até o fim do Império. 10 Cf. NEUMANN, Franz. The Decay of german democracy, pp. 37-9.

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problema institucional de envergadura. Enquanto na monarquia o Poder Moderador era o responsável pela unificação dos interesses nacionais, o federalismo instituído pela Constituição de 1891 proporcionou a exacerbação dos conflitos políticos dos Estados brasileiros com a União. O Presidente Campos Salles, através de uma mudança sutil no regimento do Congresso Nacional, criou a necessidade de se verificar, formalmente, a legitimidade dos deputados recém-empossados. O reconhecimento dos diplomas dos deputados era realizado pelo Presidente do Congresso, eleito para a legislatura anterior. Na prática, este instituto proporcionou, ao mesmo tempo, a manutenção continuada da representação das forças estaduais hegemônicas e a docilidade do Congresso ante o Executivo Federal. A famigerada ―política dos governadores‖ estabilizou a república pela continuidade do poder político estadual, na medida em que reproduzia o poder existente nos Estados através da chancela do Presidente da Comissão de Verificação do Congresso. Politicamente, em resumo, os Estados deixavam de representar uma preocupação para a União, já que os seus conflitos políticos eram resolvidos internamente.11 Esta situação de relativa estabilidade política sofreu um abalo significativo com a emergência de problemas de ordem econômica e política, no final dos anos 20. Essa nova realidade somada à movimentação política que agitou o país —implicando a organização dos trabalhadores, a criação de agremiações partidárias anárquico-comunistas, a eclosão de inúmeras greves—, redefiniu o Estado brasileiro. Depois da ―Revolução‖ de 1930, um novo arranjo institucional pretendia impulsionar o país para além da prática oligárquico-federalista que até então caracterizava a política nacional. Pretendia-se afastar o modelo político-jurídico liberal que informara a Constituição republicana de 1891, em face de uma realidade social a exigir uma nova institucionalidade, completamente distinta das fontes originárias em que estivera fundada. As oligarquias tinham, na verdade, eliminado a possibilidade de uma organização institucional com base naquela Constituição. Oliveira Vianna já deixara esse ponto cristalizado na avaliação sociológica da 1ª República e da necessária nacionalização dos interesses sociais, corporativizando e centralizando o Estado. Diferentemente do que ocorreu na Alemanha sob Weimar, o corporativismo estatista, como instrumento de inclusão subordinada dos trabalhadores ao Estado brasileiro,

11

Cf. LESSA, Renato. Introdução: Campos Salles e o paradigma oligárquico brasileiro. In: SALLES, Campos. Da Propaganda à presidência. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal: 1998, pp. iii-xli.

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não foi uma decorrência fortuita do enfraquecimento dos poderes democráticos da República. Pelo contrário, o intervencionismo do Estado, projetado por Vianna, teria a incumbência de eliminar os distúrbios naturais de uma ordem social em implantação, de natureza capitalista. Enquanto em Weimar as características corporativas do Estado foram instauradas ―por baixo‖ como o prenúncio ―espontâneo‖ da decadência dos institutos formais da democracia, o corporativismo no Brasil veio ―por cima‖, para combater, pela incorporação, exatamente os movimentos sociais de natureza sindical em processo de organização. Oliveira Vianna pretendia refundar, em novas bases, o processo de unificação iniciado no Império. Percebendo a dinâmica dos conflitos sociais numa sociedade de massas, o Estado de perfil corporativo e antiliberal torna-se uma nova possibilidade democrática, também distinta da democracia liberal. A Revolução de 30 refunda a República, impondo o predomínio da União sobre a federação, das corporações sobre os indivíduos, e a precedência do Estado sobre a sociedade civil. Para tanto, foi influente o ideário positivista de muitas de suas elites políticas, especialmente as originárias do Rio Grande do Sul, como no caso do dirigente do movimento revolucionário vitorioso, Getúlio Vargas, e as provenientes da juventude militar, congregada no Clube 3 de outubro. São elas, nos primeiros anos da nova ordem, as principais personagens de sua institucionalização, em particular na deposição das oligarquias estaduais das suas posições de mando. São elas, também, as forças que levam à frente o impulso da revolução no que se refere ao papel do Estado, passando a entendê-lo como condutor da modernização, em franco dissídio com o liberalismo de mercado que dominou o cenário da Primeira República. E são elas, por fim, que associam os objetivos da industrialização com os ideais de soberania nacional e de encaminhamento da questão social, manifestandose, nesse caso, em favor da legislação protetora do trabalho, da qual deveriam ser excluídos os trabalhadores do campo.12 O compromisso que se forma entre modernidade e organização racional tradicional implicará a sedimentação paulatina de uma cultura estatista e corporativa que, sofrendo o influxo liberal de São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932, render-se-á à composição entre liberalismo e corporação na Constituinte de 1934. Contudo, a radicalização entre comunistas (Aliança Nacional Libertadora, de Luiz Carlos Prestes) e fascistas (o Integralismo de Plínio Salgado), com a participação, em ambos os lados, das Forças Armadas, não garante a sustentação política da composição constituinte. Logo, os 12

VIANNA, Luiz Jorge Werneck. O Estado Novo e a ―ampliação‖ autoritária da República. In: CARVALHO, Maria Alice Resende de (Org.). República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da Reública, 2001, pp. 111-153., p. 114.

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conflitos reais —e forjados— passam a sustentar o rearranjo de forças políticas em direção de um Estado de perfil antiliberal, sob a tutela de Vargas. Já sob o Estado Novo, promulgada a Constituição de 1937, o corporativismo de Estado seria implementado numa composição teórica com o modelo de democracia substantiva plebiscitária idealizado anos antes por Francisco Campos. O perfil antiliberal do modelo de Estado campiano fundiu-se, assim, aos interesses de tutela coorporativa do industrialismo nacional e às origens positivistas do modelo de Estado idealizado originariamente por Vargas.13 A gênese do modelo constitucional que deu forma ao Estado Novo é bem identificada pelo próprio Francisco Campos no texto Diretrizes do Estado nacional (1937). Publicado em novembro de 1937, no mês de instalação formal do regime, o texto é uma peça oficial de explicitação dos princípios cardeais da nova ordem política. Considerando a Constituição de 1934 como restauração da política das oligarquias no poder político, Campos reconhece, na Revolução de 1930, pela figura de Vargas, o benefício inicial da coesão proporcionada pela legislação social. Corrompido pelas velhas práticas políticas, o ideal revolucionário só se realizaria alterando substancialmente as instituições nacionais. A crítica ao localismo oligárquico toma a forma de censura à existência de partidos. 14 A ―democracia de partidos‖, como diz Campos, é demagógica por excelência e demanda o reforço da autoridade executiva. Para o autor, que robustece a sua crítica ao Parlamento e à democracia liberal fundada no sufrágio universal, os elementos a se destacar, nessa nova Constituição, são o reconhecimento da delegação do Poder Legislativo para o Executivo, a incorporação do direito ao trabalho e à educação, a restrição do poder de decisão dos juízes da Corte Constitucional, as práticas plebiscitárias, a ampliação da burocracia pública e o regime corporativo como um antídoto ao liberalismo e ao marxismo. 15 Por ter se feito ―por cima‖, o Estado Novo foi um exemplar único na composição ocidental da onda autoritária da primeira metade do século XX. Foi a única ditadura estabelecida através de uma Constituição previamente elaborada. O objetivo desta parte do trabalho é clarificar os elementos de um determinado constitucionalismo que se instituiu na 13

Idem, pp. 115-7 e 128. O ideário denominado de ―autoritário‖, atuante desde a república, reconhece um seu rebento no Estado Novo e adere a ele com um certo entusiasmo. Autores influentes como Monte Arrais, Bezerra de Menezes, Azevedo Amaral e Alceu Amoroso Lima viram no Estado Novo a concretização de seus ideais. 14 Cf. CAMPOS, Francisco. Directrizes do Estado nacional (1937), p. 41. 15 Idem, p. 41 e ss.

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Constituição de 10 de novembro de 1937 como o evento histórico influenciado por um paradigma conceitual que pode ser configurado a partir da obra de Carl Schmitt. A delimitação de um projeto conceitual, que conforma um modelo específico de constitucionalismo —aqui classificado como antiliberal e de massas— é notória e informará a feitura da Constituição de 1937 através de seu autor, Francisco Campos, que ressalta a capacidade legislativa do Poder Executivo. O argumento é menos normativo que empírico. Uma vez que, nas sociedades contemporâneas, as variadas necessidades envolvem um acentuado caráter técnico, as assembléias políticas carecem de capacidade e eficiência legislativas.16 Assim, segundo o art. 12 da Constituição de 1937, o Presidente é autorizado, pelo Parlamento, a expedir Decretos-Leis transformando-se, de fato, no Poder Legislativo do país. Na Constituição da República da Polônia, de 1935, em seu art. 55, alínea 1, o Presidente também era autorizado a promulgar decretos. Se, para o constitucionalismo tradicional na Constituição de 1937, ―a linha reta que dividia os poderes legislativos e os executivos partiu-se‖,17 para Campos, na sua defesa da delegação legislativa, O Estado deixou de ser o guarda-noturno, cuja única função era velar sobre o sono dos particulares, garantindo o sossego público, para assumir funções de criação e de controle em todos os domínios da atividade humana. A legislação não se limita mais à simples definição de direitos individuais: é uma enorme técnica de controle da vida nacional, em todas suas manifestações. Todos os processos, todas as técnicas surgidas da revolução industrial, cujo ciclo ainda não se encerrou, constituem outros tantos problemas legislativos, nos quais, ao lado do aspecto estritamente técnico, se encontra o aspecto da sua influência social ou da sua utilização em benefício do bem-estar público.18 Sustentando que a capacidade legislativa do Executivo representa a superação de uma concepção individualista e negativa do Estado, Campos estabelece a diferença conceitual entre política e técnica legislativa, a partir de abundante doutrina anglo-saxã. Enquanto o Parlamento deveria cuidar politicamente dos fatos mais relevantes da vida nacional através da legislação, a administração pública, pelo seu poder regulamentar e na expedição de Decretos-Leis organizaria, tecnicamente, os detalhes do cotidiano. Campos aproveita-se, desta forma, não só de uma estrutura teórica já utilizada por um conjunto de 16

CAMPOS, Francisco. Problemas do Brasil e soluções do regime (1938), pp. 87 e ss. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição Federal de 10 de novembro de 1937. Tomo 1, Arts. 1-37. Rio de Janeiro: Irmãos Pongentti, 1938, p. 327. 18 CAMPOS, Francisco. Problemas do Brasil e soluções do regimen (1938), p. 90. 17

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constituições européias da época, como realizará essa estrutura, composta de instrumentos constitucionais delimitadores do modelo de Estado antiliberal, na Constituição de 1937, revelando a identidade de alguns de seus institutos com manifestações de ordens sociais distintas. Na década de trinta do século XX a tendência geral de reorganização de alguns Estados ocidentais, após uma década de instabilidades políticas agudas e de uma crise econômica internacional, foi a do questionamento geral dos ideais e das práticas liberaldemocráticas, especialmente no que respeita à composição das constituições de inspiração burguesa e às instituições políticas herdadas das Revoluções (Inglesa e Francesa) —em particular o parlamentarismo. Não é sem razão, portanto, que um constitucionalista muito influente na década de 30, o russo Boris Mirkine-Guetzévitch aponta, em As Novas tendências do Direito Constitucional (1932), uma das mais fortes características do constitucionalismo ocidental contemporâneo: o crescimento dos poderes do Executivo. Classificado pelo constitucionalista brasileiro Carlos Maximiliano como um reles ―vulgarizador inteligente‖ pela capacidade de traduzir Constituições de vários países, Mirkine-Guetzévitch foi estudado por muitos dos mais relevantes constitucionalistas dos anos 30 como um autor capital para a compreensão do novo movimento de política legislativa que se cristalizava. Aponta, em síntese, a crise das democracias liberais ocidentais e o crescimento dos regimes ditatoriais e, no caso da América-Latina, prescreve —talvez ingenuamente— o regime parlamentarista e de opinião pública como antídotos para os males das novas tendências políticas, amalgamadas no Direito Constitucional vigente. Dedicando um capítulo inteiro de seu livro à avaliação das diretrizes dos novos Estados autoritários do ocidente, indica que a racionalização do poder político no século XX prevê a ampliação do campo de atuação do poder Executivo e a supressão do primado do poder legislativo, numa sociedade que demanda planificação e organização imperiosas. 19 Seguindo quase que literalmente as idéias de Carl Schmitt sobre a constituição cultural da modernidade, Mirkine-Guetzévitch assevera que ―O desenvolvimento progressivo do direito é, em geral, caracterizado pelo fato de que os próprios problemas estabelecidos no fim do século XVIII como problemas filosóficos e ideológicos, se

19

Cf. MIRKINE-GUETZÉVITCH, Boris. As Novas tendências do Direito Constitucional. Tradução de Candido Motta Filho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933 [1932], pp. 17 e ss. e 291 e ss.

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apresentam, em nossa época, como problemas exclusivamente técnicos‖. Desenvolvendo melhor o argumento, sustenta que O senso jurídico das concepções fundamentais do direito constitucional muda sua significação política segundo as épocas, segundo o desenvolvimento da democracia. (...) A democracia, no tempo da Revolução francesa, tinha necessidade de uma doutrina; os homens da Revolução francesa se ocupavam unicamente da realização constitucional desta doutrina, ao passo que agora a democracia triunfante não tem necessidade de guardar a ortodoxia doutrinal, mas sim precisa achar os meios técnicos para desenvolver os serviços públicos e o funcionamento da democracia. 20 A conseqüência deste ponto de vista —leitura positiva do processo de tecnicização das esferas culturais— é, por um lado, a necessidade do controle administrativo sobre a coisa pública de superar, nas democracias contemporâneas, os limites determinados pura e simplesmente pela legislação e, por outro, o papel fundamental do Executivo na determinação do processo legislativo, já que o poder é capaz de disponibilizar os instrumentos técnicos competentes para a produção da lei. Mirkine-Guetzévitch conclui que ―O verdadeiro sentido político do regime parlamentar na democracia contemporânea está na formação do Executivo‖.21 Parece que se está diante da descrição do remodelamento da Constituição de Weimar que sofrerá, exatamente, esse deslocamento em seu campo de forças político, do Parlamento para o Executivo. Não surpreende, portanto, ao autor, a configuração antiliberal da maioria dos Estados europeus, que utiliza como base de pesquisa comparativa de regimes constitucionais. A complexificação do mundo contemporâneo teria levado o poder político, necessariamente, a um grau de controle público e a uma necessidade de organização dificilmente realizáveis a partir de um conteúdo programático destituído de materialidade. Para Mirkine-Guetzévitch, a democracia contemporânea é tecnificada, necessita manter a estabilidade política, o respeito à opinião pública e o conseqüente controle das maiorias parlamentares por meio de um Executivo forte, capaz de agir prontamente às necessidades do momento. Esse conjunto de argumentos indica, para o autor, uma forte tendência centralista que exemplifica, em seu livro, com o modelo histórico da reforma constitucional polonesa capitaneada pelo Marechal Joseph Pilsudsky, para quem ―O único soberano da

20 21

Idem, p. 296. Idem, pp. 299-300.

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Polônia é o Presidente da República‖, 22 argumento utilizado tanto por Carl Schmitt quanto por Francisco Campos a partir de uma abordagem que identifica a ditadura com a ausência de limites claros entre os poderes políticos, com a personalização da soberania e com a proposição necessária de um regime novo. Efetivamente, a Constituição de 1937 —conhecida sob a alcunha de ―Polaca‖— sofreu o influxo direto da tendência constitucional européia, de caráter antiliberal, como indicam alguns textos da época. Para Mirkine-Guetzévitch a construção constitucional de um sistema de governo onde ―o Presidente é o detentor de um poder pessoal, tanto no ponto de vista governamental como no ponto de vista legislativo‖ aponta para um ―pseudo constitucionalismo‖ similar ao da Alemanha na primeira metade do século XIX, caracterizado, para além do controle legislativo, pelo controle da composição da Câmara dos deputados (Dieta), pela nomeação de um terço dos senadores, pelo direito a veto e dissolução das Câmaras, pelo emprego de decretos-lei, por estabelecer o orçamento e a prerrogativa de indicar os candidatos à sucessão. O motivo fundamental de um pseudoconstitucionalismo com tais caracteres é, segundo o autor russo, o fato de a tradição liberal do parlamentarismo não ter achado, na Europa, base psicológica e social. Assim, onde imperou a apatia política, o parlamentarismo tornar-se-ia o instrumento de interesses privados e não um instrumento democrático de manifestação de maiorias. 23 Sob esse influxo —moído e remoído pelo constitucionalismo antiliberal da maioria dos países ocidentais nesta época—, situar-se-á a Constituição Polonesa de 23 de abril de 1935 que é, segundo o professor Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, uma fonte recorrente de Francisco Campos na composição de vários dos artigos da Constituição de

22

Idem, pp. 303 e ss. e 274. Cf. BANDEIRA DE MELLO, Raul T. Uma Constituição moderna: Constituição da República da Polônia de 23 de abril de 1935 (Acompanhada de resumos da Lei Eleitoral relativa à Presidência da República, à Câmara dos Deputados e ao Senado). Prefácio do Prof. Dr. Irineu de Mello Machado. Compilação e Tradução direta do texto polonês de Raul T. Bandeira de Mello e L. Bronislau Ostoja Roguski. Rio de Janeiro: A. coelho Branco F°., 1938, pp. 3-29.; CASTRO, Araújo. A Constituição de 1937. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1938.; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição Federal de 10 de novembro de 1937. Tomo 1; CAMPOS, Francisco. O Estado novo (1938). In: CAMPOS, Francisco. O Estado nacional, pp. 217-223.; BERFORD, Álvaro Bittencourt. O Estado nacional e a Constituição de novembro de 1937. Rio de Janeiro: DIP, 1944. Cf. MIRKINE-GUETZÉVITCH, Boris. As Novas tendências do Direito Constitucional, pp. 279 e 291. 23

230

1937.24 O Presidente transformou-se, no modelo constitucional polonês, em um ―‗monarca‘ sui generis, com as prerrogativas das antigas constituições européias, construídas sobre o que se chamou o princípio monárquico. Mas em lugar de um rei hereditário, a Constituição Polonesa institui a sucessão ‗dinástica‘, pela escolha artificial dos presidentes‖. Esta configuração constitucional seria estritamente vinculada à teoria geral do Estado fascista, que nega os princípios e métodos da democracia liberal e estimula as minorias ativas vinculadas à noção metafísica de nação e à idéia da autoridade ilimitada do chefe de governo.25 Citando a Teoria da Constituição de Carl Schmitt e a Filosofia do Direito de Friedrich Julius Stahl, Mirkine-Guetzévitch assinala a recuperação do princípio monárquico —cujo poder ―existe antes e acima do povo e é nele que todo povo deve se confundir‖— como sendo a fonte de inspiração do projeto constitucional polonês. 26 É esse projeto —ao mesmo tempo fascista e representativo da recuperação da tradição monárquica— que, nos três anos seguintes, serviu de base aos debates parlamentares e deu origem à Constituição Polonesa de 1935. Não foi por outro motivo que as anotações de Mirkine-Guetzévitch foram utilizadas para os comentários do ex-Ministro da Justiça e Marechal da Câmara dos Deputados da Polônia, o Professor Waclaw Makowski, que as segue passo a passo.27 Para ele, a Constituição polonesa de 1935 fundamenta-se no princípio maior da solidariedade, absorvendo tanto a necessidade de ampliar a atuação social do Estado —com a incorporação do sindicalismo, por exemplo— quanto a de dirigir e projetar as condições de existência do interesse público. Autodenominou-se também Estado Novo: Ao Estado Novo já não é mais permitido abandonar ao acaso o evolver da vida social; já não lhe cabe tão somente votar e executar leis; compete-lhe o exercício de

24

Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição Federal de 10 de novembro de 1937, passim. Pontes de Miranda foi o único constitucionalista brasileiro a desenvolver uma comparação pormenorizada da Constituição de 1937 com a Polonesa de 1935, em seus artigos centrais. 25 Cf. MIRKINE-GUETZÉVITCH, Boris. As Novas tendências do Direito Constitucional, pp. 280-3. 26 Idem, p. 288. 27 Cf. MAKOWSKI, Waclaw. Idéias diretrizes da nova Constituição da República da Polônia. In: BANDEIRA DE MELLO, Raul T. Uma Constituição moderna: Constituição da República da Polônia de 23 de abril de 1935 (Acompanhada de resumos da Lei Eleitoral relativa à Presidência da República, à Câmara dos Deputados e ao Senado). Prefácio do Prof. Dr. Irineu de Mello Machado. Compilação e Tradução direta do texto polonês de Raul T. Bandeira de Mello e L. Bronislau Ostoja Roguski. Rio de Janeiro: A. coelho Branco F°., 1938, pp. 105-122.

231

uma atividade racional, fazendo-se fator da solidariedade, no entrechoque social dos interesses opostos, de indivíduos e grupos sociais. 28 Do caráter autocrático da Constituição de 23 de abril de 1935, é destaque a centralidade da figura do Presidente da República que, segundo seu art. 2°, ―encabeça‖ o Estado, estabelecendo-se como ―una e indivisível autoridade do Estado‖, ―unida em sua pessoa‖, e subordina todos os órgãos compositivos do governo: Senado, Câmara dos Deputados, Forças Armadas, Cortes de Justiça e Controle do Estado (art. 3°). 29 A subordinação de todos os poderes ao Presidente da República indica várias prerrogativas, entre as quais se destacam: a) todas as atividades dos órgãos mais importantes do Estado são coordenadas pelo Presidente (art. 11); b) ele tem o poder de convocar, dissolver, abrir, reportar-se e encerrar sessões da Câmara (Sejm) e do Senado (art. 12, c e d), podendo convocá-las extraordinariamente (art. 36); c) designa um dos candidatos para a Presidência quando de sua saída, convocando referendum —aqui está o ―princípio dinástico‖— (art. 13, § 2, a); d) não é responsável pelos atos oficiais (art. 15, §1); e) a responsabilização do Primeiro Ministro (escolhido pelo Presidente), quando proposta pelo legislativo, em sessão conjunta e por maioria de 3/5 (art. 30 e §§) e; f) a definição jurídica dos decretos do Presidente da República é a de Atos Legislativos, dentro do Capítulo sobre legislação (art. 49). É um fato curioso, na Constituição Polonesa de 1935, a ausência do termo Poder ou Poderes, como na Constituição do Rio Grande do Sul, de 1914. Um estudioso da época argumenta que, remetendo ao conceito de órgãos, estava-se colaborando para que os mesmos fossem interpretados como ―criados para servir à República, isto é, para trabalhar na realização dos fins do Estado Republicano‖.30 No constitucionalismo castilhista, igualmente, o conceito orgânico define a atribuição de funções de natureza técnica tanto ao 28

Idem, pp. 109 e ss. Sobre as novas atribuições do Presidente da República, em contraposição às suas funções sob a égide do Estado liberal, isto é, de um ―Estado fraco‖, Makowski aponta que: ―O Estado moderno precisa de um símbolo que represente o bem fundamental da solidariedade a unir os homens e os grupos humanos, nos quadros da sua organização estatal soberana; já não se trata tão somente de executar leis, mas, também, de zelar por toda uma organização, na qual, com fundamento no conceito de solidariedade, trava-se um conflito parcial de interesses e tendências antagônicas de indivíduos e de grupos. (...) Transformase o Presidente num elemento positivo da construção jurídica e social do Estado; conseqüentemente deve ser dotado de meios positivos afim de poder desempenhar-se dos seus novos deveres, de maneira que lhe seja possível exercer o controle da legislação e da administração.‖ (pp. 115-6). 29 CONSTITUTION OF THE REPUBLIC OF POLAND. Official Journal of Laws, n°. 30, 24 April 1935. London: M. I. Rolin (Publishers) LTD, 1941 [Edição bilíngüe: Inglês/Polonês], p. 6. 30 BANDEIRA DE MELLO, Raul T. Uma Constituição moderna, p. 20.

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Governo quanto às Forças Armadas, à Câmara dos Deputados e ao Senado, evitando-se, assim, que transpareça a precedência política e hierárquica do Presidente da República. Da mesma forma, esta prerrogativa do poder presidencial, materializada inclusive na capacidade de indicar seu sucessor, estava alinhada tanto à idéia de centralização do poder político do Estado, quanto à história recente da Polônia, país que havia enfrentado, vitoriosamente, o avanço militar bolchevista. Em conseqüência, sua arquitetura constitucional aderiu à recepção dos direitos sociais centralizados pela idéia de comunhão nacional. Estado pluralista, mantém o reconhecimento jurídico dos direitos das minorias nacionais, religiosas e lingüísticas, apesar de prever sua suspensão constitucional pelo estado de emergência. A Constituição Polonesa prevê, pois, a regulamentação das Cortes de exceção (art. 68, § 5) e que o estado de emergência se configura em caso de ameaça externa ao Estado, de distúrbios internos ou de conspiração disseminada de caráter traiçoeiro, e autoriza o Governo a suspender liberdades civis (art. 78). É também de importância ressaltar nesta carta, que apesar de nenhum ato legislativo poder contrariar a Constituição (art. 49, §2), existe a vedação expressa de casos de controle judicial de constitucionalidade das leis e da possibilidade de ingerência, por outros poderes, nas decisões prolatadas pelas Cortes (art. 64, §§ 4 e 5). Fica evidente que a Constituição Polonesa repetia o que já estava sedimentado,

na

época,

como

modelo

constitucional

por

excelência.

Esse

constitucionalismo antiliberal servia tanto as democracias complexificadas pelo advento das massas urbanas quanto os países que demandavam golpes de estado ou o aprofundamento de seu perfil autocrático, socorrendo-se da ameaça comunista como pretexto ou fonte histórica de seu modelo de Estado antiliberal.

8.2 O Cesarismo plebiscitário e o antiliberalismo da constituição de 1937

Francisco Campos antecipou-se à preocupação política contra a ―Quinta Coluna‖, comum em países da América Latina. Desde 1935, pelo menos, já havia teorizado o estado 233

latente da violência sob os regimes totalitários, movidos pela excitação irracional das emoções e pelo controle mítico das massas. Em A Política do nosso tempo, ele avalia os regimes ditatoriais fundados no anti-intelectualismo alemão, diagnosticando a imanente irracionalidade do processo político, originariamente estimulado pelo mito marxista da revolução econômico-social. Contra esse mito, indica o surgimento de outro, da nação e a configuração dos tempos modernos pela figura de um grande líder capaz de trazer a ordem social também pela mobilização irracional —porém ordenada— das emoções. O regime varguista fora orientado a estabelecer um inimigo comum —o comunismo— como referência de seus próprios limites, ponto a partir do qual poderia constituir-se discursiva e juridicamente. Não é por acaso, portanto, que o Brasil de Vargas, muito antes da movimentação internacional por ocasião da 2ª Guerra Mundial, ―fez mais em contra-atacar a infiltração subversiva estrangeira que qualquer outro Estado LatinoAmericano‖, dando relevo a sua Constituição como a seus Decretos, que estabelecem um controle rigoroso dos indivíduos estrangeiros e respectivas atividades públicas e privadas no país (principalmente as relacionadas com educação e formação de opinião). Na verdade, a justificativa para a outorga da Constituição de 1937 está vinculada à artimanha política do forjado ―Plano Cohen‖, que teria comprovado, como declarado em seu preâmbulo, a ―infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda‖. 31 O Estado Novo pretendeu legitimar-se, desde sempre, através da criação de uma resposta particularmente centralizadora que representasse o próprio perfil do regime. Era alimentado o medo de uma sociedade exposta às mais novas e temidas influências externas, reais ou ideadas: Com o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçavam a nossa

31

Cf. LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas. New York: The Macmillan Company, 1942, p. 137 e BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, p. 69.

234

unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e políticas. 32 Francisco Campos dedicava-se a construir um conjunto de argumentos que legitimassem a recepção pública da nova Constituição. Tinha a seu favor um entendimento social bastante complexo, que recepcionava o advento das sociedades de massas e identificava a funcionalidade de sua desrazão. Se a vontade dos povos se forma a partir da constante excitação das paixões numa época em que as instituições políticas liberais não passam de ingenuidade e anacronismo, o novo Estado de massas repousará sobre uma auctoritas que funciona através do apelo do líder carismático. Para Campos, em 1935, a assunção do Estado totalitário era uma alternativa complicada. O dilema do autor é saber que a ordem política contemporânea só pode ser gerenciada pela psicologia das massas, mas que até agora o modelo em desenvolvimento, o Estado totalitário, vinha se realizando como uma ordem político-administrativa perigosamente volátil: A integração política totalitária, apesar do nome, não consegue eliminar, de modo completo, as tensões políticas internas. Se conseguisse, deixaria de existir Estado, que é, precisamente, a expressão de um modo parcial de integração política das massas humanas. O que o Estado totalitário realiza é — mediante o emprego da violência, que não obedece, como nos Estados democráticos, a métodos jurídicos nem à atenuação feminina da chicana forense — a eliminação das formas exteriores ou ostensivas da tensão política. Há, porém, elementos refratários a qualquer processo de integração política. No Estado totalitário, se desaparecem as formas atuais do conflito político, as formas potenciais aumentam contudo de intensidade. Daí a necessidade de trazer as massas em estado permanente de excitação, de maneira a tornar possível, a todo momento, a sua passagem do estado latente de violência ao emprego efetivo da força contra as tentativas de quebrar a unidade do comando político. Ora, não é em vão que se libertam, em tão grande escala, as reservas de violência por tanto tempo acumuladas na alma coletiva. Essas reservas, que não podem ser restituídas ao estado de inação, precisam ser permanentemente utilizadas. De onde o fato do Estado totalitário ou nacional tender a derivar o estado de tensão interna para um estado de tensão internacional — manobra que torna

32

BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, p. 69. Prevenir uma organização política de caráter federativo, em que os poderes estaduais e não os grandes partidos detinham os rumos da política nacional, nos moldes do que havia ocorrido durante o primeiro interregno republicano (1889-1934), era a tônica do período. Pontes de Miranda classifica essa reencarnação do centralismo imperial, característica do presidencialismo delineado pela Constituição de 1937, como resultado da aliança entre a força centralizadora desse presidencialismo com as forças armadas reequipadas, ambos preparados para combater os caudilhismos regionais alicerçados nas polícias dos Estados. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição Federal de 10 de novembro de 1937. Tomo I, pp. 1689.

235

possível exaltar ainda mais os fatores de irracionalidade que operaram e que continuam a garantir a integração totalitária. 33 Esta noção do fenômeno totalitário colabora para que Francisco Campos seja um dos primeiros autores a definir, com precisão, o conteúdo do conceito. Dois pontos fundamentais são colocados pelo autor. Em primeiro lugar, não há possibilidade de um Estado literalmente total, já que ele é incapaz de encobrir tensões políticas que são refratárias a qualquer processo de integração absoluta. A repressão exterior do conflito político nacional tem como sintoma a sua potencialização, a sua intensificação latente. O Estado totalitário, com isto, pretende eliminar um elemento nuclear no quadro conceitual de Campos, o caráter polêmico da política. O mito do César, quando a serviço da realização totalitária, oblitera a integração política como uma tensão que pode ser regulada. Operando através da violência, o César totalitário faz transparecer a volatilidade do regime. Passa, então, a necessitar de uma repressão instintual que, pela utilização do conflito internacional, pretende garantir um mecanismo psicológico de escape. Um segundo ponto do conceito de Campos é a funcionalidade da violência, que no sistema totalitário opera livre dos controles jurídico-formais das organizações políticas de tradição democrático-liberal. No totalitarismo a repressão funciona contra as oposições internas ao regime como os partidos, os sindicatos, as associações, etc., e pretende gerar uma aparência de harmonia. Como os conflitos precisam de ocultação —sua eclosão sendo uma possibilidade concreta—, surge, então, a mobilização pela propaganda, incitando a manifestação especular da violência nas massas. Para um Estado que funciona através do uso anômico da força cujo sentido radica em sua própria funcionalidade, a violência representa o elo de identidade natural entre as massas e o poder político. Quanto mais o Estado se faz violento, mais as massas necessitam, por um movimento mimético, reproduzir essa irracionalidade. À belicização do Estado segue-se, naturalmente, a belicização das massas. Quando se concorda com estes pontos estruturais da obra de Campos, segundo o qual a política é uma constelação polar resistente às investidas da pretensão de integração ―total‖, depara-se com uma das primeiras e mais consistentes aproximações teóricas no esclarecimento do conceito de totalitarismo.

33

CAMPOS, Francisco. A Política e o nosso tempo, pp. 30-1.

236

Obviamente, Campos não estava sozinho ao avaliar o totalitarismo como um deslocamento político do Estado contemporâneo para formas extremistas. Um interlocutor fundamental no diagnóstico brasileiro das transformações políticas contemporâneas, e que se tornou um dos mais importantes ideólogos a chancelar o Estado Novo, foi Antônio José Azevedo do Amaral (1881-1942). No seu livro O Brasil na crise atual (1934), Azevedo Amaral já anunciava, fundado no decadentismo de Oswald Spengler, o caráter coletivista das sociedades posteriores à 1ª Guerra Mundial. As sociedades com esse perfil tendem a desprezar as diferenças individuais e ―autonômicas‖ dos sujeitos, até que estes se convertem em simples engrenagens de uma máquina colossal, cujo funcionamento será regido apenas pela idéia de tirar o máximo partido das unidades componentes em proveito da força e da capacidade de expansão de uma entidade abstrata, que passara a ser a única realidade admitida pela consciência social. 34 Como Campos, Azevedo Amaral dispõe de um instrumental crítico poderoso, que usa para destilar uma visão conflitiva do fenômeno social: o pragmatismo de William James, mais que o caráter mobilizador do mito soreliano ou da temporalidade concreta de Bergson, influencia a sociedade contemporânea na formação de um anti-intelectualismo orientador da ação política. Leitor de Nietzsche, considera o voluntarismo contemporâneo o responsável pela crença geral nas ―ações da vontade exercidas por processos diretos‖. Quando analisa as sociedades ocidentais Azevedo Amaral vê, no progresso da ação técnica, um ethos desenvolvimentista que conceitua de ―Deus ex machina do processo histórico‖. Sagrando Bacon como o grande e primeiro profeta da modernidade, ele afirma que a revolução gerada pela nova perspectiva humana ante as inovações vertiginosas sequer diminui a força dos ídolos como tendência irresistível da humanidade.35 Fazendo uma leitura extremamente positiva da Revolução de 30, Azevedo Amaral compreende que o sentido da nacionalidade só consegue estabelecer-se no momento em que a má consciência (Nietzsche) dos destinos nacionais, a inferioridade herdada de uma interpretação que vitupera esses desígnios, é afastada em prol da percepção do ―ímpeto renovador da revolução brasileira‖. Constituído como um programa político concreto, o nacionalismo brasileiro estabeleceu-se, para o autor, em razão da inevitabilidade da 34

AMARAL, Antônio José Azevedo do. O Brasil na crise atual. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934, p. 99. 35 Idem, pp. 22; 30-2.

237

Revolução de 30. Este prematuro entendimento, de natureza ―revolucionária‖, não poderia dar vazão à recepção da doutrina política comunista nem à do espectro fascista, ambas de caráter alienígena. Nesses termos, o sentido da mudança social é percebido como a adaptação do organismo político à realidade social, guiado pelo desenvolvimento histórico, por via das minorias da elite, que organizam o movimento revolucionário no sentido de educarem as massas para seus objetivos de mutação social. O hiato político e ideológico consolidado pela 1ª República, com sua movimentação federalista, teria desprezado o princípio fundamental da nacionalidade e reduziu a capacidade de interação entre Estado e sociedade. 36 Com esse diagnóstico, Azevedo Amaral pugnava pela antecipação de um Estado de perfil autoritário, com ímpeto industrialista, e contrário ao ―parasitismo‖ da organização burocrático-administrativa republicana, conforme fica patente em outros escritos. Mas a sua contribuição mais original à compreensão do Estado Novo encontra-se em O Estado autoritário e a realidade nacional (1938). O livro traz uma análise semi-oficial da estrutura ideológica da Constituição de 1937, e nele o autor pretende estabelecer uma distinção entre o Estado Novo, que classifica como democrático-autoritário e nacionalista e outras formas de mutação política contemporâneas, como o Estados comunista e fascista, que classifica como totalitários. Assim, o caráter ―realístico‖ da Constituição do Estado Novo adota, como a maioria dos governos, o primado da autoridade presidencial, manifesta na ação direta e pessoal sobre a legislação. O Estado democrático-autoritário implantado pelo regime varguista é: a) uma organização antiliberal, por entender necessária a planificação econômica da sociedade, baseada no exemplo do New Deal de Roosevelt; b) um Estado que, apesar do princípio democrático estar preservado através da representação indireta e do seu caráter plebiscitário, compreende a preponderância do princípio autoritário e a conseqüente necessidade do eventual sacrifício do primeiro em relação ao segundo; c) uma organização de caráter nacional, que objetiva preservar a integridade da tradição pátria. 37 O ponto que mais interessa para os fins deste trabalho é de que forma ele classifica o Estado totalitário, acrescentando características relevantes à conceituação de Francisco 36

Idem, pp. 203-7 e Cf. AMARAL, Antônio José Azevedo do. O Estado autoritário e a realidade nacional. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1938. 37 Cf. AMARAL, Antônio José Azevedo do. A Aventura política do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1935 e Cf. AMARAL, Antônio José Azevedo do. O Estado autoritário e a realidade nacional, pp. 166-9; 264, 195 e 150

238

Campos, nessa distinção coneitual que esclarece o exato perfil do Estado Novo. Para Azevedo Amaral, a quem interessava compreender os desdobramentos possíveis dos movimentos extremistas do comunismo e do integralismo brasileiros —que considerava idênticos na sua concepção de Estado como instrumento ou ditadura de classe—,o elemento principal do totalitarismo é sua natureza compressiva e aniquiladora da personalidade humana. Advoga, então, que sob um regime fascista ou comunista (Estado totalitário), o ―pensamento torna-se uma função estatal‖ e ―a coletividade nacional reduz-se a uma massa de escravos‖.38 Na descrição da dinâmica do regime fascista/comunista, conclui que Dentro de uma organização totalitária de qualquer daqueles dois tipos, o equilíbrio e a ordem social dependem implicitamente da subalternização completa dos componentes individuais da sociedade ao ritmo ditado pelo interesse coletivo e cuja manutenção invariável constitui a suprema finalidade do aparelho estatal. 39 A eliminação da liberdade e da autonomia individuais não significa, simplesmente, a coordenação artificial do espírito da nação, mas o efetivo ―aniquilamento da personalidade humana‖. Não se trata da simples ―submissão dócil‖ à autoridade pública, representante da hierarquia social que permite fazer funcionar a estrutura protetiva da nacionalidade. Não existe, no corpo social do Estado totalitário, a possibilidade de manifestar um interesse que não seja reflexo do interesse do Estado. A transformação do homem numa engrenagem da máquina totalitária representa para a ―expressão inequívoca da compressão das iniciativas e da liberdade do indivíduo pela força coercitiva de uma organização estatal absorvente e que se torna a única razão de ser da própria nacionalidade‖.40 Por outro lado, o Estado antiliberal mantém intacta a distinção entre a esfera social, na qual o interesse público deve prevalecer, e a esfera privada, que o Estado deve proteger de qualquer interferência, por tratar-se de ―esfera intangível de prerrogativas inalienáveis de cada ser humano‖. O princípio da autoridade não deixa de reconhecer, portanto, a independência intelectual e cultural da sociedade, preservando a individualidade e a iniciativa, inclusive na esfera econômica. Assim, levando-se em conta a planificação econômica, não se trata, no caso do Estado Novo, da construção de uma estrutura 38

Cf. AMARAL, Antônio José Azevedo do. O Estado autoritário e a realidade nacional, pp. 296, 159-60 e 171-2. 39 Idem, p. 276. 40 Idem, pp. 172; 160.

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corporativa de natureza fascista, em que os sindicatos seriam apenas tentáculos da burocracia. O princípio corporativo fundamental recepcionado pelo regime estadonovista é o da representação da autêntica vontade social por meio de órgãos que constituem os grupos econômicos e profissionais. 41 Ao lado da representação classista, caractere que distanciaria o corporativismo brasileiro do corporativismo burocrático-fascista, Azevedo Amaral define a representação política, em sentido lato, pela sua capacidade de gerar identidade entre o Estado e a nação. Opondo-se ao que chama de irracionalidade do critério majoritário do liberalismo, o autor reclama um conceito de democracia que signifique igualdade de oportunidade e não igualdade concreta e real. Vê, assim, nos institutos da eleição indireta e do plebiscito, a realização de uma identidade entre Estado e sociedade sem a mediação dos supérfluos aparelhos de ligação, caros à tradição liberal, como é o caso dos partidos políticos. Na formação da identidade nacional, o autor destaca, então, o papel das elites intelectuais e do próprio plebiscito, as primeiras com a função de irradiar o pensamento nacional às massas, e o segundo de funcionar o desenvolvimento da consciência cívica. 42 O mais minucioso relato escrito por um jurista —no caso um constitucionalista conhecido pelo viés sociológico de suas obras— sobre o regime Vargas foi o livro Brasil sob Vargas (1942), de Karl Loewenstein, que, neste mesmo ano, visitou o país e conviveu diretamente com os seus mais proeminentes atores políticos e, em especial, com o então Ministro da Justiça Francisco Campos.43 Tendo apresentado, três anos antes, uma pesquisa semelhante sobre a organização político-jurídica e social da Alemanha, A Alemanha de Hitler (1939), Loewenstein traça, a partir de sua avaliação sócio-jurídica do regime varguista em comparação com o nacional-socialismo, uma distinção funcional que lhe

41

Idem, pp. 171-2; 183-4. Idem, pp. 186-206; 303. 43 O constitucionalista alemão Karl Loewenstein, radicado nos EUA desde 1932 (primeiro em Yale (1934-36) e depois em Ahmherst) é, sem sombra de dúvidas, um dos mais influentes constitucionalistas do século XX com a edição de sua Teoria da Constituição (1957), sendo classificado, depois da publicação de seu livro Direito e realidade constitucional dos Estados Unidos (1959) de jurista antípoda a Carl Schmitt de Teoria da Constituição (1928). Discípulo direto de Weber, Loewenstein foi um dos autores mais preocupados com a classificação tipológica das formas de governo, sendo considerado —erroneamente— o primeiro autor a realizar uma distinção corrente entre governo autoritário e governo totalitário, conforme discussão acima, que tenta devolver o lugar de precedência devida a Francisco Campos e Azevedo Amaral. Cf. ANABITARTE, Alfredo Gallego. Constitución y política: estudio sobre la ‗Teoría de la Constitución‘ de K. Loewenstein. In: LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Traducción y estudio sobre la obra por Alfredo Gallego Anabitarte. 2ª edição. 1ª reimpressão. Barcelona/Caracas/México: Ariel, 1979 (1957), pp. 539-598. 42

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permite conceituar dois tipos ideais: os regimes totalitário e autoritário.44 É no estudo do regime Vargas que a questão conceitual se coloca pela primeira vez de forma mais clara. No Brasil, os estudos da época tendiam a classificar o Estado Novo —muitas vezes de forma depreciativa— como fascista.45 Sua classificação analítica do Brasil sob o governo Vargas como ditadura autoritária é a contribuição que lhe dá destaque internacional nos anos 40. Como se vê, antes de Loewenstein, Azevedo Amaral já trabalhava esta distinção conceitual entre autoritarismo e totalitarismo, em 1938. Citado pelo autor alemão como fonte histórica para se entender o Estado Novo, Azevedo Amaral, entretanto, não é considerado como a origem da tipologia desenvolvida. Mas classificar o Estado Novo como ditadura autoritária comporta algumas simplificações inadmissíveis sem adendos ou ressalvas. Como no Brasil o conceito de autoritarismo é polissêmico, existe a possibilidade de se vincular o autoritarismo de 37 à tradição dita ―autoritária‖ que se desenvolve desde a República Velha. Como foi visto na segunda parte do trabalho, esta não pode ser uma opção hermenêutica viável se for considerada a influência do pensamento de Francisco Campos na produção de sentido do regime político em tela. A simplificação mais gritante é que o conceito de autoritarismo não comporta, necessariamente, a idéia de que a ordem política que se está implantando dirigese a uma sociedade de massas. Como a Constituição de 37 representa uma condensação dos princípios pelos quais se guiou politicamente o Estado Novo —embora seja possível argumentar que ela não foi devidamente aplicada e nem mesmo esteve vigente—, e esses princípios constam da doutrina de Francisco Campos, não há como entender o regime como desconhecedor da realidade sociológica das massas. Até aqui, contudo, tem-se apenas um autoritarismo que deve ser voltado às massas. Outra discrepância, porém, é que um regime autoritário não precisa ser democrático. Se um regime é democrático e autoritário, sua dinâmica será sensivelmente distinta de um 44

LOEWENSTEIN, Karl. Hitler’s Germany. New York: The Macmillan Company, 1939, 176p. A síntese dessa classificação está em: LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, pp. 75 e ss. Para uma genealogia da discussão terminológica acerca do conceito de totalitarismo, ver FRIEDRICH, Carl J.; CURTIS, Michael; BARBER, Benjamin R. Totalitarianism in perspective: three vews. New York/Washington/London: Praeger Publishers, 1969. 45 É fato que os discursos de Francisco Campos e do próprio Getúlio Vargas colaboravam com esta apreciação. Mas, como bem anota Loewenstein, seguindo aqui um diagnóstico de Azevedo Amaral, o Estado Novo prescindiu de um background ideológico preciso que fosse além do castilhismo ou do personalismo puro e simples. Cf. AMARAL, Antônio José Azevedo do. O Estado autoritário e a realidade nacional, passim.

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modelo autoritário ―puro‖. A democracia representa a necessidade de legitimação pública do regime processo que pode ser respalddo pela própria Constituição. A suposta democracia do Estado Novo é a democracia antiliberal, vinculada às práticas plebiscitárias e às eleições indiretas, o que, na prática, elimina a ―necessidade‖ formal de os indivíduos participarem da prática política do Estado. O modelo de ordem política que Loewenstein percebe na organização constitucional brasileira, a partir de 1937, o Brasil sob Vargas, diferentemente dos Estados com uma organização totalitária ou fascista da vida social, não criou nem voltou o aparato estatal para o controle da esfera privada. A vida social dos indivíduos, seu cotidiano, sua cultura, suas regras de convivência, em não estando subordinadas a controles e a políticas públicas centralizados, não poderia ser classificada de totalitária ou fascista. Ainda: a própria decantação da legislação —sua estabilidade e eficácia— dependia, em grande parte, de sua funcionalidade, isto é, da capacidade de impor aceitação prática daqueles a quem se destinava. Nesse sentido, o termo autoritarismo fica exclusivamente vinculado à forma de governo, ―ao tipo e técnica de configuração política do poder (policy-forming power)‖.46 Apesar de Loewenstein lembrar que a estrutura jurídica do Estado Novo poderia, facilmente, ser classificada de fascista, a maioria de sua legislação não foi aplicada ipisis literis, sendo direcionada, quando efetivada, contra uma pequena e dispersa oposição política, dominada por remanescentes do Movimento Integralista e pela organização de fascistas e nacional-socialistas nas colônias italianas e alemãs. 47 O regime do Estado Novo não destoaria, portanto, dos governos que se estabeleceram pela América Latina, sob uma oligarquia dominante, como ―uma ditadura autoritária para a qual a teoria constitucional francesa cunhou o hábil termo régime personnel‖.48 Usando a interpretação de Azevedo Amaral, Loewenstein sustenta que, como o golpe derivou de uma conciliação complexa de interesses —e mesmo ideologias— geralmente divergentes, o nível de aceitação popular foi suficiente para que se prescindisse dos instrumentos usuais de controle social das ditaduras da época. A própria existência da Constituição, seguindo a tradição do modelo de ditadura positivista delineado pelo

46

Cf. LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas, pp. 370-1. Idem, pp. 141 e ss; 155 e ss; 372. 48 Idem, p. 373. 47

242

castilhismo, resultaria em reconhecimento de princípios básicos de conformação da comunidade política que impedem a direção da vida privada. Ao mesmo tempo em que alinha o regime estadonovista ao caudilhismo, Loewenstein traça uma descrição pormenorizada da estrutura político-administrativa do Estado Novo seguindo, como linha mestra, os desdobramentos institucionais de uma Constituição ―fantasma‖, e cuja existência seria uma ―realidade virtual‖. Na verdade Loewenstein localiza imediatamente a fonte da organização institucional de um Estado que se moderniza sob o controle centralizado de Vargas: os Decretos Legislativos do Poder Executivo. A Constituição não representaria, assim, um poder direto na organização do Estado Novo, embora tenha previsto e permitido a constante dilação do estado de emergência, de permanecer vigente no que respeita à legitimação do poder político do Presidente, bem como a determinação dos direitos sociais (especialmente dos direitos trabalhistas), que a equiparam, exclusivamente neste ponto —o capítulo ―Da Ordem Econômica‖ (art. 135 a 155)—, à Constituição de Weimar.49 A questão, para o autor, é que Uma vez no poder, autocracias estão pouco interessadas em ―legalizarem-se‖ por uma constituição formal. Seu objetivo primordial é estabelecer o maquinário de compulsão através do qual estarão aptas a manterem-se no poder contra possíveis ataques de oponentes políticos e uma defecção perigosa da opinião pública. 50 Em seu livro sobre a estrutura jurídico-administrativa do Terceiro Reich, Loewenstein já indicava que a eventual formalização de atos governamentais através de legislação ou regulações estatutárias, muitas vezes se processa de forma ―intencionalmente equívoca‖ ou mesmo ―desonesta, por razões oportunistas‖. O comum nos governos autocráticos da época, é que qualquer formalização seja considerada limitante para o exercício arbitrário do poder político. A modernização de um aparato burocrático, a organização de pelo menos uma estrutura partidária, geralmente controlada pelo governo e ―medidas legislativas e administrativas para a ‗Defesa do Estado‘‖ são as ações que garantiriam, nesses casos, a manutenção do poder político. 51 De qualquer sorte, Loewenstein identifica os elementos institucionais que, no Brasil, possibilitaram uma diferenciação dos modelos ―típicos‖ de ditaduras autoritárias: a) houve 49

Idem, pp. 49; 341. Idem, p. 133. 51 Idem, pp. 27-8; 133. 50

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a outorga de uma Constituição no momento do golpe de Estado; b) não permaneceu de pé sequer uma estrutura partidária; c) o regime varguista instalou-se no poder com ampla aquiescência pública e; d) dispensou, portanto, da construção de um aparato para moldar e orientar a opinião pública. Restaram as legislações de Defesa do Estado e de estímulo à nacionalidade e ao patriotismo, como antídotos a atitudes contrárias à segurança do Estado. Chama essas medidas de controle legislativo do extremismo político, isto é, a confecção coordenada de medidas legislativas contra atividades consideradas ―subversivas‖: a ―legislação emocional‖, um conjunto de medidas destinadas a conter manifestações políticas inspiradas no estrangeiro, de natureza insurrecional (nacional socialismo, fascismo e falangismo).52 Os focos definidos por esta legislação foram a imprensa escrita e as comunidades estrangeiras instaladas no sul do país. A questão colocada —a avaliação, por Loewenstein, do regime varguista enquanto ditadura autoritária—, é que o termo autoridade, no autor alemão, abarca elementos que não transparecem, ou não são incluídos quando o mesmo termo se coloca nos autores brasileiros —no caso, Francisco Campos, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral. Se em Francisco Campos o regime defendido é antiliberal, plebiscitário, cesarista e visa uma sociedade massificada, em Azevedo Amaral chamam atenção os instrumentos de controle social e econômico da massa (sistema corporativo), idealizados para cumprir exatamente o que Azevedo Amaral evitava assumir: o aparelhamento político dos movimentos trabalhistas pela burocracia do Estado. Já Oliveira Vianna, por outro lado, vê a democracia e a representação política vinculadas à capacidade legislativa dos conselhos técnicos, que passam a figurar como instituições centrais para a organização do Estado, no lugar do Parlamento. Embora estes autores se refiram a um Estado autoritário, o termo figura em todos eles como um adjetivo que representa, pura e simplesmente, a fortificação da autoridade pública. Se em Francisco Campos é possível identificar uma descrição precisa e pormenorizada do fenômeno totalitário, é em Azevedo Amaral, leitor atento de Campos mas intelectualmente independente dele, que se clarifica a distinção entre totalitarismo — visto como a materialização orgânica do fascismo e do comunismo— e o autoritarismo, entre a aniquilação radical da individualidade e a organização nacional da autoridade. Se 52

Idem, pp. 134 e ss.

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forem utilizadas, em conjunto, as construções de Francisco Campos e Azevedo Amaral, aparece um quadro bastante detalhado dessa distinção. Sob uma democracia de natureza substancial que necessita angariar legitimidade através do princípio da identidade entre o Estado e as massas, uma organização política estatal pode lançar mão de mecanismos antiliberais que preservem o seu sentido de representação, como é o caso do plebiscito. Não sendo um elemento específico dos Estados totalitários, ele é uma técnica que se pretende perfeitamente adequada a uma sociedade de massas, pelo fato de sua dinâmica estar fundada na mobilização emocional do mito do Líder. Garante-se, com a prática plebiscitária, segundo Azevedo Amaral, uma possibilidade de organização social em que a liberdade individual, de natureza não-política, pode ser preservada sem atentar contra a segurança da coletividade. Com o plebiscito, a consciência cívica, que derivaria de uma certa freqüência do processo de consulta popular, dá origem, para este último autor, a um tipo de legitimidade social que não redunda em dissolução das individualidades. O constitucionalismo que emerge do contexto autoritário dos anos 30, aqui representado especificamente pela obra de Francisco Campos, indica a assunção dos princípios antiliberais e plebiscitários, caros a uma democracia de massas que não crê mais na utilidade do parlamentarismo nem na capacidade integradora dos partidos. Se em 1935 Francisco Campos antevia o cesarismo romano como destino universal da sociedade contemporânea, com a Constituição de 1937 a sua opção ficou bastante nítida. Necessitava produzir um discurso que desse conta das aporias do totalitarismo e ao mesmo tempo, que garantisse, numa sociedade de massas, uma ordem política concreta. Nas inúmeras entrevistas realizadas na condição de representante máximo do Governo Vargas, Campos pôde produzir uma explicação pessoal sobre o Estado Novo. Esta compreensão tinha dois objetivos: a) guiar-se por uma avaliação crítica em relação à República Velha; b) identificar uma legitimação substantiva que independesse dos contornos jurídicos do regime. Em sua crítica ao federalismo, Francisco Campos —então Ministro da Justiça e Negócios Interiores do Estado Novo—, recupera sua filosofia da história, originalmente desenvolvida na década de 10, agora como personagem do campo vitorioso. Por ocasião da entrevista Diretrizes do Estado Nacional (1937), reafirma o liberalismo federalista da República como passado, como ―velha ordem de coisas, empenhada em deter a marcha

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triunfante do destino do país‖. 53 Para a abordagem de Pontes de Miranda o que mais ressalta na Constituição de 1937 é que a concentração de forças na figura do Presidente da República seria uma reação político-histórica natural à anterior força política dos Estados da Federação, o presidencialismo centralizador constituindo-se, através da atuação do Governo Provisório, na força motora da unidade nacional, na desmilitarização das polícias estaduais e num golpe mortal no caudilhismo. 54 Para Campos, mais relevante discursivamente que estes eventos que expressam a capacidade de articulação política de Vargas, é o fato de que derivam da densidade do ânimo construtivo da Revolução. Assim, se nos anos 10 Campos interpretava o advento da República como um acontecimento que representava a incidência temporal de um presente que se faria futuro, nos anos 30 ele percebe, na República, que o tempo de desorientação deve dar lugar ao verdadeiro destino do país: continuar a realização dos seus quatro séculos (anteriores a 1889). Em seus textos de 30 Campos sustenta, então, que a 1ª República é um hiato, um acidente histórico do qual o Brasil começou a recuperar-se com a Revolução de 30. Mas permaneceu, com a queda da 1ª República, uma tensão entre passado e futuro. Se no seu texto da década de 10 Francisco Campos identificava o Império como uma força positiva do passado, em 1935 está percebendo a 1ª República como um passado deletério e incapacitado de orientar virtuosamente o futuro. O processo revolucionário, por ter gasto suas energias no combate aos velhos instrumentos do federalismo, acabou sendo dragado por eles: ―[a]penas iniciada, a Revolução foi captada pela política, que a fez abortar mediante seus processos emolientes e dilatórios‖. Assim, a Constituição de 1934 representa o processo de ―restauração‖ de uma ordem política convencional que desfigurava a verdade histórica da pátria. Vê-se que, em Campos, a história não é uma simulação intelectual ou uma reconstrução intelectual que permite interpretar a realidade a partir de um determinado arcabouço moral.55 É a revelação da verdade dos fatos, é res factae. Tempo e história são os elementos que orientam sua obra, numa exegese crítica da Revolução, que não tinha, ainda, experiência suficiente para perceber a ―absurda futilidade, para uma revolução, de transigir 53

CAMPOS, Francisco. Diretrizes do Estado nacional (1937), p. 36. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição Federal de 10 de novembro de 1937, p. 169. 55 Sobre o sentido da história como reconstrução, ver KOSELLECK, Reinhart. Terror and dream: metodological remarks on the experience of time during the Third Reich. In: KOSELLECK, Reinhart. Futures past: on the semantics of historical time. TRanslated by Keith TRibe. Cambridge, Massachusetts/London, England: The MIT Press, 1985, pp. 213-230., p. 214. 54

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no seu começo, e antes de firmada nas suas posições, com a política interessada, principalmente em iludir, protelar e amortecer os impulsos criadores‖. A tensão entre o modo de fazer política do liberalismo republicano, representando a permanência indevida do passado, e a dinâmica da Revolução, que indica o nascimento —ainda incipiente— do futuro, permite-lhe afirmar que ―a Revolução de 30 só se operou, efetivamente, em 10 de novembro de 1937‖.56 Tendo em mente que a 1ª República representava o passado que se interpunha, indevidamente, entre a tradição e as aspirações gerais pelo progresso da nação, Campos indica, um a um, os males de um sistema democrático orientado pela fragmentação da identidade nacional em facções partidárias e pela corrupção endêmica de suas práticas. A perda de confiança no Estado e em suas instituições era ―o resultado infalível das democracias de partidos, que nada mais são virtualmente do que a guerra civil organizada e codificada‖. 57 A inadaptação da democracia liberal à situação objetiva do país devia-se à necessidade intrínseca de preservar suas instituições, viciadas em sua origem: a) por uma divergência em relação à própria história do país, cuja origem virtuosa é o Império e; b) por uma divergência em relação à realidade concreta da nação, caracterizada, sociologicamente, pela política de massas, ou seja, por uma incompreensão sobre o sentido do futuro. No que respeita à realidade presente, a democracia liberal, fundada em partidos, não consegue comportar as novas necessidades planificadoras do Estado no setor econômico: a conseqüência é a ameaça constante de guerra civil. 58 A inadaptação à tradição refere-se, basicamente, à incapacidade técnica das instituições liberais —como o Poder Legislativo— de garantir a existência da nação, já que trabalham com interesses regionalistas que conduzem à corrupção. O contraste com o futuro é a periculosidade que uma democracia partidária representa ante as novas formas de antagonismo político em uma sociedade de massas: O uso da violência, como instrumento de decisão política, passou para o primeiro plano, relegando os processos tradicionais de competição, e onde quer que se abra a perspectiva dessa luta, torna-se imprescindível reforçar a autoridade executiva, 56

CAMPOS, Francisco. Diretrizes do Estado nacional (1937), pp. 36-7. Esse texto, muito mais político que doutrinário, é uma clara aproximação à doutrina e às idéias golpistas dos generais que comandavam as Forças Armadas —Góis Monteiro e Gaspar Dutra— nos anos que o Brasil ficou sob estados de sítio sucessivos, antes do advento da Constituição de 1937. 57 Idem, p. 39. 58 Idem, p. 40.

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única cujos métodos de ação podem evitar o conflito ou impedir que ele assuma a figura e as proporções da guerra civil. Daí o fato de termos vivido, durante mais de quarenta anos, em regime constitucional teórico e em estado de inconstitucionalidade crônica, mal dissimulado por instituições que já haviam caducado antes de viver. 59 Em resumo, para Campos, ecoando límpida e literalmente o decisionismo de Schmitt, ―o Brasil reclamava decisão‖, enquanto o fundamento histórico do liberalismo era discussão, a proteção do indivíduo contra o Estado através de formalismos e instituições ultrapassadas. A necessidade do tempo presente é a de organizar o poder. Em assim sendo, por uma necessidade do tempo histórico, a Constituição do Estado Novo seria construída com uma única idéia: ―o governo gravita em torno de um chefe‖. 60 O decisionismo de Campos adquire maturidade entre uma concepção substantiva de democracia e a configuração de Vargas como o líder político, aclamado pelo povo, que trazia dentro de si a responsabilidade de decidir, pela força de sua vontade, os destinos da Revolução. A democracia antiliberal, substantiva significa, portanto, essa ligação orgânica entre a vontade do povo e o seu representante direto, a ser aclamado plebiscitariamente, que é o Presidente da República. 61 A soberania da vontade pessoal do Líder, ―a pessoa que decide‖, elemento que o autor reputa como a categoria fundamental da política, é no final das contas ―a encarnação do Estado‖.62 Em afastando as instituições formais que impediam a Revolução de se materializar, Campos identifica, pois, no Estado Novo um modelo de ordem política cuja simplicidade representa a força que o liberalismo não poderia jamais adquirir. O símbolo desta força seria a idéia de unidade: ―[o] poder, na Constituição de 10 de novembro, tem unidade. Há vários poderes e um só Poder; onde há vários poderes e não existe um só Poder, não há governo, porque governo é um só pensamento e uma só ação‖.63 Como diria dois anos depois, por ocasião do aniversário da Constituição de 10 de novembro, ―[a] vontade pessoal foi apenas o instrumento das decisões já tomadas pela

59

Idem, p. 41. Idem, pp. 47 e 54. 61 CAMPOS, Francisco. Problemas do Brasil e soluções do regime (1937), p. 75. 62 CAMPOS, Francisco. Estado nacional (1938). In: CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estructura, seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, pp. 209-215., p. 212. 63 CAMPOS, Francisco. Diretrizes do Estado nacional (1937), p. 67. 60

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história‖. 64 O mito do César teria a condição de levar as massas brasileiras à realização de seu destino histórico.

64

CAMPOS, Francisco. Segundo aniversário do Estado Novo (1939). In: CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estructura, seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, pp. 227-234., p. 228.

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CONCLUSÃO

Tanto nos livros de Schmitt quanto nos textos de Campos, pode-se perceber a lenta gestação do constitucionalismo antiliberal no século XX. No Brasil, a Constituição de 1937 representará o ápice de um movimento de décadas, crítico ao liberalismo e construtor de um modelo alternativo de sociabilidade. Este modelo transcende, inclusive, o instrumental analítico que identificava na tradição a orientação suficiente para superar a propalada leniência do modelo de Estado liberal. Ao alegado processo de estetização da política pelo liberalismo, o constitucionalismo antiliberal irá opor um movimento de emocionalização. A política será percebida como o espaço por excelência do conflito. A violência da dinâmica política não poderá, então, ser domesticada pelas instituições liberais, como as instituições jurídicas e o parlamento. Na Teologia Política de Schmitt, a modernidade é reconstituída pela interpretação de que a racionalidade técnica oculta a permanência da dimensão pessoal do político. O Estado, mais que um simples instrumento neutro, incapaz de encaminhar decisões políticas concretas, constitui-se como o local de exposição da soberania, no que esta tem de pessoalidade e excepcionalidade. A soberania política, afastada pela Teoria do Estado liberal representa, segundo o autor, a manifestação existencial de uma decisão que constitui a ordem política concreta, que dá origem à Constituição. O poder soberano é, nesse sentido, muito próximo ao poder burocratizado, discricionário e técnico da administração da justiça. O soberano, que decide sobre o estado de exceção e, com esta decisão, realiza a finalidade do Estado —que é a manutenção da ordem—, funciona à imagem e semelhança de um magistrado. Este último realiza o direito na medida em que representa a tradição judicial na aplicação das normas ao caso concreto. Esta normalização da discricionaridade, característica da função judicial, serve de inspiração para que Schmitt construa seus conceitos de soberania e representação política. Neles, a personificação do poder político aparece como uma garantia de sedimentação das formas sociais e culturais de vida organizadas em torno de uma unidade comunitária. Unidade em comunidade é uma idéia que significa a manutenção da homogeneidade 250

substancial através da diferenciação política. A exclusão do que é politicamente estranho significa, assim, uma necessidade de uma comunidade de igualdade e a característica nuclear da democracia substancial de Schmitt. As instâncias da democracia liberal não representam, desta forma, uma garantia da manifestação da identidade democrática substancial, dado que nas sociedades de massa, o Parlamentarismo, os partidos políticos e as eleições não correspondem mais aos interesses originários e identitários de uma nação politicamente organizada. A substancialização da democracia representa, para o autor, a necessidade de se determinar a unificação da fonte decisória fundamental, a sua personificação e a ligação direta, emocional, com a unidade do povo. A legitimidade democrática da ditadura é chancelada, então, pela prática da aclamação pública. Da mesma forma, em Francisco Campos, a crítica da 1ª República brasileira revela o descontentamento do autor com a função desestabilizadora da democracia liberal. Democracia significa, para ele, unidade nacional, centralização do poder político e organização do Estado para a planificação dos interesses nacionais. Já na década de 10 do século XX, Campos atenta para a necessidade de organizar as massas e identifica no princípio da liderança pessoal, da personalidade —que, então, vincularia à tradição—, como aquele capaz de realizar seu modelo de democracia nacional. Nesse primeiro momento do pensamento campiano, os juristas irão representar esse princípio: ordem pela concentração de autoridade. A ditadura, em Schmitt, reveste-se de uma juridicidade afiançada pelo seu conceito personalizado de soberania. Se a vontade de decisão constitui a unidade política de um povo, constitui, igualmente, o ordenamento jurídico que lhe dá suporte. O Estado ditatorial sustenta-se, para o seu constitucionalismo, na medida em que é capaz de manter a ordem social, e assim o faz, utilizando-se dos instrumentos jurídicos que permitem a realização do próprio direito. A possibilidade de se suspender as normas jurídicas para que direito seja garantido é a característica de uma ditadura nos padrões estabelecidos por Schmitt. O regime jurídico ditatorial é, assim, aquele em que existem normas de realização do direito, normas jurídicas que funcionam em situações excepcionais, suspendendo o ordenamento jurídico no todo ou em parte, para operar a proteção constitucional do próprio direito. A personalização do poder político, a substancialização da democracia, a eliminação das instituições representativas de origem liberal e a existência dos instrumentos 251

jurídico-constitucionais de exceção, todos esses elementos, temperados com uma crítica feroz ao liberalismo político como o movimento romântico da indecisão, informam a filosofia política antiliberal de Schmitt. Filosofia decadentista e elitista que desconfia profundamente não só da capacidade, mas da própria racionalidade das massas na composição do processo político. Essa verdadeira filosofia da história vê a dissolução de uma meta-narrativa orientadora da ação como motivo da decadência moral da modernidade. Tanto em Schmitt quanto em Campos, a angústia de um tempo incapaz de decisão política só pode ser superada pela ação orientada pelo mito do indivíduo capaz de exercer a decisão. A avaliação e o conceito do tempo político são, para ambos os autores, de natureza substancial. Num mundo interpretado de forma a ver na razão um instrumento ineficaz de realização da ordem, a emocionalização da política é o caminho identificado pelo constitucionalismo antiliberal: à regularidade da norma, impõe-se a irrefragabilidade da vontade pessoal; em oposição à educação vinculada a valores, predomina a irracionalidade do mito político. O estranhamento do constitucionalismo antiliberal em relação à movimentação política das massas representa o estranhamento das elites com o atrevimento do povo. Esta posição redundou na aniquilação filosófica da subjetividade de uma coletividade social nascida dos movimentos operários do final do século XIX. Para o constitucionalismo antiliberal, o homem contemporâneo, se é massa, perde um tanto de sua humanidade. Incivilizado no princípio e, afinal, incivilizável, é tido como incapaz e medicado com a curatela política da liderança cesarista. A ―irracionalidade das massas‖, o ―baixo profundo de Caliban‖ seria um fenômeno do tempo, que reclamaria, assim, o chamado pelo César. Também o positivismo comteano reconhece, no liberalismo, a origem da decadência moral da sociedade moderna e identifica, nas classes intermediárias e na moralização do Estado, a alternativa concreta à democracia liberal. O governo de perfil positivista de Júlio de Castilhos e de seus seguidores via na centralização e na moralização do poder político as armas necessárias para o progresso econômico da sociedade. Assim, imbuído da responsabilidade pública máxima, o Presidente do Estado do Rio Grande do Sul comandava, do Poder Executivo —no que seria uma antecipação de elementos cardeais do

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Estado Novo— todo o processo de produção legislativa, assim como as eleições, a sucessão e uma assembléia limitada a votar o orçamento e as contas do Estado. Esse deslocamento da função legislativa para o Poder Executivo, percebido apenas como funcional, é corroborado por Oliveira Vianna, que recepciona de Schmitt a idéia do Poder Executivo como guardião da Constituição, como capaz e previamente autorizado a fazer funcionar mecanismos jurídicos e administrativos excepcionais na defesa da ordem social. A administrativização ou burocratização do processo de produção e aplicação da lei se coaduna com a institucionalização do corporativismo pela Constituição de 1937. Como o idealizava Vianna, as instituições coorporativas nasceram no Brasil, coordenadas pelo Estado, fundadas na necessidade do princípio da eficiência do serviço público. Desta simples argumentação derivou a necessidade daquelas instituições. O direito, lugar privilegiado na construção da ordem moderna, embora não tenha necessitado abandonar a cena, teve que ser completamente reconfigurado, adaptado a uma situação de flexibilidade que perdurou durante a vigência do Estado Novo. Ao se avaliar como o antiliberalismo brasileiro se organizou no momento de crise social, fica mais claro identificar suas origens e perceber a existência de um momento antiliberal nos anos 30 do século XX. A ameaça do comunismo e o avançar das forças sociais organizadas demandou um novo modelo de Estado que se estabeleceu em primeiro lugar na Alemanha sob Hitler. Inspirado por Schmitt, o Estado alemão optou pela administração política da crise através dos instrumentos de emergência e viu, nas instituições coorporativas, uma forma de controle dos movimentos sindicais. Um segundo passo, que seria notado na Polônia, foi a previsão constitucional da situação de crise social que orientou a conformação da sua Constituição em 1935. Já existindo, portanto, um arcabouço teórico sólido (Schmitt) e uma experiência histórica concreta (Polônia), o momento antiliberal no Brasil avançou firme sob a batuta de Vargas, com a chancela teórica e técnica de Campos e Vianna. O constitucionalismo antiliberal deriva do pensamento antiliberal, mas não se confunde com ele. Uma forma de compreender o pensamento antiliberal é pelos fundamentos que postula para a relação política de autoridade, distintos dos do pensamento liberal. Nos séculos XIX e XX, este último retira sua legitimidade ou da tradição, como em Walter Bagehot, Aléxis de Tocqueville e Joaquim Nabuco; ou dos procedimentos racionais 253

que instituem a representação, como em Hans Kelsen. Já o pensamento antiliberal, que vem da reação católica à Revolução Francesa (De Maistre, Bonald e Donoso Cortés), desenvolve, nos anos 20, outro fundamento para a autoridade. A representação política — isto é, a relação entre povo e governo—, pode se estabelecer tanto pela existência de corporações profissionais, como por uma elite esclarecida ou através do plebiscito. Nesses casos, o Estado reconhece um parlamento geralmente restrito a funções orçamentárias. Agora, quando se fala especificamente de constitucionalismo antiliberal, o elemento distintivo é a possibilidade da suspensão do direito autorizada pelo próprio direito. É deste modo que o Poder Executivo pode exercer a sua vontade livre de limitações jurídicas. Esta engenharia constitucional da exceção, justificada pela necessidade dos fatos, se vale de um modo específico de legitimação democrática, colhido no pensamento antiliberal, a legitimação plebiscitária. O Estado Novo tem uma base constitucional antiliberal. Como junção de tradições, combina a legitimação democrática antiliberal —corporativismo, elitismo e plebiscito, com a forma jurídica da ditadura constitucional —a exceção. Como notado por Graciliano Ramos, a justificação jurídico-constitucional do Estado Novo acompanhou o movimento de administrativização do direito, isto é, a transferência do poder legislativo para a administração pública, cristalizada no estado de emergência. Não se pode, portanto, chancelar a visão segundo a qual do Estado Novo foi simplesmente a manifestação de um modelo de Estado autoritário, cuja fonte doutrinária torna-se indistinta na maré de críticas à desagregação política da 1ª República. O constitucionalismo antiliberal que se consolida no Brasil sob Vargas é a forma jurídica da manifestação ditatorial do César, sob uma sociedade de massas. Nesse sentido, a tradição das regras jurídicas deixa de ser a única arma de organização política da autoridade quando as massas eclodem. A moralização da política, a formação de elites, o processo civilizacional que a tradição do pensamento conservador e reacionário mobiliza representam o passado. As massas trazem o mito, o irracional de forma definitiva à constituição do espaço da política. De tal modo, o poder político não precisa mais de orientação da tradição —esta função se torna destituída de sentido—, mas de liberdade total para agir na pacificação social. O direito revela sua importância na consolidação do Estado burocrático-policial mas, se se pensa na sua realização como garantia de direitos e 254

segurança jurídica, está na periferia do sistema político antiliberal. O constitucionalismo antiliberal opera, portanto, na lógica jurídica da emergência, mas não pretende organizar um Estado provisional. O cesarismo pretendido é constitutivo da política para as massas e a ditadura plebiscitária não é, assim, um recurso extremo e limitado temporalmente, mas configura-se como uma fórmula usual de governo e como um modelo específico de Estado: o Estado antiliberal plebiscitário, cesarista e de massas.

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