Teoria do Cinema e Psicanálise

May 19, 2017 | Autor: Fernão Ramos | Categoria: Film Studies, Film and Philosophy, Cinema Studies, Psychonalysis
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Teoria do Cinema e Psicanálise: intersecções



Fernão Pessoa Ramos




Cinema e Psicanálise são continentes que sempre mantiveram uma atração
mútua. A psicanálise formou-se em proximidade com a análise de grandes
mitos da humanidade, possuindo, na raiz de seu método de trabalho, a
suposição de uma estrutura narrativa. Em torno desta mesma necessidade
narrativa, constitui-se o núcleo da tradição cinematográfica que, em sua
forma mais típica, é chamada de classicismo narrativo ou narrativa
clássica. O "motivo" psicanalítico tornou-se um grande gancho para a ação
ficcional e Hollywood logo percebeu-se disto, apesar da resistência do
próprio Freud ao uso "selvagem" de seu método. Paradigmático deste encontro
"narrativo" entre psicanálise e cinema é o filme Psicose (Psycho, EUA,
1960) de Alfred Hitchchcock. Em sua simplificação do método psicanalítico,
evidencia para o que serve a psicanálise na ficção cinematográfica. O
próprio Freud acabou envolvido em uma trama similar na feitura de O Segredo
de uma Alma (Geheimnisse Einer Seele, Alemanha, 1926), de Georg Wilhelm
Pabst. O diretor trabalha em colaboração estreita com dois assistentes de
Freud, Karl Abraham e Hans Sachs, na composição de um enredo recheado de
passagens oníricas. A psicanálise aqui também exerce função explicativa
(como motivação dramática), embora com um pouco mais de sutilezas que no
padrão hollywoodiano. Freud depois iria desautorizar o filme. Em um
mapeamento amplo das zonas de intersecção entre cinema e psicanálise creio
ser este um primeiro ponto a ser realçado: o método psicanalítico pensado a
partir de uma estrutrura causal linear (como motivação verossímil para a
ação), dentro da estrutura narrativa que caracteriza o classicismo
cinematográfico.
Através da obra de seu fundador, a psicanálise desenvolveu um largo
campo de análise de obras artísticas. Dentro de uma perspectiva autoral, a
obra artística surge como manifestação do sintoma. A tradição da análise
autoral psicanalítica teve campo largo no cinema. Cineastas como
Eisenstein, Lang, Hitchcock foram trabalhados através do método analítico,
tendo traços estéticos de suas obras interpretados na interação com
aspectos biográficos, "psicanalisados" dentro da linha do inaugural
trabalho de Freud sobre Leonardo da Vinci[1]. Ensaios clássicos neste
sentido são o pioneiro e polêmico "Eisenstein - L'arbre jusqu'au racines"
de Dominique Fernandez[2], onde a autora trabalha os personagens e a
composição imagética dos filmes e desenhos de Eisenstein a partir de
ferramental psicanalítico; e o trabalho de Donald Spoto sobre Alfred
Hitchcock, "The Art of Alfred Hitchcock"[3]. No cinema brasileiro,
interessante estudo onde sente-se subterrâneo o veio psicanalítico, nesta
mesma linha de trabalho, é feito por Jean-Claude Bernardet em "O Vôo dos
Anjos: Bressane, Sganzerla - Estudo sobre a criação cinematográfica"[4].
Bernardet pensa a noção de paternidade, com pinceladas psicanalíticas,
dentro de uma análise fílmica cerrada, tradição própria da reflexão
acadêmica brasileira no campo do cinema. A psicanálise também serviu como
base, durante os anos 60 e 70, para o desenvolvimento, na Europa e nos
Estados Unidos, de uma tradição de análise fílmica plano a plano, carregada
de teoria. Em particular podemos lembrar os trabalhos de Raymond Bellour e
Thierry Kuntzel, onde uma análise descritiva próxima à imagem é utilizada
para pensar questões teóricas mais amplas, como a dimensão edipiana
inerente a toda narrativa (Bellour), ou o conceito de "trabalho fílmico" em
sua relação com o "trabalho onírico" (Kuntzel)[5].
O objeto deste estudo -é importante frisarmos de saída- não será a
presença da psicanálise como motivo da ação narrativa cinematográfica, nem
o estudo autoral de um artista-cineasta. Pretendemos fornecer um breve
panorama do profícuo cruzamento conceitual entre um campo bastante
pesquisado (o da psicanálise propriamente) e outro que permanece
relativamente pouco conhecido: o da teoria do cinema. A teoria do cinema
possui uma tradição, já quase centenaria, onde são pensados os pressupostos
teóricos que envolvem a reflexão sobre a imagem em movimento em sua forma
narrativa. Autores como Rudolf Arnheim, Bela Balazs, Hugo Mustenberg,
Sigfried Kracauer, Serguei Eisenstein, Dziga Vertov, Jean Epstein, Guido
Aristarco, Umberto Barbaro, André Bazin e mesmo alguns companheiros de
viagem famosos como Merleau-Ponty, Erwin Panofsky, André Malraux,
compuseram, na primeira metade do século, um campo conceitual próprio que
manteve, nas décadas seguintes, um diálogo denso e contínuo com as
principais tendências filosóficas de nossa época. Foi este substrato
original que permitiu o trabalho em teoria do cinema de autores de
tendências diversas como Christian Metz, Jean Mitry, Jacques Aumont,
Raymond Bellour, Gilles Deleuze, Francesco Casetti, Dudley Andrew, David
Bordwell, Noël Carroll, Laura Mulvey e tantos outros. Dentro deste quadro,
a psicanálise, principalmente em sua versão lacaniana, exerce, durante os
anos 60 e 70, uma forte influência conceitual sobre a teoria do cinema,
resultando em um intercâmbio com alguns traços curiosos. Noções caras à
evolução da teoria do cinema na primeira metade do século, sofrem inflexão
psicanalítica e passam a dialogar em termos ativos com o pensamento de
tradição freudiana. A influência é tão forte que mesmo revistas
originalmente voltadas para um público mais amplo, como a tradicional
Cahiers du Cinéma, passam a ostentar artigos com conceitual psicanalítico
pesado, exigindo um conhecimento denso deste referencial para sua
compreensão. Em uma determinada altura, na virada dos anos 60, o Cahiers
abandona inclusive a publicação de fotos, para centrar-se em emaranhados
artigos teóricos. Ao lado do marxismo estruturalista, a teoria
psicanalítica passa a ser a principal estrela da revista. São divulgados
ensaios que dialogam com a tradição conceitual da teoria do cinema,
deixando em segundo plano estudos autorais que utilizam ferramental
psicanalítico.
No início desta guinada do Cahiers em direção à teoria, Jean-Pierre
Oudart publica, em abril de 1969, um artigo pioneiro que exerce forte
influência na aproximação entre teoria do cinema e psicanálise, intitulado
"La Suture"[6]. Aluno dos conhecidos seminários de Lacan, proferidos na
École Normale Superieur, em 1965, Oudart baseia seu texto em um conceito
concebido por Jacques-Alain Miller, depois figura central no movimento
psicanalítico lacaniano. O texto de Miller, publicado em 1966 no primeiro
número de Cahiers pour analyse[7], é exposto originalmente no seminário de
Lacan. Traz uma densa reflexão, realizada a partir de ensinamentos de Lacan
(o diálogo com a palavra do mestre é contínuo), sobre lógica matemática e
campo psicanalítico. Mais precisamente, a intenção de Miller é de mapear a
lógica do significante enquanto uma relação de "falta" ("manque") do
sujeito, instituído como substituto (um "tenant lieu") na enunciação. A
questão do imaginário lacaniano distingue-se nitidamente. O termo "sutura"
é escolhido para designar uma relação em ausência do sujeito enunciante, e
sua conformação na cadeia do discurso. Para mapeá-la, Miller utiliza-se de
lógica matemática, inspirado no livro de Gottlob Frege "The Foundations of
Arithmetic", refazendo seu percurso sobre sistemas binários e o conceito de
identidade. Esta relação entre lógica e psicanálise estava sendo trabalhada
por Lacan na época, e o discípulo parece seguir de perto o trabalho do
mestre. O conceito de "sutura" parte portanto deste referencial e é
adaptado com agilidade para o campo cinematográfico por Oudart. Os debates
que seguem-se, nos anos seguintes, sobre o assunto, irão abrir um horizonte
fértil para o amadurecimento conceitual da reflexão sobre cinema.
Mas o que é a "sutura" cinematográfica? Oudart importa um conceito
utilizado pela psicanálise lacaniana para designar a impossibilidade do
fechamento subjetivo (como identidade) do campo imaginário, e o utiliza
para problematizar um elemento estilístico central que estrutura a
narrativa cinematográfica: a alternância entre campo e contracampo. Traz
para o coração da teoria do cinema a noção de espaço fora-de-campo,
articulando-a de modo bastante consistente com o conceitual lacaniano. Para
Oudart, o campo fílmico é constituído em sua essência por uma dimensão
ausente, espaço onde se delineia o campo imaginário do espectador (aqui
entendido como conceito lacaniano a se distingüir do domínio simbólico).
Este "campo ausente" é potencializado na narrativa cinematográfica através
de vários procedimentos, constituindo-a de modo singular no campo das
imagens. A "sutura" é, portanto, um conceito que tematiza em profundidade a
dimensão "off" da imagem cinematográfica. Em seu tipo ideal, o discurso
cinematográfico "sutura" através do olhar do personagem para o espaço fora-
de-campo. Esta imagem, figura estilística recorrente da narrativa clássica,
compõe o que poderíamos chamar de "cimento" do que Oudart nomeia como
"cinema subjetivo". Sendo a imagem cinematográfica disposta no tempo
através da sucessão de planos, este olhar para fora-de-campo introduz uma
suspensão e designa um campo ausente, que será preenchido somente no plano
seguinte, pelo rebatimento do primeiro olhar ou movimento (do plano
anterior), que aponta, por sua vez, em direção à dimensão, ainda em "off" e
em potência do plano seguinte concretiza. É nesta suspensão entre o olhar e
o rebatimento da ausência como seu resultado, que Oudart localiza mecanismo
similar à composição imaginária lacaniana, em sua tentativa de, a partir de
identificação especular múltipla, articular a identidade. A suspensão do
contra-campo e sua validade retroativa, quando atualizado em campo,
conforme delineada no classicismo narrativo, "sutura" o imaginário do
espectador, impedindo que este manifeste-se como abertura de uma ausência.
Este mecanismo de sutura conforma o que Oudart chama da "Soma
significante", outro conceito herdado da psicanálise lacaniana, que aponta
no que a sutura abole o Ausente (Ausente é o sujeito ante a polisemia do
fechamento imaginário) para reconstruí-lo em Alguém: "o que nós aqui
chamamos "sutura" é a representação daquilo que este termo designa como a
relação do sujeito ao encadeamento de seu discurso: representação que se
realiza sob o traço desta Soma Significante marcada por uma falta que é a
falta de alguém, e de um Ausente que se abole para que alguém, que
representa o elo seguinte (e antecipa o próximo segmento fílmico), possa
surgir"[8]. Esta Soma -marcada por uma falta que a dimensão fora-de-campo
instaura na sucessão dos planos- é portanto "suturada" no transcorrer do
discurso fílmico, instaurando um imaginário que aparece como sujeito (para
o espectador) de uma visão que não é sua (mas que aparece como tal, pois
costurada pela sobreposição, na consecução fílmica, da estrutura campo-
contracampo). Oudart defende, mais especificamente no segundo artigo da
série, um estilo cinematográfico no qual o campo presente afirme-se
enquanto tal, enquanto valor de troca, não sendo determinado como
imaginário, mas afirmando-se como "emergência do simbólico". Alguns
"autores" cinematográficos são lembrados por Oudart como possuídores de
estilo que estabelecem-se na contra-corrente da sutura cinematográfica. É o
caso, por exemplo, do Lang americano, caro à geração de críticos que domina
a redação dos Cahiers no final dos anos 60. Também Rouch é citado e,
principalmente, Robert Bresson, de quem alguns filmes são analisados como
exemplo de discurso cinematográfico no qual a suspensão própria à
consecução fílmica é resolvida estilisticamente fora do eixo da sutura (a
grande decepção de Oudart recai sobre Au Hasard Balthazar -França-Suécia,
1966). Oudart tem bom olho para estilo cinematográfico e as observações
autorais que elabora são pertinentes e verificáveis. De Bresson ainda cita
uma conhecida frase na qual o cineasta defende um cinema no qual cada
plano, cada imagem, valeria por si mesmo, por seu valor de troca, o que
impediria o efeito sutura. Um cinema que não coloque "o ausente como
sujeito de uma visão que não é a sua e a imagem como significante de sua
ausência"[9].
São intensas as repercussões deste artigo, inteiramente imerso no
questionamento pós-estruturalista da subjetividade. Os debates em torno do
assunto atravessam a década de 70 em várias direções. Dentro do universo
anglo-saxão, a noção de "sutura" será criticada por sua generalidade e
imprecisão histórica. O artigo de Daniel Dayan, "The Tutor-Code of
Classical Cinema", publicado em 1974[10], acaba vulgarizando o conceito. Ao
expô-lo em língua inglesa, levando todas as frases a uma conclusão objetiva
(distante do rebuscado e vago estilo lacaniano), Dayan perde algumas
nuances do original, embora ganhe em operacionalidade. "The Tutor-Code of
Classical Cinema" ao introduzir no conceito de sutura o pragmatismo anglo-
saxão (onde, como e por que a sutura funciona), abre o flanco para críticas
daqueles que, durante os anos 80 e 90, acusam a teoria de inspiração pós-
estruturalista de pouca precisão analítica e esquecimento da dimensão
histórica. O ponto central destas críticas é que a psicanálise, em sua
influência na teoria do cinema, criou conceito gerais e uma "grande teoria"
que não consegue descer, de modo dinâmico, sobre os próprios filmes,
abarcando sua dimensão histórica. William Rothman, por exemplo, em "Against
the System of the Suture"[11], argumenta que a estrutura do plano subjetivo
descrito por Dayan (ao tentar concretizar as idéias de Oudart) é um tipo
restrito de contra-campo, que possui um papel limitado dentro do efeito de
continuidade estabelecido pela narrativa clássica. Na linha historicista
que nos anos 80 irá questionar frontalmente as vagas afirmações do
conceitual pós-estruturalista, Barry Salt, em "Film Style and Technology in
the Forties"[12], faz um levantamento estatístico concluindo que apenas
entre 30% e 40% dos filmes produzidos na Hollywood, dos anos 20 aos anos
70, articulam os planos através de cortes precisamente subjetivos (point-of-
view shot), com um eixo de 45% em torno do campo do olhar[13]. Com
metodologia similar (análise estilística baseada em sorteio de títulos a
partir de mostra estatísticamente representativa de filmes clássicos),
David Bordwell, Janet Staiger e Kristin Thompson escrevem, nos anos 80,
"The Classical Hollywood Cinema - Film Style & Mode of Production to
1960"[14], onde visões panorâmicas da narrativa clássica (como a que está
embutida no desenvolvimento do conceito de sutura) são questionadas em
busca de uma perspectiva com fundamento histórico mais preciso. Nesta mesma
linha, Nick Browne vai desenvolver uma interessante análise de No Tempo das
Diligências (Stage Coach, John Ford, EUA, 1939), em "The Spectador in-the-
text: the rhetoric of Stage Coach"[15]. Browne tem por pano de fundo a
polêmica em torno dos mecanismos de sutura e a estruturação da
subjetividade espectadorial como "logro" de uma identidade. Em seu texto
trabalha principalmente com a relação entre identificação do espectador e
plano subjetivo. Browne desce das generalidades das afirmações em torno da
sutura para analisar um caso específico: o do paradoxo da identificação do
espectador com a personagem de uma prostituta (Dallas, de No Tempo das
Diligências) quando o eixo da decupagem é estruturado a partir do olhar da
protagonista positiva (Lucy). A conclusão a que chega é de que os efeitos
da sutura sobre a constituição da subjetividade espectadorial não podem ser
pensados em sua generalidade, mas devem ser trabalhados em sua
singularidade, através de uma análise fílmica que leve em consideração o
conjunto dos aspectos diegéticos envolvidos. Na realidade, o conceito de
sutura e sua operacionalidade analítica perde algo de seu charme ao cair
nas mãos pragmáticas dos americanos e ingleses. Oudart delineia o conceito
de modo preciso, mas imerso em obscuridade-indeterminante, com os
rebuscamentos barrocos que cercam o estilo da escritura francesa e, em
particular, o discurso lacaniano. O conceito existe enquanto respira a
atmosfera que lhe é própria. Ao reduzí-lo à prática do campo/contracampo a
crítica de língua inglesa faz com que definitivamente perca sua riqueza. O
crítico inglês Stephen Heath, em seu texto "Notes on Suture"[16], é o autor
que demonstra mais agilidade para circular na atmosfera original em que o
mecanismo de sutura é delineado, tomando os cuidados devidos para não
esgarçar o conceito. Heath parece possuir um conhecimento bem fundamentado
de Lacan o que lhe permite tomar distância das simplificações contidas na
abordagem de Dayan. De modo preciso, mostra em seu artigo o conceito de
sutura de forma mais abrangente, como "função do simbólico que é com
relação ao imaginário, o momento de junção", designando "a resolução do
real (a castração) no imaginário, (...) como desejo do Outro"[17]. Aponta a
diferença da utilização mais nuançada do mecanismo de sutura, como
fundamento para a análise de " toda possibilidade da significação", e seu
entendimento de que a redução operacionalizadora nada mais é do que uma
"operação ideológica que utiliza o exemplo privilegiado do
campo/contracampo"[18].
O segundo conceito que gostaríamos de destacar neste breve sobrevôo
das intersecções teoria do cinema/psicanálise refere-se à noção de
"dispositivo". Delineado a partir de forte influência lacaniana, articula-
se também em torno da tríade real/imaginário/simbólico. Trabalha com a
estruturação subjetiva centralizadora da constituição plástica da imagem
perspectiva, como sendo efeito criado pelo dispositivo cinematográfico.
Para falarmos em termos gerais, enquanto o conceito de sutura designa a
linguagem cinematográfica em ação, estruturando-se na consecução dos planos
(em particular na montagem/decupagem), o conceito de dispositivo irá pensar
o espectador "em situação", o espectador sentado na sala escura em face da
imagem gigante. Encontramos também aqui forte presença lacaniana na análise
da situação espectadorial, sendo o modelo do estágio do espelho eleito como
paradigma. O texto pioneiro foi o influente "L'Effet Ideologiques produits
par l'Appareil de Base", escrito por Jean-Louis Baudry para a revista
CINÉTHIQUE[19], em 1970, seguido, em 1975, por "Le Dispositif: Approches
Metapsychologiques de l'Impression de Realité", publicado originalmente em
um número da revista Communications dedicado à cinema e psicanálise[20].
Baudry insere-se plenamente dentro do modelo dominante na França dos anos
70 de questionamento da subjetividade. Sua concepção do modelo do
dispositivo cinematográfico, e do espectador que a ele se ajusta, baseia-se
em um diálogo crítico com a tradição fenomenológica husserliana. Trata-se
de criticar a "continuidade necessária à constituição do sentido e do
sujeito" pois "esta continuidade é um atributo do sujeito"[21]. Este é o
eixo a partir do qual a narrativa clássica é analisada em sua negação dupla
do intervalo (afirmando o contínuo): seja na montagem, seja na própria
constituição da imagem quadro-a-quadro (o movimento nega o traço do
fotograma). O interessante é que Baudry acaba por supor uma "natureza"
original do dispositivo (que afirma o intervalo) para delinear sua dimensão
"ideológica" (dentro de um viés marxista althusseriano), estabelecendo um
paralelo entre a impossibilidade de afirmação do discurso pelo sujeito e a
ascenção da burguesia como classe. A busca de uma "continuidade" em
oposição à natureza mesma do dispositivo (que afirma a composição e o
intervalo) esconde necessariamente uma questão "ideológica". Ao afirmar a
continuidade narrativa, o cinema clássico trata de "salvar a todo preço a
unidade sintética do lugar originário do sentido, a função transcendental
constitutiva à qual a continuidade narrativa remete-se como sua secreção
natural"[22]. Novamente giramos em torno de um discurso típico da geração
pós-estruturalista francesa em sua obsessão (se assim podemos definí-la)
com as modulações da subjetividade. O conceito de ideologia é um
instrumental bastante adequado para a análise de Baudry e a questão parece
estar em como determinar a ponte para com a rede conceitual lacaniana.
A confluência e a sobreposição de conceitos vindos de sistemas muito
amplos (Lacan, Husserl, Althusser), às vezes parece comprometer a precisão
das formulações. De qualquer maneira, Baudry faz o salto partindo da idéia
de que, para o dispositivo exercer seu papel de "máquina ideológica", é
necessário a sobreposição de uma "operação particular" que dá-se a partir
de um "dispositivo particular", que é o próprio aparelho psíquico. A
questão aqui é a "espantosa" sobreposição (mais do que isto, uma
coincidência) entre a disposição dos diferentes elementos do dispositivo
cinematográfico (projetor, sala escura, tela, imobilidade do espectador) e
o "dispositivo necessário para o desencadeamento da fase do espelho,
descoberta por Lacan"[23]. A imaturidade motriz e a maturação precoce do
sistema visual da criança -que levam à constituição da ordem imaginária e
ao "ocultamento da fenda esquizofrênica do sujeito na ordem do
significante"-, reproduzem a situação espectadorial. O real que o cinema
imita é ante de tudo um "eu", já constituído no seu corte imaginário. A
dedução que Baudry faz desta colocação é central e influenciaria fortemente
a reflexão sobre cinema no próximos anos. Se o dispositivo cinematográfico
reproduz em suas condições estruturais o aparelho psíquico na fase do
espelho, a identificação do espectador não é propriamente com personagens
motivados pela ação dramática mas, antes de tudo, com o próprio
"dispositivo" cinematográfico. Na medida em que a câmera toma o lugar de um
sujeito transcendental, já delineado estruturalmente em sua dimensão
imaginária, "a identificação se dá menos com o representado, com o
espetáculo propriamente, mas com o que o produz, com o que o coloca em
cena, com aquilo que não está visível mas faz ver"[24]. Voltando ao eixo
caro à análise da posição subjetiva pelo pós-estruturalismo, Baudry critica
a representação fílmica que "constitui o sujeito através de delimitação
ilusória de um lugar central (que ela seja de um Deus ou de outro
substituto)". Evidentemente o "outro substituto" e a que se refere é a
câmera e o próprio dispositivo cinematográfico como um todo. A proposta do
autor aponta para um cinema que abandone esta "ideologia" da representação,
e que traga em si "efeitos pertubadores" que a questionem. Efeitos que
permitam que "a tranqüilidade especular e a segurança com a própria
identidade sucumbam ao desvendamento do mecanismo e à inscrição do trabalho
(do texto)"[25]. Reflexividade e questionamento da posição subjetiva foram
temas muito populares, costumando aparecer de mãos dadas.
Em "Le Signifiant Imaginaire - Psychanalyse et Cinéma"[26], Christian
Metz desenvolve uma reflexão densa sobre o assunto, com uma dívida nítida
para Baudry. Reunião de textos diversos escritos entre 1973 e 1976, seu
principal artigo ("Le Signifiant Imaginaire") data de 1975[27]. O
posicionamento junto à psicanálise do principal pensador do cinema nos anos
60 e 70 é bastante significativo. Metz, na realidade, acompanha a inflexão
de uma geração que, partindo da fenomenologia, descobriu o estruturalismo
embarcando logo em seguida na semiologia, para fazer nova meia-volta e
questionar os limites da análise de estrutural, sob a influência diversa de
Derrida, Foucault, Deleuze, Lacan. As reviravoltas de uma época turbulenta
exigiram um certo jogo de cintura mas Metz parece ter conseguido manter-se
na superfície, desenvolvendo um trabalho consistente a partir de
metodologias nem sempre próximas entre si. "Le Signifiant Imaginaire" marca
o encontro do autor com a psicanálise, uma maneira acertar contas com a
semiologia estrutural e o passado fenomenológico. O livro é um pouco
fragmentado em função da característica de artigos que o constituem, mas
possui um nítida linha evolutiva, conforme é definida no início. Trata-se
de fazer um esforço para "deslocar o objeto-cinema do imaginário e
conquistá-lo para o simbólico", a partir da caracterização do cinema como
uma "técnica do imaginário". O recorte lacaniano também está nitidamente
presente, dentro dos paradigmas instituídos por Baudry. Metz tem um fôlego
maior e a análise avança de modo bastante rigoroso.
Na definição da noção de "ego logrado" (le "moi leurré"), sentimos a
costumeira arrogância pós-estruturalista para com o pensamento que lhe
antecede. A ironia tem como destino certo o pensamento de cunho
fenomenológico, que embasa a crítica de um André Bazin: "transes
proféticos", "concepções cosmogônicas", nada mais são do que descrições do
sentimento que experimenta o "ego logrado" face sua constituição
imaginária. A cosmogonia, o deslumbramento para com a imagem especular do
mundo em movimento -que colore a crítica de raiz fenomenológica, assim como
o olhar de espanto para com a imagem muda (Epstein, Balazs, Delluc)-, tem
no ego logrado seu ponto cego. Ponto cego pois "a posição do Ego no cinema
não remete-se a uma semelhança milagrosa entre o cinema e as
características naturais de toda percepção"[28], eixo que sustentaria o
deslumbramento cosmogônico. A fenomenologia só pode contribuir para o
conhecimento do cinema na medida em que ambos partilham do mesmo "logro":
"é o cinema e a fenomenologia, em sua ilusão comum de domínio perceptivo,
que podem ser esclarecidos pelas condições reais da sociedade e do
homem"[29]. A posição do Eu no cinema não deve-se a uma semelhança
milagrosa entre o cinema e as características naturais de toda percepção,
mas, ao contrário, está prevista e determinada anteriormente pela
"instituição" cinematográfica (a aparelhagem, a disposição da sala, o
dispositivo mental que interioriza tudo isto) e também pelas
características mais gerais do aparelho psíquico (como a projeção, a
estrutura do espelho, etc). Podemos perceber que o horizonte traçado
anteriormente por Baudry está próximo. Trata-se de descobrir, na estrutura
do aparelho psíquico, delineado a partir da prática psicanalítica
lacaniana, o material a partir do qual poderemos pensar e refletir sobre a
relação do espectador com a imagem. Este é o ponto do logro, o ponto cego
da fenomenologia, que vê o sujeito no mundo quando, na realidade, está
vendo o mundo já mediado pelo sujeito na ordem imaginária/simbólica. A
menção à semelhança entre "o aparelho tópico do cinema e o aparelho
conceitual da fenomenológia" (ponto que mais tarde será desenvolvido por
Deleuze) permite a Metz situar-se criticamente com relação ao horizonte
conceitual no qual se formou.
A abordagem da inserção espectadorial na ordem imaginário-simbólica é
realizada por Metz, a partir do conceito psicanalítico de identificação,
dentro de um horizonte que já havia sido esboçado por Baudry. Para Metz,
devemos imaginar uma identificação fundadora do significante como sendo
articulada duplamente. De um lado, firmada na relação espectadorial com o
discurso fílmico propriamente: personagens, intriga, diegese. De outro, de
modo primário, a identificação articula-se a partir do aparato técnico que
sustenta o discurso em sua forma particular de imagem-som. Aparato técnico
que atrás chamamos de "dispositivo" e que tem em seu núcleo o instrumento
câmera/projetor. Metz nos fala de uma "identificação cinematográfica
primária" que desenvolveria-se para além dos "códigos
cinematográficos"[30], relacionada ao próprio aparelho psíquico pensado em
termos lacano-psicanalíticos. A "identificação ao olhar", mecanismo
clássico na estruturação do discurso cinematográfico (e que já encontramos
presente na noção de sutura) seria portanto secundária para com uma
identificação primária, baseada no espelho lacaniano: a identificação com a
câmera. O espectador, durante a sessão de cinema, é uma espécie de farol em
segunda mão "reduplicando o projetor, que reduplica ele mesmo a câmera,
sendo ele (espectador) também superfície sensível, reduplicando a tela que
reduplica ela mesma a película". Este encadeamento projetivo determina o
regime "escópico" no cinema, fundado sobre a noção de "falta", de ausência
do "objeto visto". A questão do prazer ligado à pulsão parcial do olhar é
aqui central, levando-se em conta as particularidades do regime
espectadorial cinematográfico, e as características da linguagem
cinematográfica, já levantadas no debate em torno da noção de "sutura". A
identificação primária com a câmera, dentro de um regime de ausência,
introduz, para Metz, um tipo de prazer espectadorial delineado em torno da
"perversão" escópica, definida a partir de um corpo duplo composto por uma
vertente fetichicista e outra voyeurista. A dimensão voyeurista do prazer
cinematográfico é aquela explorada mais comumente pela senso comum. Metz a
trabalha dentro do esquema duplo de identificação mencionado acima, a
partir de identificação originária com a câmera e as dimensões da ausência
que esta identificação instaura. Por outro lado, a questão do dispositivo
aqui é vista como um mecanismo fetichicista ligado a satisfação da pulsão
parcial do olhar. O prazer escópico encadeado ao dispositivo surge como
fetiche a partir de um detalhamento do espectro estilístico do cinema:
enquadramento e movimentação da câmera, tencionando, ocultando e mostrando,
o espaço fora-de-campo (o "descobrimento" do espaço como um strip-tease).
Fetiche como "desaveu", como "desdita" da lei que a ameaça da castração
figura, aqui entendida como a autoridade que "compõe" o discurso em um
sentido amplo. O fetiche é a forma de prazer através da qual o espectador
lida como a presença da lei, entendida como revelação do sujeito oculto, o
"pai" da enunciação, e do mecanismo que compõe a esta enunciação. A forma
de prazer que o dispositivo cinematográfico proporciona oculta esta
presença, estampando como fetiche prazeiroso o esconde/mostra da imagem,
sem a presença da câmera, na sala escura. É instaurado um regime
espectadorial baseado na ausência e na valorização metonímica, daquilo a
que o discurso fílmico remete como ausência e fetiche. Metz define este
regime escópico, em termos lacanianos,: "a aparelhagem cinematográfica é
esta instância graças à qual o imaginário transforma-se em simbólico,
graças a qual o objeto perdido (a ausência do filmado) torna-se lei e o
princípio de um significante específico é instituído como desejo
legitimado"[31]. Também aqui é delineada a perspectiva de um narrativa
reflexiva que, instaurando a espessura do discurso -e deixando claro a
dimensão de sua composição através do dispositivo- quebre o fascínio
fetichicista do classicismo narrativo. Mas Metz não assume um postura
militante. Na primeira parte de seu livro dedica-se a detalhar qual é o
prazer de ir ao cinema (e também o de escrever sobre cinema), a partir de
uma situação de fato que é o prazer espectadorial socialmente dominante,
pensando dentro do estilo narrativo clássico.
Em uma linha de análise que sofre a influência de Metz, Laura Mulvey
vai descolocar o conceitual lacano-psicanalítico em direção à questão do
gênero. O principal texto deste percurso, intitulado "Visual Pleasure and
Narrative Cinema" é escrito em 1973, tendo sido publicado na revista
Screen, em 1975[32]. Contemporâneo dos ensaios que compõe "Le Signifiant
Imaginaire", "Prazer Visual e Cinema Narrativo", introduz conceitos que
marcam uma quinada na reflexão sobre cinema. Mulvey irá pensar a
confluência cinema/psicanálise dentro de um referencial bastante forte na
crítica anglo-saxã e que encontra-se ausente do pensamento em língua
francesa: o feminismo. A reflexão sobre cinema centrada na militância e no
pensamento feminista irá tornar-se, nos anos 80 e 90, uma das principais
correntes da teoria do cinema. Dentro das universidades americanas,
impulsionadas pela ascenção dos "estudos culturais" ("cultural studies") as
feministas desenvolvem, a partir dos anos 70, um trabalho importante em
teoria do cinema, questionando em particular a representação da mulher no
classicismo hollywoodiano e os mecanismos de identificação espectadorial
que este cinema supõe. A partir de meados dos anos 80 as preocupações mais
teóricas e gerais, que marcam o primeiro feminismo, dão lugar a análises
circunstanciadas, marcadas por pesquisas históricas e por um diálogo ativo
com a produção audiovisual feminista engajada. O texto de Laura Mulvey
(que, assim como Thierry Kuntzel, depois torna-se reconhecida cineasta)
deve ser entendido neste contexto: ainda bastante próximo do universo pós-
estruturalista francês mas já marcando de modo nítido os contornos que a
crítica feminista teria nas próximas décadas. Esta evolução acompanha as
restrições, já abordadas acima, que vão sendo feitas pela crítica
historicista ao caráter excessivamente universalista de conceitos caros à
reflexão dominante na teoria do cinema da década de 70. Nos anos 90, dentro
de um outro recorte analítico, autores como David Bordwell e Noël Carrol
irão criticar o que chamam de "Grande Teoria", numa espécie de visão
caricatural do pós-estruturalismo.
Dentro do assunto que nos interessa, Mulvey introduz um primeiro
recorte limitador no conceitual psicanalítico que vinha sendo usado para
trabalhar o cinema: a mulher. O que interessa para Mulvey é o prazer que o
espectador obtém através do olhar, prazer que é caracterizado duplamente,
determinando assim o modo diferenciado pelo qual é exercido. O prazer de
olhar, para Mulvey, enquanto prazer escopofílico, inicialmente "emerge do
prazer em usar outra pessoa como objeto de estimulação sexual através do
olhar"[33], como libido relacionada às pulsões sexuais. O segundo aspecto
do prazer do olhar, envolvido na fruição cinematográfica, lida com a libido
do ego e "desenvolve-se em torno do narcissimo e da constituição do ego,
resultando da identificação com a imagem vista"[34]. Nesta contradição,
clássica para a psicanálise, entre libido sexual e narcissismo do ego,
Mulvey introduz a questão do gênero, através da ameaça da castração. O
olhar do espectador cinematográfico, embora agradável na forma, pode
transformar-se em motivo de angústia ao revelar o que deve estar oculto por
detrás da representação. Esta idéia que já encontramos em Metz na noção do
dispositivo como fetiche da castração. Aqui, no entanto, é a figura
diegética da mulher, como personagem, que substitui a relação
dispositivo/aparelho psíquico. A personagem feminina no melodrama, enquanto
"representação/imagem", personifica o paradoxo do prazer
escopofílico/narcissista, constituindoe implicando uma visão masculina. É o
conceito de castração que vai permitir a cisão do gênero e qualificar
diferentemente (através da dicotomia masculino/feminino) o prazer
espectadorial obtido com a narrativa cinematográfica, dentro da tradição
clássica hollywoodiana (universo no qual Mulvey trabalha). A questão
central deste ensaio é pensar a personagem feminina no melodrama
hollywoodiano, compondo um prazer espectadorial que é definido como
masculino.
O prazer espectadorial masculino vê na personagem feminina uma ameaça
(sublimada pelo fetiche), ao mesmo tempo que um objeto para exercer-se como
prazer ativo da escopofilia (de viés sádico/voyeurista). A questão, para
Mulvey, é determinar como o espectador identifica-se com esta estrutura de
prazer, constituída como uma forma de sublimação do complexo de castração.
Em "Prazer Visual" seu objeto de estudo é essencialmente o espectador
masculino, sendo a espectadora feminino determinada retroativamente a
partir deste padrão originário. O espectador masculino possui uma
oportunidade dupla para satisfazer a "ansiedade" da castração implicada
(como ameça) no exercício do prazer escofílico: a) "a reencenação do trauma
original (investigando a mulher desmistificando seu mistério),
contrabalaçado pela desvalorização, punição ou redenção do objeto culpado
(caminho tipificado pelos filmes noir)"[35]; ou b) a "completa rejeição da
castração pela substituição por um objeto fetiche ou através da
transformação da figura representada em um fetiche, de modo que torne-se
tranqüilizadora em vez de ameaçadora (caso da supervalorização e do culto
da estrela)[36]. A narrativa clássica, para Mulvey, é constituída de modo a
que estas duas posições possam afirmar-se, trabalhando com um espectador
que realiza seu prazer afirmando-se numa posição masculina, através da
negação da figura da mulher em si. A mulher é oferecida como espetáculo,
como imagem, o homem é o dono do olhar. Mulvey contrapõe a proposta de um
outro cinema a esta narrativa construída para lidar com um prazer que
realiza-se (enquanto fetichicista ou voyeurista-sádico) às custas da imago
feminina. Termina seu texto abordando um tema que já vimos presente em
outros autores trabalhados: as imensas potencialidades, para a negação
desta postura espectadorial, de um discurso cinematográfico reflexivo que
aponte em direção à sua própria enunciação. Este seu primeiro texto sobre o
assunto termina ironicamente, mencionando que as mulheres "às quais a
imagem tem sido continuamente roubada", apenas podem manifestar um "sinto
muito" com relação "ao declínio desta forma tradicional de cinema"[37].
A questão mais complexa aqui é de que modo situar a espectadora
feminina, que deve também realizar sua identificação fílmica, a partir de
uma narrativa moldada para o olhar masculino. O melodrama hollywoodiano,
afinal de contas, foi um cinema feito essencialmente para o público
feminino. Qual é o prazer da mulher? Este é um ponto frágil do texto de
Mulvey, pelo qual será repetidamente criticada. Questão ainda mais grave
por tratar-se de um ensaio escrito por uma feminista, em diálogo com
autoras militantes. Mulvey tentará responder especificamente a esta questão
em Afterthoughts on 'Visual Pleasure and Narrative Cinema' inspired by King
Vidor's Duel in the Sun [38]. Se quisermos pensar esta questão dentro do
campo psicanalítico, devemos evitar explicações fáceis que girem
exclusivamente em torno do poder de persuasão dos meios de comunicação. Em
Afterthoughts on 'Visual Pleasure', Mulvey menciona a ironia do texto
original, ao falar do espectador masculino, mas aponta para a necessidade
de se retirar a figura do espectador de sua generalidade. A passagem entre
os dois textos (o segundo é de 1981, portanto 8 anos depois do primeiro)
recompõe também um percurso da própria reflexão de fundo feminista e do
pensamento acadêmico norte-americano. Visual Pleasure and Narrative Cinema
ainda é bastante marcado pelo conceitual psicanalítico lacaniano, conforme
aplicado no cinema por Baudry, Oudart, Bellour, Metz. Afterthoughts on
'Visual Pleasure and Narrative Cinema' aproxima-se de modo bem mais nítido
do horizonte do feminismo, que será delineado dentro dos "estudos
culturais" nas próximas décadas.
A noção de "travestimento" -desenvolvida pela autora neste texto, como
eixo da identificação feminina-, será o ponto de partida para a reflexão
propriamente feminista no campo cinematográfico de cunho psicanalítico. A
idéia é interessante e Mulvey vai explorar a noção de "identificação", já
independentemente da rede conceitual lacaniana (que ainda se faz bastante
presente no primeiro texto). A partir da noção freudiana de que o caminho
"correto" para a feminilidade plena é repressão fálica, Mulvey desenvolve a
idéia que, para a mulher, "a identificação transsexual é um hábito que
facilmente transforma-se em uma segunda natureza"[39]. Trabalhando próxima
a textos de Freud sobre a indiferenciação masculina/feminina da libido e
apenas seu grau diferenciado na repressão, vai pensar a identificação da
espectadora feminina no melodrama como um percurso transsexual. A
espectadora ligaria-se à posição masculina para dali poder identificar-se,
em segunda mão, às oscilações e temores da protagonista feminina. Esta
"roupagem travestida" é pensada em termos freudianos: a espectadora
"temporariamente aceita a 'masculinização' em memória de sua fase
'ativa'''[40]. O prazer escopofílico é então exercido pela espectadora
através de um travestimento que vai além do luto pela fantasia da
onipotência: "a identificação masculina, em seu aspecto fálico, reativa
para ela uma fantasia de 'ação' que a feminilidade correta pede que seja
reprimida"[41]. Com este texto Mulvey abre uma chave para se trabalhar
especificamente com a espectadora feminina, algo ausente de seu primeiro
texto que pode ser caracterizado mais como uma constatação de fato da
posição masculina, implícita na relação do espectador com a narrativa
dominante no classicismo.
Tentamos neste breve panorama das intersecções entre psicanálise e
teoria do cinema, examinar alguns eixos conceituais em sua evolução durante
a década de 70. Pudemos perceber a forte influência do horizonte lacaniano
em autores como Metz, Baudry, Oudart, Mulvey, evoluindo, no caso desta
última, para um encontro com as preocupações que, nos anos 80 e 90,
dominariam a reflexão anglo-saxã dentro da temática dos "cultural
studies"[42]. Dentro deste fértil encontro que dura duas décadas, em sua
fase mais intensa, destacamos os trabalhos de Christian Metz, Jean-Pierre
Oudart, Jean-Louis Baudry e Laura Mulvey, apontando para as reflexões, de
igual importância, mais voltadas à análise fílmica, de Thierry Kuntzel e
Raymond Bellour, além de comentaristas bastantes densos como Stephen Heath,
Daniel Dayan, Nick Browne, entre outros. Podemos também mencionar alguns
"companheiros de viagem", deste momento em que a metodologia psicanalítica
faz-se presente com tanta intensidade na teoria do cinema, como Julia
Kristeva ("Elipse sobre o fragor e a sedução especular") e Félix Guatari
("O Divã do Pobre")[43]. O objetivo deste texto foi trabalhar com um
conceitual próprio à teoria do cinema, no modo particular através do qual,
em determinado momento, é confrontado à psicanálise. Busca evidenciar a
dimensão de uma produção em geral esquecida e frisar a necessidade de um
conhecimento conceitual da tradição da reflexão cinematográfica para se
trabalhar com psicanálise dentro do cinema. A aplicação impressionista da
terminologia psicanalítica aos estudos de cinema muitas vezes reproduz
problemáticas típicas da teoria psicanalítica, sem possuir o ferramental
necessário para adentrar seu objeto de estudo cinematográfico. O encontro
entre psicanálise e cinema deve levar em consideração esta história de uma
confluência que constitui-se de antigas atrações mútuas.


Fernão Pessoa Ramos - Professor de Cinema no Instituto de Artes da UNICAMP
e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Multimeios. Autor de Cinema
Marginal: A Representação em seu limite e organizador/autor de História do
Cinema Brasileiro.
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[1] Freud, Sigmund. "Un Recuerdo Infantil de Leonardo da Vinci". Madrid,
Biblioteca Nueva, 1981.
[2] Paris, Ed. Grasset&Frasquelle, 1975.
[3] New York, Doubleday, 1979.
[4] Brasiliense, São Paulo, 1991.
[5] De Thierry Kuntzel ver "Le Travail du Film". Revue Communications,
nº19; "Le Travail du Film 2". Revue Communications nº23 e "Le Défilement".
Revue d'Esthétique, nº 2-4. Kuntzel é um dos principais autores que
trabalham neste cruzamento psicanálise e teoria do cinema nos anos 70,
utilizando-se da metodologia de análise fílmica. Para Raymond Bellour ver o
essencial "Le Blocage Symbolique" (contendo detalhada análise de Intriga
Internacional de A. Hitchcock), publicado originalmente em Communications
nº23 e depois em Bellour, Raymond. "L'Analyse du Film". Paris, Albatros,
1979. Também deste autor devemos citar "Psychose, névrose, perversion"
publicado originalmente na revista Ça. nº17, janeiro 1979 e depois
reproduzido em "L'Analyse du Film". O trabalho de Bellour é central para
compreendermos a evolução da presença de psicanálise na teoria do cinema,
tendo sido desenvolvido simultaneamente a um interessante aprofundamento da
metodologia da análise fílmica.
[6] Oudart, Jean-Pierre. "La Suture". Cahiers du Cinéma, nº 211 e 212,
abril/maio 1969. O artigo é publicado em duas partes, em números distintos
da revista. Ainda com este tema no horizonte Oudart escreve "Bresson et la
verité", Cahiers du Cinéma nº215, outubro 1969; "Travail, lecture,
jouissance" (com Serge Daney), Cahiers du Cinema nº222; "L'Effet du Reel",
Cahiers du Cinéma nº222, março-abril 1971; e "Notes pour une theoria de la
representation". Cahiers du Cinéma nº229, maio-junho 1971 (com continuação
no nº 230).
[7] Miller, Jacques-Alain. "La Suture (Elements de la Logique du
Signifiant)". Cahiers pour la analyse, nº1, janeiro/fevereiro, 1966.
[8] Cahiers du Cinéma, nº 211, abril 1969, pg 39.
[9] idem, ibidem.
[10] Dayan, Daniel. Film Quartely, vol XXVIII, nº1, outuno 1974
[11] Film Quartely, Outuno 1975, pgs 45-50
[12] Film Quartely, outono 1977, pg 46-57,
[13] Sobre Rothman e Salt no diálogo com a visão pragmática de Dayan da
sutura ver também Heath, Stephen. "Notes on Suture". Screen, vol 18, nº4,
Inverno 1977/78.
[14] Nova York, Columbia University Press, 1985.
[15] Film Quartely, vol 34, nº2, inverno 1975/76.
[16] op.cit.
[17] Heath, Stephen, op.cit, pag. 56.
[18] idem, pg 62. Os textos citados aqui no original foram depois
publicados em diversas antologias pessoais e temáticas.
[19] CINÉTHIQUE nº 7/8, 1970.
[20] COMMUNICATIONS Nº23, 1975. Ambos os textos foram posteriormente
publicados em Baudry, Jean-Louis. "L'Effet Cinéma". Paris, Albatros, 1978.
[21] Baudry, Jean-Louis. op.cit., pg 22.
[22] idem, ibidem, pg 22.
[23] idem, pg 23.
[24] idem, pg 25.
[25] idem, pg 26
[26] Metz, Christian. (1977) "Le Signifiant Imaginaire - Psychanalyse et
Cinéma". Paris, Union Générale d'Éditions, 1977.
[27] Metz, Christian. Revue COMMUNICATIONS nº23, 1975.
[28] op. cit. pg. 75.
[29] idem, ibidem. Grifo original do texto.
[30] Sentimos nesta noção sua dívida para com a reflexão de sua obra
anterior marcada pelo estruturalismo semiológico. Ver Metz, Christian.
(1977) "Langage et Cinema". Paris, Albatros, 1977.
[31] Metz, Christian. "Le Signifiant Imaginaire". op. cit. pg 103.
[32] Mulvey, Laura. "Visual Pleasure and Narrative Cinema". SCREEN, outono
de 1975. Depois publicado em Mulvey, Laura. "Visual and Other Pleasures".
Bloomington, Indiana University Press, 1989. Em português, "Prazer Visual e
Cinema Narrativo" foi publicado em Xavier, Ismail (org.). (1983) "A
Experiência do Cinema". Rio de Janeiro, Graal, 1983. As páginas das
citações referem-se a edição brasileira.
[33] Mulvey, Laura. op.cit. in Xavier Ismail (org.), op.cit. pg 443.
[34] idem, ibidem.
[35] idem, ibidem.
[36] Tradução feita a partir do original ingles. Mulvey Laura. "Visual and
other pleasures". op.cit. pg 21.
[37] idem, pg 26.
[38] Mulvey, Laura. Afterthoughts on 'Visual Pleasure and Narrative Cinema'
inspired by King Vidor's Duel in the Sun. Framework, 1981.
[39] op.cit. pg 33.
[40] op.cit. pg 37.
[41] op. cit. pg 37.
[42] O encontro do feminismo com a psicanálise, embora intenso em um
primeiro momento, tende a diluir-se com o passar dos anos.
[43] Os dois textos,publicados inicialmente em 1975 na revista
COMMUNICATIONS nº23, foram traduzidos para o português em Metz, Christian;
Kristeva, Júlia; Guatari, Félix; Barthes, Roland. "Psicanálise e Cinema".
São Paulo, Global, 1980. O ensaio de Metz presente nesta coletânea é O
Imaginário e o 'Bom Objeto' no Cinema e em sua Teoria, que compõe o
primeiro capítulo de Le Signifiant Imaginaire (op.cit.).
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