Terceiro setor e uma questão em debate

July 9, 2017 | Autor: Jamerson Melo | Categoria: Sociology, Ethics, Third Sector, Third Sector Studies
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Terceiro setor e a questão social em debate Jamerson Rodrigues de Melo 2015, 23 de Junho

Resumo O objetivo central deste artigo é descrever e analisar questões emergentes sobre o terceiro setor, bem como seu surgimento, desenvolvimento e a profissionalização das organizações que a compõe. Para entender o terceiro setor é necessário compreender as mudanças no papel do Estado, a crise do Welfare State nos países desenvolvidos e a crise fiscal dos países em desenvolvimento. Palavras-chaves: Terceiro Setor, Crise Financeira, Welfare State, Estado, Crise Fiscal

Introdução Globalmente é discutido o papel desempenhado por ONGS – Organizações Não Governamentais -, Fundações, Associações e outras instituições que compõem o terceiro setor. Questões como seu nascimento, propósito e veracidade do trabalho efetuado estão na pauta desta discussão.É de suma importância inserir o debate do chamado “terceiro setor” no interior (e como resultado) do processo de reestruturação do capital, particularmente no conjunto de (contra) reformas do Estado (Montaño, 2001)1 . Assim, mudanças na cultura (Mota, 1995); alterações na racionalidade e valores sociais, ditos “pós-modernos” (Harvey, 1993); significativas alterações no perfil do cidadão, cada vez mais ligado ao consumo no lugar do trabalho; transformações na legislação trabalhista, tais como “flexibilização” e eliminação de leis que visam garantir direitos conquistados do trabalhador; na base democrática, cada vez menor participação da sociedade nos processos decisórios nacionais; constituição de um “novo contrato social” que substitua o do período fordista/keynesiano.

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*MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social; crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2001. 288 p.

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1 Nascimento e Desenvolvimento do Terceiro Setor Embora vários estudiosos datem o nascimento do Terceiro Setor desde a década de 1960, como derivação da cultura norte-americana das ações filantrópicas, é na verdade na década de 1990 que o assunto adquire maior relevância político-social, principalmente na América Latina, despertando o interesse acadêmico e daqueles que atuam diretamente nos segmentos organizados da sociedade civil. O papel político-social do Terceiro Setor apresenta abordagens diferenciadas, ora ratificando a emergência de um novo ator social, ora confundindo-se com a ação das chamadas organizações não governamentais. Em meio as várias formas de defini-lo, observase a emergência de dois viesses analíticos, porem de caráter antagônicos: 1. O primeiro setor baseia-se na premissa de que o Terceiro Setor surge como uma alternativa viável à ineficiência estatal no trato da questão social; 2. A segunda analise considera que o Terceiro Setor emerge do projeto político neoliberal que prima pelo esvaziamento da dimensão pública do Estado. Torna-se difícil então desenvolver uma conceituação precisa, dado contado do lugar de ação desse segmento no interior do cenário político-social latino americano.

2 Reflexão sobre o conceito do Terceiro Setor “Popularmente” a denominação do terceiro setor se explicaria, para diferencia-lo do Estado (Primeiro Setor) e do setor privado (Segundo Setor). Ambos não estariam conseguindo responder às demandas sociais: o primeiro pela ineficiência; o segundo, porque faz parte da sua natureza visar o lucro. Mas o que significa, de fato, o Terceiro Setor? Conforme o pensamento clássico (Fernandes,1994), compõe-se por organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntaria, em abito não governamental. Na década de 1980, o Terceiro Setor era articulado pelas ONGs, através de projetos apoiados em recursos financeiros da iniciativa privada, da cooperação internacional e, mesmo, contribuições governamentais. Embora os registros históricos datem as origens das ONGs no Brasil na década de 1960, sua visibilidade política percebe-se, nos anos 70, em um exato momento de articulação de múltiplos atores da sociedade civil em prol da luta por um espaço publico democrático. Assim, na busca pela consolidação da democracia politica no Brasil, as ONGs evoluíram de uma ação basicamente assistencial, assumindo, graduadamente, um carácter politico, no sentido de promoção de empoderar os segmentos sociais excluídos. Nasce assim, entre um setor público estatal e um privado-lucrativo empresarial, um terceiro sujeito, de caráter privado em sua formação, porém publico em sua ação. O terceiro setor que, aparentemente, pode parecer um espaço de participação da sociedade, representa a fragmentação das políticas sociais e, por conseguinte, das lutas dos movimentos sociais. Neste sentido, como foi visto pela Reforma do Estado, levada a cabo por Bresser Pereira, o terceiro setor é colocado em um nível de “co-responsabilização” das questões públicas junto ao Estado, propiciando a sua des-responsabilização com o eufemismo de “publicização” Montãno explica o que está por trás da chamada “publicização”:

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“por um lado, a diminuição dos custos da atividade social – não pela maior eficiência destas entidades, mas pela verdadeira precarização, focalização e localização destes serviços, pela perda das suas dimensões de universalidade, de não-contratualidade e de direito do cidadão – desonerando o capital. (...) É neste terreno que se inserem as ‘organizações sociais’, o ‘voluntariado’, enfim, o ‘terceiro setor’ como fenômeno promovido pelos (e/ou funcional aos planos dos) governos neoliberais orientados para América Latina no Consenso de Washington” (2002: 47-8). Uma outra corrente analítica compreende o Terceiro Setor por três parâmetros distintos e fundamentais: o Terceiro Setor como idéia; o Terceiro Setor como realidade, e o Terceiro Setor como ideologia (Salamon, 1997). A primeira categoria, refere-se ao conjunto de valores herdados da tradição religiosa, da moral e de uma concepção mais humanitária do homem, fortalecendo o espirito altruísta, a sensibilidade e a compaixão entre os indivíduos. Como realidade, o Terceiro Setor representa um grande potencial econômico, sobretudo na absorção profissional e na geração de empregos. Como ideologia o autor considera a existência de um processo de mitologização da ação voltada ao social, transmutada no ‘mito da insignificância ou incompetência’.

3 Terceiro Setor e à despolitização da questão social Uma nova compreensão do conceito de Terceiro Setor, aludindo às duas categorias analíticas de Montaño (1999), a saber: a ‘lógica do Estado’ e a ‘lógica da sociedade civil’. Segundo Montaño, a elucidação dessa dupla lógica conduz ao entendimento dos fundamentos políticos que permeiam o programa de privatização e reformas orçamentarias e da Previdência Social correntes na última década. Assim, faz-se necessário entender o conceito de neoliberalismo e sua interface na modificação do papel político do Estado e na emergência do Terceiro Setor ao longos dos anos 90. O pensamento neoliberal apresenta-se como uma construção teórico-política de reação ao modelo de Estado intervencionista. Entre seus principais teóricos estão: Friedrich Hayek, Michael Polanyi, Lionel Robbins e Ludwig Von Mises. O primeiro autor tornou-se referência após a publicação, em 1944 de sua principal obra, O caminho da servidão. Para Hayek, um dos principais teóricos da politica neoliberal, o modelo de gestão da politica econômica empreendida pelo Estado intervencionista, o qual é considerado como sendo uma ameaça a liberdade econômica e, sobretudo, politica. Em outras palavras, Hayek considera que a intervenção estatal conduz a um totalitarismo político e a uma perda gradativa da liberdade do mercado. Dai defender a livre concorrência como principio que rege a organização social. O neoliberalismo prima por um processo de desestatização das indústrias nacionais, desregulamentação, pelo Estado, das atividades sociais e econômicas e, por fim, perda dos direitos de proteção social, antes garantidos pelo Estado de bem-estar social. As consequências deste projeto, segundo Fernandes, são: 1. No campo social: crescente processo de exclusão social, agravado pela má distribuição de renda e pela segmentação social; 2: no campo econômico: reestruturação do modo de produção da mercadoria, aumento do desemprego, criação de um exercito de reserva não absorvido pelo mercado de trabalho e instabilidade nos padrões de crescimento econômicos; 3; no campo politico: 3

criação de regimes antidemocráticos, com uma constante desarticulação politica dos sindicatos, impedimento da participação politica plural e a adoção de medidas de restrição da democracia representativa, que resultam no desmonte dos principais mecanismos de defesa da soberania nacional. Segundo Montaño, baseado em um discurso favorável à chamada “parceria” com a sociedade civil, o projeto neoliberal prossegue no processo de “passagem das ‘lógicas do Estado’ para as ‘lógicas da sociedade civil”’ (Montaño, 1999, p. 57). A tentativa de criar mecanismos de parceria, principalmente com as ONGs, faz com que, gradativamente, o Estado se exima de seu papel como gestor das políticas públicas. A defesa da reforma politica tende a funcionar como uma justificativa de ‘enxugamento’ da máquina burocrática, atendendo as prerrogativas neoliberais de redução da ação social do Estado. Entre as reformas previstas pelo Estado está a progressiva diminuição dos investimentos em políticas públicas de caráter social. Nota-se então uma troca de prioridades, destacando a importância dada a politica econômica em desgaste da esfera social, cujas necessidades passam a ser ‘atendidas’ por caráter micro e pontuais, com o investimento de receita cada vez menores.

4 Diminuição do poder estatal perante o Terceiro Setor Para os autores do “terceiro setor”, as novas formas de solidariedade e associativismo estariam em contraposição Às formas clássicas de “paternalismo” do Estado de Bem-Estar. O Estado intervencionista, supostamente “paternalista”, constituiria, segundo os neoliberais e os defensores do “terceiro setor”, uma organização nociva para a liberdade da população. Podemos encontrar, nesta assertiva duas possíveis justificativas: 1. Entende-se o Estado como instrumento de classe para a manutenção da hegemonia e do status quo; 2. A segunda justificativa, claramente de fonte liberal, com ranço conservador, é que a ingerência de uma organização tão forte, regulando as relações sociais, atenta contra a liberdade das pessoas. Isto quer dizer, a ineficiência estatal, sua corrupção e ate seus déficits fiscais se devem, em grande medida, ao uso do Estado para interesses privados capital: o clientelismo eleitoral, o financiamento de obras necessárias À industrialização, os créditos a quase fundo perdido para o capital, as compras de votos para projetos governamentais. Na literatura especializada há também autores otimistas acerca do terceiro setor. Segundo Fontes (2011) o terceiro setor é uma realidade, quem quiser criticá-lo que o critique; o fato é que o mesmo vem crescendo como uma área importante na provisão de bens e serviços para os mais pobres. Ainda de acordo com o autor uma das formas de verificar esse crescimento é através do aumento do número de pessoas empregadas no terceiro setor. De acordo com ele, entre 1991 a 1995, houve um crescimento médio de 45% na quantidade de pessoas empregadas nesse setor. Para o pesquisador, o crescimento foi maior do que a força de trabalho brasileira nesse período. Há quem defenda a terceirização da gestão. Teixeira (2006) um desses defensores afirma que ao transferir a gestão de um hospital público, por exemplo, para uma entidade do terceiro setor, o ente político não está se afastando do cumprimento do dever constitucional de garantir saúde a todos os brasileiros. De acordo, com o estudioso, o que acontece nesse caso, é a transferência da gestão dos serviços, a uma pessoa jurídica especializada e capacitada tecnicamente para desenvolve-los, visando a otimização dos recursos, permanecendo a atividade essencialmente publica. 4

Para autores como Marteleto e Ribeiro (2006) na América Latina, o terceiro setor tem desempenhado ações politico-pedagógicas de transformação e melhoria das condições de vida das populações marginalizadas, empregando meios e recursos comunicacionais e informacionais. Enfim, segundo os autores o terceiro setor é uma terceira via para suprir as falhas do estado e do mercado no atendimento às necessidades da população mais necessitada e na redução da pobreza.2 Observando a importância do terceiro setor na expressões da questão social é possível perceber que as transformações no mercado e na sociedade brasileira nos últimos anos levaram a uma redistribuição dos papéis de cada ator social na busca do bem comum. Assim, continuamente, a sociedade civil organizada assumiu novas responsabilidades pela proteção e defesa de direitos, antes assumidas exclusivamente pelo Estado (primeiro setor), uma vez que, até aquele momento, a empresa privada (segundo setor) entende que sua função social estava limitada ao pagamento de impostos e geração de empregos. O crescimento de organizações da sociedade civil desde os anos de 1970 fez surgir um novo ator social, denominado terceiro setor, o conjunto de agentes privados com fins públicos, cujos programas visam atender direitos sociais básicos e assim reduzir a desigualdade social.

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Segundo a Relação Anual de informações Sociais (RAIS) do Ministério do Trabalho, em 1991 existiam mais de 200 mil organizações sem fins lucrativos no Brasil, empregando mais de um milhão de pessoas(Goes, 1995). São números nada banais, que colocam o setor como a terceira maior categoria na geração de empregos no País. Analisando dados da Receita Fe-deral do mesmo ano, Landin (1993)constatou que a maior parte delas(77%) é composta de "associações"(cerca de 170 mil). Dentre as associações, por sua vez, OS maiores números distribuem-se entre beneficentes e assistenciais (29%), recreativas e esportivas (23%), e culturais,científicas e educacionais (19%). Estão entre as últimas, em 1985, 895 museus e 21.602 bibliotecas

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5 Conclusão Em resumo, pelo que foi visto até aqui, pode-se dizer que o "terceiro setor"é composto de organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não-governamental,dando continuidade às práticas tradicionais da caridade, da filantropia e do mecenato e expandindo o seu sentido para outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito) de cidadania e de suas múltiplas manifestações na sociedade civil (Fernandes, 1995 e 1996). O ponto de inflexão do crescimento do Terceiro Setor no Brasil ocorre nos anos de 1980 e 1990, devido às falhas do Estado e do mercado na provisão dos serviços sociais implícitos na obtenção do bem estar. Para entender o crescimento das ONGs é necessário compreender as mudanças no papel do Estado, a crise do Welfare State nos países desenvolvidos e a crise fiscal dos países em desenvolvimento. Enfim, é preciso entender como essas crises contribuem para o incremento das idéias neoliberais, cujo cerne é a redução da atuação direta do Estado nas expressões da questão social. A complementaridade entre o Estado, o mercado e o "terceiro setor"pode se dar ou não se dar, por ser mais ou menos feliz, mais ou menos eficaz. Sua sorte depende de múltiplos fatores, alguns previsíveis, outros não. Entre esses fatores de combinatória imponderável está a própria crença de que a integração é possível e desejável. Nesta modesta medida, a disseminação do conceito de terceiro, e de suas expressões correlatas, aumenta as chances de integraçào.

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6 Referências Bibliográficas * FERNANDES, Rubem César (1995)."Elos de urna cidadania planetária", inRevista Brasileira de Ciência Sociais.ANPOCS, SP. * WOLFE, Alan (1992): "Três caminhos para o desenvolvimento: mercado,Estado e sociedade civil", in vários autores. Desenvolvimento, Cooperação Internacional e as ONGs. IBASE/PNUD, RJ. * GIUMBEW, Emerson (1995). Em nome da caridade: Assistência Social e Religião nas Instituições Espiritas. Textos de Pesquisa, RJ, ISER. * MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. Cortez Editora, 2002. * MONTAÑO, Carlos Eduardo. O projeto neoliberal de resposta à “questão social” e a funcionalidade do “terceiro setor”. Lutas Sociais-Desde 1996-ISSN 1415-854X, n. 8, p. 53-64, 2004. * YAMAMOTO, Oswaldo Hajime et al. Políticas sociais,"terceiro setor"e"compromisso social": perspectivas e limites do trabalho do psicólogo. Psicologia & Sociedade, v. 19, n. 1, p. 30-37, 2007. * FERNANDES, Rubem César. O que é o terceiro setor?. Revista do legislativo, Belo Horizonte, n. 18, p. 26-30, abr./jun. 1997, 1997. * LOPES, José Rogério. Terceiro setor: a organização das políticas sociais e a nova esfera pública. São Paulo em perspectiva, v. 18, n. 3, p. 57-66, 2004. * BARBOSA, Lia Pinheiro. Significados do Terceiro Setor: de uma nova prática política à despolitização da questão social. Sociedade e Cultura, v. 9, n. 1, p. 173-186, 2007. * FONTES, Breno. Capital social e terceiro setor: sobre a estruturação das redes sociais em associações voluntárias. Redes Sociais e Saúde. Novas possibilidades teóricas. Recife: Da UFPE, p. 49-77, 2004. * SILVA, Carlos Eduardo Guerra. Gestão, legislação e fontes de recursos no terceiro setor brasileiro: uma perspectiva histórica. Revista de Administração Pública, v. 44, n. 6, p. 1301-1325, 2010.

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