TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

June 7, 2017 | Autor: Marta Nunes da Costa | Categoria: Critical Theory, Music, Democracy
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ORGANIZAÇÃO

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TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED Organização: Marta Nunes da Costa Direção gráfica e capa: António Pedro Edição do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho © EDIÇÕES HÚMUS, 2013 End. Postal: Apartado 7081 – 4764-908 Ribeirão – V. N. Famalicão Tel. 252 301 382 / Fax 252 317 555 E-mail: [email protected] Impressão: Papelmunde, SMG, Lda. – V. N. Famalicão 1.ª edição: ?????????? 201? Depósito legal: xxxxxx/?? ISBN 978-989-755-xx-x

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ÍNDICE

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Introdução Derecho y Teoría Crítica. La concepción de Habermas Jorge Álvarez Yágüez EM TORNO DE ADORNO

47

Swann e a formação objetiva do sujeito: reflexões a partir de Theodor W. Adorno Christian Muleka Mwewa e Alexandre Fernandez Vaz

65

A Crítica da cultura de massas em Theodor Adorno e Vilém Flusser Rodrigo Duarte

79

Adorno e o Happening Pedro Hussak van Velthen Ramos

91

Sublimação e pornografia na Dialética do esclarecimento: um comentário crítico Verlaine Freitas

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Historicidade e autonomia da arte Pedro Süssekind

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TEORIA CRÍTICA CONTEXTUALIZADA 125

A teoria estética de Adorno – Quo vadis? Bernhard Sylla

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Hipermodernidade, cidade e violência em Joaquim Manuel Magalhães Sandra Guerreiro Dias TEORIA CRÍTICA, LITERATURA E EDUCAÇÃO

161

A teoria crítica latente no romance A noite das mulheres cantoras (2011) de Lídia Jorge Mário Vieira de Carvalho

201

Educação – Arte – Filosofia: um excurso em torno de Música e Pensamento de Fidelino De Figueiredo Artur Manso

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Coordenação pedagógica na escola pública municipal de Fortaleza: da legislação às práticas Maria Auxiliadora Soares Fortes Carlota FernandesTomaz e Ana Isabel Andrade TEORIA CRÍTICA, EMANCIPAÇÃO E HUMANISMO

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227

O universalismo internacional de Habermas à prova: críticas a uma filosofia política do consenso Silvério da Rocha-Cunha

253

Reflexões em torno da querela P. Sloterdijk e J. Habermas Pilar Damião de Medeiros

265

Uma reflexão sobre o contributo de Axel Honneth para a transformação da teoria crítica Paulo Vitorino Fontes

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A teoria contra o cinismo: Os usos paradoxais da crítica de Adorno a Rancière João Pedro Cachopo

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A arte como possibilidade de emancipação em Vilém Flusser Debora Pazetto Ferreira

303

Critical theory revisited: reconstructing the democratic ideal Marta Nunes da Costa

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INTRODUÇÃO

Teoria Crítica Revisitada – diálogos entre Música/Filosofia, Estética/ Ética, Política/ Arte AS HISTÓRIAS DA FILOSOFIA, da Música, da Arte e das Ciências foram mar-

cadas por rupturas de discurso, mudança de paradigmas, diferentes interpretações e perspectivas, de acordo com as quais o objecto de cada disciplina seria avaliado. Filosofia, enquanto metafísica, procuraria um mundo ideal (desde Platão), movida pela preocupação com a Verdade; esta tendência foi no entanto interrompida com o Humanismo e as novas descobertas científicas. A partir de Galileu, que redefiniu a nossa compreensão do universo e do posicionamento humano vis-à-vis o ‘outro’; a Descartes que, influenciado pelo raciocínio geométrico e matemático afirmou a supremacia da razão sobre todas as outras dimensões e inventou a subjetividade; a Kant, para quem a Razão não era apenas uma propriedade, entre outras, dos seres humanos – a Razão era a característica essencial e definitiva da humanidade, na sua relação com a nossa natureza empírica – tornando-se critério e referência a partir do qual o conceito de autonomia individual foi criado; a Hegel que, lutando contra a lógica sequencialista de Kant introduziu a dialéctica como forma de ser; a Teoria Crítica posiciona-se num território intermédio, quase suspenso, de diálogo entre todas estas tradições, e, mais importante, enquanto posicionamento crítico,

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onde o passado tem de ser avaliado, reflectido, julgado de forma a transformar a nossa herança em novas condições que nos permitam lidar com as condições contemporâneas. Adorno, com Horkheimer, Herbert Marcuse, mas também Habermas e até Foucault, entre outros, identificou a urgência de questionar o status quo e o de dar conta dos discursos paralelos que escapam à versão tradicional, oficial (e também poderosa) da História. História é substituída por histórias, unidade por multiplicidade, sistematicidade é substituída por dialéctica, e mais importante, a verdade é reconhecida (ou agora assumida) como uma construção entre outras, tendo implicações diretas na nossa conceptualização acerca do que constitui conhecimento e de como as diferentes áreas de saber se relacionam com esta. Esta mudança metodológica, de um discurso de unidade a um discurso de dispersão, presente desde Adorno, alertou-nos para dois fenómenos importantes: primeiro, constatou a crise da modernidade; segundo, criou um novo espaço crítico onde novos discursos pudessem emergir. Com o primeiro, Adorno e Horkheimer, desde a Dialéctica do Iluminismo, comprometeram-se com o projeto do Iluminismo – de reter a crítica como instrumento essencial e componente do pensamento e ações humanas – embora agora transformando a forma como este projeto deveria ser concebido. Crítica, Razão e o jargão da autonomia não poderiam manter-se reféns do período iluminista; teriam agora de ser confrontados com as atrocidades do século XX e, portanto, responder a desafios inteiramente novos nas áreas da ética, moral, política e arte. Com o segundo, Adorno anuncia, através de exemplos de artistas, intelectuais e criadores – como Schoenberg, Picasso e Beckett – novas formas de pensar autonomia. Filosofia e Arte iniciam um novo diálogo, onde a relação entre Política e Música, Moral e Política encontra espaço para ser igualmente redefinida. Desde então a Teoria Crítica teve fortes repercussões nos Estudos Culturais, Estudos dos Media, Estudos Musicais, Arte, Filosofia, Sociologia e até Ciência Política. A Teoria Crítica marcou uma viragem na história e na nossa forma de abordar e resolver problemas, criar soluções, construir obras de arte, comunicar os nossos pensamentos,

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redefinir os nossos ideais e redefinir-nos a nós mesmos enquanto agentes morais e políticos. Este livro tem duas finalidades: primeiro, revisitar a Teoria Crítica e explorar as diferentes formas através das quais tocou, afectou e transformou as várias disciplinas – da Estética à Ética, Política, Filosofia, Música e Artes, queremos explorar a interdependência, intersecções e influência mútua entre as várias disciplinas sob a luz trazida pela Teoria Crítica. O nosso segundo objectivo é re-avaliar a Teoria Crítica. Para isso convidamos a uma análise e comparação entre várias esferas onde a Teoria Crítica teve repercussões. Por exemplo, qual a importância da Teoria Crítica para a música? Aqui queremos abordar a influência da Teoria Crítica sobre compositores, musicólogos, educadores de música e até Instituições. Como é que a Teoria Crítica se reflete na Estética? Qual o impacto que tem na redefinição da obra de arte? Qual a relação entre objecto de conhecimento e objecto estético e quais são as implicações a nível normativo e prático? Como é que a Teoria Crítica transformou as formas de fazer e pensar a filosofia? E o que traz a Teoria Crítica à Teoria política, por exemplo, na forma de abordar as questões do juízo, deliberação e ação política? Que elemento novo trouxe a Teoria Crítica para pensar a relação entre música (e outras artes) e política? Os artigos presentes neste livro visam responder a estas questões. Como primeiro artigo irão encontrar ‘Derecho e Teoria Crítica’, uma análise crítica e articulada da história do direito e da sua relação com a teoria crítica. Jorge Álvarez Yágüez oferece-nos uma leitura da evolução desta relação, levando-nos a confrontar várias questões: qual a relação entre legalidade e legitimidade? Como pensar a articulação entre autonomia individual e autonomia coletiva? Como conciliar o pluralismo entendido de forma estrutural, e o pluralismo enquanto conjunto de doutrinas compreensivas? Depois de levantadas estas questões, os artigos procuram responder tematicamente a elas. Assim, no primeiro capítulo encontramos artigos que dialogam diretamente com Adorno. Christian Muleka Mwewa e Alexandre Fernandez Vaz, Rodrigo Duarte, Verlaine Freitas e Pedro Sussekind apresentam as suas leituras da cultura industrial Adorniana e do papel da arte. No segundo capítulo voltamo-nos para teoria crítica contextualizada. Bernhard Sylla oferece-nos uma leitura de Adorno em articulação com Humboldt, enquanto Sandra Guerreiro Dias e

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Michelle Carreirão Gonçalves olham para o papel da teoria crítica em contextos específicos: na obra da Joaquim Manuel Magalhães e em relação ao desporto. O terceiro capitulo é dedicado ao tema de teoria crítica, literatura e educação. Começamos este capítulo com um artigo empolgante, crítico e inovador por Mário Vieira de Carvalho, que aplica a atitude critica na leitura que faz do romance A Noite das Mulheres Cantoras de Lídia Jorge. Artur Manso e Maria Auxiliadora Fortes refletem sobre o caso português e a experiência educativa brasileira. Dilmar Mirande oferece-nos uma leitura sobre o retorno ao pulso em práticas musicais contemporâneas. O quarto capitulo tem por tema ‘Teoria Crítica, Emancipação e Humanismo’. Aqui, os artigos analisam as gerações contemporâneas de autores críticos, tentando responder ainda às grandes questões, a saber, o papel da crítica na busca e alcance de uma possível emancipação e o papel da crítica na reconstrução do ideal democrático. Silvério da Rocha-Cunha, Pilar Damião de Medeiros, Paulo Vitorino Fontes, João Pedro Cachopo, Débora Pazetto Ferreira e Marta Nunes da Costa assinam estes artigos. Como organizadora deste evento e deste volume tenho de agradecer ao apoio e incentivo dado pelo Professor Mário Vieira de Carvalho, ele próprio sendo um exemplo inspirador de como a atitude crítica nos define enquanto pessoa, cidadão e colega; quero agradecer a Jorge Álvarez Yágüez por ter aceite o convite e fazer parte deste projeto, assim como a todos os participantes. Sem eles este volume não teria sido possível. Quero ainda à Dra Ana Gabriela Macedo e Professor João Cardoso Rosas pelo apoio que sempre me têm dado nas iniciativas por mim propostas. Por fim, quero agradecer a Ana Maria Pereira, Vera Amorim e Adelina Gomes, por todo o apoio logístico, burocrático e moral.

Marta Nunes da Costa Braga, Julho 2012

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DERECHO Y TEORÍA CRÍTICA. LA CONCEPCIÓN DE HABERMAS Jorge Álvarez Yágüez DOCTOR EN FILOSOFÍA POR LA UNIVERSIDAD COMPLUTENSE DE MADRID

1. Una notable carencia en la primera Teoría Crítica. la reflexión filosófica sobre la relación jurídica fue una laguna persistente en la denominada Escuela de Frankfurt. Ningún miembro del llamado “círculo interno”; ninguna de las numerosas obras de los Horkheimer, Pollock, Adorno, Löwenthal. Marcuse, Fromm, tematiza esta instancia social. Puede sorprender, en particular si tenemos en cuenta la atención de todos ellos al ámbito de la superestructura en el intento de corregir la deriva economicista del pensamiento marxista. Pero en ese espacio prefirieron centrarse en otros elementos que juzgaron más decisivos, como los medios de comunicación de masas, los mecanismos psicológicos, o en general las ideologías. De ahí que podamos encontrar en ellos importantes reflexiones y elaboraciones teóricas al respecto, desde la incorporación del psicoanálisis a las consideraciones sobre el antisemitismo, la evolución de la familia, la personalidad autoritaria, a la música o el cine. Sociología, Psicología y Arte, aparte de la confrontación crítica con toda la tradición filosófica, fueron sus campos predominantes de trabajo. Posiblemente en todo esto influyeron, entre otros, los cuatro destacables factores siguientes: EL DERECHO,

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1. Por un lado, una herencia que procedía de Marx mismo, que desde la temprana Crítica de la filosofía del derecho de Hegel, marcaba otras instancias como centros de atención para un pensamiento materialista crítico. Al adoptar tal perspectiva, se iniciaba una fatal ruptura con toda una tradición crítica que articulaba la defensa del derecho natural racional con la revolución, que se manifestara en la concepción que de Robespierre a Hegel entendía la Revolución como realización de la filosofía (Habermas, 1987; Bloch). En realidad, todo el pensamiento marxista más creativo, del joven Lukacs y de K. Korsch a Gramsci, queda instalado en esa ruptura, se ve, pues, afectado por la misma carencia. 2. Elemento más relevante fue, sin duda, el contexto, en una primera etapa: de crisis de la República de Weimar y triunfo del nazismo. En ese contexto de lucha de clases intensa, de confrontación directa, de manipulación de las conciencias por parte del nuevo Reich, de desencadenamiento de la fuerza de las pulsiones reactivas, de “movilización 14

total”, el pensamiento jurídico non les pareció central a los frankfurtianos. La política, por el contrario, en tanto que conjunto de disposiciones

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para orientar la sociedad en una dirección, era el elemento que pasaba al “puesto de mando”, en expresión adorniana. 3. La experiencia posterior de exilio en USA, el impacto que tuvo sobre estos hombres, quintaesencia de la tradición cultural más exquisita de la vieja Europa, de una sociedad absolutamente mediatizada por la omniubicuidad de los mass-media, de toda la industria del entertainment, encaminó su problemática teórica. 4. Finalmente, a todo esto habría que añadir las consecuencias de su diagnóstico sobre la sociedad del tardocapitalismo, en que desaparecía el individuo mismo, quedando los sujetos totalmente absorbidos en las necesidades de un sistema que configuraba un universo cerrado, unidimensional, un mundo totalmente administrado.

2. Algunas excepciones. Ciertamente que hubo una excepción a esa carencia de teoría jurídica, y, muy brillante por lo demás, la de Franz Neumann y Otto Kirchheimer, curiosamente ambos discípulos del que sería el Kronjurist del régimen

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hitleriano, Carl Schmitt, componentes de lo que se denominó “izquierda schmittiana” (Colom, 1992b). Neumann, vinculado profesional y militantemente al movimiento sindicalista socialdemócrata, desarrolló la nueva teoría jurídica laboralista, partiendo de la tarea iniciada por su maestro, y padre del derecho laboral alemán, Hugo Sinzheimer; desarrolló el concepto de democracia económica en el marco de la Constitución de Weimar, que articulaba con el concepto de libertad social, frente a la concepción meramente negativa de la libertad, y, en general, de Estado social de derecho. Trabajó en un campo que hoy es una laguna en la estrategia de los movimientos emancipatorios, el de las relaciones en la fábrica y su articulación con las luchas políticas. Era muy consciente de los cambios que estaban operándose debido a la transición del capitalismo de una fase liberal a otra de monopolios, que ponía en cuestión todo el viejo ordenamiento jurídico con sus conceptos de libertad de empresa, contrato, propiedad, etc. Es igualmente destacable la contribución de Neumann al entendimiento de la crisis de la república de Weimar y a la naturaleza del nazismo. O. Kirchheimer, también vinculado a la socialdemocracia (SPD), pero en una linea más a la izquierda. Fue crítico con cierto legalicismo, de la confianza en el poder emancipador de la norma misma, actitud imperante en las tácticas del SPD, compartido por su amigo Neumann. También lo fue con lo que se denominó parlamentarismo, ya que, a sus ojos el parlamento había perdido ya sus funciones; para él el impostado “imperio de la ley” se había convertido en definitiva en “técnica de la dominación”. Kirchheimer contribuyó a articular la teoría jurídica con otros campos, como el de la sociología, en el que destaca su obra conjunta con George Rushe: Punishment and Social Structure; y con el de la política. Importa igualmente subrayar su aportación al esclarecimiento de la evolución del derecho contemporáneo, particularmente su noción de juridización (Verrechtlichung) de ámbitos tradicionalmente no regulados por el derecho. El trabajo de ambos autores, Neumann y Kirchheimer tendría que ser puesto al lado de la brillante contribución a la teoría crítica del derecho que hicieron sus coetáneos, Hans Kelsen y Hermann Heller. Pero, como sabemos, la influencia de Neumann y Kirchheimer dentro de la Escuela fue menos importante que la de otros, que, como

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ellos, quedaron fuera del “círculo interno”, como Benjamin. Según algún estudioso la vinculación de ambos juristas a la Escuela – en particular a través del paso por el Institut for Social Research de New York- fue más bien un avatar del exilio (Colom, 1992a). La célebre polémica que mantuvo Neumann con su Behemot, frente a Pollock acerca de la naturaleza del Estado nazi, puso a los jefes de fila, Adorno, Horkheimer y Marcuse en teses opuestas al primero. Ciertamente, no podemos pasar por alto las reflexiones de un temprano Walter Benjamin contenidas en su seminal escrito sobre la violencia, Zur Kritik der Gewalt (1920-21), un texto este también no sin relación con las teses de su admirado Carl Schmitt, y en deuda con el texto de George Sorel Reflexions sur la violence (1908), entre otros – como, por ejemplo, el célebre jurista alemán Rudolf von Jhering. El artículo de Benjamin, a pesar de sus componentes místicos – Honneth califica el texto de “tratado de filosofía de la religión”- y de los diferentes contextos de su recepción no acaba de agotar su potencia inspiradora como se muestra en los trabajos de Derrida o de Agamben (Galindo). En ese texto se hacía énfasis en el momento de poder, de violencia considerado inherente al derecho, tanto en su fundación como en su conservación, así como en la característica de instrumentalidad, de cálculo medio-fin que invade el terreno de la acción social y de la moralidad. El derecho queda separado, cortado de manera radical de la justicia – un punto que Derrida retomará especialmente –, toda vez que aquel estaría indisolublemente unido a los intereses egoístas, que legitima, y, en consecuencia, queda incapacitado para redimirnos de la condición natural y de la culpa. La justicia no es naturaleza (interés, egoísmo), es esencialmente ética. Sólo sería posible a través de una denominada violencia divina o mesiánica capaz de interrumpir el continuum histórico, que se contrapondría a la violencia mítica característica del derecho. La oscuridad de estas nociones de violencia permanece a pesar de los muchos y buenos hermeneutas. Benjamin nos dice: “En tanto que la violencia mítica es fundadora de derecho, la divina es destructora de derecho. Si la primera establece fronteras, la segunda arrasa con ellas; si la mítica es culpabilizadora y expiatoria, la divina es redentora: cuando aquella amenaza, esta golpea, si aquella es sangrienta, esta es letal aunque incruenta”. La violencia divina ya no tendría un carácter instrumental, sería una violencia expresiva, manifestación en sí misma de la moralidad, de la

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consideración de los hombres como fines en sí. Un ejemplo de violencia divina sería la soreliana huelga general revolucionaria. El carácter violento del derecho no se vería afectado, desde el punto de vista de Benjamin, por la dimensión de su mayor o menor legitimidad positiva, pues siempre está en situación de generar una violencia no legítima, bien en la protección de un determinado orden como sería el caso de la actuación policial, o incluso en el ejercicio legítimo de ciertos derechos, como sería el caso de huelga; en tales situaciones se produciría una violencia inajustable a norma. El Estado de derecho está imposibilitado para contener la violencia dentro de un ámbito de legitimidad en la intervención en los conflictos sociales (policía), ni evitar que en la práctica de los derechos puedan surgir de la violencia generada nuevas fuentes de derecho asumibles (caso de la huelga general). La violencia, por lo tanto, permanecería como algo imposible de regular de una manera fija. Al medio violento del derecho Benjamin contrapone los espacios en los que impera un lenguaje puro, la comunicación, o lo que llama una “cultura del corazón”. “Existe , precisamente en la esfera del acuerdo humano pacífico, una legislación inaccesible a la violencia: la esfera del `mutuo entendimiento´o sea, el lenguaje”. Consecuentemente, lo que se postula para una sociedad enteramente otra, pues de esto se trataría, es el fin del derecho, que significaría al mismo tiempo el fin de la violencia mítica y el del instrumentalismo, una sociedad, pues, regida por la moral y las pautas de las buenas formas, en la que todo acuerdo estaría exento de coacción. En Benjamin, por tanto, el proyecto anarco-marxiano de la extinción del Estado iría a la par con el final del derecho, que daría paso a una especie de comunidad kantiana de fines, de pura moralidad – o si lo traducimos a los términos paulinos del fin de la ley, anticipador de la comunidad exenta de poder de la pura gloria (Agamben, 2007). Sin duda el punto relativo al lenguaje y a la invasión por la instrumentalidad de esferas no sujetas a priori a ella no pasará desapercibido a Habermas, en la misma medida en que será insensible respecto a la dimensión resaltada de la violencia inherente al derecho. Como veremos, lo que en Benjamin está en oposición absoluta, las esferas del derecho y los espacios mediados por el puro entendimiento, en Habermas aparecerán articuladas. El condensado artículo de Benjamin, esa plétora de ideas quedaría sin desarrollo en el conjunto heterogéneo de su obra posterior.

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3. Giro y solución habermasiana. 3.1 Distancia respecto de la Teoría Crítica clásica. Otro modelo de razón.

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El singular heredero de la Teoría Crítica que es Habermas, también en este punto, como en tantos otros, se diferenció de sus maestros. Claro que la percepción de la necesidad de cubrir aquel vacío de la teoría se daba en un marco bien distinto al delimitado por los cuatro factores en que esquemáticamente situamos la carencia de la Teoría Crítica anterior. Y bien se pudiera proceder aquí a oponerlo punto por punto: una muy distinta herencia, en que el marxismo, leído de manera muy distinta, que rescata especialmente el componente kantiano, y otro Hegel, que no es ya el de la dialéctica, se junta a muchas otras corrientes de pensamiento. Un contexto de desarrollo del Estado de bienestar; y, en la última fase, de crisis de éste, fin de la guerra fría, y explosión del proceso de globalización. En fin, claramente ligado a todo lo anterior, habría que anotar una discrepancia radical con el diagnóstico elaborado en Dialectik der Aufklärung. Toda la obra de Habermas podría verdaderamente leerse coma una larga y demorada respuesta al libro de Horkheimer e Adorno. La desconfianza radical en la Razón que penetraría capilarmente toda nuestra sociedad, que llevó a Adorno a buscar una desesperada salida en cierta estética, y cuya profunda raíz se remontaría a la Grecia antigua y al pensamiento mítico, es contestada especialmente por la construcción habermasiana de otro modelo de razón: la razón comunicativa. La negatividad omniabarcante de la vieja Teoría Crítica, tan influida por la idea weberiana del dominio progresivo de la razón instrumental (Zweckrationalität) sobre todos los ámbitos como característica distintiva de Occidente, es sustituida por una concepción de la evolución de las sociedades occidentales basada en la idea de la existencia de procesos de aprendizaje en ámbito normativo, que se estabilizan y plasman en instituciones, en códigos, en tradiciones en estructuras culturales y psíquicas (Habermas, 1981;1987b). En las sociedades complejas modernas se daría una diferenciación de esferas o de ámbitos de acción, de modo que podemos distinguir entre el espacio de la economía, el del Estado, y un tercero, que hay que decir que Habermas nunca llega a delimitar bien, el del “mundo de la vida”

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(Lebenswelt), esto es, el medio de socialización de los sujetos, de constitución de la individualidad, de relaciones culturales. En cada uno de esos ámbitos la acción no obedece a la misma racionalidad: si en los dos primeros dominaría la acción mediada por el dinero y el poder respectivamente, esto es, por una racionalidad instrumental o estratégica, en el mundo de la vida dominaría una acción de carácter solidario, que se guía por una racionalidad distinta, la racionalidad comunicativa. A diferencia, pues, de lo que sostenían los Weber, Adorno, Horkheimer, estamos ante una constelación de racionalidades diversas. No todo se somete unilateralmente al dominio del poder y el dinero, aún cuando la tendencia en la sociedad tardocapitalista apunta a que las pautas comportamentales de los dos dominios primeros se impongan a la racionalidad comunicativa del tercer dominio, lo que Habermas denomina colonización del mundo de la vida. La labor filosófica, debiera ser capaz de reconstruir los potenciales normativos, emancipatorios materializados en la propia sociedad moderna, todos esos elementos que forman también parte de la autocomprensión misma de estas sociedades. En cierto modo se trataría de articular explícitamente aquella voluntad libre que Hegel viera plasmada en las instituciones modernas. En conformidad con ello, la Teoría Crítica abandonaría una negatividad carente de presupuestos empíricos en que apoyarse para transformar el mundo. Sólo, pues, desde esta positividad, podría hacer honor al calificativo, y ser entonces crítica verdadera.

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3.2 El giro jurídico

Con todo, la contribución habermasiana en el plano del derecho se haría esperar, toda vez que Faktizität und Geltung (Facticidad y validez) no aparecería hasta el año 1992, una vez que ya hubiera desarrollado una teoría sobre el conocimiento, una teoría moral, y todo un modelo de teoría social basado en un concepto nuevo de razón, la razón comunicativa. La elaboración de una teoría del derecho era, en efecto, esperable, en tanto que venía exigida por el despliegue de su filosofía, no ya por el afán sistematicista que la caracteriza, sino porque la concepción del sujeto, de la normatividad, de la evolución de las sociedades dibujaba con linea gruesa el vacío que debiera de ser cubierto. El denominado

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“giro jurídico”(Velasco Arroyo) se aprecia a la altura de los ochenta, justo en el momento más intenso de elaboración del “paradigma comunicativo”, mostrado en su plenitud en Theorie der communicative Handeln (Teoría de la acción comunicativa) (1981). Pero del decenio que va de esta obra a su libro sobre el derecho se denota un cambio importante en la estimación del papel de lo jurídico. En esta obra, Habermas se valía del concepto ya mencionado de Kirchheimer, Verrechtlichung (juridización), para referirse a un fenómeno propio de las sociedades complejas, a saber, (Habermas, 1987b, II, 503) un espesamiento, ramificación y, al tiempo, particularización progresiva del derecho que cubre un número cada vez mayor de ámbitos y relaciones; una tendencia progresiva por la que la administración estatal por medio de normas jurídicas gobierna, gestiona, regulariza ámbitos de la sociedad que hasta ese momento se desenvolvían mediante pautas distintas a las del derecho. Kirchheimer veía la doble cara de ese proceso en que, por un lado, ciertos sectores sociales como la clase obrera consolidaban sus exigencias a través del ordenamiento jurídico en la forma, por ejemplo, de un derecho laboral, tal y como aparecía concretado en el Estado democrático social de la República de Weimar. Pero también, por otro, las relaciones políticas retrocedían, retomadas ahora por otro medio, que suponía una mediación de expertos, siendo sometidas a líneas de actuación prefijadas, formalmente organizadas. La posición de Habermas sigue esta orientación, traducida, lógicamente, a su propio marco teórico de las relaciones entre sistema y mundo de la vida. Habermas también lee en ese fenómeno, especialmente en su última etapa, cierta ambigüedad: por una parte, esa progresiva envoltura jurídica de la sociedad por una red cada vez más extensa y tupida supone, efectivamente, un avance social en el terreno del derecho, en la juridización del Estado mismo. Pero también, y a la vez, paga el precio de la extensión desde la administración de un modo de acción movida por claves de poder hacia espacios, como son los del mundo de la vida (familia, escuela, relaciones vecinales, etc.), estructurados comunicativamente. De este modo, el fenómeno de la juridización entra a formar parte del proceso general por el que el mundo de la vida se ve colonizado por otros subsistemas. Este segundo aspecto es el que sería resaltado en ese momento.

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En Teoría de la acción comunicativa se distinguen cuatro hornadas de juridización que van desde el momento en que el propio Estado como monopolizador de la violencia adopta la forma derecho, se ordena jurídicamente, hasta el momento actual de las sociedades complejas organizadas a través del Estado social y democrático de derecho. (Habermas, 1987b, II, 505-509): 1. La primera hornada de juridización, tendría lugar históricamente en la fase de desarrollo del absolutismo, de paso de la sociedad premoderna estamental a la sociedad capitalista. En ese período quedará definido el Estado burgués, en que se da la diferenciación de las esferas del Estado, weberianamente definido como ente de dominación legal burocráticamente organizado (derecho público), y la Economía, el ámbito privado en que se producen las transacciones, ahora jurídicamente sostenidas (derecho privado) entre sujetos movidos estratégicamente. Tanto el medio del poder, que garantizará a los individuos la seguridad de la vida y las propiedades, como el medio del dinero, que necesita de la

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estabilización y previsibilidad de las acciones, quedarán jurídicamente regulados . 2. Un segundo proceso de juridización daría lugar al Estado burgués de derecho, en que la mera dominación política, después de ser sometida a

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la forma del derecho de la primera hornada, es susceptible de un control mayor al adquirir un estatuto constitucionalizado, por el que el “rule of law” (imperio de la ley) es garantizado y se le reconocen a los individuos una serie de derechos subjetivos (vida, libertad, propiedad) que suponen límites al ejercicio mismo del poder. Esos derechos significan algo más que el efecto de un poder funcionalmente efectivo: además de reclamables tendrán una justificación moral. 4. La tercera hornada cobra forma concreta en el Estado democrático de derecho, que representa un nuevo paso en la domesticación del aparato estatal en tanto que añade a la constitucionalización de la fase anterior la democratización, mediante el establecimiento de las libertades políticas, esto es, el derecho de voto igual y universal, el derecho a formar asociaciones, etc., el parlamento elegido como poder legislativo, la

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legitimación entendida como expresión del interés general, que debiera manifestarse en el debate público y parlamentario. 5. La cuarta hornada se dirige, por una parte, a hacer realidad las libertades reconocidas en la fase anterior, mediante la atención a las condiciones materiales necesarias, y, por otra, a poner límites al medio económico, tal y como antes se había hecho con el medio administrativo. De este modo cobraría forma el Estado social y democrático de derecho, que viene a representar “la constitucionalización de una relación de poder social anclada en la estructura de clases” (Habermas, 1987b,II, 510), esto es, la domesticación del poder empresarial, por cuanto que los trabajadores adquieren capacidad de sindicación, de negociación salarial, de limitación de la extensión del tiempo de trabajo, etc. Así, el conflicto de clases adoptaría un cierto equilibrio, quedaría canalizado y pacificado.

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Esta evolución, como se deja ver, asemeja un nuevo tratamiento de la conocida comprensión de la emergencia histórica de las distintas generaciones de derechos, de los derechos civiles a los sociales. Pero lo que importa aquí, sobre todo, es la observación, en la que se detiene el análisis, sobre la otra cara de esta cuarta etapa de juridización que da paso a lo que llamamos “Estado de bienestar”, toda vez que las garantías legales en el campo social implican una singular intervención de la administración en el ámbito del mundo de la vida, en los campos de la socialización de los sujetos, de su formación, de la escuela, de la salud, de la familia, del tiempo libre y el goce, campos “socialmente integrados”, que no están estructurados conforme a las relaciones funcionales o sistémicas propias de las esferas de la administración y de la economía. El caso es que aquí se opera una intervención sobre unos espacios que, a diferencia de lo que ocurría en otros casos, no están ya organizados jurídicamente, o tan solo de una manera débil, y son ajenos, debido a su estructuración comunicativa, a la injerencia del derecho en tanto que medio, que tan solo es acorde al modo de integración sistémica. Aquí, pues, y, otra vez, en contraste con las anteriores etapas, es la forma jurídica misma, no un efecto colateral de ella, la que genera el problema, toda vez que introduce rigidez, mediación de expertos, jerarquías estrictas, pautas fijas, y genera toda una serie de consecuencias negativas sobre la independencia, la

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autocomprensión de los individuos y sus relaciones sociales cotidianas. Ciertas capacidades de autodominio le son sustraídas a los sujetos, que se ven obligados a acomodarse a cánones impuestos si quieren beneficiarse de los servicios de la administración. Diferentes estudios empíricos mostrarían este proceso: la judicialización de los conflictos escolares o familiares, de relaciones que los individuos resolvían, o debieran hacerlo, más autónomamente, de acuerdo precisamente con el tipo de relación pedagógica o socializadora, dominante en su ámbito. Habermas extrae la consecuencia normativa correctora: “El uso del derecho como medio debe sustituirse por procedimientos de regulación de los conflictos, que se ajusten a las estructuras de la acción orientada al entendimiento, por procesos de formación discursiva de la voluntad individual y colectiva y por procedimientos de negociación y decisión orientadas hacia el consenso”(Habermas, 1987b, II, 524). Por consiguiente, la última, hasta el momento, etapa de juridización adopta esta estructura dilemática, implicada en la forma misma de intervención jurídica, que hace que la reparación de los daños que la desatada economía capitalista provoca en los individuos y en sus contextos vitales, comporte una perversa transformación de los mismos; “son los propios medios con que se garantiza la libertad los que ponen en peligro la libertad de los beneficiarios” (Habermas 1987b, II, 511). Habermas trata desde un ángulo teórico distinto aquella doble cara que Foucault advertía en las instituciones de la sociedad moderna, de la fábrica al asilo psiquiátrico, en que se doblan las funciones de utilidad con las de poder. Lo que Habermas vincula a la instancia del derecho, Foucault lo situaba en un plano más acá, en el relativo a la norma, no como proceso de juridización, sino como mecanismo de normalización. Como en esta última etapa, también en las primera se daba esta doble cara de la juridización, pero no como consecuencia de la forma jurídica misma, sino como algo colateral. La organización legaliforme de las esferas del Estado y la Economía llevaba consigo una liberación manifiesta de las ataduras del sistema feudal o estamental, pero al mismo tiempo dejaba fuera de su tematización normativa la nueva situación de explotación y alienación en que quedaban las recién movilizadas fuerzas del trabajo, la mano de obra “libre”. Desde la interpretación habermasiana, Marx penetraría agudamente en toda esa área de sombra que acompañaba a la luz de la liberación, y supo captar

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bajo las categorías de cosificación o alienación los daños ocasionados en el mundo de la vida. Con todo, su análisis, excesivamente dependiente del anclaje económico y del modelo teleológico de acción, no sería capaz de dar cuenta de otras nuevas formas de cosificación no derivadas de la instancia económica, ni entendibles en sus claves, y tampoco de discriminar entre lo que eran formas aceptables de racionalización del mundo da vida, y las que eran subsumidas por el desarrollo de la economía y del Estado. La rebelión de ese mundo de la vida dañado se mostraría en la naturaleza de la segunda y tercera etapas, de constitucionalización y democratización, que Habermas entiende se dan sin esa doblez o ambigüedad como etapas inequívocas de liberación, que someten a la maquinaria estatal de forma que a la vez que proporcione protección al moderno mundo de la vida, deja en sus manos el control y los recursos de legitimación. La dialéctica entre sistema y mundo de la vida con que Habermas comprende todo este proceso volvería a manifestar su doble cara en el momento en que se aborda el intento de domesticar las poderosas fuerzas del mercado, como quedó señalado. Esa sutil transformación, en las que se demora el estudio hecho en Teoría de la acción comunicativa, debida a la intervención jurídica de los espacios estructuralmente ajenos a la burocratización y a la monetarización, no sería sino uno de los elementos de un conjunto procesual más extenso por el que el mundo de la vida es progresivamente colonizado por las formas del dinero y el poder propias de los subsistemas de la economía y de la administración, y mediante las que la integración social a través de la solidaridad es sustituida por una integración instrumental o funcional, sencillamente sistémica. Dejaremos ahora a un lado el conjunto de problemas ligados a este intento de comprensión de la complejidad de la sociedad moderna y de sus patologías sobre la base de la articulación de los distintos sistemas con el concepto de “mundo de la vida”, y también la alternativa que presenta al análisis de Marx (Álvarez Yágüez , 2005), nos importa ahora tan solo subrayar esa consideración crítica referida a una de las caras de la última hornada de juridización, que servía a Habermas para dar cuerpo a su diagnóstico central de la situación de las sociedades tardomodernas. Veremos más adelante cómo ese aspecto tiende

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a desaparecer en sus trabajos sobre el derecho, y en su lugar sirven de latente referente las dos etapas anteriores, de plena consideración positiva, en que el mundo de la vida lejos de ser la víctima, hace valer sus pretensiones. Sin duda en esa desaparición jugaría su papel el contexto de intensificación de la crisis del Estado de bienestar. Nunca deben abstraerse estos elementos contextuales en el enjuiciamiento de la evolución de la obra habermasiana.

3.3 El decisivo papel del derecho en la sociedad moderna.

La elaboración a que se procede en Facticidad y validez de una nueva concepción del derecho basada en el paradigma discursivo parte de un hecho: la pérdida de la totalidad ética característica de las sociedades tradicionales, a su integración de lo individual y lo colectivo sustentada sobre una comunidad de valores que atraviesa todas las instituciones y la vida de la sociedad en su conjunto, desde la moral de sus miembros y de las costumbres al derecho y el aparato estatal. La sociedad moderna, como todos los clásicos de la sociología han puesto de manifiesto, representa el fin de esta unidad, dicho en términos hegelianos, el desgarro de la eticidad (Sittlichkeit). Habermas parte de ese factum, el de la pluralidad, que John Rawls también formulaba no sólo como elemento definidor de la sociedad moderna, sino también como enclave de su problemática ético-política. Pero mientras que éste lo vinculaba a la diversidad de doctrinas comprehensivas o concepciones del mundo, aquel lo refiere a un nivel estructural, que concretaríamos en dos factores íntimamente vinculados:

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• a) En primer lugar, el que ya había analizado Weber, y, como vimos, es retomado en Teoría de la acción comunicativa: la diferenciación de esferas de actividad (economía, Estado, sociedad, ciencia, moral, arte, etc) que multiplica los roles de los agentes sociales y diversifica la lógica de su acción, de modo que en unos ámbitos, como el económico, se mueven de forma estratégica en prosecución de su interés privado, y en otros se comportan ateniéndose a valores de solidaridad. No menos característico de estas sociedades es la potencia y relevancia estructural de la esfera económica, por lo que su modo de acción e integración solamente

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sistémica además de consolidarse en su esfera presiona fuertemente sobre las demás. • Una de las consecuencias de este descentramiento de las sociedades complejas es la dificultad de coordinación y estabilización de un orden social que ya no puede nuclearse en torno a una cosmovisión o conjunto transcendente de valores, y que tiene que abrirse a la aceptación como legítima de la acción estratégica en áreas muy relevantes de la vida social. • b) El segundo factor lo constituye la denominada racionalización del mundo da vida (Habermas, 1992, 124-130; 1994), esto es, el largo proceso por el que las estructuras de la personalidad, el ámbito de la cultura y el de la socialización es sometido al filtro de la reflexividad, de tal modo que los sujetos quedan en condiciones de tomar distancia crítica respecto a ese mundo y adoptar una decisión, lo que entraña el abandono de la pasividad subconsciente en que se desenvolvían, y la apertura hacia 26

una diversidad de opciones, con la consiguiente quiebra de la unidad del ethos colectivo dado. Por lo que se refiere al ámbito de la persona-

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lidad el sujeto moderno quiere ser dueño de su propio ser, conformar su existencia, la propia biografía, elegir su proyecto vital, su forma de autorrealización, de ahí la importancia que cobra el discurso éticoexistencial o el discurso clínico en que se analiza la problemática de esa autoconstitución frente a las contingencias o las huidas respecto de la realidad. • Algo semejante ocurre en relación con las tradiciones, los medios culturales, los condicionantes históricos, etc. que ya non son asumidos dogmáticamente, sino que son problematizados, y las personas deciden cuales proseguir o mantener, cuales modificar o cancelar. Habermas cita al respecto la ayuda que en esta labor cumplieron las ciencias hermenéuticas en relación con el historicismo y el nacionalismo, aunque en otros países, como el nuestro, indudablemente no tuvieron la misma incidencia que en Alemania. Esta autoconstitución respecto de las identidades colectivas se expresaría en la presencia de los discursos ético-políticos. • Y, por último, en lo que se refiere a las normas de convivencia, el mismo proceso de reflexividad las lleva a un plano mayor de exigencia, desde el que trata de superarse la heteronomía, la parcialidad de juicio y

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la particularidad en las justificaciones. Las reglas apuntan a valores universales, a criterios de justicia no ya de vida buena, en la medida en que esta última se pluraliza. Los individuos operan entonces de acuerdo con una moral de principios. Los discursos morales adoptarían estas características en la mediación de los conflictos.

Ambos factores (diferenciación de esferas de acción y racionalización del mundo de la vida) contribuyen a dibujar una mesma constelación de fragilidad social, en tanto que el primer factor diversifica los órdenes sociales, de manera que cada uno sigue su lógica, por lo que el individuo, igualmente fragmentado en su multiplicidad de roles, sigue patrones de actuación diversos con referentes distintos de justificación. Y el segundo contribuye igualmente a la pluralidad y al incremento del disentimiento, toda vez que tanto la individualización creciente, que comporta la asunción por parte de cada sujeto de la propia vida, así como la posición crítica respecto de las tradiciones e identidades colectivas, fomenta la emergencia de distintos proyectos individuales y de formas culturales. La unidad, pues, se quiebra tanto colectiva como individualmente. En ausencia de referentes únicos, de desaparición de todo horizonte último o absoluto, como los que centraban las sociedades tradicionales, tan sólo queda la acción comunicativa, las razones intersubjetivas que se dan entre sí los sujetos como medio de fundamentación del consenso y de estabilización social. “Así, la carga de la integración social se desplaza cada vez más a las acciones orientadas al entendimiento por parte de los agentes, para los que quedan totalmente separadas validez y facticidad”(Habermas, 1992, 43). Pero, aparte de la dificultad respecto del éxito de este tipo de acción, el hecho de la existencia de ámbitos en que impera la acción estratégica hace que sea insuficiente como mecanismo de integración social. Esta situación es la que, desde el punto de vista de Habermas, coloca al derecho en un lugar privilegiado como medio de integración, pues la norma jurídica aportaría el beneficio de dos propiedades: por una parte, permite la coordinación de las acciones, reduciendo la complejidad social, en la medida en que estabiliza expectativas y descarga cognitiva y moralmente a los sujetos por cuanto que no se les exige el convencimiento o la justificación argumentativa para acomodarse a la ley. Esta, a diferencia de la norma moral, tan solo exige su cumplimiento, cualquiera que sean

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las ideas e intereses de los sujetos, y trata de aseguralo con el respaldo de la coacción. Por otra parte, la norma jurídica no se reduce a esta cara funcional, que tan bien expresa el positivismo del derecho moderno. La norma no puede reducir la legitimidad a la legalidad si quiere aspirar a algo más que a una integración sistémica y ofrecer a todos la posibilidad de cumplir la norma por convencimiento moral. La concepción de Kant muestra con claridad esas dos caras, de facticidad y validez, de fuerza y legitimidad, como algo interno al derecho, ya que, como afirmaba Kant, la coerción de la regla jurídica se da en defensa de la libertad de todos, pretende ser “un obstáculo frente a lo que obstaculiza la libertad” (Kant, 40). Así, el derecho es definido en las Metafísica de las costumbres (Metaphysik der Sitten) como conjunto de condiciones coercitivas “bajo las cuales el arbitrio de uno puede conciliarse con el arbitrio de otro según una ley universal de libertad”(Kant, 39; Habermas, 1992, 46ss). El derecho tiene, pues, ese lado empírico, fáctico, e íntimamente ligado a él, ese otro lado que encarna su legitimidad: la referencia a la libertad. La garantía de la libertad en el derecho moderno radica en la legitimidad de su producción. Ésta, en el caso de Kant, como antes en Rousseau, se concentra en la idea de autonomía, esto es, en el principio de que los destinatarios de las leyes deben poder entenderse a si mismos como sus autores, por donde la legitimidad va unida a la democracia. Desde el campo de la teoría de la acción y la teoría social, conforme a aquel mismo principio que vincula a destinatarios y autores de la ley, la legitimidad supondría que el derecho adquiriese su fundamento en la acción orientada al entendimiento, característica del mundo de la vida; que la ley obtuviera su presunción de racionalidad de unos procedimientos que concretan la participación de los destinatarios en un intercambio argumentativo realizado en condiciones de equidad. Esto implicaría una remisión esencial del derecho al mundo de la vida, a ese ámbito del que puede proceder la carga de solidaridad que posibilite la integración social que el derecho vehicularía. El derecho, de este modo, no sólo cumpliría su papel como integrador sistémico, en tanto que facilita la coordinación de las acciones y las operaciones en los sistemas mediados por el dinero o el poder, sino también como integrador social al procurar esa legitimidad, y así anclar el conjunto social en el mundo de la vida.

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Por otra parte, el derecho así entendido tendría la capacidad de incorporar aquellos elementos centrales que afloraban en el proceso de racionalización del mundo da vida. Nos referimos a dos en particular, la autorrealización y la autodeterminación, la convivencia plural de diversidad de proyectos vitales, que cada individuo intenta realizar y la apropiación de las condiciones de su existencia, todo lo cual en el campo jurídico tiene dos momentos cruciales de concreción: los derechos subjetivos y los derechos políticos. La consecuencia, pues, que se extrae de este enfoque coloca al derecho, debido a esa naturaleza de dos caras, en consonancia con la misma ambivalencia de la racionalidad occidental, en el papel de instancia principal de integración de las sociedades complejas. El derecho en una época postmetafísica, en sociedades diferenciadas vendría a ocupar el lugar que las cosmovisiones religiosas jugaron en las sociedades tradicionales. 29

3.4. Demarcaciones.

La concepción habermasiana supone una toma de posición frecuentemente explícita frente a otros autores y teorías. La teoría discursiva del derecho se delimita con claridad de dos modos canónicos de abordar el derecho, que a su vez adoptan líneas distintas de concreción. Por una parte, difiere decididamente de aquellas concepciones que asumiendo radicalmente el fin de toda fundamentación última o transcendente, o de toda conexión interna entre moral y derecho, reducen el valor de la ley a su misma existencia, al hecho de haber sido aprobada; la legitimidad se superpone sin residuos a la legalidad. Tal senda es la que sigue el positivismo, que tiene una de sus mejores plasmaciones en el formalismo de Kelsen. El brillante jurista austriaco llevaría al extremo la reacción desmaterializadora frente a lo que fuera línea dominante en la tradición germánica desde Savigny, quien aún en la noción fundamental de “derechos subjetivos” daba acogida al contenido moral del derecho (Habermas, 1991, 131 ss). Kelsen concentrará toda la fuerza comprometedora del derecho en su interna y coherente articulación, manteniendo una impermeable autonomía respecto a la moral y a la política. Una variante muy distinta de posiciones igualmente positivistas

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es el instrumentalismo de un Austin, que extrae del fin de toda sujeción metafísica de la ley la consecuencia de su total plasticidad y perfecta adecuación sin resto a la voluntad política. En una línea semejante habría que situar el decisionismo hobbesiano aún a costa de entrar en contradicción con la carga moral consubstancial a la idea del contrato social en las que se apoya. El poder queda justificado desde su origen instrumentalmente, tal y como corresponde a la voluntad de unos sujetos que al margen de toda pretensión moral o sociocognitiva, se mueven tan solo por el propio interés. Nada después de ese momento inicial podrá exigir otra legitimidad. Decisionista también resulta, con toda su complejidad, la posición de Weber, pues si bien tiene en cuenta el factor relativo a la legitimidad, a los valores – aunque manteniendo una tesis escéptica respecto de su fundamentación –, la diferencia de los tipos de dominación, correspondiendo a la sociedad moderna, la denominada dominación legal, termina por reducir el peso de la carga moral y cognitiva frente a la supremacía de los otros elementos que la caracterizan, como la organización racional del Estado, que se concreta en aspectos como la burocracia u organización de expertos, los sistemas institucionalizados de formación, el carácter abstracto y universal de las leyes, el sometimiento legal del aparato del Estado, la autonomía de la administración de justicia, etc. En fin, el funcionalismo de Parsons, tan influido, como es bien conocido, por el gigante sociólogo alemán, o el sistemismo de Luhmann son otras variantes que se pueden encontrar en esa senda. Mención aparte cabría hacer de Carl Schmitt, que tan renovado interés sigue despertando de derecha a izquierda, que si bien adopta una posición decisionista, ajena a todo moralismo, algo especialmente manifiesto en los primeros escritos, reacciona fuertemente al positivismo al buscar la legitimidad en un momento originario, de excepción, por el que el soberano, en ese mismo momento constituido, “traza la raya”, la división elevada a derecho, entre amigo e enemigo, ahora filtrada por un expresivismo en que no se hace otra cosa que reflejar la situación existencial, y ontológica en definitiva, de un pueblo entendido como macrosujeto (Álvarez Yágüez, 1988). Que Habermas adopte una decidida posición crítica frente a todo este conjunto, que hace de la fundamentación una cuestión eludible y

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que desconecta, como señalamos, el derecho de toda instancia moral, no quiere decir que se aloje plácidamente en el otro polo, el de un explícito normativismo o moralismo. Ejemplo de esto último sería la teoría kantiana del derecho, de la que nos ocuparemos más adelante, pero también la de un reconocido deudor suyo como es J. Rawls, cuyo libro A Theory of Justice (1971) produjo un cambio de enfoque en toda la filosofía política y con ella la teoría del derecho (Álvarez Yágüez, 2008, 13ss). Rawls introdujo decididamente la cuestión de la justicia como elemento central del derecho, y no por eso, dejó fura de su perspectiva la conexión de la teoría jurídica con las condiciones sociales. Sin embargo, es por este lado por donde Habermas considera que su enfoque no es satisfactorio pues esa conexión es externa, hecha sin mediaciones que la articulen. La teoría del derecho se hace en términos morales y solo después son problematizadas las condiciones sociales en que puede verse materializada, de ahí una de las fuentes que exigieron más de una transformación de la teoría, que acabaría por debilitar sus mismos fundamentos normativos. Evitar tal deriva requeriría tener presente la doble cara del derecho, por un lado, la de sistema empírico de acción, la dimensión de facticidad y contingencia, y, por otro, la de validez o legitimidad. Habría que tener presente, por otra parte, que el derecho no sólo acoge argumentos morales de justificación, sino también éticos o sencillamente pragmáticos. La filosofía, que se ocupa de la dimensión de validez, necesita de la colaboración de las ciencias sociales en particular para el análisis de la primera. Sería necesario, pues, la mediación conceptual de la perspectiva filosófico-normativa con la perspectiva sociológica, o también, en otros términos, la combinación de la perspectiva de participante con la perspectiva objetivante de observador. A todo lo anterior habría que añadir la distancia crítica que Habermas toma también respecto de algunas teorías de la democracia, como es claramente la teoría económica, en relación a la cuestión de la legitimidad, dado que para la teoría discursiva no es desligable política y derecho. Pero este lazo lo dejaremos para otra ocasión. (Lorenzo Tomé, 141ss.)

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3.5 Dos problemas centrales.

Del conjunto de cuestiones que están en la base de la teoría discursiva del derecho pueden seleccionarse dos como aquellas a las que pretende responder, que motivaron intensamente su formulación. Una es una vieja cuestión de la teoría jurídica y de la filosofía del derecho, se refiere a la relación entre legalidad y legitimidad, que ahora adquiere una mayor radicalidad, una vez que los procesos modernos de desencantamiento del mundo cumplieron su cometido abocándonos a un contexto definitivamente postmetafísico en que desaparece toda instancia transcendente, sagrada o absoluta de la que la ley pueda extraer su legitimidad y desprenderse de toda convencionalidad, sacudirse el polvo de la historia. A segunda cuestión tiene una dimensión más claramente política, y no es menos clásica, atañe a la relación entre los derechos subjetivos y los derechos políticos, a la articulación entre autonomía privada y autonomía pública. 32 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

3.5.1 Legalidad y Legitimidad.

La primera de las cuestiones fue formulada por Habermas en las Tanner Lectures del año 1986 de este modo: “¿Como es posible la legitimidad a través de la legalidad?” (Habermas, 1991, 131) Como es posible conservar aquel momento de incondicionalidad o no instrumentalidad del mundo premoderno sobre el que podía erigirse un orden jurídico y reclamar obediencia al margen de la coacción que lo abalaba, posibilitar esa libertad de quien acepta la ley por convicción, y así, para decirlo con Rousseau y Kant, la convierte en “ley de libertad”. La conversión de las cosmovisiones religiosas en convicciones privadas y la absorción del derecho consuetudinario en el derecho académico puso fin a lo que Weber llamaba “el doble reino de la dominación tradicional” por el que el derecho profano que dependía de la instancia del poder político se inscribía en el marco del derecho sacro del que tomaba una legitimidad prestada. A él le sucedió en un principio el derecho natural racional moderno, que aún podía remitirse a un espacio intocable de derechos que estaban fuera de toda positividad y, en consecuencia, libres de toda transformación. Pero el proceso de positivización, alentado por la

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complejidad creciente de las sociedades capitalistas, no se detendría. Ya en el curso del s. XIX el derecho suprimiría toda instancia externa como elemento de subordinación. Las distintas concepciones positivistas al reducir la legitimidad a la legalidad no parecían sino elevar a categoría lo que el proceso histórico iba perfilando. Con todo, no era esta toda la verdad, pues esto no daba cuenta de las distintas dimensiones de este proceso de positivización que sólo un método reconstructivo podía afrontar. Esa visión unidimensional se incapacitaba para sustentar un verdadero punto de anclaje al sistema de legalidad. Cuando menos, dos aspectos esenciales quedan fuera de su visión: • a) En primer lugar, una cuestión histórica. Lo que revela la mesma constitución histórica tanto del Estado como del derecho modernos es que ambos se dieron entrelazados, y a su vez unidos a determinada evolución de las estructuras de la conciencia moral. Los tres factores formarían parte del mismo proceso. El derecho como tal sería anterior a la formación

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del Estado moderno como entidad monopolizadora de la violencia legítima. Sería la evolución del derecho en relación con los cambios de la conciencia moral lo que posibilitaría la constitución de la norma jurídica como elemento abstracto, independiente de las situaciones y de los jueces, y en términos de la cual se justifican las acciones. Éstas

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dejan, pues, de moverse en el espacio moral pre-convencional (Kohlberg) de los meros intereses o de los hechos y las consecuencias, sin la divisoria de facto/de iure. La autoridad, el crédito de la norma, entonces, resultaría susceptible de trasladarse al poder que la ampara, con lo que éste adquiriría legitimidad. De este modo, derecho y poder obtendrían beneficios mutuos. Además, este último tendría la oportunidad de auto-organizarse jurídicamente. Por este camino aparecería tanto un derecho estatalmente sancionado, como un Estado jurídicamente organizado. Esa misma constelación de factores (derecho – poder político – conciencia moral) estaría presente en el siguiente paso procesual hacia un derecho positivo, que los cambios frecuentes en las leyes y su instrumentalización por parte de una voluntad política acelerarían. Pero no sin la participación, de nuevo, de la evolución de la conciencia moral hacia una etapa postradicional. Tal y como lo interpreta Habermas, el derecho natural racional y su figura del contrato con la cual pretendía

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fundamentar la constitución del Estado moderno encarnaría ese tipo de desarrollo moral, de conciencia que distingue principios y normas. •

Desde esta concepción histórica ni las distintas posturas instrumentalistas o “realistas”, ni las autonomizadoras del derecho o formalistas resultan plausibles. Ni podría reducirse el derecho a resultado de la voluntad política, lo que contravendría, por otra parte el mismo concepto de régimen político, en tanto que éste remite siempre a alguna legitimidad jurídica (Habermas, 1991, 143). Ni tampoco, dada la estructura trimembre que observamos, podría el derecho cerrarse en sí mismo, que además entraría en conflicto con la intuición misma de derecho, ligada permanentemente a alguna idea de justicia.



b) Desde un punto de vista sólo conceptual, pueden señalarse otros elementos que ahondan esta relación del derecho con la moral. Este es el segundo aspecto que queríamos mencionar. El elemento más fácilmente registrable: se refiere a los extensos contenidos de carácter

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moral que el derecho abriga, como se refleja en las Constituciones con sus referencias frecuentes a la dignidad, a la igualdad, fraternidad,

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etc. Todo orden jurídico está permanentemente abierto a valores y razones morales. Aparte de los aspectos materiales, la forma jurídica misma refleja igualmente valores morales como los de universalidad, imparcialidad, objetividad. La idea misma de “Estado de derecho” con su referencia al imperio de la ley, al gobierno de esta y no de la inmediatez de la voluntad de los hombres, recoge intuiciones morales. Por último, habría que señalar el paralelismo estructural entre derecho moderno y moral postconvencional, vinculados ambos en la idea del sujeto autónomo, definido como aquel que se da la ley a sí mismo, y que en el derecho obliga a que los destinatarios del puedan contemplarse como sus autores. En la forma de la producción legislativa, por tanto, se recoge ese principio, que no es sino fórmula de la libertad.

Bien entendidas ambas características: que el derecho no quede desconectado de la moral no quiere decir que se busque en esta última la solución al problema de la legitimidad de un derecho positivizado. La relación entre derecho y moral no es de subordinación del primero á segunda, sino de complementariedad. Habermas no quiere retroceder a etapas semejantes a la que representó el iusnaturalismo, el derecho

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tiene que extraer de sí mismo el momento de incondicionalidad. Y esto puede hacerlo en la medida en que se interprete que el derecho moderno recoge en su propia construcción o arquitectónica ese ideal que observamos en el proceso de racionalización del mundo de la vida, el mismo que se recoge en la moral, que ya sólo puede ser una moral procedimental. Nos referimos al ideal de la autonomía de las personas, que en el campo jurídico se disocia en autonomía privada y autonomía pública, o, en otros términos, derechos subjetivos y derechos políticos, o, también, Estado de derecho y democracia. Se da un nexo interno entre ambos elementos, como registraremos en el paso siguiente. Con todo, para Habermas es, en definitiva, el segundo el polo dominante, toda vez que es en la realización de un verdadero proceso democrático donde reside toda la carga de la legitimación. Y esto es así porque es en un proceso abierto en que todos los ciudadanos pueden participar, en que se forma la voluntad y opinión pública, donde se realiza aquel ideal por el que se superponen el destinatario de la ley y su autor; y es ese mismo proceso el que puede definir las condiciones y las formas que cobran en la práctica los derechos subjetivos. Aquí radica, justamente, la dimensión republicana de todo este enfoque. Ahora bien, como veremos, esta arquitectónica sólo es posible dentro de una concepción discursiva y procedimentalista.

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3.5.2 Derechos subjetivos versus soberanía popular.

El segundo de los problemas, el relativo a la articulación entre las dos autonomías (privada y pública) en que en el terreno del derecho queda escindida la autonomía moral, está directamente vinculado, como quedó expuesto, con el primero. Bien puede decirse que este es el corazón de aquel. En consecuencia encontraremos aquí la médula de toda esta concepción. No se le escapa a nadie, por otra parte, que ese también es el punto de división entre las dos concepciones esenciales de la democracia: la liberal y la republicana (Álvarez Yágüez, 2000). La concepción liberal coloca en la base y como elemento prioritario los derechos subjetivos, como una especie de derechos prepolíticos, todo lo demás pasaría a un segundo plano, quedando debilitado, por

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tanto, el elemento propiamente político de participación. Este enfoque, aparte de su base en Locke, intenta obtener apoyo en Kant, dado que su moralismo convierte los derechos subjetivos en algo con un valor previo a su aprobación pública. En Kant el campo del derecho es, en realidad, una derivación moral. El contrato social no sigue o modelo del contrato mercantil privado, como es el caso de Hobbes, sino que es “un fin en sí mismo”, se funda en la voluntad moral autónoma del individuo. El principio general del derecho, que sostiene la máxima libertad de cada uno en la medida en que puede coexistir con la de cualquier otro bajo una ley universal (Kant, p.48-9), calificado de “único derecho innato”, es ciertamente una aplicación del principio moral a las relaciones externas. De ahí resultan deductivamente, en primer lugar, los derechos subjetivos, que valen antes de ser aprobados por la soberanía colectiva. Éstos tienen, pues, una legitimidad independiente de la autonomía pública. Hay que decir que para Kant, la soberanía tiene la misma raíz moral en la voluntad autónoma, pero no se nos muestra su articulación interna con los derechos básicos. Viene dada aproblemáticamente debido a que se admite de partida que la voluntad autónoma pública, sometida a la universalidad, como toda voluntad moral, nunca podría aprobar una ley que vulnerase los derechos de cada uno. En definitiva, nadie cometería injusticia consigo mismo. La concepción republicana, que parte de Aristóteles y del humanismo político del Renacimiento, adopta un enfoque inverso al liberal, dando primacía a la soberanía pública. En la filosofía moderna tiene a Rousseau como referente primordial. Para el eximio ciudadano de Ginebra la libertad supone ante todo darse a sí mismo la ley, esto es, actuar conforme a una voluntad general que determine toda la vida pública. Es justamente desde ese lado como pretendería este enfoque asegurar también los derechos subjetivos, pues una voluntad general, que, como se sabe, no es una mera agregación mayoritaria de intereses, sólo puede aprobar lo que es realmente universalizable, a través de leyes abstractas y generales, por lo que no podría sino asegurar los derechos de los individuos. Otra vez aquí no se nos explica ese nexo entre las dos autonomías, dado el punto de partida de una soberanía como la que se expresa en la voluntad general el respeto a los derechos del hombre queda como simple derivación. En Kant era el principio moral lo que garantizaba la soberanía, aquí es una voluntad general,

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que ya sólo puede conformarse sobre la base de un pueblo éticamente definido, que comparte las virtudes políticas. Superar esta insuficiente conexión de ambas autonomías requeriría abandonar el paradigma de la filosofía de la conciencia, sobre el que se sustenta esa idea de sujeto monológico, moral o ético, individual o colectivo. Se requiere discursivizar el principio moral y la voluntad general, sustentarlos sobre una base procedimental y comunicativa para articular, sin primacías que debiliten alguno de los polos, derechos humanos y soberanía. Esto entrañará explicitar cómo, en realidad, los dos polos tienen el mismo punto de partida. “La originariedad simultánea (Gleichursprünglichkeit) de la autonomía privada y pública se muestra sólo cuando desciframos en términos de teoría del discurso la figura de pensamiento de la autolegislación, según la cual los destinatarios son a la vez los autores de sus derechos. La sustancia de los derechos del hombre se fija, pues, en las condiciones formales de la institucionalización jurídica de esta clase de formación discursiva de la opinión y voluntad, en las que la soberanía popular adopta forma jurídica”(Habermas, 1992, 135). Veamos a continuación, de forma sintética, en qué arquitectónica se concretaría esta perspectiva alternativa, lo que nos llevará a enfrentarnos al capítulo que el excelente traductor del pensador alemán, M. Jiménez Redondo (2002), tiene por el más confuso que Habermas haya escrito nunca, y al mismo tiempo constituye el centro de su obra.

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3.6 La propuesta discursiva.

Hay que comenzar por decir que la fundamentación filosófica que se propone la teoría discursiva no pretende ser una especie de fundamentación última como las propias de la philosophia perennis, sino un tipo de articulación filosófica que parte de una base material, el ya mencionado carácter postmetafísico de la cultura moderna, un mundo de la vida racionalizado, una sociedad plural, en que todo sin excepción se somete a crítica. Esta base, como fue apuntado, sitúa al derecho como elemento central de integración, por lo que tenemos que partir de la puesta en juego de los dos elementos esenciales de su estructura: la forma jurídica y el criterio de justificación o legitimación:

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• La forma jurídica comporta un carácter de funcionalidad, de estabilización de expectativas, coordinador de acciones, en tanto que implica la esencial dimensión de la coacción, el lado fáctico, pero que ya incorpora elementos de validez debido a los caracteres de abstracción, generalidad, no retroactividad, positividad, etc. • El criterio de justificación es el principio discursivo mismo, que reza: “Sólo son válidas aquellas normas de acción que pudieran aprobar todos los posibles afectados en cuanto participantes en discursos racionales” (Habermas, 1992, 138). • Este criterio tiene un carácter abstracto y general, y no se limita al derecho, puede aplicarse también al campo de la moral, de ahí que adquiera una especial diferenciación y concreción al unirse a la forma jurídica tornándose en lo que Habermas denomina principio democrático, que se formularía como sigue: “Sólo pueden exigir legítima validez aquellas leyes que pueden encontrar el asentimiento de todos los miembros de la comunidad jurídica en un proceso discursivo de creación del derecho que a su vez fuera 38 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

constituido legalmente” (Habermas, 1992, 141).

La unión entre forma jurídica y principio discursivo compondría, entonces, la estructura de fondo de la que se deduciría el sistema de derechos, pero tan solo como principios jurídicos abstractos que necesitarán ser concretados por parte de todos los participantes miembros de la comunidad jurídica en un segundo momento. En primer lugar, y de forma directa, se derivarían las tres categorías de derechos que establecen lo que es el mismo “código derecho”, esto es, definen lo que constituye el estatuto de persona jurídica, los aspectos esenciales que definen a un sujeto reconocido de una comunidad jurídica, a saber: 1) Los derechos que concretan el derecho estructural “al mayor grado posible de iguales libertades subjetivas de acción”. Como se ve, esta formulación responde a lo que para Kant era el principio general del derecho. Su concreción histórica adquirió la forma de los conocidos derechos a la dignidad, a la vida, a la libertad, propiedad, desplazamiento, etc. Correlacionados con él están las dos categorías siguientes:

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2) Los derechos derivados del estatuto de miembro de una asociación voluntaria como es la comunidad jurídica. Serían, pues, los derechos que regulan la pertenencia a una determinada comunidad, establecen la línea de separación dentro/fuera. Constituye aquello que Hannah Arendt denominaba “el derecho a tener derechos”, la base de la ciudadanía. Como derecho de libertad que a nadie le puede ser rescindido unilateralmente, y, claro es, el individuo se reserva la capacidad de renunciar a él, de salirse de la comunidad. Sienta pues la base siempre de una ciudadanía no definida por el ethnos, no de adscripción racial, religiosa o cultural o que escapara a la propia decisión de los sujetos. La concreción histórica que este principio tuvo dio lugar al derecho de nacionalidad, a los derechos de no extradición, de asilo, etc. 3) Los derechos fundamentales derivados de la reclamabilidad de los derechos, de protección jurídica. Se refiere a los derechos habitualmente concretados como garantías jurídicas de procedimiento, procesales, etc. 39

Hasta aquí tendríamos establecido un código derecho que perfilaría la autonomía privada, en cierto modo lo que todo miembro de la comunidad de manera pasiva debe de poder gozar, lo que define al destinatario del orden jurídico. Como tales categorías son, como dijimos, abstractas, no son nada del tipo de los derechos naturales externos a su misma declaración. Necesitan de un segundo momento en que deban ser llenos de contenido, concretados o determinados, y eso sólo puede hacerse convirtiéndose los destinatarios en autores o colegisladores. Es entonces cuando efectivamente se plasmaría toda esa gama de derechos que componen los derechos civiles, los llamados derechos liberales. Pero en esa concreción se da, entonces, un giro importante. Las tres primeras matrices de derechos estaban formuladas desde un punto de vista teórico, en tercera persona. Pasamos ahora, entonces, a la perspectiva de participante, la única desde la que se pueden concretar las anteriores matrices, esto es, mediante la implicación de los “destinatarios”, algo que sólo puede hacerse mediante un procedimiento jurídicamente definido, que implica el respeto a ese código derecho establecido. Por esto las tres categorías primeras de derechos son dependientes de este factor de participación, y, a su vez, éste no puede sino moverse en el marco de aquellas. Vemos aquí la circularidad y constitución mutua

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entre autonomía privada y autonomía pública. Esta última fixada en una cuarta matriz de derechos: 1) Los derechos derivables del derecho fundamental a la participación, dentro de una igualdad de oportunidades, en los procesos de formación de la voluntad y opinión pública, por el que se plasma la autonomía política y se establece el derecho legítimo. Son los propios miembros de la comunidad los que tendrán que precisar los contenidos de esta categoría, lo que históricamente concreta los derechos políticos. De esta manera aparecería ya como realidad jurídica efectiva el principio democrático; se institucionalizaría la libertad comunicativa. Desde esta categoría jurídica tendría que atenderse a las condiciones materiales que se interpreten vinculadas a la efectuación de los derechos civiles y políticos. Lo que nos lleva a una última matriz de derechos. 2) Derecho a que se garanticen condiciones sociales, técnicas, ecológicas 40

de vida que hagan realidad los anteriores derechos. Estos serían los derechos sociales.

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Esta articulación conceptual y fundamentación del sistema de los derechos se corresponde con la sucesiva conformación histórica de las distintas generaciones de derechos, como recogió T. Marshall en su momento, dando lugar la última a la aparición del Estado social y democrático de derecho, lo que hará que Habermas tenga que insistir en el aspecto reconstructivo de su método para evitar la carga hegeliana en que lógica del concepto y sucesión histórica se replican. Pero ahora interesa aquí prestar atención a los aspectos que nos marcamos. Con esta construcción quedaría superada la contraposición clásica entre liberalismo y republicanismo, entre Estado de derecho y democracia, la contraposición entre autonomía privada y autonomía política, derechos subjetivos y soberanía, toda vez que, como queda expresado, se constituyen recíprocamente, una no es anterior a la otra. Ciertamente que la soberanía por fuerza tiene que contar con las tres categorías primeras de derechos, pero eso no significa derechos prepolíticos, a la manera liberal, pues se trata de unos principios o matrices abstractas que, como apuntamos, requieren interpretación que solo desde la soberanía podrá hacerse. La autonomía privada, los derechos

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subjetivos, tienen, pues, que ser establecidos por los componentes de la comunidad. Las categorías del código derecho necesitan de la soberanía no sólo por su carácter abstracto, de principios incoados non desenvueltos, sino porque sólo mediante deliberación, a través de debates públicos, puede saberse en concreto cuales son los aspectos relevantes en un contexto histórico dado para la concreción de los derechos fundamentales, de los llamados derechos humanos. La soberanía tiene precisamente una estructura procedimental, no es pueblo alguno, definido por una lengua, cultura, etnia, etc, sino las instituciones y la red pública, formal e informal, que posibilita esa discusión (Habermas, 1992, 600-631). Por otra parte, todo esto no significa una soberanía ilimitada, al modo republicano, pues tiene necesariamente que ejercerse en aquel código derecho que esas tres matrices marcan, ya que la comunidad se organiza en ese medio jurídico, y que ya como tal lenguaje no está a disposición de la voluntad soberana. Los derechos básicos no sólo no pueden ser entendidos como impedimentos a la soberanía, sino que, en tanto que garantizan la autonomía privada, aseguran las condiciones que posibilitan a los sujetos la participación política, la autonomía pública. Por este mismo camino, la solución al problema de la relación entre positividad y legitimidad queda igualmente precisada, ya que sólo un sistema que articule de este modo, las dos ideas centrales del derecho moderno, soberanía y derechos humanos, en que se expresa el ideal general de la libertad, de la autonomía de los sujetos, puede ser entendido como legítimo.

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3.7. Para concluir: del derecho a la política.

Si ahora ponemos en relación el derecho con las distinciones más arriba hechas entre sistema y mundo de la vida, habría que atribuir al derecho la función primordial de conectar el ámbito discursivo, de socialización comunicativa del heterogéneo mundo de la vida con el espacio sistémico de la administración. El derecho trasladaría a aquella los criterios y anhelos que surgen aquí, y, de ese modo, traslada al Estado la carga de legitimidad asociada a los acuerdos intersubjetivos, el potencial de solidaridad que puede equilibrar los medios del poder y el dinero. El

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derecho representaría un puente entre el poder comunicativo y el poder administrativo. Ahora bien, Habermas sabe que el derecho por sí solo es claramente insuficiente para la integración armónica de la sociedad, que el caudal legitimador que se recibe de la esfera pública se debilita progresivamente por el constante asedio a esta, como su misma tesis de colonización del mundo de la vida ponía de manifiesto, y mucho más concretamente su temprano estudio sobre su constitución y evolución (Habermas, 1962). La esfera pública se distorsiona por la monopolización privada (imperios Murdoch, Berlusconi, etc) y por la perversión de sus contenidos (tendencia creciente a la invasión de los medios públicos por lo privado e íntimo). Sin una cultura política amplia, sin el hábito de debate y participación, y no la reclusión en lo privado toda esta construcción quedaría inerte. Por eso, la tesis habermasiana de que solo la democracia radical puede sostener el Estado de derecho (Habermas, 1992, 13) no cabe sino que sea interpretada republicanamente. 42 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

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SWANN E A FORMAÇÃO OBJETIVA DO SUJEITO: REFLEXÕES A PARTIR DE THEODOR W. ADORNO SWANN AND THE OBJECTIVE CULTURAL FORMATION: REFLECTIONS BY THEODOR W. ADORNO Christian Muleka Mwewa e Alexandre Fernandez Vaz

1 Introdução O PRESENTE ARTIGO PRETENDE REFLETIR SOBRE O TEMA DA FORMAÇÃO OBJETIVA DO SUJEITO, considerando parte do projeto de à la recherche du temps perdu de Marcel Proust, nomeadamente, Un amour de Swann. Segundo o próprio Proust, Swann se configura como parte independente do todo pela força intempestiva das relações empreendidas entre os personagens. Fazemos isso com inspiração na obra de Theodor W. Adorno. O personagem Swann é analisado como sujeito que coloca em prática a sua formação ao manejar certos elementos subjacentes ao contexto social em que está inserido. Este, personagem, é tomado como exemplo guia que materializa os pressupostos teóricos em torno da arte (literatura) que refletimos a partir de Theodor W. Adorno. Swann é tomado como aquele que mostra como a con-formação cultural erudita é colocada em marcha no e pelo sujeito quando este a concebe como referência da sua privilegiada posição no pequeno grupo social em que participa. Este sujeito se comporta de forma a confirmar os pressupostos sob os quais a cultura foi pensada. A centralidade da cultura erudita na/com a qual Swann se relaciona vem a atender os argumentos em direção à crítica da cultura, como modo de vida, por meio da arte que é, também, parte dessa cultura.

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O romance indica até um certo ponto os possíveis níveis de envolvimento (libidinal, afetivo e de desprezo) que podemos estabelecer com o mundo objetivo a partir da formação cultural que nos é dada. Tal envolvimento (nestes três níveis), no que diz respeito à formação, é o elemento principal do qual Swann, por exemplo, se vale na sua relação com o mundo.

2 Swann e a formação objetiva do sujeito

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Concebemos Swann como a materialização da autocrítica do sujeito, neste caso, mediado por sua erudição. Para tanto, foi preciso imergir dentro de um dado contexto, “petit groupe”, para, junto com sua própria autocrítica, realizar uma crítica imanente deste contexto “...une fois qu’ils sont parvenus à s’y habituer, les divertissements medíocres ou les supportables ennuis qu’elle renferme” (PROUST, 2006, p. 14). Neste sentido, para extrapolar os limites colocados por este pequeno grupo é preciso empreender uma autocrítica necessária para a autoconservação do sujeito. A autocrítica exige do sujeito, uma vez imerso num contexto (cultura), o movimento de emergir deste contexto por meio de uma crítica imanente. O exercício da crítica imanente demanda o conhecimento do objeto a ser criticado. Podemos, então, pensar em Swann como aquele que transita, como erudito, nos interstícios que constituem o grupo social a que frequentava. Ele adentra tal grupo para realizar um movimento que explicita os interesses, as intrigas, a projeção no outro do desejo de emancipação. A formação erudita é pensada também para angariar posições e prestígio de um certo ciclo social. É em direção a si mesmo que Swann realiza, também, uma autocrítica de sua própria formação. A autocrítica é posta em questão para poder ser reforçada num outro patamar. Swann instaura uma relação de repulsa ou desdém. Esta não é agressiva, mas camuflada no esnobismo frente aos valores alheios que ele ainda desconhecia, no prazer galante pelo reconhecimento de suposta superioridade em sua formação de conhecedor de obras de arte, em especial a pintura. A repulsa de Swann manifestava-se em relação ao pequeno grupo e não à arte apreciada neste ambiente pela qual ele possuía um conhecimento profundo, apesar de desconhecer

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a música do pianista predileto no grupo. Ao apreciar tal arte, este grupo a tomava com um valor particular de distração (entretenimento e diversão). Podemos dizer que a apreciação da arte pelo coletivo se diferencia da de Swann (o particular), reconhecida como mais legítima pelo próprio grupo, ao denunciar o sentimento do belo ao ser tocado pela frase musical do pianista. Este procedimento demarca uma posição de diferenciação com os demais, que somente esboçavam um interesse utilitário pela arte. Isso pode ser verificado na demonstração impar de entrega diante da mesma música, que suscitou em Swann um “...amour pour une phrase musical [a pequena frase de Vinteuil].” (PROUST, 2006, p. 37). Poder reconhecer a profundidade desta frase faz com que germine uma inquietude própria daquele que anseia conhecer. A Formação de Swann, diante deste procedimento, indicaria um sujeito esclarecido, que reconhece o sublime, o inominável na arte e flagra, assim, o limite da própria racionalidade. Portanto, aquilo que não pode ser explicado, o indizível, cabe à sensibilidade, como, por exemplo, a aurora que surge no horizonte ou o arco-íris que se distancia cada vez que nos aproximamos dele. Swann se entrega a fim de compartilhar o comportamento corrente. Esta erudição era colocada em prática para, por exemplo, “... en matière d’art à conseiller les dames de la société dans leurs achats de tableaux et pour l’ameublement de leurs hôtels.” (PROUST, 2006, p. 13). Esta fase, que pode ser denominada “intermediária”, é quando Swann se entrega aos ditames da sociedade administrada, que tem nos partícipes do pequeno grupo, liderado pelos Verdurin, os seus fiéis representantes. Nela não basta possuir algum conhecimento se este não produzir resultados práticos quando funcionalizados na vida padronizada. Ao indivíduo que possui o conhecimento considerado erudição lhe é facilitado os meios para demonstrá-lo na excelência da sua utilidade prática. É por meio da “autocrítica” que, finalmente, Swann pôde emergir deste “pequeno grupo”. Essa “autocrítica” inaugura o novo na relação com o objetivo, pois é fruto de um conhecimento profundo. As fases anteriores fizeram com que Swann adquirisse o conhecimento e o desejo suficientes para não mais querer a mulher que o apresentou àquela vida (dos Verdurin), a qual vivenciou, repudiou e abandonou. Mesmo que

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isso certamente significasse o fim do convívio com aqueles com quem ele passou a compartilhar alguns códigos culturais. Pode-se dizer que este reconhecimento da não necessidade deste convívio ressalva, em alguma medida, aquilo que o sujeito pode salvar de si numa sociedade que a tudo usurpa. Nos três planos (vivência, repudiar e abandonar) em que localizamos o relacionamento de Swann a partir da sua formação, é que a autocrítica e a crítica imanente são importantes. A autocrítica é observável na entrega incondicional de Swann ao amor de Odette. Swann “…se rendait bien compte qu’elle n’était pas intelligente” (PROUST, 2006, p. 76). Mas é importante notar que o sr. Forcheville tecia elogios à Odette de Crécy como uma mulher que tinha um ar de inteligente e esperta (viva), diz ele: “Mais Mme de Crécy, voilà une petite femme qui a l’air intelligente, ah ! Saperlipopette, on voit tout de suite qu’elle a l’œil américain, celle-là !” (PROUST, 2007, p. 258). Swann, nesse caso, realiza uma dupla ação crítica, uma dirigida ao seu grupo e outra a ele mesmo. Ou seja, os elementos por ele apropriados para demonstrar as incongruências e congruências sociais podem ser também pensados em direção a si próprio. Portanto, refletem nele como uma ação recíproca no sentido do próprio sujeito. A crítica em direção ao grupo ocorre na medida em que sua paixão cega e o abandono da racionalidade o fragilizam. É como se ele estivesse questionando a legitimidade de admirar algo que, a princípio, não o eximiu do assujeitamento propiciado pelo amor, pois, ele, como um sujeito esclarecido, tem a consciência de que a admiração deve ser devotada àquilo que possa encaminhar o sujeito ao exercício de sua liberdade (autonomia), para não se transformar em mais um momento de alienação como o era para aquele pequeno grupo que não almejava mudar sua situação. Sua sujeição, portanto, ao explicitar-se, denuncia, de forma silenciosa, que aquele que não é livre o bastante não deve admirar para não tornar-se dependente do outro. Em forma de exemplo, ele mostra o quanto é perigosa e potente a força de um amor que suplanta até uma formação considerada elevada. Em outras palavras, se a demi-mondaine conseguiu realizar tal proeza em um homem com sua formação, isso denuncia o estado de alerta que deve pairar no grupo cuja inteligência é medíocre. E, assim, a crítica volta contra si mesma quando anuncia a visão equivocada que alimenta as análises sociais apressadas. Como sua formação não o salvaguardou diante de

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uma mulher que o “consumiu”, afirma-se o seu limite na eloquência do equívoco que a considerou superior. Pode-se dizer que esta demi-mondaine se apropriou de forma significativa do lugar da “marginalidade”. Como Odette não pertencia de forma visceral e sim transitória ao grupo dos Verdurin, ela se valeu do lugar da marginalidade como um local legítimo para a sujeição do outro. Tampouco o fez de forma meticulosa, por isso o espanto que produziu, no final, o reconhecimento de que uma pessoa do alto de sua formação erudita não poderia se submeter a uma demi-mondaine. Foi a formação erudita que possibilitou este reconhecimento, pois é dela que Swann é o protótipo. Portanto, as acusações de preconceito, neste caso, tornam-se memórias esculpidas na areia, cujo mar é a manifestação do tempo que a nada se curva. O movimento crítico que a arte realiza pretende mostrar o quanto esta se torna faibles no seio da sociedade que a concebe. Já o movimento crítico do sujeito diante da realidade vivenciada descontrola-se diante das imbricações do amor. O amor desestabiliza toda e qualquer formação anunciada pela erudição de Swann, o qual se mostra inapto ao relacionamento en demi-monde et avec la demi-modaine. A inadaptabilidade ao tipo de amor que Odette lhe oferecia, mostra, de fato, o anverso da situação, ou seja, confirma a resistência do sujeito diante dos mecanismos de padronização, pois o estilo de vida da mulher desejada era conhecido de todos os amantes que a frequentavam, mas não era aceito, de forma tranquila, por Swann. Portanto, ele passou a viver adaptado ao contexto, mas inadaptado ao caráter de sua relação, demonstrando, assim, um obsessivo desejo de controlar a ponto de sentir ciúmes da sombra da mulher amada ou de pagar para que alguém a acompanhe para depois estar com este alguém e sentir-se perto daquela. Este comportamento denuncia uma certa fraqueza e anúncio de fracasso. O “fracasso”, numa sociedade desumana, configura-se na denúncia dos limites do estado das coisas. São as veias que ainda pulsam sob o véu sufocante da funcionalização do sujeito. Como é sabido, todos naquele grupo, que Swann, o protótipo da autocrítica do sujeito, passou a frequentar, tinham que conseguir a adoração e aprovação dos Verdurin, sob pena de serem rechaçados. Swann, cego de um amor que o tornava cada vez mais “fiel”, denunciava por suas atitudes quão longe se encontrava de obter êxito. Isto é, o amor fiel de Odette.

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Swann anuncia como a formação e a conformação, no sentido de adaptabilidade cultural do erudito, agem no e a partir do sujeito, quando este as concebe como referências para sua posição social. A primeira, a formação, foi aquela que acionou o estado de alerta que codificou os mecanismos de convívio no contexto em que adentrava. Já a segunda, a conformação, confirmou o processo de aceitação que o fez compartilhar e defender os pressupostos daquele contexto. As duas instâncias protagonizam no sujeito uma tensão que culminou na derrota da primeira no primeiro momento. Uma vez que Swann passou a compartilhar dos códigos, ele disponibilizou sua formação para a manutenção deste contexto. É como se um sujeito com as características de Swann já fosse parte prevista do clã dos Verdurin, pois eles necessitavam de alguém que legitimasse a apreciação medíocre que tinham da arte. Ou seja, Swann serve como um “selo” do erudito, que atesta a falsidade vivenciada naquele ambiente. Assim, a arte, quando colocada em prática como instrumento, apenas confirma a pseudoerudição dos seus apreciadores. Swann, então, assim como a arte, torna-se um elemento diferenciador naquele grupo, porém materializado de forma funcional. Il [Swann] voyait le pianiste prêt à jouer la sonate Clair de lune et les mines de Mme Verdurin s’effrayant du mal que la musique de Beethoven allait faire à ses nerfs : « Idiote, menteuse ! s’écria-t-il, et ça croit aimer l’Art ! » Elle dira à Odette, après lui avoir insinué adroitement quelques mots louangeurs pour Forcheville, comme elle avait fait si suivent pour lui : « Vous allez faire une petite place à côté de vous à M. Forcheville. » « Dans l’obscurité ! maquerelle, entremetteuse ! » « Entremetteuse », c’était le nom qu’il donnait aussi à la musique qui les convierait à se taire, à rêver ensemble, à se regarder, à se prendre la main. Il trouvait du bon à la sévérité contre les arts, de Platon, de Bossuet, et de la vieille éducation française. (PROUST, 2006, p. 134).

A partir dos elementos que mediatizavam a convivência dentro do “petit noyau”, Swann realiza uma crítica por dentro da cultura na qual ele se formou e com a qual deve se relacionar. Mergulha “incondicionalmente” no seio desta, no sentido de não permitir ser guiado pelos níveis de envolvimento (libidinal, afetivo e de desprezo), mas

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sim pela objetividade, ao relacionar-se com os membros do grupo que frequentava, apesar de se entregar às emoções na sua relação com Odette, personagem que, neste caso, pode ser pensada como a “petit noyau” dentro do grupo frequentado por Swann. Por isso se justifica o “desajuste” entre a inadaptabilidade dentro da relação a dois e a adaptabilidade dentro do “pequeno grupo”. Pode-se dizer que Odette desafiava suas convicções formativas, enquanto as relações no grupo eram de fácil absorção. O sujeito é incentivado a manter-se atento para as incertezas do amor, pois frente a este nada que ele carrega como formação lhe é muito útil. A entrega que Swann protagoniza em relação à Odette, de certa forma, anuncia os limites interpostos pela necessidade de manter-se vivo. Ou seja, privilegia em primeiro lugar as próprias necessidades subjetivas para seguir vivendo, pois ele flexibiliza suas convicções, suas energias psíquicas, quase chega a preferir a morte, “...j’ai voulu mourir...”, (queria morrer) enfim abre mão de seu ser frente ao outro, que lhe é, a certa altura, indiferente. Como superar esta situação de necessidade de estar ligado por qualquer meio ao outro? A mesma liberdade, da qual Swann pode se vangloriar encontra sua equivalência naqueles que participam da indústria cultural. Ele se pensa livre para participar deste grupo e, em contrapartida, adapta-se à conformidade dele. Swann se localiza na posição daquilo (objeto) e daquele (sujeito) que é desejado na sociedade de que participa. É flagrada a posição do primeiro em Odette, pois “c’est aussi du respect qu’inspirait à Odette la situation qu’avait Swann dans le monde...” (PROUST, 2006, p. 77); a posição do segundo se manifesta no desejo incessante de Mme. Verdurin pela sua presença, assim como desejava a companhia da maioria das pessoas que frequentavam a casa dela.

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– Eh bien ! amenez-le votre ami, s’il est agréable. Certes le « petit noyau » n’avait aucun rapport avec la société où fréquentait Swann, et de purs mondains auraient trouvé que ce n’était pas la peine d’y occuper comme lui une situation exceptionnelle pour se faire présenter chez les Verdurin. (PROUST, 2006, p. 13).

Swann mostra, a partir de sua formação como sujeito, aquilo que o danifica no meio de que tem de participar. Por exemplo, ele não procurava satisfazer-se na admiração à beleza das mulheres com quem

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passava o seu tempo, mas mesmo assim procurava passar o tempo na companhia de mulheres consideradas belas. É importante observar a mudança vetorial para perceber que ele, neste caso, desfuncionaliza a beleza (o para quê?), e, ao revés, funcionaliza o seu tempo, dispondo-o para a beleza (o por quê?), mesmo que, neste caso, a admiração não se configure no primeiro impulso. Livre do primeiro questionamento (para quê?), o sujeito é impulsionado a reconhecer sensivelmente a beleza que o cerca e vivenciá-la. Já o segundo questionamento se justificaria, em comum acordo, pela sensação causada pela beleza. A sensação, de agrado causada pelo belo, se dá diante da representação do objeto frente àquele que se agrada. O sentimento causado por este objeto da representação é refletido no sujeito em forma de prazer ou desprazer. Portanto, “[...] lui, ne chercher pas à trouver jolies les femmes avec qui il passait son temps, mais à passer son temps avec les femmes qu’il avait d’abord trouvées jolies.” (PROUST, 2006, p. 14). Se há o privilégio na admiração, como vemos com Odette, acaba criando-se uma relação de dependência. Por isso o deleite na relação com as outras mulheres com quem passava seu tempo. Era importante para Swann estabelecer esta diferenciação. Dentro do “petit noyau”, as relações acabam se transformando em relações fabricadas para manterem um vínculo estreito e aleatório com os dispositivos internos do núcleo social frequentado por Swann. Mme. Verdurin, por exemplo, queria todos próximos, não importava quem fosse, desde que a agradassem, “[Mme. Verdurin] Elle dira à Odette, après lui avoir insinué adroitement quelques mots louangeurs pour Forcheville, comme elle avait fait si suivent pour lui [Swann].” (PROUST, 2006, p. 134). Swann se via obrigado a estar ali, apesar de detestar alguns dos mecanismos que funcionalizavam aquele grupo, denunciando a saga da inadaptabilidade em um ambiente que pode ser inóspito. Ele adentra este grupo na fruição de uma força que passou a ser sedutora, ou seja, abdica das amarras diante do Canto das sereias. Odette encarna aquilo que é refutado subjetivamente – demi-mondaine – e, ao mesmo tempo, almejado objetivamente. Ela desfruta de toda a atenção de Swann e garante a funcionalidade objetiva do desejo deste. Swann “…fait servir son érudition en matière d’art à conseiller les dames de la société dans leurs achats de tableaux et pour l’ameublement de leurs hôtels [...]”, como dito mais acima (PROUST,

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2006, p. 13). Mas aqui esta citação nos remete a uma outra questão. No momento em que Swann coloca sua erudição “a serviço de…” deflagra-se a funcionalização deste saber, a exemplo daquilo que fazem os críticos da cultura de forma mais ampla. Estes ocupam espaços nos meios de comunicação de massa (rádio, televisão, periódicos, revistas etc.) e têm o direito de qualificar os bens culturais a serem consumidos ou a Arte a ser apreciada socialmente. Segundo Adorno (2001, p. 9), “o decisivo é que o gesto soberano do crítico encena aos leitores a independência que ele não possui, e presume um papel de comando que é irreconciliável com o seu próprio princípio de liberdade espiritual.” Dentro da “prisão” dos proprietários dos meios de comunicação e do imperativo da necessidade de consumo, o crítico delega a liberdade. É um “rei”, por conta do seu conhecimento, “encarcerado” pelos seus súditos e mentores que lhe são dependentes. O conhecimento de Swann sobre as obras de arte fá-lo exercer o papel daquele que dita o que deve ser consumido para a serena manutenção do funcionamento interno do grupo. Por exemplo, quando ele aconselha a respeito dos quadros a serem comprados para enfeitar os hotéis, se aproxima ao papel dos críticos da cultura na funcionalização da indústria cultural. No entanto, esses mesmos sujeitos (os que o admiram), que lhe direcionam, também, em verdade, um ódio, se satisfaziam na situação em que se encontravam. Isto é, uma situação de felicidade proporcionada pelo que podem consumir sem considerarem os mecanismos sociais que os impulsionam para tal consumo. Algumas vezes em que o pianista começava a tocar, alguns iam para outro salão, e, entre os que ficavam, havia os que continuavam a conversar. Neste ambiente, a música exerce, assim, o papel de entreter as pessoas para que continuem no curso de suas vidas ordinárias. A reflexão que a música demanda e a profundidade dos seus temas são deixadas de lado, num processo que livra o sujeito de reconhecer o seu estado de sujeição à ordem social vigente. Se é apenas para funcionalizar e ter o caráter de música de fundo, num salão, bar ou restaurante, é melhor que não haja música. Mas, com isso, corre-se o risco de perceber o quanto as conversas são enfadonhas ou medíocres. A música passa a fazer parte do ambiente, pois uma churrascaria sem música é como se só a carne não bastasse. Tem-se a sensação de que sempre está faltando algo. Assim como sem

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o pianista, a quem se teciam inúmeros elogios e dedicavam-se diversos mimos, o salão dos Verdurin corria o risco de perecer. A Swann é permitido estabelecer (se envolver em) uma relação amorosa com a demi-mondaine, na expressão de Émile Zola. Swann usa de todos os seus artifícios de formação para tentar, em vão, garantir uma relação, na qual exista uma reciprocidade equânime a sua dedicação. Em outras palavras, Swann espera que seja recompensado na proporção de sua entrega incondicional ao ser amado, pois, “Swann cherchait à lui [Odette] apprendre en quoi consistait la beauté artistique, comment il fallait admirer les vers ou les tableaux...” (PROUST, 2006, p. 76). A permissividade para si é tolerada, pois aquilo que é considerado “erudito” pode se misturar com o considerado “não-erudito” sem muitos prejuízos para o primeiro. Mas os ganhos se destinam ao segundo, como fica claro ao longo da relação estabelecida entre Swann e Odette de Crécy. Portanto, reina, neste caso, a matemática do fifty-fifty de forma desigual, ou seja, o primeiro, “erudito”, perde um pouco de sua erudição, enquanto que o segundo, “não-erudito”, ganha um pouco de erudição. É o que pode ser observado nas “últimas” palavras, após a autocrítica, “[…] Et avec cette muflerie intermittente qui reparaissait chez lui [Swann] dès qu’il n’était plus malheureux et que baissait du même coup le niveau de sa moralité…” (PROUST, 2006, p. 253). A pseudoliberdade torna-se um momento privilegiado do sujeito para a ação dos mecanismos de conformação social. Assim, tomamos emprestados os termos de Gustave Flaubert, quando este diz que é nos detalhes que mora o bom Deus. O objetivo de Swann como um sujeito esclarecido é alcançar a materialização de um grande amor. Portanto, não se pode dizer que ele fracassou, uma vez que o “processo” foi vivenciado de uma maneira intensa. Ele concretizou uma experiência subjetiva narrável enquanto podia desejar. Neste sentido, concordamos com a análise de Adorno em relação a Proust, pois, “il vaut mieux sacrifier la vie totale pour l’amour du bonheur total plutôt que d’en accepter un trait qui ne serait pas mesuré à l’aune de l’accomplissement extrême.” (ADORNO, 2004, p. 232). Este é o desafio que Em busca do tempo perdido traz como fundamento para uma existência mais verdadeira, pois só diante do sacrifício ou da disposição total é que se pode alcançar a felicidade. Swann, quando sucumbe ao amor de Odette, mostra a necessidade do sujeito manter-se vigilante frente à sedução daquilo que pode

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danificá-lo, sem perder de vista que, no seu caso, “[...]…le désir de connaître la vérité était plus forte et lui sembla plus noble.” (PROUST, 2006, p. 118). Para uma melhor percepção da audácia de Swann, é preciso ter em mente aquela de grandes heróis de epopeias Homéricas. Porém, sem subterfúgios astuciosos e protegido apenas pela sua formação erudita, Swann sobrevive à batalha do amor e retorna a si. Ao se entregar sem medidas, Swann assemelha-se a um Odisseu não amarrado no mastro quando ouviu o primeiro concerto da humanidade, o canto das sereias. A entrega de Swann foi livre até as profundezas do desespero, da indiferença do ser amado, da solidão, da espera por migalhas, mas sobreviveu. É importante afirmar que o único deus que protegia o herói proustiano era a possibilidade do amor sublime. É frente a este gigante que Swann estaria indicando uma outra face da luta entre Odisseu e Polifemo, porém este último não previamente embriagado. Swann não se acovardou ao enfrentar por completo a possibilidade de bonheur. Swann, como sujeito exemplar, pode habitar diferentes corpos independemente do contexto, munido apenas das suas convicções formativas contextuais, pois o que está em jogo, comum a todos, é a busca da realização subjetiva no mundo objetivo mediada pela formação de cada um. Não é possível particularizar o sofrimento, pois todos os crimes foram feitos contra a humanidade que Proust questiona por meio de um sujeito. Segundo Adorno (2004, p. 231), “la recherche du temps perdu [na qual se insere Un amour de Swann] met la réalité intérieure et extérieure à l’épreuve avec cet instrument qu’est l’existence d’un homme sans peau.” Swann enfrenta os desígnios da vida para, no final, no auge da sua formação, saber refutar o fracassado bonheur, porém, ele assume os riscos aos quais a busca o dispôs e demonstra, assim, a corrosão coercitiva do sujeito esclarecido. Swann se corrói interiormente (realidade interior) ao longo de sua relação com Odette, expondo-se à coerção do “petit noyau” (realidade exterior). Em outras palavras, ele não saiu ileso deste enfrentamento da vida ao qual foi imposto, pois se entregou incomensuravelmente aos desígnios daquilo que mais tarde recusaria. Num movimento autocrítico e “[…] il s’écria en lui-même: ‘Dire que j’ai gâché des années de ma vie, que j’ai voulu mourir, que j’ai eu mon plus grand amour, pour une femme qui ne me plaisait pas, qui n’était pas mon gere!’” (PROUST, 2006, p. 253).

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É a recusa ao status quo, inspirada na arte, a que Swann se assemelha, ao enfrentar o desconhecido e gigantesco que, por fim, acabou derrotando-o. Evidencia, assim, a negação da necessidade de permanência póstuma da obra de arte, após mostrar à sociedade aquilo que a danifica. A obra de arte coloca-se pronta ao enfrentamento sem garantias de ganhar, pois só assim se faz necessária socialmente. Por meio de Swann somos levados a conhecer os descaminhos que nos propõem os algozes protetores das obras de arte na manutenção dos seus privilégios. Swann representa um ser (objeto) no qual se projeta a ânsia de se querer constituir-se em sujeito, ou seja, de se querer existir por meio da possibilidade de escolher a quem amar, pois ele, ao menos, podia escolher em companhia de quem passar o seu tempo (as belas mulheres). Swann confirma uma certa tonalidade da sociedade onde vive, ou seja, ele restaura a ordem estrutural do pequeno grupo, pois acaba sendo mais um a proclamar elogios verdadeiros, mas num ambiente acostumado com os falsos elogios mútuos. Da forma como Swann se submete à Odette, esta figura surge como “[...] a irrupção da objetividade na [sua] consciência subjetiva” (ADORNO, 2000). Esta “irrupção” passa a causar o desejo que, em Swann, se assemelha àquele que o sujeito manifesta diante das obras de arte. Podemos nos confundir quanto ao destinatário dos elogios de Swann, pois eles podem ser direcionados tanto para a Odette quanto para a arte. Ao lembrarmos que “a ideia das obras de arte quer romper a troca eterna de necessidade e satisfação...” fica claro para quem se destinam os seus elogios. Mas, ao preferir se perder na satisfação de suas necessidades e vê-las saciadas, ele nos dá pistas sobre a destinatária dos elogios (ADORNO, 2000, p. 273). Este movimento também deve ser pensado dentro das relações dissonantes que o sujeito estabelece. Aqui reside a dificuldade de equipararmos de maneira direta o desejo que manifestamos às obras de arte e aquele destinado às pessoas. Em relação às primeiras, podemos nos contentar em apenas contemplá-las, pois isso “...faz parte do instante em que o receptor se esquece e desaparece na obra: instante de profunda emoção”. Mas, “...deixa[r] de sentir o chão debaixo dos pés...”, se intensifica em relação ao segundo desejo, para o qual se necessita de uma materialidade física (outro corpo) para que seja válido (ADORNO, 2000, p. 274).

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Nunca é demais lembrar que esta relação se faz possível quando consideramos o fato de que Swann possuía um vasto conhecimento sobre diferentes tipos de arte. Portanto, é possível compreender que os sentimentos dele possam se confundir ou se aproximam diante dos dois objetos de desejo. Esse conhecimento prévio nos leva a considerar que, ao perspectivar Odette, Swann, de alguma forma, explicita uma necessidade que se tem para se apreciar uma música clássica, por exemplo, no “pequeno grupo”, pois, em ambas as situações, foi preciso que ele se alienasse de si frente ao objeto apreciado. Esta relação entre as duas instâncias precisa ser matizada, mas, tomada como sugestão, possibilita a compreensão do comportamento do sujeito diante de Odette. Assim, em uma leitura “por de baixo”, isto é, na posição daqueles que são ignorados quando se classificam as obras de arte como clássicas a partir de um ponto de vista autoritário, concordamos com Canclini, quando este afirma: Quienes hacen uso más intenso del museo son los que ya poseen un largo

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entrenamiento sensible, información sobre las épocas, los estilos e incluso los períodos de cada artista que dan sentidos peculiares a las obras. […] Solo accederán a ese capital artístico o científico quienes cuenten con los medios, económicos y simbólicos, para hacerlo suyo. Comprender un texto de filosofía, gozar una sinfonía de Beethoven o un cuadro de Bacon requiere poseer los códigos, el entrenamiento intelectual y sensible, necesarios para

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descifrarlos. (CANCLINI, 2006, p. 63-65).

A formação em Swann só pôde ser pensada enquanto um mecanismo pelo qual ele evidencia e vivencia os seus limites diante do sofrimento proporcionado pelas pessoas do seu convívio, especialmente Odette. Isto pode ser, naturalmente, estendido a todos, mesmo quando não nos identificamos com Swann, pois somos vítimas do usufruto da nossa formação que, por sua vez, só é possível quando pensada socialmente. Assim, ele é possuidor dos condicionantes sociais e faz uso de sua formação diante do objetivo ao qual sucumbe por meio do sofrimento, por não alcançar a situação almejada (o ser) e a todo momento perseguida. O sujeito, em algum momento, deve pôr em causa aquilo que lhe dá força para viver (a formação), ao servir como um alicerce para suas ações (Swann). Visto por outro ângulo, pode-se perceber que

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esta mesma formação o fez emergir do sofrimento no qual se afundava. Portanto, aqui se afirma uma necessidade de se encarar a formação especularmente, de forma a confirmar sua dialética, pois, “pour c’est faire, la dialectique à la fois reproduction du rapport d’aveuglement universel et critique de celui-ci, doit en un dernier mouvement se tourner contre elle-même.” (ADORNO, 2007, p. 489). É voltando-se contra ele mesmo que Swann se entrega ao grupo e à Odette, mas o procedimento de autocrítica o fez compreender que “...le senteiment qu’Odette avait eu pour lui ne renaîtrait jamais, que ses esperances de bonheur ne se réaliseraient plus.” (PROUST, 2006, p. 216). Em outra ocasião, Adorno afirma que “a crítica da cultura [por exemplo] supõe uma substancialidade própria da cultura; prospera em sua proteção e dela recebe o direito de formular juízos sem escrúpulos, o de comportar-se como um fato espiritual autônomo, mesmo quando termine por voltar-se contra o próprio espírito.” (ADORNO, 1974, p. 116-117). Este movimento, a partir da formação do sujeito, pode levá-lo a perceber os limites desta e, em alguma medida, re-voltar-se contra ela. Portanto, a crítica tanto da cultura demanda não se contentar tranquilamente na situação em que o sujeito se encontra, o que, de certa forma, torna-se o imperativo contemporâneo. Ou seja, para seguirmos vivendo, é preciso não estar de acordo com a situação social dos inúmeros miseráveis espalhados pelo mundo em diferentes camadas sociais. Swann confirma de forma eloquente a tese de que “il appartient à la détermination d’une dialectique négative de ne pas se reposer en elle-même comme si elle était totale; c’est là figure d’espérance.” (ADORNO, 2007, p. 490). Como vimos, é na sua negatividade que Swann pôde entregar-se a uma experiência realmente legítima para sua vida. Sua busca constante diante do descontentamento o fez retornar à positividade de sua formação, mas não sem antes desvincilhar-se dela. Assim, Swann figura como um sujeito que não “repousou” na racionalidade para espreitar o sofrimento que poderia ser causado pelo empreendimento amoroso personificado por Odette. Estar preparado para sofrer não o impede de “morrer” em vida ao abrir-mão de forma quase total de pensar em si e destinar todas as suas energias para Odette. O sofrimento torna-se parte de nós na medida em que, ao contrário de Swann, ainda almejamos a posse dos mecanismos de percepção e rejeição dele (o sofrimento).

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3 Considerações finais É por essas razões, dentre tantas possíveis, que tomamos esse romance como exemplo, pois para pensar nas implicações dialéticas da formação objetiva, precisávamos estabelecer nexos com elementos radicados socialmente. Estes, em especial a cultura contextualizada, são bem compreendidos por Swann que, em momentos oportunos, faz uso da sua formação erudita para angariar posições e prestígio no ciclo social dos Verdurin. Estes elementos mostram-se faibles diante da realidade vivenciada pelo subjetivo que se descontrola diante das imbricações do amor. Odette, de certa forma, enfraquece toda e qualquer pré-formação anunciada pela erudição de Swann, que se mostra inapto ao relacionamento avéc le demi-monde. Para Adorno (2004, p. 228), “[…] depuis trente ans, Proust est par trop devenu un élément de ma propre existence intellectuelle pour qui j’aie la distance nécessaire, et la qualité de l’œuvre me semble si grande que la prétention d’une supériorité critique conduirait à l’impertinence.” É por meio do personagem que Proust interpretam a realidade factual. É importante considerar que cada uma destas obras, apesar de elas serem compreendidas como eruditas, pertence a um contexto sócio-histórico diferente. Tomamos o contexto social, a realidade da terra e os sujeitos nele atuantes como prioridade. E não nos prendemos a classificações partidárias, essas sim limitadas no seu desejo de dominar somente aquilo que conhecem. Ao integrar o processo da vida social à de uma pessoa, o romance justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam tal processo. Por isso, a necessidade de pensar a formação cultural dentro da especificidade de cada contexto social. Swann coloca em ação, ou seja, objetiva os conhecimentos eruditos que possui (sobre música e arte clássica, por exemplo) no empenho de pertencer a um ciclo de amizades que antes desdenhava, porém depois de encontrar nele a pessoa a quem queria possuir, passa a frequentar. Ele não está habituado a este ciclo, pois “…le ‘petit noyau’ n’avait aucun rapport avec la société où fréquentait Swann...” (PROUST, 2006, p. 13), portanto deve se portar como quem caminha no escuro e elaborar ou acionar outros mecanismos para estabelecer uma nova relação. Como tornar funcional sua formação nesta nova configuração em que adentra? O amor pela arte impulsiona o seu encontro com aquelas que de

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alguma forma lembram as obras de arte às quais Swann tem apreço, admiração, diríamos, com algum exagero, veneração, “mais Swann aimait tellement les femmes...” (PROUST, 2006, p. 13). O sentimento que Swann dedicava à arte pode ser equiparado ao sentimento que destinava à Odette, como aquela que pode ser tocada por ele (atingida enquanto matéria), em lugar da arte contemplativa que, preferencialmente, age na ideia. Portanto, o objetivo do sujeito esclarecido malogra quando Odette não se submete a ele como objeto a ser contemplado, forçando-o a elaborar mecanismos para poder possuí-la. A subversão de Odette anuncia a impossibilidade do controle total das vicissitudes da vida somente pela formação. No final, confirma-se a repulsa que manifestamos por aquilo que não podemos dominar. É o que se vê nas últimas palavras de Swann: “Dire que j’ai gâché des années de ma vie, que j’ai voulu mourir, que j’ai eu mon plus grand amour, pour une femme qui ne me plaisait pas, qui n’était pas mon genre !” (PROUST, 2006, p. 253 e 2007, p. 375). Ela confirma a mentira com a qual nos satisfazemos, em vida, para seguir nela com menos dor. Por que Swann morreria por “une femme qui ne me plaisait pas, qui n’était pas mon genre !”? Para ele as uvas ainda continuam verdes.

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65 ENQUANTO THEODOR ADORNO É AMPLAMENTE TIDO COMO UM PESSIMISTA EM SUAS AVALIAÇÕES SOBRE A CULTURA CONTEMPORÂNEA, Vilém Flusser é considerado por muitos um entusiasta dos novos media e – portanto – um otimista quanto às suas possibilidades para o surgimento de novos e interessantes fenômenos culturais. Mesmo sem desconsiderar as enormes diferenças em suas formações filosóficas (Flusser foi, no início de sua carreira, influenciado tanto por Wittgenstein quanto por Heidegger – dois arqui-inimigos filosóficos de Adorno), é possível constatar que, no tocante à crítica da cultura de massas, há semelhanças importantes no pensamento de ambos os filósofos. Como estratégia de apresentação, exporei alguns dos tópicos na “filosofia dos media” de Flusser que mais se aproximam da crítica à indústria cultural de Adorno, assinalando a correspondência com as passagens, especialmente da Dialética do esclarecimento (nesse caso, na companhia intelectual de Horkheimer). O ponto de partida para essa exposição é a consideração dos posicionamentos de Flusser em dois aspectos principais: o primeiro é uma certa “filosofia da história”; o segundo consiste num diagnóstico crítico do presente.

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No que diz respeito à “filosofia da história”, Flusser ordena as diversas épocas da história humana de acordo com a natureza dos códigos que orientam a humanidade na realização das atividades relacionadas com sua subsistência física e espiritual. Sob o termo “códigos”, Flusser compreende todo sistema “que ordena a manipulação de símbolos”, sendo que, sob “símbolo” ele entende um fenômeno “que, de acordo com alguma convenção, significa outro fenômeno”[1]. Para Flusser, há códigos que, numa determinada sociedade, estabelecem os princípios básicos de orientação no mundo: são chamados “códigos fundantes”[2], os quais em última instância “programam” a sociedade para agir dessa ou daquela maneira[3]. Dentre eles encontram-se os dois tipos de códigos mais tradicionais dentre os aparecidos até hoje: o bidimensional (ou plano) e o unidimensional (ou linear). Os códigos bidimensionais se encontram especialmente em forma de imagens, apresentando, de modo geral, “cenas”, cuja percepção é imediata, não exigindo, praticamente, qualquer tempo para sua realização. Essas imagens, chamadas de “tradicionais”, são, para Flusser, o código fundante mais antigo na experiência humana como um todo, sendo as pinturas rupestres um bom exemplo de suas manifestações mais incipientes (e ancestrais). Como já se assinalou, Flusser coloca a influência desses códigos fundantes em termos da programação que eles fornecem às sociedades em que predominam e isso ocorre, no tocante às imagens, do seguinte modo: Para os homens que estão programados pelas imagens, o tempo flui no mundo assim como os olhos que percorrem a imagem: ele diacroniza, ordena as coisas em situações. É o tempo do retorno, de dia e noite e dia, de semente e colheita e semente, de nascimento e morte e renascimento, e a magia é aquela técnica introduzida para uma determinada experiência temporal[4].

Vilém Flusser, „Umbruch in der menschlichen Beziehungen“. In: Kommunikologie, Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 1998, p. 74-5. 2 Cf. Vilém Flusser, “A perda da fé”, In: Ficções filosóficas, São Paulo, Edusp, 1999, p. 132. 3 Cf., por exemplo, “Nosso programa”, In: Vilém Flusser, Pós-história. Vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo, Annablume, 2011, p. 37 et seq. 4 Vilém Flusser, O mundo codificado. Por uma filosofia do design e da comunicação. Organização de Rafael Cardoso, Tradução de Raquel Abi-Sâmara. São Paulo, Cosac Naify, 2007, p.132. 1

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Nos códigos unidimensionais, ou lineares, que surgiram posteriormente às imagens, os símbolos são dispostos em séries, que começam em determinado ponto em terminam em outro, sendo que sua compreensão é um processo que exige alguma quantidade de tempo para se realizar. Em termos factuais, isso começou a ocorrer a partir da invenção da escrita – o código linear por excelência – no Oriente Médio, aproximadamente no terceiro milênio antes de Cristo. Ela introduz uma nova consciência do tempo, que, como mutatis mutandis ocorria no caso das imagens, coincide com o modo de sua decodificação, essencialmente linear em contraposição ao modo circular de decodificação dos códigos planos. Num primeiro momento, a novidade consiste não no aparecimento de novos símbolos, mas de uma nova ordenação espacial dos símbolos antigos, tal como transparece no esquema, feito de próprio punho por Flusser, constante na carta a Alex Bloch de 16/12/1977[5]:

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Com a invenção da escrita, os mesmos símbolos dispostos antes em cenas são, a partir daí, ordenados em linhas e, de acordo com Flusser, “com esse acontecimento encerrou-se a pré-história e começou a história no sentido verdadeiro”[6]. E isso não apenas porque com o advento da escrita – como se acredita normalmente – surgiram os primeiros registros mais precisos de nosso passado remoto, mas, principalmente, porque a partir de então a atividade humana se orienta por um transcurso progressivo. Com esses elementos, Flusser pôde desenvolver uma teoria da história, que assinala em grandes linhas o desdobramento dos fatos que implicaram no crescente predomínio do código unidimensional, 5 6

Vilém Flusser, Briefe an Alex Bloch, Göttingen, European Photography, 2000, p. 106. Vilém Flusser, O mundo codificado, op. cit., p. 132.

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que ocorreu até recentemente, quando começaram a aparecer alguns sinais de crise, cujo significado se verá a seguir. É importante observar que o advento de cada um desses códigos fundantes traz consigo o aparecimento de uma elite que os manipula às expensas do resto da sociedade. Isso ocorreu com o surgimento das imagens tradicionais, a partir do qual uma casta de sacerdotes compunha os seus codificadores e decodificadores; e com o aparecimento da escrita, segundo Flusser, não terá sido diferente: No início da história e no transcurso de sua maior parte, o alfabeto permaneceu reservado a uma elite. Ele se constituiu num código secreto e somente aqueles nele iniciados dispunham de consciência histórica. A maior parte da sociedade ainda se orientava no mundo com a ajuda de objetos rígidos, principalmente com a ajuda de imagens, e graças à língua falada. Isso significa que a maior da sociedade vivia numa consciência mágica e mítica[7]. 68 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

Portanto, ambos os tipos de código fundamental coexistiram através de toda a história até aqui e, ao mesmo tempo em que, com os programas de alfabetização em massa na Europa a partir do século XVIII, o número daqueles que dominavam a escrita era cada vez maior, potencialidades dos códigos lineares, que a princípio não eram muito evidentes, vieram à tona: especialmente a possibilidade de calcular, que estava ligada a um tipo determinado de imagens, que, na verdade, significavam conceitos. Antes desse acontecimento no Ocidente, tal procedimento ocorria já em línguas orientais baseadas em ideogramas. Em carta a Alex Bloch, datada de 09/03/1985, Flusser comenta a conexão do processo de superação progressiva do código linear, iniciada na Europa e ali desenvolvida ao longo da Idade Moderna, com esse tipo de símbolo comum em culturas não ocidentais: “Com o alfabeto, abandonamos não apenas a transcrição de sons de linguagem, mas também o pensamento discursivo, para, em vez disso, calcular e computar. O alfabeto é um

7 Vilém Flusser, “Alphanumerische Gesellschaft”, In: Medienklutur, Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 1997, p. 45.

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desvio, pela linguagem, do pensamento ao signo. Vamos agora diretamente do conceito ao signo, como, aproximadamente, os chineses”[8]. O resultado desse processo de desenvolvimento do cálculo na Modernidade europeia é a obtenção de um código que nem é bidimensional, como a imagem, nem unidimensional, como a escrita, o qual poderia ser chamado de zero-dimensional (ou nulo-dimensional), já que não ocorre imediatamente no espaço e tem a propriedade de remeter a “realidades” não imediatamente perceptíveis em termos físicos. Naturalmente, a irrupção desse novo tipo de código, a exemplo do que acontecera antes com as imagens tradicionais e com a escrita, ocasionou o surgimento de uma elite capaz de manipulá-lo, a qual adquiriu progressivamente mais poder sobre a sociedade: A princípio nem todas as pessoas realizaram o salto da consciência linear para a nulo-dimensional, i.e., calculadora. A maioria continua pensando de modo orientado ao progresso e ao esclarecimento (...). E somente as poucas pessoas que deixaram essa consciência para trás e pensam o mundo

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não mais progressiva e esclarecidamente, mas de modo futurológico e sistemático-analítico ou “estrutural”, produzem os modelos, segundo os quais a maioria se orienta . [9]

Trazendo a discussão novamente para o âmbito dos media, constata-se que o mencionado desenvolvimento da consciência calculadora engendrou em meados do século XIX – momento em que, pelo menos no Ocidente, a escrita já tinha se tornado o código preferencial – o surgimento, com a invenção da fotografia, de um novo tipo de imagem, com a estranha peculiaridade de se manifestar enquanto superfície, sem ser oriunda diretamente de código plano ou bidimensional, já que sua base é, na medida em que é cálculo, propriamente zero-dimensional. A esse novo tipo de imagem, cujo paradigma é a fotografia, tendo, porém, se desenvolvido até o paroxismo atual das imagens digitais, Flusser dá o nome de imagem técnica, que poderia ser definida do seguinte modo:

8 9

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Vilém Flusser, Briefe an Alex Bloch, op. Cit., p. 201. Vilém Flusser, “Digitaler Schein”. In: Medienkultur, op. cit., p. 206 et seq.

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Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado. Imagens técnicas são, portanto, produtos indiretos de textos – o que lhes confere posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais. (...) Historicamente, as imagens tradicionais são pré-históricas; as imagens técnicas são pós-históricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo[10].

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O esboço flusseriano de uma filosofia da história sugere que cada medium foi inventado para suprir carências humanas, sendo que aquele que sucedeu o anterior como predominante resolveu parte do problema, introduzindo, por outro lado, novos desafios à consciência: os textos visavam combater a idolatria enquanto modo mágico-místico de ofuscamento da percepção da realidade; mas, em determinado momento, eles também se mostraram propensos a ocasionar uma patologia que Flusser chama de “textolatria”, i.e., a crença de que o universo conceitual, por si só, pode dar conta da realidade como um todo [11]. Nesse sentido, o advento das imagens técnicas, ao mesmo tempo em que poderia se constituir numa oportunidade de correção da textolatria, representa o perigo de retrocesso à consciência mágico-mística, na medida em que a maioria das pessoas não compreende a mediação de códigos lineares (textos científicos, algoritmos matemáticos) na produção do que só aparentemente é uma imagem no sentido tradicional. Numa obra redigida no final da década de 1980, cujo original alemão foi publicado postumamente apenas em 1996, intitulada Mutações nas relações humanas, Flusser procura mostrar essa ambiguidade latente na introdução de cada código fundamental, a qual causa um novo tipo de estranhamento, através do seguinte diagrama [12]:

Vilém Flusser, Filosofia da caixa preta, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2002, p. 13. Cf. Vilém Flusser, Pós-história. Vinte instantâneos e um modo de usar, op.cit., p. 117. 12 Vilém Flusser, “Umbruch in der menschlichen Beziehungen”, op. cit, p. 107. 10 11

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De acordo com o diagrama, a tecno-imagem ocasiona um modo específico de estranhamento, sendo que, à época de redação de Mutações nas relações humanas, Flusser ainda não se encontrava convicto quanto ao acerto da expressão “pós-história”, designando a situação correspondente ao terceiro tipo de estranhamento apenas com três pontos de interrogação. Poucos anos depois, em Pós-história. Vinte instantâneos e um modo de usar, o filósofo descreve essa situação como a possibilidade de um novo tipo de mistificação, advinda da incompreensão do caráter simbólico (e não “sintomático”) das tecnoimagens, na qual as pessoas ficam submetidas a – e manipuladas por – “programas”: De maneira que as tecnoimagens, ao contrário das tradicionais, não significam cenas, mas eventos. Mas não deixam de ser elas também, imagens. Quem estiver por elas programado, vivencia e conhece a realidade

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magicamente. Como contexto de situações (“Sachverhalte”). Mas tal magia não é retorno para a pré-historicidade. Não está baseada em fé, senão em programas. “Programa” é “prescrição”: a escrita é anterior a ele. É magia pós-histórica e a história lhe serve de pretexto[13].

É interessante observar que a menção a uma recaída na magia, em pleno Ocidente super-esclarecido, remete a uma das ideias mais gerais da Dialética do esclarecimento, segundo a qual a racionalidade discursiva foi estabelecida para superar o mito, principalmente tendo em vista o seu caráter opressivo, sendo que o desenvolvimento unilateral daquela ao longo da história desembocou na situação em que a magia volta a predominar, mas dessa vez não mais como oposta a ciência e a

13

Pós-história, op. cit., p. 120.

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tecnologia, mas mediante elas próprias: “Desse modo, o esclarecimento regride à mitologia, da qual jamais soube escapar”[14]. Alhures demonstrei que não apenas essa ideia geral da obra comum de Horkheimer e Adorno, mas outras mais específicas, como, por exemplo, a relação entre imagem e escrita e seus desdobramentos encontram correspondência na filosofia dos media de Flusser[15]. Mas, tendo em vista os limites dessa exposição, concentrar-me-ei no tema da cultura de massas, que decorre, em ambos universos teóricos, diretamente dos modelos de “filosofia da história” estabelecidos pelos autores das respectivas obras. Na Dialética do esclarecimento, o capítulo intitulado “Conceito de esclarecimento” termina com a afirmação de que “o esclarecimento se converte, a serviço do presente, na total mistificação das massas”[16], sendo que o capítulo de crítica à cultura de massas se intitula exatamente “Indústria cultural: O esclarecimento como mistificação das massas”[17], sugerindo uma articulação lógica entre os dois momentos. Em Flusser, é possível perceber uma continuidade ainda maior entre a reflexão histórico-filosófica e a cultura de massas, já que as imagens técnicas – principal elemento de sua construção – são, como já se viu, o código fundante da possibilidade da pós-história, i.e., do momento que resulta da oposição entre a pré-história, com o predomínio das imagens tradicionais, e a história, que se desenrola sob a regência da escrita. Nos três momentos, entretanto, há a possibilidade de ocorrência de um elemento que é característico da filosofia dos media de Flusser em geral, a saber a distinção entre “discursos” e “diálogos”, sendo que os primeiros se originam numa concepção de conhecimento que almeja a objetividade e têm a função de difundir conhecimento, enquanto esses últimos têm como meta a própria intersubjetividade e funcionam como produtores de conhecimento novo. Flusser divide os discursos Theodor Adorno & Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung. In: Gesammelte Schriften 3, Frankfurt am Main, Suhrkamp p. 44 e passim. 15 Rodrigo Duarte, “Flussers Medientheorie und die Kritik der Kulturindustrie”. In: Deplazierungen. Aufsätze zur Ästhetik und kritische Theorie. Weimar, Max Stein Verlag, 2009, p. 81 et seq. 16 Theodor Adorno & Max Horkheimer, Dialektik der aufklärung, op. cit., p. 60. 17 Ibidem, p. 141. 14

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em quatro tipos: teatrais (p.ex., aulas e concertos), piramidais (p.ex., exércitos e igrejas), em árvore (p.ex., ciência e artes) ou anfiteatrais (p.ex., radiodifusão e imprensa); já os diálogos se dividem em circulares (p.ex., mesas redondas e parlamentos) e em rede (p. ex., sistema telefônico e opinião pública). Tendo em vista essa divisão da comunicação entre diálogos e discursos, o aspecto da pós-história ao qual Flusser dirige implacável crítica é que, mesmo diante das amplas possibilidades de realização de diálogos que o enorme progresso nos meios eletrônicos de comunicação permitiria, nessa situação, os discursos predominam grandemente sobre aqueles, o que, para o filósofo, é sintoma de uma crise profunda na sociedade contemporânea, expressa na ideia de que “Sob o domínio dos discursos o tecido social do Ocidente vai se decompondo”[18]. É interessante observar que, mesmo sem usar essa terminologia cunhada por Flusser, Horkheimer e Adorno, décadas antes, já haviam observado que a passagem do capitalismo liberal (histórico) ao monopolista (portador de características do que Flusser vê como o lado perverso da pós-história) poderia ser simbolizada pela “superação” do telefone (meio essencialmente dialógico) pelo rádio (na nomenclatura de Flusser, um meio antes de tudo discursivo). Na Dialética do esclarecimento, por exemplo, lê-se: “Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entrega-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações”[19]. Dentre os aparatos de caráter essencialmente discursivo, tem lugar de destaque a indústria cinematográfica e, de modo especial, o contexto em que os seus produtos são consumidos. Com vistas a essa contextualização, Flusser lembra que o espaço que, na Idade Média, servia de mercado foi posteriormente coberto com uma cúpula, dando origem à basílica. Segundo ele, na atualidade, as duas funções consecutivas desse espaço – inicialmente mercado, depois templo – foram assumidas pelos modernos shopping centers, nos quais a função do mercado foi transposta para a do supermercado, e a do templo transpôs-se para a sala de cinema. Para além da simetria perfeita entre os dois 18 19

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Vilém Flusser, Pós-história..., op. cit., p. 74. Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 114.

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estabelecimentos (no supermercado a entrada é ampla e a saída estreita, ocasionando fila; no cinema, a entrada é estreita, com fila para o acesso, e a saída é ampla, liberada), há uma convergência total de objetivos, assim descrita por Flusser: A fila serpentiforme diante da entrada do cinema e diante da saída do supermercado é o mesmo animal: massa linearmente encadeada. O dinheiro da entrada no cinema e o dinheiro da saída no supermercado os dois lados da mesma moeda. No cinema se é programado para se correr para o supermercado, e do supermercado, se é liberado para ser programado, no cinema, para a próxima visita ao supermercado. Esse é o metabolismo da sociedade de consumo[20].

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Como se sabe, aparelhos, para Flusser, não são apenas dispositivos específicos stricto sensu, mas até mesmo a sociedade de consumo pode se transformar num mega-aparelho, do qual todas as pessoas são tendencialmente apenas funcionários, i.e. degeneram-se em meros operadores dos aparelhos, obedecendo às prescrições que lhes são fornecidas. De modo análogo, um termo assemelhado a “aparelho” – “aparelhagem” – pode ser encontrado na Dialética do esclarecimento, designando exatamente os mecanismos causadores do decréscimo na humanidade das pessoas: “Quanto mais complexa e sofisticada a aparelhagem social, econômica e científica, a serviço da qual o sistema de produção há tempos anexou o corpo, mais pobres são as vivências de que ele é capaz”[21]. É interessante observar ainda que a situação, denominada por Flusser “totalitarismo dos aparelhos”, corresponde, até nos menores detalhes, ao que Adorno chamou de “mundo administrado”[22], o qual, em sua terminologia, denota a vivência do capitalismo monopolista. Nela, junto com a humanidade das pessoas desaparece tendencialmente também sua individualidade: “apenas porque os indivíduos não o são de

Vilém Flusser, “Filmerzeugung und Filmverbrauch”, in: Medienkultur, op. cit., p. 97 et seq. Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 53. 22 Cf. Dialektik der Aufklärung, op.cit., p. 9 et seq.. Dentre outras obras que apresentam esse conceito, destacam-se: Sobre a metacrítica da teoria do conhecimento (passim), Dialética negativa (passim) , Teoria estética (passim) e Escritos sociológicos (passim) . 20 21

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fato, mas meras encruzilhadas das tendências do universal, é possível reintegra-los totalmente na universalidade”[23]. Um indício da correspondência da abordagem sobre a programação das pessoas para o consumo e sua efetiva realização, nos shopping centers, tal com a entende Flusser, com os mecanismos descritos por Adorno e Horkheimer [24] no capítulo sobre a indústria cultural da Dialética do esclarecimento é que ambas se baseiam numa distinção entre cultura propriamente dita e o puro e simples entretenimento. Esse motivo, em Adorno, é bem familiar aos leitores da Teoria Crítica, o que dispensa sua exposição neste contexto. A pesada crítica que Flusser dirige ao entretenimento, no entanto, é menos conhecida e pede uma rápida apresentação. Ela se inicia com a comparação da cultura atual do Ocidente com as culturas orientais: enquanto essas desenvolveram técnicas para a concentração dos pensamentos como um meio de alcançar a felicidade, o Ocidente estabeleceu uma metodologia oposta, a saber, desenvolveu métodos para desviar – divertir – o pensamento de determinados assuntos, como um suposto meio para o bem-estar humano. Mas, segundo Flusser, o divertimento enquanto desvio da oposição dialética entre eu e mundo, leva a um “terreno intermediário”, i.e., o âmbito das sensações imediatas: “As sensações não são ainda nem eu nem mundo. ‘Eu’ e ‘mundo’ não passam de extrapolações abstratas da sensação concreta. A experiência da sensação faz esquecer ‘eu’ e ‘mundo’. O filme, a TV, a notícia sensacional, o jogo de futebol divertem a consciência da tensão dialética ‘eu-mundo’, porque são anteriores a esses dois polos”[25]. Mas, onde não se concentra, mas apenas se diverte, falta totalmente a memória e, consequentemente, não se pode falar de interioridades, de eus propriamente ditos. Assim, a constituição desses polos fica comprometida e não há “digestão” do que é engolido pelas mentes das pessoas tornadas funcionários. Tendo isso em vista, Flusser propõe a definição crítica de divertimento como uma espécie de vivência

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Dialektik der Auflärung, op. cit., p. 178. Cf. Rodrigo Duarte, Indústria cultural: uma introdução. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2010. Nesse livro descrevi o que chamo de “operadores da indústria cultural”: “manipulação retroativa”, “usurpação do esquematismo”, “domesticação do estilo”, “despotencialização do trágico” e “fetichismo das mercadorias culturais”. 25 Pós-história..., op.cit., p. 130 et seq. 23

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sensorial em que nada é efetivamente digerido, sendo secretado por nosso organismo psíquico do mesmo modo que o adentrou: Divertimento é acúmulo de sensações a serem eliminadas indigeridas. Uma vez posto entre parênteses mundo e Eu, a sensação passa sem obstáculo. Não há nem o que deve ser digerido, nem interioridade que possa digeri-lo. Não há intestino nem necessidade de intestino. O que resta são bocas para engolir a sensação, e ânus para eliminá-la. A sociedade de massa é sociedade de canais que são mais primitivos que os vermes: nos vermes há funções digestivas[26].

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Encerro minha exposição, indicando a semelhança desse trecho com a passagem da Dialética do esclarecimento, em que os autores se apropriam do canto duodécimo da Odisseia, no qual é relatado o ardil de Ulisses para não sucumbir à sedução do canto das sereias: ele se deixa atar ao mastro do navio para não ir compulsoriamente ao seu encontro, enquanto os seus homens, com os ouvidos tapados com cera para não ouvir o canto hipnotizador daquelas, remam com força total para conduzir a embarcação para fora da zona de perigo. Como é bem conhecido, Horkheimer e Adorno tomam essa passagem como uma alegoria da condição da maioria das pessoas no “mundo administrado”, enfocando especialmente sua situação cultural: Graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua conversão em funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e o assemelha, tendencialmente, àquele dos anfíbios. Regressão das massas, hoje, nada mais é do que a incapacidade de ouvir o inaudito com os próprios ouvidos, de tocar o intocado com as próprias mãos[27].

Não é das menores coincidências entre os pontos de vista do trecho da Dialética do esclarecimento e o de Pós-história. Vinte instantâneos e um modo de usar, o fato de ambas se referirem à dialética de servidão e senhorio da Fenomenologia do espírito, de Hegel, o que infelizmente não 26 27

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Ibidem, p. 132. Dialektik der aufklärung, op.cit., p. 53.

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poderá ser abordado aqui. Chama a atenção, por outro lado, o fato de Adorno e Horkheimer compararem a capacidade cognitiva dos indivíduos regredidos à dos anfíbios, enquanto Flusser, cerca de quarenta anos depois, afirma que ela seria inferior à capacidade digestiva dos vermes. Fica a questão de saber se Flusser apenas teria sido ainda mais enfático do que Adorno e Horkheimer, ou se – pressupondo-se que aquele tenha razão – nós teríamos regredido a uma condição espiritual ainda inferior nesse período.

Bibliografia Adorno, Theodor W. & Max Horkheimer, (1981), Dialektik der Aufklärung, Frankfurt am Main. Duarte, Rodrigo, (2009), Deplazierungen. Aufsätze zur Ästhetik und kritischen Theorie, Weimar. ––––, (2010) Indústria cultural: uma introdução, Rio de Janeiro.

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Flusser, Vilém (2011) Pós-história. Vinte instantâneos e um modo de usar, São Paulo. ––––, (2002), Filosofia da caixa preta, Rio de Janeiro. ––––, (1997), Medienklutur, Frankfurt am Main. ––––, (1998), Kommunikologie, Frankfurt am Main. ––––, (1999), Ficções filosóficas, São Paulo.

A CRÍTICA DA CULTURA DE MASSAS EM THEODOR ADORNO E VILÉM FLUSSER Rodrigo Duarte

––––, (2000), Briefe an Alex Bloch, Göttingen. ––––, (2007), O mundo codificado. Por uma filosofia do design e da comunicação, São Paulo.

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ADORNO E O HAPPENING Pedro Hussak van Velthen Ramos UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

79 TEORIA ESTÉTICA MOSTRA UMA EXTRAORDINÁRIA COERÊNCIA COM O PENSAMENTO ESTÉTICO QUE ADORNO DESENVOLVEU DESDE OS ANOS 1930 . Tal pensamento se constrói, em grande medida, a partir de um dilema colocado para o pensamento marxista no início do século XX: por um lado, as artes de vanguarda avançavam no caminho de uma autonomização da forma; por outro, a necessidade de representar de modo realista as contradições sociais. Se as artes essencialmente formalistas corriam o risco de cair em uma “torre marfim” e isolar-se no caminho da l’art pour l’art, o realismo social, por seu turno, estaria abrindo mão dos avanços formais das vanguardas históricas, cuja projeto de rompimento com o passado apontava esteticamente para a sociedade que viria. Em contraposição ao teórico marxista Georg Lukács, defensor do realismo social contra o formalismo das vanguardas, Adorno monta um pensamento extremamente singular visando ultrapassar o dilema apresentado[1]. Sintetizando o desenvolvimento formal e a inserção social da obra de arte, Teoria Estética apresenta uma formulação exemplar nesta direção: “os antagonismos ao resolvidos da realidade retornam às obras ,

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ADORNO E O HAPPENING Pedro Hussak van Velthen Ramos

Sobre o debate Adorno e Luckás, cf. Bürger, P. Teoria da vanguarda.

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como os problemas imanentes de sua forma”[2]. Para compreendê-la, é preciso recorrer a um conceito chave da estética adorniana, a negatividade. Ao mesmo tempo em que participa da empiria, a obra arte a nega dialeticamente justamente por sua autonomia. A negatividade exercida pela forma em relação as normatizações sociais confere à obra de arte um caráter eminentemente crítico, pois a obra protesta contra a falsidade do todo social, denunciando a má-racionalidade do mundo totalmente administrado. A concepção estética de Adorno baseada na centralidade da noção de forma aproxima-se da pintura abstrata, em função questão da composição formal, e da música atonal, notadamente de Arnold Schönberg, que realizou uma emancipação do material sonoro. Além disso, a literatura de Kafka e o teatro do absurdo de Samuel Beckett vão dominar as discussões que culminam em Teoria estética. No entanto, escrito em 1969, o último livro de Adorno reflete pouco as importantes transformções na produção artística ocorridas na década de 1960, quando outros centros além da Europa passaram a despontar. As poucas referências a tais manifestações são curtas e breves, o que pode ser explicado pelo fato de que uma das características de tais expressões é justamente o esforço em superar o formalismo das vanguardas europeias, sendo identificado como o que veio a ser chamado de modernismo. O experimentalismo das expressões dos anos 1960 abriu o caminho ao que foi caracterizado por muitos críticos de arte contemporânea. Neste artigo, argumentar-se-á que ainda que a centralidade da noção de forma em Teoria Estética coloca-a no espectro do modernismo, Adorno não estava alheio às novas expresssões artísticas que surgiam. A hipótese aqui é que a constelação formada por alguns textos da década de 1960 como Vers une musique informelle (1960), Sobre algumas relações entre música e pintura (1965) e A arte e as artes (1966) abrem caminho para a compreensão e análise da arte contemporânea, mantendo os pressupostos críticos e dialéticos característicos da estética adorniana. Isto pode levar a uma importante inflexão nesta estética, ao manter a negatividade, mas sem o formalismo, característico do modernismo. Trata-se de discutir esta inflexão a partir da análise das considerações 2

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Adorno, T. Teoria estética. P. 16

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de Adorno sobre um importante fenômeno artístico dos anos 1960 – o happening. Trata-se de uma manifestação que visava fazer uma transição das telas e dos suportes tradicionais a fim de integrá-la com a vida, como bem expressa a fórmula de Alan Kaprow: “The line between arte and life should be kept as fluid, and perhaps indistinct, as possible”[3]. Como um importante elemento crítico e político, tal indistinção visava retirar a arte dos museus e galerias a fim de proporcionar experiências em lugares os mais variados. A opção preferencial pelos espaços públicos colocava em questão as normatizações impostas pelas instituições artísticas oficiais. Com isso, operou-se uma transformação na relação produtor-espectador, já que a incorporação do público, frequentemente não o público especializado dos museus e galerias, questionava a condição de contemplação da obra de arte. O “espectador” tornava-se “participante” de uma “obra” que se constitui não como um objeto, mas, antes, como uma experiência. Um dos princípios importantes do happening é que ele deveria acontecer apenas uma vez. Com isso, criticava-se a monumentalidade da obra de arte e a ideia de que esta permanecer eternamente. Ao contrário, há uma valorização da performance, fazendo com que este acontecimento só exista no momento mesmo em que ocorre[4]. Desta forma, há uma incorporação de elementos da improvisação e do acaso que passavam então a ser elementos constitutivos da obra[5].

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Kaprow, A. Assemblages, Environnements & Happenings. In: Sandford , M. Happenings and other acts. P. 235 4 A passagem em que Adorno compara a obra de arte aos fogos de artifício, por seu caráter fugidio (Cf. Adorno, T. Teoria Estética. P. 98) parece corroborar esta dimensão da arte contemporânea. Contudo, em outro artigo, sustentei que o conceito de apparition não se refere diretamente aos happenings e performances, mas falam de um caráter mais geral da obra de arte moderna, a qual depende de uma experiência e uma interpretação (Cf. Hussak, P. Arte, experiência e não-identidade em Theodor Adorno. In: Hussak, P e Vieira, V. Educação Estética: de Schiller a Marcuse). Como diferença, o que se poderia argumentar é que o happening não é mais uma obra no sentido de que é um objeto a ser experimentado e interpretado, mas ele mesmo é uma experiência, a qual, naturalmente, pode envolver um agenciamento de objetos. 5 Embora acontece uma única vez, não é de se desconsiderar a questão do registro fotográfico e filmográfico dos happenings e perfomances. Há um grande debate crítico em torno do estatuto destes arquivos. 3

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A recepção do texto de Alan Kaprow The Legacy of Jackson Pollock (1958) desempenhou um papel decisivo para as práticas artísticas nos EUA na década seguinte. A considerações apresentadas ali apresentam muitas das questões que serão decisivas para a construção da concepção que iria caracterizar o happening. Mais do que os aspectos formais da pintura, Kaprow acentuava o caráter de “evento” já que Pollock literalmente “entrava na obra”. O procedimento do pintor consisia em esticar uma enorme tela no chão – quebrando com o privilégio do cavalete – realizando uma espécie de dança sobre a tela ao usar a “técnica” do dripping. O gesto que caracterizou a action paiting assimilava o acaso na produção, o que tornava o processo mais importante do que o resultado. Isto, segundo Kaprow, tornava o trabalho de outros movimentos que valorizavam o automatismo, como por exemplo o surralismo, demasiadamente “arranjado” e “artificial”. Além disso, colocava-se em questão a composição do abstracionismo formal, já que na action paiting não estava mais a organização dos elementos formais, mas o próprio gesto de pintar, o que operava uma transformação importante na centralidade da noção de forma no modernismo:

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Então, a Forma. Para segui-la é preciso se livrar da ideia usual de “Forma”, i.e., com começo meio e fim, ou qualquer variante deste princípio – tal como a fragmentação. Não penetramos em uma pintura de Pollock por qualquer lugar (ou por cem lugares). Parte alguma é toda a parte, e nós imergimos e emergimos quando e onde podemos. Esta descoberta levou às observações de que de a sua arte dá a impressão de desdobrar-se eternarmente – uma intuição verdadeira que sugere o quanto Pollock ignorou o confinamento do campo retangular em favor de um continuum, seguindo em todas as direções simultaneamente, para além das dimensões literais de qualquer trabalho.[6]

Para Kaprow, a pintura de Pollock se prolonga na sala de exibição, ela já não se contém em si mesma. A questão crucial do seu trabalho é o Espaço que, neste tipo de criação, já não é mais claramente palpável enquanto tal. A “dança do dripping”, com sua fisicalidade e escala, aproximou a pintura da arte ambiental e indicou possibilidade de se 6

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Kaprow, A. O legado de Jackson Pollock. In: VARIOS. Escritos de artista – anos 60-70. P. 41

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abandonar a tela e passar à ação e ao agenciamento de objetos. Ao se desvencilhar noção modernista de forma, a arte contemporânea elimina também os ismos característicos das vanguardas históricas. Isto ocorre porque o repertório de realizações se amplia de forma importante, pois os suportes tradicionais explodiram. Neste sentido, Kaprow fez uma acertada profecia sobre o campo de atuação se ampliara, e sobre os limites entre as artes que aos poucos se extinguia: “Jovens artistas de hoje não precisam mais dizer ‘Eu sou um pintor’ ou ‘um poeta’ ou ‘um dançarino’. Eles são simplesmente ‘artistas’. [...]. As pessoas ficarão deliciadas ou horrorizadas, os críticos ficarão confusos ou entretidos, mas estes serão, tenho certeza, os alquimistas dos anos 60.” [7] O fim das fronteiras entre as artes anunciado no final texto já vinha sendo construído desde os anos de 1950. Se o termo surgiu a partir de uma série de ações do próprio Kaprow, intitulada 18 happenings in 6 parts (1959), o que se reputa como sendo o primeiro happening é Theater Piece #1, realizado no Black Mountain College, na Carolina do Norte, em 1952. No espetáculo, David Tudor improvisou ao piano e Merce Cunningham improvisou uma dança, Robert Rauschenberg tocou discos antigos em uma vitrola e projetou slides, Cage leu um texto entre outras ações. O espetáculo seguia a proposta de John Cage de uma “apresentação simultânea de eventos independentes”, criaria uma estrutura de colagem que viria a ser uma marca dos happenings no anos seguintes.

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* A seguir, analisaremos dois importantes aspectos da estética adorniana dificultam sua aproximação com o happening, a saber, a rebelião contra a aparência e a pseudomorfose. Posteriormente pretendemos mostrar como Adorno se reconcilia com este em A arte e as artes e Sobre algumas relações entre música e pintura. Crise da aparência é um tópico de Teoria estética em que Adorno faz uma referência explicita ao happening em uma abordagem crítica.

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Uma vez que a obra de arte tema tão fanaticamente por sua pureza, de modo que ela mesma acabe se desviando nisso e se volte para fora, o que não pode mais ser arte, a tela e a matéria sonora bruta, ela se transforma em seu próprio inimigo, em continuidade falsa e direta com a racionalidade instrumental. Esta tendência vai dar no happening. O legítimo na rebelião contra a aparência como ilusão e o que é ilusório nela, a esperança de que a aparência estética possa ser puxada do pântano pelo cabelo, estão, contudo, amalgamados. Evidentemente o caráter de aparência imanente das obras não pode estar isento de uma porção, por latente que seja, de imitação da realidade, portanto de ilusão.[8]

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Aparência é a tradução do termo alemão Schein, cujo espectro semântico abarca também o sentido de ilusão, e de brilho ou luminosidade. No sentido usado por Adorno, ela ganha o sentido da ilusão estética, ou seja, a ilusão que a obra de arte cria, da qual se sabe que se trata de uma mentira e não da empiria. No século XX, contudo, várias tendências artísticas tentaram eliminar este caráter, aproximando-se ao máximo da vida, o que para Adorno retiraria o elemento crítico das obras de arte:

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a diferença das obras de arte quanto à empiria, o seu caráter de aparência, constitui-se naquela e na tendência a ela oposta. Se as obras de arte em virtude de seu próprio conceito, quisessem absolutamente suprimir esta referência, eliminariam seu próprio pressuposto.[9]

Adorno é crítico à integração da arte com a vida, pois neste projeto se eliminaria a negatividade da arte em relação à empiria, significando uma continuidade falsa com a vida e, por fim, conformismo. Nesta perspectiva, o caráter de “mentira” da arte coloca em questão a “mentira” do mundo administrado pela racionalidade instrumental, afirmando, portanto, seu caráter de “verdade” em uma inversão dialética. A ligação entre a aparência e a crítica afasta a estética de Adorno de movimentos como o construtivismo, o futurismo e a arte utilitária, e também, portanto, do happening que, como vimos, visava

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uma ação direta em espaço livre, incorporando pessoas que passam a ser participantes da obra e não mais contempladores de uma obra. O segundo ponto é a pseudomorfose que embora apareça lateralmente em Teoria estética, é um dos pontos cruciais na crítica à Strawinsky em Filosofia da nova música (1940)[10]. A crítica aqui se volta justamente contra a insinuação da especialidade pictórica em detrimento da condição temporal inerente à música. Cada uma das linguagens se utiliza de materiais específicos e opostos, uma o tempo, a outra o espaço. Para Adorno, isto se exemplifica na França, o maior desenvolvimento do campo pictórico em relação ao musical poderia significar uma servidão deste em relação àquele. Contudo, em artigo sobre o tema, Rodrigo Duarte[11] lembra que se com a crítica à pseudomorfose, Adorno se aproxima do “purismo” defendido, mesmo que indiretamente, por Clement Greemberg, o aspecto essencialmente crítico que o conceito acaba por assumir diz respeito a um estado de coisas alienado e reificado, significando o modo como um domínio qualquer assume características não originalmente suas. Isto significa que o domínio do conceito, em certa medida, ultrapassa o âmbito meramente estético. Assim, Duarte mostra que Adorno mais trade, justamente sob a pressão dos movimentos artísticos dos anos de 1960, vai considerar uma diferença entre a pseudomorfose como a reificação no âmbito cultural e uma possível interrelação autêntica entre os diversos métiers artísticos. Tal mudança de posição pode ser verificada em Sobre algumas relações entre música e pintura (1965) e também A arte as artes (1966), textos que analisaremos a seguir. Em Sobre algumas relações entre música e pintura Adorno acaba por apresentar uma posição extremamente avançada no que concerne o desenvolvimento das artes a partir dos anos 1950. Isto porque uma das questões cruciais da arte contemporânea é justamente superar a

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“A repetida observação de que o passo de Debussy a Strawinsky é análogo ao passo da pintura impressionista ao Cubismo indica algo mais do que do que um vago caráter comum, histórico-espiritual, que, como habitualmente, a Música adquire, chegando por último , a uma boa distância atrás da Literatura e da Pintura. Antes a espacialização da Música é testemunha de uma pseudomorfose com a Pintura, e, no fundo, testemunha de sua abdicação.” In: Adorno,T. Filosofia da nova música.P. 147 11 Duarte, R. Sobre o conceito de “pseudomorfose” em Theodor Adorno. 10

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divisão entre as “artes temporais” e as “artes espaciais”. Expressões contemporâneas que se caracterizam pelo hibridismo das linguagens como a performance visam dar ao mesmo tempo um caráter temporal às artes plásticas e um caráter espacial à música. Neste texto, Adorno faz uma referência explícita ao pintor russo Wassily Kandinsky, um dos principais nomes da pintura abstrata, que admitiu, principalmente no seu período expressionista uma clara influência da música em seu trabalho. Kandinsky e Arnold Schönberg tiveram uma intensa amizade, a partir de uma troca de correspondências iniciada em 1911 e viam muitas convergências no desenvolvimento da música atonal e da pintura abstrata. Schönberg, que também era pintor – notadamente de autorretratos –, buscava, entre outros aspectos de sua obra, uma espacialização do tempo musical. Kandinsky, fascinado pelo termo Klangfarbe[12], via correspondência entre cores e sons. Sem dúvida, muito da sinestesia realizada por John Cage é devedora das concepções do pintor russo, como no caso do experimento teatral Der gelbe Klang. A posição de Adorno aqui é totalmente consoante com o desenvolvimento da aproximação entre as artes espaciais e temporais na arte contemporânea. Em boa parte do texto, mostra o quanto pode ser “forçada” tal convergência[13], já que esta corre o risco justamente de se realizar por assimilação, por pseudomorfose. Para Adorno, a solução para tal alcançar esta dimensão sinestésica não está na busca de uma síntese das “formas”, a saber, a composição dos elmentos no espaço (pintura) e a ordenação temporal dos sons (música), mas no caráter de linguagem das expressões artísticas: “se pintura e música não convergem por assimilação, encontram- se em um terceiro âmbito: ambas são linguagens [...]. A convergência dos meios de comunicação faz manifesta a emergência de seu caráter de linguagem”[14]. Para Adorno, o que possibilitou a aproximação da música atonal e a pintura abstrata foi o fato de ambas terem se liberado da ideia de que deveriam O termo, que significa timbre, ao pé da letra pode ser traduzido por “cor sonora”. “Kandinsky foi sem dúvida o primeiro a falar de sons em seus quadros. Mas isto mostra até que ponto é difícil a equação entre ambas as esferas. “Cor sonora” tem algo de forçado, “sons plásticos” evoca algo das artes decorativas modernistas, como a música de sons coloridos que se propagou durante os anos 1920”. In: ADORNO, T. Sobre alguns relaciones entre música y pintura. P. 645 14 id., ib. P. 643 12 13

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“comunicar algo”, tornando-se pura expressão, e afirmando assim seu caráter linguagem. Em A arte e as artes faz uma afirmação, em tom de confissão, no sentido de que não era possível desconsiderar as transformações pelas quais passava a arte[15]: “No desenvolvimento mais recente fluidificam-se as fronteiras entre os gêneros artísticos ou, mais exatamente: suas linhas demarcatórias se imbricam”[16]. Para exmplificar este fenômeno, Adorno faz referência ao fato de a pintura querer ganhar o espaço e ao fim dos limites entre a escultura e a arquitetura. Ele também se mostra atento ao desenvolvimento da música como no fato de sua notação ter tendido para as artes gráficas, além das tentativas de espacialização da música em Cage e Stockhausen. Adorno mostra que o fim das fronteiras implicou em um importante transformação no campo das artes, pois explodiu a tradicional divisão hierarquica por gêneros, característica fundamental dos sistemas de artes no século XVIII. Ele chega a citar o fato de que tais divisões chegaram a campo da estética filosófica com as considerações sobre a superioridade da música no sistema hierárquico em Schopenhauer e na cuminação na poesia no sistema histórico-dialético de Hegel. É de se destacar também que Adorno vê um importante aspecto político na imbricação das artes já que o fim da pureza da obra de arte implica correlatamente na crítica a uma ideia pureza do ponto de vista social. Importante para o interesse deste trabalho é o fato de que aqui Adorno se reconcilia com o happening. Inicialmente ao afastar qualquer tentativa de aproximar tal tendência da arte total wagneriana: “Mas a tendência à imbricação constitui-se em algo mais do que uma insinuação ou aquela síntese suspeita, cujos rastros assustam pela referência à obra de arte total; os happenings gostariam de ser obras de arte total

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“Alguém que está acostumado a relacionar experiências estéticas a um âmbito que lhe é familiar – a música – , observa esses fenômenos com o arbítrio do que acabou de ser observado; longe de mim querer classificá-los. Mas mostram-se de modo tão múltiplo e insistente, que alguém deveria se fazer de cego para não depreender sintomas de uma robusta tendência. Ela deve ser conceptualizada para interpretar, onde for possível, o processo de imbricação.” In: Id. Ib. 16 Id.Ib. 15

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apenas no sentido de serem obras totais de anti-arte.”[17] Ao chamá-lo de arti-arte, Adorno pensa o happening leva em conta outros aspectos que não a simples integração da arte com a vida e atribui-lhe o caráter de aparência, negado na passagem sobre sua crise em Teoria Estética. Nessa medida, de qualquer modo, os happenings – falta de sentido ostensiva certamente não expressa sem mais a da existência e a conforma – são exemplares. Desenfreados, eles transferem para si a responsabilidade da nostalgia de que a arte, contra seu princípio de estilização e seu parentesco com o caráter de imagem, torne-se uma realidade sui generis. Exatamente por isso, eles polemizam do modo mais grosseiro, chocante, contra a realidade empírica, à qual eles gostariam de se igualar. Na sua estranheza cômica aos fins da vida real, em cujo seio eles são concretizados, eles são de antemão sua paródia, que também, mais ou menos como a dos meios de massa, de modo evidente levam a cabo.[18] 88 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

Ao mostrar que o caráter sui generis do happening acaba por colocá-lo contra a realidade empírica a qual ele gostaria de se igualar. Aqui há que se considerar um aspecto que a a indistinção entre arte e vida proposta por Kaprow difere das propostas das vanguardas históricas já que estas estavam vinculadas a uma concepção ligada ao progresso. A integração com a vida porposta pelo happening não tem a pretensão de criar uma “nova sociedade”, mas simplesmente propor novas possibilidades de vida pela organização de novas experiências. Dentro do quadro do pensamento adorniano, o caráter sui generis destas experiências, ou seja, o caráter absurdo que elas instauram no âmbito público, possibilita justamente a crítica do social em que ele se insere. Assim, abre-se espaço a que se pense o desenvolvimento das artes na década de 1960 a partir dos pressupostos de uma dialética negativa. Ainda que aqui a noção de forma já não desempenhe papel relevante, acreditamos que a leitura de fenômenos da arte contemporânea em chave adorniana é não apenas plausível como necessária a fim de se verificar a atualidade da tarefa crítica que esta estética atribui à arte.

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Bibliografia Adorno, T. Gesammelte Schriften, Herausgegeben von Rolf Tiedemann unter Mitwirkung von Gretel Adorno, Susan Buck-Morss und Klaus Schultz, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1986. ––––, Teoria Estética. trad. Artur Morão, São Paulo, Martins Fontes, 1982. ––––, A arte e as artes. Trad. Rodrigo Duarte (Texto não publicado). ––––, Escritos musicales I-III, Madri, Akal, 2006, (obra completa 16). ––––, Filosofia da nova música, trad. Magda França, São Paulo, Perspectiva, 2007. Bürger, P. Teoria da vanguarda. Trad. José Pedro Antunes, São Paulo, Cosac Naify, 2008. Hussak, P; Vieira, V. (Org.). Educação Estética: de Schiller a Marcuse, Rio de Janeiro, NAU, Edur, 2011. Duarte, R. Sobre o conceito de “pseudomorfose” em Theodor Adorno. Artefilosofia, Ouro Preto, n.º 7, pp. 31-40, out. 2009 Sandford, (Edit.). Happenings and other acts, New York: Routledge, 1995. Vários, Escritos de artistas – anos 60-70. Cecilia Cotrim e Gloria Ferreira (org.), Rio

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de Janeiro, Jorge Zahar, 2006. ADORNO E O HAPPENING Pedro Hussak van Velthen Ramos

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Theodor Adorno sempre ressaltava o que haveria de progressivo em suas teorias, mas também de falso e regressivo, bem como o teor de verdade histórico-filosófico desses últimos. Em relação a Freud não é diferente, mas no que concerne às questões estéticas, há muito pouca valoração positiva, especialmente do conceito de sublimação. Apesar de este ser usado de forma elogiosa na Teoria estética, quando lemos que sublimação e liberdade coincidem[1], os comentadores são unânimes em afirmar que Adorno não chegou a desenvolver tal conceito, bem como teve apenas uma consideração negativa dele[2]. De fato, nas Minima Moralia temos uma passagem deveras contundente, representativa da crítica adorniana à concepção psicanalítica da arte: “Os artistas não sublimam. Crer que eles não satisfazem nem recalcam seus desejos, mas transformam-nos em realizações socialmente desejáveis, suas obras, é uma ilusão AO COMENTAR GRANDES AUTORES QUE O PRECEDERAM,

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Cf. Adorno, Ästhetische Theorie, p.33 e 196. Cf. Joel Whitebook, Perversion and Utopia, p.259: “… por causa do contexto polêmico em que estava a escrever, ele [Adorno] nunca tentou desenvolver um conceito mais adequado de sublimação”; e Eckart Goebel, “On Being Shaken. Adorno on Sublimation”, pp.158ss. 1

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psicanalítica” (§136). Ao empregá-lo com um delineamento próprio na Teoria estética, Adorno dilui seu significado, pois lhe confere o sentido geral de uma refração, de uma mutação de tudo que existe na realidade empírica, e não especificamente do ímpeto pulsional, ao ser inserido no âmbito estético[3]. Nesse panorama, causa certa estranheza o fato de os comentadores não se referirem ao conceito de sublimação colocado por Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento, quando é contraposto ao de pornografia e humor[4]. Apesar de a referência à arte ser bastante sucinta, todo o parágrafo em que tal conceito aparece nos permite fazer uma interpretação que nos parece bastante enriquecedora[5]. – Por outro lado, pensamos que essa concepção está fundada em uma perspectiva teórica sobre o desejo problemática em certos aspectos, que a comprometem em alguma medida. Todavia, deve-se considerar de perto o fato de as considerações de Adorno e Horkheimer proporem uma apropriação filosófica da psicanálise, não se situando no mesmo plano teórico. O percurso deste texto será, então, apresentar inicialmente, segundo nossa perspectiva, a melhor leitura possível da relação entre pornografia e sublimação tal como se apresenta na Dialética do esclarecimento, estabelecendo certa solução de compromisso entre o que se pode depreender do texto de Adorno e Horkheimer e nossa própria concepção. Na segunda parte, consideraremos o tema da transposição de conceitos psicanalíticos para o plano do discurso filosófico, exemplificado pela temática exposta no primeiro item, e apresentaremos pontos principais de nossa crítica a esse quadro teórico de Adorno e Horkheimer.

“Permanece inalterável para a refração estética o que é refratado; para a imaginação, o que ela concebe. (…) Na relação com a realidade empírica, a arte sublima o princípio, ali atuante do sese conservare, em ideal do ser-para-si dos seus testemunhos; segundo as palavras de Schönberg, pinta-se um quadro, e não o que ele representa”. Ästhetische Theorie, p.14. 4 Apesar de mencionar tal ocorrência do conceito, Rodrigo Duarte não desenvolve uma interpretação específica sobre ele em seu livro Teoria Crítica da indústria cultural. 5 Os comentários a seguir referem-se primordialmente ao 16º parágrafo do capítulo “Indústria cultural. O esclarecimento como mistificação das massas”, da Dialética do esclarecimento, situado às páginas 161-4, na edição das Gesammelte Schriften de Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, motivo pelo qual nos dispensamos de fazer as devidas referências de paginação. 3

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Na última parte, delineamos alguns elementos de nossa concepção do que significa o destino pulsional da sublimação.

I Tal como vemos na Dialética do esclarecimento, a indústria cultural oferece uma promessa fraudulenta de felicidade, na medida em que, afirmando indefinidamente a positividade da imagem sexual através de seu engrandecimento técnico, tende a traduzir/transpor toda a negatividade conflituosa do desejo na evidência fantástica de um objeto inequivocamente sedutor. A reprodução mecânica do objeto sexual produz o recalcamento do desejo por criar uma espécie de campo gravitacional tão mais forte quanto falso, devido ao fato de “antecipar-se” àquilo que pode ser vivido de forma questionada por parte do sujeito. Em vez das contradições, incertezas e ambivalências do desejo, tem-se uma manipulação técnica grandiosa que escolhe fragmentos e porções da sexualidade para elevá-los a ícones essenciais do desejo. O brilho técnico da imagem pornográfica tende a substituir a ligação concreta com a realidade, de tal forma que a imagem, por assim dizer, deixa ao desejo somente o resíduo incontornável de sua prematuração. Tal como Freud diz que vários aspectos das neuroses são interpretados como representantes de momentos do ato e da satisfação sexual[6], a cultura de massa pornográfica se fixa na materialidade da excitação típica do prazer preliminar. Ela se nutre em larga medida da ênfase no que é positivamente audível, exibicionista, cinético, voyeurístico etc. Toda a gama de elementos indefinidos, abstratos e não traduzíveis na positividade do que é foto- e cinematográfico é negligenciado. A estimulação indefinida do desejo do consumidor demonstra a que se reduz esta imagem plenamente sexualizada: o desejo é convidado a se comprazer com a própria excitabilidade. No limite, oferta-se o desejo a quem deseja; vende-se a percepção de si como quem, apesar de todo o processo de reificação e de amortecimento dos afetos, ainda possui

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“... os sintomas representam a atividade sexual dos doentes, seja total ou parcial, proveniente das pulsões parciais normais ou perversas da sexualidade”; Freud, “Meine Ansichten über die Rolle der Sexualität in der Ätiologie der Neurosen”, p.157. 6

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desejo, ainda se percebe como suficientemente vivo porque excitável. Mas essa condição de excitabilidade indefinidamente postergada através da mediação redundante das imagens pode ser equiparada aos mitos de Tântalo e Sísifo, em que a inesgotabilidade do desejo se liga dramaticamente à aflição, à angústia, enfim, ao sofrimento. O hábito da renúncia aos objetos concretos de desejo reduz o prazer preliminar a uma condição masoquista, por mutilar o desejo: faz incidir nele uma fraqueza que lhe adere como um miasma, uma nódoa irremovível, traduzida pela vivência da ilegitimidade do próprio desejar. É como se o desejo se colocasse em questão em sua razão de ser, devido à sistemática negação de seu vínculo com o objeto. É preciso ter em mente, entretanto, que com isso não se cobra, da indústria cultural, que forneça uma satisfação definitiva para os desejos. Que toda satisfação seja parcial, que toda demanda subjetiva seja sempre limitada – não havendo um objeto último e definitivo –, isso é algo que se pode tomar como verdadeiro, mesmo sem apoio na teoria psicanalítica, que recusa a resolução total das tensões psíquicas ligadas ao desejo. A questão reside em que a cultura de massa opera no sentido de acentuar significativamente um movimento de exteriorização falsificadora do vínculo desiderativo entre sujeito e objeto. A arte, por sua vez, coloca-se como uma promessa, mas de tal forma que assume, na negatividade imanente da construção de sua imagem, a inesgotabilidade do desejo como um princípio constituinte de seu próprio significado. Arte sublima na medida em que resgata a dignidade da pulsão ao tomar a renúncia desta a seu objeto como um momento dialético a ser negado no âmbito da configuração estética. Ao contrário da cultura de massa, tal promessa contém essencialmente a cláusula de sua insuficiência constitutiva, não simulando a positividade dos objetos de desejo possíveis. Em contraste com o aprisionamento falsificador das possibilidades indefinidas do desejo em uma configuração positiva de um objeto, tem-se uma imagem que congrega em si a universalidade negativa de um desejo que, embora não vivido em sua positividade, se exprime como legítimo, como tendo sua razão de ser no processo de aprofundamento reflexivo sobre sua própria irrealizabilidade. À arte caberia um ascetismo sem pudor, devido à negação do vínculo direto com objetos sexuais, mas cujo significado é o de resgate

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da dignidade da pulsão. De forma análoga a como Adorno diz que somente uma imagem negativa de ser humano é que lhe faz justiça, podemos dizer que a arte confere razão de ser ao desejo apenas enquanto se recusa a fornecer uma configuração positiva daquilo que lhe seja mais essencial. O objeto não é simplesmente devolvido à pulsão em sua positividade, em sua primareidade, mas sim resgatado como um índice, como uma imagem, como algo mediado, portanto – embora tal imagem demonstre, na verdade, o quanto tal objeto inexiste como realidade verificável. Não se trata de fornecer uma espécie de consolo, de satisfação vicária pelo objeto perdido. A imagem estética não consola o desejo que renuncia a seu objeto; insiste-se, ao contrário, na insuficiência de todo acesso positivo ao objeto em uma figuração imagética do que subjaz ao movimento de apropriação do objeto como objeto-de-desejo. Nesse sentido, sublimar seria propriamente a negação do objeto de desejo e sua assunção em uma negatividade inerente ao próprio vínculo do sujeito com todo objeto de desejo possível. Em vez da ligação positiva e particular do desejo com o objeto, tem-se uma ligação em segunda potência entre o sujeito e seus objetos. Troca-se uma positividade particular por uma negatividade universal. Em vez de uma positividade em uma dimensão primeira, tem-se uma universalidade em uma dimensão segunda. Ao mesmo tempo em que ratifica a renúncia ao objeto, a imagem estética ressoa em seu campo de atração a realidade efetiva [Wirklichkeit] do desejo, ou seja, mediada pela reflexividade do que é negativo e intrínseco a este, que se assume em sua universalidade, tanto mais refletida quanto reconhecidamente impotente para se satisfazer, preencher-se, de forma derradeira e definitiva. Em contraste com tais características, a indústria cultural é pornográfica e puritana, pois ao mesmo tempo em que oferece sexualidade, recusa-a a seus consumidores, que devem se “satisfazer” muito mais com a expectativa frustrada de prazer do que propriamente com uma relação concreta, reflexivamente mediada com as imagens. Na medida em que a cultura de massa insiste na positividade da obtenção de prazer com seu objeto, é tão falsa quanto a ideia de que o desejo poderia, enfim, se satisfazer. Ela vincula o desejo à obsessividade de uma imagem tão eloquente quanto vazia, de modo que todo seu pretenso potencial libertário – devido ao fato de expor a sexualidade de forma

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escancarada – é enfraquecido pelo fato de ser traduzido em uma imagem cujo significado é vender uma configuração positiva e particularizada da afirmação de si. Todo o mar de elementos inconscientes que se ligam a uma imagem enigmática é reduzido à conexão de milhões de pessoas a signos inequívocos de sexualidade isenta de questionamentos. Tudo é trazido à transparência radical de sua evidência consumada, à superfície de uma imagem que ratifica em sua positividade abrilhantada aquilo que, de outra forma, é vivido de forma difusa, caótica e contraditória na vida concreta. A reprodução mecânica do belo retira de cena a granulosidade e opacidade essencial do desejo, que é o que impele ao trabalho subjetivo de orquestrar, digerir e metabolizar o ímpeto pulsional, ao construir uma ponte entre o sujeito e seu objeto de desejo. A cultura de massa produz uma domesticação do desejo a partir de um rebatimento infinito do objeto como índice de sua própria verdade. A pornografia glorifica uma realidade primeira, não mediada, do desejo, substituindo o prazer com o aprofundamento do significado do desejar pela exacerbação da atratividade de superfície do objeto em uma imagem manipulada tecnicamente. – Na arte, assume-se a negatividade do objeto a que se renuncia em direção a um princípio universal do desejo. Na indústria cultural tem-se o inverso, pois um objeto particular congrega como um fetiche a universalidade dos objetos de desejo possíveis e contraditórios.

II Toda essa concepção de Adorno e Horkheimer nos parece bastante rica e frutuosa. Para construir nossa interpretação, porém, tal como dissemos, realizamos uma solução de compromisso através de alguns deslocamentos e condensações de ideias presentes no modo com que os autores concebem, não somente neste capítulo, mas em toda a Dialética do esclarecimento, as questões ligadas ao desejo e à subjetividade. – Antes, porém, de explicitar os aspectos que nos pareceram relevantes, é preciso ter em mente que, semelhante à estratégia argumentativa do texto Eros e civilização, de Herbert Marcuse, tem-se em Adorno e Horkheimer uma interpretação filosófica de conceitos freudianos, e não uma outra teoria psicanalítica, pois possui sentido e finalidade

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próprios ao discurso mais abstrato da filosofia e, no caso da Teoria Crítica, voltado para questões ligadas mais ao âmbito social do que ao subjetivo e inconsciente, apesar de este último estar presente em vários momentos, como se pode ver com clareza na leitura feita sobre a Odisseia. Embora concordemos com Rodrigo Duarte quando diz que o uso que o filósofo pode fazer de conceitos psicanalíticos é bem diferente daquele realizado pelo psicanalista[7] – mesmo se considerarmos apenas o plano teórico e abstrairmos da dimensão clínica –, isso não nos parece significar – como tampouco é dito por Duarte – uma espécie de licença e legitimação para todo modo de transpor conceitos freudianos para o âmbito filosófico. Em termos críticos, parece-nos sempre pertinente – e necessário – questionar se tal apropriação é válida, progressista, se ela se nutre do que há de melhor nos conceitos psicanalíticos, e – o que nos interessa especificamente aqui – se o vocabulário freudiano, nessa transposição, mantém o que há de significativo em sua semântica, em sua carga conceitual, e não apenas conserva designações abstratas, como palavras desconectadas da teoria psicanalítica. Uma vez que a leitura de Adorno e Horkheimer da obra freudiana é bastante ampla e se dirige a diversos conceitos aplicados em muitas áreas de investigação, não podemos aqui fazer uma análise detalhada, mas tão-somente apontar algumas características presentes nesta temática que discutimos na primeira parte para encaminhar a discussão para nossas considerações críticas. Segundo pensamos, um dos princípios norteadores do modo como a psicanálise foi apropriada na Dialética do esclarecimento consiste na utilização de conceitos metapsicológicos – tais como recalque, pulsão, inconsciente, censura – como chaves de compreensão do vínculo entre o indivíduo como particular em sua relação com uma dinâmica histórica que se sedimenta em formas socialmente constituídas. A metapsicologia, nessa transposição, teria seu sentido não mais em deslindar uma lógica própria de articulação dos estratos inconscientes da subjetividade, mas sim em esclarecer momentos decisivos no modo como as relações de poder se sedimentam em princípios racionais, que se configuram nas diversas etapas de uma Aufklärung que, como fica bastante claro na leitura da Dialética, estende-se indefinidamente 7

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Dizer o que não se deixa dizer, p.39.

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para muito antes do começo da própria história. Ulisses, tomado como protótipo do que viria a ser o indivíduo burguês, ilustra o momento em que o sujeito se firma ao se digladiar com potências míticas e, assim, concretizar os princípios de uma racionalidade tão enrijecida quanto seu próprio ego. No fenômeno do anti-semitismo, vemos uma espécie de culminação de um processo de desenvolvimento da subjetividade tomada como nula perante uma força opressiva, gigantesca e esmagadora. Nesse momento, o indivíduo é dito pelos autores como imerso em uma sociedade de massa cujos feitos assustadores somente são explicáveis pelo fato de que todos os poros da consciência foram totalmente tapados (cf. DA 230[8]), de modo que as atrocidades nazistas seriam fruto de uma vitória cabal de uma racionalidade tomada em vários momentos como desprovida de sujeito[9]. Em linhas gerais, esses e outros momentos-chave demonstram um deslocamento do âmbito metapsicológico para as relações do indivíduo com para a objetividade social. Assim, os conceitos metapsicológicos tendem a não ser mais portadores de um significado psicanalítico em sentido mais estrito, pois indicam agora fundamentos subjetivos em que o conceito de inconsciente é tomado de forma descritiva, e não sistemática, ou seja, não no sentido de apontar para instâncias psíquicas em sua lógica própria de funcionamento, mas sim por sua relação com a consciência (ser ou não ser consciente)[10]. Uma vez que tanto a sublimação quanto a pornografia giram em torno de formas com que o desejo alcança ou não seu objeto – sendo este um ponto significativo na argumentação dos autores –, é importante discutir uma diferenciação conceitual que se situa no centro do aporte crítico que propomos. Trata-se da diferenciação entre os conceitos de renúncia/abdicação [Entsagung/Verzicht], por um lado, e frustração [Versagung], por outro. Adorno e Horkheimer empregam Entsagung/ Verzicht e Versagung de forma alternada, sem que se tenha nenhuma indicação específica de uma possível diferença entre esses dois polos A partir de agora a Dialética do esclarecimento será citada no texto como DA (Dialektik der Aufklärung), seguida do número de página; cf. bibliografia ao final para detalhes da edição. 9 Cf., por exemplo: “(…) o colosso a-consciente [bewußtlose] do real, o capitalismo desprovido de sujeito [subjektose], exerce a aniquilação cegamente (…)” (DA 134). 10 Sobre esta diferença entre uma abordagem descritiva e sistemática, cf. Freud, O inconsciente, GW vol. X. 8

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semânticos. Na muito citada passagem em que os autores dizem que “a história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou, em outras palavras, a história da renúncia” (DA 73), o termo empregado na última frase é Entsagung. No parágrafo do capítulo sobre a indústria cultural que é foco de nosso exame, a palavra empregada, mais de uma vez, é Versagung, mas seu sentido é propriamente o de renúncia, abdicação, tal como fica claro na seguinte passagem, cuja tradução, por Guido de Almeida, reproduzimos a seguir: Kulturindustrie sublimiert nicht, sondern unterdrückt. Indem sie das Begehrte immer wieder exponiert, den Busen im Sweater und den nackten Oberkörper des sportlichen Helden, stachelt sie bloß die unsublimierte Vorlust auf, die durch die Gewohnheit der Versagung längst zur masochistischen verstümmelt ist. (DA 162) A indústria cultural não sublima, mas reprime. Expondo repetidamente o objecto do desejo, o busto no suéter e o torso nu do herói desportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não sublimado que o hábito da renúncia

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há muito mutilou e reduziu ao masoquismo.

De nosso ponto de vista, a diferença entre Entsagung/Verzicht e Versagung é significativa, e se fundamenta no plano da dinâmica do vínculo entre sujeito e seu objeto de desejo. Entsagung e Verzicht indicam que a insatisfação, o sofrimento e a angústia derivam da condição de ausência e de negação consciente e/ou objetiva dos objetos de desejo. Trata-se da circunstância em que ao desejo não se concedem objetos adequados à demanda subjetiva, seja por sua escassez, insuficiência qualitativa, precariedade etc. Tanto por introversão de valores morais opressores (a própria pessoa se recusa determinado objeto), quanto pela impossibilidade de acesso a determinados bens, o que conta é o fato de que a negatividade do desejo está situada no âmbito da relação entre o indivíduo e a realidade circundante. Essa é uma determinação propriamente objetiva do conflito entre sujeito e objeto, e pode ser vista com clareza em outros textos de Adorno, como no §136, “O exibicionista”, das Minima moralia, em que se leem expressões como: “impulsos neuróticos que fluem livremente e colidem com a realidade”, que indicam com especial clareza que o conflito psíquico interno, íntimo e inconsciente entre instâncias psíquicas (que se traduzem na

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vivência de sintomas) é exteriorizado, posto no vínculo entre indivíduo e realidade. Em relação a essa passagem, diríamos que, se um impulso é tomado como neurótico, já inclui a ideia de uma colisão interna, de uma ausência de liberdade – o que está de acordo com toda a descrição freudiana das neuroses (histeria e obsessividade), perversões e psicoses, em que a compulsão à repetição se mostra enfaticamente –, de modo que este impulso, caso encontre algum impedimento no vínculo com a realidade, sofrerá uma segunda forma de restrição de liberdade. Nesse último caso, pode-se conceber perfeitamente como uma atitude obsessiva, como de um vício, pode ser proscrita devido a um código moral específico. Em contraste com isso, a Versagung diria respeito a uma impossibilidade essencial de conexão harmônica entre desejo e seu objeto. Tal como dizem Laplanche e Pontalis, “na frustração, segundo Freud, o que está em jogo é menos a falta de um objeto real do que a resposta a uma exigência que implica um determinado modo de satisfação ou que não pode receber satisfação de nenhuma maneira”[11]. Segundo nossa perspectiva, isso se daria em virtude do fato de que o desejo é substancialmente contraditório em sua raiz mais íntima, de tal forma que não existe apenas uma multiplicidade de objetos a serem desejados, mas sim diversas contradições dos desejos entre si e para com o eu, na medida em que se estruturam intimamente a partir de uma rede de fantasias inconscientes incompatíveis entre si e que ameaçam a integridade egóica, ao se esforçarem por ocupar um mesmo espaço no âmbito psíquico consciente[12]. Nessa perspectiva, uma satisfação será Vocabulário da psicanálise, verbete “Frustração”. Segundo Paulo de Carvalho Ribeiro, toda sexualidade, tomada em seu substrato inconsciente, é contraditória; cf. O problema da identificação em Freud, p.254: “não há sexualidade que não seja conflitiva”. Embora Nietzsche não pudesse falar de um ponto de vista psicanalítico – não dispondo do conceito de recalque, fantasia deslocamento/ condensação e diversos outros propriamente metapsicológicos –, demonstra uma concepção bastante interessante e próxima da que defendemos: “O ser humano, ao contrário do animal, domesticou em si inumeráveis pulsões e impulsos contrários: em função desta síntese ele se tornou o senhor da Terra. – As morais são a expressão de ordenações valorativas limitadas localmente neste mundo múltiplo das pulsões: de tal modo que o ser humano não pereça nas contradições dessas pulsões. Assim, uma pulsão como senhor, sua pulsão contrária enfraquecida, refinada, como impulso, que cede o estímulo para a atividade da pulsão principal” (Nietzsche Werke Vol. 3, p. 422; C. Hanser Verlag) – uma 11

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sempre parcial, não apenas no sentido de precária e insuficiente, mas sim devido ao fato de que a satisfação de uma face significa contrariar e, portanto, negar não apenas outras faces do desejo, mas fundamentalmente a afirmação do próprio eu. Se tais hipóteses são adequadas, então podemos dizer que o sofrimento e a insatisfação estão universalmente presentes nos seres humanos em virtude de Versagung, que indica muito mais uma insuficiência e fraqueza desiderativa do sujeito na relação com objeto, do que uma ausência e limitação deste. Segue-se que poderia haver Versagung diante do excesso do objeto – que corresponde, na verdade, a um excesso de investimento afetivo –, em virtude da incapacidade de assimilar a realidade como adequada ao desejo. É preciso reconhecer, por outro lado, que embora haja clareza suficiente nesses dois polos conceituais, isto não implica que eles não se mesclem nas vivências concretas com os objetos de desejo. Nesse sentido, o hábito de renúncia forçada aos objetos de desejo, de fato, pode ser dito como se impregnando ao desejo como marca íntima inalienável, gerando, consequentemente, o complexo psíquico que entendemos a partir do conceito de frustração [Versagung]. Apesar dessa adversativa, tal distinção deve ser mantida, pois, na medida em que dizemos da sublimação como um conceito metapsicológico, ligado a uma transformação do ímpeto pulsional – Freud fala que ela é um dos destinos da pulsão –, logo esta negatividade do vínculo entre sujeito e objeto não deve ser falada propriamente como fruto de ausência de um objeto real, mas sim como devedora de uma estruturação subjetiva inconsciente, que faz com que a atividade sublimatória seja impulsionada e se estruture por ação de princípios e mecanismos inconscientes. A importância deste complexo teórico mostra-se com clareza no passo central do conceito de sublimação como promessa rompida de felicidade. Tal como vimos, Adorno e Horkheimer dizem que a arte, em contraste com a indústria cultural, sublima ao resgatar a dignidade da pulsão, humilhada devido à renúncia a seu objeto. Se insistirmos em uma concepção propriamente psicanalítica da pulsão, logo seu significado mais próprio nos diz que ela é sempre inconsciente, constitui a raiz

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das importantes diferenças para com a psicanálise residiria na ausência da contradição entre as pulsões e o eu, que para nós é de suma importância.

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mais profunda de todos os desejos. Nesse registro, ela seria anterior aos conceitos de dignidade e humilhação, que seriam aplicáveis não a ela, mas ao ser humano desejante. Considerar seriamente esta anterioridade é importante, dentre outras coisas, devido ao fato de que não se deveria tomar o ímpeto pulsional como algo necessariamente bom e verdadeiro para o próprio sujeito. Tal como Jean Laplanche demonstra em vários de seus escritos, é sempre necessário levar em conta o caráter demoníaco, disruptivo, mortífero e, além disso, masoquista inscrito nesta energia psíquica que gravita em torno de fantasias inconscientes enigmáticas e absurdas perante nosso olhar consciente.[13] Desse modo, situar a sublimação entre uma pulsão humilhada por renunciar a um objeto e o resgate de sua dignidade através de uma imagem que é um índice de promessa de felicidade que não se cumpre – tudo isso aponta para um conceito por demais otimista e, por assim dizer, “positivo” do ímpeto pulsional, derivado de uma projeção de certa concepção filosófica da dignidade e valor do ser humano em um âmbito refratário a esta apropriação.[14] 102 Sobre o masoquismo como elemento constituidor das fantasias mais arcaicas do psiquismo, cf. “Masochisme et théorie de la séduction généralisée”, in: La révolution copernicienne inachevée, pp.439-56. 14 É necessário reconhecer, aqui, que a derivação crítica que fazemos dessa concepção por demais “positiva” do núcleo pulsional do desejo em Adorno, a partir dos conceitos de promessa de felicidade e de dignidade da pulsão, necessitaria de uma fundamentação bastante mais detalhada, com maior aprofundamento conceitual, tendo em vista, entre outras coisas, o modo com que Adorno e Horkheimer concebem a formação do eu em sua leitura da Odisséia, em que é central a ideia de que Ulisses se forma como sujeito ao atravessar as potências míticas de dissolução. Segundo pensamos, por mais que a natureza esteja implicada neste complexo imagético do mito, ela conterá, naquilo que lhe é mais próprio – como o que nutre intimamente o desejo –, a dignidade e o valor da própria vida, tal como se pode perceber claramente na seguinte passagem: “O domínio do homem sobre si mesmo, que funda o seu ser, é sempre a destruição virtual do sujeito ao serviço do qual ele ocorre; pois a substância dominada, oprimida e dissolvida pela autoconservação, nada mais é senão o ser vivo, em cuja função os esforços da autoconservação unicamente se determinam, portanto exatamente o que deveria ser conservado” (DA 73). Além disso, vale sempre lembrar que uma das raríssimas ocasiões em toda a Dialética do esclarecimento em que os autores apontam para a ultrapassagem do estado de falsificação da razão esclarecida se liga precisamente ao resgate, à “rememoração da natureza no sujeito” (DA 58). Como essa é uma temática bastante complexa em si mesma, pretendemos desdobrá-la longamente no livro que atualmente estamos a preparar: A Razão e suas vicissitudes. A psicanálise na Dialética do esclarecimento. 13

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Levando em conta o deslocamento da negatividade íntima da frustração para a objetividade da renúncia/abdicação, esta ideia de que a pulsão é humilhada nos mostra que, embora a palavra Trieb tenha sido usada em um contexto que inspira sua definição em termos metapsicológicos, seu sentido, no texto da Dialética, mostra-se mais como o de um desejo em geral do ser humano, desprovido das dificuldades teóricas inerentes à dinâmica de estruturação inconsciente da subjetividade. Este é um exemplo do que vemos ocorrer em todo o texto da Dialética do esclarecimento: o vocabulário freudiano (recalque, narcisismo, ego, censura, o superego etc.) é apropriado sem a carga conceitual propriamente psicanalítica, metapsicológica. Tal como dissemos acima, todas essas noções são traduzidas como indicações do vínculo entre o indivíduo nutrido por seus impulsos naturais e as formas de racionalidade que se alternam e se desdobram ao longo da história. Todas essas considerações críticas não implicam, entretanto, uma refutação do conceito de sublimação que comentamos. Muito do que expusemos na primeira parte nos parece bastante significativo, em que pese de seu comprometimento pelo modo com que os autores deslocam a carga conceitual metapsicológica dos termos freudianos para a exterioridade objetiva da relação entre sujeito e realidade. Por outro lado, as questões que levantamos nos parecem representativas de um modo de equacionar o problema da sublimação que implica princípios gerais de leitura filosófica da psicanálise que solicitam uma investigação específica. Apesar de essa ser uma temática bastante abrangente e complexa, a demandar uma argumentação proporcionalmente extensa, gostaríamos de delinear as bases conceituais do modo como vemos o vínculo entre a sublimação e a negatividade inerente ao desejo inconsciente, que se refere à característica da perspectiva teórica que Adorno e Horkheimer que nos parece mais problemática.

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III O conceito psicanalítico de sublimação deve ser lido a partir da ideia de uma transformação substantiva perante a lógica de constituição inercial dos desejos inconscientes. A compulsão à repetição, princípio norteador da leitura freudiana do inconsciente – em que pesem suas formulações

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excessivamente biológicas em alguns momentos –, exprimem, no âmbito visível da manifestação sintomática, forças e princípios de estruturação subjetivas que demandam incessantemente resoluções de polos contrários. Difícil seria exagerar o quanto as primeiras formas de estimulação somato-psíquica marcam profundamente tudo o que irá nutrir o psiquismo de forma abrangente e ramificada. A partir da leitura de Jean Laplanche sobre a a psicanálise freudiana, dizemos que as primeiras fixações psíquicas, ao redor das quais gravitará todo o aparelho psíquico, possuem uma dimensão sexual a ser digerida e metabolizada a posteriori, de forma retrospectiva. Dentre as diversas consequências deste complexo formativo, tem-se a ideia de que a sexualidade infantil, explosiva devido à sua dimensão precoce, sempre tenderá a colonizar incessantemente todas as atividades tendentes à progressividade do vínculo do indivíduo com a realidade. Por mais que uma ligação com o objeto se mostre desconectada do ímpeto pulsional nutrido pela sexualidade arcaica e infantil, estratégias de simbolização reflexiva, analiticamente orientadas, podem demonstrar graus e formas de comprometimento com este substrato mais profundamente arraigado no psiquismo. Se, classicamente, a sublimação é definida pelo desvio perante o investimento sexual nos objetos, com sua subsequente canalização para atividades com maior valor cultural, então ela deverá consistir, dentre outras coisas, em uma determinada constelação de fatores de conexão entre sujeito e objeto capaz de romper, de alguma forma e em alguma medida, esta inércia da conexão entre representações inconscientes, através das quais circula uma enorme quantidade de investimentos afetivos. O prazer de sublimar consistiria, entre outras coisas, nessa determinação negativa perante a imposição de uma lógica inercial de associações nutridas por cargas de afeto sexuais arcaicas. Muito das dificuldades inerentes a uma teoria da sublimação reside em localizar conceitualmente o vínculo entre este núcleo arcaico do psiquismo (fundado no recalque da energia fixada no inconsciente) e o mecanismo que lhe deve contrastar, ou seja, a atividade sublimada. Não se avança muito na teoria sobre a sublimação se continuarmos a seguir uma ideia colocada por Freud em seu texto sobre Leonardo da Vinci, em que lemos que a pulsão, ao ser sublimada, escapa ao

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recalque desde o início[15]. Segundo pensamos, a energia psíquica que será sublimada não deve ser dita como contraposta dessa maneira ao recalcamento, devido ao fato de que toda a energia psíquica provém do núcleo conflituoso do psiquismo, ou seja, do que foi recalcado. Lida a partir deste prisma, a compulsão à repetição significa o fato inalienável de que o sujeito está condenado a responder a um princípio de gozo incompreensível em suas articulações mais substancialmente decisivas[16]. Em que pesem as infinitas diferenças valorativas para tais respostas, o que dizemos é que nenhuma delas se coloca em um plano exterior àquele princípio. Tal como Freud coloca de forma enfática no texto O inconsciente, tanto os ideais mais nobres elevados da cultura, suas realizações mais valiosas, quanto as formas mais degradadas e violentas de barbárie provêm de uma mesma fonte, a saber, do núcleo incompreensível porque contraditório do psiquismo. Em virtude disso, não faz sentido contrapor sublimação a recalque neste âmbito mais decisivamente fundador da subjetividade. A tarefa teórica que se nos impõe é a de conceber a sublimação como um destino de uma energia psíquica que somente existe porque pulsa ao redor de nós e cruzamentos irresolvíveis como mola propulsora de toda a atividade psíquica. Dentre outras coisas, é necessário apreender como a coerção da estruturação social, em suas diversas formas (ética, religiosa, científica, familiar), ao se nutrir de, e espelhar a, inércia dos vínculos fantasísticos individuais, pode ser posta em cheque, questionada, em algum grau e de alguma forma, através do modo como a atividade imagético-imaginária de reconfiguração do vínculo sujeito-objeto, particularmente na arte, impõe-se como uma força suficientemente intensa. Esta força se nutre do princípio de sedimentação sucessiva cargas de afeto que atravessam os enfrentamentos do núcleo conflituoso egóico com as infinitas formas de alteridade em relação a ele. A questão a ser respondida está propriamente em como podemos conceituar a plasticidade pulsional[17] – rompendo a linha inercial das associações fantasísticas – que resulta na

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Cf. “Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci”, p.147. Cf. Paulo de Carvalho Ribeiro, “Stanley Kubrick se matou: o que se pode ver de olhos bem fechados”, p.23. 17 Cf. Juan David Nasio: “Sublimação quer dizer, acima de tudo, plasticidade, maleabilidade da força pulsional”, Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise, p.83. 15

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sublimação em seu ponto de clivagem perante os mecanismos normais/ neuróticos de metabolização desses estratos psíquicos mais profundos, face a face com as formas de estabilização social das resoluções do conflito psíquico. Para entender a sublimação é preciso todo esforço possível para conceber mecanismos psíquicos de mediação entre o plano da objetividade social empírica e a constituição psíquica. Dentre outras coisas, é imprescindível delinear o quanto cada indivíduo assimila os princípios de constituição cultural como apoios para sua própria subjetivação, de modo a aprender a desejar a cultura em virtude da necessidade de digerir conflitos inconscientes. Sem essa última necessidade, sem uma compulsão intra-subjetiva de modo a metabolizar o caráter explosivo de seu gozo, não se concebe essa necessária ponte entre o âmbito psíquico e os planos de inércia social e de constituição/instituição das grandes formas culturais, como os sistemas econômicos, políticos e religiosos etc. É preciso fazer trabalhar os conceitos relativos a este processo de mediação, pois a sublimação opera precisamente neste campo. Este movimento pendular entre a exterioridade da objetividade sócio-empírica e o núcleo do psiquismo ocorre neste plano intermediário, de mediação entre o individual e o coletivo. O sujeito é sempre movido por algo anterior a sua capacidade de simbolização reflexiva, de auto-compreensão. Ele é impulsionado por um princípio de gozo que se consubstancia, em diversos graus e formas, em cada objeto de desejo e de percepção. Na medida em que esse vínculo inercial do sujeito consigo mesmo se alastra por tudo aquilo com que se defronta, a teoria da sublimação corre o risco de ter que dizer de todas as formas possíveis de sedimentação desse princípio de instituição do sujeito, incluindo a cultura de massa, acomodação aos exemplos de atitude familiar, religião, organização jurídica, princípios de correção política, exigência de engajamento em projetos sociais, etc., uma vez que a sublimação se define pela ultrapassagem desses planos inerciais. Agrupar a todos sob os conceitos de “racionalidade instrumental”, “reificação”, “relações de poder” etc. pode ser bastante enganoso, pois estes tendem a ser definidos para além do espelhamento cultural dos princípios desiderativos, intra-subjetivos. Os planos de inércia que constituem e instituem as diversas formas culturais devem ser sempre pensados ao mesmo tempo como reflexo e sedimentação de princípios desiderativos da ordem da subjetividade.

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Não se pode retirar deles sua dimensão volitiva e pulsional[18]. O apoio mais fundamental para isso é a ideia de que todo gozo se institui tendo em seu núcleo algo negativo para o sujeito, que contraria a própria unidade identitária do eu. Nesse sentido, os processos de falsificação societária não apenas exprimem relações de poder e uma lógica objetiva das coisas e da relação supra-pessoal entre os indivíduos, mas também são sedimentações de formas com que a subjetividade precisa negar e ao mesmo tempo satisfazer seu princípio contraditório de gozo. A negação do sexual faz parte do sexual, devido ao fato de que ele, desde seus primórdios, é marcado pelo transbordamento, pela excessividade que necessariamente deve ser negada como princípio da vivência da própria sexualidade[19]. Assim, o conceito de alienação social, empregado largamente nas críticas marxistas à estruturação capitalista das relações de trabalho e de fetichização da mercadoria, deve ser reenviado a esse teor conflitivo, intimamente contraditório, do gozo. Nesse sentido, podemos dizer que os processos de alienação cultural, seja religiosa, econômica, política ou epistêmica, somente possuem a força impositiva que é demonstrada na inércia de constituição societária devido ao fato de que cada ser humano é intimamente estruturado de tal forma que necessariamente precisa negar, e por seu intermédio também realizar, o princípio de estruturação desiderativa, de gozo, de sua própria subjetividade. Deve-se insistir, nessa argumentação, que o psiquismo surge pelos processos de metabolização simbolizante dos efeitos de alguma forma de alteridade sobre o sujeito[20]. O núcleo psíquico surge devido ao modo

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Embora empregue uma argumentação muito diferente, Vladimir Safatle exprimiu de forma primorosa essa exigência em seu livro Cinismo e falência da crítica, particularmente no capítulo “Por uma crítica da economia libidinal”, pp.113-146. 19 Esse caráter excessivo da sexualidade inconsciente foi longamente tratado por Jacques André em seu livro As origens femininas da sexualidade, e por Paulo Carvalho Ribeiro, em O problema da identificação em Freud. Ambos os autores vinculam o excesso sexual ao conceito de feminilidade primária, caracterizado, entre outras coisas, pela vivência íntima de uma invasão inominável do psiquismo pelas cargas de excitações oriundas do contato com o outro; Ribeiro enfatiza, ainda, a importância dos complexos de identificação arcaicos com a mãe, anteriores ao amadurecimento dos contornos egóicos simbolicamente estruturados. 20 Esse conceito de metábole como princípio de estruturação subjetiva é central na leitura de Freud por Jean Laplanche, exposta em sua Teoria da Sedução Generalizada, que encontra uma de suas primeiras formulações em Novos fundamentos para a psicanálise. 18

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com que diversos planos de alteridade são imbricados, mesclados, de modo a se formar uma unidade que existe em função de contradições irresolvíveis em seu estrato mais profundo e determinante do próprio eu. Essas contradições existem não apenas em função da dispersão (de uma “multiplicidade”), mas devido ao fato de que o sujeito se torna alheio àquilo que ele mesmo deseja, de tal modo que ele se impõe, se firma, na medida em que precisa lutar contra o fato de que ele deseja objetos contrários à sua própria dignidade como sujeito[21]. Os estratos mais arcaicos do inconsciente precisam mesclar elementos por demais heterogêneos entre si: as excitações e estimulações corporais, com seu caráter invasivo e transbordante, todo o âmbito das sensações externas, com suas variações de estabilidade temporárias, a presença do outro, com seu caráter ao mesmo tempo invasivo e acolhedor, e também sua ausência, que gera a insegurança e falta de referências, além de todas as ocorrências de dor que os diversos processos somáticos podem produzir, que é algo extremamente ambíguo, devido ao fato de que a própria dor é potencialmente estimulante, ao passo que qualquer estímulo pode chegar a ser doloroso devido à sua intensidade. Como dissemos, essa é uma problemática muito complexa, que envolve todos os mecanismos sucessivos de conformação do aparelho psíquico, incluindo outros aspectos que também são altamente relevantes, como os processos de identificação com a mãe e com o pai. Para nossos propósitos, salientemos o princípio geral de que o psiquismo surge devido à aglutinação multifacetada, plural, heteróclita, de elementos muito díspares entre si. Ele surge como que em redemoinho, tendo que metabolizar muitas divergências, o que não se dá apenas em função de uma síntese de elementos dispersos. Há vários planos de contradição, desde o da síntese cognitiva da multiplicidade sensível em imagens, até o da contradição desiderativa de um narcisismo que é, ao mesmo tempo, defensivo e masoquista, pois se situa no limiar da dor e do prazer. Tudo isso aponta para o fato de que o núcleo pulsional Esta ideia marca uma de nossas divergências maiores para com a leitura de Joel Whitebook sobre a relação de Adorno com a psicanálise. O comentador insiste, ao longo de seu importante livro Perversion and Utopia, na ideia da necessidade de pensar uma “síntese não violenta do disperso” no âmbito psíquico, como uma espécie de transposição da concepção adorniana da forma estética para a constituição de um sujeito não mais adstrito ao ideal de autonomia fundada em uma unificação violenta sobre a natureza interna. 21

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do sujeito é essencialmente contraditório de forma múltipla, ou seja, se constitui em virtude da necessidade de aglutinação de planos de contradição e diferenças bastante distintos, as quais não são resolvíveis por uma mesma ação psíquica, associada ao princípio geral de síntese. O fundamento mais primordial de constituição do psiquismo, seu núcleo pulsional mais próprio, assim, mostra-se como o de uma contradição multi-estratificada, constituindo-se por planos distintos de heterogeneidade, dentre as quais ressaltamos o princípio geral de equacionamento entre o interno e o externo, devido ao fato de que, em sua origem, o psiquismo surge em um momento em que a criança não é capaz de diferenciação substantiva entre o âmbito interno e o externo, de modo que eventos externos são assimilados como internos e vice-versa. – A sublimação vem desse mesmo núcleo conflituoso do recalque, mas ao mesmo tempo difere dele; é diferente em virtude de seu princípio associativo interno das formas, dos elementos sobre os quais incide o processo psíquico de aglutinação, de vinculação dessas formas, desses elementos. Tomando a obra de arte, e particularmente a moderna, como paradigma do prazer sublimado[22], dizemos que a sublimação precisa da dimensão consciente no processo apropriação reflexiva disso que se decanta nas obras de arte como tendo uma lógica alheia, diferente, questionadora, daquela que se sedimenta nos processos neuróticos/ normais de simbolização. A dimensão puramente intuitiva, inconsciente, é fraca para conferir consistência sublimatória aos processos que querem se nutrir da energia pulsional como mola propulsora para a superação da lógica que rege a própria demanda conflituosa da pulsão. É exatamente neste nó – em que a pulsão impele na direção de algo que passa a obedecer a uma lógica (que a qualquer momento pode se perder) que já não mais se situa nessa linha inercial inconsciente e pulsional que se apoia nas formas culturalmente estabelecidas para formar soluções de compromisso –, é lá que a sublimação se mostra como um ponto de mutação substantiva perante o que já se impregnou no sujeito como seu ímpeto constituinte e também se consubstanciou como sucessivos pontos de apoio.

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Cf. Juan David Nasio: “a obra de arte [é] o protótipo da criação produzida por sublimação”, Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise, p.87. 22

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A sublimação consiste nessa zona intermediária entre a inércia do conflito pulsional que se apoia nas formas sócio-empíricas da objetividade com que o sujeito se defronta e uma lógica de aglutinação de elementos a partir da atividade imagético-imaginária estética, que surge precisamente pelo modo com que uma espécie de reflexividade intuitiva e retrospectiva inconsciente confere a suficiente visibilidade a princípios associativos que cruzam, atravessam e associam elementos de tal forma que sua dinâmica possui uma consistência cuja explicação, compreensão, não é mais traduzível por aquela própria dos mecanismos de simbolização.

Bibliografia Adorno, Theodor Wiesengrund. Ästhetische Theorie. Gesammelte Werke, vol. 7, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997. 110

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SUBLIMAÇÃO E PORNOGRAFIA NA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO: UM COMENTÁRIO CRÍTICO Verlaine Freitas

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HISTORICIDADE E AUTONOMIA DA ARTE Pedro Süssekind DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

113 TRATAREI AQUI DAS BASES FILOSÓFICAS EXPOSTAS NAS REFLEXÕES METODOLÓGICAS DE PETER SZONDI, um dos mais importantes teóricos da literatura

na Alemanha da segunda metade do século XX. Começo mencionando a crítica de Gadamer publicada em 1972 (um ano após e morte de Szondi), em um jornal literário de Zurique, a respeito da abordagem de um poema de Paul Celan. Em resumo, a consideração de Szondi sobre o poema recorre a detalhes biográficos, e o argumento principal da crítica é que não há necessidade de saber nada de particular e efêmero sobre um poema para interpretá-lo. O caso é mencionado em artigo de 2004 escrito por Alfred Zimmerlin,[1] que faz uma observação muito pertinente: se estivesse vivo, o crítico literário contestaria essa observação geral do filósofo com a demonstração de que a referência a dados biográficos era, naquele poema, uma exigência identificada a partir da análise dos próprios versos de Celan. Desde o primeiro curso ministrado por Szondi, em 1955, que tratava das Elegias de Duíno de Rilke,[2] seu método sempre privilegiou

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Zimmerlin, Alfred. “Verschwiegen und verstockt”. Zurique, Neue Zürcher Zeitung (24/12/2004). 2 Cf. Peter Szondi. Das lyrische Drama des Fin de siècle, p. 379. 1

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uma leitura próxima aos objetos de análise, na qual cada obra, em sua autonomia, fornece as premissas para sua interpretação. A riqueza de detalhes comentados sobre Rilke e sobre as circunstâncias em que as elegias foram escritas está o tempo todo, sem concessões, a serviço do esclarecimento dos poemas. Os fatores externos só aparecem na interpretação porque são elaborados de alguma maneira no próprio texto e se mostram necessários a partir da leitura, muito cuidadosa, como se Szondi olhasse os versos com um microscópio. Esse procedimento me parece semelhante ao do crítico literário brasileiro Antonio Candido, seu contemporâneo e um dos mais importantes teóricos da literatura do século XX no Brasil, que na Introdução da Formação da literatura brasileira, de 1959, afirmava concentrar todo o trabalho na leitura do texto, “utilizando tudo mais como auxílio de interpretação”.[3] Se sua intenção é “estudar cada autor na sua integridade estética”, a fim de “apreender o fenômeno literário da maneira mais significativa e completa possível”, isso se baseia na compreensão de que “cada obra de arte é uma realidade autônoma”, cuja importância não é devida “à circunstância de exprimir um aspecto da realidade, social ou individual, mas à maneira por que o faz”. A afinidade que indico aqui se revela particularmente nas introduções ou considerações metodológicas de Szondi, que defendem uma perspectiva histórica na teoria literária. Nesse sentido, é a precisão ao identificar as questões suscitadas nos textos que leva a conclusões abrangentes e inovadoras quanto à história da literatura. Tanto em seus cursos quanto em seus livros, Szondi reflete não só sobre as características e os limites dos gêneros poéticos modernos, como também sobre o modo como a obras particulares escapam dos parâmetros formais pré-determinados e sobre a relação entre a história e a interpretação das obras literárias. As bases filosóficas desse método de crítica que mergulha no texto sem perder a conexão com a história são explicitadas em mais de uma passagem por Szondi. Ele menciona a Filosofia da nova música, de Adorno, a Origem do drama barroco alemão, de Benjamin e a Teoria do romance, de Lukács, como referências para o rumo tomado pela filosofia da arte do século XX. Na introdução da Teoria do drama moderno, de 3

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Antonio Candido. Formação da Literatura Brasileira, p. 35.

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1956, esses três livros são nomeados como exemplos de uma abordagem que, sem retornar ao modelo normativo da tradição, insiste “no terreno da historicidade”, aberto por Hegel, e que colhe “os frutos da concepção dialética da relação forma-conteúdo, pois a forma passa a ser concebida como uma espécie de conteúdo ‘sedimentado’”. [4] A metáfora da sedimentação, retirada da Filosofia da nova música, expressa por um lado o que a forma tem de fixo e duradouro, e por outro o “poder enunciativo” que lhe confere o conteúdo, identificado como “sua esfera de origem”. Trata-se de uma via que, para Szondi, permite o desenvolvimento de uma “verdadeira semântica das formas, na qual a dialética forma-conteúdo passa a ser vista como dialética entre enunciados de conteúdo e enunciados formais”.[5] A possibilidade da contradição entre a forma e o conteúdo é considerada por Szondi como uma “antinomia histórica”: em vez de correspondência do tema, como um conjunto de problemas, ao enunciado fixo da forma, destaca-se um enunciado de conteúdo que põe em xeque o quadro da forma. Essa antinomia que torna “historicamente problemática uma forma literária” constitui a base para a teoria do drama moderno, no livro que leva esse título, como tentativa de esclarecer as soluções para aquelas contradições no campo do teatro. O tema da passagem das poéticas dos gêneros para a filosofia da arte de caráter histórico tem grande relevância nas reflexões metodológicas de Szondi. Tanto em Teoria do drama moderno quanto no Ensaio sobre o trágico, os textos introdutórios têm como tema a concepção de um processo de historização da poética, no qual se identifica uma ruptura, na estética alemã do final do século XVIII, em relação à tradição classicista de base aristotélica. Na época de Goethe, os gêneros artísticos passam a ser pensados como manifestações próprias de cada época, não mais como formas pré-estabelecidas, alheias à história, ou como regras prescritas para se obter o efeito visado. Há uma mudança de perspectiva, cuja consequência é que a reflexão sobre a arte deixa de estar ligada à determinação dos gêneros e ao ensino de sua produção, como acontecia nas poéticas tradicionais.

4 5

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Peter Szondi. Teoria do drama moderno, p. 19. Ibid., p. 20.

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Ao pensar a relação entre poética dos gêneros e estética filosófica da arte, Szondi esclarece os passos que foram necessários para uma teoria que, em vez de determinar os parâmetros para julgar as obras, permite uma análise crítica de cada uma delas sem se prender a regras. Seu interesse é justificar o tipo de crítica interpretativa que pretende fazer, por exemplo quando, a partir das próprias peças, identifica a crise do drama de que trata a Teoria do drama moderno. Considero a “Transição” – uma introdução da segunda parte – desse livro um texto especialmente relevante para a compreensão do método proposto por Szondi. Trata-se de uma discussão sobre o processo pelo qual a crise de um gênero possibilita ou impõe a alteração de sua forma tradicional, muitas vezes a partir de um campo temático novo. Mas as obras que revelam essa crise não têm, por pertencerem a um período de passagem de um estilo a outro, um caráter provisório. Pelo contrário, elas podem ser também obras-primas de determinado gênero, ainda que indiquem a sua crise, como ocorre com as peças de Ibsen, Tchekhov e Strinberg comentadas no livro. Transferindo para outros campos da arte o processo que analisara na dramaturgia, Szondi recorre a três exemplos de artistas cujas obras romperam com a forma tradicional de seus gêneros e influenciaram decisivamente novos estilos surgidos no século XX: Stendhal, Cézanne e Wagner. Embora ainda se desenvolva dentro da forma tradicional, pois aqui a psicologia dos personagens se torna o objeto analisado pelo narrador, o monólogo interior dos romances psicológicos de Stendhal penetra na interioridade dos personagens sem pressupor o distanciamento épico e desse modo prepara a ruptura que aconteceria na obra de James Joyce. Pois no stream of consiousness de Joyce não se reconhece um narrador épico e “o solilóquio interno se torna o próprio princípio formal”.[6] Já no caso de Cézanne, uma pintura que ainda se baseia no estilo tradicional representativo, portanto no princípio da observação imediata da natureza, “contém já a origem do aperspectivismo e do caráter sintético dos estilos posteriores”, por isso influenciaria todo o desenvolvimento da arte abstrata. Do mesmo modo, a música de Wagner permanece dentro do sistema tonal, contudo prepara o atonalismo de Schönberg. 6

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Peter Szondi. Teoria do drama moderno, p. 81.

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Os períodos de crise, nos quais se revela a antinomia histórica entre forma e conteúdo, evidenciam que uma obra de arte não é a mera realização de algo previamente dado, nem deve ser avaliada segundo a perfeição formal alcançada dentro das normas estabelecidas. Tampouco se deve tomá-la como exemplo para ilustrar a classificação histórica de uma época, ou caracterizar seus conflitos culturais. Para Szondi, cabe ao crítico enriquecer as obras com sua interpretação, e com isso esclarecer não só os rumos tomados pela arte, como também a historicidade inerente a cada obra. O Ensaio sobre o trágico, de 1961, também indica as bases teóricas da teoria literária de Szondi, especialmente nas justificativas teóricas expostas nos textos da “Introdução” e na “Transição”. O primeiro, “Poética da tragédia e filosofia do trágico”, explicita logo na frase inicial uma tese que posteriormente foi seguida ou discutida pelos teóricos da tragédia e do trágico: “Desde Aristóteles há uma poética da tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico”.[7] O segundo texto, “Filosofia da história da tragédia e análise do trágico”, não só discute a crise por que passava a filosofia do trágico na virada do século XIX para o XX, mas propõe uma resposta a essa crise encontrada, sobretudo, na teoria estética desenvolvida por Walter Benjamin. Os comentários da primeira parte servem, assim, para expor uma “tragicidade” inerente à busca de um conceito universal do trágico na filosofia alemã, enquanto as análises de tragédias, na segunda parte do Ensaio, baseiam-se na valorização de uma estética interpretativa, na constatação de que a teoria das obras de arte não deve buscar um conceito geral, nem usá-las para exemplificar determinados conteúdos conceituais. É de Benjamin que Szondi toma emprestada a noção de que cada obra revela uma configuração, ou uma “ideia”, que só a consideração dessa obra pode expor. Segundo Szondi, o método de Benjamin em A origem do drama barroco alemão “é filosofia, porque pretende conhecer a ideia e não a lei formal da poesia trágica, mas essa filosofia se recusa a ver a ideia da tragédia em um trágico em si, em algo que não esteja ligado nem a uma situação histórica, nem necessariamente à forma da tragédia, à arte em geral”.[8] 7 8

117 HISTORICIDADE E AUTONOMIA DA ARTE Pedro Süssekind

Peter Szondi. Ensaio sobre o trágico, p. 23. Ibid., p. 77.

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Dois volumes dos seminários de Szondi publicados postumamente, em 1974, são especialmente dedicados ao tema da mudança por que passou a reflexão sobre a arte a partir do final do século XVIII e do começo do XIX. Poética e filosofia da história I começa com uma consideração geral sobre o conceito de poética, que procura mostrar a passagem da poética normativa do Iluminismo, baseada na tradição clássica, para uma filosofia da arte inaugurada pelos pensadores idealistas. Já em Poética e filosofia da história II, o tema da transição é retomado em seu contexto restrito, ou seja, como passagem de uma poética dos gêneros normativa a uma poética especulativa que se insere nas estéticas posteriores ao período iluminista. Já na introdução do seminário de 1965 O drama lírico do fin de siècle, intitulada “História dos gêneros, história social e interpretação”, Szondi também aborda a questão da passagem das poéticas clássicas para a filosofia da arte de caráter histórico. Mas nesse texto ele reflete sobre o desdobramento dessa passagem no contexto da teoria crítica. Segundo ele, o processo de historização da teoria da arte, que culmina na estética de Hegel, pode ser visto como a transição de um modelo classificatório e normativo para um modelo sistemático e reflexivo, no qual importam menos as regras e os gêneros da arte do que os estilos e os significados epocais, culturais e políticos das obras. Vale lembrar, a esse respeito, que o objeto da filosofia da arte, como o próprio Hegel ensina na introdução de seus Cursos de estética, é exclusivamente a arte livre, aquela que não serve a fins morais ou ao entretenimento e que realiza a elevada tarefa de expressão das verdades mais profundas e abrangentes do espírito. No entanto, embora se baseie na noção de autonomia, para Szondi a visada sistemática das estéticas do século XIX enxerga as obras de arte como signos do pensamento, como representações expressivas de uma época ou estágio da evolução histórica do espírito. E essa classificação histórico-filosófica encadeia as obras no âmbito maior da história, como marcos de um processo, como peças de um sistema. Por isso, o sentido de uma nova transição, na filosofia da arte do século XX, diz respeito ao abandono da perspectiva sistemática, histórico-filosófica, em favor da hermenêutica. Adorno, Benjamin e Lukács, novamente citados no curso sobre o drama lírico, não pensam as obras como exemplos que ilustram a história da literatura, ou a história da arte em geral, mas procuram

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interpretar a forma e o conteúdo de cada obra particular, revelando a estrutura de continuidade ou de ruptura com o gênero de que fazem parte. Nas palavras de Szondi: “só a consideração que permite ver a história na obra de arte nos satisfaz, e não aquela que permite ver a obra na história”.[9] Isso porque “a história da literatura não é algo que exista fora das obras literárias, à maneira de um mapa em que bandeirinhas, as obras, marcassem certas posições...”. Considero decisiva essa mudança na própria noção de história que a estética contemporânea relaciona com a arte. A nova maneira de entender essa relação entre a obra de arte e a história inverte a perspectiva do crítico, uma vez que não permite a aplicação de definições previamente estabelecidas, sejam elas normativas ou histórico-filosóficas, para julgar as obras de arte. Na crítica do historicismo que marca a estética do século XIX, revela-se aquela afinidade metodológica que mencionei aqui, entre Szondi e Antonio Candido, que conclui em sua Formação da literatura brasileira: 119

Em suma, importa no estudo da literatura o que o texto exprime. A pesquisa da vida e do momento vale menos para estabelecer uma verdade documentária, freqüentemente inútil, do que para ver se nas condições do meio e na biografia há elementos que esclareçam a realidade superior

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do texto...[10]

A frase poderia servir como resposta para a crítica de Gadamer com a qual comecei esta exposição. Essa realidade superior do texto, que é uma outra maneira de chamar a autonomia da obra de arte, exige o tipo de leitura proposto por Szondi. O ponto de partida para a teoria da arte deve ser a interpretação das obras, mas se isso significa escapar do historicismo, também não implica formalismo. As informações biográficas e históricas, a definição do gênero e as referências intertextuais estão sempre à disposição da interpretação, na medida em que a crítica entra e se aprofunda na dinâmica absolutamente única de cada obra analisada, para assim revelar sua dialética de conteúdo e forma. Nas palavras de Szondi: 9 10

Peter Szondi. Das lyrische Drama des fin de siècle, p. 16. Antonio Candido. Formação da Literatura brasileira, p. 36.

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O que constitui a historicidade da obra de arte é a discussão, em cada obra, [...] entre aquilo que o artista pretende e aquilo que ele pressente, entre a intenção e a condição de sua realização, entre a forma historicamente tradicional e a matéria historicamente atual, portanto um passado e um presente, cuja comunicação na obra de arte nunca é totalmente bem sucedida, de modo que a obra também aponta para o futuro.[11]

120 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

Nesse caso, a crítica não abandona a reflexão social e histórica, mas compreende a história como algo de imanente a cada obra de arte particular. Ater-se à obra não é se restringir à análise da forma, ao texto presente diante de nós, e considerar a história como fator externo, como informação particular e efêmera, porque cada obra de arte “habita as três dimensões temporais, ou melhor: as três participam dela, constituem aquela tensão interna que é a sua historicidade”. Embora suas considerações mais gerais estejam muitas vezes inseridas nos textos metodológicos, que indicam o caminho a ser seguido em considerações críticas de obras literárias ou dramáticas, o método de Szondi implica uma discussão filosófica na qual identifico uma crítica estética da sociedade. A noção de historicidade, tal como formulada por ele, diz respeito à potencialidade crítica das obras de arte, cujas contradições internas entre forma e conteúdo põem em xeque a sistematização, a classificação e a incorporação dessas obras na cultura atual, como informações já compreendidas e decodificadas. A reflexão sobre a historicidade procura a tensão do conteúdo, o elemento não sedimentado da obra, aquilo que, por não se fixar como estilo ou como novidade cultural, ainda é capaz de surpreender e de fazer pensar.

Bibliografia Candido, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia (6ª edição), 1975. Szondi, Peter. Ensaio sobre o trágico. Tradução e introdução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

11 Peter Szondi. Das lyrische Drama des fin de siècle, p. 16-17. (Tradução minha.)

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––––. Teoria do drama moderno. Tradução e notas de Raquel Imanishi Rodrigues. São Paulo: Cosacnaify, 2ª edição, 2011. ––––. Teoria do drama burguês. Tradução de Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosacnaify, 2004. ––––. Poetik und Geschichtsphilosophie I. Studienausgabe der Vorlesungen Band 2. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1974. ––––. Poetik und Geschichtsphilosophie II. Studienausgabe der Vorlesungen Band 3. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1974. ––––. Schriften II. Frankfurt: Suhrkamp, 1996. ––––. Das lyrische Drama des Fin de siècle. Studienausgabe der Vorlesungen. Band 4. Frankfurt: Suhrkamp, 1975. Zimmerlin, Alfred. “Verschwiegen und verstockt”. Zurique, Neue Zürcher Zeitung (24/12/2004). ,

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121 HISTORICIDADE E AUTONOMIA DA ARTE Pedro Süssekind

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TEORIA CRÍTICA CONTEXTUALIZADA

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A TEORIA ESTÉTICA DE ADORNO – QUO VADIS? Bernhard Sylla UNIVERSIDADE DO MINHO

1.

125

DEFENDI JÁ em vários trabalhos anteriores[1] a tese da utilidade de usar ,

uma caraterística específica da filosofia da linguagem de Wilhelm von Humboldt como modelo heurístico para a interpretação de teorias filosóficas do século vinte que, de uma ou outra forma, dizem respeito ao fenómeno da linguagem. Humboldt apresentou quatro definições muito diferentes da essência da linguagem, com uma peculiaridade interessante: cada uma das quatro definições é formulada apodicticamente, de tal forma que as quatro definições se excluem reciprocamente, ou seja, cada uma delas reclama o direito de ser a definição mais essencial e mais fundamental. Penso que é possível reencontrar esta constelação de quatro definições ao mesmo tempo necessárias e, entre elas, contraditórias, como constelação de quatro leitmotive ou traços fundamentais de teorias filosóficas do século XX que necessariamente entram em conflito umas com as outras. Estando excluída a possibilidade de os harmonizar, eles mostram antes certos tipos de solidariedades e confrontações interteoréticas.

1

A TEORIA ESTÉTICA DE ADORNO – QUO VADIS? Bernhard Sylla

Cfr. SYLLA 2009, 2011a, 2011b.

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Nesta comunicação, pretendo mostrar como se pode aplicar esta ideia à interpretação da estética de Adorno. Neste âmbito, interessam apenas três dos quatro traços fundamentais que servem como leitmotiv para três modelos de pensamento diferentes que, com base na teoria humboldtiana, são os seguintes: • Modelo 1: O pensar e o agir são determinados por um sistema (em Humboldt: o sistema e as regras da língua materna). O sistema é ou possui um poder supraindividual, pois é a condição necessária para a constituição de todos os pensamentos e ações. • Modelo 2: Este modelo realça um poder individual, relacionado com a liberdade e espontaneidade do indivíduo, capaz de quebrar ou usurpar o poder do sistema. Este modelo reconhece a força quase insuperável do poder supraindividual do sistema, mas interprete-a como força de supressão, desdobrando os seus esforços em descobrir como se pode fugir a este poder ou quebrá-lo apesar da quase impossibilidade de viver sem ele.

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• Modelo 3: Realidade, pensamento e ação apenas se concretizam através TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

do diálogo entre seres racionais. Não apenas o nosso conhecimento do subjetivo e objetivo, mas também as nossas ações precisam necessariamente da coordenação intersubjetiva.

Julgo que (i) o pensamento de Adorno, e principalmente a sua estética, segue nitidamente o leitmotiv do Modelo 2 e (ii) que se aproxima “perigosamente” (WURZER 1997, 141; TKH 1, 516), precisamente por seguir este mesmo modelo de pensamento, da filosofia de Heidegger, e (iii) que as críticas de Habermas e Wellmer se fundamentam no favorecimento do Modelo 3.

2. Caraterística essencial de muitas teorias que encaixam no Modelo 2 é a afirmação de que a nossa situação antropológica ou sociopolítica é marcada pelo domínio de um poder supraindividual. Enquanto teorias de Modelo 1 costumam interpretar este poder como benéfico, as teorias de Modelo 2 vêem nele

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• um poder sistémico que pretende um domínio absoluto, • um poder totalitário pois exerce o seu domínio ao controlar e subjugar todos os atos individuais, • um poder destrutivo pois elimina tudo que não se lhe sujeita.

Todas estas caraterísticas se aplicam à análise adorniana do poder. • Em DA (Dialética do Iluminismo), o iluminismo é interpretado como pensamento que visa a subjugação e dominação da natureza, motivado inicialmente pela vontade de sobreviver face à superioridade das forças naturais. A dominação da natureza torna-se, no entanto, ela própria em natureza desenfreada, ao subjugar não apenas a natureza exterior, mas também a interior, a da nossa psique, e a natureza do Outro. • A prática deste domínio provém da redução da razão humana ao exercício do raciocínio calculador que transforma a razão humana numa razão meramente instrumental. • Esta tendência é suportada pelo facto de o ‘trabalho do conceito’ tender

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naturalmente para a supressão do particular, cujo entendimento se prende com a subordinação sob categorias, aspetos e conceitos mais gerais. A razão ela mesma, devido ao método do seu trabalho, possui traços totalitários.

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• O domínio da razão instrumental revela-se em fenómenos diversos: o filosofema do ‘mundo administrado’ parte do princípio de que a organização da sociedade segue critérios meramente calculistas. Depois de o poder do sistema ter substituído a força da natureza, o indivíduo tornou-se refém deste: ou ficou desamparado, exposto ao poder, ou totalmente manipulado. • A cultura das massas é vista como uma consequência direta do capitalismo tardio que, assim a tese inicial de Adorno que se baseava em análises de Friedrich Pollock, se transforma num capitalismo do Estado e na ditadura da burocracia de administração, onde o mercado das ofertas e procuras domina o mundo das necessidades individuais, tese essa que no entanto se verificou como precipitada, como mostrou Hohendahl (1995, 66s.).

Se partimos do meu ponto de vista acima apresentado, verificamos que outros autores associáveis às teorias do Modelo 2 revestem

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a instância do poder sistémico com as mesmas propriedades estruturais, sob pena de localizar esta instância em sítios diferentes. Roland Barthes, por exemplo, identifica este poder com o ‘mito’, e Heidegger deteta-o no ‘falatório’ (Gerede) e no pensamento cunhado pela ‘História da Metafísica’. Em Habermas, aliás, encontramos, na Teoria da Ação Comunicativa (TKH 1, 458s.), uma tese muito semelhante, quando alega que as estruturas organizacionais do dinheiro e do poder manifestam a tendência de vincular todo o agir exclusivamente com o seu êxito, tornando assim todo e qualquer agir em agir orientado em fins estratégicos e suprimindo de forma totalitária o potencial comunicativo inerente à própria linguagem. Dinheiro e poder, assim postulava Habermas, são meios organizacionais que se desfizeram das suas próprias origens na linguagem. Habermas, no entanto, visa superar esta tendência totalitária ao reforçar um tipo de agir que se orienta na geração de um entendimento mútuo. 128

3. TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

A filosofia de Adorno foi etiquetada como filosofia da resignação, como filosofia negra, como dialética que pretensamente se quer manter na negatividade. Após Auschwitz, quando se mostrou toda a envergadura da brutalidade do homo rationalis instrumentalis, já não se poderia filosofar. Contudo, a filosofia de Adorno, e principalmente a sua estética, constituem ainda assim uma reflexão sobre a possibilidade da resistência ao poder totalitário. E é aqui que entramos no cerne da filosofia de Adorno. Para demarcar claramente a posição peculiar de Adorno face a outras teorias do Modelo 2, será útil atentar em cinco aspetos da reflexão de Adorno em torno da problemática do poder individual (no sentido humboldtiano) capaz de fazer frente ao poder totalitário: (i)

Uma resistência direta ao poder mantém-se refém do sistema de poder.

(ii) Há que aguentar a situação do paradoxo, da aporia. Mesmo que não seja possível que a resistência seja definitivamente bem-sucedida, há que perpetuar e manter o ímpeto dela. (iii) Isto implica que não se deve suprimir nenhum momento particular da configuração dialética em questão, visto que o modo de

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funcionamento da supressão do poder se pauta pela supressão de momentos particulares. (iv) Por outro lado, Adorno sugere ainda uma outra via de solução. Segundo esta, haverá sim a possibilidade de a resistência ao poder absoluto se exprimir, ainda que não direta, mas apenas indiretamente. É neste contexto que surge a fórmula do ‘dizer do indizível’. (v) Em algumas passagens muito raras da sua obra, Adorno quebra a sua própria interdição de não avançar com utopias positivas.

Principalmente os traços (iii) a (v) são fortemente relacionadas com a filosofia estética de Adorno. Passo a uma breve explicação dos cinco aspetos apresentados.

3.1.

A convicção de que uma resistência direta ao poder se mantém refém do sistema do poder motivou claramente o posicionamento de Adorno face a várias correntes políticas, estéticas e filosóficas alegadamente revolucionárias. No que diz respeito ao agir político, é sabida a reação brusca e revoltante com a qual rejeitou qualquer laço de cumplicidade com os protestos do movimento estudantil em 1968, justificando esta posição com a alegada falta de mediatização dialética destes protestos. Sintomático é também que Adorno (tal como Horkheimer) tenha perdido a crença na possibilidade de uma revolução do proletariado já na altura do exílio durante a Segunda Guerra Mundial, pela principal razão de já não haver agente revolucionário algum. No que diz respeito a um ímpeto revolucionário na arte, Adorno também aqui rejeita que a resistência ao poder se possa realizar de uma maneira simples e direta. As violações de tabus, empreendidas pelos surrealistas e dadaístas, assentariam elas próprias em pretensões imperialistas, pois insinuariam que a mera quebra de normas fosse suficiente para derrubar o poder. A falta de sentido, diz Adorno (ÄT 230s.), não se deve apresentar como positividade simples e banal. A negação determinada que se exprime como afirmação não mediatizada não passa de uma afirmação bruta que em nada se distingue do puro

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poder (ND 136). Um tal ímpeto constitui, assim Adorno na Teoria Estética, o lado negro da obra de arte (ÄT 240). No que concerne à filosofia, Adorno rejeita uma qualquer filosofia que se fundamenta em afirmações inquestionadas. Alvos da sua crítica são, por um lado, o cientificismo e positivismo lógico à maneira de Carnap, Popper e Albert (cf. JAY 1988, 55), e ainda a filosofia analítica que, segundo Adorno (ND 40), bem poderia ser executada por robôs. O cerne desta crítica consiste na alegada fundamentação acrítica em afirmações inquestionadas. Contudo, um outro tipo de filosofia afirmativa que reside na hipóstase de uma qualquer entidade ou instância autêntica afigura-se-lhe ainda muito pior e merece invetivas mais intensas, como mostra o longo ensaio O Jargão da Autenticidade (JE). Embora a maior parte do texto se atenha à filosofia de Heidegger, não é este, como se poderia achar, o exemplo mais negro, mas antes autores como Jaspers ou Scheler. Heidegger, embora inimigo principal de Adorno, é tido como o mais perspicaz dos faladores de uma alegada autenticidade, como alguém que chegou até ao limiar da dialética negativa (ND 109ss.) mas que, ao fim e ao cabo, não a aguentou, voltando a instaurar o ser ou o Ereignis verdadeiro como instâncias ulteriores. É precisamente a consciência, ou para-consciência, deste recuo ao místico que faz com que Heidegger tenha mais culpa do que os outros, pois nele não há nenhuma ingenuidade que o pudesse desculpar. Daí que Adorno fale da desonra de família (ND 111) em Heidegger, i.e de uma traição de um saber melhor.

3.2.

Se, como sustentam Adorno e Horkheimer, não há conceito, racionalidade e iluminismo sem que lhe inerisse o momento do domínio, e sabendo que este domínio chegou ao seu pior com a catástrofe do Holocausto, então o paradoxo insuperável da nossa existência consiste em saber que a mera forma da nossa existência como seres racionais implica necessariamente uma envolvência em atos de supressão. Daí que a resistência contra o poder e o domínio apenas seja possível quando se resguardar o não conceitual, o que implica a salvaguarda da particularidade e da heterogeneidade do não-idêntico perante a ameaça da sua submissão sob o idêntico. Somente a arte, assim o

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postula Adorno nas suas obras tardias (ÄT 35, 173, 348), é capaz de conseguir uma tal resguarda. Só a arte é capaz de libertar o espírito do domínio coercivo, apenas ela terá a força para testemunhar o não mediatizado, a natureza e o não idêntico como algo ainda não completamente dominado. Contudo, esta libertação está condicionada devido a aporias fundamentais: A arte que pretenderia mostrar algo na sua unicidade peculiar teria que se situar fora da linguagem, pois a linguagem necessariamente generaliza. Mas para mostrar o único, o particular, o não-idêntico, ela também não pode prescindir da linguagem. A mesma aporia se manifesta na relação entre arte e sociedade (ÄT 475, 478): No mundo totalmente funcionalizado a arte pode ter apenas uma única função, a da não funcionalidade. Mas se esta última for elevada ao estatuto de um fim central, como acontece na divisa do l’art pour l’art e nos empreendimentos da vanguarda, então a arte será absorvida e ‘engolida’ pela sociedade; se, por outro lado, tentasse pactuar com a sociedade, então perderia a sua autonomia. 131

3.3.

A resistência contra a racionalização totalizante implica pois que a arte tenha a tarefa de impedir que qualquer um dos seus momentos seja totalizado. A arte não se deve determinar nem exclusivamente com base no sujeito, nem exclusivamente com base no objeto e nem exclusivamente com base na sua receção. A obra de arte não é idêntica com a intenção do artista, nem se apreende através da noção de génio e nem através do seu caráter de coisa ou de sua essência poiética, como acontece em Heidegger, e também não através do seu efeito como na estética de receção. Teorias intencionais, psicológicas ou institucionais revelar-se-iam pois todas como defeituosas. A arte também não pode ser definida através de um fim que lhe é exterior. Daí que a sua finalidade não possa ser a de uma crítica da sociedade. Ao invés disso tudo, Adorno favorece uma conceção formalista, segundo a qual a configuração cada vez única e específica de forma e conteúdo (ÄT 193, 211), de critérios subjetivos e objetivos e da relação peculiar e idiossincrática com as condições sociológicas específicas é o que mais importa. Visto que esta configuração não se manifesta de forma explícita e direta, mas

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apenas indireta e implicitamente, ela precisará da ajuda do esforço e do trabalho da reflexão para se desvendar, e é daí que a arte necessite da filosofia para alcançar a sua verdade. O método para chegar a essa verdade, i.e. a determinação da verdade singular e única de cada obra de arte e do modo como forma e conteúdo estão imbricados nela, no fundo apenas e somente pode ser um método negativo.

3.4.

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Pois a resistência tem de enfrentar, necessariamente, a aporia inextrincável de ter de usar os meios que ela própria combate rigorosamente.[2] Uma qualquer reflexão que pretende inteirar-se da unicidade de uma obra de arte exercerá, necessariamente, uma forte coerção sobre a própria obra de arte pelo simples facto de proceder a generalizações inerentes ao exercício da razão. A arte anseia a resguarda das entidades vítimas de supressão, e o termo geral para estas entidades é o da Natureza. A função do sublime que a Natureza possuía na filosofia de Kant ainda se mantém segundo Adorno, mas sofreu alterações fundamentais. O sublime enquanto experiência espiritual do absoluto, feita na natureza, apenas se deixará experienciar negativamente, uma vez que a instrumentalização, a supressão e o terror se tornaram a única expressão do absoluto. Como a natureza se tornou ubiquitariamente objeto de violação, a temática subjacente às verdadeiras obras de arte não pode ser outra. Se a arte pretendesse dizer isto de maneira direta, ela fracassaria porque participaria no ato de violação. A única maneira que lhe resta para acusar esta violação é a sua capacidade de a exprimir indiretamente, como espelho monádico da configuração supressiva. O dizer do indizível, temática prototípica das teorias do Modelo 2, associa-se pois com o destaque de todas as formas de um dizer indireto, que fala ou através da significância da relacionalidade específica da sua configuração, ou através do não dizer, do silêncio, ou do mero indicar enquanto gesto mudo que não pode falar se não quer trair os seus próprios fins (ÄT 2 Este é um aspeto fundamental de quase todas as teorias do Modelo 2 (i.e. de Nietzsche, Heidegger, Barthes, Lyotard, Rorty etc.).

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137). Obra em que tal dizer estaria posto em prática é, segundo Adorno, para mencionar um exemplo, a de Samuel Beckett.

3.5.

São extremamente raras as passagens na obra de Adorno em que ele quebra as suas próprias interdições ao dar formulações positivas de um estado utópico de paz e reconciliação. A formulação mais conhecida consta do pequeno ensaio “Zu Subjekt und Objekt“ [“Sobre Sujeito e Objeto”], como notaram, entre outros, Habermas (TKH 1, 523ss.) e Jay (1988, 61). Segundo esta formulação, a paz entre homem e homem, e entre homem e natureza, seria o estado de uma distinção feita sem implicar o domínio e em que as partes distintas participariam, reciprocamente, uma na outra (KG II, 743). Embora esta paz seja, em princípio, inatingível, haverá que persistir na resistência, sendo isso apenas possível se se mantiver a esperança ligada à antecipação utópica da paz (ÄT 383).

4.

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É precisamente este tópico da obra de Adorno sobre o qual incidiram as críticas da segunda geração da Escola de Frankfurt feitas a Adorno. A sua objeção fundamenta-se nos argumentos da acima mencionada teoria do Modelo 3, alegando que o erro mais grave de Adorno e de Horkheimer residiria em não ter reconhecido que a razão não pode simplesmente ser reduzida a uma parte deficiente sua, ou melhor, ao seu uso instrumental. A razão, devido à estrutura dupla locucionária e ilocucionária de todos os atos de fala, é essencialmente comunicativa e exige por natureza própria que uma qualquer pretensão de validade seja legitimada e justificada linguisticamente. Como uma tal justificação, sob o ponto de vista ideal, apenas se deixa realizar quando o agente está liberto de coerções, não se deve abdicar deliberadamente da exigência ética de esforçar-se o máximo para garantir que haja condições para a realização prática deste fim. Não se pode nem se deve, assim sublinham Habermas (TKH 1, 523ss.) e Wellmer, permanecer num estado de profunda resignação, mas antes dever-se-á manter a esperança no efeito

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benéfico dos atos de comunicação não coercivos, uma vez que o próprio Adorno teria destacado a mediação não coerciva entre sujeito e sujeito, e sujeito e objeto, como método primordial capaz de conduzir à reconciliação e à paz. Adorno, assim reiteram Habermas (PDM 154) e Wellmer (1997, 124), no fundo não quer uma transformação da realidade social, mas persiste teimosamente nas teias de uma metafísica do sofrimento total, insistindo na ideia da história do mundo como catástrofe perpétua (cf. ND 292s., 314). Como em Benjamin, na sua interpretação tardia do quadro Angelus Novus de Paul Klee (Ben I, 697f.), o anjo da história do mundo, olhando para o passado, é puxado em direção ao paraíso, porém, o seu olhar é dirigido para a direção inversa, para o passado histórico, não sendo capaz de desviar o olhar do cenário pavoroso que este passado apresenta: um monte de destroços que não para de aumentar. E tal como Benjamin (1992, 196), Adorno também rejeita categoricamente a ideia da comunicação como meio mais propício para a realização da utopia de reconciliação. Tampouco é, segundo Adorno, um critério decisivo no que concerne à explicação de uma obra de arte (ÄT 167).

5. Quais as conclusões que se poderão tirar destas reflexões? Por um lado pretendi mostrar que as controvérsias entre Habermas e Adorno se deixam ler, através da religação com as ideias de Humboldt, como uma controvérsia que transcende o contexto limitado destes autores ou do conflito de gerações da Escola de Frankfurt, por mostrarem traços que se encontram em muitos outros modelos de pensamento do século XX. Caraterístico da teoria de Adorno no âmbito das teorias de Modelo 2 é que ela se opõe rigorosamente a uma qualquer solução fácil para a dialética aporética entre poder sistémico e poder individual, entre supressão e resistência. Adorno prefere aguentar a situação paradoxal e refleti-la profunda e incessantemente, enquanto as teorias de Modelo 3 depositam grande confiança na razão comunicativa. Embora as duas teorias se comprometam com o ideal democrático[3], parece-me que Facto que é óbvio no que diz respeito às teorias de Habermas e Wellmer; mas também Adorno sublinhou explicitamente que a crítica, tal como ele a entende, é essencial à 3

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as divergências teóricas não se deixam homogeneizar pelo simples facto de ambos os modelos se orientarem no mesmo ideal, i.e. a democracia. Enquanto Habermas deposita grande confiança em formas institucionalizadas de diálogo, para Adorno, um único caso em que um indivíduo se torna vítima do sistema ou dos seus efeitos colaterais (como por exemplo o caso atual do suicídio de um reformado frente ao Parlamento grego motivado pelas rigorosas medidas de austeridade) mostraria que o conceito de sociedade, por muito democrático que seja, ainda contém alguma falsidade. Detetar essa falsidade e persistir em criticá-la, mormente por meio da arte e de reflexões estéticas, é um aspeto da teoria estética de Adorno que não cessa de ter relevância para o pensamento hodierno e futuro.

Bibliografia Adorno, Theodor W. (1993), Ästhetische Theorie, hrsg. v. Gretel Adorno und Rolf

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Tiedemann, 13. Aufl. Frankfurt/M.: Suhrkamp [=ÄT] Adorno, Theodor W. (1996a), Gesammelte Schriften, Bd. 6: Negative Dialektik [=ND]. Jargon der Eigentlichkeit [=JE], hrsg. v. Rolf Tiedemann unter Mitwirkung von Gretel Adorno, Susan Buck-Morss und Klaus Schultz, Frankfurt/M.: Suhrkamp

A TEORIA ESTÉTICA DE ADORNO – QUO VADIS? Bernhard Sylla

Adorno, Theodor W. (1996b), Gesammelte Schriften, Bd. 10.2: Kulturkritik und Gesellschaft II, hrsg. v. Rolf Tiedemann unter Mitwirkung von Gretel Adorno, Susan Buck-Morss und Klaus Schultz, Frankfurt/M.: Suhrkamp [=KG II] Benjamin, Walter (1972), Gesammelte Schriften, Bd. I: Abhandlungen, unter Mitwirkung v. Theodor W. Adorno hrsg. v. Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt/M.: Suhrkamp [Ben I] Benjamin, Walter (1992), Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, trad. de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto, prefácio de Theodor W. Adorno, Lisboa: Relógio D’Água Habermas, Jürgen (1982), Theorie des kommunikativen Handelns, Bd. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung, 2. Aufl., Frankfurt/M.: Suhrkamp [=TKH 1] Habermas, Jürgen (1988), Der philosophische Diskurs der Moderne. Zwölf Vorlesungen, Frankfurt/M.: Suhrkamp [=PDM] instituição da democracia (KG II, 785).

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Hohendahl, Peter Uwe (1995), Prismatic Thought. Theodor W. Adorno, Lincoln & London: University of Nebraska Press Horkheimer, Max und ADORNO, Theodor W. (1984), Dialektik der Aufklärung, 10. Aufl., Frankfurt/M.: S. Fischer [= DA] Jay, Martin (1988), As idéias de Adorno, trad. de Adail Ubirajara Sobral, São Paulo: Editora Cultrix. Pensky, Max (ed.) (1997), The Actuality of Adorno. Critical Essays on Adorno and the Postmodern, edited and with an introduction by Max Pensky, New York: State University of New York Press. Sylla, Bernhard (2009), Hermeneutik der langue: Weisgerber, Heidegger und die Sprachphilosophie nach Humboldt, Würzburg: Königshausen & Neumann Sylla, Bernhard (2011a), “Roland Barthes: linguagem e ‘violência’”, in Pensar Radicalmente a Humanidade, Ensaios em Homenagem ao Prof. Doutor Acílio da Silva Estanqueiro Rocha, coord. de João Cardoso Rosas e Vítor Moura, Braga: Universidade do Minho, 81-98 Sylla, Bernhard (2011b), “O conceito de linguagem implícito no texto. A relação 136

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TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 113-125 Wellmer, Albrecht (1997), Adorno, Modernity, and the Sublime, in PENSKY 1997, 112-134 Wurzer, Wilhelm S. (1997), “Kantian Snapshot of Adorno: Modernity Standing Still”, in PENSKY 1997, 135-153

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HIPERMODERNIDADE, CIDADE E VIOLÊNCIA EM JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES Sandra Guerreiro Dias [email protected] (CES/FLUC)

I know I am nowhere, here. Paul Auster 137 PENSAR A POESIA COMO REFLEXÃO TEÓRICA E ESTÉTICA ENQUANTO “RECORTE DOS TEMPOS E DOS ESPAÇOS” OU RUÍDO QUE “DEFINE, simultaneamente, o lugar e

o intuito da política […] [como] experiência” (Rancière, 2010: 14) traduz-se, em Joaquim Manuel Magalhães, numa “apática directiva aleatória” sobre um qualquer “assunto acidental provisório”; como desobediência possível – “Desobedeço” (cf. Magalhães, 2010: 78). A insubmissão é quase sempre neste poeta, a transgressão à trivialidade da violência, ao hiato que se estabelece entre o corpo comum e os espaços urbanos “vazios de significado” que devem a sua presença-fantasma ao caos do mundo (cf. Bauman, 2001: 121). Em os dias, pequenos charcos (1981), Magalhães refere que se chama sossego ao “terror que traz um corpo livre a ficar preso / noutro corpo livre”, a “essa / violência, / exclusão” (Magalhães, 1981a: 60). A deriva aleatória realiza-se, neste poeta, na errática desrealização dos sentidos que o mesmo simultaneamente profere, usa e combate; qual recusa de “orações fúnebres” (Adorno, 2008: 15). É uma estrada de dois caminhos e um sentido, um em direcção ao outro, em cuja linha de embate se produzem “polaridades fugidias” (Augé, 2005: 68) entre o não-lugar da cidade e o lugar da escrita, ambos implicados entre si no realinhamento dos “antagonismos não resolvidos” (Adorno, 2008: 18).

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HIPERMODERNIDADE, CIDADE E VIOLÊNCIA EM JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES Sandra Guerreiro Dias

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Para uma teoria urbana da violência estética

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Bernd Hüppauf observava em 1997 que a modernidade contemporânea produziu a “ubiquidade da violência” (p. 24), que, reforçada pela imagem da sua omnipresença fatigante[1], produziu no discurso crítico um certo aspecto de perversidade e urgência (cf. p. 25). Assim a guerra deixou de ser um estado de excepção, como escreve Magalhães: “Balas, foguetões, florestas ardendo sob um céu / de papel feito de tratados de paz / […] Vinda de escuros locais, nas assembleias do mundo, / a morte cercando os gestos sem armas e com armas” (Magalhães, 1975: 27). Bishop e Phillips (2006), por seu turno, chamam a atenção para as “aporias da violência” que os conceitos empíricos, materialistas ou formalistas desconsideram, produzindo por sua vez tentativas inadequadas para pensar este fenómeno como categoria epistemológica (p. 377). Por outro lado, esta parece hoje esgotar-se na redundância de um exercício de racionalidade simulada, num mundo onde a justificação foi entretanto substituída pela infindável simulação em operacionalidade objectiva (cf. idem p. 384). Shinkel (2010), num estudo recente sobre definições de violência e violência nas ciências sociais, refere-se ao paradoxo dos “blind spots”, ausentes dessa racionalidade, sublinhando a necessidade de se observar radicalmente a insuficiência teórica destes modelos autotélicos, e de, em seu lugar, se incorporar as condições da impossibilidade na própria análise [2]. Assim considerar Sobre imagem e violência na sociedade contemporânea, considere-se o trabalho de Susan Moller que, em Compassion Fatigue, How the Media Sell Disease, Famine, War and Death (1999), chama a atenção para o seguinte: “The media decide what in the world is worth covering. (…) And the manner in which they do so influences our concern for those ‘others’. (…) What’s happening most often is nothing but bad news. And that is fatiguing” (p. 320); ou ainda, Susan Sontag (2003), sobre o mesmo assunto: “Afogados em imagens (…) estamos a perder a nossa capacidade de reagir. A compaixão, reduzida aos seus limites, está a ficar embotada” (p.113). 2 Como o próprio explicita: “To observe the blind spots of the social science of violence within social science itself is to bring into social science the blind spots that are the conditions of possibility of its ability to observe. Such a ‘re–entry’ is not without paradoxical consequences. One of these is the observation that the social scientific observation of violence is not without violence; it is characterized by its own violence. Such paradoxes 1

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os limites de uma teoria da violência implica mobilizá-la na relação com as estruturas significantes socialmente estabelecidas e activá-la enquanto “descrição densa” (Geertz, 1973) das variações lógicas e ilógicas da “contracção do presente (…) num instante fugidio, entrincheirado entre o passado e o futuro” (Santos, 2002: 239). Ao operacionalismo do dogma metodológico opõe Clifford Geertz, a recusa da promessa de tudo explicar, propondo-se, em seu lugar, a deslocação do esforço analítico para a observação consistente dos fenómenos em concreto (cf. Geertz, 1973: 10). A substância das formas culturais reside nos sentidos que activa; “Os olhos vão fechar-se. Toda a noite / tentei dizer-te o que não diria” (Magalhães, 1981a: 85); a análise cultural é intrinsecamente incompleta (cf. Geertz, 1971: 29), interpretativa, contingente. O que é real sobre a realidade é o pensamento, a resistência, a obstinação, ou seja, o questionamento dos limites (cf. Bauman, 1994: 153). A ocidentalização, a emergência das comunicações globais e o desenvolvimento dos transportes concorreram para a recente reformulação do conceito de urbanização como “processo social que abarca todas as formas espaciais” (Peixoto, 1990: 85). Assim a cidade dos nossos dias designa tanto o “espaço restrito da vida dentro dos limites da urbe” como também a “totalidade da experiência na sociedade pós-industrial contemporânea” (Matos, 1999: 85); ou ainda a perda do corpo em face da espectralidade do longínquo: “As nossas cidades […] estão numa situação absolutamente catastrófica. Elas encontram-se, hoje, à beira da implosão. A tendência é para a desintegração da comunidade dos presentes em benefício dos ausentes” (Virilio, 2000: 48). Nesta ausência, ganham relevo um novo conceito de “violência legítima” tornada elemento constitutivo das sociedades modernas (cf. Hüppauf, 1997: 14), e a omnipresença do “terror entre nós”, agora amplificada pelos média globais (cf. Hyvärinen e Muszynski, 2008, p. 10). Na produção dos “não lugares”[3] da “sobremodernidade”[4] em excesso, participam,

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are, however, what needs to be endured if aspects of violence are to be observed scientifically at all” (Shinkel, 2010: 229). 3 Conceito que designa duas realidades: os “espaços constituídos em relação com certos fins […], e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços” (Augé, 2005: 79). 4 ‘Sobremodernidade’ é um conceito formulado por este autor na obra Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade (2005) e que o mesmo explicita da seguinte forma: “O que é novo não é que o mundo não tenha, ou tenha pouco, ou menos,

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de acordo com Augé (2005), a superabundância temporal, espacial e a individualização das referências (cf. p. 91), situação em que a cidade emerge como paradigma por excelência da ausência dos corpos em relação com o tempo e o espaço. Como explica Bauman (2001), a cidade pós-moderna tornou-se na “inevitabilidade de uma adiada passagem, às vezes muito longa, de estranhos, [que] […] fazem o que podem para que a sua presença seja ‘meramente física’ e socialmente pouco diferente, e […] indistinguível da ausência” (p. 119); como em Magalhães, para quem a cidade é o excesso de corpo banhado sem história, o vivo pressentimento das palavras excessivas que desaparecem quando contadas, como escreve: Narro para ti uma cidade que existe / e transfiguro, / a imagem de um corpo banhado por um rosto. / Procuro palavras para ta contar / entre este vivo pressentimento de não ter história. /Tu vês o que vês? / Tu falas para mim com as palavras / com que para mim tentas falar? / A cidade 140 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

desaparece na cidade (Magalhães, 1974: 23).

A relação dos espaços urbanos pós-modernos com os fins e dos indivíduos para com os mesmos autonomiza-se, segundo Bauman, na condensação dos acontecimentos num agora sempre transitório, amnésico e desértico (cf. Bauman, 1994: 140). À experiência violenta do espaço, na cidade, profundamente marcado pelas condicionantes históricas da emergência do capitalismo [5] – os “edifícios decrépitos são a prova da fidelidade ao Evento” (Žižek, 2006: 24) – junta-se pois, no “não-lugar”, a experiência violenta do tempo [6]. Na pós-modernidade do excesso, sentido, é antes que experimentemos explícita e intensamente a necessidade quotidiana de lhe dar um: dar um sentido ao mundo, e não a certa aldeia ou a certa linhagem. Esta necessidade de dar um sentido ao presente, senão ao passado, é a contrapartida da superabundância de acontecimentos que corresponde a uma situação que poderíamos dizer de ‘sobremodernidade’, a fim de darmos conta da sua modalidade essencial: o excesso” (Augé, 2005: 28-29). 5 Charles Baudelaire foi o primeiro teorizador da cidade no capitalismo avançado, em Le Peintre de la Vie Moderne (1863) e Le Spleen de Paris (1869), entre outros; esta leitura foi depois ampliada por Walter Benjamin, o primeiro a reconhecer o flâneur como uma figura culturalmente significativa da modernidade. 6 Ali “tudo se passa como se o espaço fosse recuperado pelo tempo, como se não houvesse outra história senão as notícias do dia ou da véspera, como se cada história individual

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a cidade é o lugar hiper-real do tempo e do espaço rarefeitos, produto de “síntese[s] irradiando modelos combinatórios num hiperespaço sem atmosfera” (Baudrillard, 1991: 8), portanto de separação de um, do outro. Desta forma, o “não-lugar” abre-se à amputação extrema do indivíduo, da sua história e de si próprio. Nesta hiper-realidade [7] dos espaços, o flâneur ocupa o lugar de estranho exilado na multidão, qual flâneur baudelairiano que, imerso, se perde no seu vago reflexo, porquanto o exílio constitui simultaneamente condição de isolamento e de liberdade[8]; porque o anonimato permite que se atravesse o vazio com as estradas que cria nos caminhos por que erra que são as sequências de tempo preenchidas pela imaginação (cf. Bauman, 1994: 141). É neste exercício que se joga a possibilidade extrema de ensaiar a contingência da realidade irreal através da imaginação subversora, o texto, possibilidade de suspender o controlo que a realidade sem controlo exerce sobre o sujeito para quem o poder da fantasia passa a ser o seu único limite, o único necessário – “life as a bagful of episodes none of which is definite, unequivocal, irreversible; life as play” (idem: 142). Michel Certeau (1993) lembra que a sociedade do desenvolvimento técnico que conduziu à falência das ideologias é a mesma que transforma as crenças em lendas agora ainda mais carregadas de sentido e de intensa necessidade de sonho; assim o imaginário que reporta originalmente à ausência representa simultaneamente a recusa da perda (cf. pp. 33-35). Este exercício de redefinição dos itinerários simbólicos da cidade importa à análise da representação da violência urbana enquanto “acto intercomunicativo” (Heller, 1991) que cria o desejo para criar imagens, que, em Magalhães, podem ser de esperanças ou de medos: “A linguagem basta para dizer o que me cerca. / Mas o que não me cerca que palavras o dirá? / Ouvi cantar os locais donde o frio partia, / canas atravessadas de pequenas aves, / dos inquietos pirilampos e das

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extraísse os seus motivos […] do stock inesgotável de uma inexaurível história no presente” (Augé, 2005: 88). 7 Usa-se a partir daqui o termo hiper-real e correspondentes sem aspas, remetendo-se no entanto sempre para o conceito conforme formulado por Baudrillard em Simulacros e Simulações (1991). 8 Como Hart Crane, “o poeta abandona a alta torre do seu isolamento e entra no mundo, destrói-o e reconstrói em vez do mundo que destruiu, a ponte para a sua imaginação” (Uroff, 1971: 205).

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relas. / O desejo é o limite da exclusão, uma janela” (Magalhães, 1981a: 42). A linguagem sobre o imaginário da cidade, fazendo uso daquilo que Certeau designa de “signos de distanciação”, denuncia e soletra ausências, porque as distingue das realidades [9]. Trata-se de captar o que subsiste da hiper-realidade violenta do capitalismo avançado e, nesse acto político do jogo simbólico da representação, subsistir pelo excesso em linguagem.

Cidade-fantasma, espectáculo do texto na era da violência avançada Em Joaquim Manuel Magalhães, o impaciente quotidiano citadino provoca o assombro e o devaneio que o poema devolve sob a forma de conflito em excesso face à violência hiper-real, processo assim explicitado pelo autor no poema “primeiro” do livro Três Poemas (1975): 142

Um espelho onde um ser de carne se reflecte / nada reivindica do real, / TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

aumenta ou diminui-lhe os elementos, / destrói–os: a arte é isto?: / correcção, real aperfeiçoado, divindade? / A exaustão, os recursos escassos? […] / A obra limita-se a apresentar / o erro, os abismos puros, as barreiras. / […] / Contrária consciência, conflito que não leva ao excesso. / Eros, nós sabemos, culmina com a morte. / A arte mata (Magalhães, 1975: 8).

A retórica do não-lugar do novo flâneur é agora a da confirmação dos conflitos, tornando-se ele mesmo o “agente provocador” que não pode se não ver o mundo e, expropriando-se dele, ainda mais sozinho, perder-se sem outro objectivo que o de não ter objectivo [10]. Ou o objectivo pode ser o de experimentar o “jogo de libertar e divertir”, O historiador francês explicita este processo de despossessão do seguinte modo: “Pour être prononcée, la parole s’oppose au manger, et son contenu ne dit rien. Elle retire de la consommation ce qu’elle donne à entendre. Par sa fonction, elle est vouée au travail qui insinue constamment l’écart dangereux ou la faille critique d’un manque dans la certitude béate de la satisfaction. Elle dénie la réalité du plaisir pour instaurer la signification symbolique” (Certeau, 1993: 41). 10 Bauman vai mais longe na sua análise ao propor que o novo flâneur é aquele que precisamente se recusa a sê-lo: “In the post-modern world – that flâneurisme writ large, 9

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e de nesse jogo, recriar e renegociar o seu próprio lugar de sujeito imerso na violência da sua “inércia crescente” [11], já que flâner, na época do pós-capitalismo, significa, de acordo com Bauman, jogar o jogo do jogando, meta-jogo no qual o acto de jogar é consciente de si como jogo, maduro e puro. Neste sentido a sua tarefa passa a ser “a de ensaiar o mundo como um teatro e a vida como um jogo” (cf. Bauman, 1994: 146). A narrativa assim concebida como espaço, isto é, forma de transgredir o lugar, traduz-se, de acordo com Certeau, no acto e uso de “delinquência” porque “atravessa, transgride e consagra o ‘privilégio do percurso sobre o estado” (Certeau apud Augé, 2005: 69). Espaço de ancoragem temporária na volatilidade da sobremodernidade, o texto substitui-se à lógica do espelho, passando a reproduzir ele próprio o caos dessa sobremodernidade em excesso, a ilegibilidade, a cerração, autocontemplação contida do abismo, experiência aporética do terror, como escreve Magalhães: Isto não é uma cidade, inútil dizes. / Da névoa sobe outra névoa e desta

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/ uma tão clara cerração que o pensar / se fende noutro pensar que é movimento / para outro pensar ainda/ […] A cidade cresce dentro disto, / destas rápidas manhãs, destas tardes / cobertas pela neblina / deste pó sobre ilegíveis letras (Magalhães: 1974: 39).

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Para Diamond (1991), a representação da violência pode ser também a da experiência teatral do horror, uma mise en scène da violência da ideologia, da farsa histérica do acto repressor, o paralelo linguístico de uma pantomima de corpos mutilados (cf. p. 177) ou a possibilidade de manter, recriando, a tensão entre a crítica e a transformação (cf. p. 178), que se encontra também em Magalhães [12]. Neste sentido, a escrita da violência reconduz a construção da perspectiva, revogando conceitos flâneurisme commercially triumphant in its defeat – it takes a heroic constitution to refuse being a flâneur” (Bauman, 1994: 154-155). 11 Conforme Žižek, a contrapartida da “monotonia do capitalismo global”, da “ausência de um Evento”, naquilo que constitui, segundo, Benjamin a “dialéctica imóvel”, é a “inércia crescente do ser/existêncial social” (Žižek, 2006: 23). 12 “O próprio corpo pede que se finjam / sonhos, profecias e as fadas / quantas cem vezes as pensei. / Ao fundo da razão ouvem-se romper / glosas, danças e as chamas / abrem as portas exiladas” (Magalhães, 1981a: 34).

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e sugerindo novos modos de percepção, como em Deleuze [13]. Assim a multiplicação de impressões sobre os cenários de violência urbana traduz-se na elaboração de “aglomerados”[14], como em Rimbaud, que agrupa visões justapostas, vistas de forma simultânea (cf. Israel, 1971: 32[15]). O processo configura uma síntese de deslocamentos de olhares e perspectivas sobre diversos fenómenos e temas recorrentes da violência pós-industrial. Estas transferências sugerem a recolocação da curiosidade do poeta pós-moderno no processo e na incerteza desse processo, o que decorre de uma tentativa de sistematizar modos de pensamento. Do instante da tensão e da incerteza decorre a tentativa de redizer, que, enquanto momento de despossessão, restabelece a tentativa do sentido, como em seguida: No meio das frases destruídas, / de cortes de sentidos e de falsas / imagens do mundo organizadas / por agressão ou por delírio / como vou saber se a diferença / não há-de ser um pacto novo, / um regresso às histórias e às / árduas gramáticas da preservação? / Depois dos efeitos da recusa / se

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dissermos não, a que diremos / não? / Que cânones são hoje dominantes TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

/ contra que tem de refazer-se a triunfante inovação? / Voltar junto dos outros, voltar / ao coração, voltar à ordem / das mágoas por uma linguagem / limpa, um equilíbrio do que se diz / ao que se sente, um ímpeto / ao ritmo da língua e dizer / a catástrofe pela articulada / afirmação das palavras comuns (Magalhães, 1981a: 13).

De acordo com Žižek, a filosofia do cutter reside na tentativa de escapar, pela automutilação, não só ao virtual artificial do mundo como ao “próprio Real” das “alucinações incontroladas” que decorrem da ausência de um espaço de ancoragem (cf. Žižek, 2006: 36). Partindo de Adorno, Barrento (1995) relembra que, na relação com o tempo, o Segundo Deleuze, a “literatura [que] começa com a morte”, deve “alcançar desvios femininos, animais, moleculares, e todos os desvios são um devir mortal. Não há linha direita, nem nas coisas nem na linguagem” (Deleuze, 2000: 12). 14 De acordo com José Miguel Silva (2003), a poesia de Joaquim Manuel Magalhães move-se “num enredo de referências concretas, de enumerações, de acumulações, de associações de imagens; que tende para uma articulação narrativa e por vezes descritiva, mas onde o fio discursivo é quase sempre solapado, subvertido na sua linearidade” (p. 80). 15 Israel usa o conceito de S. Bernard “agglomerate” para se referir à poesia de Rimbaud. 13

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poema é “um ‘relógio de sol’ em cujo quadrante é possível ler os movimentos, as zonas de sombra e de luz, de uma filosofia da História” (p. 157). Acrescenta que na poesia portuguesa recente − que apelida de “crepuscular e saturnina” −, está presente “uma consciência vígil do tempo da escrita, deste nosso fim de época marcado por sinais de uma negatividade que encontra o seu lugar nesta poesia em termos de figuras ambíguas da ausência, da ruína e da morte” (p. 158). Já Martelo (2004) identifica na tematização do espaço urbano, emergente com a modernidade estética, um dos tópicos fundadores da poesia portuguesa dos finais do séc. XX (cf. p. 250), referindo que a solidão do poeta ‘moderno’ no interior da multidão urbana, bem como o olhar niilista e fugaz que lança à sua volta, constituem traços reconhecíveis do mundo contemporâneo e da literatura portuguesa recente (cf. p. 238). Ambos os autores indicam a poesia de Magalhães como exemplo paradigmático destas duas tendências [16]. A exaltação subversiva que parece ditar as regras da poesia [17] deste autor conduz o poeta à “potência de um impessoal” (Deleuze, 2000: 13) no hiper-real lugar do mundo, forma de presença na linguagem que ensaiando o tempo, se reescreve na relação com o esquecimento que o acto de escrever consigna; esquecimento que é, em primeiro lugar, o do “atalho confuso”, a cidade, onde o “Peregrino sem viagem” (Magalhães, 2010: 141) se detém para se retirar. Hyvärinen e Muszynski consideram, num estudo recente sobre arte e violência, que a linguagem artística cria “espaço para o processamento artístico da experiência da violência” (Hyvärinen e Muszynski, 2008: 4). Para Magalhães, em a poeira levada pelo vento (1993), a experiência do quotidiano violento da cidade determina a tentativa do interdito – “chegou à minha tentativa / o interdito” (p. 17) –, porque falta “toda a

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Diz Barrento: “O programa de Joaquim M. Magalhães, que haveria de orientar tanta da nossa poesia até hoje, está todo […] ele ponteado pelos sinais da melancolia e pelos códigos da elegia moderna enquanto modo de afirmação estética de uma perda” (Barrento, 1995: 158-9); acrescentando-se mais adiante que juntamente, com Pinto do Amaral, as obras destes dois autores “colocam-nos nas origens da constelação saturnina que ainda nos rege, descobrindo[-se] na sua poesia aquela capacidade crítica […] de activar o ‘sentimento expressivador da melancolia face às repressões’, i. e., a tabus e interdições de vária ordem’” (idem: 159). 17 “O escritor enquanto vidente e ouvinte, objectivo da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as ideias” (Deleuze, 2000: 16). 16

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explosão do mundo” no “interstício dos gonzos / na dobradiça / cercada de estrelas mortas a fulgir” (ibidem). É o vento que falta também, e a ilusão do amor ou a “a mentira [que] bate na lagoa e dança”, sintomas que aqui podem ser entendidos como “arquivos virtuais de vazios” quais persistências na experiência histórica (cf. Santner apud Žižek, 2006: 39). Na sinalização desta urgência e na procura dessa qualquer “coisa que está a ser calcada” (Magalhães, 1993: 17), a escrita é um processo de exumação, ao passo que a cidade é a “a ilha / que perdeu nos astros / uma sapatilha”, lá, de onde, olhando-se o céu, não se distingue Cassiopeia ou Órion porque o céu é de arame e a lua está tão cheia, e inebria – “Olho para o céu / e distingo mal / é Cassiopeia? / é a Órion?” (idem: 26). Esse astrónomo, o que vê, dessa outra dor que escreve? É ao corpo que resta o detrito, que se curva de “aflição inteiramente de fora”, de “solidão” “por dentro do vagar dos tendões” (idem: 53) e que “embala este meio sonho que rouqueja, rasga / calafeta” (idem: 52); é o corpo que “não pode erguer os olhos esboroados”, cujas “veias não cumprem o alento” e cujo “cérebro recoberto pelo analgésico” assim “adormece torto na febre sem lei” (ibidem). Neste sem lugar de quase todas as coisas, o corpo resiste à procura do vocabulário que articule a tensão que Brockmeier diz instalar-se entre o cheiro dos corpos, as revindicações políticas e as acções que procuram justificar-se a elas próprias referindo-se a esses corpos, tensão para a qual se duvida haver um vocabulário – “Há uma linguagem para falar realmente dessas experiências?” (cf. Brockmeier apud Hyvärinen e Muszynski, 2008: 2). Em Magalhães, o vocabulário da voltagem em desumana impaciência entre o corpo e a cidade como lugar político do corpo é esse mesmo o corpo, onde ainda antes estava o amor e que agora se aceita como símbolo de capitulação: “aceita o quase nada do amor” para dispensar “um sem-fim de destroços” (Magalhães, 1993: 38). Conforme Prado Coelho, em Calvino, os cenários invisíveis sustentados pelas arqueologias e normas do jogo demandam a “proliferação do visível”, para que o círculo se feche apenas para se abrir (cf. Coelho, 1988: 195). Em suma, esta fórmula entre o “demasiado abstracto e o demasiado concreto” comporta a negação de uma formulação estrutural que se traduz na “tentação de fazer da cidade uma infindável multiplicação de nomes” (ibidem). Assim o flâneur torna-se o estranho espectador que entrevê a cidade de passagem, e para isso faz uso pleno desse estatuto

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e linguagem, que também é do olvidável, para que se volte a lembrar de outra forma. Em Magalhães, o olhar desperto esquece primeiro antes de olhar depois, sujeito à incubação da memória na “câmara do esquecimento” (Magalhães, 1993: 35): “Gosto da casa quando ninguém ainda se levantou / e a figura da morte está adormecida” (ibidem). A memória é, nestes textos, um esquecimento de onde se olha a ausência que observa a violência do esquecimento por si das coisas, do passado mais ou menos feliz, do próprio corpo que antes brincou e que agora é o espectador ausente e absoluto que olha. Num estudo sobre Hart Crane, poeta americano do séc. XX na tradição de Whitman e Eliot cuja obra dialoga com os grandes temas da violência na cidade industrializada, Uroff (1971) refere, a propósito daquele autor, que a imperfeição do tempo e da memória não podem ser aniquiladas pelo poeta e que só através do tempo e da memória, o seu esquecimento, as palavras captam o sem-sentido, o significado indizível (cf. p. 208); ou seja, é no acto da escrita poética que a memória se quebra e procura curar-se a si própria do que ainda lembra, dividindo, atingindo, fendendo, assim dissipando temporariamente o terror e dando espaço à reavaliação do sentido (cf. p. 213). Em Joaquim Manuel Magalhães, a morte luminosa é a morte do último olhar que, antes de esquecer, lembra. O lugar da ausência da cidade é também assim esse lugar da ausência do tempo que se abre à “convulsa divisão da vida” (Magalhães, 1993: 32) que faz irromper a memória – “lembro-me de tudo” (idem: 31) – das “paredes [que] ruíram uma a uma” (ibidem). Assim a memória como experiência do tempo presente devastado resulta simultaneamente em movimento de expansão e destruição, como em Calvino, cujas cidades invisíveis são também “o espaço do definitivamente perdido”, ou seja, o resultado da densa acumulação dos possíveis do passado que o tempo inexoravelmente, tornou impossíveis (cf. Coelho, 1988: 200) mas, neste caso, presentes pela acumulação: “Eu rio-me, / nada existe”, só a memória do “último olhar, o perdido”, que o “coração insucedido recorda” (Magalhães, 1993: 65). Do excesso de acumulação resulta uma memória latente que é preciso fazer ruir, resgatada, para que o flâneur, este novo flâneur – que, conforme Hatherly (2003), num seu poema recente, “O Novo Flâneur”, “contempla e depois sucumbe” porque “tudo dilacera / numa batalha” (pp. 72-73) – se torne estranho e reinvente a memória das “cidades findas”, do “alumínio”, da “emigração”, das “fábricas em

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série” (Magalhães, 1993: 71). A memória, lugar último diante do nada que sucumbe, morre com o flâneur para lhe devolver a possibilidade de lembrar “a arte, / o instrumento da realidade, [que] traz / tudo aquilo que morre ao mesmo tempo que nós” (idem: 72). Amputado do tempo, o nómada, qual “átono vulto”, como refere Magalhães em Um Toldo Vermelho (2010), a obra mais recente do poeta, protagoniza a “simetria da rendição”, à procura de “imunidade” (Magalhães, 2010: 51), espécie de um qualquer grau zero da experiência a partir da qual o olhar do estranho se concentra no fim do princípio e último. À superfície, emergem os “recintos sem destino”, cobertos pelo “verniz migrante”, a “penumbra com gente sozinha”, o “prédio esvaziado da serenação”, as “torres que se extinguem” (Magalhães, 1993: 20), cenários de tensão estes e de abismo que restam à memória devastada do tempo. Assim escrever sobre este torpor é combater por prenúncios e proibir a fronteira – uma perspectiva ela própria sem lugar. Conforme Augé, é o deslocamento do olhar e o esvaziamento da consciência – aqui de um tempo em trânsito – que gera a demonstração prosaica daquilo que designa de sobremodernidade (cf. Augé, 2005: 79). São paisagem, em Magalhães, também o “abandono ordenado da periferia”, a “trucidação industrial”, a “luz sem sol” que se perde em “matizes” no horizonte que finda no “último cinzento [que] cresce das funduras / que traz o roldão negro com astros hesitantes” (Magalhães, 1993: 74). Referindo-se ao problema da multiplicação dos espaços, Prado Coelho refere que em Calvino a análise da duplicidade das cidades se condensa na designação dos espaços possíveis “insubmissos”, estruturalmente “inexactos” e “rebeldes”, sujeitos a modulações de acordo com outras forças (cf. Coelho, 1988: 196). Em Magalhães, a procura desses espaços procede da ousadia de procurar na ausência dos lugares, os confins da violência que ora os esconde, ora os descaracteriza ou destrói, como o mesmo observa: A vida acumulou-se em roldanas ao redor de tudo, / um fumo que bate durante a noite sobre o mapa / enrolado na parede despida, há tanto nos esquecemos / de o desdobrar, de por ele chegar ao confim / do nosso mundo. Que por ti perdi. / E já estamos a desparecer (Magalhães, 1993: 80).

Ao fim do dia, metáfora aqui do fim dos tempos, perscrutam-se as “pulsações ocultas”, isto é, “as nuvens / dentro da terra sem fim, / a

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luz”, os confins da “última claridade” que se mistura com a “primeira da noite”, ou o “halo de candeeiro de rua / que se difunde na fluorescência do televisor” (idem: 79). Aqui o agora não pode ser contemplado em paz mas apenas observado a mudar de cor e de forma, a transformar-se abruptamente noutro “agora” imediato contendo um futuro ainda por nascer mas igual, cheio de dúvidas e esperanças, antecipando e esperando, esse outro agora já ainda no fim da linha (cf. Bauman, 1994: 138) − e que leva o poeta a perguntar: “já não virás amanhã?” (Magalhães, 1993: 22). Ante o sol tardio, esse “veneno de névoas felizes” (idem: 22), o espectador torna-se o seu próprio espectáculo [18] (cf. Augé, 2005: 73). Trata-se de uma experiência de contemplação com que a solidão se torna o seu dever melancólico – por contraste com a experiência da viagem cujo movimento tem por fim a contemplação do espectáculo ou o movimento em si. Como “peregrino”, este espectador da “respiração que rompe / no tumulto”, viajante sem lugar da cidade que “mudou o terror / em visitantes que passavam” (Magalhães, 1993: 10), olha para cima e, percebendo que o “nevoeiro impede que [se] lhe mostre a esperança / dos navegadores”, perde-se – “vejo que nos perdemos” (idem: 11). Mais do que a morte, portanto, é da violência da melancolia, da ausência do corpo continuamente latente, insuficientemente morto que se trata. Conforme Diamond, a vertiginosa hipérbole baudelairiana, efeito de mimese produzido pela representação metafórica do excesso, constitui um impasse aporético decorrente da absurdez produzida pelo consumismo (cf. Diamond, 1991: 177) – que em Magalhães toma a forma de melancolia ou de combate por ilusões – “Quero combater por ilusões. De novo. Quaisquer” (Magalhães, 1993: 57).

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“É com uma imagem de si próprio que se acha em última análise confrontado, mas com uma muito estranha imagem na verdade. O único rosto que se desenha, a única voz que ganha corpo, no diálogo silencioso que desenrola com a paisagem-texto que a ele se dirige como aos demais, são os seus – rosto e voz de uma solidão ainda mais desconcertante que facto de evocar milhões de outras. O passageiro dos não-lugares só reencontra a sua identidade no posto de controlo alfandegário, na portagem ou na caixa registadora. Entretanto, obedece ao mesmo código que os outros, regista as mesmas mensagens, responde às mesmas solicitações. O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular, nem relação, mas solidão e semelhança” (Augé, 2005: 87). 18

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Nesta recriação estética, o excesso de letargia, constitui, muitas vezes, o prelúdio do seu oposto (cf. Diamond, 1991: 177). É o que se observa na poética deste autor, que reescreve esse “mundo no ópio que protege […] da poesia”, em que “já nem a morte há-de ser / sequer um problema” (Magalhães, 1993: 48), pelo exercício violento da linguagem, esse “nó que luta” e que “traz o dia em lapidação”, “a nossa paz”, uma “imprecação” (idem: 47), aqui lembrando Bataille (1998), para quem só a “poesia que nega e destrói os limites das coisas” traz “a virtude de nos entregar à sua falta de limite” (p. 72) [19]; ou ainda Hart Crane, cujo processo criativo consiste na ruptura aberta, na destruição não concebida como acção negativa mas como processo de afirmação e de libertação do mundo da sua forma morta (cf. Uroff, 1971: 212); ou ainda Deleuze, para quem a literatura “é delírio, e como tal joga o seu destino entre dois pólos do delírio” que por sua vez “é uma doença, a doença por excelência, quando erige uma raça pretensamente pura e dominante” (Deleuze, 2000: 15). Em “Terra trabalhada pelo sal”, Magalhães escreve: “Vou para a frente, luto, / a vida é uma coreografia má, perco”, e “a vida acumula-se longínqua” (Magalhães, 1993: 57). Nessa distância entre a luta do corpo que perde e a vida, acumula-se o quotidiano do “mortiço talher” (Magalhães, 2010: 37), espaço da “lúdica inflação” onde o “malogro recoloca / a sardónica intimidade pluvial / no anómalo equinócio”, uma vez que é “inevitável o nexo”, que “dissemina” o “diadema precipício” (ibidem). Este quotidiano, o espaço por excelência, neste poeta, da eclosão concentrada da violência urbana [20] e da deslocação simbóE acrescenta: “A poesia não aceita os dados dos sentidos no seu estado de nudez, mas não é sempre, e é mesmo raramente o desprezo do universo exterior. São mais os limites precisos dos objectos entre si que ela recusa, mas admite o seu carácter exterior. Ela nega e destrói a realidade próxima, porque vê aí o ecrã que nos dissimula a verdadeira figura do mundo” (Bataille, 1998: 71). 20 Sobre este assunto, considere-se, como complemento à análise proposta, o seguinte apontamento do autor num dos ensaios publicados em Os Dois Crepúsculos: sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas (1981b): “Mas esse quotidiano cinzento, essa clausura dos ímpetos, essa renúncia à diferença que mais profundamente o fascismo é como organização da vida, como sociedade de repressão dos excessos, como misto de sociedade de consumo e planificação das produções, espaço ambíguo entre o totalitarismo burocrático e o capitalismo selvagem, entre as tentativas de criação de um espaço concentracionário e a transformação de cada núcleo familiar, de bairro ou de outro agregado humano em 19

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lica da ausência, impõe a escrita despojada da solidão. É o espaço em tentativa de equilíbrio que irrompe através da violência interdita dos objectos urbanos recontados, contra as formas rígidas do presente que não são mantidas e apenas surgem temporariamente. A destruição do quotidiano, na circularidade destes objectos iluminados, emerge assim como aniquilação inevitavelmente reversiva que exclui e faz-se excluir: “O que pensamos da beleza repousa / sobre tanta exclusão” (Magalhães, 1993: 59). Neste exercício de volátil reapropriação da cidade escura – “O que digo é doloroso como a casa que apodrece. / Que esqueço? Pergunto frases contra uma cidade escura” (Magalhães, 1975: 35); assim o poema, a palavra inundada, autodestrói-se e extingue-se, dela sobejando apenas a desordem, restos da tentativa de circunscrever, redizer. Porque o torpor da morte não anestesia e a experiência de nomear pode ser a do silencioso “nocturno combate / ao destino” (Magalhães, 1993: 25): “Hoje o céu vai alto e atravessam-nos corvos / com um mistério duro nas asas peregrinas / sobre a campa rasa do mundo” (idem: 81). É o silêncio devastador da linguagem que se subtrai à experiência, vazio o texto [21], como destino que morre quando diz: “São os mortos que nos constroem. / Ficaremos com os olhos enterrados / em sua voz e seus gestos” (Magalhães, 1974: 41) – e deixa em seu lugar, diz sem dizer que disse no lugar destes mortos, a violência, assim exposta. O seu silêncio é o silêncio do que não se pode dizer. Porque não sendo “um fim em si mesma”, “nem […] uma finalidade para fora de si”, a poesia pode ou não nascer no “intervalo inexistente destas duas certezas” (Magalhães, 1993: 60). É nesta possibilidade nunca fixada que momentaneamente dizer, descobre novas formas, novos objectos, novas rupturas que libertam o quotidiano, ou a possibilidade de o dizer: “A razão das palavras é a morte” (Magalhães, 1981a: 71). Afinal, é da consciência extravasante, bizarra, de morte, do limite colossal do dia-a-dia vigiado, que a poesia emerge como “fé interrogada, o trovão que traz o abismo” (Capinha, 1988: 196), como refere Capinha num estudo sobre o poeta.

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polícia de costumes e de acções. Temos talvez o fascismo no modo como os portugueses voltaram a desejar o dia a dia. Naquilo que levam para casa. Naquilo que pretendem nos empregos. Vive-se no meio de detritos, mas com os dentes lavados pelo produto recomendado na televisão, à espera do próximo aumento salarial e de custo de vida” (Magalhães, 1981b: 363). 21 “A poesia também, mas / vazia do que foi antes de mim” (Magalhães, 1981a: 112).

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O flâneur contemporâneo, espectador da “equimose de demolição” (Magalhães, 2010: 172), é hoje diferente: “The arcades are no more” (Bauman, 1994: 148). Não pára para olhar e a rua é lá fora; distante, o transeunte é um estranho que passa e não se esconde na multidão, como Baudelaire[22], porque desta nada mais resta que uma sombra difusa de si própria e é mais urgente a luz, é mais urgente a morte: – “O escondido caminha para a luz / permanecendo oculto. / Os olhos que seguem os estuques / adiam a morte acabando por chegar” (Magalhães, 1981a: 61). Žižek considera que a derradeira experiência que define o séc. XX é “a experiência directa do Real, enquanto oposição à realidade quotidiana – o Real, na sua extrema violência como preço a pagar depois de despojar a realidade das suas camadas ilusórias (Žižek, 2006: 22). Na cidade pós-moderna, lugar último de encenação desse Real onde o sistema invoca a violência anuladora de qualquer substância ou finalidade (cf. Baudrillard, 1991: 36), o flâneur sai da multidão para observar de longe o excesso de realidade que o exclui; na distância, o confronto modifica as vistas. Traverso (2011) refere em “Exílio e violência, uma hermenêutica da distância”, capítulo de um dos seus mais recentes trabalhos, que a “distância faz aparecer a realidade sob uma luz diferente, modifica as perspectivas, acentua ou neutraliza tanto a empatia como o olhar crítico do observador” (p. 212), pese embora não produza forçosamente ideias novas (cf. p. 218). Assim o flâneur, observando o que resta dessa realidade na sua violência extrema, e mais especificamente do espaço público da cidade, agora “tela gigante em que as aflições privadas são projectadas sem cessar” (Bauman, 2001: 49), se confronta, em Magalhães, com o poema que se transforma em coisa, que simultaneamente recusa, absorve e condensa a experiência indefinida da morte, afirmando os objectos vivos: De sinal transforma-se um poema sempre em coisa. / Tornado por morte inofensivo o homem / é fácil superar essa agressão, / eu digo que ofensiva só a obra./ Com um certo desdém, esta exposição mental / afirma os objectos vivos, / prepara-nos o morto um texto. / Entre ele e eu cavo o que

Conforme Benjamin, “Baudelaire gostava da solidão, mas se possível no meio da multidão” (Benjamin, 2006: 51). 22

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entendo, / em oscilação o corpo fixo, / indefinidamente definir e terminar (Magalhães, 1975: 6).

Como Bataille, Magalhães ousa “a experiência que a vida contradiz” (Bataille, 1994: 131-2), que o mesmo é dizer explora, pela destruição volátil do poema em coisa, uma poesia que, acima de tudo, renuncia. Assim repensar hoje a teoria sobre a violência é também operar uma renúncia, olhar os fenómenos “como qualquer coisa mais (ou qualquer coisa menos)” (Geertz, 1971: 23), resistindo ou recusando a articulação sistemática e conceptual para, em suma, procurar e provocar o erro: Mas, se proposto ao consumo, o seu valor / está ligado à produção, a regras exteriores, / a épocas que submetem ou permitem, / que impõem o próprio movimento de criar. / Num desses períodos aparentes andamos / contaminados, dando mostras violentas, / ousando e limitando a supremacia dum conhecimento rigoroso. / O aspecto do gosto, o aspecto do saber / toda a crítica / recusam pôr-se ao lado do consumo / mas não podem tornar–se

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ciência da produção. / Nítido revelador e intérprete / contribui o erro para descobrir o homem (Magalhães, 1975: 7)

Na sua poética, Joaquim Manuel Magalhães reinscreve as definições dos limites da teoria no próprio erro que esta evita a todo o custo, preferindo ao erro do conhecimento rigoroso, o erro da tentativa da representação, que subverte porque, despojando os cenários e os objectos dos seus ‘períodos aparentes’, isto é, das camadas da hiper-realidade, os reescreve continuamente, renunciando-lhes, dotando-os de sentidos renovados, de mais excesso. Nesse exercício, uma retórica orgânica, voraz e devastadora do excesso de solidão, do espaço e tempo urbanos é celebrada em toda a linha, contribuindo para repensar a pós-modernidade como “etnologia da solidão” (Augé). Ao mesmo tempo, alude-se a um método de observação e descrição que, subvertendo os paradigmas da análise e descrição positivista, esse “pântano conceptual” (Geertz, 1971: 4) que Magalhães designa de “ciência da produção”, reescreve processos de significação interpretativa que, pela irredutibilidade da ruptura, entreabrem novas estruturas de imaginação e representação do mundo.

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Em suma, à luz de uma teoria sobre a violência, estes textos podem ser considerados em dois âmbitos: observando o método de pesquisa, na linha da teoria do flâneur, enquanto metodologia de investigação histórica e sociológica não-ortodoxa conforme proposta por Benjamin, na linha de uma sociologia da flânerie; como representação da violência politicamente motivada que se esforça por resistir contra a sua persistência e, simultaneamente, revelar perspectivas deslocadas dos problemas que analisa (cf. Hyvärinen e Muszynski, 2008: 11); ou ainda como “nó”, onde a suspensão da marcha do tempo no espaço (cf. ibidem: 18) é “o tempo que tomba” (Magalhães, 1993: 75) no “universo transfinito da simulação” no qual a “representação se voltou sobre si própria” (Baudrillard, 1991: 187)[23]. Neste alagamento de hiper-realidade em excesso, o poema é a simulação do atalho que abre aos espaços retomados do desvio da exterioridade circundante, a violência avassaladora, qual felicidade intrínseca de pensamento que é política porque se agarra à possibilidade de existir, independentemente do modo de persistir (Adorno). Ou o poema é a última morada longa da rendição.

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Continua Baudrillard: “onde à partida já ninguém é representado ou representativo do que quer que seja, onde tudo o que se acumula e se desacumula ao mesmo tempo, onde mesmo o fantasma axial, directivo e protector do poder desapareceu. Universo para nós ainda incompreensível, irreconhecível” (Baudrillard, 1991: 187). 23

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A TEORIA CRÍTICA LATENTE NO ROMANCE A NOITE DAS MULHERES CANTORAS (2011) DE LÍDIA JORGE Mário Vieira de Carvalho UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

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A noite das mulheres cantoras, publicado em 2011. A minha intenção não é fazer uma análise literária, mas sim discutir algumas questões nele levantadas – sociais, políticas, estéticas – que me parecem particularmente relevantes para o tema deste Congresso: “A Teoria Crítica Revisitada”. Neste caso, é Lídia Jorge quem revisita a Teoria Crítica através da ficção, assumindo-me eu aqui apenas enquanto leitor que responde à interpelação da obra. Ao enunciar e pôr à discussão os eixos ou tópicos críticos nela achados, talvez se presuma que eu não concedo ao material a mesma pertinência para a reflexão filosófica ou sociológica que concederia a protocolos duma pesquisa de campo em que a autora se colocasse na posição de investigadora. E, de facto, não concedo, pois entendo que o material pretensamente ficcional não é menos, mas sim, pelo contrário, mais relevante para a produção de conhecimento e, nomeadamente para uma teoria crítica, do que aquele que tivesse sido obtido no âmbito de um inquérito sociológico ou antropológico. O ângulo da ficção, que é o ângulo artístico, capta aquilo que o rigor da ciência social – a priori garantido pelo método – jamais alcançaria. Rompe os limites da experiência humana que lhe são traçados pelas O OBJETO DESTA MINHA COMUNICAÇÃO É O ROMANCE DE LÍDIA JORGE,

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A TEORIA CRÍTICA LATENTE NO ROMANCE A NOITE DAS MULHERES CANTORAS (2011) DE LÍDIA JORGE Mário Vieira de Carvalho

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convenções da pesquisa científica, permite que ela se manifeste como experiência não-mediada, cultivando a inspiração, o intuitivo ou o Einfall como diria Adorno (2008), e daí o seu extraordinário potencial. Para Adorno, de resto, a chance de verdade da ciência reside precisamente nessa faculdade de ela suspender o método e proceder como na arte, recuperando a capacidade primária de experiência (Erfahrung). Há que reconhecer, enfim, que a objetividade da ficção se impõe à ficção da objetividade.[1] A discussão da obra e do material que o romance oferece à nossa reflexão seria, decerto, mais produtiva se todos tivessem podido lê-la. Julgo, porém, que, através da abordagem dos motivos condutores, das personagens-chave e dos momentos cruciais em que se apoia a minha indagação, será possível aceder simultaneamente à trama romanesca que lhes está subjacente.

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A “Noite Perfeita”

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O cenário inicial é o de um reality show. No palco, Gisela Batista é a estrela. O animador entrevista-a sobre um êxito musical de havia vinte anos: Recostada na poltrona em forma de barca, a maestrina descreveu-nos como cinco raparigas magníficas, com histórias e naturalidades distintas, atraídas em simultâneo desde várias partes de África pelo som de um piano. Cinco raparigas nascidas e criadas em regiões diferentes, e no entanto todas igualmente enlevadas pela mesma música. Fora o som de um belo Yahama de cauda, um instrumento esquecido no interior de uma garagem diante do Tejo, fora o seu teclado que nos havia chamado, uma a uma, movendo a dentadura mágica, noite e dia, sem parar. Um belo espécime brilhando como uma pérola negra no meio do entulho, sem qualquer mão que o tocasse. Um piano executando por si mesmo uma partitura cujas últimas notas só se teriam extinguido no momento em que nós as cinco, vindo por caminhos diferentes, nos havíamos reunido à volta do

Neste mesmo sentido se pode falar da ficção queirosiana, como fonte para a investigação histórico-antropológica do século XIX em Portugal – cf. Mário Vieira de Carvalho (1993; 1999a).

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instrumento. Passado todo aquele tempo, ela ainda se lembrava, como se tivesse acontecido naquela mesma manhã, do momento em que a última vocalista a chegar à garagem se tinha encostado ao corpo do piano, dizendo – “Aqui estamos nós. Eu vim caminhando por cima do Oceano...” (p. 17).

Quem narra o evento está sentada na plateia. É Solange de Matos, uma das cinco, a narradora auto-diegética do romance. Continuo a citar: Apresentadas por Gisela Batista como descendentes dos pedaços de um velho império perdido que ainda fazia doer por aqui e por ali tivemos de nos levantar para agradecer o aplauso. O aplauso que ia bater no palmómetro, o palmómetro que enviava a mensagem mensurada às lâmpadas da barca, as lâmpadas que se acendiam, apagavam e voltavam a acender, fazendo justiça ao desembaraço da concorrente, e a incandescência das lâmpadas que por sua vez se transformavam em grandes números vermelhos. Uma concorrente tremenda. O animador não sabia o que dizer, estava deslumbrado. O animador regressava ao assunto – “Um piano, noite e dia, a convocar cinco raparigas dispersas pela Terra?”

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“Sim, a chamá-las, a uni-las, atraídas por uma ária interminável, executada por mão invisível...” “Lindíssimo!” – Comentou o rapaz movendo-se, também ele, com a agilidade de um peixe, nas águas do império minuto (pp. 17-18).

A TEORIA CRÍTICA LATENTE NO ROMANCE A NOITE DAS MULHERES CANTORAS (2011) DE LÍDIA JORGE Mário Vieira de Carvalho

A certo passo, as atenções recaíram sobre “a voz gravada de Madalena Micaia, a nossa voz mais grave, a voz verdadeiramente poderosa”, que “terminou a última frase do refrão, acompanhada pelo trauteio de Gisela Batista e pelo coro do público”. Madalena Micaia era a única das cinco que não estava presente, e o animador instava Gisela Batista a explicar porquê: ... a voz do grupo, a nossa voz, só não se encontrava naquele recinto porque havia muito tempo que tinha regressado ao seu continente de origem. Gisela até acabou por dizer – «o chamamento da terra pode muito. Você sabe disso não sabe?» E disse mais. Disse que a dona daquela bela voz jazzística vivia agora nos arredores de uma cidadezinha de África, num lugar sem água, sem luz, sem telefone, sem electricidade, sem antibióticos, sem alimentação condigna, sem nada desta vida, maleitas antigas e modernas a grassarem por toda a parte, e só por essa razão

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ela não se encontrava naquele palco. Vivia lá longe, distante de tudo. Então como chamá-la? Como dizer-lhe vem, toma um avião, estamos à tua espera? Vem que não te arrependerás? Uma sala de mil lugares quer aplaudir-te? Como? Sim, como anunciar-lhe aquela noite que a esperava? Se a operadora telefónica nem funcionava daqui para lá? – Explicou Gisela Batista, pondo em evidência a impossibilidade de a voz se encontrar, naquele mesmo instante, ali, no lugar onde de facto devia estar. O tempo voava. E o rapaz entretém, muito entristecido, clamou por que se aplaudisse a ausente, rodeada de peste e sida, lá numa escura cidadezinha distante, feita de latas, papelão e cascas de árvore (p. 21).

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Estes fragmentos extraídos de “Noite Perfeita”, uma espécie de prólogo com a data de 16 de Novembro de 2009 e subscrito como O Conto de Solange, colocam-nos no mundo do espetáculo mediático. O mesmo mundo que, havia vinte anos, reunira as cinco jovens na produção de um Long-Playing. Essa espécie de prólogo e o epílogo são contíguos e contínuos: situam-nos no tempo atual – o tempo da narração. O continuum é fraturado por vinte capítulos que se metem de permeio e onde se reconstrói, peça a peça, como num puzzle, uma outra verdade. Ou melhor: outras verdades, cada qual legitimada pelo seu mundo, pelos mundos divergentes, conflituais, não raro inconciliáveis que se confrontam, cruzam, sobrepõem; que se negam e desconstroem reciprocamente; que se desfazem e refazem em imagens dialéticas, num processo inconcluso de produção de sentido.

O paradigma do inconciliável Esses mundos e verdades contraditórios começam numa recordação de infância que se torna o paradigma do inconciliável: Eu tinha quatro anos e lembro-me, vagamente, de uma fila de meia dúzia de homens em calções, sentados no chão do pátio, com as pálpebras descidas sobre umas páginas. Uma toada de leitura em coro como se estivessem a rezar uma ladainha. [...] Num domingo de manhã, um dos apanhadores do chá surgiu entre portas com uma folha impressa nas mãos pedindo que lhe ensinasse a ler o x. O aluno trazia a algibeira da camisa abaulada e o papel nas mãos. O meu pai mandou-o avançar até junto à mesa. Era o aluno dilecto. [...] Mostrou a folha

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onde estava escrita uma certa frase – Expulsá-los-emos até à última pegada. [...] O meu pai leu em silêncio, depois soletrou em voz alta, sílaba a sílaba, sublinhando o ex. E o rapaz repetiu – Expulsá-los-emos. [...] Expulsá-los-emos, repetia o aluno dilecto, muito agradecido. (pp. 49-50) [...] ... lembro-me da nossa saída em fuga pela estrada do Gurué afora, e do camião de caixa aberta onde transportávamos as malas cobertas por um oleado verde. Lembro-me que, à saída do Gurué o meu pai descobriu que não fugíamos sozinhos, que o aluno dilecto se tinha instalado entre o oleado e as malas. Lembro-me de ver o meu pai saltar da cabina, de se dirigir à carroçaria e de expulsar o aluno que não sabia ler o x. Lembro-me de retomarmos o caminho e de vermos que duas mãos continuavam penduradas no taipal traseiro. Lembro-me de o meu pai pisar com a ponta das suas botas os dedos do aluno dilecto, de as mãos do aluno resistirem ao impacto das solas, de o meu pai reentrar na cabina e pegar na catana que levávamos sob o assento, disposto a cortar as mãos do aluno dilecto agarradas ao taipal, e depois, só me lembro de ver, através do óculo, um homem a correr no meio da estrada atrás do nosso camião, e

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de a sua figura ir minguando, até que se fez uma curva e o homem e a estrada desapareceram (pp. 50-51).

Esta recordação traumática, como paradigma do inconciliável, surge qual ritornello em pontos cruciais do romance. Marca, desde logo, a oposição entre o mundo de Murilo Cardoso, o estudante de Sociologia, e o mundo de Gisela Batista. Murilo é um dos hóspedes da mesma pensão em que habita a colega de Faculdade, Solange, e não esconde a sua inclinação por ela: “Murilo costumava falar meias horas seguidas a meu lado sem que eu ouvisse metade das suas palavras” – diz Solange (p. 33). E de que falava ele?

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Em oitenta e sete, Murilo ocupava todo o seu tempo a escrever uma tese cujo tema pronunciava vezes sem conta, tema que também era título – A Grande Mentira do Ocidente. [...] Comprava dois e três jornais e sublinhava-os com gritos de júbilo, demonstrando os truques de propaganda dos países que se diziam livres. Na sua óptica, até a palavra liberdade, na sua implicação estelar de irradiação ilimitada, incluía uma mentira. Se eu olhasse bem, todos os títulos e manchetes não passavam de grossas mentiras. [...] Não era propriamente veneno, mas tudo o que o homem dos jornais vendia estava envenenado (pp. 65-66). ...

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[Era] a grande mentira comunicacional do Ocidente (p. 99). «Do casamento entre o Reagan e a Thatcher [diz Murilo] resultou uma cria muito feia que só vai mostrar as garras lá para o ano dois mil. Nem o Polanski seria capaz de imaginar um filhote assim, com semelhante focinho...» (p. 105). «É preciso separar as águas, separar o chão, é preciso prolongar o Muro de Berlim à volta da Terra» [nas palavras de um amigo de Murilo que o aponta como “um verdadeiro soldado da paz”] (p. 192).

Por isso, a reação de Murilo ao universo de Gisela Batista era de repugnância: Ainda estou a ver Murilo a observar os dois singles, a examinar um deles, a virá-lo, a retirar a redondela de vinil de dentro do encarte, a ler em voz alta, fingindo soletrar o que lia, e a sublinhar em silêncio, apontando com o dedo, o título e a autoria – EmCantos, Pela Cantora Mimi Batista. Estou a ver Murilo a devolver os pequenos discos a Nani Alcides com a repugnância de quem atira 166

um animal morto para o meio de um monturo. E não ficou por aí. Murilo reconheceu nas duas raparigas as cantoras que interpretavam Vivaldi e Puccini, e

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não escondeu o seu desapontamento por vê-las envolvidas com uma artista de terceira categoria como deveria ser aquela Mimi Batista (p. 47).

A certezas como as de Murilo respondia Solange com as “imagens contraditórias” que “carregava ao ombro”. Em momentos como aquele, a lembrança da catana nas mãos do pai, prestes a cortar as mãos do aluno dileto, não a largava. Tinha-se “incorporado” no seu corpo, ficara “atada a ele, presa por nervos e ligamentos, como uma perna, um braço ou um órgão”: Como ele [Murilo] haveria de relativizar os factos se caminhasse como eu com duas imagens contraditórias ao ombro. [...] Como poderia eu expor semelhante questão a uma pessoa tomada de tantas certezas como Murilo Cardoso? (p. 52).

Mas Murilo não desistia: [Referia-se a Gisela Batista] como uma devassa, pintando-a como uma cantora de cabaré ardilosa, capaz de ir desencantar jovens sopranos às salas do Conservatório para tentar limpar o seu percurso mundano e ganhar a credibilidade que não

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merecia. ... [eu] imaginava ir ao encontro de uma pessoa estroina, com olhos pisados e bafo a vinho. Droga, talvez umas pitadas de droga, talvez um cheiro a prostituição e cama. Um mistério de sujidade que, na minha curta experiência de dezanove anos, eu sabia existir mas não deslindar. Supunha uma qualquer actividade obscura, sem disciplina nem regras, um deboche. (p. 54).

Murilo enganava-se. Na garagem da casa do Restelo, onde se realizavam os ensaios, o primeiro contacto revelara em Gisela Batista uma pessoa que inspirava “temor reverencial”: Mas porque exercia um poder tão extraordinário aquela mulher, sentada no banco dum piano, trajada com uma indumentária asséptica? Porque emanava da sua figura uma força de sedução tão imperiosa, tão inexplicável? (p. 59).

É que, ao contrário de Solange – eis o que esta então fica a saber –, Gisela Batista tinha um telos, queria “uma coisa bem concreta, bem identificável, uma coisa bem deste mundo”. E definia-a qual vestal, que a tudo parecia renunciar para realizar tal missão: «Sabes o que queremos? – A vestal olhava-me nos olhos. «Queremos encantar. Queremos vencer encantando, seduzindo. [...] Queremos encantar pessoas, milhares, milhões de pessoas. [...] Queremos entrar-lhes pelos ouvidos, pelos

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olhos, pelos nervos, pelo corpo todo. Entendes? [...] Queremos o mundo. Queremos fazer amor com o mundo, entregando-lhe a nossa música e recebendo em troca tudo o que o mundo tem para nos dar (p. 61).

Em vez de entregue ao desleixo e ao deboche, Gisela Batista revelar-se-ia, afinal, uma verdadeira encarnação da racionalidade instrumental. Geria todos os pormenores da produção com a razão fria do plano e do cálculo. Exigia exercícios vocais diários, avaliados com precisão cronométrica (p. 71),[2] controlava o peso das cantoras através duma balança colocada no estúdio (pp. 112, 126-127, 173), e, por fim, impôs um compromisso de castidade absoluta a todas as envolvidas no projeto: Gisela, sempre a olhar para o relógio, acendeu uma vela, colocou-se na sua frente e mandou-me expirar de modo a fazer a chama inclinar-se até à horizontal, tomando o cuidado de nunca a extinguir. A cada expiração, ela contava até dez (p. 71). 2

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[Gisela] concluía que era preciso acabar com os arroubos emocionais ali dentro. Todos e de qualquer espécie. E talvez mais. Talvez fosse necessário acabar em definitivo com todas as histórias de amor, tanto ali dentro quanto lá fora. Contra si própria falava. [...] Disse que todos os nossos sonhos teriam de estar colocados nas pautas que estavam pousadas no tampo do piano. Daquelas folhas sairiam os nossos sonhos e a elas os nossos sonhos deveriam regressar (p. 134).

Gisela era implacável no controlo deste compromisso. Não tolerava a mínima suspeita de desvio. Obrigava as cantoras a repetir em voz alta as frases da renúncia quase tocando as raias do “suplício” (pp. 165-166). Solange admirava a sua eficácia: Aquela impressão de que havia qualquer coisa de brutal na sua pessoa desvanecia-se sob a forte imagem da sua eficácia (p. 71).

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Murilo, o especialista em “mentira comunicacional”, tinha errado redondamente no diagnóstico: não captara nem o perfil de Gisela, nem o sentido da decisão de Solange. Para ele, Solange era “a prova de que a irracionalidade anda à solta e não escolhe sexo nem idade” (p. 99), mas, afinal, nunca a racionalidade dominara tanto a vida de Solange. Nunca uma estudante “que faltava às aulas”, como ela (p. 141), fora tão radicalmente chamada a autodisciplinar-se, a controlar os seus próprios impulsos e emoções, a recalcar a libido: ...sabemos que estamos a passar ao juramento de que nos manteremos concentradas, guardando a nossa libido dentro de um saco bem atado de modo a emprestar essa força explosiva às nossas canções pop-swing, conforme está combinado. Porque nesse dia arrasaremos todos. Arrasaremos tudo. Vejam alto, vejam longe, vejam mesmo à distância, uma enchente em Tóquio, outra em Nova Iorque (p. 183).

Música para ser vista Numa fase inicial, Gisela e as suas colaboradoras trabalhavam sozinhas. Solange fornecia as letras, Gisela aceitava-as ou sugeria modificações, definia os contornos melódico-harmónicos e só depois é que a presença

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do maestro Francisco Capilé era requerida, para adaptar “a estrutura melódica, em função das alterações da letra”: Muito atarefado, o artista precisava de um intervalo para se concentrar. Finalmente debruçava-se para o piano, e depois de martelar durante algum tempo e encontrar soluções que nos pareciam razoáveis, avisava de que nada do que fizera era gratuito. O dedo que tocava piano também sabia estalar no ar o som do dinheiro. Virava-se só para Gisela como se nós ali não estivéssemos – «Minha amiga» – dizia ele. «Tudo isto tem um preço e não é baixo!» (pp. 81-82).

A complexidade do projeto aumentara após a visita de surpresa aos ensaios de três homens da produção, três profissionais da indústria discográfica: além do Capilé, o Julião Machado e o Saldanha. A sua avaliação do objeto, a partir de oito dos treze “temas” previstos, era positiva, “diziam-se maravilhados”. Mas, para Julião Machado, havia um “problema de fundo”: o lançamento do Long-Playing tinha de ser “acompanhado de uma boa actuação, numa boa sala de espectáculos, muitas salas, salas aqui, ali e além, salas por toda a parte”, e isso exigia uma mudança do conceito: Segundo o Julião, nós precisávamos de movimento, de alegria, não havia dança nas nossas interpretações, não podíamos apenas sacudir os ombros e abanar o

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traseiro como avestruzes no deserto, paradas no mesmo lugar, anca para aqui, anca para ali, desencontradas. Era preciso sacudir os traseiros ao mesmo tempo. Requebrá-los em conjunto como se fosse um só. O mundo tinha mudado, e o que nos propunha era mais antigo do que o cancan francês, com o qual deveríamos aprender alguma coisa na arte de ocupar o palco. Embora adaptado à nova realidade, o princípio era o mesmo. Música para ver. Música para impressionar, sentir e ouvir, uma sensação conjunta que pouco ou nada tinha a ver com afinação mas com expressividade. Não estava propriamente a pedir-nos que nos puséssemos nuas enfeitadas com uma flor na orelha e uma malinha na mão, mas ele achava que era necessária uma outra história, que cinco mulheres no palco teriam de parecer um belo rebanho, a música terá de surgir como uma bela barulheira, com ritmo fundo, uma boa cama de som, e a impressão geral teria de ser de uma euforia muito mais próxima do efeito de uma bebedeira do que doutra coisa qualquer (pp. 86-87).

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Julião assumia-se, não como “homem do dinheiro”, mas sim como “pessoa da arte”, que “não pode ter contemplações” e que, como “um oráculo, tem de falar verdade, mesmo quando está errado”. “Cada vez mais vestido de vermelho e negro”, dizia: A arte é acima de tudo verdade, e só se alcança um bom desempenho lidando com a verdade (p. 87).

Em que consistia essa verdade, Julião não explicava. Seria o “belo rebanho”, a “bela barulheira”, a “boa cama de som” ou o “efeito de bebedeira”? No entanto, deixava escapar o critério decisivo, subjacente à sua avaliação – o da competitividade do mercado: Não nos podíamos esquecer que, àquela hora, uns trinta ou quarenta grupos portugueses ensaiavam como nós, cada um em sua garagem, e todos com a mesma ambição. E, pelo mundo fora, nem se falava. Em cada canto da Terra, 170 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

havia uma garagem com música e uns tipos aos saltos lá dentro (pp. 87-88).

O juízo de Julião tinha como consequência, como ele próprio anunciava, a necessidade de “mais tempo, mais entrega, mais dedicação, mais custos”. Desde logo: Era preciso um coreógrafo que pegasse em nós e começasse por nos dar uma valente sova nos corpos lerdos que ele estava a ver na sua frente (p. 87).

Após um primeiro choque, que leva Gisela Batista às lágrimas, tudo se arranja. O nome da Casa do Paralelo, no Restelo, em recuperação – assim se chamava a casa da garagem em que decorriam os ensaios – era uma “homenagem às terras de Cuanza-Sul” (Paralelo Dez), às “roças de café arábico que haviam feito o seu proprietário próspero, nos anos cinquenta”: o senhor Simon, da empresa Simon&Associados (pp. 230-231), putativo pai de Gisela. O senhor Simon nada negava a Gisela: nem o coreógrafo vindo expressamente de Amesterdão, João de Lucena, que passara pela Juilliard School, pela Companhia de Martha Graham e dançara com o próprio Misha Baryshnikov (pp. 111-115); nem o “espelho enorme”, “a toda a largura da zona do ensaio”, de uma só peça – um espelho no valor exorbitante de setenta mil escudos – que

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transformaria a garagem num verdadeiro estúdio coreográfico (pp. 94-96). Em consequência de tais investimentos, a racionalização da produção e a disciplina exigida às intérpretes redobraram. Gisela tinha incorporado as noções de Julião Machado. Solange, por sua vez, talvez por reminiscência de um princípio medieval, reconhecia nesse homem da produção a autoridade de “quem sabe da arte”: Quem sabe da arte vê sempre mais longe do que quem a faz, e era o seu caso, ele sabia (p. 177).

Mas, aqui não se tratava, como na fórmula de Guido d’Arezzo, [3] de colocar a teoria acima da praxis musical, mas sim de subordinar todo o processo musical ao critério do gate keeper. Aqui, a arte que estava em causa era a arte da produção musical como indústria, cujos objetos tinham de obedecer a determinados critérios estandardizados e ser devidamente embalados e promovidos por uma adequada estratégia de marketing. Gisela estava disposta a levar às últimas consequências essas noções. E por isso fora dela que partira a ideia da balança, como instrumento de vigilância da massa corporal, para controlar dia-a-dia os progressos das vocalistas:

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Ela chamava-nos até junto do piano e dizia-nos, nomeando-nos uma a uma, como se fôssemos colegiais de dez anos – «Metam isto na vossa cabeça. Vamos interpretar música para ser vista» (p. 126).

The African Lady Racionalizar o corpo, racionalizar o tempo, disciplinar as emoções, renunciar à libido e submeter-se ao estrito calendário imposto pela

Princípio formulado por Guido d’Arezzo (991 ?-1050): Musicorum et cantorum magna est distantia: isti docunt, illi sciunt quae componit musica; nam qui fecit, quod non sapit, definitur bestia (“Grande é a distância entre os músicos e os cantores: estes executam, aqueles sabem aquilo em que consiste a música; quem faz o que não sabe é definido animal) – cit. in: Ehrenfort (2010: 181). 3

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produção, eis o que era exigido às cinco mulheres. Mas nem todas lidavam da mesma maneira com a ratio inerente ao sistema de produção. Era o caso de Madalena Micaia, a rapariga negra que “tinha vindo das praias do Índico, e andara de terra em terra pela costa de África até chegar a Lisboa dez anos antes” (p. 164). No restaurante em que trabalhava, chamavam-lhe The African Lady. Carregada de sacos de plástico, desculpando-se com “a montanha de pessoas de família” que tinha em casa, chegava sempre atrasada, quer ao trabalho, quer aos ensaios. Gisela Batista exasperava-se. Nem a compensação monetária que Gisela lhe arranjara para deixar de ter horário completo no restaurante (pp. 147-148) a fizera ser pontual. Pelo contrário, chegava ainda mais atrasada e “desdenhava do calendário” – cada um já tinha o seu “no fundo do coração” (p. 171). Gisela preocupava-se, inquiria-a quanto ao pacto de castidade: «Eu, santo Deus! Mas que pergunta...» E enumerou pelos dedos – Vendo bem, 172

morava na Amadora, chegava às onze ao restaurante, saía às duas e meia, dirigia-se para o ensaio, abalava dali às horas que todos sabiam, e aos fins de

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semana regressava ao restaurante e só de lá saía às três da madrugada. Até já nem ia cantar Gospel na associação do seu bairro. Acaso tinha tempo para pensar em vagabundos? (p. 164).

Mas, no dia em que Madalena “juntou a cara ao calendário”, “contando as semanas e as quinzenas, uma e outra vez”, permanecendo “junto da parede, a falar em voz alta, como se o calendário estivesse a mostrar-lhe sinais sub-liminares” (p. 173), Gisela compreendeu: Madalena Micaia estava grávida. O parto estava previsto para quinze dias antes da gravação – dizia Madalena Micaia –, mas até ia antecipar, “por causa da lua cheia”: Gisela, porém, virou a cara morena bem escura da African Lady para si, olhou-a nos olhos, e esbofeteou-a. Diante de nós, a cara de Madalena Micaia andava de um lado para o outro como se fosse um pêndulo imparável. Gisela gritava de fôlego perdido – «Sua selvagem, não volte cá mais. Você mentiu, você gozou-me, você andou a fingir como uma traidora e uma galdéria. [...] Não voltes cá mais!» (pp. 174-175).

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O inconciliável tinha aqui uma óbvia origem cultural. “Selvagem” – dizia Gisela. “Como podemos viver ao ritmo dos primitivos?” – interrogavam-se os homens da produção (p. 176). Julião Machado completava o quadro: ...tinha a pior impressão do compromisso africano. [...] Os africanos [...]continuavam a ser primitivos, estivessem onde estivessem, continuavam a encontrar no nascer e no pôr do sol, no zénite e nas luas cheias, as suas verdadeiras agendas de bolso (pp. 177-178).

Se Madalena Micaia não se regia por calendários ou agendas, certo é que muito menos fazia música por pautas: «Calma, Madalena Micaia» – Dizia Gisela, agitando a folha de música na sua frente, e impondo-lhe uma página pautada a que a rapariga africana não ligava importância nenhuma. [...] «Não te controlas, será?» (p. 75). 173

O contraste com Gisela e o sistema de produção que ela personificava era abismal: [Gisela] Disse que todos os nossos sonhos teriam de estar colocados nas pautas que estavam pousadas sobre a tampa do piano. [...] Só existiria o entusiasmo

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que pudesse provir da música que estava inscrita naquelas folhas. Fora da vida proveniente de lá, não haveria mais vida (p. 134).

A situação ilustra a tese de Adorno quanto à notação musical como instrumento de repressão da liberdade expressiva, como “cicatriz de violência” legada pela civilização europeia.[4] Mas que dizer de todo o sistema altamente racionalizado, muito mais tarde montado pelo mercado da indústria discográfica – todas as outras “pautas” entretanto entrelaçadas umas nas outras pelas quais se regia a produção do LP? Solange não deixa de se interrogar sobre o paradoxo de fazer música sob tais condições:

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Adorno (2001: 226s.). Cf. ainda Vieira de Carvalho (2005: 226; 2009: 86).

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Como era possível que a música fosse uma arte tão libertadora, de tal forma unida ao impulso de liberdade que ambas se confundiam, e entre nós a música, o canto e a dança se tivessem tornado motivo de uma tensão quase intolerável? (p. 137).

Madalena Micaia era a única, ainda assim, que resistia, escapava originariamente ao sistema e, ao fazer música, ao cantar, continuava “unida ao impulso de liberdade”: [Madalena Micaia] fechou os olhos e soltou um som grave, um som harmonioso que subia e descia na escala, sem intervalo, exibindo uma extensão formidável, uma potência de voz quase intimidante, quase estentórea. Quando terminou, a rapariga riu muito – «Olhe que não me chamam só The African Lady, Mimi. Ali as irmãs Alcides chamam-me outros nomes feios, até me chamam Mahalia Jackson da Amadora...» [...] [A rapariga] movia-se com todo o à-vontade, falava cheia de satisfação, ria-se diante do estrado, envolvendo nessa alegria o corpo todo (p. 73). 174

[Madalena Micaia] tinha uma bela voz, quente e profunda, aveludada, TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

dramática, uma voz que apetecia deixar isolar e desprender, deixar ouvir a solo, uma voz que voava acima de nós, quando se levantava e abafava por completo o fluxo lírico das irmãs Alcides, transformando tudo em puro ruído de fundo (p. 75). Madalena Micaia pousava os seus pertences atrás do reposteiro do fundo, punha-se a entoar aquele Aleluiah! Aleluiah! [...] juntava-se a nós, nós iniciávamos a cantoria, e era a voz dela que incendiava o estúdio. [...] Micaia chegava tarde, mas recompensava (pp. 171-172).

Enquanto Madalena Micaia cantava também com o corpo, Gisela Batista tinha uma voz “sem substância carnal”, não conseguia elevá-la “acima de um trauteio normal”. Sem “o suporte de um bom amparo, jamais cantaria só”. Nos dois singles que tinha gravado, a sua voz era um produto artificioso: “fora almofadada por bons coros e amparada por outras ajudas” (p. 76). Quanto às irmãs Alcides, “uma soprano ligeiro e uma mezzo de belo timbre argentado”, essas “procuravam desmantelar o formato de precisão para que haviam trabalhado durante doze anos das suas vidas”, “regressar ao tom natural”, “aproximar-se do canto

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lasso das amadoras de música” (p. 75). Solange, por fim, limitava-se a “murmurar” uns sons, sem perceber bem qual o seu papel vocal no conjunto, mas descobrindo-o logo depois: formar com a voz de Gisela Batista “um fundo baço contínuo, uma espécie de coro surdo, sobre o qual as outras vozes se desenhavam” (p. 76). Madalena Micaia era, em suma, a única que aliava um virtuosismo vocal dir-se-ia inato à autenticidade expressiva – o único momento de verdade no LP em processo de produção. Por isso Solange dizia que “apetecia deixar isolar e desprender” a voz de Madalena Micaia, deixá-la “voar” acima do “ruído de fundo” – ruído de fundo esse que pode ser aqui tomado num sentido muito mais lato, isto é, abrangendo todas as “almofadas” usadas na fabricação e embalagem do produto, desde os clichés introduzidos pelo maestro Capilé aos demais artifícios tecnológicos, mediáticos e publicitários da “música para ser vista”. Perder o vestígio ou traço de autenticidade que Madalena Micaia conferia ao LP punha fatalmente em risco a empresa. Sem “a voz do grupo” que “estava grávida” (p. 196), o projeto ia “por água abaixo” (p. 174). Os burocratas da produção reconheciam paradoxalmente a mais-valia desse momento de liberdade que escapava ao seu controlo ou se manifestava apesar deles. Por isso, Micaia é chamada de volta. Mas havia que racionalizar o ciclo da natureza, dominá-lo, configurá-lo segundo o plano da produção, que não podia falhar. Condição sine qua non da viabilidade do projeto era agora garantir a antecipação dos trabalhos de parto. À crença na lua cheia contrapunha Gisela Batista a crença na medicina:

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«Escute bem. Você tem aí um endereço. Você apanha um táxi, dirige-se para esse endereço e leva consigo esse dinheiro. Você entra na porta indicada. Entra e está lá uma pessoa que se chama doutora Aguiar. Você pergunta pela doutora Aguiar e diz que vai da minha parte, que ela, nessa altura, já sabe que você precisa de entrar em trabalho de parto. Não esteja a olhar para mim, African Lady. Você tem um compromisso, você não precisa nada de esperar pela lua cheia» (p. 198).

Quando Madalena Micaia volta aos ensaios após dez dias de ausência, cheirava “a leite e a sangue”, que tresandava: “A rapariga fede. Não se pode estar ao pé dela» (p. 219).

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...eram duas e meia da tarde, Madalena tomaria um duche quente ou morno, conforme preferisse, e depois de bem seca, juntava-se a nós, já lavada, perfumada, limpinha. Se o bebé tinha duas garrafas de leite, ela poderia ficar até ao fim do ensaio, pois naquele dia precisavam de percorrer o repertório inteiro (p. 220).

No final do ensaio, Madalena é encontrada morta, esvaída em líquidos, na casa de banho. Gisela telefona para a doutora Aguiar. Nada se ouve da conversa: Ouviu-se só, a determinado momento, Gisela pousar o telefone e dizer-nos –«Inacreditável, não querem tomar conta do caso. Inacreditável, dizem que a criança não nasceu há dez dias, mas há três. Dizem-me de lá que não quis provocar. Dizem-me que quem a matou fui eu. Minhas queridas, estão a dizer que fui eu. Tudo isto é inacreditável...» Perguntei – «Mas nunca chegou a telefonar a essa pessoa chamada Aguiar?» 176

«Não, nunca telefonei, eu tinha passado para a mão da Madalena um montão TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

de dinheiro, depois ela mesma telefonou a dizer que já tinha nascido a criança. Afinal, não tinha nascido, afinal só veio a nascer há três dias» (p. 223).

A ratio que mantinha o rigoroso controlo da produção era a mesma que devia gerir as consequências da catástrofe como parte integrante da mesma produção. O telos que levara Gisela e os seus colaboradores àquele ponto não podia ser posto em causa por um mero acidente de percurso, ainda que tão grave. Quem resolve tudo é, mais uma vez, o Sr. Simon. Trata-se de remover o corpo de Madalena Micaia sem deixar rasto. Só Gisela e Solange o testemunham. Enrolado num reposteiro e numa carpete, é transportado, juntamente com várias peças de mobiliário, numa carrinha de Simon&Associados: Ao sair pela porta, a carpete enrolada com o objecto lá dentro, parecia uma jibóia que tivesse ficado empançada com a sua presa (p. 226).

Nesse momento, o ritornello da recordação traumática – o paradigma do inconciliável – não podia deixar de ocorrer a Solange:

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Passado tanto tempo, estupidamente, eu sentia uma pena sem medida tanto pelo meu pai como pelo aluno que não sabia ler o x, e em vez de chorar por Madalena Micaia, soluçava pelo meu pai (p. 231).

Ninguém sabe que destino foi dado ao corpo de Madalena Micaia. Nunca ninguém perguntou por ela. Nunca se soube o que acontecera ao filho. Mas o Long-Playing acabou por ser lançado e o espetáculo teve lugar no Coliseu. Gisela diria “que infelizmente Madalena Micaia, a voz que tão bem se destacava nos solos, se tinha cansado de nós” (p. 228). E na celebração do triunfo, vinte anos depois, dirá – como vimos no “prólogo” – que ela tinha regressado ao seu continente de origem: “o chamamento da terra pode muito”.

Arte e reconhecimento social Gisela era um génio da “mentira comunicacional”, e o Long-Playing, o seu produto por excelência. Na sua narrativa, o “teclado que nos havia chamado, uma a uma, movendo a dentadura mágica, noite e dia, sem parar”, ou a “ária interminável, executada por mão invisível...”, sugerem a metáfora da autopoiesis: música que se faz a si própria, de geração espontânea, qual segundo natureza. Uma metáfora que descreve também com precisão o segredo do êxito do “disco sentimental”: dissimular sob a aparência duma “organicidade” natural toda a complexa e altamente racionalizada cadeia de produção, os recursos técnicos e a manipulação do material que permitiram o seu fabrico. O paradigma do inconciliável tem aqui a sua manifestação mais radical. Enquanto Madalena Micaia paga com a morte a autenticidade e a espontaneidade com que se entrega à música, com que se deixa conduzir pelo impulso mimético, pelas pulsões do inconsciente, por aqueles níveis profundos da mente que, segundo Gregory Bateson, são também aqueles em que se localizam as faculdades e destrezas, Gisela Batista constrói a sua efémera fama mediática sobre a razão fria (a unaided consciouness) [5] e o artifício ilusionista. A morte duma é o preço de um minuto de glória (“império minuto”) da outra. Tomadas 5

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Cf. Bateson (1999).

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como figuras alegóricas, representam respetivamente o confronto entre Natureza e Civilização, a “dialética da razão”.[6] Gisela elege a música como medium da sua luta pelo reconhecimento: ambiciona que o seu talento de maestrina seja reconhecido dir-se-ia à escala planetária.[7] Mas parte duma posição de poder para realizar essa sua fantasia: ela detém os meios de produção que lhe permitem “assalariar” todos quantos podem servir o seu desígnio. Tem o piano de cauda e tem a garagem, que se transforma em estúdio. Tem o dinheiro do Sr. Simon. Tem, além disso, os conhecimentos, a educação, a pose e a retórica[8] que lhe conferem autoridade e suscitam “temor reverencial”. Só não tem voz. Das suas destrezas pianísticas também conhecemos pouco: faz “tan-tan”, martela “as teclas como uma bigorna” (p. 56). Presume-se que se limita a comprar a fantasia do seu talento através dos meios humanos e materiais agenciados – inclusive o apoio de profissionais experientes da indústria discográfica. Contudo, em nome da sua fantasia, que ela habilmente encena como fantasia do coletivo das cinco vocalistas, submete-as a condições de trabalho que as condicionam no mais íntimo do seu ser: elas têm de sacrificar a felicidade supostamente medíocre da sua “vida quotidiana” à prometida “vida heroica” do êxito mediático.[9] Perante Gisela Batista, todas são, de certo modo, trabalhadoras alienadas – no sentido próprio do termo (“trabalho alienado”). Mesmo Gisela Batista só pode realizar-se, alienando-se, pois, como resulta das últimas pinceladas de retoque no seu perfil, ela própria se deixou absorver “por essa força obscura que vai à frente, sozinha” e não é senão a “engrenagem” que faz do poder pelo poder o medium privilegiado de reconhecimento. Se assim é, então a própria música, a “arte”, o Long-Playing são desmascarados com meros dispositivos instrumentais de reprodução de poder que

Cf. Adorno / Horkheimer (1944). Sobre o conceito de reconhecimento social, seus media e categorias, cf. Honneth (1994), em especial pp. 148-225. 8 Eu só me perguntava onde iria Gisela buscar aqueles discursos tão sólidos. Em que colégios teria estudado? Era uma formação adquirida na África do Sul? Num colégio de Montréal onde se ensinasse um método para o discurso? O raciocínio que acabava de expor, no vão da garagem aberta, apresentava-se-nos indestrutível como uma emanação radioactiva (p. 255). 9 Sobre “heroic life” e “everyday life”, cf. Featherstone (1995). 6 7

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a arrastam: pois, enquanto tais, esgotam-se no “império minuto” do universo mediático. As quatro mulheres brancas do grupo têm em comum pertencerem a famílias de regressados que prosperaram em terras de África. Todas elas e as suas famílias foram, de algum modo, beneficiárias da dominação colonial: o pai de Gisela, como vimos, fizera fortuna com as roças de café no Cuanza-Sul; a família das irmãs Alcides tivera alguma ligação ao negócio de diamantes no Huambo; quanto ao pai de Solange, regente agrícola, dirigira uma plantação de chá no Gurué. Em contrapartida, da família da negra do grupo, Madalena Micaia, nada se sabe, a não ser que era numerosa. Era uma família de imigrantes, outrora servindo nas ex-colónias e agora buscando oportunidades de emprego na antiga metrópole. As jovens brancas podiam estudar, faltar às aulas ou dedicar-se às suas atividades diletantes, e havia uma mistura de tudo isso nos seus respetivos perfis. Têm o respaldo da economia familiar que lhes proporciona essa liberdade, isto é, um leque alargado de meios de “libertação de individualidade” (Honneth, 1994: 135). Madalena Micaia, porém, luta pela sua sobrevivência e a da família. A colaboração musical que lhe havia sido proposta é um complemento do trabalho no restaurante, se não um sacrifício extra que lhe permitiria melhorar temporariamente a sua situação económica. Em contraste com Gisela Batista, ela nunca leva a sério aquele projeto artístico como um projeto de vida. É uma tarefa transitória, um “biscate” a que recorre sobretudo por necessidade. Enquanto os vínculos, inclusive hierárquicos, entre as irmãs Alcides, Solange e Gisela Batista têm, ainda assim, por base uma solidariedade de grupo de tipo associativo, o vínculo entre Gisela e Madalena Micaia transpõe, das ex-colónias para a antiga metrópole, a relação antagonística entre patroa e empregada, na sua dupla dimensão social e rácica. Gisela Batista exerce sobre Madalena Micaia a autoridade inquestionável da senhora para com a empregada, habituada a dar ordens, a ser obedecida e até a punir com sevícias corporais – comportamento a que hoje chamaríamos de “violência doméstica”, mas outrora comum na relação senhor-criados e que, por isso, Madalena Micaia aceita como sendo natural, inerente à ordem das coisas. Isto é, a violência da dominação colonial reproduz-se nas relações entre Gisela (bem como o aparelho de produção no seu todo) e Madalena

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Micaia. A própria Solange, embora faça o elogio das qualidades vocais e musicais de Madalena Micaia, não lhe dá, enquanto pessoa, a mesma visibilidade que dá às outras.[10] São numerosos e pormenorizados os elementos biográficos e familiares, psicológicos, íntimos, relativos a estas e às suas famílias, mas em vão os procuramos quando se trata de Madalena Micaia. Como poderia, porém, a narradora auto-diegética aceder-lhes, se nem ela, nem as irmãs Alcides, nem Gisela tinham intimidade com Madalena Micaia, se não trocavam confidências com ela, não partilhavam com ela nem os carros, nem os cafés, nem a universidade, nem os bairros onde moravam, nem os amigos? Se já nas ex-colónias elas e gente como Madalena Micaia pertenciam a habitus completamente diferentes?[11] Em consequência disso, o reconhecimento social de Madalena Micaia, no seio do grupo, é reduzido à expressão mínima. Dir-se-ia mesmo que lhe é negado em todas as dimensões – de amizade, solidariedade, integridade individual, igualdade, dignidade, integridade física – até que a sua despersonalização se extrema na privação da própria personalidade jurídica. Madalena Micaia acaba como uma não-pessoa, sem ter direito sequer a que o seu corpo seja entregue à família e dignamente sepultado, em conformidade com as crenças e os costumes da sua cultura. Ninguém lhe canta um Gospel. A ordem das coisas, a ideologia da dominação, ganha toda a sua insidiosa força precisamente na medida em que é adotada como segunda natureza pelos dominados. Sabemo-lo da história e da atualidade quando nos colocamos na posição de observadores de segunda ordem (isto é, na perspetiva do meta-discurso). Madalena Micaia acha natural não só ser esbofeteada pela maestrina/empresária como também parir de um “vagabundo”, sem que daí nasça, além do filho, uma relação afetiva de mútuo reconhecimento entre os pais. Entrega-se a alguém, a mando das urgências da libido – tão espontaneamente, presume-se, como quando faz música com a voz e com o corpo – mas, em troca, não espera do parceiro nem respeito, nem amor. No fundo, sabe que não tem parceiro, assim como também se desconhecem os seus amigos. Não chega a haver para ela nem amor que gere autoconfiança, nem valores 10 11

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Sobre o conceito de visibilidade social, cf. Honneth (2003). Sobre o conceito de habitus, cf. Bourdieu (1979).

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de solidariedade que gerem autoestima, nem estatuto cívico que gere autorrespeito.[12] As relações intersubjetivas em que está envolvida, em vez de favorecerem a “libertação” da sua “individualidade”, anulam-na.[13] Paradoxalmente, ganha visibilidade mediática como “a voz” do grupo na exata medida em que é anulada como pessoa.

A autoanálise da narradora Como narradora auto-diegética, Solange tem uma posição privilegiada que lhe permite mudar de perspetiva, combinando a observação de primeira ordem com a observação de segunda ordem e a auto-observação, que é também uma variante da observação de segunda ordem. [14] Predomina naturalmente esta última, o que faz da narrativa de Solange um meticuloso protocolo de autoanálise. Através dele, Solange, coloca-se numa relação simétrica para com a rapariga negra: torna-se cada vez mais visível como pessoa. Solange regista as transformações que ocorrem em si própria através da interação com os outros, o processo intersubjetivo de formação da personalidade, as estações de autorreconhecimento e de conquista gradual do reconhecimento social. Entre os momentos marcantes desse processo (para além do recorrente trauma da infância), contam-se:

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a) A aceitação do convite para colaborar no Long Playing; b) A primeira experiência de trabalho de equipa; c) A recusa do amor de Murilo; d) A relação amorosa com João de Lucena; e) O despertar sexual; f) A desconstrução do mito de Gisela Batista; g) O reencontro com João de Lucena.

Sobre estas categorias, cf. Honneth (1994: 211). Sobre o processo social de “libertação da individualidade” (Befreiung von Individualität) cf. Honneth (1994: 114-147). 14 Sobre as categorias sócio-cibernéticas de “observação”, cf. Luhmann (1995: 92-164; 2002: 79-112). 12 13

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Passemos rapidamente em revista estes momentos. a) Aceitação do convite para colaborar no Long Playing O convite parte das irmãs Alcides, que ela “bem conhecia dos corredores da Universidade Nova, e dos bancos do Anfiteatro Um”, duas pessoas com quem ela mantinha “uma ligação invisível, unilateral, como costuma acontecer entre o artista e o público” (p. 37). Solange ficara impressionada com a dignidade da reação delas às vaias do público durante um recital que tinham dado no Anfiteatro Um a convite da Associação de Estudantes. Tinha-as colocado num pedestal: ...as suas figuras surgiram naquele ambiente de tal modo deslocadas, que ao segundo vocalizo, de ridículas, se tornaram comoventes. [...] O seu canto, diante daquela população juvenil deserdada da música, havia acordado o processo de criação das lendas negras. [...] um estudante tinha retirado o boné da cabeça 182

e berrado a plenos pulmões – «Vão cantar para o Huambo. Lá no meio dos garimpeiros é que vocês estavam bem...» [...] O desencontro era impressionante.

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[...] fui tomada por uma emoção estranha quando, no final da última tentativa de levarem a récita até ao fim, as vi descer do estrado, muito direitas, muito solenes, a olharem em frente, na direcção de um ponto invisível que deveria ser a dignidade. [...] chorava de vergonha de todos nós na pessoa das sopranos... E a admiração que eu nutria pelas irmãs fez-se tão elevada, que as suas figuras chegaram a ocupar o lugar vazio destinado aos seres inacessíveis, aquele pedestal que sempre temos preparado para preencher pela beleza, e raramente encontramos objectos à altura de semelhante culto (pp. 40-41).

Essa “ligação invisível” guardava-a Solange consigo até que ela própria é notada pelas irmãs Alcides num jantar de retornados, no restaurante Ritornello, a que vai a pedido e em representação do pai. Na sequência do encontro, propõem-lhe que escreva lyrics para o LP de Gisela Batista, “uma coisa solta, desprendida, uma coisa fantástica, como as da Donna Summer” (p. 45): Desejavam actuar para públicos mais vastos [...] queriam partir para esse novo mundo [...], para esse outro lugar onde amplificadores do tamanho de prédios emprestavam uma nova vida à música (p. 45).

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[...] «Queremos cantar para as pessoas de agora, as pessoas vivas que encontramos nas ruas, todos os dias. Pessoas normais, como eu, como tu, como nós. Compreendes?» (p. 46).

O convite é um choque para Solange e o seu primeiro impulso é recusá-lo. [15] O pedestal desfizera-se: “acabava de perder as irmãs Alcides”, que tanto a “haviam emocionado” (p. 46). Mas, a interferência de Murilo altera radicalmente a sua disposição: ...Murilo havia surgido, espalhando mais uma vez a sua secura, e tinha querido decidir por mim. Murilo e a sua sombra recortada no solo reforçavam o meu desejo de contradição (p. 47).

A decisão de Solange é, pois, um decisão contra Murilo. Trata-se de um momento marcante de conquista e afirmação ostensiva da sua autonomia individual. 183

b) A primeira experiência de trabalho de equipa No primeiro ensaio, Solange vê no projeto do LP uma oportunidade de realização pessoal, não só para ela, mas para todas as participantes envolvidas – uma espécie de redenção individual e coletiva das frustrações e da dilaceração que o mundo colonial e o seu desmoronamento haviam introduzido nas suas vidas:

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Aquele esforço ordenado comovia-me. Eu não dizia nada. Se dissesse uma palavra que fosse, fora do meu sussurro estrangulado, ter-me-ia desfeito em lágrimas. Lágrimas de emoção por ter encontrado, dentro daquela garagem, gente da minha raça, gente que tudo aquilo que desejava em abstracto procurava alcançar no concreto, nem que para tanto fosse necessário espancar o corpo e a alma. [...] Nessa tarde, os episódios da travessia desde África várias vezes me

15 Desapontada, eu encontrava-me colada ao banco [...] (p. 45). Via-se que existia entre nós um desencontro profundo. Grande lástima. Eu acabava de perder as irmãs Alcides que tanto me haviam emocionado. [...] Desejava [...] que aquele sobressalto passasse, que ambas se calassem, deslizando pelo pátio adiante sem deixarem rasto. E eu sem deixar rasto nelas (p. 46).

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visitaram, desde o Expulsá-los-emos até ao camião conduzido pelo meu pai e um homem correndo atrás, sem hipótese de nos alcançar (p. 77).

Por outro lado, sentia-se ainda apenas “uma espectadora aprendiz”, e não uma “companheira de pleno direito”; “não conhecia os laços que atavam aquele grupo” (p. 78). Este é o ponto de partida de um processo de autoconfiança e autoestima crescentes que as relações intersubjetivas no seio do grupo lhe irão, apesar de tudo, proporcionar. c) A recusa do amor de Murilo Entretanto a tensão entre Solange e Murilo mantém-se e agrava-se: “Era incorrigível o Murilo, ou então era incorrigível o amor de Murilo” (p. 141), que via na união deles uma missão de mais largo alcance. Sobretudo, era claro, no seu enunciado, a relação de subordinação, a tutela que ele se propunha exercer sobre Solange: 184

«Querida Solange, se pensares em mim, também vais pensar no mundo e na TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

transformação do mundo. Comigo a teu lado, tu sabes que nunca te deixarei perder em projetos vãos. [...] em vez de estares preparada para assistires ao desmantelamento da ordem do Ocidente, vives metida na sua lógica entregando-te a essa gente que te aliena a existência...» (p. 142).

Solange esquiva-se aos avanços de Murilo alegando o compromisso de castidade – “nem um simples devaneio” – que lhe fora imposto por Gisela Batista (p. 143), e não cede à proposta de Murilo de lhe franquear o acesso ao quarto: Eu não durmo nessa noite a avaliar as razões pelas quais não deixei o Murilo entrar no meu quarto (p. 144).

Fossem quais fossem as razões que então lhe tivessem ocorrido, a mais importante de todas era certamente a de ter sido capaz de tomar uma decisão soberana sobre o curso da sua vida – decisão na qual estava implícita uma outra, de não menor alcance: não se deixar submeter à tutela de outrem.

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Contraditoriamente, Solange submetia-se, por essa altura, à tutela de Gisela Batista. Mas inicia simultaneamente o processo de subversão dessa relação, o qual só terá o seu pleno desenlace vinte anos mais tarde. d) A relação amorosa com João de Lucena Como letrista, Solange cultiva o impulso mimético, deixa que as palavras lhe venham da esfera da subjetividade que escapa ao plano e ao cálculo: ... a toda a largura da avenida estava escrita, acima da cumeeira dos prédios, uma palavra – Afortunada. A palavra ia e vinha sozinha... [...] Ali mesmo, pus-me a escrever sobre uma folha de papel uma frase antiga... «Afortunada, afortunada, tem fortuna e não quer nada...» Muito antigo. Amarrotei a folha e enviei-a com um piparote para o canteiro do plátano. [...] Pensei que aquilo que lá estava escrito poderia

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ser nada, e no entanto, uma vez perdido, pareceria um tesouro. Corri na direcção do papelote...[...] e vi que estava intacto – Afortunada, afortunada, tem fortuna e não quer nada. Mas não estavam só essas palavras, não, alguém por mim tinha escrito – «Tem amor, não tem amante / Tem morada não tem casa / Tem fortuna e não quer nada». Uma mão divina tinha escrito o meu

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texto divino. Eu só precisava de tornar visível o que estava escrito de forma invisível (pp. 151-152).

A espontaneidade e a autenticidade expressivas, a prevalência dos “processos primários” no sentido freudiano do termo (Bateson, 1999: 135), de que Solange é auto-consciente, na auto-observação das suas faculdades e destrezas, aproximam-na de Madalena Micaia tanto quanto a afastam de Gisela Batista: [as palavras] viviam em mim com naturalidade e saíam-me pelos dedos com a simplicidade com que a saliva sai da boca, a bílis do fígado. Era uma secreção biológica, uma substância carnal (p. 141).

Não admira, por isso, que também Solange tenha violado o pacto de renúncia à libido:

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O amor. Quem não fizer essa experiência da ordem do absoluto nunca ficará a saber como nasceram as flores. Lembro-me dessa primeira noite em que fui visitada pelo aceno do amor (p. 162).

E mais adiante: Em breve as minhas mãos estavam dentro das mãos nodosas de João de Lucena, e todo o seu corpo deveria ser nodoso, pois quando ele me fazia encostar ao seu peito, eu sentia uma carapaça de músculos. O formato de uma armadura romana (p. 162).

Subjacente aos versos de Afortunada e de outras canções para o Long-Playing está manifestamente a sua relação com João de Lucena: Gisela não sabe quanto eu amo, e como amo, João de Lucena. Se ela soubesse que eu amo aquele que entra pela porta da sua garagem para nos fazer dançar, 186

magnífico como um deus, irrequieto como um fauno. Aquele por quem todas as cantoras, incluindo Gisela, se enamoraram (p. 184).

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Solange não revela o segredo. No momento crucial em que desejaria atirar-se aos pés de Gisela, num gesto de lealdade, prevalece de novo o paradigma do inconciliável, o ritornello que a acompanhava desde a infância: Porque não me atiro aos seus pés e não lhe conto o que se está a passar? Porquê? Não me atiro só porque não posso. Não valeria a pena. Sempre haverá duas mãos agarradas ao taipal de um camião que o condutor em fuga conduz, à frente da guerra. Já percebi que viver é atraiçoar. Sobreviver implica trair. Devo aprender com Madalena Micaia (p. 184).

Lá fora, porém, Solange exibe João de Lucena, e – como ela própria escreve – exibe-o perante Murilo “com uma insensibilidade de crime”: [Lucena] Abraçou-me pelo pescoço, beijou-me a nuca e levou-me consigo para o nosso poiso. Enquanto Murilo ficava sentado à mesa, ruminando desgraças com o seu companheiro de exílio. A pança da sua pasta, cheia de libelos contra

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as mentiras, ocupava a cadeira onde eu me havia sentado. Porque não sabia Murilo Cardoso ser um homem feliz? Eu sabia ser feliz (p. 193).

O amor mutuamente assumido como medium de autoestima e de reconhecimento social está aqui bem plasmado. e) O despertar sexual “Insensibilidade de crime”, no sentido próprio do termo, mais bem se aplicaria à monumental “mentira comunicacional” de Gisela Batista sobre o LP e a voz de eleição da Mahalia Jackson da Amadora, que era o seu grande trunfo. Mas há duas outras “mentiras comunicacionais” que Solange descobre inesperadamente durante uma festa, na casa de campo do tio de José Alexandre, um amigo de João de Lucena. Por um lado, ficamos a saber que o Sr. Simon, a quem Gisela Batista chamava pai, era padrasto e amante dela: «Dorme com ele. Roubou-o à mãe e mesmo antes de a mãe morrer, já dormia com ele. Nabokov em Lolita, inspirou-se neste caso...» (p. 275).

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Por outro lado, Solange é confrontada com a revelação de que João de Lucena era homossexual – algo de que Solange não suspeitava, mas que, em retrospetiva, fazia todo o sentido para ela. Quem a esclarece é o tio “lúbrico” de José Alexandre. O inconciliável irrompera na sua própria vida afetiva. O efeito de tais revelações é explosivo. Nessa mesma noite, enquanto José Alexandre e João de Lucena se juntam com outros à volta de um telescópio para perscrutar as estrelas, Solange, que outrora tomara a decisão soberana de se negar a Murilo, toma também agora a decisão soberana de se entregar ao tio “lúbrico” – uma decisão aparentemente fria e calculada, separando amor e sexo. Reconhece o “problema” deixado em aberto pelo namorado e aceita a oferta de solução feita pelo tio, frontal e explicitamente:

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Era muito estúpido, mas pela janela do amplo quarto do fundo, fundo, entravam as verdadeiras estrelas a céu aberto (p. 279). [...] Foi o tio quem veio provocar todo aquele sururu que nos fazia regressar amplamente esclarecidos. O tio, o bom tio, o revelador, aquele que permitiu que a ordem se restabelecesse. Pelo meu lado, tudo corria bem. É verdade que ainda no dia anterior eu tinha só dezanove anos, e passadas vinte e quatro horas, tinha cem. Como o tempo passa! (pp. 283-284).

f) A desconstrução do mito de Gisela Batista A máscara de Gisela Batista não cai facilmente. Solange só aprende verdadeiramente a conhecê-la e a combatê-la vinte anos mais tarde, à data em que inicia a sua narrativa, O Conto de Solange: Agora estou ciente que Gisela não pretendeu dominar ninguém, nem as irmãs 188

Alcides, nem Madalena Micaia, nem o Senhor Simon, nem ele, nem eu, como durante muito tempo julguei. Gisela pretende atingir o próprio domínio, conhecer

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o poder, o caminho para o poder, pretende fazer parte dessa força obscura que vai à frente, sozinha, como a ponta de um diamante cego, rasgando o mundo na mira de um triunfo, seja lá isso o que for. Só por essa razão é tão perigosa. Parece desconhecer que tudo, mesmo que sejam as armas e os feitos do poder pelo poder, tudo um dia será esquecido. Ela desconhece que entrou na engrenagem que mais rapidamente faz esquecer. [...] Aprendi a combatê-la (p. 316).

g) O reencontro com João de Lucena O tio de José Alexandre e Solange mantêm “um relacionamento prolongado, ao longo de anos e anos” até à morte dele num acidente, com outra ao lado (p. 312). Mas esse relacionamento não invalida o enamoramento mútuo de Solange e João de Lucena. Convocado expressamente de Amesterdão, este ressurge na “Noite Perfeita” vinte e um anos depois, como figura-mistério no reality show de Gisela Batista e “voa” imediatamente na direção de Solange:

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«Ainda te lembras de mim?» E o nosso abraço, o nosso rodopio, a nossa deslocação dançando até à porta, e a chuva de brilhos e de letras a passar sobre as costas das nossas roupas projectadas... (p. 26).

Tinham passado todos esses anos e o tema Onde vamos morar do Long-Playing adquiria agora o seu pleno sentido. Com o cirurgião inglês e o brasileiro que o acompanhavam, Lucena vai habitar o rés-do-chão da Praça das Flores por baixo do apartamento de Solange. Separa-os apenas o soalho, através do qual Mahler, Tchaikovsky e o álbum Afortunada ecoam frequentemente no primeiro andar: ...se acaso me chamar, até que poderei descer, não ficando lá muito tempo. Está visto que o importante se encontra dito. A menos que se acrescente que passamos pela Terra, e vivemos mergulhados no fluxo do mesmo tempo. Talvez essa coincidência seja a maior intimidade que se possa ter neste mundo. E essa tivemo-la nós (p. 317). 189

Todas estas estações no processo de libertação da individualidade de Solange mostram exemplarmente que a subjetividade é um devir, “jamais previamente fixado”, o qual só pode constituir-se através da “relação mimética com os outros ou com uma alteridade”. A chamada “natureza interior” não se revela “na introspeção de costas para o mundo”, antes se manifesta em “constelações” que emergem da “interação entre o sujeito e o seu meio-ambiente” e que permitem a “experiência da auto-diferenciação” como “momento constitutivo da liberdade.” [16] É também aprendendo a lidar com estratégias de mascaramento e estratégias de ironia, umas iludindo, as outras deixando entrever a duplicidade de público e privado, “papel social” e “subjetividade”, [17] que Solange se torna soberana como ator social, capaz de tomar posição crítica sobre o mundo que a rodeia e intervir na sua transformação. Depois de ter embarcado na ilusão do “império minuto”, Solange acaba por reconhecer a “mentira comunicacional” que ele representa, e é já somente em registo irónico que ela autocelebra com João de Lucena, num rodopio, perante os projetores, a intimidade ilusória de outrora: 16 17

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Juliane Rebentisch (2012: 324-325). Sobre “ilusão” ou “mascaramento” (Täuschung) e “ironia”, cf. Rebentisch (2012: 273-295).

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um registo irónico que continua a prevalecer na relação de contiguidade na casa em que habitam e, sobretudo, na ardilosa gestão do seu relacionamento com Gisela Batista, definitivamente “desmascarada”.

A estetização da mercadoria e a des-estetização do estético

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Se os documentos da cultura são documentos da barbárie – como escreveu Walter Benjamin[18] – então Lídia Jorge exemplifica como numa parábola o funcionamento do mecanismo: um mecanismo semelhante ao do efeito produzido pelo piano Yamaha de um quarto de cauda – “tão novo que o seu polimento funcionava como um espelho” (p. 63). Com efeito, quanto mais polida é a superfície da mercadoria tanto mais esta convida o sujeito espectador (ou consumidor) a refletir-se nela como num espelho Esse é o feitiço de que falava Marx, o processo de ocultação que desliga o objeto tanto do trabalho humano que lhe deu origem como da função a que se destina. O efeito de “fantasmagoria” que daí resulta, e que hoje, através dos spots publicitários nos mass media, está a ser explorado até às últimas consequências, é inseparável do processo da estetização da mercadoria.[19] Mas manifesta-se também no processo paralelo de “des-estetização do estético” (Entkunstung der Kunst) decorrente da reificação da arte como mercadoria (Adorno, 1970: 33). São processos simultâneos e cumulativos que parecem comprovar a fórmula de Benjamin, segundo a qual “o conceito da cultura” não é senão “o supremo desenvolvimento da fantasmagoria”. [20] Na narrativa Cf. edição crítica das “teses sobre história”, in Benjamin (2010: 34): Es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Barbarei zu sein (conforme a redação do Handexemplar do autor, localizado recentemente por Giorgio Agamben no espólio da viúva de Georges Bataille e que coincide com a redação publicada nos Gesammelte Schriften); Tout cela ne témoigne de la culture sans témoigner, en même temps, de la barbarie (conforme o manuscrito da versão francesa, ibid.: 63-64). Esta ideia encontra-se estabilizada desde os primeiros esboços do texto. 19 Sobre a “estética da mercadoria” ver debate extensivo em Drügh / Metz / Weyand (2011). 20 Encontramos o conceito de “fantasmagoria” em Marx, Adorno e Benjamin. Cf. Buck-Morss (1992) e Adorno (1952). Nos esboços e apontamentos de Benjamin que serviram de base às “teses sobre história” aparece a fórmula: Der Begriff der Kultur als die höchste Entfaltung der Phantasmagorie (“O conceito de cultura como desenvolvimento supremo da fantasmagoria”) (cf. Benjamin, 2010: 131) – fórmula que tem uma óbvia relação com a 18

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de Lídia Jorge, a produção do LP de Gisela Batista situa-se numa zona de fronteira onde é difícil distinguir entre arte como mercadoria e mercadoria estetizada. Trata-se essencialmente de fabricar um produto com determinadas características que permitam também a sua embalagem segundo requisitos preestabelecidos e um certo tipo de reclame publicitário, pois o êxito de mercado só será antecipadamente garantido através da integração planeada de todas essas componentes. Daí que, para além dos diversos recursos técnicos e “almofadas”, fosse também preciso cuidar da imagem ou credibilidade extrínseca do produto, o que pressupunha a falsificação dos seus elementos: por exemplo, Solange tem de renunciar à autoria de algumas das letras, a qual passa a ser atribuída ao maestro Capilé e a heterónomos masculinos.[21] “Uma banda de cinco mulheres” precisava de “um suporte masculino de retaguarda bem forte”; “cinco mulheres no palco, um exército de homens por detrás” (p. 210). Quer encaremos o produto como mercadoria estetizada, quer como arte reificada, o objetivo visado é o referido efeito de espelho tal como é descrito por Adorno: O que as obras de arte reificadas já não dizem substitui-o o observador pelo eco estandardizado de si próprio que ele ouve nelas. Este mecanismo é acionado pela indústria cultural e por ela explorado.[22]

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[A indústria cultural] planeia a necessidade de felicidade e explora-a. A indústria cultural tem o seu momento de verdade ao satisfazer uma necessidade substancial que nasce do crescente falhanço da sociedade; mas pelo tipo de satisfação proporcionada torna-se absolutamente falsa.[23]

ideia de que os “documentos da cultura” são simultaneamente “documentos da barbárie” e que fundamenta a própria necessidade de uma crítica da cultura. 21 Na “Noite Perfeita”, vinte anos depois, Gisela Batista revela a identidade da autora de todas as letras do LP, envolvendo-a na celebração: «Só agora posso dizer a verdade. Foi ela...» Designou-me com o braço (p. 18). 22 Adorno (1970: 33): Was die verdinglichten Kunstwerke nicht mehr sagen, ersetzt der Betrachter durch das standardisierte Echo seiner selbst, das er aus ihnen vernimmt. Diesen Mechanismus setzt die Kulturindustrie in Gang und exploitiert ihn. 23 Adorno (1970: 461): ... die Kulturindustrie [...] plant das Glücksbedürfnis ein und exploitiert es. Kulturindustrie hat ihr Wahrheitsmoment daran, daß sie einem substantiellen, aus de[r]

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Note-se que Adorno não coloca o consumidor/espectador/ouvinte numa posição passiva, mas sim numa posição ativa. Este apropria-se do objeto para nele ver refletido o eco de si próprio. A relação assimétrica do universo mediático ou da indústria cultural tem este efeito dialético: colocar aparentemente o destinatário numa posição passiva, mas para suscitar a sua participação ativa, pois que, sem atividade do espectador, não há consumo, e sem consumo, não há mercado. Mercado e consumo não suscitam comportamentos unívocos. Axel Honneth, na sua recente obra O Direito da Liberdade – Princípios de uma Moral Democrática (2011), sublinha o lado emancipatório da cultura de consumo, que não é de hoje, antes remonta já à Inglaterra do século XVIII onde aparece ligada à noção de comfortable, levando a uma diversificação da oferta de artefactos cobiçados. Honneth cita a propósito o “Sistema das Necessidades” (System der Bedürfnisse) da Filosofia do Direito de Hegel e defende o ponto de vista de que 192

com o estabelecimento gradual da economia de mercado surge mais uma dimensão da nova forma de liberdade individual, a qual, enquanto sistema de práticas

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até então desconhecidas, vai co-determinar decisivamente a partir daí a cultura das sociedades modernas: através das possibilidades de compra individual que lhes são abertas pelo mercado de bens, as pessoas aprendem a proceder como consumidores que, por via do prazer da procura de mercadorias e da satisfação proporcionada pela sua aquisição, são livres de formar a sua vontade pessoal e, desse modo, a sua identidade.[24]

Aquilo que o mercado e o consumo, mormente como media de formação da identidade e, portanto, de reconhecimento social proporcionam de emancipatório, depende, pois, essencialmente das estratégias de gesellschaftlich fortschreitenden Versagung hervorgehenden Bedürfnis genügt; aber durch ihre Art Gewährung wird sie zum absolut Unwahren. 24 Honneth (2011: 362): ...mit der sich allmählich etablierenden Marktwirtschaft eine weitere Dimension dere neuen Form von individueller Freiheit entsteht, die als ein System von bislang unbekannten Praktiken die Kultur der modernen Gesellschaften von nun an entscheidend mitbestimmen wird: Die Subjekte lernen sich mittels der ihnen durch den Gütermarkt eröffneten Möglichkeiten zum individuellen Einkauf als Kosnumenten zu verstehen, die frei darin sind, ihren persönlichen Willen und damit ihre Identität auf dem Weg der lustvollen Suche mach und des befriedigenden Erwerbs von Waren zu formen.

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apropriação. O efeito de espelho significa que a mercadoria estetizada ou a arte reificada “duplicam aquilo que já é” – como diz Adorno noutra ocasião (Adorno, 2008: 207-208). Ou seja: o consumidor apropria-se ativamente delas, mas só se encontra a si próprio e ao mundo tal como este se lhe apresenta – segundo configurações de um e de outro já estandardizadas pela aparente ordem das coisas. Não há nada a decifrar, nada a interpretar, nada a descobrir, também nada a mudar. Tal é o comportamento das pessoas comuns, daqueles que as irmãs Alcides, na primeira conversa sobre o assunto com Solange, designam de “toda a gente”: Queriam utilizar uma linguagem compreendida por toda a gente, sem implicar qualquer esforço de decifração. Desejavam actuar para públicos mais vastos, pessoas que não tivessem vergonha de dançar na cadeira desde que empurradas por uma boa sacudidela de som. Bem sabiam como era. Em determinadas situações, bastavam duas, três, batidas, duas, três explosões de som, para se fazer mover um mar de gente, um oceano de público (p. 45). 193

Decerto, a música enquanto arte não se reduz ao sistema de comunicação das salas de concertos da tradição dita clássica da música europeia, em que os espectadores estão imóveis e silenciosos, como se deixassem o corpo lá fora, tal como é suposto deixá-lo lá fora quando assistem (no culto católico) ao ofício divino. Mas esse feed back ou “retroação fraca” – essa aparente imobilidade comportamental exterior – constitutiva da autorregulação do sistema de comunicação, não significa que eles se coloquem necessariamente numa atitude passiva. Pelo contrário: isso pode ser a condição para uma intensa resposta emocional, intelectual ou, melhor ainda, holística (envolvendo o potencial de experiência do espectador nas suas várias dimensões perceptivas, apenas com exceção dos movimentos corporais), isto é, pode ser condição para uma resposta que é, afinal, ativa, embora íntima. O que parece “retroação fraca” é, na verdade, “retroação forte”. Em contrapartida, o modelo “das duas, três, batidas” que fazem “mover um mar de gente” – isto é, que provocam uma “retroação forte” corporal e sonora – aparentemente ativa – pode corresponder a um fraco envolvimento individual, a uma redução considerável do potencial de experiência do espectador. Em vez de ser estimulado a uma intensa experiência individual o espectador pode apenas deixar-se arrastar

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– passivamente – pela massa em movimento na qual a sua identidade desaparece. Tem, pois, razão Jacques Rancière (2008) quando questiona, em O espectador emancipado, a dicotomia tradicional ativo/passivo. A estratégia de apropriação ativa do objeto “mercadoria” ou do objeto “arte reificada”, ou da mistura indistinta de ambos, nada nos diz sobre o carácter mais ou menos emancipatório da comunicação. Em que diferem então os padrões de consumo de massas daquilo que, em alternativa, poderíamos considerar uma cultura da escuta emancipada e/ou emancipatória? Na narrativa de Lídia Jorge, a declaração acima referida das irmãs Alcides toca, a meu ver, no ponto crucial, que é resumido por Adorno nos seguintes termos: Complexidade, em si mesma, nem é boa nem má: a sua razão ou desrazão depende daquilo que se trata de realizar artisticamente. Contudo, a atual incapacidade das massas de compreender o complicado, herança da sua exclusão da educação, é hoje reforçada pela indústria cultural que a marca, bem como pela própria

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automatização no processo de trabalho. [...] O ódio ao complicado em si mesmo, TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

hoje generalizado, é um sintoma de regressão planeada na educação. Quanto menos as massas forem capazes e menos desejarem assumir o esforço da compreensão, tanto mais elas serão impiedosamente degradadas a meras máquinas registadoras daquilo que os escritórios lhes servem de alimento. Na exigência de simplicidade, aparentemente amiga das massas, revela-se o desavergonhado desprezo por elas, a maliciosa-cómoda crença no seu primitivismo inato...[25]

Paradoxalmente, como vimos, a complexidade do processo e do aparelho de produção de LPs, como o de Gisela Batista, tão exemplarmente Adorno (1953: 59): Kompliziertheit an sich ist weder schlecht noch gut: ihr Recht oder Unrecht hängt von der künstlerisch zu realisierende Sache ab. Die gegenwärtige Unfähigkeit der Massen jedoch, Kompliziertes zu verstehen, Erbschaft ihres Ausgeschlossenseins von der Bildung, wird heute von der Kulturindustrie verstärkt, die sie prägt, und von ihrer eigenen Mechanisierung im Arbetitsprozeß. [...] Der heute allgegenwärtige Haß gegen das Komplizierte an sich ist ein Symptom gesteuerter Rückbildung. Je weniger die Massen fähig und willens sind, die Anstrengung des Verstehens auf sich zu nehmen, um so unbarmherziger werden sie zu bloßen Registraturapparaten dessen herabgesetzt, womit die Büros sie füttern. In der scheinbar nassenfreundlichen Forderung des Einfachen verrät sich unverschämte Geringschätzung der Massen, der hämisch-behagliche Glaube an ihre naturgegebene Primitivität... 25

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evidenciada no romance, tem toda ela por objetivo a sua completa dissimulação do lado da recepção: recursos humanos e materiais imensos postos inteiramente ao serviço duma falsa “simplicidade” servida ao receptor. Tanto investimento intelectual, organizacional, técnico, emocional, tanto planeamento e cálculo, tanto trabalho e disciplina para alcançar, afinal, o quê? – A produção de “músicas foleiras”, como reconhece o próprio Julião Machado (p. 171), o homem da indústria discográfica, que assim é o primeiro a denunciar como mercadoria aquilo a que ele antes chamara “arte” e “verdade”. Eis onde residiria, enfim, a contradição mais flagrante da indústria cultural como veículo fantasmagórico por excelência da reprodução do sistema de dominação – um momento exemplar da dialética da razão: invenção, criatividade, pesquisa, racionalidade – em suma, humanidade – mobilizadas para a produção de dispositivos destinados a liquidá-las. Numa obra recente, Juliane Rebentisch (2012: 17) reconduz-nos a Platão para mostrar como um certo tipo de comunicação estética se pode transformar em modelo de relacionamento social, culminando na substituição de “relações sociais por relações estéticas”. A “encenação de comunidade” – duma comunidade ilusória – torna-se então uma “força política decisiva”, como bem o compreenderam os regimes totalitários, exímios nas estratégias de “estetização da política”. Mas os regimes democráticos não lhes ficaram atrás e parecem comprovar hoje, como nunca antes, a tese de Platão quanto ao papel da mimesis na comunicação de massas. Rebentisch remete-nos, a propósito, para o sociólogo francês Gabriel Tarde, que no início do século XX, se ocupou desse fenómeno:

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… o indivíduo heterogéneo juntamente com a sua competência para julgar [perdem-se] na massa. […] Pois a massa, não julga, excita-se. [...] Como o sociólogo Gabriel Tarde observou a respeito das massas modernas, é o poder da retroação afetiva da massa que transporta os indivíduos ao ponto de submergir a sua [deles] respetiva individualidade. Através deste processo a excitação da

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massa tende a tornar-se autónoma relativamente à sua causa originária. Em vez desta, o que ressalta é o prazer da massa na sua auto-intensificada excitação.[26]

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Rebentisch acrescenta que, independentemente da situação, o que parecia à partida irreconciliável unifica-se: “abertura máxima através da afetividade intensificada e clausura máxima através da auto-referência”.[27] Tudo se passa, diria eu, como se o modelo de comunicação artística baseado na empatia – isto é, por um lado, na retroação forte mimética para a representação ilusionista ou fantasmagórica, e, por outro lado, nas retroações cumulativas dos espectadores uns para os outros, que os transformam, por sua vez, numa comunidade ilusória – servisse de modelo para a comunicação política, onde se verifica a mesma dupla transferência: a) do mundo do sujeito para o mundo ilusório encenado pelo líder; b) da individualidade do sujeito para a performance de massas – processos recursivos que mutuamente se reforçam. A replicação em cadeia deste processo pelos mass media, onde é até refinado pelas tecnologias de marketing e publicidade invasivas do quotidiano numa dimensão outrora impensável, gera a contradição observada por Kondylis (2007): a de se experienciar como individual o que não é senão estandardização de massas. O efeito de espelho suscitado pelo feitiço da mercadoria é a operação que completa a circularidade imanente ao sistema. Como romper essa circularidade? Benjamin e Brecht reelaboraram a preferência de Platão pelo epos, radicalizando-a no princípio da “continuidade estilhaçada”. Assim como era preciso estilhaçar a

Rebentisch (2012: 77-78): … die heterogene Einzelnen samt ihrer Urteilsfähigkeit [untergehen] in der Masse. […] Denn die Masse urteilt nicht; sie erregt sich. Die Masse isoliert und übersteigert das Moment der mimetischen Entäußerung des Subjekts, indem es dieses Moment an die anderen Mitglieder koppelt, so dass sich die Mitglieder einer Masse wechselseitig mit ihrer Affektivität anstecken. Wie der Soziologe Gabriel Tarde im Blick auf die modernen Massen herausgearbeitet hat, ist es die Kraft der masssenhaften affektiven Rückkoplung, die den Einzelne derart in den Bann zieht, dass sie seine Individualität schließlich überschwemmt. Die Erregung der Masse verselbständigt sich durch diesen Prozess tendenziell gegenüber ihren ursprünglichen Anlass. Was stattdessen in den Vordergrund tritt, ist der Genuß der Masse an ihrer sich selbst verstärkenden Erregbarkeit. 27 Cf. Stäheli (2009) cit. in Rebentisch (2012: 78). 26

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continuidade da história (rompendo com o materialismo histórico), assim também era preciso estilhaçar a continuidade do discurso, a continuidade do texto e a continuidade da mimesis. Só o continuum estilhaçado da comunicação, na arte, como na política, podia proporcionar uma chance de libertação.[28] Comunicação estilhaçada: ou seja reentrada na observação de primeira ordem – interrompendo-a – da distinção operada pela observação de segunda ordem: a observação da observação, esta última envolvendo também a auto-observação. Descrito numa terminologia cibernética, tal é o alcance da operação a que Brecht se referia quando dizia pretender deslocar o espectador para a posição de observador: uma operação de rotura introduzindo o balanço entre “identificação” e “estranhamento” (Verfremdung). Também quanto a este ponto a narrativa de Lídia Jorge encerra, em estado latente, uma teoria crítica.

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A respeito da “continuidade estilhaçada”, da “dialéctica do olhar” e “dialéctica da escuta”, especialmente em Walter Benjamin, cf. Hall (2010) e Vieira de Carvalho (1999b; 2007). 28

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“Há três caminhos para chegar a Deus: a música, o amor e a filosofia” Plotino, Eneiades, I, 3

201 NAS SUAS REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO, Fidelino de Figueiredo em Música

e Pensamento, traça um plano no sentido de estabelecer a Música como eixo de toda a educação pré-universitária, tornando-a, assim, propedêutica de uma boa formação, fosse ela científica ou humanística. A música deveria juntar-se aos conceitos de imagem-força e à pedagogia da morte, linhas de pensamento anteriormente desenvolvidas pelo autor quando pensou nos objectivos e finalidades dos sistemas de ensino que a maioria dos governos ocidentais já tinham tornado universais e obrigatórios. Só assim, atendendo a estes três vértices, em seu entender, ficaria definido o essencial de um plano de educação capaz de elevar o Homem a níveis de conhecimento cada vez mais completos. A imagem-força traçava uma representação do mundo em termos científicos, a ideia de morte, mantinha sempre presente a nossa condição transitória e a permanente necessidade de busca de sentido e a música espiritualizava toda a existência, reforçando, no dia a dia, o nosso desejo de transcendência, colocando-nos mais próximos da unidade perdida. Seria como que o alento de uma existência que se reconhece fragmentária e que, pelos quadros lógico-conceptuais, jamais poderá encontrar sentido ou justificação, pois ela expressa sempre o sentir de

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EDUCAÇÃO – ARTE – FILOSOFIA UM EXCURSO EM TORNO DE MÚSICA E PENSAMENTO DE FIDELINO DE FIGUEIREDO Artur Manso

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um povo especifico que se (re)encontra e se dá a conhecer aos outros, com o recurso a uma linguagem universal só acessível à música. A música, para o nosso autor, é superior à ciência e à técnica e destaca-se entre todas as outras representações estéticas, porque se manifesta “numa linguagem universal e supremamente bela, que para alguns é o verbo do próprio Absoluto” (Figueiredo, 1954: 33). E assim parece ser. Ela impõe-se enquanto inserida numa cultura e levada a cabo pelos indivíduos no seu quotidinao. É a expressão, sempre presente, do sentir dos povos que, apesar das suas diferenças, os torna co-naturais. Vários relatos ao longo da história dão-nos sucessivamente notícia da sua presença, desde a observação dos sons mais primários da natureza, até às composições mais refinadas, desde os instrumentos mais simples, como pedras e paus, aos mais complexos e actuais. Veja-se por exemplo o filme A Missão de Roland Joffê, que nos apresenta um fragmento da história dos povos indígenas que eliminavam todos os indivíduos da Ordem de Jesus que se aproximavam deles para os evangelizar. Viam-nos como estranhos, desconfiavam deles e não queriam estabelecer qualquer relação. Até que um dia, um jesuíta conhecedor daquilo que tinha acontecido aos seus irmãos, levou consigo uma flauta e chegado perto das comunidades a evangelizar, das quais nem conhecia os costumes nem a linguagem, pôs-se a tocar uma bela melodia que os cativou, permitindo a partir dali estabelecer laços de amizade e respeito mútuo. Provavelmente já teria consciência que a harmonia que a música provocava, seria capaz de selar um laço de união entre duas culturas até então estranhas. Mesmo que exagerado, este episódio mostra que a música aproxima os povos e atenua as diferenças. Ainda hoje um pouco por todo o lado é usada com esse propósito. Foi com ela que Gustavo Dudamel liderou um projecto de autonomização e promoção da cidadania na Venezuela, como foi com o recurso aos seus encantos que Daniel Beremboim reuniu no médio oriente judeus e palestinianos numa aproximação praticamente impossível de conseguir com o recurso a outros meios. É também com ela que, por exemplo, a Fundação EDP em Portugal promove a cidadania, atenuando as desigualdades. Também para promover a cidadania e a autonomização de indivíduos marginalizados e auto-marginalizados, o Serviço Educativo da Casa da Música do Porto, em 2009, acolheu o projecto de Jorge Prendas intitulado Som da Rua, com o qual se vai criando e recriando um grupo musical constituído

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por pessoas sem abrigo e com histórias de vida difíceis. E outros bons exemplos poderiam ser apontados. É, por isso, num quadro promotor de uma atitude nova e de uma interpretação mais inclusiva dos existentes, que no ensaio aqui apresentado, a música se revela superior ao latim, não compreendendo por isso o nosso autor que “depois de possuir um glorioso património musical fazia ainda do latim ‘a basezinha’ da sua educação, em vez de tomar a música para eixo da formação moral da juventude” (ib.: 34). A conaturalidade do homem em relação à música impõe-se ante uma língua estranha e erudita que nada tem a ver com a natureza dos povos e dos indivíduos que os constituem. Mas verdadeiramente o que pode a música acrescentar a um currículo educativo? Haverá algum paralelismo entre ela e o latim? Provavelmente não, mas Fidelino que é um literato, formado em Ciências Histórico-Geográficas (1910), desde cedo se empenhou na renovação da crítica e dos estudos literários, não se coibe de elencar as debilidades do latim na educação de então, reconhecendo que a música o poderia substituir com maior proveito para cada um. O nosso autor percebe que enquanto o latim, para além de ser uma língua estranha, assenta numa construção suportada por uma gramática definida, a música, vista num prisma mais alargado é-nos conatural e pode conciliar os indivíduos com as aprendizagens que lhes são impostas e por isso, ao contrário de uma língua, garante como nenhuma outra actividade, uma ligação efectiva com a unidade de que permanecemos afastados. É por sons mais ou menos melódicos que se embalam os bebés, eles que nada parecem perceber da linguagem já assimilada pelos adultos que, por si, de nada se lembram desses tempos em que as palavras que ouviam não tinham qualquer significado, vêem reduzida a sua angústia e acalmados os seus medos, dormindo e repousado com as canções que os seus cuidadores lhes vão cantarolando. Mesmo simples, como realmente são, mesmo com vozes roufenhas e pouco afinadas, esses rumores são os únicos que os tranquilizam. E assim continua a ser durante todo o tempo em que os seres humanos parecem nada perceber dos códigos linguísticos com que os mais crescidos comunicam entre si. Estas extrapolações não são feitas por Fidelino que se mantém num certo tradicionalismo estético e que por isso elege a música clássica, em todo o seu esplendor, como a maior das belas artes. Mas muitos

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anos antes da época da música clássica aqui evocada pelo nosso autor, na linha das especulações gregas sobre o valor educativo da música, o filósofo romano Boécio (c 475-524) já tinha advertido que “nada é mais característico da natureza humana do que ser acalmado pelos modos doces e excitado pelos seus opostos. Crianças, jovens e adultos estão tão naturalmente ligados aos modos de uma espécie, de sentimento espontâneo que não há quem se não delicie com as canções doces”. Fidelino está convicto da real dificuldade em aprender latim, que aumenta quando a aprendizagem não é desejada e a fequência da escola é forçada. A liberdade da maior parte dos alunos é duplamente afectada: por um lado, pelo facto da escola ser obrigatória e por outro lado, porque sendo obrigatória a sua frequência, também se tornam obrigatórios os saberes que aí são ensinados e aprendidos. O latim, na altura, era considerado um saber útil e a música um saber fútil. Por isso se dava carácter de obrigatoriedade ao ensino/aprendizgem do primeiro enquanto que o segundo era remetido para os conhecimentos opcionais ou residuais no curriculum, mesmo que a música seja uma manifestação humana, à qual, desde a antiguidade, se tem atribuído considerável importância na educação. Pitágoras, séc. VI a. C., terá descoberto que os intervalos musicais se podiam exprimir em proporções numéricas, o que fazia da música uma construção parecida à proporção matemática, contendo os quatro primeiros números a totalidade da escala musical. A música, a par da religião, na antiguidade clássica, eram essenciais ao paradigma de uma boa educação. Platão, séc. V-IV a. C., no currículo de estudos que traça no livro VII da República e nas Leis destaca que, numa primeira fase, a educação deve simultaneamente formar o corpo pela ginástica e a alma pela música, introduzindo as Leis também a dança como formadora da alma. A música para si, terá sido concedida aos homens para que alcancem a harmonia da alma, considerando-a por isso, uma linguagem que expressa o sentimento. Aristóteles, no segundo período de formação por si definido, dos 7 aos 14 anos, também dava grande impirtância à música, por pensar que tinha a capacidade única de suavizar as paixões, defendendo, por isso, que o seu ensino continuasse no terceiro período da educação, dos 14 aos 20 anos. É verdade que os Romanos, por considerarem estes saberes incompatíveis com o seu ideal de gravitas, retiraram dos seus planos educativos, a música, a dança e também o atletismo.

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No entender desta civilização centrada nas coisas práticas da vida, estes saberes, não seriam sérios, nem honrados, nem se revestiam do dever que as coisas ou manifestações sóbrias do dia a dia devem preservar. A visão mais prática dos cidadãos e decisores das políticas educativas, continua, aliás, a ser devedora desta mentalidade, já que, predominantemente, associa a música aos espaços essencialmente lúdicos da existência. Esta visão pragmática do mundo, em termos teóricos foi de seguida corrigida pelos medievais que, reconhecendo a superioridade humanística revelada pelos gregos, voltaram a introduzir a música nos curriculos de ensino com vista a obter a melhor educação integral possível dos indivíduos, elegendo-a, também, como veículo privilegiado de comunicação o divino. O Trivium, era composto pela gramática, retórica e lógica e o Quadrivium, continha a geometria, aritmética, música e astronomia. Como se percebe, desde os gregos até aos nossos dias, com a interrupção do império Romano, sempre se reconheceu à música um papel central na educação dos indivíduos. Mesmo que, entre nós, como sabemos, desde há muito apenas ocupe um lugar residual nos curriculos gerais do ensino oficial. Inserindo-se neste longo período de uma importância supletiva pelo papel formador da música nos planos oficiais do ensino e conhecedor do desenho curricular da escola do seu tempo, é compreensível a consideração por parte do nosso autor do latim como “símbolo da tirania escolar” (ib.: 40), pois, na antiguidade clássica a língua escrita estava num plano muito inferior ao ensino da música. Fidelino defende que as línguas clássicas – latim e grego –, podem ser importantes para a compreensão da existência, mas não concorda que a aridez dos processos subjacentes ao seu ensino/aprendizagem possam beneficiar a formação daqueles que forçadamente são submetidos às suas aprendizagens. As línguas clássicas

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“Esse capital ou essa secção do património espiritual do homem precisa defesa e protecção. Porém, os meios empregados, que não passam das coacções de um ensino penitenciário, é que me parecem infecundos, quando não contraproducentes” (ib.: 41-42).

Estamos perante um autor com elevada formação na área em que fala e por isso mesmo, com grande capacidade de análise sobre o que

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deve ou não deve ser ensinado aos jovens da primeira metade do século XX. Se os tempos tinham mudado, convinha, então, que se alterassem os processos de ensino/aprendizagem dentro dos organismos de ensino. O saber caminhava cada vez mais para a especialização e havia uma profusão de novos corpus científicos autónomos: história, ciencias da natureza, psicologia... não se justificava por isso que um saber teórico submetesse os alunos a um regime de aprendizagem que pouco ou nada lhes dizia. Insistir no ensino do latim era retirar espaço de aprendizagem para os conhecimentos que as novas ciências traziam, bem como o saber que as línguas nacionais, que já se tinham imposto há tempo suficiente, iam juntando ao património universal: “Com a ilusão de chegar a ler Plauto e Terêncio, nunca chegará a dominar Shakespeare; os prestígios escolares de Séneca e Lucrécio afastá-lo-ão de Kant e Goethe. E dar-se-á um recuo na sua experiência, porque estes nomes é que representam a madurez do género humano, não os Antigos 206 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

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que eram afinal os verdadeiros jovens na carreira da história” (ib.: 48).

As línguas clássicas, não são naturais aos indivíduos. Mesmo antes de as línguas-mãe se terem imposto a cada povo, o latim apenas era aprendido por uma determinada elite. A generalidade das pessoas, tal como hoje, não o conhecia nem o reconhecia como essencial ao seu dia a dia. Ao contrário a música está presente em qualquer lugar e circunstância no decurso de vida de cada um. Ela advém do entrelaçar dos mais variados sons que espontaneamente se formam à nossa volta, como também se impõe pela manipulação de um certo número de utensílios que cada um de nós, no quotidiano e em circunstâncias específicas, usa para produzir sons e harmonias que nos dão prazer e despertam emoções. Fidelino sabe que o latim já não pode fornecer à educação o ponto unitário de que precisa, mas também não ignora que se quisermos que os sistemas de educação mais ou menos oficial cumpram a sua função formadora e educativa, têm de ancorar o seu processo numa outra área que lhes garanta o vínculo dos que aprendem, não só com o fazer, mas também com o ser. Para o nosso autor, esse outro ponto de união poderia e deveria ser a música. Perdida a preponderância do latim na educação formal Fidelino adianta: “O eixo novo que proponho para

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toda a educação, da infantil até ao limiar da Universidade, é a música” (ib.: 54). E, tal como dissemos atrás, a ideia parece ter-lhe surgido das bases da educação ateniense e do modelo da república de Platão que dava poder formativo por excelência à ginástica, à filosofia e à música. Haveria assim uma espécie de renascimento da música como agregadora da existência e propiciadora da unidade perdida: “O latim é a chave da civilização romana, lembram os seus apologistas, mas a Música é a chave do mundo total da civilização, porque nela se contêem e expressam todos os ideais humanos, todos os anelos, todos os triunfos, dores e inquietações do homem individual e do homem multitudinário ante os eternos problemas da sua miséria” (ib.: 55).

A aridez do latim revelava o sentido prático do povo romano, enquanto que a beleza da música nos garante o amparo de podermos novamente sermos um com o Todo. O papel da música na educação não busca fazer de cada indivíduo conhecedor profundo e intérprete exímio. Ela deve ajudar a moldar a sensibilidade, pondo o enfoque da existência não nas coisas úteis e reprodutivas, mas sim no aprimoramento das capcidades de escuta, de paciência, de labor intenso pelas coisas que nos são mais significativas e que sem a via da emoção não nos é possível alcançar:

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“A ciência e a técnica, estranhas à nossa natureza, rebeldes ao escrúpulo moral, estão levando a nossa miséria tonta ao aniquilamento. A Música, e só ela, leva-nos a um sentimento religioso, superior aos credos e às liturgias, composto da intuição da finitude mínima do homem e da infinitude vertiginosa dos universos, e conduz-nos à mais digna humildade, franca a todas as expectações e anunciações” (ib.: 59-60).

Veja-se como tanta gente que se designa ateia ou agnóstica procura o silêncio dos templos religiosos e a musicalidade que foram gerando e vão alimentando para descansar dos afazeres diários e arranjar forças para enfrentar os desafios do dia a dia. A música é por isso uma das mais belas formas de manifestação da religiosidade quer implicita quer explicitamente. Entendendo-se, naturalmente, por religiosidade, a necessidade de cada qual se compreender como indivíduo deslocado

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de um todo a que intui pertencer e cujo esforço existencial se prende na constante tentativa de reencontrar o ponto de união que foi quebrado. Fidelino quer uma educação ao serviço do homem e não um homem submetido a uma formação classicista que apenas cria tédio e desespero naqueles que a ela são submetidos. O latim tal como os restantes saberes, são mais instrumentais que outra coisa. Os indivíduos do ponto de vista da sua relação com o universo pouco proveito tiram desses ensinamentos. O antropocentrismo defendido por Fidelino pretende criar as condições para que os indivíduos se sintam parte integrante do universo e com ele saibam interagir. Uma formação da emoção e sensibilidade com o recurso à música será a melhor forma de centrar a importância da educação no indivíduo em vez de a colocar como instrumento da produção, uma vez que entende que a escola, em toda a sua estrutura, é conservadora, não respondendo, por isso, aos anseios de transformação que os indivíduos nela depositam. Equações, fórmulas, regras gramaticais... ensinam-se e aprendem-se independentemente do sujeito. Cada um, que é sempre diferente do outro, ante o conhecimento objectivo, tem pouca margem de manifestar o sentir individual. A escolarização torna o conhecimento em mero factor de produção. A música não introduz na educação qualquer tipo de unanimismo, pois ela é percebida e recepcionada de maneira diferente pelos vários estratos da sociedade. Há os que têm conhecimentos musicais, teóricos e práticos, que executam e que criam rompendo covenções e desafiando com novas propostas, há também os amadores e apreciadores que constituem uma grande faixa das populações... mas se alargarmos o conceito musical à harmonia de diversos sons que causam alegria e satisfação nos indivíduos, então, nesta classe temos que colocar todos os indivíduos, a que também pertencem os designados melómanos que pela música que escolhem pretendem ter uma sensação, ainda que passageira, de comunhão com o absoluto. Terá o autor razão quando pretende que só uma certa música seja causa dessa ligação ao absoluto? Creio que não, pois nem todos estão aptos a ouvir a mesma música e mesmo entre aqueles que a ouvem não é certo que dessa experiência retirem as mesmas sensações. De uma maneira mais geral, Fidelino não se deveria esquecer que o carácter universal da música não se pode particularizar nesta ou naquela manifestação, devendo afirmar-se pela divergência e não pela convergência, pela

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polémica e não pela unanimidade. A escola assenta em professores e estes, doravante, deveriam ser exímios na arte de saber ouvir música e transmitir esse gosto aos alunos. Fidelino parece estar convencido de que a grande música “apressa e avigora a floração da juventude como também retarda o decaimento da velhice. Ensinando-nos a ser homens, defendendo-nos, perante a inevitável condição da existência, de reacções irracionadas como o desespero e a superstição” (ib.: 100).

A música é a expressão humana por excelência capaz de dar sentido à angústia e à solidão que são constitutivas da individualidade. Ela é mais uma representação humana capaz de quebrar a aridez do conhecimento científico. Fidelino parece acreditar que o acto criativo, seja em que campo for, e esse campo é também o da ciência, é sempre um acto solitário, um impulso de um determinado indivíduo que, paradoxalmente, não encontra a sua razão de ser, fora da sociedade e da cultura em que apareceu e pôde desenvolver as suas ideias. Razão e emoção não são antagónicas, mesmo que pareçam, mas complementares e o vínculo de união entre ambas, poderá ser garantido pela música. Esta era a convicção de Fidelino que considera que a maior criação musical se adapta ao espírito da época e a ser assim, encontra-se embrenhada em todas as fases da história da humanidade. Facilmente se percebe que sabendo a história da música se pode ensinar a história da humanidade, o que de facto é evidente. Por outro lado, juntamente com a matemática, a música tem uma “gramática” única, que se impõe a todos os indivíduos independentemente do tempo, do lugar, da cultura, da lingua mãe... É pela música que aspiramos a comunicar com o absoluto ou o desconhecido. Veja-se como na especulação sobre a possibilidade de haver outros habitantes em diversas partes do universo, os cientistas mais teóricos e mais práticos, coincidem na necessidade de estabelecer a comunicação através de uma linguagem universal e nessa linguagem, a música tem ocupado lugar de destaque, já que, em relação à matemática, tem a vantagem de ser apreendida a partir da interioridade de cada um e não por um sistema de símbolos mais ou menos elaborados que não são naturais aos indivíduos. A universalidade da linguagem matemática depende de um compêndio prévio que

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é anterior e sobreviverá a cada indivíduo, enquanto que a essência da música continuará a residir no mais íntimo de cada um. A grandeza da música impõe-se também em relação à filosofia através do carácter universal da sua linguagem. A filosofia é especulação, tantas vezes um jogo de metáforas para aproximar o que não é equivalente, para dar forma àquilo que é informe. A música é emoção, une pela mesma via o homem ao universo, fazendo-o, ainda que momentaneamente, aproximar-se da unidade original. A música impõe-se à Filosofia porque esta nunca deixa de especular sobre o factual e mesmo quando se refere à metafísica, tem sempre como ponto de apoio a física, da qual não se consegue livrar: “Não há filosofia digna de respeito, sem uma sólida base científica; a especulação abstracta só nos conduz a uma ignorância douta, mas tão vã quanto a ignorância ingénua” (ib.: 107). Um saber tão complexo, quanto abstacto, como é a filosofia “Obra da inteligência pura e dirigida só à inteligência de alguns eleitos, a filosofia escassa consolação proporciona aos homens comuns, à sua chusma incontável, das tribulações do mal de viver” (ib.: 109). Especulando filosoficamente o homem não encontra um sentido para a sua existência. Pela emoção que a música lhe proporciona, o indivíduo não só se pode traquilizar existencialmente, como, ainda, pode ficar mais próximo da compreensão da totalidade, uma vez que a música lhe fornece as bases para se entender como parte de um todo. Fidelino não fala de toda a música, mas da grande música, distinguindo assim o acto de criação musical. A grande música, para si surge na “Renascença e só depois de Beethoven e do Romantismo incorpora em si e expressa a totalidade do drama humano” (ib.: 112). A filosofia como sistema é muito anterior à excelência da música aqui apontada, esta talvez não se possa compreender na sua totalidade sem a primeira, mas no mais essencial elas são inconfundíveis. A filosofia esquematiza, a música uniformiza. A filosofia nasce como proposta de explicação, a música como ânsia de pacificação, a filosofia utiliza uma linguagem lógico-conceptual, a música uma linguagem universal: “A grande música não é obra da inteligência pura endereçada à pura curiosidade intelectual; nasce de uma eferverescência criadora que revolve e afecta a personalidade total do artista e se destina a afectar e revolver a personalidade total de cada ouvinte” (ib.: 114).

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Nós, enquanto indivíduos, existimos no absoluto, mas o Absoluto para nada precisa de nós. O absoluto é o que está para lá da consciência da nossa existência e dos esquematismos da nossa razão. O absoluto antecede e sucede ao episódio da nossa passagem pela existência. A música põe-nos em contacto com o que nos aparece, com o quotidiano, através dos sons. A música, para Fidelino, supera todas as outras experiências estéticas, tais como a pintura, a poesia, a literatura: “É coisa de enigmática fantasia, que a poesia e a pintura podem também produzir, ainda que em proporções muito menores, porque nas ficções em palavras e em cores, há um condicionamento lógico, de que se não pode apartar muito o artista sem risco de cortar a comunicação ao seu público” (ib.: 138).

O nosso pensador quer estabelecer a música enquanto espécie de saber promotor da unicidade dos seres e doador de sentido aos aspectos do universo que se prendem com o desenlace da vida humana. Para si as relações da música com o universo são “do mesmo tipo que a física ou a química ou outra qualquer ciência da natureza, que por esforços porfiados e com processos e aparelhagem que prolongam e multiplicam o alcance dos sentidos e lhes corrigem os dados, têm chegado a estabelecer contacto com a estrutura do universo”

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(ib.: 142-143).

E qual é então a linguagem que a música usa? “As sílabas da sua linguagem são as notas e os acordes com seus acidentes. E as notas e os acordes não são mais que vibrações, as quais se inscrevem com seu campo próprio no movimento vibratório universal” (ib.: 143), dando-se a conhecer pela sinfonia que é “energia universal captada e estilizada em pensamento, emoção e beleza, e articula-nos ao absoluto da maneira mais vitoriosa e enobrecedora da nossa condição” (ib.: 144). É uma composição humana de carácter abstracto, cujo produto não é possivel ser comprovado na natureza, tal qual as equações matemáticas. A música, tal como a filosofia não têm nenhuma utilidade prática para os seres humanos. Existem para nos colocarem mais perto do absoluto, mas isso não as torna em experiências existênciais que revistam um

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cariz especial. A sua razão de ser prende-se com a vontade dos espíritos menos conformados continuarem a tentar uma aproximação ao sentido da nossa existência. Tal como aqui é apresentada, a música, contudo, para se afirmar como via do conhecimento, carece de uma filosofia, pois Fidelino não consegue escapar ao mundo da individuação e por isso, deseja explicitar a sua razão de ser através do discurso articulado e lógico que vem criticando. Quer que a música se imponha por si ao ser escolhida como forma de acesso ao absoluto por parte de cada um, mas à boa maneira dos racionalistas, deseja justificar e fundamentar a sua escolha e a respectiva eficácia. Por isso pretende que se constitua uma “filosofia da Música, porque na música se levantam agudos e complexos problemas gerais, muito seus peculiares, e se condensam muitas intuições, que é preciso desentranhar e organizar” (ib.: 146). Em minha opinião, não há nenhuma necessidade de objectivar a música. Ela, de facto, como todos os saberes que nos chegam directamente através dos sentidos põe-nos mais perto da nossa origem e lugar no universo, mas tal como os restantes saberes, só por si, nada nos poderá revelar sobre o sentido último da existência. A música deve falar de coisas simples como simples é o nosso nascimento e a nossa morte, mesmo que essa simplicidade nos surja envolta num complexo emaranhado de construções e sensações. Se quisermos intelectualizar a música, faremos dela algo parecido ao estudo do latim que aqui se critica e, então, talvez esta iniludível essencialidade no desenvolvimento de cada indivíduo que temos que reconhecer à música nas suas mais variadas manifestações possa deixar de se evidenciar, tal como aconteceu com o passagem do conhecimento mítico ao conhecimento racional, o qual progressivamente, desvalorizou a subjectividade e os dados da sensação e, fruto desse corte radical os indivíduos apenas viram aumentar a sua estranheza em relação ao todo de que fazem parte e sem o qual não são capazes de subsistir.

Bibliografia Figueiredo, Fidelino (1954). Música e pensamento. Lisboa: Guimarães Ed.. Amora, A. Soares (1989). O essencial sobre Fidelino de Figueiredo. Lisboa: IN-CM.

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Carneiro, Mário (2000). “Fidelino de Figueiredo”, in História do pensamento filosófico português (dir. Pedro Calafate). Lisboa: Caminho, pp. 402-424. Carneiro, Mário (2003). Dicionário de educadores portugueses (coord. António Nóvoa). Porto: Asa, pp. 566-568. Carvalho, Amorim (1974). Fidelino. Um filósofo da transitoriedade, bol. 19. São Paulo: USP. Manso, Artur (2009). “Para uma filosofia da educação de matriz portuguesa: o contributo de Fidelino de Figueiredo”. Itinerários de Filosofia da Educação, nº 7, pp. 3-19.

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COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL DE FORTALEZA: DA LEGISLAÇÃO ÀS PRÁTICAS PEDAGOGICAL COORDINATION IN PUBLIC SCHOOL AT FORTALEZA: FROM LAW TO PRACTICE. Maria Auxiliadora Soares Fortes BRASIL – FINANCIAMENTO: CAPES

Carlota FernandesTomaz e Ana Isabel Andrade CIDTFF- UNIVERSIDADE DE AVEIRO/PORTUGAL

Introdução

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O PRESENTE ARTIGO É PARTE DE UMA PESQUISA MAIOR INTITULADA: “COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA NA REDE MUNICIPAL DE FORTALEZA – SENTIDOS E ALCANCE” , cujo objetivo central foi apreender o significado dos contextos formativos presentes nas ações desenvolvidas pelo coordenador pedagógico no cotidiano escolar. A investigação abrangeu duas vertentes: uma explorou os fatores de substituição e de relação entre a supervisão escolar e a coordenação pedagógica; outra buscou explicitar os significados e as características das ações de coordenação pedagógica no dia-a-dia da escola. Neste artigo, vamos nos deter apenas na segunda vertente focando os impactos da Portaria 174/2008, voltada para as estatísticas do nível de aprendizagem discente, no trabalho diário de coordenação pedagógica na escola; evidenciados nos resultados da análise dos dados. [1]

COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL DE FORTALEZA: DA LEGISLAÇÃO ÀS PRÁTICAS Maria Auxiliadora Soares Fortes, Carlota FernandesTomaz e Ana Isabel Andrade

Pesquisa realizada por ocasião do pós-doutoramento no Centro de Investigação Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF), do Departamento de Educação da Universidade de Aveiro, com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sob a supervisão das Professoras Carlota Fernandes Tomaz e Ana Isabel Andrade. 1

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Convém realçar que, em 2007, como parte do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), o governo federal lançou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), oferecendo um apoio técnico e financeiro aos municípios com indicadores educacionais mais baixos (Decreto Nº 6.094/2007). O aporte de recursos se deu por meio da adesão ao Compromisso Todos Pela Educação[2] e elaboração do Plano de Ações Articuladas (PAR). Neste contexto, para os governos federal, estadual e municipal o grande desafio que se coloca é o de reverter o quadro do baixo índice de desempenho escolar que apresentam os alunos de 2º, 5º e 9º Ano da rede pública de Ensino Fundamental, traduzidos pelos dados de aprovação, extraídos do Censo Escolar e pelas médias de desempenho em Português e Matemática nas avaliações do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e Provinha Brasil. Com isso espera-se progredir da média nacional de 3,8, obtida em 2005 (início das metas a serem atingidas no Ensino Fundamental), para 6,0 em 2022, atingindo o apatamar educacional de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Assim, para que o Ideb de uma escola ou rede cresça é necessário que o aluno tenha um bom desempenho na avaliação externa, não repita o ano e freqüente a sala de aula. Nessa busca, o município de Fortaleza apresentando média[3] abaixo da estipulada, dentre outras ações, instituiu a Portaria 174/2008, a qual estabelece e normatiza a função de coordenação pedagógica na sua rede de ensino. Por determinação da referida Portaria, os supervisores escolares “automaticamente” assumiram esta função e, no caso dos orientadores educacionais, puderam manifestar o interesse, por meio de formulário específico, e os professores interessados em desempenhar a função de coordenação pedagógica passaram por um processo de seleção interna, denominado credenciamento. Neste quadro, surge o coordenador pedagógico na rede municipal de Fortaleza, cujas funções indicam, por meio dos dados obtidos, Plano de metas que integra o Plano de Desenvolvimento da Educação, elaborado pelo governo federal, com vistas à mobilização em torno da melhoria da educação básica brasileira. 3 Ideb do Município de Fortaleza em 2005 foi 3,2, em 2007 foi 3,4 e em 2009 foi 3,9. 2

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estar, ainda, mal compreendidas e com forte vinculação às atividades burocráticas e administrativas. Contudo, acreditamos na importância e necessidade da presença deste profissional na escola, na perspectiva de um trabalho que possibilite a articulação crítica entre professores e seu fazer educativo e que seja concomitantemente formativo e emancipador, pelo que importa pesquisar o que acontece nas escolas de modo a encontrarem-se formas que contribuam para a melhoraria da compreensão dessas mesmas funções. Entendemos que estes destaques nos ajudam a compreender que a função de coordenação pedagógica não se vai estabelecendo de forma isolada e sem significados nas reformulações políticas e pedagógicas que estão ocorrendo. Portanto, não deve ficar restrita à análise de um determinado comportamento ou de uma resposta individual. Precisa incluir e abranger uma discussão política porque ela diz respeito às relações estabelecidas entre os grupos humanos e por isso mesmo não está fora das relações de poder. Nesse contexto, este artigo tem como ponto de partida a crença na importância do coordenador pedagógico na escola como agente de melhoria na realização do trabalho docente; considera que as análises pautadas nas ideias críticas em educação podem oferecer maior compreensão das especificidades da ação de coordenação pedagógica, bem como das necessidades com que esta se defronta nos dias atuais.

Desesnvolvimento do Estudo

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Com base no problema apresentado, bem como na necessidade de um referencial capaz de iluminar as análises da realidade pesquisada, optamos por autores, cujas concepções teóricas não se limitam a questionar, de forma pessimista, os arranjos sociais existentes, apontando possibilidades para a compreensão e melhor desempenho das ações do coordenador pedagógico na escola. Nesse sentido, o pensamento de Freire (1987) amplia o entendimento acerca do processo educativo quando define, também, a educação como prática de libertação. Na sua perspectiva de análise, por meio da educação, o sujeito amplia sua visão de mundo e se prepara para atuar de forma crítica e transformadora, favorecendo o desvelamento das razões

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de ser de certas situações e, por conseguinte, ampliando o que há de fundamentalmente humano no ato de educar, o seu caráter formador. Nesta medida, o autor destaca que educar é efetivamente formar, exigindo uma prática pedagógica que perceba o outro nas suas semelhanças e diferenças. Portanto, não é restrita à análise de um determinado comportamento ou de uma resposta individual. Inclui e abrange uma discussão política porque ela diz respeito às relações estabelecidas entre os grupos humanos e, por isso, não está fora das relações de poder. Considerando que o trabalho dos agentes responsáveis pela contribuição na melhoria das práticas dos docentes é acima de tudo reflexivo e questionador destacamos a importância das contribuições de Alarcão (2000), Tomaz (2007) e Sá-Chaves (2011), por evidenciarem, dentre outros aspectos, que se trata de um trabalho mediador e interativo no qual a reflexão se constitui na principal estratégia para a construção e reconstrução dos saberes e fazeres nos cenários supervisivos que permitam integrar, de forma congruente, as necessidades consoantes a cada situação. O que se aplica também ao coordenador pedagógico. Nesse contexto, a práxis como exercício pedagógico permite ao ator social, enquanto sujeito histórico e coletivo, acessar os caminhos de sua autonomia. Portanto, a consolidação de um projeto de autonomia, sobre o qual o trabalho supervisivo (e também de coordenação pedagógica, na nossa compreensão) está ancorado, poderá propiciar as condições para que os sujeitos atuem de forma colaborativa, crítica, indagadora e investigativa (Alarcão, 2000), compreendendo de modo cada vez mais claro as suas ações e transformações. Mate (2009) e Placco (2009), dentre outros, contribuem para a reflexão do significado do coordenador pedagógico, explicitando aspectos que compõem o seu desenvolvimento profissional no dia-a-dia da escola. Aspectos estes que demonstram claramente a complexidade desse fazer pedagógico, em confronto com as demandas diárias da escola. Acreditando que a abordagem metodológica privilegiada decorre da suposição de que é muito importante para o pesquisador (re)conhecer a existência de diferentes lógicas de ação em pesquisa, portanto devendo manter-se coerente em cada uma delas na medida em que defende suas concepções em oposição a outras (Silva, 1998), optamos por uma pesquisa de base qualitativa (Bogdan e Biklen,1994), por ser esta a mais adequada

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aos propósitos já enunciados, delineada com base em levantamento bilbiográfico, análise documental, observações, conversas informais, questionários e entrevistas semi-estruturadas. Nesta linha, o estudo foca-se nos significados que os sujeitos vão atribuindo aos eventos Esta pesquisa foi desenvolvida com seis, ex supervisoras, coordenadoras pedagógicas (SCP), lotadas em escolas da rede municipal de Fortaleza, em cada uma das seis Regionais[4]. Portanto, os trabalhos de campo ocorreram em uma escola de cada uma das Regionais de Fortaleza, perfazendo um total de seis, no período de novembro de 2010 a abril de 2011. As observações envolveram momentos de aproximação com as seis coordenadores pedagógicos (SCP), participantes do estudo em várias situações. Dessa forma, o cotidiano permitiu acompanhar momentos constituintes da prática desses sujeitos como um todo: planejamento, reuniões, interação com os colegas e outros momentos de socialização que vieram a ocorrer. O fazer desse profissional foi tomado, assim, numa acepção mais ampla, envolvendo diversas situações na qual o mesmo atuou. Todo o material coletado foi descrito em seus detalhes de forma a permitir uma maior aproximação da realidade, como defendem Bogdan e Biklen (1994) os investigadores qualitativos precisam analisar os dados em toda a sua riqueza, respeitando, tanto quanto possível, a forma em que estes foram registrados ou transcritos. Por fim, os dados geraram um banco de dados, os quais foram analisados com o auxílio do software webQDA[5].

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Coordenação Pedagógica no Cotidiano da Escola Municipal de Fortaleza – o que pensam os sujeitos A coordenação pedagógica vem integrando o cenário educacional brasileiro há tempos, mas foi somente em 2008, por ocasião da

A cidade de Fortaleza está dividida em seis regiões. Em cada uma delas existe uma Secretaria Regional, que, dentre outros setores, mantém um Distrito de Educação responsável pelas escolas circunscritas na sua respectiva área geográfica. 5 Software para análise de dados qualitativos. Formação realizada no Departamento de Educação da Universidade de Aveiro, como parte das atividades no pós-doutorado. 4

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implementação da Portaria 174, que passou a fazer parte oficialmente das escolas na rede pública municipal de Fortaleza. De acordo com Fernandes (2004) apesar de inúmeros esforços, a função do coordenador pedagógico na escola tem gerado aparente divergência e contradições, uma vez que tem sido colocada em discussão diante dos vários contextos da prática social da educação, da reestruturação curricular dos cursos de pedagogia, das alterações na legislação do ensino e, sobretudo, diante as demandas da práxis educacional no dia-a-dia escolar. Desse modo, podemos pensar o trabalho de coordenação pedagógica na escola como bastante desafiador e complexo, notadamente, na compreensão do seu papel nas tarefas de articular e contribuir para os processos de ensino-aprendizagem, bem como para a formação dos professores. As pesquisas realizadas (Roman, 2001; Garrido, 2009; Mate, 2009; Placco, 2009) demonstram a urgência em construir um caminho que vibialize o coordenador pedagógico contribuir para a melhoria do trabalho docente. Em outras palavras, é necessário modificar o cenário de coordenação pedagógica que apenas “administra” e acompanha as práticas pedagógicas de forma atropelada pelas urgências das demandas escolares. Acrescida a estas discussões, nossa pesquisa indica outro entrave na ação do coordenador pedagógico na escola, que se refere ao direcionamento de ações voltadas, quase que exclusivamente, para os resultados e frequência das turmas de 2º, 5º e 9º Ano, cujos dados comporão o Ideb. Assim, expressões como bônus e méritos, passaram a fazer parte do dia-a-dia das escolas e a definir padrões mais engessados no desenvolvimento e no acompanhamento das atividades pedagógicas. Portanto, a análise contextual e crítica das necessidades sentidas pelas coordenadoras pedagógicas mediante a implementação da Portaria 174/2008, indicam, dentre outros aspectos, a necessária compreensão do papel profissional desses sujeitos, que coagidos pelas urgências das ações e pressionados pelas investidas governamentais na busca desenfreada e imediata de alteração nas estatísticas encontram-se enfraquecidas frente às demandas burocráticas que, na maioria das vezes caminham apenas improvisando soluções a curto prazo e, assim, “contribuindo” com o maquiamento da realidade escolar.

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Apesar dos esforços do poder público municipal de Fortaleza em reverter o atual quadro de desempenho escolar na sua rede de ensino, incluindo-se ai a presença do coordenador pedagógico nas escolas de sua rede, muitas dificuldades precisam ser resolvidas. Percebe-se que a busca imediata pela alteração dos resultados do Ideb também têm causado dificuldades para estes atores sociais no dia-a-dia da realidade investigada. Concordamos que haja esforço para a melhoria do ensino nas escolas. Contudo, a fala das SCP retrata, dentre outras questões, que a implantação da Portaria 174/2008 foi um processo impositivo e incoerente. Impositivo porque as decisões chegaram sem os devidos esclarecimentos, mas com uma carga de responsabilidade que “obrigou” a criação de formas, as mais perversas possíveis, para colocá-las em prática. Incoerente porque não existe possibilidade de transformação e melhorias reais de uma realidade escolar a curto prazo; com atendimento apenas a uma parcela das turmas, bem como com atividades voltadas exclusivamente para a resolução das questões de um determinado exame avaliativo. Essas “prescrições”, ainda que sustentadas pelo discurso de melhorias educacionais, parecem gerar uma sensação de impotência diante da necessidade de resolver, em um ano, o problema de baixo desempenho dos alunos, de forma nada reflexiva e problematizadora, o qual se arrasta a anos na escola básica pública brasileira. Em vista do exposto cabe destacar que, na tentativa de responder às necessidades educacionais, na escola, o papel do coordenador pedagógico torna-se confuso e este profissional acaba por assumir outras atribuições, fragilizando, assim, sua práxis pedagógica. Desse modo, além da necessidade de resultados imediatos na “aprendizagem” dos alunos, a aparente falta de uma política que garanta a realização de ações básicas, tais como: planejamento pedagógico, grupos de estudo e a indefinição dos papéis (que aparenta um “jogo de empurra” no dia-a-dia da escola) também apresentam-se como incômodos e entraves que limitam uma prática de coordenação pedagógica que realmente favoreça a contribuição na construção de uma escola de qualidade que tanto almejamos. Portanto, a dimensão: reflexiva, organizativa, avaliativa, interventiva em uma perspectiva colaborativa, do trabalho do coordenador

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pedagógico na escola ficou comprometida, considerando que as atividades de cunho meramente burocrático foram priorizadas. Nesse contexto, as expectativas das SCP em relação ao desenvolvimento do seu trabalho na escola, dada a implantação da Portaria 174/2008, acenam mais para a insatisfação e angústias, apesar de perceberem nas ações e reações dos professores motivação para acreditarem que vale a pena lutar e seguir em frente. Em meio a essas contradições vão construindo caminhos, apostando que é necessário “um coordenador consciente de seu papel, da importância de sua atualização [formação] e do desenvolvimento de um trabalho em parceria com os professores, com a escola e com a sociedade” (SCP 2).

Considerações Finais 222 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

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Considerando os argumentos aqui descritos é válido destacar que, apesar de não ser uma novidade, é necessário fazer das políticas públicas para a educação institucionalizada um encontro com os reais anseios e necessidades de quem vivencia e constrói o dia-a-dia da escola. Dar voz aos coordenadores pedagógicos, ex supervisores, para desenvolver este trabalho também teve a intenção de remeter para a compreensão dos contextos nos quais se inserem as suas ações no cotidiano escolar e perceber nelas o que se refere a quadros mais específicos, como por exemplo, o que significa para esses atores sociais a implantação da Portaria 174/2008 na rede municipal de Fortaleza, articulando-a aos contextos sociais e culturais. Assim, é perceptível que as ações diárias da escola não se restringem a única lógica, portadora de dominação, mas a muitas outras (apesar de toda angústia e esforços) construídas sobre a base das experiências comuns, reflexo das história de vida dos sujeitos e que determina a forma como pensa, percebe-se e relaciona-se. Portanto, é por estas, e outras possibilidades já indicadas por Giroux (1996), que também acreditamos: não é só dominação, é também contestação e luta. Reconhecer tal fato implica pensar a coordenação pedagógica como um espaço que também há interesses conflitantes. Os dados coletados explicitam que, apesar da contribuição das concepções

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críticas de educação, ainda persistem a visão e práticas impositivas dos Programas, Projetos, Portarias e outros mais, destinados às escolas. Assim, evidencia-se que os limites e as perspectivas de atuação do coordenador pedagógico encontram-se, de certa forma, imbricadas no seu fazer cotidiano. É preciso que os responsáveis pelo gerenciamento das escolas municipais criem condições objetivas para que o coordenador pedagógico exercite, com maior clareza seu campo de atuação, tornando suas atribuições e o seu papel melhor conhecido no interior da escola.

Referência Bibliográfica Alarcão, I. (org.). (2000). ESCOLA REFLEXIVA E SUPERVISÃO: uma escola em desenvolvimento e aprendizagem. Porto: Porto Editora (colecção CIDInE). Bogdan, R. Biklen, S.(1994). Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora.

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Brasil. (2007). Decreto 6.094. Diário Oficial da União de 25/04/2007. Seção 1, edição 79, página 5. Brasília: Imprensa Nacional. Fernandes, M. J. S. (2004). Problematizando o trabalho do Professor Coordenador Pedagógico nas Escolas Públicas Paulistas.114p. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Universidade Estadual Paulista. São Paulo. Fortaleza. (2008). Portaria 174. Diário Oficial do Município de 16/07/2008. Ano LVI, Nº 13.859, páginas 38 e 39. Fortaleza: Imprensa Oficial do Município de Fortaleza.

COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL DE FORTALEZA: DA LEGISLAÇÃO ÀS PRÁTICAS Maria Auxiliadora Soares Fortes, Carlota FernandesTomaz e Ana Isabel Andrade

Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Garrido, E. (2009). Espaço de Formação Continuada para o Professor-Coordenador. In: Bruno, E.B.G. et tal (org.) O Coordenador Pedagógico e a Formação Docente. São Paulo: Edições Loyola. Giroux, H.(1986). Teoria Crítica e Resistência em Educação. Trad. Angela Biaggio. Rio de Janeiro: Vozes. Mate, C.H. (2009). Qual a Identidade do Professor Coordenador Pedagógico? In: Bruno, E.B.G. et tal (org.) O Coordenador Pedagógico e a Educação Continuada. São Paulo: Edições Loyola. Placco, V. M. N. de S.(2009) O Coordenador Pedagógico no Confronto com o Cotidiano da Escola. In: Almeida, L. R. de & Placco, V. Mª N. de S. (org.). O Coordenador Pedagógico e o Cotidiano da Escola. São Paulo: Loyola.

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Roman, Marcelo D. (2001) O Professor Coordenador Pedagógico e o Cotidiano Escolar: um estudo de caso etnográfico. 237 p. Dissertação (Mestrado). Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo. Sá-Chaves, I da S. C. (2011). Formação, Conhecimento e Supervisão – contributos nas áreas da formação de professores e outros profissionais. Aveiro: Universidade de Aveiro. Silva, R. C. (1998). A falsa dicotomia qualitativo-quanitativo: paradigmas que informam nossas práticas de pesquisas. In: Geraldo, R. e Zélia, B.(orgs.). Diálogos Metodológicos sobre Prática de Pesquisa. Ribeirão Preto: Legis Summa. Tomaz, C. F. (2007). Supervisão Curricular e Cidadania: novos desafios à formação de professores. Tese de Doutorado. Aveiro: Universidade de Aveiro.

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O UNIVERSALISMO INTERNACIONAL DE HABERMAS À PROVA: CRÍTICAS A UMA FILOSOFIA POLÍTICA DO CONSENSO Silvério da Rocha-Cunha UNIVERSIDADE DE ÉVORA

§ 1. O DIREITO INTERNACIONAL MODERNO FORMOU-SE A PARTIR DO MOMENTO EM QUE,

finda a última tentativa de unificar a Europa em nome de um princípio supranacional, com a Guerra dos Trinta Anos, se estabeleceu, a partir de 1648, a “lógica de Westphalia”: um direito estabelecido por um sistema de Estados politicamente independentes e territorialmente soberanos [1]. Não vamos efetuar o exame da evolução dos diversos modelos e regimes político-internacionais da era moderna até aos dias de hoje, mas importa desde logo sublinhar, por um lado, e como já foi dito por um Braudel, que falar da “história do mundo” é falar de rios sem margens, onde coexistem diversas “histórias”, hoje postas em xeque pelo domínio de um modelo de “tempo mundial” a que comummente se chama “globalização”; por outro lado, importa notar ainda que, para além das diversas evoluções histórico-políticas que se foram sucedendo, o paradigma foi sendo sempre o mesmo nas suas linhas essenciais. É certo que há consideráveis diferenças entre a sua primeira fase, o

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Cf. Truyol y Serra (1994), La Sociedad Internacional; Carrillo Salcedo (1991), El Derecho Internacional en Perspetiva Histórica; Hinsley (1986), Sovereignty; Domingo (2008), ¿Qué es el Derecho Global?, esp. pp. 61 ss. 1

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Sistema de Estados Europeus, e as suas posteriores evoluções. Mas a força dos três princípios básicos que instituíram o paradigma moderno (o princípio do equilíbrio do poder, o de cuius regis eius religio e o de rex est imperator in regno suo) modelaram um sistema internacional em crescente expansão até aos dias de hoje. E mesmo quando o Sistema Internacional Mundial (1945-89), baseado na tensão bipolar e na pax timoris ou pax atomica —que subordinou o valor da liberdade a um facto no horizonte de uma civilização técnica[2]—, reduziu indiscutivelmente a soberania da maioria dos Estados, para já não falar da crescente interdependência entre as unidades políticas e povos que se foi acentuando, a verdade é que nenhum dos grandes princípios da política moderna foi substancialmente modificado, porquanto não apenas a Carta das Nações Unidas sempre reafirmou a soberania dos Estados (art. 2.º/1), mas ainda manteve, dentro dos novos circunstancialismos, as suas capacidades para a celebração de atos jurídico-internacionais, consolidando o direito internacional enquanto sistema normativo[3]. De resto, embora de cariz eurocêntrico, o direito internacional moderno não perdeu as suas características básicas, pois as circunstâncias históricas que o têm rodeado não deixaram de acentuar tais características. Como diz Tanzi [4], o paradigma de Westphalia não é uma teoria das relações internacionais, mas expressão histórica de uma distribuição plural do poder na cena internacional, assim se compreendendo que, mesmo no auge do sistema bipolar, nunca tenham deixado de surgir pulsões soberanistas que percorreram momentos e unidades políticas tão díspares como, por exemplo, a França com de Gaulle ou os independentismos nacionalistas do chamado “Terceiro Mundo”. Por fim, mesmo com o relativamente súbito desaparecimento do mundo bipolar, entre 1989 e 1991, não caiu a ordem fundada na soberania do Estado, antes se acentuando segundo alguns autores a preeminência do Estado[5], na medida em que o mundo heterogéneo de hoje vê surgir novas potências como os chamados BRICS, apesar de ser inegável que Cf. Jaspers (1963), La Bombe Atomique et l’Avenir de l’Homme. Cf. Tanzi (2010), Introduzione al Diritto Internazionale Contemporaneo. Para uma análise das mutações cf. Senarclens (1998), Mondialisation, souveraineté et théories des relations internationales. 4 Tanzi, op. cit., pp. 8 ss. 5 Cf. S. SUR (2006), Relations Internationales. 2 3

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a grande maioria dos Estados se encontra “enquadrada”, que novos atores mundiais surgiram, que se encontra em esboço uma nova ordem mundial [6]. A tudo isto acresce que o direito internacional moderno resistiu a tensões brutais, desde o império napoleónico até ao unilateralismo neoconservador dos mandatos do presidente norte-americano G. W. Bush, passando pelos imperialismos soviético e nazi-fascista [7]. Parecem continuar de pé as pulsões contraditórias que percorrem incessantemente o sistema internacional, a que Truyol y Serra[8] chama tendências centrífuga e centrípeta, consistindo a primeira no facto de as sociedades organizadas propenderem para um sistemático reforço dos seus vínculos internos, para a autossuficiência, para a negação da interdependência e, em última análise, para a negação das relações internacionais; e consistindo a segunda na “inata sociabilidade humana”, que propicia a comunicação e é fonte de vantagens recíprocas. Estas duas tendências resultam, de facto, daquilo a que podemos chamar —na esteira de Herbert Hart[9]— certas circunstâncias básicas da vida humana, que determinam globalmente os comportamentos humanos, tais como a escassez de bens, o mediano utilitarismo do ser humano, a relativa igualdade física e psíquica entre os homens, que obrigam a que desde sempre estes tenham sentido necessidade de cooperar para sobreviver, ainda que essa necessidade implique mecanismos “disciplinares” que de algum modo hierarquizam as relações sociais e provoque os respetivos e inevitáveis antagonismos. Em suma: o que une os homens é igualmente aquilo que os separa. Ora, enquanto os grupos sociais organizados mais restritos, e compostos por indivíduos que desenvolveram graus de afinidade mais profundos (territoriais, étnicos, linguísticos, religiosos, culturais, etc.) entre si, construíram mecanismos normativos relativamente eficazes, na cena internacional a manutenção de relações estáveis entre os grupos é mais precária e dependente de variáveis mais complexas. Independentemente de optarmos por qualquer uma das explicações formuladas pelo pensamento político, forçoso é constatar que a sociedade

6 7 8 9

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Cf. Ph. Moreau Defarges (2000), Relations Internationales, II. Cf. A. Tanzi, op. cit. A. Truyol y Serra, op. cit., p. 20. Hart (1996), O Conceito de Direito, p. 208 ss.

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internacional possui um relativo baixo índice de organização porque os atores principais —os Estados e, cada vez mais, as organizações internacionais— são entes políticos complexos, em número limitado, díspares, atuando num regime de autotutela dos seus interesses, e compostos por seres humanos que, não obstante os avanços culturais e materiais historicamente verificados, vivem sob circunstâncias básicas que geram comportamentos contraditórios.

§ 2.

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Tudo isto, que é verdadeiro, não pode esconder, porém, que a evolução do sistema internacional colocou novos problemas de natureza qualitativa. Com efeito, o facto de, ao contrário das teses que tornaram famoso Fukuyama a respeito do fim da História, nos encontrarmos um novo começo a nível global, mostrou que o sistema internacional passou a viver, a partir de 1945, um outro nível de paradoxos. A inegável densificação axiológico-normativa que se verificou, respondendo às necessidades de um sistema bipolar, sim, mas mais profuso, com necessidade de articular interdependências, trouxe para a cena internacional uma tendência evidente de partilha de valores (económicos, ambientais, militares, no plano dos direitos, etc.), integrando eventualmente soberanias, mas, em simultâneo, não afastou a realidade dos conflitos, apenas os deslocou para o âmbito da coerção coletiva em nome de valores, abandonando os antigos “ajustamentos” entre Estados e coligações de Estados, dirigidos pelo velho ius publicum europæum, que incluíam naturalmente a guerra, mas não lhes atribuíam particular valor. Esta ideia deve, evidentemente, ser ponderada com precaução, pois, de facto, e ao contrário do que as célebres e polémicas teses de Carl Schmitt querem fazer crer [10], as relações conflituosas entre Estados europeus durante o período moderno nunca foram regulares, além de Cf. C. Schmitt (2008), Le Nomos de la Terre; ID. (2007), La Guerre Civile Mondiale (essais 1943-1978); ID. (2011), Guerre Discriminatoire et Logique des Grands Espaces. Sobre Schmitt a bibliografia é gigantesca. Cf. por todos Franco de Sá (2009), O Poder pelo Poder. Ficção e Ordem no combate de Carl Schmitt em torno do Poder, Lisboa, esp. pp. 524 ss., 582 ss.. Villacañas (2008), Poder y Conflicto. Ensayos sobre Carl Schmitt; Balakrishnan (2006), L’Ennemi. Un portrait intellectuel de Carl Schmitt. 10

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o próprio jurista germânico reconhecer que o Ocidente nunca usou o direito internacional relativamente aos povos colonizados no período do chamado “Sistema de Estados ‘Civilizados’”, o que precisamente facilitou a simples ocupação dos imensos territórios de África e Ásia, sobretudo durante o século XIX. Seja como for, porém, é uma realidade que hoje é mais do que nunca visível que o interesse coletivo, óbvio em muitos aspetos dos direito internacional, apenas o é de forma parcelar e contraditória. Mais: produziu uma cascata de efeitos completamente imprevistos, como até certo ponto seria de esperar. Por um lado, aos pactos e convénios em torno dos direitos, à sucessiva liberalização do comércio internacional (que transformou o GATT em WTO/OMC), não correspondeu uma efetiva democratização do mundo, nem uma mais eficiente redistribuição da riqueza, para já não falar de um mínimo de unificação do mundo em torno de valores, e os exemplos aí estão, na sua extraordinária dimensão, para no-lo recordar: a crise da Somália em 1993, o genocídio do Ruanda em 1994, o processo da guerra civil na ex-Jugoslávia ainda hoje por resolver [11]. É certo que o sangrento episódio do 11 de setembro de 2001 unificou a maior parte da opinião mundial, mas não assim a guerra do Kosovo em 1999 (cujos efeitos definitivos ainda se desconhecem) ou a intervenção no Iraque em 2003, onde foram claros os argumentos de autolegitimação moral contra legem da parte dos Estados Unidos [12], que abriram, naturalmente, um perigoso precedente no futuro para qualquer tipo de interesse estratégico que uma potência julgue digno de especial tutela, mas que ilustraram igualmente os limites de qualquer potência hegemónica que já não pode dispensar políticas de aliança. Por outro lado, contudo, é facto que os novos conflitos ultrapassam em muito as fronteiras dos Estados, além de que a própria densificação axiológico-normativa já referida produziu órgãos, a começar pela ONU, que implicitamente obrigam a uma linguagem partilhada, pois constituem-se como assembleias onde se opõem competição e cooperação. No sistema internacional contemporâneo existe como uma permanente dialética entre interdependência e antagonismo, escombros 11 12

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Cf. Tanzi, op. cit., pp. 17 ss. ID., ibid., p. 20.

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e obstáculos ao lado de uma esperança sempre reanimada. Quando a Assembleia Geral da ONU aprova resoluções de eficácia duvidosa mostra, como em negativo de fotografia, que até o mais débil pode falar, desenvolvendo dinâmicas que colocam questões globais de ordem prática que suscitam o debate entre as relações de poder e a justiça, mesmo que haja aqui muito de ficção e esta desempenhe o seu papel ideológico [13]. Todavia, nem por isso nos devemos esquecer de que a concretização de muitos dos valores que o sistema internacional pretende por vezes encarnar e até sistematizar implicam que sejam os Estados concretos a realizá-los, mais do que as instituições, o que de imediato coloca o problema de saber se o não fazem apenas por interesse estratégico e unilateral. Neste sentido, a menos que seja reinventado como um novo e compartilhável “vocabulário de ideias” [14], nomeadamente com o alargamento que o discurso dos direitos humanos sempre propicia, o direito internacional veicula valores que são em boa medida aplicados sob um prisma do interesse “privado” dos Estados mais poderosos. As normas primárias e as normas secundárias do sistema jurídico-internacional entram em rutura porque não se entrelaçam harmoniosamente, passando a realidade a ilustrar aquilo a que se pode chamar, e bem, uma regressão do direito internacional[15]. Evocando Montesquieu, quando este chama a atenção para o facto de o homem ser tentado pela desmesura do poder, ultrapassando sempre os limites (“Quem diria! A própria virtude necessita de limites.” [16]), foi já observado [17] que nunca será possível decidir em absoluto da justificação de uma intervenção armada quando, na realidade, o sistema internacional é dominado por diretórios de potências que passam por

Cf. Chemillier-Gendreau (1987), “Origine et rôle de la fiction en droit international public”, pp. 153 ss. 14 Tanzi, op. cit., pp. 22 s. O A. reproduz uma ideia de Sir Robert Jennings, antigo Presidente do Tribunal Internacional de Justiça. 15 Cf. P.-M. Dupuy (1987), “L’individu et le droit international (Théorie des droits de l’homme et fondements du droit international)”, pp. 119 ss. 16 Montesquieu (1998), Del Espíritu de las Leyes, liv. XI, cap. IV. 17 Cf. Kolb (2003), Réflexions de Philosophie du Droit International, p. 33. O A. refere-se ao caso concreto da guerra do Kosovo onde, mesmo admitindo a sua justificação, nunca se poderá responder com clareza a perguntas tais como: “Uma vez a porta aberta, onde se deterão os intervenientes?” ou “onde serão encontrados checks and balances?”. 13

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cima de cuidadas interpretações da lei internacional. Tal como nos sistemas políticos internos, onde o medo suscita a pulsão centrífuga, também no sistema político internacional o medo face a ameaças gerais tende a refluir para a soberania dos Estados. Perante a dificuldade de um verdadeiro diálogo internacional sem violência, baseado em valores comuns, onde a um tempo os dialogantes reconheçam uma verdade e uma justiça que lhes sejam transcendentes e imanentes, poderemos interrogarmo-nos sobre a utilidade de uma frase que traduziria muito bem esse estado de espírito: “capacidade para ouvir o outro pensando que ele teria podido ter razão” [18]. Porque, forçoso é reconhecê-lo, vivemos, como bem apontou Jaspers numa previsão que talvez nem imaginasse quão profética seria [19], numa civilização técnica que não só tende a abolir as guerras em favor dos conflitos, mas também desumaniza a guerra na exata medida em que os atores que usam armas cada vez mais mortais sabem que matam sem sentir perigo para si mesmos, talvez mesmo sem perceber que executam a milhares de quilómetros outros seres humanos, produzindo um novo soldado dos grandes espaços que ignora ontologicamente o diálogo.

§ 3. E, no entanto, o direito internacional moderno possui o seu lado utópico. Não tanto naquele sentido em que se faz um apelo simplificador ao imaginário, mas, antes, no de pressupor que os produtos humanos se traduzem num “excedente” de cultura que é, como diz Ernst Bloch, um laboratorium possibilis salutis, que está sempre para além da sua simples facticidade [20]. Mas como sublinha Serge Sur, o problema da utopia em direito internacional e em relação ao sistema que este pretende regular coloca-se sem referência a procedimentos ou modos de formação do direito, apenas importando princípios que se pretendam

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Gadamer apud Grondin (2000), Hans-Georg Gadamer. Una biografía, p. 332. Jaspers, op. cit., pp. 62 ss. 20 Bloch, “¿Puede frustrarse la Esperanza?”, in C. Gómez (ed., 2007), Doce Textos Fundamentales de la Ética del Siglo XX, pp. 165 ss.; Bloch (1979), El Principio Esperanza, II, pp. 99 ss., 106 ss. 18 19

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sejam universais e absolutos, o que põe o problema da existência de um hiato entre “clareza e completude do resultado” e “indiferença ou ignorância face a procedimentos precisos de realização” [21]. Não se trata de questão despicienda, pois há algo de verdadeiro naquela célebre definição do Direito dada por um dos expoentes do chamado “realismo jurídico americano”, Jerome Frank, quando sustenta que o direito sob a forma de normas existentes mais não é que um conjunto de profecias sobre o que os tribunais efetivamente decidirão [22]. Todavia, não é menos profundamente verdadeiro que as normas, que estes realistas mais não consideram do que “mitos”, são igualmente portadoras de um núcleo “utópico” no sentido de representarem “referências intelectuais e morais que dominam o sistema jurídico”[23], como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Serão, talvez, normas que se projetam de uma forma menos “técnica” na resolução de conflitos, encontrando-se claramente mais próximas do sistema de legitimidade que do sistema de legalidade (mesmo quando integradas no direito positivo), mas nem por isso deixam de se encontrar no horizonte jurídico da consciência humana. No sistema internacional esta dimensão é mais vívida, precisamente porque a unidade do sistema jurídico é muito menos nítida. Mas, por isso mesmo, a dimensão utópica do direito internacional surge de forma mais imediata. Como é do conhecimento comum, e por exemplo, existe um imenso décalage entre os princípios aprovados por organizações internacionais a respeito da necessidade de uma nova ordem económica internacional e os mecanismos realmente postos em execução para cumprimento daqueles. Tem, assim, razão Serge Sur[24] quando coloca a dimensão normativa do direito internacional sob a égide de três ideias: (i) enquanto utopia, é o direito dos fracos; (ii) enquanto organização, é em princípio direito entre iguais; (iii) enquanto “registo”, é o direito dos poderosos. Outros autores evidenciam esta complexidade de uma outra forma, quando falam da existência de três esferas no sistema internacional, que se entrecruzam,

Cf. Sur (1987), “Système juridique international et utopie”, pp. 35 ss. Cf. Frank, “Lo Scetticismo dei Fatti”, in S. CASTIGNONE (a cura di 1981), Il Realismo Giuridico Scandinavo e Americano, pp. 223 ss., esp. p. 242. 23 Sur, “Système...”, cit., p. 38. 24 ID., ibid., p. 41. 21

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colidem frequentemente e por vezes coexistem a duras penas: a dos direitos humanos, a dos direitos dos povos e a do direito dos Estados, onde esta última desempenha o papel do realismo do poder e a primeira exprime a utopia de uma comunidade sem fronteiras[25]. É possível que estas compartimentações sejam excessivas, na medida em que o dilema entre ambições abrangentes e recursos escassos produzam exatamente a coexistência de zonas mais ou menos conseguidas relativamente a fins que são perseguidos por ideais utópicos. É igualmente possível que, como sustenta Guariglia[26], o sistema internacional baseado no paradigma de Westphalia tenha propiciado o conflito para manter um equilíbrio de poder entre Estados soberanos só possível porque o conflito se legitimou pela banalização “institucional” da guerra, além de usar a escassa democratização dos Estados como forma de condução da política internacional, e que esse modelo se tenha esgotado à medida que a democracia se aprofundou nos Estados de Direito, que as sociedades técnicas se tornaram sociedades tecno-científicas demasiado complexas, que as armas de destruição maciça passaram a constituir um freio à guerra incondicional e generalizada[27]. No fundo, as teses do equilíbrio do poder acabam por ignorar, de uma forma ou de outra, as finalidades da ação política internacional, seja porque as colocam no âmbito de uma visão antropológica que pressupõe, mais do que demonstra, a “maldade” humana (caso do realismo internacional clássico de um Morgenthau), seja porque se interessam, tão-somente, por “racionalizar” resultados provenientes das condutas anárquicas dos Estados (caso do neorrealismo de Waltz)[28]. Por isso, autores como Guariglia criticam não apenas este tipo de pensamento [29], mas ainda todos os outros que de alguma forma pressupõem uma visão “dualista” do Direito —de um lado, um sistema jurídico interno consistente, do outro um sistema jurídico internacional turbulento, incompleto, fluido—, com isso englobando pensamentos tão diversos como as

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Cf. Kriegel (1996), Cours de Philosophie Politique, pp. 110 ss. Cf. Guariglia (2010), En Camino de una Justicia Global, pp. 67 ss. 27 ID., ibid., p. 73. 28 ID., ibid. 29 Cf., sobre o desenvolvimento do realismo, Giesen (1992), L’Ethique des Relations Internationales. Les théories anglo-américaines contemporaines; Haslam (2006), A necessidade é a maior virtude. O pensamento realista nas relações internacionais. 25

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conceções realistas ou pós-marxistas, que ignoram ou depreciam a construção do ius cogens, destacando as possibilidades que, apesar de tudo, o pensamento jus-positivista de Kelsen abriu quanto à existência de um verdadeiro direito internacional [30], bem assim como as teses de Rawls, a que se podem juntar as críticas à globalização desregulada que encontramos em autores como Stiglitz e Rodrik, por exemplo [31]. E neste grupo encontra-se, naturalmente, o pensamento internacional de Jürgen Habermas.

§ 4.

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O pensamento de Habermas, que pertence à linhagem dos pensamentos que exprimem uma big Theory, expõe-se a diversas interpretações. Não abordaremos aqui algumas temáticas importantes, como as do patriotismo constitucional e da identidade pós-nacional, que mereceriam tratamento detalhado [32]. E, forçoso é dizê-lo, cremos que o seu pensamento se situa num momento em que se observa com clareza como, pelo menos em certa medida, os tempos de hoje realizaram, de forma algo paradoxal, o fim do “espírito” liberal, arrastando consigo os ideais iluministas. A questão é, pois, a de saber se o “segundo imaginário da história do Ocidente”[33] —o das Declarações de Direitos— permanece com sentido após a inegável violência antropológica que foi a Revolução Cf. Kelsen (2003), La Paz por medio del Derecho; ID. (1943), Derecho y Paz en las Relaciones Internacionales. 31 Cf. Stiglitz (2011), Le Triomphe de la Cupidité, e Rodrik (2011), La Paradoja de la Globalización. Democracia y el futuro de la economía mundial. 32 Cf. por todos Dufour (2001), Patriotisme constitutionnel et nationalisme. Sur Jürgen Habermas; Lacroix (2004), L’Europe en procès. Quel Patriotisme au-delà des nationalismes?; Latour (2009), Vers la République des Différences; Tomé (2004), Las identidades. Las identidades morales y políticas en la obra de Jürgen Habermas. De entre uma bibliografia inesgotável em torno de Habermas, assinalamos, para compreensões e comparações: Ganty (1997), Penser la Modernité. Essai sur Heidegger, Habermas et Eric Weil, Namur; Sintomer (1999), La démocratie impossible? Politique et modernité chez Weber et Habermas; Guibentif (2010), Foucault, Luhmann, Habermas, Bourdieu. Une génération repense le droit; Leite (2008), A Chave da Teoria do Direito de Habermas; McCarthy (1987), La Teoría Crítica de Jürgen Habermas; FERRY (1987), Habermas —l’Ethique de la Communication. 33 Cf. Quesada (2008), Sendas de Democracia. Entre la Violencia y la Globalización. 30

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Industrial e a conquista do mundo pelo Ocidente, terminando na atual sociedade global relativamente “disciplinar” e onde vigora um “estado de exceção” a título quase permanente. Perante esta situação levanta-se o problema de avaliar as respostas de Habermas a um mundo em crise. As respostas de Habermas fundam-se, na democracia deliberativa sob a égide de um princípio moral. E pressupõem que a defesa da separação entre sistema e mundo da vida é não apenas possível, mas ainda necessária. Desta, digamos, “harmonia” —que Habermas não perfilha em absoluto e que condiciona à simetria e debate livre e crítico— nasceria um consenso global racional que permitiria uma política renovada. Não vamos aqui discutir o problema de saber se é ou não possível estabelecer um “cânone democrático” nas sociedades que se identificam com o tradicional Estado de Direito, quanto mais não seja porque, em termos internacionais, seria questão que se limita a uma minoria de Estados soberanos no mundo, além de se entrar na temática da autonomia do mundo sistémico face ao mundo da vida, assunto sobre o qual há diversas interpretações que aqui também não examinaremos, ainda que não possamos deixar de sublinhar que Habermas enfraquece a sua posição quando tende a isolar a sua racionalidade comunicativa de uma ética material [34]. E aqui surge desde logo uma crítica nada desprezível, que parece ter passado ao lado dos “grandes debates” por ter sido escrita originariamente em espanhol, o que possui por si um significado político importante em tempos de dominação da língua inglesa, e por isso é politicamente importante notar isso mesmo, e é a objeção do alemão Franz Hinkelammert[35] quando este aponta as limitações daqueles que (como também é o caso de Habermas) se esquecem de que o mundo é, afinal, mais complexo do que se julga. Trata-se de uma crítica dirigida

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Um crítico de Habermas como é E. Dussel (2009), Política de la Liberación. II— Arquitetónica, pp. 139 ss., sustenta que uma política complexa deverá saber articular momentos estratégicos, instrumentais e comunicativos para não cair em visões formalistas como a de Habermas. Para isso distingue entre potentia (“o poder da comunidade como poder comunicativo”), potestas (a sua institucionalização) e, ainda, entre “um uso obedencial do poder”, ao serviço da comunidade, e “um uso fetichizado do poder autocentrado na instituição como o lugar da soberania e sede do poder político”, que é sempre uma corrupção ontológica do poder. 35 Cf. Hinkelammert (2002), Crítica de la Razón Utópica. 34

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contra autênticos utopismos que, paradoxalmente, têm dirigido a realidade histórica. É verdade que o Autor não visa expressamente Habermas (parte, aliás, do pensamento de Karl Popper), mas, antes, os pensamentos neoliberal (crentes no mercado perfeito) e soviético (leia-se: crentes na planificação perfeita). Mas, na verdade, a crítica de Hinkelammert vai bem mais além, pois do que se trata é de julgar como funcionam os pensamentos que de algum modo se baseiam no formalismo, e nisto une-se a críticos de Habermas como Enrique Dussel. Reconhece que modelos “transcendentais”, não sendo realizáveis empiricamente (será possível acreditar que no futuro se alcançará, de facto, uma verdade a 100% na comunidade ideal de comunicação?), sendo “impossíveis”, desempenham, todavia, um papel fundamental enquanto ideias regulativas. O Autor nota como uma velha ideia (a da limitação do conhecimento humano) se tornou uma novidade no século XX quando passou a “categoria de discernimento da ação social humana”[36], e a partir daí elabora uma crítica muito interessante do paradigma que pressupõe, no fundo, o receio de que, tudo querendo, o homem mais não faz do que exibir uma hubris hedionda. Do que se trata, pois, é do problema da “impossibilidade” [37]. É quase hilariante no âmbito da história das ideias que a ideia de que “não há alternativa” tenha sido utilizada, quer pelo pensamento oficial estalinista, quer por uma neoliberal como Thatcher. Mas, em boa verdade, assim não é, porquanto do que se trata é de um exercício de autolegitimação que, atualmente, com o afundamento do comunismo enquanto modelo histórico, passou a servir em exclusivo o neoliberalismo dominante. Hinkelammert sintetiza este tipo de pensamento em duas simples frases: “Quem tem razão? Quem ganha!” e “A tuberculose ou a cólera são problemas se distorcem o mercado mundial. Se não distorcem, não são qualquer problema” [38]. De que falamos, então? Do facto de o critério formal da eficiência se constituir como critério supremo dos valores não sendo em si mesmo um valor, daqui resultando uma completa tautologização dos valores, que se aplica a quem pensa, como Hayek, que “a justiça não é, 36 37 38

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ID., ibid., p. 19. ID., ibid., pp. 259 ss. ID., ibid., p. 261.

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certamente, questão dos objetivos de uma ação, mas da sua obediência às normas a que está sujeita” [39], ou a quem pensa, como no pensamento estalinista, que só é moral o que promove o desenvolvimento da sociedade comunista de acordo com o que o poder instalado estatui, confundindo “leis da história” e o moralmente bom. Esta espécie de “positivismo ideológico” ignora o que Hinkelammert assinala como essencial: o reconhecimento dos valores humanos substantivos, sem o qual a humanidade não pode viver[40], embora tudo isto implique uma relação com a totalidade do mundo em termos que não são passíveis de um conhecimento integral. Ora, o que tem sucedido é o pensamento prevalecente submeter o humano, juntamente com o resto da natureza, a uma total subordinação a abstrações que o humano criou e não sabe relativizar suficientemente, e abstrações no âmbito de pensamentos fragmentários. Daí o antropocentrismo possuir a dupla face de Jano: de um lado, afirma o Outro como um fim e não como simples meio; de outro lado, em nome da salvação do Outro!, legitima a sua utilização como simples meio, como se coexistissem dois programas políticos, por assim dizer —o “kantiano” e o “sadeano”— em nome de uma mesma política de civilização [41]. O que está em causa para a crítica do Autor é a natureza do sujeito humano, no qual pulsa um autêntico conatus, que olha os objetos de um ponto de vista que abre possibilidades para o “ainda não”. Com as palavras de Hinkelammert: “A realidade transcende a experiência e a empiria do observador, mas como este aspira à totalidade da realidade, não o pode fazer senão recorrendo a conceitos universais. (...) Logo, a realidade transcende a experiência.” [42], donde a dinâmica do sujeito atuante. Todavia, esta dinâmica —que implica planos de vida— depende dos condicionalismos materiais de qualquer escolha [43], o que significa que à neutralidade axiológica da relação meio-fim se sobrepõe a não neutralidade do “projeto de vida que a engloba” [44]. Assim, para “viver há que poder viver” [45], sendo

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Apud ID., ibid., p. 263. ID., ibid., p. 273. 41 Cf. Lombardi Vallauri (1981), Corso di Filosofia del Diritto, pp. 242 ss. 42 Hinkelammert, op. cit., p. 312. 43 ID., ibid., p. 318. 44 ID., ibid., p. 320. 45 ID., ibid., p. 321. 39

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necessário escolher critérios que permitam efetuar escolhas “factíveis”. E, para concluir este tópico, é aqui que o Autor não se satisfaz com a ética formal e transcendental. Com efeito, estas confundirão satisfação de necessidades (aqui incluindo as necessidades “radicais”, como aquelas que abrangem a necessidade de cultura) com satisfação de preferências, o que reduz a verdadeira natureza do sujeito vivente: “a satisfação das necessidades torna possível a vida; a satisfação das preferências, torna-a agradável. Todavia, para poder ser agradável, tem antes de ser possível” [46]. E é a exigência da possibilidade de viver, acrescenta, que é fonte de legitimidade. Destes argumentos poderia retirar-se uma crítica ao facto de no pensamento de Habermas existir sempre uma difícil articulação entre a geração da informação que há de habitar a esfera comunicativa e o espaço porventura muito instrumental do trabalho. Já se percebeu que Habermas pressupõe o compromisso entre interesses que, em teoria, surgem como antagónicos. Como fazer interagir o bem público numa sociedade procedimental com a vida boa que deveriam perseguir os cidadãos? As teses de Habermas relativamente às relações internacionais têm vindo a densificar-se desde que o Autor entrou nos temas de teoria e filosofia do direito sobretudo a partir dos anos 90 do século XX [47]. Também neste domínio tem o Autor escrito com alguma abundância. Partindo de Kant, encarando Carl Schmitt como o verdadeiro pensador “realista” do séc. XX, considera a expansão global do subsistema do dinheiro como uma das mais importantes ameaças do nosso tempo, embora não lhe oponha um projeto de outra ordem económica mundial. Os mercados globalizados constituem uma ameaça porque ameaçam ID., ibid., p. 322. Usaremos livremente as nossas leituras de Habermas (1996), La Paix Perpétuelle. Le bicentenaire d’une idée kantienne; ID., “¿Tiene todavía alguna posibilidad la constitucionalización del derecho internacional?”, in ID. (2006), El Occidente Escindido, pp. 113 ss.; ID., “Constitucionalización del derecho internacional y problemas de legitimación de una sociedad mundial constitucionalizada”, in ID. (2009), ¡Ay, Europa!, pp. 107 ss.; ID. (2008), El derecho internacional en la transición hacia un escenario posnacional; ID. (2000), Après l’État-nation; ID. (2012), Um ensaio sobre a Constituição da Europa. Sobre este tópico em Habermas, cf. Delgado (2002), “Direitos Humanos e Guerra na Filosofia do Direito Internacional de Habermas”, in Seqüência, n.º 45, pp. 31 ss.; Giesen, “Les cosmopolitismes habermassien et derridéen face au terrorismo”, in Chung & Nootens (2010), Le Cosmopolitisme. Enjeux et débats contemporains, pp. 99 ss. 46 47

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diretamente o Estado-nação, dentro do qual se construi o edifício democrático habermasiano. Nem por isso, contudo, Habermas prefere um retorno ao Estado-nação, já que as suas funções legitimadoras e integradoras sofreram uma erosão irreparável. Para o Autor a própria evolução do Estado provou os seus limites, as suas ambivalências, as suas incapacidades e as suas dimensões trágicas. Nestes termos, Habermas passou não só a propor um espaço público europeu [48] (o que não significa uma homogeneização dos povos, como é óbvio), mas também uma Constituição que possa representar uma síntese da Ideia democrática que tem vindo a presidir à unificação europeia no plano dos princípios. Já quanto ao alargamento do espaço nacional rumo a uma espécie de “cosmopolitismo sem fronteiras”, o pensamento habermasiano é francamente mais débil. Aqui, com efeito, coloca-se de forma muito clara a problemática dos particularismos versus o universalismo dos pressupostos que o Autor defende no âmbito jurídico-político, e que se traduz em dificuldades empíricas que de momento surgem como insustentáveis no plano da sua defesa. Contudo, parte para a defesa de um Direito cosmopolita, que forçosamente terá de se sobrepor às soberanias nacionais, nomeadamente em matérias cuja legitimidade não pode ser questionada, como, por exemplo, a ingerência humanitária ou a defesa dos direitos humanos, apesar de todas as dificuldades de constituição de uma consciência de “cidadãos do mundo”[49]. Habermas ousa, no entanto, defender a possibilidade de uma defesa de interesses universalizáveis numa escala internacional, pois o procedimentalismo democrático tem aí um fundamento semelhante, e também porque se impõe uma “rerregulação” da sociedade mundial a partir da esfera pública “vital” de cada sociedade particular, em aprendizagem coletiva numa escala sem precedentes, que permitiria uma reorientação da política mundial sem a existência de um Estado mundial [50]. Todavia, porque a ação estratégica é dominante nas relações internacionais, o filósofo transige com a sua possibilidade na medida em que ela permita

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Cf. Habermas (1998), L’Intégration Républicaine, pp. 151 ss. Cf. ID., Après l’État-nation, cit., pp. 111 ss. 50 ID., ibid., pp. 121 ss.; ID., “Constitucionalización del derecho internacional y problemas de legitimación de una sociedad mundial constitucionalizada”, cit., pp. 116 ss.; ID., “¿Tiene todavía alguna posibilidad la constitucionalización del derecho internacional?”, cit., pp. 132 ss. 48

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novas possibilidades de abertura do espaço público, isto é, a propulsão do debate racional e crítico. Compreende-se, assim, que Habermas tenha apoiado a guerra no Kosovo, por exemplo, porquanto considerou que se encontravam aí em jogo os mais elementares direitos humanos. E entende-se a sua severa crítica a Schmitt quando lhe censura encerrar o político na esfera do mais absoluto irracional [51]. Esta construção tem merecido diversas críticas, como, por exemplo, a de Emanuele Castrucci e a de Danilo Zolo. Para a economia deste estudo limitar-nos-emos a este último [52]. Zolo [53] parte igualmente de uma crítica da globalização para desenhar uma crítica àqueles pensadores, Habermas incluído, que aspiram a uma ordem supranacional. O pensamento jurídico-político de Danilo Zolo examina esta nova constelação internacional de forma muito crítica, qualificando-a como profundamente ideológica. Não vamos aqui, reafirmemo-lo, ID., ibid., pp. 182 ss. Diga-se que as críticas de Habermas a Schmitt têm suscitado profundas reservas em alguns estudiosos. Jouin, “Préface. La guerre civile mondiale n’a pas eu lieu”, in C. Schmitt, La Guerre Civile Mondiale..., cit., p. 12 n. 11 (ler p. 164), acusa Habermas de má fé, acrescentando: “é espantoso que um pensador da sua envergadura retorne tão frequentemente a Schmitt para o deformar e para sempre concluir que é necessário cessar de se ocupar dele”. 52 Vale a pena, em todo o caso, notar que Castrucci, “Retorica dell’universale. Una critica a Habermas”, in ID. (2003), Convenzione, Forma, Potenza. Scritti di storia dele idee e di filosofia giuridico-política, II, pp. 1029 ss., muito severo quanto a Habermas, sustenta que Zolo não tem, por razões “politicamente corretas”, abertura suficiente para reconhecer a sua dívida para com o pensamento de Schmitt. Para Castrucci o universalismo de Habermas mais não faz do que “reforçar as razões dos poderes já fortes e, portanto, revestir com motivos cosmopolítico-humanitários os desenvolvimentos extremos de uma doutrina do Estado constitucional-liberal intimamente coerciva”. Também este crítico aponta como debilidade de Habermas a ausência de uma decisão efetiva, na medida em que ela se encontra sublimada numa “neutralizante ética do discurso” (p. 1034). Como é possível, interroga, que se atribua virtude, “de natureza quase taumatúrgica”, à razão procedimental (p. 1048). O que estaria, em última análise, em causa será para Castrucci a viragem kantiana de Habermas, que, de resto, assinala o fim das capacidades críticas da própria Teoria Crítica. É óbvio que estas observações sobrepõem Habermas e a Escola de Frankfurt, o que não é certo, mesmo em termos (relativamente) geracionais. Pense-se nas posições teóricas de Oskar Negt, por exemplo. 53 zolo (2007), La Justicia de los Vencedores. De Nuremberg a Bagdad; ID. (2000), Cosmópolis. Perspectivas y Riesgos de un Gobierno Mundial; ID. (2001), I Signori della Pace. Una Critica del Globalismo Giuridico; ID. (2006), Globalización. Un mapa de los problemas; ID. (2011), Il Nuovo Disordine Mondiale. 51

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debater as diversas interpretações do “realismo” internacional, nem das suas relações doutrinárias com pensamentos tão complexos e abissais como o de Carl Schmitt[54]. Mas Zolo não deixa de ser realista, embora de cariz diferente do habitual, pois crítica a política de poder das potências, que tendem a ver a verdade dos vencedores como verdade última [55]. Zolo nota como os dogmas jurídicos endeusados pela cultura ocidental, desde a ascensão do liberalismo jurídico-político até aos cosmopolitas de hoje, são, pura e simplesmente, postos de lado quando e sempre que se verificam momentos históricos de conflito que põem de algum modo em causa os valores básicos desta civilização. Para Zolo os exemplos abundam desde que se instaurou um modelo de “justiça retributiva, exemplar, sacrificial” [56] como foram e são os tribunais especiais que, desde Nuremberga, pretendem julgar indivíduos por crimes cometidos no âmbito de conflitos “históricos”. E isto porque, segundo o filósofo italiano, esta justiça acaba por ser errática e destrutiva do fundamento axiológico-normativo que presidiria à ideia de Direito. Neste sentido o nosso Autor é bastante heterodoxo, pois não pretende atingir, como o faz um Luigi Ferrajoli [57], um paradigma democrático fundado num constitucionalismo mundial capaz de negar o fundamentalismo eurocêntrico, baseado no direito à autodeterminação dos povos, na democratização da ONU, na liberdade e igualdade para o diferente sob a égide de uma Carta dos bens fundamentais, numa fiscalidade supranacional, entre outras medidas, mas, antes, pugna por uma manutenção das diferenças com base num ceticismo assumido. Como diz Zolo, a globalização tecnoeconómica em curso parece-lhe “historicamente irreversível, ao menos na medida em que o é a inclinação milenária do homo sapiens para construir utensílios e dotar-se de próteses tecnológicas cada vez mais sofisticadas e poderosas”[58], o que não significa, porém, considerá-la natural, já que é obra de potências que cumprem sua propensão para o domínio.

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54 Cf. Campderrich (2005), La Palabra de Behemoth. Derecho, política y orden internacional en la obra de Carl Schmitt. 55 Esta crítica encontra-se bem desenvolvida em La Justicia de los Vencedores, cit. 56 zolo, La Justicia de los Vencedores, cit., p. 13. 57 Cf. Ferrajoli (2007), Principia Iuris. Teoria del Diritto e della Democrazia. 2— Teoria della Democrazia, esp. pp. 481 ss. 58 zolo, Globalización…, cit., p. 155.

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Assistimos, deste modo, à ideia de possibilidade de uma “Cosmópolis”, através da qual se pretende que as relações internacionais rumem a um crescente controlo de um “Governo Mundial”, com o principal fim de manutenção da paz, e consequente controlo da anarquia política internacional. Não se trata de uma ideia em absoluto nova. As potências sempre pretenderam garantir e promover a estabilidade através da criação de um poder fortemente centralizado, que simplificava a estrutura internacional, permitindo o monopólio estrito do uso da força. No fundo, a manutenção de uma paz estável e duradoura tinha a função de permitir a manutenção de um determinado status quo social, económico e político [59]. Não podemos esquecer que os modelos anteriormente descritos tiveram em comum igualmente o seu caráter fortemente eurocêntrico. Nas palavras de Zolo, chegou um momento crucial: “Agora, inevitavelmente, o esquema de uma paz universal terá de coincidir com a estratégia da preservação do status quo que a superpotência vitoriosa considere idóneo para a proteção dos seus próprios ‘interesses vitais’ como única superpotência” [60]. Por estas razões, Zolo considera a guerra do Golfo “como a primeira oportunidade que tiveram os Estados Unidos para estabelecer as condições de una ‘paz permanente’” [61]. Em termos formais, a ONU —e, consequentemente, toda a comunidade internacional— estava a legitimar uma intervenção que considerava necessária para resolver uma situação de crise interna de um outro Estado [62]. Este é o ponto de partida na obra de Zolo para sua crítica à Teoria Cosmopolita das Relações Internacionais, defendida por uma longa tradição do pensamento político ocidental, que na contemporaneidade

59 Como diz zolo, Cosmópolis, cit., p. 43, “(…) a paz universal e duradoura, que costuma ser apresentada como o principal objetivo de uma ação coletiva, tende a coincidir com o congelamento do mapa político, económico e militar tal como se constituiu no momento fundacional da organização. (…) isto supõe uma noção rudimentar de Cosmópolis, na qual a ideia de paz se opõe não só à de guerra, mas também, de modo implícito, às noções de mudança social, desenvolvimento e conflito”. Cf. tb. Globalización…, cit., pp. 85 ss. 60 ID., Cosmópolis, cit., p. 52. 61 ID., ibid., p. 54. 62 ID., ibid.: “Pela primeira vez na sua história, segundo declarou o Presidente dos Estados Unidos, as Nações Unidas exerceram o papel para o qual tinham sido desenhadas pelos seus pais fundadores”.

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é bem representada por Habermas, entre outros, que passa pela crença no globalismo jurídico —e no direito cosmopolita da civitas maxima—, para a crítica à crença na paz mundial estável e duradoura, passando pela crítica aos fundamentos universalistas da ética cosmopolita, sem esquecer a problemática do modelo da Carta da ONU (que para Zolo não passa de uma reedição de má qualidade do modelo hierárquico da Santa Aliança), bem como a proteção dos Direitos Humanos. De facto, o “globalismo jurídico” de um Habermas é para o pensador italiano uma filosofia do Direito, de matriz ocidental, orientada para legitimar as instituições internacionais existentes, nomeadamente ao nível das suas ações no plano militar, humanitário e judicial [63]. O desenvolvimento do atual panorama internacional poder-nos-ia levar a aceitar esta opção como a única que permite atingir a paz estável e duradoura, assente numa ordem mundial justa, devidamente hierarquizada e controlada por um poder supranacional. Para Zolo esta opção não só não é a única, mas também não é a melhor, pois é uma opção que parte de princípios e pressupostos que levam ao estrangulamento da diversidade civilizacional. Segundo o nosso Autor, a diversidade cultural e civilizacional, com todas as suas variáveis e grau de incerteza que arrasta consigo (nomeadamente no que concerne ao respeito pelas expectativas normativas que cada civilização tem), constitui uma mais-valia em nome do pluralismo e da democracia. Neste sentido, Zolo vem propor uma outra opção, uma tese realista crítica do direito internacional que seja capaz de romper com a hegemonia do pensamento kantiano, bem como com a ideia kelseniana de uma civitas maxima: “um lugar ideal da razão (ocidental) no qual deveriam convergir uma moral universal, um direito universal e um Estado universal” [64]. O que Zolo pretende é estabelecer um esquema de interpretação dos fenómenos normativos a nível internacional. A sua rejeição de uma Cosmópolis jurídico-política leva-o a propor um projeto realista crítico, baseado no pluralismo, na diversidade e na diferenciação cultural. Assim, acompanhando de algum modo o pensamento de um Hedley Bull, Zolo vem propor uma ordem política mínima, constituindo uma sociedade jurídico-internacional capaz 63 64

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Cf. ID., Globalización…, cit., pp. 105 ss. ID., I Signori…, cit., p. 137.

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de adotar uma postura de subsidiariedade normativa efetiva: respeitando as competências dos ordenamentos estatais, concedendo uma quantidade mínima de poder supranacional a órgãos centralizados, permitindo um mínimo de intervenções coercitivas ou arbitrárias. É evidente que quando Zolo fala num “direito supranacional mínimo” não pretende que a comunidade internacional se alheie face aos muitos problemas que, atualmente e cada vez mais, atingem uma dimensão global e reclamam uma resposta coletiva e não individual de cada Estado. Todavia, para Zolo urge distinguir entre a exigência de coordenação e de colaboração entre os sujeitos da cena internacional, por um lado, e a centralização do poder em órgãos de caráter supranacional, por outro, vendo na primeira alternativa a resposta aos problemas criados pela globalização. Segundo Zolo há que valorizar cada vez mais os processos consuetudinários de formação do direito internacional, pois não podemos esquecer que foram costumes e intercâmbios que estiveram na origem do mesmo. É também por este motivo que o Autor acredita que a praxis efetiva que regula as relações internacionais, assimila de forma diferenciada a normatividade existente. Diz-nos o pensador italiano: “Em condições de elevada complexidade e interdependência dos fatores internacionais, a negociação multilateral é, portanto, uma fonte descentralizada de produção e aplicação do direito, que é eficaz pese embora a ausência de funções normativas e jurisdicionais centralizadas. O caráter em grande medida espontâneo do fenómeno mostra, além disso, como a possibilidade de uma regulação das relações internacionais não está condicionada pela deslocação da soberania dos Estados, se bem que, obviamente, comporte uma certa autolimitação pactícia” [65]. O que Zolo pretende que se compreenda é que não é possível separar o direito internacional da política internacional, tornando-os imunes aos particularismos dos interesses e aos conflitos que se geram entre esses universos simbólicos hostis. Na verdade, coexistem diversas teias de interdependência normativa que conectam entre si preceitos jurídicos, por um lado, e, por outro lado, tradições religiosas, e culturais de diversos continentes, as ideologias políticas, a atividade das

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ID., ibid.

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grandes multinacionais, as estratégias político-militares das potências, o terrorismo e a criminalidade.

§ 5. Para Habermas, contudo, encontramo-nos numa sociedade internacional com rasgos evolutivos rumo a uma comunidade. O principal é o começo de uma comunidade legal. Por que se verifica esta tendência? Em grande medida, decerto, por razões que se prendem com a necessidade de articulação de esforços para garantir a sobrevivência de todos os homens. Mas igualmente por razões que se prendem com o facto de os homens preferirem convergir para regulação dos seus interesses. É inegável que a atual sociedade internacional é mundial precisamente porque está muito integrada, em virtude de possuir imensas normas, instituições e conhecimentos comuns. Apesar da fragmentação existente, há um sistema internacional, já que os seus atores possuem algumas finalidades comuns. Persistem, todavia, dois planos: o da ação das unidades políticas soberanas; e o da cada vez maior transnacionalização das relações entre indivíduos e grupos. Este dualismo dá lugar a duas lógicas que atuam sobre uma mesma realidade. A primeira, resultante dos Estados, julga-se capaz de resolver as questões em termos político-militares; a segunda, a dos movimentos que agem globalmente, pretende ser capaz de absorver a primeira. Que esta ambivalência é facto, ninguém pode negar. Mas a verdade é que é cada vez mais premente uma ordem internacional que encare o desenvolvimento da humanidade como um todo. A cooperação é a única via possível, pois encontramo-nos perante questões que só poderão ser resolvidas mediante soluções globais e urgentes. Como diz R.-J. Dupuy, a humanidade enfrenta dilemas que se encontram suficientemente estabelecidos pela ciência, e com ela não se pode negociar ou regatear —a verdade científica aceita-se [66]. O direito internacional tem vindo a centrar-se cada vez mais em problemas

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Cf. R.-J. Dupuy (1986), La Communauté Internationale entre le Mythe et l’Histoire, que seguimos. 66

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socioeconómicos, político-culturais e humanitários, dando relevância aos mais diversos tipos de organizações e movimentos internacionais. O universo internacional é, pois, constituído por tensões que opõem competição e cooperação. Esta persistente tensão entre o poder da força e a força do Direito desenvolve uma dinâmica que inevitavelmente se debruça sobre relações de poder e justiça. E essa será, sem dúvida, a via mais praticável. Com efeito, em vez de se partir dos modelos de funcionamento estatal, é de conceber a possibilidade de um reforço do peso das instituições de integração que, ao lado das instituições interestatais e com elas partilhando o poder, podem apresentar soluções mais flexíveis. Todavia, nada disso será possível se não se verificar um reforço da intervenção dos movimentos que compõem o espaço público global capaz de limitar os poderes soberanos dos Estados. Esta esfera pública encontra-se, contudo, fragmentada, pois ainda é inexistente um qualquer sentimento de pertença comum, refletido num consenso fundamental sobre os princípios democráticos e cosmopolitas que devem reger a vida social. É, por isso, imprescindível superar aquele momento histórico em que, com objetivos universais embora, a democracia acabou por pretender realizar-se dentro das fronteiras e do território do Estado. Assim se compreende a “cegueira” moderna relativamente à institucionalização de uma sociedade internacional baseada na “anarquia” entre Estados. Ora, esta situação foi possível enquanto o mundo não foi planetarizado pela técnica[67]. A crescente interdependência entre os Estados, mesmo quando assimétricas, bem como a sua coexistência com as estruturas internacionais que se vão densificando, favorecem a partilha das soberanias. E aqui radica um ponto de equilíbrio delicado. É que, por um lado, a par de uma globalização desregulada, é crescente (et pour cause…) o peso que a ideia de Estado de Direito tem no desenvolvimento recente das relações internacionais. Neste sentido, a ideia de soberania recupera o seu lado democrático, ligado à legitimidade de um sistema político que vê na autonomia dos cidadãos um bem digno da mais alta tutela. Por outro lado, porém, o facto é que a desregulamentação imposta por uma sociedade mundial não-estatal, não legitimada politicamente, mas Cf. R.-J. Dupuy (1989), La Clôture du Système International, pp. 93 ss. Cf. ainda casella (2008), Fundamentos do Direito Internacional Pós-moderno.

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coexistente com os Estados nacionais debilitados, provoca aquilo a que já se chamou certeiramente a “politização por meio da despolitização no campo da sociedade mundial” [68]. Não existem instituições, nem ordem, nem identidades, possíveis. Numa era de uniformização das diferenças impõe-se que estes movimentos e estas novas conceções se assumam como elementos de transformação da globalização vigente, instrumental e tecno-económica, numa globalização cujas coordenadas e representações reflitam um novo bem comum universal. Mas isso só será possível quando em cada ser humano for reconhecida uma realidade originária dotada de sentido e valendo por si mesma [69]. Contribuem as teses de Habermas para isto? Decerto, pois apesar de tudo temos de acreditar que o acordo é o telos último da linguagem.

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Cf. Beck (1999), O que é Globalização?, pp. 180 ss. Cf. R.-J. Dupuy (1986), La Communauté…, cit., pp. 174 ss.

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REFLEXÕES EM TORNO DA QUERELA P. SLOTERDIJK E J. HABERMAS Pilar Damião de Medeiros UNIVERSIDADE DOS AÇORES

253 ESTE TRABALHO PRETENDE ANALISAR A DISCUSSÃO PÚBLICA ENTRE DOIS INTELECTUAIS ALEMÃES: PETER SLOTERDIJK E JÜRGEN HABERMAS QUE, através de cartas públicas na imprensa Alemã, apresentaram teses diametralmente opostas sobre a eugenia e o futuro do humanismo. Os ecos da controvérsia surgem após o escândalo lançado por P. Sloterdijk na conferência dedicada a Heidegger e Lévinas em Julho de 1999 no Castelo de Elmau. As suas reflexões sobre a decadência do humanismo e a proposta de uma trans-humanidade[1]; a exaltação de novas técnicas de manipulação genética que permitiriam ao homem planear e decidir o rumo da sua própria espécie; o apelo quasi-nietzscheniano ao fim do adestramento e à variante mais pequena do homem[2], tornaram

REFLEXÕES EM TORNO DA QUERELA P. SLOTERDIJK E J. HABERMAS Pilar Damião de Medeiros

Ver Loureiro (in Habermas ([1999] 2007, p. 15): “Importa precisar que sob a capa do pós-humano se abrigam: a) projectos de intervenção no genoma que, no limite, nos levam a um processo de ‘criação’ (Zuechtung, à maneira do que acontece com os animais). Este caminho poderia conduzir, como refere Tristram Engelhardt, à geração de vários ramos da humanidade, que para alguns não seria mais do que o neo-humano ou um super-humano: b) a robótica e o cyborg, o ‘cenário de uma fusão entre homem e máquina.’” 2 Ver Sloterdijk ([1999] 2007, pp. 56-57): “[...] o humanista serve-se do homem como pretexto, e aplica-lhe os seus meios de domesticação, de adestramento, de formação, 1

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Regeln für den Menschenpark (Regras para o parque humano, 1999) uma das obras filosóficas mais polémicas na Alemanha. Ora, e considerando debilidade da História contemporânea Alemã, os argumentos que prezam o aperfeiçoamento da espécie humana, a intervenção do homem cartesiano que, orientado pela lógica da racionalidade instrumental, assume-se como mestre da natureza humana, contribuíram para um inquietante debate ético-existencial. Thomas Assheuer foi o primeiro a criticar publicamente com o seu artigo Das Zarathustra Project (O projecto Zarathustra) no Die Zeit e o segundo artigo Züchter des Uebermenschen (Criador do Superhomem), agora de Reinhard Mohr, surge imediatamente a seguir no Der Spiegel. A 9 de Setembro, P. Sloterdijk responde com duas cartas abertas no Die Zeit com o título Die Kritische Theorie ist Tod (A teoria crítica está morta) dirigidas a T. Assheuer e a J. Habermas. Sendo o último, nas palavras de P. Sloterdijk, o principal orientador do debate. O repto foi lançado ao representante da segunda geração da Escola de Frankfurt (EF) e só em 2001 J. Habermas em Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik? (O Futuro da Natureza Humana, 2001) responde às provocações de P. Sloterdijk e anuncia as consequências dramáticas e perversas da proposta do jovem filósofo de Karlsruhe para uma sociedade democrática: Uma mão-cheia de intelectuais excêntricos tenta ler o futuro nas borras de café de pós-humanismo de inflexão naturalista, com o único fito de continuar a tecer, na suposta parede do tempo – ‘hipermodernidade’ versus ‘hipermoral’. [...] As fantasias nietzscheanas destes auto-proclamados profetas, que vêem na ‘luta entre os pequenos e os grandes criadores do ser humano’ o conflito fundamental de todo o futuro’, e encorajam as ‘principais facções culturais’ a ‘exercer o poder de selecção que objectivamente conquistaram’, só alimentam, por enquanto, o circo mediático (Habermas ([2002] 2006, p. 63).

Tanto a tese sloterdijkiana sobre o desencantamento do mundo associado ao falhanço do humanismo proposto por M. Heidegger na Carta sobre o Humanismo (1947) “[...] como modelo escolar e educativo”, como a sua posição provocatória sobre uma futura antropotecnologia convencido como está da relação necessária entre o ler, o estar sentado, e o amansamento.”

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capaz “de pôr em prática um planeamento explícito dos caracteres genéticos”, “uma “gestação facultativa” e “selecção pré-natal” (Sloterdijk [1999] 2007, p. 29; pp. 64-65) foram ambas atacadas por J. Habermas[3] ([1999] 2007, p. 73) pelo seu eugenismo liberal – centrado nas escolhas individuais –, pela reificação e “[...] instrumentalização de uma vida humana criada sob condição, de acordo com as preferências e orientações axiológicas de terceiros”. Para o filósofo/sociólogo ([1999] 2007, p. 92), nas sociedades liberais, agora despojadas das tradições dos mundos da vida, “[...] os mercados, governados pela sede do lucro e pela lei da oferta e da procura, deixam as decisões de carácter eugénico ao sabor das preferências individuais dos pais e, de um modo geral, dos caprichos anárquicos de clientes e consumidores.”[4] Com efeito, o perigo e até promiscuidade entre programação genética e mercado de capitais poderá tornar a vida humana num simples produto moldado e afectar as características inatas e espontâneas do ser humano, ou seja, “[...] a autocompreensão à luz da qual existimos como corpo ou ‘somos’, em certa medida, o nosso corpo”[5], poderá originar um novo tipo de relação interpessoal, singularmente assimétrica” (Habermas, [1999] 2007, p. 86)[6]. Em suma, João Carlos Loureiro (in Habermas ([1999] 2007, p. 20) afirma que, ao contrário de P. Sloterdijk, J. Habermas “[...] procura defender [...] o valor moral da não-heteroprogramação do ser humano, convertido em objecto de meras preferências”.

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Enquanto que J. Habermas condena a eugenia positiva (injustificada), acredita nos aspectos benéficos da eugenia negativa: direccionada para a eliminação de certas patologias. ([1999] 2007, p. 53). 4 Ver Loureiro (in Habermas ([1999] 2007, p. 11) sobre o eugenismo individual ou liberal: “[...] eugenismo centrado em escolhas individuais e entregue, fundamentalmente, ao mercado.” 5 Ver também Habermas ([1999] 2007, p. 107): “As intervenções eugénicas de aperfeiçoamento afectam a liberdade ética, na medida em que amarram a pessoa em questão a desígnios – rejeitados, mas irreversíveis – de terceiros, vedando-lhe assim a possibilidade de se ver espontaneamente a si mesma como única autora da sua própria vida”. 6 Ver também Habermas ([1999] 2007, p. 97): “Com efeito, e independentemente do ponto a que uma programação genética objectivamente determina as qualidades, disposições e capacidades – condicionando nessa medida o comportamento – de uma futura pessoa, o conhecimento ulterior dessa circunstância poderá afectar a sua relação consigo mesma, ou seja, com a sua existência corporal e psíquica.” 3

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Perante o hipotético cenário de um Admirável Mundo Novo [7] e considerando o excessivo relativismo que triunfa na modernidade tardia, J. Habermas ([1999] 2007, p. 118) alega, a partir de um discurso de cariz emancipador, que [...] nós (ou a maior parte de nós) não nos convertemos em cínicos frios ou relativistas indiferentes, foi pelo simples motivo de que nos agarrámos – e não quisemos renunciar – ao código binário dos juízos morais certos e errados. Ajustámos assim as práticas do mundo da vida e da comunidade política às premissas de uma moral racional e dos direitos humanos, dado que estas nos ofereciam uma plataforma comum para uma vida humana digna, para lá de todas as diferenças ideológicas. Talvez que a resistência afectiva a uma temida alteração na identidade da nossa espécie se possa hoje explicar – e justificar – pelos mesmos motivos.

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Por conseguinte, J. Habermas apela à necessidade de uma nova regulação na biotecnologia de forma a não comprometer a dignidade humana. Sob o ponto de vista sociológico, o actor social para além da sua responsabilidade crítica, terá de agir com auto-reflexividade em relação aos novos riscos da modernidade, neste caso em particular, em relação aos riscos éticos e político-sociais inerentes às novas tecnologias da engenharia genética e à consequente instrumentalização da vida humana. As preocupações éticas de J. Habermas sobre a implementação desses progressos mantêm-se. Curiosamente, no dia 26 de Maio, 2012[8], é publicado um artigo no Die Presse, intitulado “Soll sich der Mensch verbessern dürfen?” (“O homem deve deixar-se melhorar?”). Depois de apresentar, em linhas muito gerais, as questões centrais do debate público entre P. Sloterdijk e J. Habermas, alcançamos o propósito deste trabalho com a seguinte questão: Será que a teoria crítica realmente morreu como declara P. Sloterdijk? Na carta aberta, P. Sloterdijk ataca o pai da teoria da acção comunicativa e reclama que este não cumpre os pressupostos de uma situação linguística ideal que supõe que todos os interessados possam participar Ver Aldous Huxley, O Admirável Mundo Novo, 1932. Recuperado em 5 de Junho, 2012, em http://diepresse.com/home/meinung/debatte/761145/ Soll-sich-der-Mensch-verbessern-duerfen? 7

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do discurso e que todos eles tenham oportunidades idênticas de argumentar e contra-argumentar[9]: “O senhor falou, senhor Habermas, com inúmeras pessoas sobre mim, nunca comigo. Em nossa profissão argumentativa isto é suspeito; em um teórico do dialogo democrático isto é incompreensível.”[10] Ao longo da carta, faz igualmente referência ao fim da razão crítica e emancipadora com Habermas: Em sua versão primeva (Adorno) a Escola de Frankfurt foi um Círculo Georgiano de esquerda; ela lançou a maravilhosa e soberba iniciativa de seduzir uma geração inteira com intenção requintada. Ela causou um profundo efeito que nós poderíamos resumir sob a fórmula das reminiscências da Natureza no Sujeito. Em sua versão mais recente (Habermas) ela foi em seu teor um jacobinismo latente – uma versão social-liberal da ditadura da virtude (em ligação com o carreirismo jornalístico e académico).[11]

Todavia, são inúmeros os trabalhos que contradizem a tese de Sloterdijk e admitem a vida e actualidade da Teoria Crítica no século XXI: A. Demirovic (2010) Continuar, ou o que Significa Falar da Atualidade da Teoria Crítica?; B. Freitag (1990) Teoria Crítica: Ontem e Hoje.; R. Geuss (1988) Teoria Crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt; A. Honneth ([1987] 1996) Teoria Crítica. In Teoria Social Hoje; M. Nobre (2008) Curso sobre Teoria Crítica; J. Sousa (2007) Teoria Crítica no Século XXI; J. A. Zamora (2009) Actualidad de la Teoría Crítica; R. Wiggershaus ([1986] 2010) Die Frankfurter Schule. A teoria crítica é marcada, essencialmente por três fases: a primeira é assinalada por uma matriz teórica emancipadora que confere o seu potencial de mudança social; a segunda fase é assombrada pela barbárie, pelo amplo controle da administração total e crítica da razão instrumental e, finalmente, a terceira fase é o ponto de ruptura e reformulação da teoria crítica com J. Habermas. É, todavia, explícito no percurso histórico-filosófico da Escola de Frankfurt a partilha de um pressuposto comum: O exercício da crítica [...] como dispositivo para detectar e sublinhar as tensões subjacentes entre o que existe e as suas possibilidades” (Calhoun

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Ver Freitag (1980) Recuperado em 5 de Maio, 2012, de http://www.recantodasletras.com.br/cartas/3499533. 11 Recuperado em 5 de Maio, 2012, de http://www.recantodasletras.com.br/cartas/3499533. 9

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Apud Turner et al. [1996] 2002: 455-456). Segundo Rolf Wiggerhaus ([1986] 2010)[12], desde os aforismos e artigos de Horkheimer aos ensaios de Adorno, até aos escritos políticos de Habermas é visível uma análise crítica da sociedade. A teoria crítica[13], ao contrário da visão cientificista da teoria tradicional, “[...] é ‘reflexiva’ e não ‘objectificante’” (Geuss (1988, p. 132) e o seu emanzipatorische Interesse não só é transversal a todas as gerações, como também reflecte o seu carácter pertinente de contestação constante do real. A. Honneth ([1987] 1996, pp. 536-537) assume que “[e] mbora seja difícil encontrar um denominador comum nos projectos de pesquisa empírica do instituto, a ideia do ‘mundo totalmente administrado’ representa um ponto de referência comum [...]”. Segundo Craig Calhoun (in Turner et al. [1996] 2002: 471-472): A teoria crítica pode ser definida como o corpo de trabalho interpretativo que exige e produz crítica nos seguintes quatro sentidos: 1) Uma relação crítica e de tensão com o mundo social contemporâneo, na qual se reconheça que a ordem social existente não esgota todas

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as possibilidades e na qual se procurem efeitos positivos para a acção TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

social; 2) Uma descrição e explicação críticas das condições históricas e culturais (tanto sociais como pessoais) das quais depende a própria actividade intelectual do teórico; 3) Um contínuo re-exame crítico das categorias constitutivas e dos quadros conceptuais de entendimento utilizados pelo teórico, incluindo a construção histórica desses quadros; 4) Uma confrontação crítica com outros trabalhos de explicação social, que, para além de estabelecer os seus pontos fortes e fracos, mostre as razões por trás dos seus silêncios e incompreensões e que demonstre capacidade para integrar as suas contribuições num corpo de trabalho mais sólido. Ver Wiggerhaus ([1986] 2010, p. 7): “Horkheimers Aphorismen und Aufsätze, Adornos Essays und Vortragstexte und Habermas’ Kleine politische Schriften sind Beispiele für eine engagierte und perspektivenreiche Verarbeitung gesellchaftlicher und historischer Erfahrungen.” 13 Para Horkheimer ([1937] 1980, p. 279): “Die kritische Theorie erklärt: es muss nicht so sein, die Menschen können das Sein ändern, die Umstände sind jetzt vorhanden.” (A teoria crítica explica: não necessita ser desta forma, as pessoas podem mudar o ser). 12

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Com efeito, podemos aferir que através de uma constante revisão conceptual; capacidade de enquadrar criticamente as novas condições históricas; elucidar as patologias sociais e denunciar as diversas formas de dominação, a teoria crítica mantém, indubitavelmente, a sua relevância e actualidade teórica.[14] Mais do que um sentimento nostálgico, há que haver uma constelação real entre a crítica presente e o legado do passado[15], entre a teoria crítica de ontem e de hoje (Freitag, 1980). Pois só a partir da riqueza das diversas influências intelectuais da EF, como também ponderando as suas deficiências, diz A. Honneth ([1987] 1996: 504), “[...] é que se pode, hoje em dia, dar uma continuidade produtiva à tradição teórica fundada por Horkheimer”[16]. Neste sentido, a TC nunca esgota, no âmbito do discurso público auto-reflexivo característico de uma sociedade democrática, o seu carácter libertador” (Calhoun in Turner et al. [1996] 2002). Marcos Nobre (2008, p. 19) sustenta ainda que “[...] há também a tarefa de tentar entender como as contribuições actuais procuram produzir novos modelos críticos baseados em novos diagnósticos do tempo e novas formulações dos princípios fundamentais da Teoria Crítica.”[17] Segundo Habermas

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Ver Nobre (2008, p. 18): “[...] a Teoria Crítica só tem vida e interesse se for permanentemente reformulada e repensada em virtude de novas condições históricas.” 15 Compare Zamora, 2009. 16 Ver Horkheimer ([1937] 1980, p. 292) sobre a diferenças entre a teoria tradicional e a teoria crítica: “An der Existenz des kritischen Verhaltens, das freilich Elemente der traditionellen Theorien und dieser vergehenden Kultur überhaupt in sich einschließt, hängt heute die Zukunft der Humanität. Eine Wissenschaft, die in eingebildeter Selbstständigkeit die Gestaltung der Praxis, der sie dient und zugehört, bloß als ihr Jenseits betrachtet und sich bei der Trennung von Denken und Handeln bescheidet, hat auf die Humanität schon verzichtet … Der Konformismus des Denkens, das Beharren darauf, es sei ein fester Beruf, ein in sich abgeschlossenes Reich innerhalb des gesellschaftlichen Ganzen, gibt das eigene Wesen des Denkens preis.” 17 Ver também Nobre (2008, pp. 17-18): “Não cabe à teoria limitar-se a dizer como as coisas funcionam, mas sim analisar o funcionamento concreto das coisas à luz de uma emancipação do mesmo tempo concretamente possível e bloqueada pelas relações sociais vigentes. Com isso, é a própria perspectiva de emancipação que torna possível a teoria, pois é essa perspectiva que abre pela primeira vez o caminho para a efectiva compreensão das relações sociais. Sem a perspectiva da emancipação, permanece-se no âmbito das ilusões reais criadas pela própria lógica interna da organização social capitalista. Dito de outra maneira, é a orientação para a emancipação o que permite compreender a 14

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[...] continuar algo da maneira dogmática que, em seus impulsos filosóficos, pertencia a uma outra época. Aquele pensamento que, de maneira retrospectiva, era atribuído à Escola de Frankfurt, reagira às experiências histórico-temporais [zeitgeschichtlich] como o fascismo e o stalinismo, sobretudo ao incompreensível holocausto. Uma tradição de pensamento apenas permanece viva quando suas intenções essenciais são comprovadas à luz de novas experiências; isso não é possível sem a exposição de conteúdos teóricos ultrapassados. [...] Por isso, a exploração e o revisionismo atrevido são o comportamento apropriado (Habermas Apud Demirovic, 2010, p. 10).

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No entanto, há que demarcar a ruptura entre os pressupostos críticos da primeira e da segunda geração da Escola de Frankfurt. A primeira (Horkheimer, Adorno, Pollock, Marcuse, Benjamin, entre outros) para além de assumir Auschwitz como um fracasso civilizatório de enorme magnitude que afectou a constituição dos sujeitos sociais e as relações sociais com a natureza (Zamora, 2009, p. 188), também assinala a morte da razão kantiana asfixiada pelas relações de produção capitalista (Freitag, 1990). Adorno e Horkheimer admitem na Dialéctica do Esclarecimento que “[...] a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se aproximando em uma nova espécie de barbárie” ([1947] 1985)[18]. Contra o conformismo como ideologia e contra este sentimento de impotência e pessimismo, J. Habermas adopta uma estratégia diferente dos seus antecessores e abandona o projecto de erguer uma teoria sobre uma fundação histórica imanente, procurando assim fundamentar a sua posição crítica

sociedade em seu conjunto, o que permite pela primeira vez a constituição de uma teoria em sentido enfático.” 18 Compare também Calhoun (in Turner et al. [1996] 2002: 453): “O modo da crítica era, pois, o da ‘desfetichização’. Esta modalidade da crítica inscrevia a recuperação das capacidades humanas (logo das possibilidades de transformação social) na restauração de relações verdadeiramente humanas, em prejuízo de relações desumanas, nas quais os indivíduos constituíam simples mediações entre coisas, mercadorias. [...] Neste processo, a teoria desempenharia um papel central, pois as relações reificadas de capital eram constituídas e mantidas através de uma forma de consciência. Vê-las tal como eram ajudava a dar um passo em frente na superação do seu domínio sobre a vida humana.”

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no carácter emancipatório da acção comunicativa.[19] Noutras palavras, para J. Habermas a Teoria Crítica é encarada na modernidade tardia como um projecto intersubjectivo, comunicativo. Em Theorie des kommunikativen Handels (Teoria da Acção Comunicativa, 1981), Habermas desenvolve a teoria do agir comunicacional que estabelece “uma relação interna entre praxis e racionalidade”. Esta teoria, salienta Habermas ([1985] 1990: 81) [20] “investiga os pressupostos de racionalidade da praxis comunicacional quotidiana e eleva o conteúdo normativo do agir orientado para a compreensão mútua à conceptualidade da racionalidade comunicacional”. Em termos gerais, o paradigma da acção comunicativa baseado na argumentação e contra-argumentação, no consenso, na validade e na intersubjectividade remete-nos para a aspiração universal e o potencial iluminista de uma sociedade de cidadãos livres que, de forma igualitária, contribuem designadamente para a emergência de uma esfera pública autêntica. De facto, afirma Adela Cortina ([2000] 2002, p. 165), “se ‘os conceitos de palavra e de compreensão se interpretam reciprocamente’, a acção comunicacional possui uma prioridade axiológica e é uma fonte de integração social”. Pese embora a fé de J. Habermas no poder emancipatório da razão moderna e no potencial de autoreflexividade crítica, factores como: a vulnerabilidade do sistema político face ao domínio do jugo financeiro; o triunfo de um mercado sem âncoras; a crescente despolitização da esfera pública; o relativismo cultural e consequente indiferença moral dos nossos tempos tem condicionado negativamente a razão Ver Calhoun (inTurner et al. [1996] 2002: 463): “[...] Habermas abandonou o projecto de erguer a teoria crítica sobre uma fundação histórica imanente. Em lugar de procurar adquirir uma dimensão crítica na comparação de formações sociais histórica e culturalmente específicas, fê-lo através da elaboração de condições universais da vida humana, fundamentando a crítica, não nos próprios desenvolvimentos históricos, mas numa ideia lata de progresso evolutivo na comunicação.” 20 Ver B. Freitag (1990, p. 14): “[...] Habermas descobre, em Freud, última etapa de sua auto-reflexão fenomenológica, o paradigma de uma ciência crítica, que assume explicitamente seu enraizamento num interesse: o da dissolução das estruturas patológicas que inibem a livre comunicação do sujeito consigo mesmo e com os outros.”; B . Freitag (1990, pp. 21-22): “[...] é à base do modelo psicanalítico que [Habermas] concebe o papel da teoria crítica, enquanto instrumento de elucidação pedagógica: ela deve propor interpretações que levem os sujeitos, imersos na falsa consciência, a reconhecer-se em tais construções, por processos autónomos de auto-reflexão [...]”. 19

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reflexiva na modernidade tardia. Nessas condições, a teoria crítica deve procurar novas formas de contestação. Pois “[...] somente através da crítica, compreendida como auto-reflexão e autoquestionamento, é que os momentos reprimidos, ocultos, distorcidos pelo processo histórico do conhecimento, podem ser recuperados, reelaborados e consciencializados, permitindo redescobrir o interesse fundamental, o da emancipação” (Freitag, 1980, p. 13). Deste modo, o teórico crítico deve estar envolvido numa potencial mudança qualitativa e instigar reflexão, recapitulação sobre as distorções e lutar para a preservação dos resíduos que ainda remanescem de liberdade humana. Considerando as actuais circunstâncias de crise, angústia, incerteza que nos impelem, torna-se cada vez mais evidente destacar a real possibilidade de emancipação aliada à relevância teoria crítica na auto-reflexividade dos actores sociais.

Referências Adorno, Theodor W. & Horkheimer, M. ([1947] 1985). Dialéctica do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Assoun, Paul-Laurent ([1987] 1989). A Escola de Frankfurt. Lisboa: Dom Quixote. Benhabib, Seyla (1986). Critique, Norm and Utopia: A Study of the Foundations of

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Heidegger, Martin. ([1947] 1987). Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães. Honneth, Axel ([1987] 1996). Teoria Crítica. In Teoria Social Hoje. Ed. Anthony Giddens & Jonathan Turner. São Paulo: Unesp. Horkheimer, Max ([1937] 1980). Traditionelle und kritische Theorie. Zeitschrift für Sozialforschung. Jg. 6. München. Koeveker, Dietmar (...). Zur Aktualitaet der Kritischen Theorie. Antrittsvorlesung Dietmar Koevekers an der Johann Wolfgang-Goethe. Universitaet Frankfurt am Main im Dezember 2004. Recuperado em 5 de Junho, 2012, de http://www. velbrueck-wissenschaft.de/pdfs/2005_koeveker.pdf. Loureiro, João C. (2006). “Prefácio”. In O Futuro da Natureza Humana: A Caminho de uma Eugenia Liberal? Ed. J. Habermas. Coimbra: Almedina. Nobre, Marcos (2008). Curso sobre Teoria Crítica. São Paulo: Papirus. Sloterdijk, Peter ([1999] 2007). Regras para o Parque Humano. Coimbra: Angelus Novus. Sousa, Jessé & Mattos, Patrícia (2007). Teoria Crítica no Século XXI. São Paulo: Annablume. Wiggershaus, Rolf ([1986] 2010). Die Frankfurter Schule. Hamburg: Rowohlt. Zamora, José A. (2009). Actualidad de la Teoría Crítica, Constelaciones – Revista de Teoría Crítica. Nr. 1, pp. 183-189.

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UMA REFLEXÃO SOBRE O CONTRIBUTO DE AXEL HONNETH PARA A TRANSFORMAÇÃO DA TEORIA CRÍTICA Paulo Vitorino Fontes UNIVERSIDADE DOS AÇORES

Introdução que desde a primeira geração da Escola de Frankfurt influenciaram a obra de Axel Honneth, ao tentar reformular a teoria crítica nos termos de uma teoria social do reconhecimento e com os prolongamentos que hoje se assiste. Daremos especial ênfase à ruptura ou complementaridade entre Habermas e Honneth. A separação radical entre trabalho e comunicação e a insuficiente tematização do conflito, são os temas que Honneth vai explorar e propor uma reformulação téorica que poderá reconduzir a teoria crítica ao seu projecto inicial, ao diagnóstico das “patologias do tempo presente”. Habermas (2003) ao abandonar a expressividade particular da vida concreta, com vista à formulação normativa de uma Ética do Discurso, é criticado por alguns teóricos como Charles Taylor (1998), como tendo conduzido ao empobrecimento cultural, na medida em que extrapola a forma de vida ocidental. Partindo de objecções como esta, Honneth pretende reformular a teoria crítica nos termos de uma teoria social do reconhecimento. Esta tarefa parece ser cumprida a partir da intuição de que a moral é sempre uma moralidade social cuja origem deve ser identificada em padrões culturais de julgamento valorativo, ESTE TRABALHO PRETENDE REVISITAR ALGUNS CONTRIBUTOS,

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vinculados àquilo que a tradição filosófica chamava eticidade; justo aquele elemento que Habermas assinalava como perdido no processo de transição para a Modernidade. A teoria do reconhecimento, baseando-se no paradigma habermasiano da comunicação e no legado hegeliano e marxista da teoria crítica, propõe um modelo original de articulação, na forma de “dependência mútua” entre uma filosofia social fundada normativamente e uma sociologia convidada a apresentar estas normas à verificabilidade dos factos. Honneth examina de forma crítica a tradição da Escola de Frankfurt, com base nas realizações da pesquisa sociológica. É a partir destes desenvolvimentos operados com base no saber sociológico que vai esboçar os traços de um projecto, embora primariamente filosófico, de reconstrução de uma teoria social capaz de oferecer uma alternativa aos impasses da teoria crítica. Honneth, utilizando o conhecimento da Sociologia, procede à elaboração de uma teoria do reconhecimento em que uma das características principais é a concepção não instrumental do conflito social. Honneth inicia um trabalho sistemático de reinterpretação, por um lado, da filosofia de Theodor W. Adorno e de Jürgen Habermas e, por outro lado, da antropologia filosófica, num trabalho conduzido em colaboração com Hans Joas [1]. Nestes dois projectos paralelos de investigação pode-se constatar que um dos seus interesses reside na capacidade destas duas correntes de articular uma dimensão filosófica com o conhecimento das etapas empíricas (Voirol, 2007, p. 245). Três ideias principais caracterizam o projecto inicial, ao mesmo tempo sociológico e filosófico, da teoria crítica. Em primeiro lugar, este último está ancorado no materialismo histórico e na ideia de um desenvolvimento histórico voltado para o progresso – a partir da ideia que as forças práticas socialmente efectivas são realizadas pelos interesses de emancipação, pela razão e pela supressão dos factores que exercem dominação sobre os seres humanos. A teoria pode, portanto, apoiar-se neste exemplo prático para basear o seu ponto de vista e o seu apoio a este processo emancipatório a caminho de uma “sociedade governada pela razão”, como diria Max Horkheimer. Em segundo lugar, ele se propõe compreender os processos “patológicos” que dificultam 1

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Confira Axel Honneth e Hans Joas (1988)

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essa dinâmica e a crescente irracionalidade através da pesquisa social. Contra as tendências irracionais que fragmentam a sociedade, a teoria crítica adopta o ponto de vista da “totalidade” das relações sociais e proporciona os meios capazes de articular os saberes especializados de forma interdisciplinar. A articulação entre uma teoria normativa ancorada numa prática efectiva de emancipação e o recurso à sociologia, bem como à psicanálise, para compreender a dificuldade deste processo, é que constitui o plano de fundo para o programa de cruzamento da filosofia social e da pesquisa empírica (Voirol, 2007, p. 247). Axel Honneth ([1989] 2009) evidencia os impasses da teoria crítica e enfatiza a necessidade de uma reconstrução das suas fundações iniciais, de forma a recompor a linha entre a teoria normativa e a prática social. Num quadro em que a sociologia ocupa um lugar central como ferramenta de diagnóstico do tempo presente, Jürgen Habermas é quem vai operar este trabalho de reconstrução, segundo Honneth, desenvolvendo um paradigma alternativo sob a forma de uma teoria da comunicação. O seu projecto visa renovar a ligação entre teoria e prática e repensar a ideia de um diagnóstico do tempo presente, articulando a filosofia e a sociologia. Habermas ao introduzir uma distinção rígida entre dois tipos de actividade: o trabalho e a comunicação, liga-se aos actos ordinários de comunicação e às formas de compreensão mútua como instâncias práticas portadoras de ideais emancipadores. Assim, ele mostra que a razão não se desenvolve no movimento da história, mas nas formas ordinárias da compreensão mútua através da linguagem. Habermas mostra que os processos “patológicos” do tempo presente, assim como as zonas de conflito potencial moveram-se, não são mais uma luta de classes pela emancipação da praxis produtiva, mas um antagonismo entre as relações comunicacionais e as dinâmicas do sistema político-económico. As resistências já não vêm do proletariado, mas das potencialidades comunicacionais do mundo da vida que se levantam contra as formas de “colonização” do mundo da vida. É a partir deste deslocamento para um modelo da comunicação na teoria crítica que Habermas concebe a relação entre a filosofia e a sociologia. Ele prossegue num projecto de diferenciação dos tipos de conhecimento em que visa uma fundação epistemológica das ciências humanas, distinguindo as ciências empírico-técnicas dedicadas ao conhecimento da realidade, as ciências hermenêuticas que visam os

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movimentos interpretativos e as ciências criticas que produzem um conhecimento orientado para a autorreflexão – e que é igualmente guiado pela intenção de fazer emergir de sujeitos autónomos o acesso ao conhecimento reflexivo (Habermas, 1968, pp. 136-140). A sociologia não positivista, que faz parte deste passado, deve descobrir os obstáculos que se interpõem no caminho de auto-afirmação de um sujeito da compreensão mútua, rompendo com a dominação graças à reflexividade e aumentando os potenciais de acção pela expansão das potencialidades da comunicação. Neste modelo reconfigurado de teoria crítica, Habermas é, portanto, capaz de conferir à pesquisa social o papel de revelar as distorções que perpetuam a dominação e impedem a emergência de sujeitos conscientes guiados pelos princípios de uma razão prática. É através do prolongamento desta viragem comunicacional operada por Habermas em relação à primeira geração da teoria crítica que Honneth situa os seus próprios trabalhos. No entanto, Honneth assinala a sua distância sobre os principais pontos do modelo habermasiano, tais como a separação radical entre o trabalho e a comunicação e a insuficiente tematização do conflito, e vai esboçar pistas alternativas com o apoio da sociologia (Voirol, 2007, p. 250). A distinção de Habermas radical entre trabalho e comunicação esvazia o conceito de trabalho de toda a dimensão moral para fazer dele uma actividade necessária à reprodução da sociedade. Então o trabalho é um acto instrumental de manipulação da natureza e a acção comunicativa produz formas de intercompreensão livres de dominação. Para Habermas, todas as actividades sociais que não são dirigidas para a compreensão mútua aparecem, portanto, como desvios da comunicação (Honneth, 2008). À redução do trabalho à acção instrumental, Honneth opõem dois tipos de argumento. O primeiro, de ordem filosófica, contesta a dissolução de Habermas da conexão marxista entre o trabalho e a dimensão moral, procurando reinvestir o trabalho de uma moral prática, sem voltar à articulação marxista entre trabalho e emancipação humana. Honneth mostra que o processo de redução do trabalho a um acto puramente instrumental continua a causar experiências negativas nos sujeitos sociais e, assim, o trabalho é investido de uma dimensão moral. Na organização capitalista do trabalho, “se os sujeitos ocupados, com base na própria estrutura de sua atividade, têm o desejo de possuírem o controle de sua atividade, então se trata de

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uma exigência moral inserida imanentemente em relações de trabalho historicamente dadas” (Honneth, 2008, p. 52). Com o apoio da sociologia do trabalho, ele demonstra, no seu segundo argumento, a existência de formas de resistência e de reapropriação do controlo dos sujeitos sobre as operações produtivas em áreas de actividade ainda amplamente racionalizadas no plano técnico. Honneth sustenta uma sociologia baseada em padrões de reapropriação nas práticas de trabalho pelas quais os sujeitos contornam as regras da organização de forma a reiniciar um controle técnico sobre as suas actividades de trabalho [2]. Estas práticas de oposição contradizem a teoria habermasiana ao mostrar que operam precisamente como formas de emancipação a partir dos limites impostos pela acção instrumental (Voirol, 2007, p. 251). Contudo, estas resistências não são imediatamente visíveis no espaço da produção e requerem suportes de explicitação para se revelarem, entre os quais pode figurar a pesquisa social. Estas práticas de apropriação abaixo da expressão pública podem realmente ser explicitadas pela pesquisa sociológica e ser reveladas em seguida como transgressões normativas e conflitos subterrâneos abaixo do limiar da comunicação linguística (Honneth, 2006). A partir desta observação sociológica, Honneth pode mostrar a existência de uma forma de saber moral-prático que é baseada numa experiência de perda, devido à natureza instrumental do trabalho, no centro de um universo de racionalização técnica e capitalista. Esta experiência de perda está associada a uma sensação de injustiça produzida pela expropriação sistemática da actividade do trabalho. Dimensão esta que Habermas não é capaz de tomar em consideração com a sua distinção rígida entre trabalho e comunicação. Assim, é com referência à sociologia que Honneth realiza uma primeira ruptura relativa à “viragem comunicacional” da teoria crítica. Da mesma forma que se distancia de outro aspecto fundamental da teoria habermasiana: a sua concepção do conflito no capitalismo avançado. Segundo Habermas (1978), os conflitos de classe foram incorporados em formas de compensação e de legitimação do capitalismo tardio: daí em diante, não podemos falar de conflitos de classe, mas 2

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Para o fazer, Honneth apoia-se nas pesquisas de Philippe Bernoux (1979)

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unicamente de revindicações de justiça social dos grupos socialmente privilegiados, em busca de novos princípios éticos. Honneth opõem-se a essa concepção, baseando-se nos seus próprios trabalhos empíricos no final dos anos 1970 (Honneth, Mahnkopf et Paris, 1979). Ele mostra que o princípio moral destacado por Habermas como um pressuposto da comunicação é incapaz de indicar como essa moralidade pode-se referir aos conflitos sociais. Com base na sociologia do sentido moral dos grupos desfavorecidos, Honneth demonstra que os conflitos de classe, embora se manifestem de uma forma menos óbvia, não desapareceram (Voirol, 2007, p. 252-253). As pesquisas sociais sobre as quais se apoia mostram que há no seio das classes desfavorecidas, princípios morais que só em casos excepcionais é que são esclarecidos publicamente [3]. Esta sociologia mostra que, contrariamente aos grupos dominantes, com experiência na utilização rotineira da justificação pública, os membros das classes trabalhadoras raramente têm condições de explicar numa linguagem estruturada os princípios morais e políticos que sustentam as experiências negativas que são tão comuns para eles. Com o apoio desta sociologia, Honneth (2006) mostra que os princípios de justiça, em relação aos quais os membros destes grupos avaliam a ordem social e fazem julgamentos sobre eles próprios, são incorporados acima de tudo em percepções não articuladas de injustiça. Se a pesquisa social mostra que o capitalismo é atravessado por conflitos e sentimentos de injustiça ocultos – como evidenciado nos modos de apropriação do trabalho, é porque existe uma moralidade subterrânea e uma conflitualidade escondida que devem ser tidas em conta na teoria. As estratégias postas em acção para garantir a hegemonia cultural da classe dominante operam um controlo sobre o sentido moral, limitando as possibilidades de formular as experiências de injustiça, da mesma forma que ocultam os conflitos (Honneth, 2006). Com o apoio da sociologia, Honneth é capaz de reinvestir a actividade do trabalho de uma dimensão moral e de se referir a uma concepção de conflito moral cujos motivos morais permanecem como anteriormente invisíveis para a esfera pública Confira Honneth (2006a). Este texto foi publicado em 1981 e desenvolve toda uma argumentação sociológica para contestar, no seio da filosofia, algumas opções habermasianas, desempenhando um papel fundamental no trabalho de Honneth. 3

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política como para a teoria crítica. Estes dois deslocamentos são decisivos no prolongamento da “viragem comunicativa” que foi realizada em relação à pesquisa social. O argumento adequado de Honneth foi emprestado pela sociologia, incluindo resultados de pesquisas cujas conclusões impõem-se no plano da filosofia social. Com uma base empírica fornecida pela pesquisa das classes sociais Honneth encontra um lugar de conflitualidade e esboça caminhos para a teoria crítica apreender os conflitos do nosso tempo. Na sequência da revisão da tradição de pensamento crítico, Voirol (2007, p. 254) destaca duas dimensões fundamentais que podem ser extraídas deste empreendimento. A primeira dimensão diz respeito ao deslocamento que se opera relativamente ao ponto de apoio prático da crítica normativa. Honneth fornece os meios para encontrar uma experiência negativa portadora de expectativas morais não realizados e cujo conteúdo ainda não encontrou o caminho de uma formulação linguística apropriada. Portanto, ele escapa do impasse da perspectiva de Adorno que é incapaz de encontrar tais experiências no “mundo administrado” do capitalismo avançado, assim como ele de certa forma ultrapassa a perspectiva habermasiana, que se concentra exclusivamente na interação linguística de signos incapazes de conceber a negação das expectativas morais, que não sejam como uma restrição do entendimento linguístico. Honneth desenvolve o seu programa com os contributos da sociologia, da história social e da psicologia social, ao mostrar que as expectativas não cumpridas, nestas experiências negativas, podem ser entendidas como expectativas de reconhecimento (Honneth, [1992] 2011). Do ponto de vista da crítica social, as expectativas morais feridas nestas experiências negativas, colocadas em evidência pela sociologia, fornecem evidências dos requisitos relativos a uma ordem social “justa e boa”. Preservadas de forma negativa no sentido de injustiça, elas fornecem um ponto de apoio prático a uma crítica teórica baseada nas normas. Pois é precisamente nessas expectativas não cumpridas, as experiências negativas que elas geram e os esforços dos sujeitos sociais para aceder ao reconhecimento mútuo que Honneth situa a instância prática de justificação das reivindicações normativas da crítica e traz a sua própria contribuição para a renovação da teoria crítica (Honneth, 2006).

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A segunda dimensão do exame crítico de Honneth compreende a concepção do conflito, numa proposta que pretende localizar locais subterrâneos de conflito no capitalismo avançado, situando-os ao nível das expectativas morais, ele desiste das categorias das teorias utilitaristas do conflito, que segundo ele apenas são adequadas para perceber a concorrência por meios de subsistência. Dito de outra maneira, Honneth abre uma via para reportar o conflito ao desrespeito pelas regras implícitas de reconhecimento mútuo e não ao interesse de classe ou à acumulação do lucro concebida de forma estritamente instrumental, negando, como vimos, o discurso sobre o fim do conflito de classes. A partir do exame crítico do trabalho dos seus antecessores, Honneth inicia um projecto ambicioso ao articular a sociologia e a filosofia. O seu projecto consiste em encontrar uma concepção de “luta” para além da simples razão de “interesses econômicos”, de acordo com a idéia de que a classe e os conflitos de classe estão ancorados em formas simbólicas e em sentimentos morais, de forma a voltar a enfatizar o lugar do orgulho, honra, desprezo ou humilhação nas acções (Honneth, [1992] 2011) (Voirol, 2007, p. 256). Se este projecto de reconstrução assenta numa perspectiva filosófica, constituída na releitura dos trabalhos do jovem Hegel nos termos de uma concepção do conflito orientado pelos motivos morais do reconhecimento mútuo, a sociologia desempenha o papel principal na actualização deste modelo. Honneth avança em relação a estas questões com o auxílio da sociologia através da mobilização de uma série de abordagens completamente diferentes. Ao mencionar em particular os trabalhos de Pierre Bourdieu devido à concepção da luta simbólica que eles oferecem. Embora todos eles sejam inscritos no prolongamento do marxismo, Bourdieu desloca o conceito de luta de classes à dimensão da luta simbólica e contribui assim para o desenvolvimento da ideia de um conflito que não se limita apenas ao domínio económico. No entanto, Bourdieu comete o erro de ampliar o sentido das lutas de interesse em relações simbólicas, relacionando os motivos de conflito com os motivos instrumentais da distinção, ao invés de uma análise dos sentimentos morais que estão na origem das lutas simbólicas (Honneth, 1990 e Voirol 2004). Apesar da sua contribuição para a compreensão dos processos de reconhecimento, a sociologia da violência simbólica mostra alguns limites. Bourdieu reduz a especificidade dos conflitos de reconhecimento a

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uma moldura instrumental inspirada pela teoria econômica clássica, em vez de prosseguir a investigação da sua lógica interna. Além disso, a ênfase na ordem instituída do desconhecimento e da reprodução das relações de dominação tende a minimizar a dimensão instituinte do conflito e do impacto das expectativas normativas nas lutas sociais. Se a sociologia de Bourdieu apresenta uma mudança na concepção do conflito – que, como vimos, não é sem seus problemas – é do lado da escola histórica e sociológica do marxismo cultural e da “economia moral” (Edward P. Thompson, Barrington Moore e outros) que Honneth vai descobrir uma grande contribuição para a elaboração de sua concepção moral’’ do conflito social (Honneth, 1984). Sob o termo de “economia moral”, Thompson procurou explicar os protestos sociais contrariamente aos relatórios económicos dominantes, em nome de princípios morais a serem aplicadas às trocas mercantis (Thompson, [1963] 1988). Essa abordagem mostra que as revoltas centradas em questões econômicas têm na sua base um conjunto de exigências morais sobre as quais a questão dos “interesses” está necessariamente interligada. O estudo sociológico dos fundamentos morais dessa resistência popular liderada pela escola marxista da história social permite tanto realçar a dimensão moral das revoltas e lutas como projetar sobre as questões materiais e económicas, articuladas em torno dessas mesmas razões. No entanto, para Honneth, se esta corrente da sociologia histórica atual permite considerar uma concepção não-instrumental da luta, ela não consegue mostrar de forma convincente quais são as expectativas morais que ao não serem respeitadas provocam o protesto e quais são as aspirações realizadas pelo protesto, que segundo Honneth devem ser entendidas na sua vontade de aceder às condições intersubjectivas de reconhecimento. Honneth diferencia-se de Habermas na ênfase dada às condições de reconhecimento em prejuízo das condições de comunicação. Para Pablo Holmes (2008. P. 145-150) importa dar especial atenção à distinção entre moralidade e eticidade na obra de Habermas e nas teorias do reconhecimento. Esta distinção de carácter filosófico, em que a moralidade, sem perder o seu papel de procedência crítica, perde o seu carácter de fonte última da normatividade. Sendo que a eticidade

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ganha a prevalência metodológica no diagnóstico do tempo moderno. É assim que surge para Honneth a concepção de uma eticidade formal, de modo a completar a análise às formas de desigualdade. Uma teoria moderna da sociedade, no pensamento de Honneth, terá de ultrapassar os limites mínimos normativos para os diálogos interculturais, uma vez que toda a acção regida por normas precisa de ser confirmada pelos outros parceiros de interacção num contexto temporal específico.

Conclusão

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Honneth opera uma viragem no ponto de vista do diagnóstico histórico em relação à abordagem habermasiana. Já não são as tensões entre sistema e mundo da vida que devem ser colocadas no centro da análise, mas as causas sociais responsáveis pela violação sistemática das condições de reconhecimento. Importa ter em conta as formas de desprezo que não entram na esfera pública e que não estão representadas de forma positiva nos actos de fala, que não são verbalizadas, e assim não podem depurar-se argumentativamente, embora sejam transmitidas pelas relações de poder, e isto é o importante, abrem feridas psicológicas nos indivíduos desprezados. A teoria de Honneth permite articular de novo a filosofía social com as ciências empíricas, no que se pode interpretar como uma nova viragem sociológica no sentido da pretensão inicial do Instituto de Frankfurt. As ciências sociais terão agora a tarefa de seguir os sentimentos afectivos de desprezo e a gramática moral das exigências de justiça para encontrar na sociedade existente um excedente normativo que transcenda o modelo social dado.

Referências Bibliográficas: Bernoux, Philippe, 1979, “La résistance ouvrière à la rationalisation: la réappropriation du travail”, Sociologie du travail, nº 1. Habermas, Jürgen. (1968). Técnica e Ciência como «Ideologia». Lisboa: Edições 70. Habermas, Jürgen. (1978). Raizon et Légitimité. Paris. Payot.

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Holmes, Pablo. (2008a). “Briga de família ou ruptura metodológica na teoria crítica Habermas x Honneth)” in Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. v. 21. n. 1. pp. 133-155. Honneth, Axel. Mahnkopf, Brigit et Paris, Rainer. (1979). « Zur “lateten Biographie” von Arbeiterjugendlichen » in Soziologische Analysen. Referate des 19. Deutschen Soziologentages. Berlim. Pp. 930-939. Honneth, Axel & Joas, Hans. (1988). Social Action and Human Nature. Cambridge University Press. Honneth, Axel. ([1989] 2009). Critica del poder. Madrid: António Machado Libros. Honneth, Axel. ([1992] 2011). Luta por reconhecimento: para uma gramática moral dos conflitos sociais. Lisboa: Edições 70. Honneth, Axel. (1996). “La dynamique sociale du mépris. D’où parle une théorie critique de la société” in: BOUCHINDOMME, C. ROCHLITZ, R. (orgs.) Habermas, la raison, la critique. Paris. Cerf. Honneth. (2006) “Conscience moral et domination de classe” in La Société du Mépris. Vers une nouvelle théorie critique. Paris. La Découverte. Pp.203-223)

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Honneth, Axel. (2008). “Trabalho e Reconhecimento – Tentativa de uma redefinição” in Civitas – Revista de Ciências Sociais, v. 8, n. 1, jan.-abr. Porto Alegre. PUCRS-Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pp. 46-67. Taylor, Charles et all. (1998). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget. Thompson, Edward P. ([1963] 1988). La Formation de la classe ouvrière anglaise, Galimard, Paris.

UMA REFLEXÃO SOBRE O CONTRIBUTO DE AXEL HONNETH PARA A TRANSFORMAÇÃO DA TEORIA CRÍTICA Paulo Vitorino Fontes

Voirol, Olivier. (2004). “Reconnaissance et méconnaissance : sur la théorie de la violence symbolique” in Information sur les Sciences sociales, vol. 43, nº3, p. 403-433. Voirol, Olivier. (2007). “Axel Honneth et la sociologie. Reconnaissance et théorie critique à l’épreuve de la recherche sociale” in La quête de reconnaissance- nouveau phénomène social total (sous la direction de Alain Caillé). Paris : Éditions La Découverte. Pp. 243–268.

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277 COMEÇO POR CITAR UMA DECLARAÇÃO QUE PODERIA GERAR POLÉMICA, ou mesmo

indignação, no quadro de um colóquio que pretender revisitar a teoria crítica. Não se dará esse caso, porém – facto que, de algum modo, pode ser sintomático da situação diagnosticada na dita declaração, que passo a citar:

A TEORIA CONTRA O CINISMO: OS USOS PARADOXAIS DA CRÍTICA DE ADORNO A RANCIÈRE João Pedro Cachopo

O descontentamento com a nossa cultura adquiriu uma nova qualidade: afigura-se um cinismo universal, difuso. A crítica da ideologia tradicional está em perda perante este cinismo. Não sabe em que botão há-de carregar na consciência tendencialmente cínica para que o esclarecimento prossiga. O cinismo moderno apresenta-se-nos como um estado de consciência que se segue às ideologias ingénuas e ao seu esclarecimento. É ele a verdadeira base da manifesta exaustão da crítica da ideologia. [...] Eis, pois, a nossa primeira definição: o cinismo mais não é do que falsa consciência esclarecida.[1]

Peter Sloterdijk, Critique of Cynical Reason [Kritik der zynischen Vernunft, 1983], trad. Michael Eldred, University of Minnesota Press, Minneapolis / London, 2001, pp. 3-5. Salvo indicação em contrário, todas as traduções para português incluídas neste texto são da minha responsabilidade. 1

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Permitam-me, desde já, que me demarque de uma outra afirmação proferida pelo mesmo autor, segundo a qual a Teoria Crítica estaria, já em 1999, pura e simplesmente morta. A passagem que citei, todavia, é mais antiga, tendo sido extraída do capítulo inicial da Crítica da Razão Cínica. Apresso-me a dizer que – não sendo eu, de todo, um especialista ou, sequer, um leitor assíduo da obra de Sloterdijk, é apenas a pretexto de uma crítica imanente do pensamento frankfurtiano que recorro àquela citação. Tendo-a em mente, diria que o cerne das invectivas de Sloterdijk contra a Teoria Crítica, pelo menos na Crítica da Razão Cínica, não é tanto a rejeição da perspectiva de uma sociedade menos desigual, constituída por seres humanos mais emancipados (ainda que esta forma de apresentar a vertente utópica da teoria crítica nos soe talvez um tanto ou quanto adocicada), quanto a entronização de uma certa postura teórica auto-suficiente, caracterizada por um misto de dilaceração e auto-complacência. O que se teria perdido, com a generalização do cinismo – definido como “falsa consciência esclarecida”, seria o kinismo inspirado em Diógenes, um certo inconformismo prático, subversivo, resistente. Não creio, ao mesmo tempo, que esta valorização do gesto, da postura, da prática “kínica” possa ser reconduzida ao modo como, na tradição marxista, se postula a necessidade imperiosa de passar da teoria à prática – de proceder, logo que possível, a uma espécie de passagem de testemunho entre a mente que interpreta o mundo e os braços que, empunhando ou não armas, poderão transformá-lo. Não se trata de opor uma determinada prática à teoria, mas, talvez – embora não exclusivamente –, de defender uma nova prática teórica, que não sossegue em si mesma, nem perca ainda assim a alegria, uma certa compleição afirmativa – do contraditório, da polémica, da provocação. Entretanto, sabemos que, apesar de mais recentemente se ter agudizado o conflito entre Sloterdijk e Habermas, este último não deixou de tecer considerações elogiosas sobre a Crítica da Razão Cínica, aquando da sua publicação em 1983. E, de facto, nos tempos em que Habermas se dedicava às leituras que culminariam no Discurso Filosófico da Modernidade, eram, realmente, também Adorno e a sua Dialéctica Negativa dois dos alvos das críticas esgrimidas por Sloterdijk. Este facto, que não obstou a que entretanto os elogios de Habermas tenham

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dado lugar a uma azeda polémica, não nos impede, hoje, de nos apercebermos de quão Adorno estava consciente dos perigos de um auto-comprazimento teórico-crítico. Citemos, a este propósito, um passo de “Crítica da cultura e sociedade”: O crítico da cultura deplora uma cultura sem a qual a sua insatisfação não teria objecto. O crítico fala como se representasse ora uma natureza intacta ora um estádio histórico mais evoluído, e contudo ele não pode ser distinto daquilo que trata com tanta altivez. [...] A atitude do crítico da cultura permite-lhe [...] elevar-se teoricamente acima do desastre reinante, ainda que, na verdade, ele permaneça simplesmente aquém. [...] O rigor impiedoso com o qual o critico enuncia a verdade sobre a falsa consciência permanece refém daquilo que combate, fascinado pelas suas manifestações.[2]

Muitos são os passos na obra de Adorno – afins a este que acabo de citar, em que se desmascara o fascínio com o qual o crítico contempla as manifestações daquilo que critica, no preciso momento em que denuncia a sua falsidade – em que Adorno tematiza, para a exorcizar, a possibilidade de a crítica ceder ao conformismo (não muito distante do cinismo diagnosticado por Sloterdijk). Que estes passos, na obra de Adorno, vão a par com uma radicalização da crítica, de uma crítica que não poderia exercer-se senão interrogando os seus próprios fundamentos é o que devemos sublinhar, agora, para tornar claro que aquilo que nos permitirá resgatar Adorno às críticas de Sloterdijk é provavelmente, nem mais nem menos do que aquilo que nos encaminha na direcção das críticas – assaz distintas – que lhe dirigiu Habermas. É a estas, de resto – e dando por terminada esta já longa introdução – que queria chegar. É que – entendamo-nos – apesar de ambos se sentirem desconfortáveis com o tom melancólico da obra de Adorno, o cerne da crítica de Habermas consiste, não na chamada de atenção para um eventual “défice de inconformismo” (a meio caminho entre a ideologia que se recusa e o cinismo que se consente), mas, fundamentalmente, na

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Theodor W. Adorno, “Kulturkritik und Gesellschaft” (1947), in Prismen, Gesammelte Schriften 11.1, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2003, pp. 11-12. 2

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denúncia de um suposto “défice normativo”. Segundo Habermas, Adorno e Horkheimer (na Dialéctica do Iluminismo) e o primeiro na Dialéctica Negativa (além de outros autores, nomeadamente Foucault) teriam incorrido no que o autor da Teoria da Razão Comunicativa considera ser uma “contradição performativa”. Por que motivo? Porque, sempre segundo Habermas, preconizam uma “totalização da crítica”, ou seja, porque defendem que a crítica deve visar não só os aspectos contraditórios da realidade social, mas a sociedade como um todo e, sobretudo, a própria razão, que constitui a condição de possibilidade histórica das instituições, das práticas e dos discursos (nomeadamente dos discursos críticos). Ora, argumenta Habermas, ao demonstrar que a própria razão é suspeita (na medida em que racionalidade e dominação estariam imbricadas), a crítica privar-se-ia do seu próprio fundamento. Torna-se, por isso, paradoxal, e mais não faz do que agitar-se incansável e improdutivamente, sendo que – cito agora o Discurso Filosófico da Modernidade – “ao longo dos vinte e cinco anos que se seguiram à conclusão da Dialektik der Auklärung, Adorno se manteve fiel ao impulso filosófico, e não se esquivou à estrutura paradoxal de um pensamento da crítica totalizada”[3]. Numa frase, seria este o paradoxo: tornando-se total, visando a própria razão (problematizando os critérios racionais que servem de normas ao exercício crítico) a crítica anularia a sua pretensão de validade. No entanto – sendo este o cerne da questão – não é claro que uma tal insistência na normatividade não elida o que, por razões que tentaremos explicitar, julgamos ser o âmago de uma crítica filosoficamente radical, a saber, a possibilidade de ela visar as suas próprias condições de possibilidade. Ela será, talvez, paradoxal; mas paradoxal, a bem dizer, era já a crítica como a concebia Kant, em cuja filosofia, mutatis mutandis, a razão comparece paradoxalmente como juíza e ré... Eis a questão a que chegamos: e se – trata-se de uma hipótese – esta dimensão paradoxal da crítica não fosse uma falha (i.e., nos termos de Habermas, o índice de uma “contradição performativa” que bloqueasse Jürgen Habermas, “Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung: Horkheimer und Adorno”, Der philosophische Diskurs der Moderne, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1983, p. 145. 3

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o exercício crítico) mas o princípio mesmo da sua radicalidade (i.e., o próprio fermento da sua produtividade, e, porventura, um antídoto contra o cinismo reinante)? Note-se que houve, de facto, quem tivesse já denunciado a parcialidade das críticas dirigidas a Adorno por Habermas, argumentando que a sua obra é menos paradoxal do que parece numa leitura superficial; no entanto, é totalmente avessa a uma estratégia defensiva deste tipo aquela em que apostamos aqui, tanto que não se trata de testar o índice de sistematicidade da obra adorniana – ao que acresce que não nos move a intenção de recuperar o pensamento deste ou daquele autor em virtude de uma tomada de partido prévia por algum deles, mas de pôr à prova e radicalizar os elementos mais fortes nas propostas teóricas que, hoje como ontem, nos permitam atacar intempestivamente o presente. Posto isto, diga-se que é para lhe dar uma resposta afirmativa que fazemos a pergunta pela dimensão intrinsecamente paradoxal da crítica – pergunta através da qual enunciamos a hipótese que norteia esta comunicação. No entanto – sendo por isso mesmo que traremos à discussão Rancière – não se trata de afirmar a produtividade paradoxal da crítica em termos genericamente estilísticos, no quadro de um elogio – como o que está em jogo na Crítica da Razão Cínica de Sloterdijk – das virtudes combativas (numa guerra de guerrilha contra a falsa consciência cínica) de um inconformismo kínico (inspirado em Diógenes). Trata-se antes – e em termos mais radicais – de inverter por completo os termos da crítica habermasiana e de postular que a crítica, ou é radical ao ponto de interrogar paradoxalmente os seus fundamentos, ou não chega a sê-lo. Para defender esta posição, creio que ter em conta o modo como Rancière – que é também, em larga medida, um crítico da crítica – elabora o seu conceito de dissenso/desentendimento pode revelar-se decisivo. No espaço que me resta, contudo, mais não farei do que – em primeiro lugar – enunciar as condições desta convergência teórica entre Adorno e Rancière (ou uma em particular, que me parece ser a mais importante), e – em segundo lugar – apontar para o modo como, instalando-me no terreno desse cruzamento, a ideia de um uso paradoxal da crítica poderá permitir repensar a relação – que há que pensar sempre de novo, mas de um modo menos direccionado, para que se não torne contraproducente – entre teoria e praxis.

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Não é despiciendo começar por salientar que é de um determinado diagnóstico da relação entre a racionalidade do consenso e a auto-justificação das democracias neo-liberais contemporâneas (pelo menos desde os anos 80 e 90), que arranca a valorização rancièriana do dissenso (ou do desentendimento). Por consenso, desse ponto de vista, não se entende a ausência de contraditório, mas antes, como afirma numa entrevista feita por Bensaid “a afirmação do monopólio da descrição das situações e da enumeração dos actores [que nelas intervêm]”[4]. Ao mesmo tempo, o consenso é também, em termos mais genéricos, o pressuposto segundo o qual cada parte da população, bem como todos os seus problemas específico, podem ser tidos em conta e incorporados numa ordem política (ordem política que Rancière caracteriza como policial). Este idílio, porém, contrasta com uma realidade em que guerras étnicas continuam a proliferar por todo o mundo, em que reaparecem, também nas sociedades ocidentalizadas, as formas mais brutais de racismo e xenofobia, e em que a resposta à crescente desigualdade deixou de ser – pense-se nos recentes motins de Londres – necessariamente pacífica. É deste contrate que importa dar conta, segundo Rancière. O discurso oficial celebra a vitória da razão consensual sobre as formas arcaicas e irracionais do conflito político. Mas o que corresponde a essa suposta vitória da razão modernista é o retorno de um arcaísmo bem mais radical: o retorno da velha irracionalidade da lei do sangue. [...] A minha hipótese é de que existe, pelo contrário, uma estrita solidariedade entre uma certa ideia da razão política e um certo retorno do irracional. Gostaria de mostrar que essas novas irracionalidades e a definição consensual da razão política são inseparáveis, precisamente porque o que chamam consenso é na verdade o esquecimento do modo de racionalidade próprio à política. Sob o nome de dissenso, é portanto esse modo de racionalidade que tentarei pensar. A escolha desse termo não busca simplesmente valorizar a diferença e o conflito sob diversas formas: antagonismo social, conflito de opiniões ou multiplicidade de culturas. O dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É

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Jacques Rancière, Moments politiques, Paris, La fabrique, 2009, p. 181.

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a divisão no núcleo mesmo do mundo sensível que institui a política e sua racionalidade própria.[5]

O dissenso – que, para Rancière, funda não só a política mas também a própria democracia (uma que, no entanto, não se confunde com a forma de governo liberal dos estados democráticos realmente existentes) – não é apenas o contraditório, tal como o consenso não é – como tínhamos dito – a sua ausência, mas uma operação que perturba os dados da discussão e os lugares dos que nela intervêm, redefinindo os horizontes de percepção que distinguem o audível do inaudível, o compreensível do incompreensível, o visível do invisível. Por outras palavras, o dissenso constitui a perturbação da partilha policial do sensível. O consenso – celebrado como constitutivo da democracia – é-lhe afinal contrário, na medida em que suprime o litígio constitutivo da política; litígio em que, em termos telegráficos – pois não nos interessa aqui entrar no pormenores da conceptualização rancièriana – a parte dos que não têm parte (o “demos”) reclama a sua parte enquanto paradoxalmente co-extensiva ao todo; nesse sentido, o consenso, enquanto remete cada qual para o seu lugar e cada palavra para o seu sentido, mais não faz do que reduzir a política à polícia. Em suma, é de uma concepção radical da política que aqui se trata; de uma política – feita, não só de acções, de gestos, mas também de palavras e de formas sensíveis (daí poder falar-se de uma política da arte, da literatura, da música) – cuja radicalidade se prende, por um lado, com o facto ser rara (apesar de não rara no sentido do acontecimento de que fala Badiou), mas também, por outro lado – aquele que aqui me interessa salientar – com o facto de perturbar, não o campo da experiência, mas o campo das suas condições. Vimos há pouco, seguindo a pista de Adorno – iluminados pelas críticas de Habermas – que a radicalização paradoxal da crítica consistia em esta visar a própria razão, ou seja, consequentemente, as própria condições do real, da sua inteligibilidade, da sua criticabilidade (ou seja, também, a condições do próprio exercício crítico, dos seus métodos,

283 A TEORIA CONTRA O CINISMO: OS USOS PARADOXAIS DA CRÍTICA DE ADORNO A RANCIÈRE João Pedro Cachopo

Jacques Rancière, “O dissenso”, trad. Paulo Neves, in A Crise da Razão, org. Adauto Novaes, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 368. 5

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dos processos através dos quais se erige um valor em norma). Ora, é precisamente esta dimensão – a que poderíamos chamar transcendental – que julgo implícita na apresentação do dissenso como uma perturbação da partilha do sensível, em que o que está em jogo é uma reconfiguração não só do que se vê ou ouve, não só daquilo com que se concorda ou de que se discorda, mas, fundamentalmente, do que é visível, audível, inteligível; numa palavra, não só do que sempre já se pode dar na experiência, mas do que gera a possibilidade de uma outra experiência. Esta é, a meu ver, a principal condição do cruzamento proposto: a radicalidade da política em Rancière cruza-se com a radicalidade da crítica em Adorno na ideia de uma intervenção – discursiva, experiencial – no plano das condições da experiência e do pensamento (de que o projecto de um “empirismo transcendental”, tal como pensado por Deleuze, não estaria longe). Contudo, farei por fim um outro desvio – por um texto de Butler – para fechar este elenco de considerações críticas em torno da ideia de um uso paradoxal da crítica. Escreve Butler, num ensaio sobre Foucault, em que se debate com as críticas que lhe dirigiu Habermas, o seguinte: A perspectiva da crítica, do seu ponto de vista [Habermas], é capaz de pôr em causa os fundamentos, desnaturalizar a hierarquia social e política e até estabelecer perspectivas através das quais se possa guardar uma certa distância em relação ao mundo desnaturalizado. Mas nenhuma dessas actividades pode indicar-nos em que direcção devemos ir, nem sequer dizer-nos se as actividades em que nos envolvemos concretizam ou não determinados tipos de objectivos normativamente justificados. Por conseguinte, na sua opinião, a teoria crítica teria de dar lugar a uma teoria normativa mais forte, como a acção comunicativa, de forma a fornecer um fundamento para a teoria crítica, possibilitando juízos normativos fortes [...]. Ao fazer este tipo de crítica da crítica, Habermas tornou-se curiosamente acrítico acerca do mesmo sentido de normatividade que utiliza, uma vez que a questão “o que devemos nós fazer?” pressupõe que o “nós” tenha sido formado e que seja conhecido, que a sua acção seja possível e que campo em que pode actuar esteja delimitado. Mas se essas mesmas formações e delimitações têm consequências normativas, será então necessário perguntar pelos valores que preparam o cenário para a

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acção, e esta será uma importante dimensão de qualquer pesquisa crítica sobre questões normativas.[6]

Gostaria de acrescentar a estas considerações dois apontamentos acerca do que julgo ser a dimensão acrítica de uma normatização integral da crítica, que não dirá apenas respeito – como Butler sugere – ao “nós” que supõe, e que não pode senão remeter, no contexto do que Honneth, e outros, consideram ser uma crítica reconstrutiva (diferente da crítica construtiva de um Rawls), para o um corpo histórico, social, cultural (cuja coesão caberia contestar para, nos termos de Rancière, se poder falar de política); mas também para o bloqueio e para o empobrecimento que decorrem, no que à relação entre o pensamento e acção diz respeito, de uma concepção normativa da crítica. Diz Butler: “será então necessário perguntar pelos valores que preparam o cenário para a acção”. Mas, poderíamos perguntar: cabe à crítica – pensemos no que hoje se passa à nossa volta – montar o cenário para acção, preparar a acção, orientar a acção? Não deveríamos pôr em causa, desde logo, esta hierarquização dos papeis (do teórico, do crítico, do activista, do militante). É que, de facto, a norma – que um uso paradoxal da crítica procura corroer – supõe uma relação hierárquica entre o pensamento e a acção que cabe criticar politicamente. Nesse sentido, uma teoria normativa oposta a uma teoria crítica ou uma teoria crítica normativamente forte não peca apenas por falta de realismo (como Raymond Geuss defende)[7] mas por bloquear uma acção que não se poderá desencadear senão depois de se ver justificada ou por restringir a possibilidade de outras acções (de luta) que não sejam a priori reconhecíveis, previsíveis, preparáveis. Neste sentido, o modo como Rancière apresenta o princípio da igualdade (não sendo a igualdade um objectivo concreto, nem um valor abstracto, mas uma pressuposição que se pretende actuante), na medida em que tal princípio faz colapsar uma certa concepção hierárquica, logo inigualitária, da crítica pode revelar-se

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Judith Butler, “O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault”, trad. Fernando Ramalho, in Imprópria, no. 1, Lisboa, Tinta-da-China, 2012, pp. 82-83. 7 Cf. Raymond Geuss, Philosophy and Real Politics, Princeton / Oxford, Princeton University Press, 2008. 6

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útil no aprofundamento desta discussão. Note-se, por fim – e a este propósito –, que a figura do “mestre ignorante”[8] é diametralmente oposta, se deslizarmos do plano da pedagogia para o da crítica, ao da figura do teórico marxista que dita os termos em que o que é, o que dever ser, e o que deve ser feito se articulam. É esta articulação que importaria, porventura, descoordenar se a crítica, e os que nela acreditam, como nós, não querem, não queremos sucumbir às novas formas – mesmo às mais veladas – de cinismo.

Bibliografia citada: Adorno, Theodor W., “Kulturkritik und Gesellschaft” (1947), in Prismen, Gesammelte Schriften 11.1, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2003, pp. 11-30. Butler, Judith, “O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault” (2000), trad. Fernando Ramalho, in Imprópria, no. 1, Lisboa, Tinta-da-China, 2012, 286

pp. 81-98. Habermas, Jürgen, “Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung: Horkheimer

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und Adorno”, Der philosophische Diskurs der Moderne, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1983, pp. 130-157. Rancière, Jacques, “O dissenso”, trad. Paulo Neves, in A Crise da Razão, org. Adauto Novaes, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, pp. 367-382. ––––, Moments politiques, Paris, La fabrique, 2009. Sloterdijk, Peter, Critique of Cynical Reason [Kritik der zynischen Vernunft, 1983], trad. Michael Eldred, University of Minnesota Press, Minneapolis / London, 2001.

Cf. Jacques Rancière, Le maître ignorant. Cinq leçons sur l’émancipation intellectuelle, Paris, Fayard, 1987. 8

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A ARTE COMO POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO EM VILÉM FLUSSER Debora Pazetto Ferreira [email protected] UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG)

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pois Vilém Flusser não recebeu nenhuma influência da Teoria Crítica e tampouco discute com seus principais autores. Todavia, não seria um exagero afirmar que há alguns aspectos da filosofia flusseriana que assaz se aproximam do pensamento de Adorno e Hockheimer, provavelmente porque partem dos mesmos problemas. Esses aspectos relacionam-se, sobretudo, à análise crítica da cultura de massas – ou entretenimento, ou diversão –, que é diferenciada da arte propriamente dita. Além disso, a arte que subsiste à indústria cultural é igualmente tomada como forma de resistência, como possibilidade de emancipação dos indivíduos em relação à sociedade de consumo e seus diversos perfis, como a manipulação pelos padrões do mercado, a domesticação das particularidades, o fetichismo das mercadorias culturais, entre outros. Em termos mais flusserianos, a arte é capaz de emancipar o homem da programação exercida pelos aparelhos. Aparelhos são objetos tecnológicos construídos no contexto de uma teoria, são produtos de textos científicos aplicados. Flusser descreve dois tipos de objetos culturais: aqueles em que o valor está em seu consumo (bens de consumo) e aqueles em que o valor está na produção de bens de ESTE TEXTO NÃO ABORDA A TEORIA CRÍTICA DE MODO DIRETO,

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consumo (instrumentos). Instrumentos modificam objetos através do “trabalho”. Máquinas são instrumentos maiores, mais potentes e mais caros, porém capazes de fabricar bens de consumo baratos e numerosos. Essas são categorias industriais e pré-industriais, que se remetem a um mundo regido pelo trabalho. Aparelhos, por outro lado, precisam ser categorizados como um terceiro tipo de objeto cultural, pois pertencem ao mundo pós-industrial: eles não trabalham, não modificam objetos, mas geram, manipulam e armazenam símbolos. Aparelhos não são, nem produzem bens de consumo, mas informações. No mundo pós-industrial, “a atividade de produzir, manipular e armazenar símbolos (atividade que não é trabalho no sentido tradicional) vai sendo exercida por aparelhos. E tal atividade vai dominando, programando e controlando todo o trabalho no sentido tradicional do termo”[1]. Atualmente, a maior parte da sociedade está comprometida com aparelhos, que são programados de acordo com regras que simulam o pensamento humano e condicionam os homens a seguir sua programação. Pois o tipo de informação que o aparelho produz está inscrito previamente em seu programa e, para fazê-lo funcionar, os funcionários (pessoas que agem em função de aparelhos) precisam respeitar suas regras. Flusser adota a máquina fotográfica como protótipo do aparelho, descrevendo seu programa como “caixa preta”, isto é, como processo complexo e obscuro, incompreensível para a experiência humana corriqueira. Os homens em geral não acompanham o que se passa dentro de uma caixa preta; tomam conhecimento apenas do input (por exemplo, uma nuvem) e do output (a fotografia da nuvem). Assim, “pelo domínio do input e do output, o fotógrafo domina o aparelho, mas pela ignorância dos processos no interior da caixa, é por ele dominado”[2]. Mas quem programa os aparelhos não detém o esclarecimento, e consequentemente o domínio, de toda a situação? O fato é que não há um último programa, mas diversos programas que se co-implicam circularmente ad infinitum. Há o programa do aparelho, o programa da fábrica que produz os aparelhos, o programa do parque industrial que produz as fábricas, o programa do aparelho político-cultural que programa aparelhos econômicos e ideológicos, que reprogramam o aparelho 1 2

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Flusser, V. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume, 2011. p. 41. Ibid. p. 44.

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político-cultural. Ou seja, não há um programa de todos os programas, portanto, o esclarecimento completo é impossível. Todo o “mundo administrado” descrito na Dialética do Esclarecimento pode ser apreendido como o aparelho social contemporâneo, sendo a indústria cultural um de seus principais programas. A meta do programa da indústria cultural é programar os homens para serem consumidores dos produtos culturais e dos objetos fabricados pelas grandes empresas do capitalismo monopolista. A sociedade pós-histórica como um todo é um gigantesco aparelho, uma caixa preta que escamoteia seu funcionamento, suas transações e seus procedimentos. No fim das contas, o que se oferece aos impotentes cidadãos é apenas o input e o output, apenas algumas regras do jogo que deve ser obedecido e não decifrado, mas que anula quem não consegue ou não quer jogar. Essas considerações ficam mais claras ao se levar em consideração que o tema central do pensamento de Flusser é a ligação entre o homem e as estruturas da cultura. Essa ligação é caracterizada como ambivalente, pois, por um lado, a cultura é libertação do homem em relação à natureza, mas, por outro, constitui um conjunto de determinações que igualmente o limita. Como o filósofo explica na Filosofia da Caixa Preta, o homem é determinado pela cultura porque sua experiência no mundo é mediada pelas representações que ele mesmo cria e pelo modo como as comunica [3]. Uma das contribuições mais interessantes do pensamento de Flusser é a radicalidade com que ele compreendeu que o meio pelo qual se representa ou se comunica algo influencia aquilo que é representado ou comunicado. Assim, a cultura é analisada de acordo com o médium predominante nas relações dos homens com o mundo e entre si. A primeira forma de relação do homem com espaço e o tempo é feita através da “manipulação” que transforma o mundo bruto em “circunstância”: o homem abstrai o tempo, segura os volumes, modifica os objetos, informa-os para que se tornem jarros e pontas de lança, ou seja, cultura [4]. A segunda forma de cultura é a criação das imagens, que abstraem a profundidade das circunstâncias e as fixam em planos bidimensionais, transformando-as em “cenas”. As imagens pré-históricas têm a intenção de possibilitar a 3 4

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Ibid. Cap. 1. Flusser, V. Universo das Imagens Técnicas: Annablume, 2008. p. 15, 16.

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mediação entre o homem e as circunstâncias palpáveis. Contudo, essa mediação comporta uma ambiguidade arriscada: “as imagens podem substituir-se pelas circunstâncias e ser por elas representada, podem tornar-se opacas e vedar o acesso ao mundo palpável” [5]. Ou seja, o homem deixa de agir em função do mundo e passa a agir em função de imagens, às quais adora mesmo quando não pode decifrá-las – magia, mistificação, idolatria. Como tentativa de recuperar a transparências das imagens e escapar à magia, o homem cria a escrita: rasga as superfícies bidimensionais para decifrá-las perfilando seus fragmentos em linhas unidimensionais. As cenas passam a ser contáveis, explicáveis, o tempo passa a ser linear e progressivo, o mundo mediado pelas imagens passa a ser conceituado pela escrita. Flusser denomina “pré-história” a era das imagens e das circunstâncias, e “história” a era da cultura dominada pela estrutura midiática da escrita. Textos são colares de contas em que as contas são conceitos e os fios são as regras matemáticas, lógicas e gramaticais. Mas os textos, tanto quanto as imagens, passam a encobrir as experiências concretas e condicionar os homens, fanatizados pelos conceitos, a modos de vida cada vez menos deliberados. Para minorar a “textolatria”, surge uma nova revolução cultural: E mais de três mil anos se passaram até que tivéssemos aprendido que a ordem “descoberta” no universo pelas ciências da natureza é projeção da linearidade lógico-matemática dos seus textos, e que o pensamento científico concebe conforme a estrutura dos seus textos assim como o pensamento pré-histórico imaginava conforme a estrutura de suas imagens. Essa conscientização, recente, faz com que se perca a confiança nos fios condutores. As pedrinhas dos colares se põem a rolar, soltas dos fios tornados podres, e a formar amontoados caóticos de partículas, de quanta, de bits, de pontos zero-dimensionais. (...) E, uma vez calculadas, podem ser reagrupadas em mosaicos, podem ser “computadas”, formando então linhas secundárias (curvas projetadas), planos secundários (imagens técnicas), volumes secundários (hologramas) [6]. 5 6

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Ibid. p. 16. Ibid. p. 17.

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Os aparelhos são criados, portanto, para calcular, computar e agrupar os conceitos dispersos em pontos zero-dimensionais. São dispositivos que simulam os modos de pensamento humano para recriar as dimensões perdidas e encobrir o vazio deixado pelo desaparecimento gradual da história. O estado atual da cultura após a última revolução midiática está diretamente entrelaçado com a profusão das imagens técnicas (imagens produzidas por aparelhos) e com a convergência dos meios de comunicação para o uso de representações audiovisuais em vez de textos. Flusser denomina “pós-história” a era dominada pela estrutura representacional das imagens técnicas, a era da sociedade de informação telemática. O código linear da escrita é substituído pelas imagens técnicas, os textos são retraduzidos em imagens, que são, todavia, opostas às imagens tradicionais: “a imagem tradicional é produzida por gesto que abstrai a profundidade da circunstância, isto é, por gesto que vai do concreto rumo ao abstrato. A tecno-imagem é produzida por gesto que reagrupa pontos para formarem superfícies, isto é, por gesto que vai do abstrato rumo ao concreto” [7]. Assim, enquanto a imagem tradicional é uma abstração direta a partir do mundo, do espaço-tempo das circunstâncias, a imagem técnica é uma concreção que pressupõe aparelhos e tecnologias, que pressupõem por sua vez as teorias científicas e matemáticas, a lógica, o sistema binário, em suma, a história. A análise flusseriana dos meios de comunicação e representação é fundamental porque são estes que determinam a cultura de cada época, caracterizam a sociedade e moldam a consciência humana. A crítica dos meios de comunicação e a crítica da caixa preta são a crítica da sociedade e da cultura. A crítica das imagens técnicas é a crítica da pós-história como mundo administrado cegamente por aparelhos. Assim como os textos foram inventados para superar o fanatismo da idolatria, as imagens técnicas foram inventadas para superar a ofuscamento da textolatria. Sua função era estabelecer um novo código capaz de reunificar a cultura fragmentada pela crise da história no final do século XIX. As imagens técnicas deveriam ser um denominador comum entre o conhecimento científico que havia se tornado hermético, as imagens tradicionais da experiência artística 7

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Ibid. p. 19.

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que haviam se confinado aos museus, e a vida das massas despojadas tanto da ciência quanto da arte. Contudo, outro rumo foi tomado: as imagens técnicas não tornaram o conhecimento científico visível e acessível, nem reintroduziram a imagem tradicional na vida cotidiana, mas substituíram ambos por clichês audiovisuais, por situações previsíveis e prováveis e por informações sem profundidade. Não apenas foram incapazes de reunificar a cultura, como fundiram a sociedade em massa amorfa, recaída em um novo tipo de idolatria cega. Essa massa amorfa passa a viver em função de aparelhos que dominam a produção, a manipulação e o armazenamento de informações. Logo, dominam a capacidade humana de apreender e formular o mundo. Os aparelhos programam previamente as ações de cada indivíduo, tornando-o um funcionário subalterno limitado a seguir as regras ditadas por seus programas. O cenário pós-histórico descrito por Flusser encontra-se em uma encruzilhada na qual um dos caminhos leva a uma escravidão tão completa aos aparelhos que ninguém mais será capaz de aspirar à liberdade. . O outro caminho é apontado pela arte: retomar as rédeas da cultura e estabelecer novamente o homem como centro de seus próprios modelos de mundo. Não se trata de um otimismo ingênuo, que supõe que a arte vai salvar a humanidade. Assim como Adorno recorre à arte autêntica como resistência ao domínio da razão instrumental [8], Flusser toma a arte como possibilidade de resistir à total programação do homem. A arte pode assimilar as técnicas avançadas próprias do período pós-industrial sem, todavia, subordinar-se à função dominadora que essas técnicas exercem econômica e politicamente. O cinema, a fotografia, a web art e a arte digital, tanto quanto a literatura e a pintura de cavalete, podem ser orientadas para a racionalidade instrumental, mas também podem não ser. A arte pode empregar técnicas e aparelhos, mas não pode apropriar-se de sua tendência à dominação. Ela supera a tecnologia e as imagens técnicas ao utilizá-las para finalidades antitecnológicas, para criar “máquinas que nada produzem e aparelhos que não funcionam” [9]. Ou seja, o poder e os métodos científicos são Adorno, T. Teoria Estética. Lisboa: Ed. 70, 2008. p. 327. Flusser, V. O Espírito do Tempo nas Artes Plásticas. Publicado originalmente em SL., OESP, 16 (703): 4, 03.01.71. 8

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reduzidos ao absurdo, passam a ser jogos – é difícil não recordar de artistas como Eduardo Kac, Orlan e Stelarc, que utilizam, respectivamente, os conhecimentos da engenharia genética, da medicina e da robótica para criar obras de arte que levam essas tecnologias a finalidades que só podem ser percebidas como aberrações. Grande parte das imagens técnicas tomou o rumo da programação e da massificação da cultura, mas a arte é capaz de incorporá-las e, quiçá, fazer com que cumpram a função de unificar e garantir acesso ao conhecimento para a qual foram inventadas. Desse modo, a arte emancipa do discurso tecnológico no qual o homem é um “parafuso em aparelho projetado por outrem” [10] e possibilita a criação de uma nova situação, na qual o homem volta a ser sujeito capaz de projetar o sentido de sua própria vida. Em A Arte como Embriaguez, Flusser caracteriza a arte, entre os demais entorpecentes, como modo de esquivar-se de uma vida tornada insuportável pela cultura. Contudo, diferentemente dos outros entorpecentes, a arte é indispensável para a cultura, pois é sua fonte de informações novas. O ponto principal é que, mesmo na era dos funcionários e das relações tecnificadas, a arte é imprescindível, porque sem ela a cultura estagnaria, os aparelhos cairiam em entropia e passariam a “girar em ponto morto”. Todo sistema, mesmo o dominado por aparelhos, precisa de uma fonte de informação nova, sem a qual poderia somente armazenar e permutar as informações que já possui. A arte é fonte de informação nova porque o artista retira-se do espaço público, que é o espaço de circulação das representações já familiares, e mergulha em suas experiências concretas. Mas, diferentemente dos outros entorpecidos, o artista volta para a esfera pública trazendo novos conteúdos oriundos desse afastamento momentâneo. Esses conteúdos são gerados como tentativa de representar as experiências que extrapolam os símbolos correntes do sistema. Nesse segundo momento, arte é ação política, pois é retorno do subjetivo ao público e reformulação de ambos. Por isso ela possibilita a emancipação humana do totalitarismo dos aparelhos: ela abre uma fenda que não pode ser tamponada pelos mesmos, por ser a indispensável fonte de informações novas. A

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Flusser, V. O Espírito do Tempo nas Artes Plásticas. Publicado originalmente em SL., OESP, 16 (703): 4, 03.01.71. 10

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mesma fenda que explicita ao homem que, em última instância, ele é sua derradeira fonte de autodeterminação. E mostra que os aparelhos necessitam do humano enquanto ser criador, enquanto artista, que, paradoxalmente, é o anti-funcionário por excelência. A arte é perigosa para os sistemas principalmente porque lhes é imprescindível e porque nem toda informação nova pode funcionar de modo pré-programado – às vezes “algo lhes escapa e passa a agir contra eles” [11]. Isso explica toda a história de censura à sombra da história da arte. Se a arte não fosse uma potência transformadora, não seria necessário controlá-la e reprimi-la como fazem os regimes autoritários até os dias de hoje. Para entender porque a arte é fonte de informações novas e, portanto, um modo de superar o totalitarismo aparelhístico da pós-história, é preciso destacar o papel central da arte na ontologia de Flusser. Em Língua e Realidade, o autor expõe a tese de que língua é realidade porque não há acesso ao que precede a língua (entendida como o conjunto dos sistemas de símbolos, de representações). Irreal é aquilo que não podemos apreender porque não podemos representar. Flusser afirma que o centro da língua é a conversação: uma rede formada por intelectos que irradiam e absorvem frases [12]. Mas como a língua propagada na conversação surge? Na ontologia de Flusser, a língua é criada a partir do inaudito latente nas experiências concretas. A essa atitude dá-se o nome de poesia ou arte. Assim, arte é a aptidão humana de propor novas formas de representação, novos nomes, símbolos, modelos. Arte é poesia no sentido de poiein: produzir ou estabelecer algo. O que a arte produz, no sentido mais radical, é a própria realidade: “arte é ‘poiesis’: ela pro-duz o real (o amor e a paisagem, a guerra e a molécula do ácido ribonucléico) para nossa experiência” [13]. Em seus diversos textos, Flusser fala de arte ora como articulação do ainda não articulado, ora como transformação da subjetividade em intersubjetividade, ora como esforço do intelecto em conversação de criar língua. Em todas essas formulações, o que predomina é sempre a ideia de que arte é criar e

Flusser, V. A arte como Embriaguez. Publicado originalmente em FSP, 06.12.81, folhetim, (255): 12. p. 3. 12 Flusser, Vilém. Língua e Realidade. Terceira edição. São Paulo: Annablume, 2007. p. 136. 13 Flusser, Vilém. L’art: Le beau e le jolie. p. 2. 11

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transmitir para dentro da conversação pensamentos novos [14]. O que está em questão não é uma definição de obra de arte referente aos artistas e aos museus, mas a capacidade humana de criação: “os ditos ‘artistas’ são invenção da Idade Moderna e não sobreviverão a ela. Mas a embriaguez artística caracteriza todo homem criativo, seja cientista ou técnico, filósofo ou programador de sistemas” [15]. A arte estabelece a realidade porque ela propõe modos de representar nos quais acontecem as experiências concretas dos indivíduos. Em L’art: le Beau et le Joli, Flusser elabora uma reflexão interessante sobre “modelos”. Tomando como exemplo a experiência amorosa, o filósofo afirma que ela obedece sempre a modelos muito peculiares. Os gregos percebiam o amor entre os sexos como uma atividade pragmática, cuja finalidade era a reprodução, enquanto o amor homossexual podia fundar-se em um sentimento puro. Os medievais admitiam o amor entre os sexos como amor cavalheiresco. O romantismo criou o amor romântico, que no começo era restrito à burguesia e atualmente foi expandido a todos, como um sentimento de massa, estimulado pelos filmes e pelos romances baratos. Toda experiência concreta, mesmo de algo tão único e pessoal quanto o amor, é possível apenas dentro de um modelo, dentro de uma estrutura prévia imposta pela cultura. As experiências no mundo não são puras e independentes, pois passam a existir quando são capturadas e ordenadas por modelos. De acordo com Flusser, qualquer experiência humana é em princípio condicionada por representações históricas criadas em determinada situação cultural. Arte acontece quando as experiências do artista transbordam aos modelos existentes e ele precisa criar outros para possibilitá-las. Toda elaboração de modelos para a experiência humana é inicialmente arte: “toda experiência é modelada, programada pela arte” [16], não apenas sentimentos e comportamentos, mas até mesmo sons, cores, formas, odores, dores e prazeres, enfim, qualquer percepção sensorial manifesta-se apenas na língua – uma vez que língua é realidade – e é estabelecida pela arte – uma vez que arte cria língua.

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Flusser, Vilém. Língua e Realidade. Terceira edição. São Paulo: Annablume, 2007. p. 148. Flusser, Vilém. A arte como Embriaguez. Publicado originalmente em FSP, 06.12.81, folhetim, (255): 12. p. 3. 16 Flusser, Vilém. L’art: Le beau e le jolie. p. 2 14 15

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Nós dependemos da arte para poder perceber o mundo. A arte é nossa maneira de viver no real. Nisso somos diferentes de outros animais. Nosso mundo é uma “Lebenswelt”, (um mundo de vida humana) graças à arte, e não somente uma “Unwelt” (um sistema ecológico). A arte é nosso programa para a experiência da realidade, nós somos computadores estéticos [17].

296 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

É importante observar que modelos “não são generalizações de uma experiência concreta de um artista (...). São estruturas propostas pelo artista para ordenar as experiências futuras, redes para colher experiências novas” [18]. Assim, a arte não pode ser compreendida como expressão dos sentimentos do artista, embora ela envolva um mergulho na subjetividade para ser produzida, mas como proposição de modelos para futuras experiências intersubjetivas. Uma vez propostos, estes passam a circular e a modelar a experiência humana. Aos poucos, podem cristalizar-se como padrões de sensibilidade, emoção, comportamento e interpretação. Quando se afastam de sua origem criativa e tornam-se uma imposição não refletida, um clichê, uma padronização dos sujeitos, os modelos migram da arte para a cultura de massas. Por conseguinte, passam a endossar a estandardização dos gostos e as relações estereotipadas. Os modelos, cooptados pela cultura de massas, reforçam a transformação dos homens em funcionários alienados, de imaginação e pensamento atrofiados. Nesse contexto, Flusser propõe os conceitos, empregados de modo bastante peculiar, de “belo” e “agradável”. Se a arte é o ato que cria modelos para a experiência da realidade, o belo diz respeito à quantidade de informação nova presente em cada modelo. Utilizando a linguagem da teoria da informação, o autor explica que quando um modelo é muito tradicional, ele não contém muita informação e não aumenta o domínio da realidade, logo, não é belo. Por outro lado, se é excessivamente vanguardista e contém tanta informação a ponto de não comunicar nada, por não ser passível de compreensão, ele tampouco pode ser belo [19]. A beleza é a fina linha que separa a trivialidade do delírio. Mais precisamente, Flusser concebe o “belo” como a originalidade aliada à 17 18 19

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Ibid. p. 2. Ibid. p. 2. Ibid. p. 4.

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compreensibilidade de um modelo, que é, portanto, capaz de expandir as experiências humanas e destruir ideologias e comportamentos obtusos. É nesse sentido que o belo se contrapõe ao “agradável” (joli), que se refere aos estereótipos, isto é, aos padrões estéticos universalizados, aos modelos epistemológicos e comportamentais que eliminam as particularidades. Os modelos amplamente aceitos ou impostos são agradáveis porque são previsíveis e familiares: eles não reivindicam o esforço da reflexão. É mais agradável, no sentido flusseriano, escutar músicas ou apreciar pinturas que não contenham informações acústicas ou visuais novas, pois os sentidos já estão programados por modelos pré-estabelecidos para aceitá-las. A distinção entre “agradável” e “belo” remete à distinção entre a “arte agradável”, que é a arte das massas, disseminada pela indústria cultural, e a “arte bela” ou “autônoma”, que envolve reflexão e ampliação das experiências. Quando a singularidade e a originalidade da arte se dissipam na identificação a um padrão, não há mais beleza, não há mais arte propriamente dita – há bem de consumo. Desse modo, tanto quanto Adorno e Hockheimer, Flusser demonstra uma séria preocupação com o processo que vai da mercantilização da arte até sua incorporação ao domínio do entretenimento e da propaganda. A indústria cultural transpõe a arte para a esfera do consumo e a funde com a diversão. O que diferencia a arte da cultura de massas, de acordo com Flusser, é que aquela instaura novos modelos, propõe novas informações e pensamentos. Também as mercadorias devem ter um caráter de novidade para serem atraentes e para parecerem imprescindíveis. Entretanto, o comércio não passa do eterno retorno do sempre igual sob a máscara da inovação, pois a venda frenética de “novidades” é imposta para manter o ritmo acelerado do mercado com a constante substituição de produtos por outros similares. A indústria cultural reduz-se à manutenção do “efeito ideológico que acarreta uma cultura estandardizada, programada, produzida quantitativamente, ao modo precisamente industrial, em função de critérios econômicos, e não mais qualitativamente segundo as normas estéticas” [20]. O que é realmente novo é excluído de antemão pela cultura de massas, pois a

20

297 A ARTE COMO POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO EM VILÉM FLUSSER Debora Pazetto Ferreira

Jimenez, M. L’esthétique contemporaine. Paris: Klincksieck, 2004. p. 53

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ambição de agradar a todos compromete seus produtos com o aplanamento e a repetição de modelos eficazes. A indústria cultural apropria-se da arte, pois opera com a repetição impositiva de modelos que a princípio foram inovadores, mas simplifica-os e exclui o mais artístico da arte, que é seu caráter de abertura ao novo. A transformação do belo no agradável assemelha-se ao conceito adorniano de “desartificação da arte”: o empobrecimento com que o público adestrado pela indústria cultural apreende a arte que ainda poderia ser considerada autêntica. As massas totalmente imersas no processo produtivo e ideológico do capitalismo tardio tornam-se incapazes de reconhecer e apreciar uma expressão artística autêntica. Isso explica “o característico comportamento coletivo no sentido da incompreensão tanto do patrimônio artístico historicamente estabelecido quanto – talvez principalmente – da arte contemporânea, levando ao tratamento das obras como bens de consumo” [21]. Desartificar a arte é recebê-la como uma coisa entre outras coisas, como um artigo de fetiche cultural, ostentado por causa do prestígio e não da fruição verdadeira. Tanto para Flusser quanto para Adorno, ainda há manifestações estéticas autênticas sendo desenvolvidas. No entanto, elas perderam a conexão com a vida das massas, porque não fazem mais sentido ante o aplanamento subjetivo imposto pelo mundo administrado. Como acontece esse distanciamento da arte? As passagens da pré-história para a história e dessa para a pós-história, narradas por Flusser, não acontecem instantaneamente e homogeneamente. A história começa aos poucos no Ocidente, restrita a uma parcela letrada da população, que luta contra a cultura imagética (por exemplo, o cristianismo impondo o texto bíblico contra as imagens pagãs) e começa a dominar a civilização. A consciência histórica foi generalizada apenas com a popularização da imprensa e a escolaridade obrigatória [22]. Os camponeses que ainda viviam orientados pelas imagens tradicionais, em um isolamento pré-histórico, foram alfabetizados e educados para o pensamento conceitual linear, causal e progressivo da história. Os textos, ao se tornarem amplamente acessíveis, ficaram mais baratos e Duarte, R. A Desartificação da arte segundo Adorno: antecedentes e ressonâncias. Artefilosofia, Ouro Preto, n.2, p.19-34, jan. 2007. p. 24. 22 Flusser, V. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume, 2011. p. 34 21

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mais simplificados. Essa historicização generalizada teve como efeito o surgimento de textos herméticos, principalmente os científicos, que buscavam refúgio da profusão dos textos baratos. Outro efeito foi o distanciamento da arte: “as imagens se protegiam dos textos baratos, refugiando-se em ghettos chamados ‘museus’ e exposições, deixando de influir na vida cotidiana” [23]. Assim, as imagens e o pensamento conceitual complexo foram marginalizados, excluídos da vida social, encerrados em museus, academias, galerias e universidades. As imagens técnicas, que, de acordo com Flusser, foram inventadas com o propósito de reunificar a cultura fragmentada em imaginação marginalizada, pensamento conceitual hermético e pensamento conceitual barato, acabaram servindo de instrumento de dominação e massificação. Atualmente, a maior parte da população ocidentalizada vive fascinada pelas imagens técnicas da cultura de massas, enquanto a arte, a filosofia e o pensamento complexo ficam confinados aos pequenos circuitos da elite intelectual. Esse é o processo histórico que culmina com a cisão entre a arte, isolada dentro das redomas museológicas, e a cultura de massas, disseminada por todos os espaços comerciais e propagandísticos da vida contemporânea. Flusser chama essa cisão de “crise da arte”: Esse é talvez o aspecto mais significativo da revolução dos meios de comu-

299 A ARTE COMO POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO EM VILÉM FLUSSER Debora Pazetto Ferreira

nicação da qual nós somos as vítimas. Ela divide a arte em arte de massa e arte de elite. A arte de massa é agradável: ela reforça nossa experiência do real e a petrifica. Nós choramos como o Blues, nós vemos as cores como a Kodak, e nós amamos como Hollywood. E a arte de elite, retirada da sociedade pelos meios de massa, circula nos circuitos fechados e se torna cada vez mais hermética. Ela não comunica e não pode, portanto, modificar nossas experiências do real. Essa é a famosa “crise da arte”. Nossas experiências se tornam petrificadas, e nós nos tornamos os objetos de uma manipulação tecnocrática. Pois se a arte morre, o homem morre, e ele será substituído pelo funcionário [24].

23 24

Ibid. p. 34. FLUSSER, Vilém. L’art: Le beau e le jolie. p. 5.

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A crise da arte é preocupante porque determina toda a experiência e comunicação humana da realidade. Os produtos da indústria cultural são agradáveis porque mantêm um ciclo no qual as massas são programadas para apreciar sempre os mesmos clichês, para pedir mais daquilo que lhes é previamente imposto. A cultura de massas limita-se a entreter e a impor o consumo de seus próprios produtos, cultivando a cristalização da experiência humana, a circulação das mesmas velhas informações e o arrebanhamento de indivíduos cada vez mais incapazes de reflexão e criatividade. Ela é agradável porque é trivial, fácil e previsível. Por outro lado, a arte bela ou autônoma, que propõe novas experiências e comportamentos, torna-se cada vez mais elitizada, mais limitada a pequenos círculos de especialistas. Embora tenha sua origem em anseios genuínos de liberdade e emancipação, perde sua potência porque não é capaz de comunicar seus novos modelos às massas expropriadas da capacidade reflexiva pela eterna repetição de estereótipos. A arte está em crise porque, quando ela se torna petrificada ou hermética, passa a ser “desartificada” em sentido flusseriano: deixa de fertilizar a cultura com informações e modelos novos, deixa de concretizar situações que não estão no roteiro. O homem pode contrapor-se ao mecanicismo tecnocrático por ser capaz não apenas de manipular informações, mas também de criá-las. Os aparelhos não podem transformar completamente os homens em funcionários sem individualidade e criatividade sob o risco de perder sua única fonte de informações novas. O sistema aparelhístico alimenta-se do humano assim como as mercadorias culturais alimentam-se da arte. E é nessa reflexão que está a possibilidade de emancipação em relação à manipulação moral, estética e política do totalitarismo dos aparelhos e da ideologia dos programas. O homem pode resistir à total determinação pela cultura de massas porque pode criar, inovar, modificar, singularizar, enfim, propor novos modelos de mundo. Se a arte deixasse de existir, seria o fim do humano tal como este foi compreendido até hoje; seria talvez o surgimento do pleno funcionário e a estagnação da realidade.

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Referências bibliográficas Adorno, T., (2008), Teoria Estética. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Ed. 70. Adorno, T. W. e HORKHEIMER, M., (1985), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar. Duarte, R., (2010), A Indústria Cultural: uma introdução. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Editora FGV. Duarte, R., (2007), A Desartificação da arte segundo Adorno: antecedentes e ressonâncias. Artefilosofia, Ouro Preto, n.2, p.19-34, jan. 2007. Flusser, V., (2011), Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume. Flusser, V., (2008), O Universo das Imagens Técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume. Flusser, V., (2011), Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Annablume. Flusser, V., (1971), O Espírito do Tempo nas Artes Plásticas. Publicado originalmente em SL, OESP, 16 (703): 4, 03.01.71. Flusser, V., (1981), A arte como Embriaguez. Publicado originalmente em FSP,

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06.12.81, folhetim, (255): 12. Flusser, V., (2007), Língua e Realidade. Terceira edição. São Paulo: Annablume. Flusser, V., (1985), L’art: Le beau e le jolie. Tradução a partir do arquivo original, de Rachel Cecília de Oliveira Costa, para uso acadêmico. Jimenez, M., (2004), L’esthétique contemporaine. Tradução de própria para uso

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acadêmico. Paris: Klincksieck.

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CRITICAL THEORY REVISITED: RECONSTRUCTING THE DEMOCRATIC IDEAL Marta Nunes da Costa [email protected] CENTRO DE ESTUDOS HUMANÍSTICOS – UNIVERSIDADE DO MINHO.

“…(T)he conflict of words is inseparable from the battle over things.” (Rancière, Hatred of Democracy, 2006, p. 93)

303 DEMOCRACY HAS TRIUMPHED IN THE XXI CENTURY . At least, apparently. There ,

are more countries than ever before with a constitutional state, free elections and free press. At the same time, democracy seems caught up in a paradox from which it cannot escape: while it implies popular participation in the public life, democracies arrive at an ‘evil’ condition, where social order is disrupted and political stability challenged – we just need to look at the several street demonstrations and protests across European countries in ‘debt’ to observe this. This observation of some excess of democratic life – in the sense of participation qua political and civic engagement of the people – calls the state or government to limit participation, or at least, to control the excess of collective activity. This paradoxical nature of democracy is not new. Since Ancient Greece democracy was seen in its potentially good but also potentially disastrous consequences. Critical Theory had an important function in reveling this paradox: between the promise of real democracy – where individuals and Humanity converge – and the confrontation with the factual democracy – where individuals and Humanity remains at odds with each other; Critique exposes the disruptions of democratic path. Promise of equality is transformed in the fact of equal consumerism;

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304 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

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promise of freedom is transformed in equal subjection to the labor market. Adorno’s model of the culture industry and Debord’s model of the society of the spectacle denounce the opposition and conflict between economic order and historical necessity within social relations. Today, the paradoxical nature of democracy is more evident than ever – the paradigm of culture industry has changed, with shifts in geo-politics, transformation of social and economic actors, introduction of new technologies and new forms of exchange and communication; still, the questions that define critical theory persist. The critique of democracy remains an imperative today: not only as an attempt to delineate its boundaries (and be able to distinguish what is and what is not democratic), but also as an effort to expose and denounce the clouds of appearances that separate us from real democracy. Under this scenario, where there is a visible struggle between on the one hand, those who think that democracy is too real, and therefore who think that what we need is less participation of the people and, on the other hand, those who think that democracy is still to come (reflecting its ideals in concrete life of real people and not remaining prisoner of some ideological democratic institutional design) a question must be raised: what is the role of critical theory in contemporary democracies? This paper aims at answering this question. Although the political and social landscape has changed in the past decades – we can identify both an erosion of traditional categories such as ‘class’ and ‘race’, but also a dematerialization of social relations and traditional forms of ‘community’ – the Kantian sense of critique, incarnated in critical theories, is the key tool to understand our present condition. I will argue that the critique of democracy start by acknowledging that we confront a) new forms of domination, b) new forms of struggle and opposition, c) new forms of conceiving and experiencing the relationship between individuals and ‘communities’. Differently from Adorno, who was, to a certain extent, prisoner of a pessimistic and disenchanted view of human nature, I defend that when confronted with a general crisis of democracy, critique is the main tool that may allow us to disclose new conditions of possibility for democracy, for individuality and for common life.

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I. The Critical Task ‘We do not live in democracies… We live in States of oligarchic law, in other words, in States where the power of the oligarchy is limited by a dual recognition of popular sovereignty and individual liberties.’ (Rancière 2006, p.73)

Rancière, in Hatred of Democracy, offers a critical reflection on the state of affairs of current democracies. As Green, Rancière argues that democracy is not a form of State; in fact, every State is oligarchic. However, this oligarchy is supported by two premises or postulates, namely, the idea(l) of egalitarianism and the dichotomy between public and private sphere. Both premises are present in the democratic paradigm. Still, the framework of oligarchy has a sufficiently large scope that can encompass more or less democratic forms of governance – that is why we formulate our thoughts and critiques to democracy against concrete examples that appear as closer or more apart from democratic ideals. The concept of Democracy is wide enough to cover an immense spectrum of political forms and behaviors. All different, all equal – at least to some extent. The leverage, the equality that is presumed and shared by different democratic states is grounded on a procedural approach where a set of events and institutions design the democratic horizon – for instance, the act of voting, the existence of regular elections where individuals / citizens can freely choose whom will govern them. However, once we pay a closer look we see that it is impossible to approach democracy from a purely procedural angle. After all, beneath and beyond these procedures lies the assumption of principles, that are not only political, but ultimately, moral in nature. In this section I will devote my attention to two: the principle of equality and the principle of popular sovereignty.

305 CRITICAL THEORY REVISITED: RECONSTRUCTING THE DEMOCRATIC IDEAL Marta Nunes da Costa

1. Political Equality – why does it still matter “I think that democratic communities have a natural taste for freedom: left to themselves, they will seek it, cherish it, and view any privation of it

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with regret. But for equality, their passion is ardent, insatiable, incessant, invincible: they call for equality in freedom; and if they cannot obtain that, they still call for equality in slavery. They will endure poverty, servitude, barbarism – but they will not endure aristocracy. This is true at all times, and especially true in our own. All men and all powers seeking to cope with this irresistible passion, will be overthrown and destroyed by it. In our age, freedom cannot be established without it, and despotism itself cannot reign without its support”. Tocqueville, A., Democracy in America, volume 2, part II, chapter 1

306 TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

Tocqueville, in this passage, identifies two constitutive elements of democracy. The first is what he calls ‘a natural taste for freedom’; the second, the passion for equality. Freedom and equality, two of the founding ideals of democratic regimes, are nevertheless in permanent tension, a tension that can never be resolved. Freedom and equality are, in many ways, incompatible; their relationship is problematic; it raises problems at individual, institutional and collective level in general. Still, it is freedom and equality that constitute democracy, as we know it. More than that, freedom ‘cannot be established without it (equality)’. This is why, when authors like Dahl say that political equality is at stake, it doesn’t simply mean that equality only is at stake, but also freedom. Freedom from external constraints and freedom to act as one wants. Going back to Tocqueville’s text, one sees how it is equality, more than freedom that appears as a definite characteristic of democracy: ‘Freedom cannot, therefore, form the distinguishing characteristic of democratic ages. The peculiar and preponderating fact which marks those ages as its own is the equality of conditions; the ruling passion of men in those periods is the love of this equality. Ask not what singular charm the men of democratic ages find in being equal, or what special reasons they may have for clinging so tenaciously to equality rather than to the other advantages which society holds out to them: equality is the distinguishing characteristic of the age they live in; that, of itself, is enough to explain that they prefer it to all the rest.’ (idem)

Still, the principle of equality is not necessarily nor immediately exported to the political world. Individuals may have equal rights on

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some issues – ‘indulging in the same pleasures, of entering the same professions, of frequenting the same places’ – but that doesn’t guarantee, by itself, political equality. Rousseau was the author that brought the discussion on equality to a new light. In the Second Discourse Rousseau deals with the origins of inequality, from which all human vices develop. Rousseau thinks that there are two kinds of inequality: the natural or physical inequality and the moral one. The development of inequality translates a shift from the natural to the moral, and consequently, political order. Although distinctive, the natural order permeates the moral, social and political orders. The only way to address this injustice is to look at The Social Contract, where Rousseau introduces the concept of ‘general will’ as key and trigger element to simultaneously a) justify or correct injustices and/ or inequalities and b) provide a criterion for legitimacy of government, where ‘the people’ and ‘the government’ are united by a common will, rooted in a common concern and reflecting the belief in a common good. Under this light, freedom is inseparable from equality. Only when individuals are equal can they be free; inequality not only threatens freedom as it also threatens individuality in its core, projecting individuals to a condition of alienation and corruption. Once we look at the question of equality from a democratic angle, we must ask: equality of what? What are its origins, and its purpose? Why does it matter? And what is the role of political equality? What is distinctive about political equality makes it essential for democracy? Accepting the evidence that individuals are different in their talents, strengths and wills, and accepting that the purpose of formal equality is not to compensate for other forms of inevitable inequality, political equality affirms itself by providing one of the basic criteria that distinguishes democracy from other regimes. For Robert Dahl, it is the logic of political equality that governs and affects the development of democratic ideas and institutions. So, what is so distinctive about political equality?

307 CRITICAL THEORY REVISITED: RECONSTRUCTING THE DEMOCRATIC IDEAL Marta Nunes da Costa

a) From equality to political equality Many authors recognize that inequality is the natural condition of mankind. At least until the eighteen century it was a common

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assumption. Sartori, for instance, in The Theory of Democracy Revisited, says that ‘(i)nequality is ‘nature; equality is denaturalization… Equality stands out, first and foremost, as a protest ideal, indeed, as the protest ideal par excellence” (Sartori, 1987, p. 337). In terms of their relationship with democracy, says Sartori, some equalities preceded democracy, while others are democratic claims. Pre-democratic equalities include equality before the law, equal and inalienable rights, and equal freedom or moral equality. These equalities are more the products of Christianity, ethics, natural law and liberal ideals than of democracy. This set of ‘equalities’ also express the shift from a previous conception of ‘natural’ (in)equality to a conception of moral equality. In contrast, three other equalities emerge as intrinsically and distinctively democratic demands: full political equality (as equal universal suffrage), social equality (as equal status and consideration regardless of class or wealth), and equality of opportunity (as equal access and equal start). “Although these equalities have been affirmed in the context of liberal democracy, I would say that they are characteristic rather of its democratic than its liberal component” (Sartori, 1987, p. 343) [1]. When one analyzes the character of political equality one can easily identify its moral roots; political equality reflects the moral demand of recognizing the intrinsic value (equal value) of the human being as such. A discourse on human dignity shapes all contemporary political and social landscape. Today, it would be unthinkable to defend a political theory that would not have as assumption moral equality. Moral equality constitutes the egalitarian ‘plateau’ for all contemporary political theories (Kymlicka). This is why, although making distinctive claims, political and moral equality converge once one tries to dissect the different arguments. If one looks at the demands implicit in social equality and equality of opportunities, then one would be thrown to a discourse that falls into economic debate, i.e., where social equality rests on the precept that everyone counts the same regardless of class or wealth and where equality of opportunities, to be effective and real, require some leveling in terms of economic conditions – economic equality in terms of wealth or in terms of power. These two types of Sartori, Giovanni. The Theory of Democracy Revisited. Chatham, New Jersey: Chatham House, 1987 1

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demands are extremely difficult to meet, because it deals with other components that are highly dangerous and problematic for any theorist, namely, the problem of conceiving or defending a model of the relationship between politics and economics, as major theoretical framework and, on the other hand, the problem of conceiving the relationship between freedom and equality. More equality could mean (as it means in most cases) less freedom. So, what would be the threshold that one would be willing to accept in order to maximize equality? Is it in the interest of democracy to have more equality, more freedom, or a balance in between? Political equality escapes these social and economic tensions. At least, apparently. Political equality affirms the necessity of recognition of all political subjects as counting for one, and one only. All citizens have equal authority to vote on every law and policy of their society. In this sense, political equality is the basic framework that supports democratic construction. In other words, political equality is the condition in which citizens have equal influence on the collective decision-making process. Only having political equality can one have a democratic state where freedom is possible. Of course, once one looks into the conditions for true political equality, problems emerge. There is a great abyss between the ideal and the reality of democratic political equality. The abyss represents the tension between the dominant group and the submissive group, or ‘the many’ and ‘the few’, where ‘the few’ may be in fact ruling ‘the many’. The difficulty lying in the concept of political equality is that this concept refers to two other concepts, namely, the concept of (political) participation and the concept of inclusion. Political equality assumes and projects the right (and possibly the duty) to participate in public life, in order to give an input in the law-making process of a community. However, when one speaks of participation and says that it is a process virtually open to all, it doesn’t necessarily follow that all will participate nor will be included. Indeed, the fact that each citizen has the right to vote only guarantees the necessary formal equality, which is at the basis of the democratic building. However, we know from experience that formal equality is not sufficient to assure real equality among citizens, i.e., the formality of electoral act does not change the asymmetric distribution of power, nor is it translated in representativeness, which democracy

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aims to sustain. It is exactly this tension between formal and real equality that is at the origins of many social and political movements. The struggle for equality exposes itself in the demands for a redefinition of the representative system itself, insofar for those that are not represented or who do not see themselves represented, formal political equality doesn’t alter or change the order of things. 2. Popular sovereignty “In democratic states...the people is sovereign; in oligarchies, on the other hand, the few have that position...” The Politics, Book III, vi, 2.

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At the roots of democracy is the idea(l) of self-government, also translated in the ideal of autonomy. From this idea(l) is inferred the concept and belief of equality: if a natural equality is simultaneously the real – the mere existence as human beings – and the impossible – the acknowledgment that all individuals are different in their talents and competences – then, an artificial equality is constructed – political equality – by the means of laws. [2] However, the fact that political equality is postulated doesn’t guarantee that autonomy qua self-government can be sustained in a democratic order. As Kelsen (1988 [1929]: 17) put it, ‘(f)rom the idea that we are all equal, ideally equal, one can deduce that no one should command another. But experience teaches that if we want to remain equal in reality, it is necessary on the contrary that we let ourselves be commanded.’ This reality – the awareness that democracy is generally an oligarchy – shows how political equality becomes even more vulnerable to social and economic inequalities. The wealthy can influence how policies are made and implemented; different levels of government – from local to national and trans-national – depend on multiple types of investment decisions of large corporations and groups. As Green and Cornell say

2 Pasquino (1998: 109) summarizes this belief: ‘Citizens are not simply equal before the law, in the sense in which the law does not recognize either special rights or privileges, but they become equal by the grace of law and by law itself.’

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Over the past three centuries, capitalist economies and democratic, or quasi-democratic, political institutions have developed side by side. This is a case not of mutual support, but rather of a very fragile and often temporary compatibility. The historical result is that in any capitalist society, oligarchy and democracy coexist in a barely concealed struggle for dominance. As long as free and fair elections exist, so does the potential for majority representation. As long as capital is amassed in the hands of a minority, so does the potential for oligarchy: for the offsetting or overcoming of votes by money. Where the determining power of voting is extinguished we call the result oligarchy; where money cannot buy votes or policies, then there is representative government, or democracy. (Green, P., Cornell, D. 2007) [3] Ahead, they continue: ‘elections in which the many participate do intervene between the agenda-setting (and candidate selection) of the few and the installation of a government. However, except on certain (mostly symbolic) issues, the government, though elected, governs at the approval of the few:

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this is representative oligarchy.’ (2007)

Green and Cornell’s characterization of the state of affairs of American democracy, or as they argue, representative oligarchy, portray a scenario that is increasingly common across democratic States – the abyss between ‘the many’ and ‘the few’, where ‘the few’ are represented (or represent themselves) and ‘the many’ hope for a distant future where participation will mean something, and representation will be real. Rancière is more pessimistic about the future of democracy. He says

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“In a sense, then, the new hatred of democracy is only one of the forms of confusion affecting this term. It doubles the consensual confusion in making the word ‘democracy’ an ideological operator that depoliticizes the questions of public life by turning them into ‘societal phenomena’, all the while denying the forms of domination that structure society. It masks the domination of State oligarchies by identifying democracy with a form of society, and it masks that of the economic oligarchies by assimilating their empire to the mere appetites of ‘democratic individuals’. Hence, it can, in 3

http://www.iefd.org/articles/rethinking_democratic_theory.php

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all seriousness, attribute all the phenomena connected with heightening inequality to the fateful and irreversible triumph of the ‘equality of conditions’, and so provide the oligarchic enterprise with its ideological point of honor: it is imperative to struggle against democracy, because democracy is tantamount to totalitarianism.” (Rancière, 2006, p.93)

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Without going as far as Rancière does – exposing the totalitarian character of actual democracies – the existing abysses between public and private, citizens and government, representatives and represented, announce a more profound question that needs to be addressed, namely, what does it mean representation in today’s democracies? Who represents whom or what? How is this relationship established and sustained? From where does it come its legitimacy? Finally, is it a possible and feasible goal, at human’s reach, or is an ideology that has been used in favor of ‘the few’ to advance their own particular interests, manipulating ‘the many’ by production and reproduction of systems of meaning, discourses and practices?

II. Paradoxes of representation “Representation is arguably the distinctive modern democratic institution – supposedly the great discovery that allowed ‘democracy’ to transcend its face-to-face origins to become adoptable for modern, industrial nation states (Dahl 1989) – though the historical and theoretical links between democracy and representation are far more ambiguous than that.” (Saward, 2000, p.5)

The question of representation touches the core of the challenge we are facing today: Indeed, representation is mainly a process of representing and being represented; it is a relationship that is constructed, nurtured and sustained (Pitkin 1967); it reflects a purpose or a set of goals to achieve and in order to do so it creates symbols and images. Many means are utilized in order to represent and see oneself represented; what must be asked is not only who are the representatives, but also, who are the represented? Green argues that ‘democratic theory properly conceived must also have at its center an account of

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the practices necessary for maintaining the boundary between the two, or for restoring democracy when the oligarchy attendant on the unregulated triumph of corporate capitalism has corrupted its institutions.’ (Green, 2007) This leads us to obstacles to actual democracy (versus representative oligarchy). In order to start overcoming them, one needs to face the tension today between democracy and representation. First, if the concept of popular sovereignty is at stake, it is necessary to understand how can one recover it. This implies an assessment of the relationship between popular sovereignty and individual autonomy. Second, this assessment will lead us to the conclusion that recovering democracy implies redefining the traditional categories that have supported democratic theory, as well as their relationships, namely, the category of representation, participation and deliberation. Finally, it is necessary to re-conceptualize the meanings of democratic citizenship. 1. Popular sovereignty and individual autonomy

From Hobbes to Rousseau and social contract theory in general there is the assumption that government starts when individuals delegate and transfer their power to the State, so that the State acts as principal (and unique) representative. These forms of representation may vary – from the Hobbesian Leviathan to the Rousseaudian concept of a ‘general will’. With Kant however, the premise of individual autonomy became inescapable, bringing an articulation between the moral and political spheres into place. According to this conceptualization, autonomy stands for the mastery of the self, pointing to the intrinsic power each human being has of simultaneously recognizing in her/ himself the law(s) to which her/his actions and way of conduct (in social and political terms) should obey. This Kantian law is translated into maxims, which every subject should embrace and have as reference (of reflection, judgment and action). In contemporary models of democracy there is the assumption that representatives represent the represented fully, i.e., ‘the few’ act as ‘the many’ would like them to or as ‘the many’ need them to act in order to defend their best interests. This assumption is highly problematic. For as we have seen, it is not clear that such ‘representation’ is

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an actual relationship; or, if instead, it goes in one way direction, where the (pseudo) represented are actually mute – they cannot speak, and if they do, their voice is not heard – the ideal of popular sovereignty, or as Lincoln put it ‘a government by the people and for the people’, can no longer be sustained nor identified in current democratic practices. Governments and representatives still act and pass legislature as if they have people’s consent, even if once we turn to the people, we find such thing. On the contrary, the representatives appear to represent only themselves and their particular interests. As Le Carré well says ‘(t)he political space is more and more occupied not by citizens, but by big business and the wealthy.’ (Le Carré, 2011, p.53) While the pact between citizens and government is never explicit, it seems that the pact is simply broken. The government no longer represents the collective interests of its people; instead, the government protects private interests at the expense of the common good. 314

2. The challenge of representation TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

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This leads us to our second point. The challenge of representation is three folded: first, it is important to ask who is being represented and how is it being done. Second, if ‘the few’ are being represented, instead of ‘the many’, it is important to find conceptual tools that allow us to establish a boundary between democratic representation and oligarchic representation. If oligarchy is at place (and if oligarchies behave as if they were Empires) one must ask if the concept of democracy, even if somehow degenerated, can still be applied, or if one must look for a new concept, capable of accounting for our current state of affairs. Third, one must inquiry into practical forms that allow us to restore the legitimacy of the concept and practice of representation, by identifying the role participatory mechanisms have in the redefinition of the democratic paradigm today. It is not only about defining the representatives’ identities, nor the process of constitution and institutionalization of representation; more than ever, the question today is about defining the identity/ies of the represented and understand how the represented constitute themselves as such, i.e., as a (more or less) defined political subjects

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that want or see themselves represented in other(s). Consequently to this, the questions of what is changing today in the process of constitution of representatives and represented must be answered, along the question of why is it changing. A double effort must be made in order to account for this, and here critical theory can make a significant contribution. On the hand, it is necessary to expose the ways in which representatives represent themselves, (as private subjects) instead of ‘the people’. This is the moment of exposure of oligarchic forms of representation. On the other hand, it is necessary to identify forms through which citizens organize and associate themselves, and how the politicization of these forms of associations can result in new identities with defined set of interests and concerns, that can after become subjects to representation. To this another difficult is added, namely, it will be necessary to find means to conceptually understand and practically turn viable the process of constitution of being represented. Many authors try to expose the oligarchic forms of representation, and how the concept of democracy is collapsing. From social to political scientists, philosophers and journalists or diplomats, a trend can be identified. Le Carré exemplifies this trend well. After a vast experience as diplomat who engaged in several operations (from Iraq’s war to Afghanistan, Kosovo or other war scenarios) Le Carré vividly shows some flagrant cases of crises of democracy. I will quote just one:

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Thanks to pressure from lobbyists and agricultural special interests, the US Department of Agriculture has spent millions of dollars, under both Republican and Democratic Administrations, encouraging the consumption of cheese, including the promotion of extra-cheese Domino’s pizzas which contain forty percent more cheese than “regular” pizzas. Pressing this foodstuff upon consumers is directly contrary to the interests of citizens themselves, whose consumption of cheese, and with it saturated fat, has tripled over the last thirty years. Other parts of the government, including the Agriculture Department’s own nutrition committee, meanwhile, are busy telling Americans to reduce their consumption of highly saturated fats. Perversely, the government’s promotion of cheese is a direct consequence of consumers’ growing preference for low and non-fat milk and dairy products. This has created vast surpluses of whole milk and milk

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fat which the dairy industry turned to the government to help offload – as high-fat cheese. Thus, even as consumers exercise their own choice to eat less fat, the government, pressured by cheese lobbyists (hilarious but true), exploits the consequence – unused high-fat milk and cheese- to persuade consumer to eat more of it. Le Carré 2011, p.54

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This is just an example of the backstage dynamics of politics, and the impact certain interests have in virtually all people’s lives – at least those who eat cheese. The other side of the question – meaning, the side that looks for citizens who are eager to represent their interests somehow – contradicts what many authors see as decline of political participation. Facts show that political participation is in decline indeed – but only certain forms of political participation, as the act of voting. This can have different causes – a general disillusion with politics and the political class, lack of interest in politics (as many studies have revealed at least in the youngest generation, across Europe) or other. In a study conducted by CIES –ISCTE [4] on associations in Portugal in 2006 it became clear that Portugal is marked by a very low involvement in associations in general. This low rate on associations reflects equally the wider horizon of Portuguese level of political participation, which is inferior to that of most mature European democracies (in opposition to the newer democracies of Eastern Europe). At the same time, electoral participation and participation in extra-political institutions are at the same level as other countries. What happens is that new forms of participation, generally more individualized ones and institutions that are not attached to the traditional weight of doing politics, is growing. These new forms of participation aim at compensating and/ or overcoming the limits of traditional institutions along with the mechanisms of political representation. One finds many examples on how people are mobilized – from Arab’s spring to Occupy Wall Street, 15 October Movement[5] and others. This means that people do care for www.cies.iscte.pt/destaques/.../forum.pesquisas_CatherineeHelena.ppt Movement across the globe that exposes the exploitation of the one percent over the ninety nine percent of the people. Several manifestations have been organized across the 4 5

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politics, people do participate, however, not in the ways that traditional political participation has been conceived. Young (2000) acknowledges that what makes of political representation political is exactly the reciprocity involved where representatives and represented constitute themselves and each other. Accepting this reciprocity has an important repercussion in political democratic theory, namely, it announces the impossibility of practical distinction between pure representative democracy and other forms of democracy – participatory or deliberative. It announces the limits of representation, recognizing that there will always be those who are included and those who are excluded. [6] Besides the problem of inclusion/exclusion one must also address the practical acknowledgment that today there are many national, trans-national and supra-national actors that claim to represent new demands and new constituents – this raises the question of territorial boundaries associated to the traditional approach to representation. It also brings the awareness that there are a plurality of actors (not necessarily politicized yet) that constitute the political sphere and which, on its turn, call for the creation of new forms of accountability and legitimacy in order to retain the umbrella of democracy. As a consequence, representation can no longer be limited to the institutionalized realm, or to traditional political forms – political parties, political agents, etc. Representation can no longer be approached from a purely electoral angle, moved by statistical concerns and demographic ambitions. Today we are witnessing variations that disrupt the traditional way of thinking on representation; there are hybrid sources of political meaning that need to be explored and accounted for in a new type of representative relationship that is being built. The

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world – more than an Thousand cities in eighty two countries – against capitalism and its link to democracy. Apparently, capitalism and democracy don’t necessarily need to go hand in hand – the proof is China’s communist regime associated to capitalist Market drive. This movement aims at brining awareness and creating conditions for global change. See http://15october.net/ 6 Iris Marion Young gave an important contribution to thinking about democracy and representation, adopting the angle of a “politics of difference”, which emphasized the importance of representing shifting “perspectives” as well as the more standard “interests” and “opinions”.

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actual pattern of representation is inadequate to understand the new claims that are made, and which are wider and more transversal in the global social space.

3. Democratic Citizenship – the value of Action

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In order for democratic regimes to be consolidated, it is necessary to combine efforts that reflect a political and civic will of engagement of the population with a political and Institutional will in order to make the necessary adjustments so that people’s interests and people’s wills could see themselves mirrored in the institutions and organs that represent them. It is necessary to create bridges of dialogue between micro and macro spheres of citizenry, between communities, states and regions and the nation as a whole. Only if this is done can we rescue the concept of popular sovereignty, which is at the roots of democracy. The question of popular sovereignty raises a parallel – even if an analytically distinct question – namely, that of citizenship. What makes of a citizen a democrat citizen? This question has two parts: the ‘citizen’ and the ‘democrat’. A citizen can be a member of a state, with defined set of rights and duties. But what makes a citizen differ from a democrat citizen? The relationship the citizen has with the State or with the democratic community. A democrat citizen has not only the right, but also the duty to participate in public life. As I argued elsewhere, a strong conceptualization of citizenship is key to redefine the democratic paradigm. As Barber noticed ‘Democracy can survive only as strong democracy, secured not by great leaders but by competent, responsible citizens. Effective dictatorships require great leaders. Effective democracies require great citizens. We are free only as we are citizens, and our liberty and our equality are only as durable as our citizenship. We may be born free, but we die free only when we work at it in the interval between.’ ((1984) 1993, preface to the 1990 edition, p. xxix)

If we want to hold on to democracy, then it is crucial to show how participation is key to rescue its ideals. Above I said how the

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relationship between representatives and represented must be reciprocal and not unidirectional. What this means is that within the concept and practice of representation must exist an active dimension. Being represented is not only passive, as being; instead, it is also active, as doing. Citizens can no longer expect that their representatives will represent them; citizens must make themselves represented, and this only happens by revitalizing the concept of participation and the concept of action. Indeed, the Constitutions of democratic countries establish the rights and duties of its citizens; they grant an horizon defined by fundamental human rights; they affirm democracy via the creation of conditions for actual participation – not merely indirect participation relying in representative mechanisms. For instance, the Constitutions of Brazil, Portugal and Spain grant the right to referendum and direct or popular action; the Brazilian adds one more, namely plebiscite. If we read carefully, however, we must recognize that, conceptually speaking, there is enough room for participation; nevertheless, in practice, there is still a long way to go in order to develop and deepen democracy. Many obstacles can be enounced to the instantiation of participatory mechanisms. However, a more pressing question must be raised: if democracy stands for a set of ideals – of which I stressed the paradoxical relation between equality and freedom – it means that these ideals depend on the variable of participation to be realized. I.e., if democracy could sustain itself only via representation, there would be no need or purpose to add the participation variable. If participation is there is because it is this the distinctive aspect of democracy – the fact that citizens can participate, deliberate in public matters, in a public space, governed by laws but protected by fundamental freedoms of thought and freedom of speech. Putting it into different words, fundamental rights to which democracy is committed to, like the right of political equality, can only be conceived as a reality – instead of a promise – if participation is taken seriously, and if polities change their way of functioning and thinking in order to incorporate new participatory mechanisms. Political equality is as real as participatory mechanisms that create space for its existence are.

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III. Final remarks “So, while there may be nothing altogether new under democratic theory’s sun, the malleability of democracy’s core ingredients enables complex permutations and possibilities; there is much in the menu of historical possibilities to be revived, shaped and applied to the demands of today and tomorrow with their genuine newness and uncertain trajectories.” [7] (Saward, 2000, p.5)

and “Democracy is neither a form of government that enables oligarchies to rule in the name of the people, nor is it a form of society that governs the power of commodities. It is the action that constantly wrests the monopoly of public life from oligarchic governments, and the omnipotence over lives from the power of wealth. It is the power that, today more than ever, has to struggle against the confusion of these powers, rolled into one and the

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same law of domination.” (Rancière, 2006:96) TEORIA CRÍTICA REVISITADA CRITICAL THEORY REVISITED

Democracy does not mean a quieter mode of political existence; a tranquil exchange between private and public, between groups and individuals, between identities and differences. Democracy means messy political and social behaviors; it means struggle to reach some set of ideal goals; it means disorder, insofar the way to democracy implies creation, which can only emerge from conflict, or at least, confrontation. Democracy means towards democracy, it is a projection into the future, that may well be compromised by facts, which despite their democratic look reflect capitalist purposes, such as consumerism, the ‘old’ culture industry (Adorno) and a society of the spectacle. (Debord) Critical theory has the task of exposing the lies of democracy, the forms of struggle that oppose new forms of domination today, the material reality that cries for change. Individuals are not only consumers, nor numbers that need to fit the budgetary ends. Individuals are democratic citizens, endowed with a capacity of reasoning and reasoning Saward, Michael (Ed.), Democratic Innovation – Deliberation, representation and association, Routledge / ECPR Studies in European Political Science, New York, 2000 7

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together, and of acting in concert (Arendt). That is the essence of politics. Democratic citizens are individuals who constitute themselves as actors in a public space, where topics are discussed, where new relations of representation are invented and built. If representation is no longer valid to account for structural transformations of democratic regimes, then, participation and deliberation must be added, and together a new model must be created. There is hope for democracy. Despite the obstacles, human beings are inventive and resourceful. Participatory budgeting is a good example of a possible alternative model of governance – requiring citizens to engage and participate, to deliberate in public matters, to make decisions on budgeting, to establish priorities, to recover a common good and to re-invent human communities. If democracy is to succeed, it is necessary to rescue social relations in general and revise the role of institutions and their conceptualization in the making of a new world. 321

Bibliography Barber, Benjamin, 1984 (2003) Strong Democracy – Participatory Politics for a new Age, University of California Press Dahl, Robert (1991) Democracy and its Critics, Yale University Press, New Haven

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Dahl, Robert (2006) On Political Equality, Yale University Press, New Haven Green, Philip (1998) Equality and Democracy, The New Press, New York Green, Philip and Cornell, Drucilla (2007) “Rethinking Democratic Theory: The American Case” in IED http://www.iefd.org/articles/rethinking_democratic_theory.php Gutman, A. and Thompson, D (2004), Why deliberative democracy, Princeton: Princeton University Press Habermas, J (1996). Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press. Le Carré, John, (2011) The Leaderless Revolution – How ordinary people will take power and change politics in the 21st century, Simon & Schuster, London Mill, John Stuart (1993) Utilitarianism, On Liberty, Considerations on Representative Government, EveryMan Ed. Putnam, R (2000) Bowling alone. The collapse and revival of American community. New York: Simon and Schuster.

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Pwrezoski, A; Stokes, S. C, Manin, B (eds.) (1999) Democracy, Accountability and Representation. Cambridge: CUP. Rancière, Jacques, (2006) Hatred of Democracy, Verso Rousseau, Jean-Jacques (1968) The Social Contract, translated by Maurice Cranston, Penguin Books Sartori, Giovanni. The Theory of Democracy Revisited. Chatham, New Jersey: Chatham House, 1987 Saward, Michael (Ed.), Democratic Innovation – Deliberation, representation and association, Routledge / ECPR Studies in European Political Science, New York, 2000 Young, I.M. (1997) ‘Difference as a Resource for Democratic Communication’ in Bohman, J and Rehg, W (eds) (1997), Deliberative Democracy, Mass.: MIT Press (383-406)

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