“Terra e Liberdade no discurso abolicionista: a colônia Nossa Senhora da Piedade (1883)”

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Título: “Terra e Liberdade no discurso abolicionista e a colônia Nossa Senhora da Piedade (1883)” Autor: Cláudia Santos. In Ribeiro, Vanderlei Vazelesk; Garcia, Graciela Bonassa. (orgs.) Vozes da Terra. Rio de Janeiro: Multifoco, 2014.

O principal objetivo desse artigo é mostrar a vinculação entre o projeto de democracia rural e o discurso abolicionista do Rio de Janeiro sobre a capacidade econômica da mão-de-obra nacional. De que forma, os abolicionistas se opõem à argumentação escravista a respeito da indolência dos libertos e dos livres nacionais? Para discutir essa questão, eu analiso o relatório elaborado pelo abolicionista Ennes de Souza sobre a sua visita à colônia dos libertos “Nossa Senhora da Piedade”, no município de Paraíba do Sul na província do Rio de Janeiro e publicado nos Boletins da Sociedade Central de Imigração, em fevereiro de 1884. A colônia “Nossa Senhora da Piedade” foi fundada em 1882 na Fazenda de Cantagalo de propriedade de Mariana Claudina Pereira de Carvalho, a Condessa do Rio Novo1. Pelo seu testamento, a Condessa legava a propriedade à Irmandade de Nossa Senhora da Piedade que deveria organizar e administrar uma colônia agrícola com os libertos da fazenda. Determinava-se ainda a distribuição dos lotes de terra para o cultivo dos cereais e para o cultivo do café; a divisão do produto da venda do café entre os libertos e a Irmandade e a fundação de duas escolas na colônia para a educação dos libertos. Pelo testamento, a Irmandade tornava-se proprietária das terras da fazenda, mas devia respeitar o direito de usufruto dos libertos e de seus descendentes na colônia “Nossa Senhora da Piedade”. A colônia somente foi extinta em 1932.

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Para maiores informações sobre a Colônia, consultar a dissertação de mestrado da Isabela Torres de Castro Liberdade e acesso à terra: Fazenda de Cantagalo – Paraíba do Sul (1882-1932) Dissertação de mestrado. Vassouras: USS, 2005.

Em artigos anteriores2, eu procurei indicar a importância da questão agrária nos debates sobre o fim da escravidão no Brasil. Desde 1883, o abolicionismo do Rio de Janeiro incorporou ao programa da Confederação Abolicionista a proposta de reforma do sistema fundiário a partir da adoção do imposto territorial. No manifesto da Confederação Abolicionista assinado por várias associações, sociedades e clubs e encaminhado à Câmara dos Deputados na sessão do dia 31 de agosto de 1883 explicitava-se os dois objetivos do abolicionismo do Rio de Janeiro: “1). Abolição imediata, instantânea e sem indenização alguma, em dinheiro ou em prestação de serviços por prazo determinado 2). A destruição do monopólio territorial, a terminação dos latifúndios; a eliminação da landocracia ou da aristocracia rural dos exploradores da raça africana.”3

Em oposição a uma certa historiografia que define o abolicionismo como um “negócio de brancos, para brancos” (IANNI, 1962, p. 235) 4, eu procurei indicar a preocupação dos abolicionistas do Rio de Janeiro com a inserção do liberto em novas estruturas sócio-econômicas, fora do controle da grande propriedade exportadora. Além disso, é importante constatar que o projeto de democracia rural, normalmente associado exclusivamente à “personalidade utópica” de André Rebouças, tinha ampla repercussão nos debates políticos da década de 1880. Jornais, Associações, Sociedades e Clubs, não diretamente relacionados ao abolicionismo, também estavam empenhados em defender a reestruturação da propriedade fundiária no Brasil, como no caso do Jornal dos Economistas que em 1888 declarava o seu apoio ao ministério João Alfredo em razão da sua

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Cf. entre outros SANTOS, Cláudia. “A questão fundiária na “transição” da monarquia para a república” in MOTTA, Márcia (org.) O Direito às avessas: por uma história social da propriedade. Niterói: EDUFF, 2011, pp. 319-346. 3 REBOUÇAS, André. Abolição imediata e sem indenização. Rio de Janeiro: Typographia central E. R. da Costa, 1883, p. 21. 4 "Por isso é que o abolicionismo foi uma revolução "branca", isto é, um movimento político que não se orientava no sentido de transformar, como se afirmava, o escravo em cidadão, mas transfigurar o trabalho escravo em trabalho livre". IANNI, Octávio, As metamorfoses do escravo, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962, p. 235.

disposição em “estabelecer o verdadeiro regime da liberdade do trabalho e da democracia territorial.”5 Nesse sentido, nossas pesquisas têm permitido recolocar a hipótese de Richard Graham (1979) de que a oposição dos proprietários à monarquia, logo após o 13 de maio, esteve associada ao temor da reforma do sistema fundiário e não apenas ao ressentimento pela abolição. A aproximação entre a Coroa e o movimento abolicionista, principalmente na terceira regência da Isabel, fica explícita na aprovação de uma legislação que era exatamente a bandeira do abolicionismo do Rio de Janeiro: “abolição imediata e sem indenização”. Inclusive, é bastante conhecida a avaliação de Pedro II sobre a “Lei Áurea” e o seu comentário de que se estivesse no Brasil, a emancipação não teria sido realizada da mesma forma. No seu trabalho O “Terceiro Reinado”: Isabel de Bragança, A Imperatriz que não foi, a pesquisadora Maria Luiza de Carvalho (2009) mostra como a Terceira regência da Isabel (1887-1888) foi vivenciada pelos contemporâneos como o início do Terceiro Reinado. Retrospectivamente, nós sabemos da volta de Pedro II e da continuidade de seu governo, mas uma análise atenta dos discursos de época, em seus jornais, diários e correspondências, mostra a convicção dos brasileiros de 1888 de que a morte do Imperador na Europa era apenas uma questão de tempo e de que o trono estaria daí em diante nas mãos da sua filha. Ao contrário das regências anteriores, preparadas minuciosamente pelo pai, a viagem de Pedro II em 1888 havia se processado num grande tumulto, tendo surpreendido a própria princesa. Maria Luiza de Carvalho procura mostrar que a aproximação entre a Princesa e o abolicionismo não se realizou apenas por razões afetivas condicionadas pelo seu catolicismo ultramontano. Ao contrário da imagem amplamente difundida pelos seus contemporâneos, e também pela historiografia, de que a princesa era incapaz de ações propriamente políticas devido à preponderância da esfera afetiva – questão de gênero - Maria Luiza de Carvalho considera a aproximação com as lideranças abolicionistas do Rio de Janeiro como resultado de um cálculo político orientado pela necessidade de uma nova base de 5

Jornal dos Economistas. Editorial do dia 30 de abril de 1888.

sustentação para o Terceiro Reinado. Ainda que se possa discutir essa versão dos fatos, é inegável a aproximação entre a princesa e o abolicionismo, assim como a resolução do ministério João Alfredo de encaminhar, nas palavras de José do Patrocínio, a “consequência lógica do fim da escravidão” pela adoção do imposto territorial e pela desapropriação de terras em torno das estradas de ferro, conforme indica a Fala do Trono de maio de 1889. Também não podemos negar o fato de que essa aproximação entre a Coroa e o abolicionismo era vista com muito receio por certos contemporâneos. Richard Graham (1979) e Robert Conrad (1975) levantaram alguns indícios da reação dos proprietários contra o “avanço das reformas” no debate parlamentar, como é o caso do discurso de Leão Velloso6, dois meses depois da abolição: “Que pretendem eles fazer? Querem o desaparecimento daquilo que chamam de feudalismo rural, de modo que sobre suas ruínas possa ser edificada a democratização da terra (...) Querem que se realize a transformação através da destruição da grande propriedade contra a qual trabalham. E é porque este é seu objetivo que não cessam de dizer, com uma franqueza digna de louvor, que o partido abolicionista não desapareceu com a lei da abolição.”7 (grifos meus)

Além disso,

outros jornais de época,

como o

Novidades, estão

empenhados, 5 meses de depois da abolição, em denunciar as propostas abolicionistas, adotando, para isso, a estratégia de associá-las ao comunismo:

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Pedro Leão Velloso, Senador de 1879 a 1889. Nasceu em 1 de janeiro de 1828 na Bahia. Morreu no dia 2 de março em 1902. Formou-se em Direito e ocupou os seguintes cargos públicos: Juiz de Direito, Chefe de Polícia, Conselheiro de Estado, Ministro dos Negócios do Império. Diversas vezes, ocupou também o cargo de Presidente de Província. Cf. Site do Senado Federal. 7 Discurso de Leão Velloso, 17 de julho, 1888 Congresso, Senado, Anais 1888, III, 188 APUD Graham, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 192. Cf. ainda o discurso de João Maurício Wanderley, Barão de Cotegipe no dia 12 de maio no Senado: “Com uma penada esta propriedade [ escravo] está legalmente perdida (...) Está decretado que neste país não há propriedade, que tudo pode ser destruído por uma lei (...) É possível prever as consequências? Não é segredo: em breve pedirão a divisão da terra – há exemplo disso em muitos países – desses latifúndios, ou grátis ou por um preço mínimo, e o Estado estará em condições de decretar a expropriação sem indenização.” Apud. Graham, Richard. Idem.

“O abolicionismo permanece pregando ódio ao lavrador, vilipendiando-o, atribuindo-lhe sentimentos ignóbeis e procurando convencer de que a salvação (do país) está no roubo da propriedade territorial para distribuílas pelos que nada têm. Abolicionismo está, pois, como sinônimo de comunismo”8 (grifos meus).

Dessa forma, me parece bastante convincente relacionar a crise política do Império e a queda da monarquia à repercussão da questão agrária nesse contexto.

No presente artigo, o meu objetivo é analisar o tipo de discurso produzido pelo abolicionismo da década de 1880 para legitimar a proposta da reforma do sistema fundiário não apenas para propiciar a imigração européia, mas para constituir a pequena propriedade do liberto. Gostaria de ressaltar as dificuldades encontradas pelo pensamento abolicionista no enfrentamento de certas premissas discursivas largamente difundidas nessa segunda metade do século XIX e com amplos desdobramentos na formação da nacionalidade brasileira. Para defender um projeto sócio-econômico baseado na pequena propriedade do liberto e do livre nacional era preciso antes de tudo desconstruir uma das principais argumentações escravistas: “o ex-escravo se entregaria necessariamente à ociosidade colocando em risco a economia e a sociedade brasileiras”. Essa ideia era central na defesa de um processo de emancipação o mais gradual possível e na exigência de medidas de repressão contra o liberto no pós-abolição. Aliás, encontra-se aí um dos motivos da revolta dos proprietários diante da escolha por uma lei de abolição “imediata, sem indenização e sem condições” em detrimento de outros projetos, como o de Antônio Prado, que previam medidas restritivas à liberdade de ir e vir por um prazo de mais 5 anos. Certamente, as referências discursivas às ideias de indolência ou de ociosidade não datam dessa época. Podemos dizer que elas acompanham todo o

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Novidades. 5/10/1888, “O Abolicionismo”. Apud RUBEM, Iram. “Pedro II não morreu. E agora?” In Revista do Mestrado em História. Vassouras: Universidade Severino Sombra, 2009, vol. 11, nº 2.

processo histórico de ocupação e de exploração do território brasileiro e estão diretamente relacionadas às dificuldades de se obter mão-de-obra para a exploração mercantil dos colonizadores em oposição a modos de vida onde a produção não se vincula necessariamente ao mercado. Inclusive, a expansão da escravidão africana como base para a produção agrícola voltada para o mercado externo foi sendo legitimada em razão da dita “indolência incorrigível” dos silvícolas do Brasil. O recurso à escravidão dos africanos – amparada no uso “legítimo” da coerção e da violência – se afirmaria como “única forma eficaz” de extração de sobre-trabalho. Em contrapartida, a difusão da escravidão, com o aumento expressivo do número de negros escravos em relação à população livre branca, gerou preocupações relativas à manutenção desse sistema de trabalho que se estrutura, em princípio, pelo uso legítimo da violência. A historiografia brasileira sobre a escravidão vem chamando a atenção, desde a década de 1980, para o fato de que a violência não foi o único mecanismo de manutenção da instituição escravista. Nas relações escravistas, alguns “direitos” foram sendo reconhecidos aos escravos (apesar da sua condição jurídica de mercadoria) num processo contínuo de negociação e de adaptação. A permanência e a difusão da instituição escravista resulta diretamente do uso de mecanismos de violência pelos senhores e por seus feitores, mas também do reconhecimento de práticas, de costumes e de “direitos dos escravos”. Alguns historiadores nos mostram que entre as práticas e os costumes difundidos durante o período de expansão da escravidão, está a vinculação entre a alforria – pelo trabalho e pelos bons serviços – e a posse de uma parcela de terra. No horizonte do escravo do mundo rural foi sendo desenhado – com a ajuda dos próprios senhores – a perspectiva da liberdade associada à posse de uma pequena roça para o seu sustento e o de sua família. Hebe de Matos (1988)9 nos mostra que antes da “crise da mão de obra”, advinda da proibição do tráfico atlântico, a entrada constante de africanos permitia aos senhores acenar com a possibilidade da alforria associada à posse da terra. O

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Estamos nos baseando principalmente no artigo CASTRO, Hebe Maria Mattos de, « O Estranho e o Estrangeiro », in SILVA, Jaime, da (org.), Cativeiro e Liberdade, Rio de Janeiro, UERJ, 1988.

acesso à terra como mecanismo de controle da população escrava é explicitamente proposto no documento produzido pelos fazendeiros de Vassouras numa comissão destinada a “sugerir medidas para a contenção da violência e, em especial, de possíveis levantes”, após a insurreição de escravos liderada por Manoel Congo em 1838. Neste Instruções para a comissão permanente nomeada pelos fazendeiros do município de Vassouras, os fazendeiros recomendam que os escravos tenham suas roças e se liguem ao solo pelo sentimento de propriedade. 10 A expectativa da liberdade e da posse da terra como concessões senhoriais, em troca de bons serviços e de fidelidade, servem à manutenção da escravidão, assim como o castigo e o medo11. A liberdade com a permanência dos vínculos de dependência e com a posse da terra é o acordo não explícito que permeia a escravidão até a deflagração da sua crise pela pressão contra o tráfico e pela intervenção do Estado nas relações escravistas. Sidney Chalhoub (2007) acredita que grande parte das críticas ao projeto de lei do ventre livre no fim dos anos 60 vinha da resistência à simples ideia de intervenção do Estado nas relações escravistas: retirar dos senhores o monopólio da concessão da liberdade, era retirar-lhes, ao mesmo tempo, o mecanismo fundamental para assegurar a submissão do liberto no pós-emancipação. Com a expansão da propaganda antiescravista internacional e com a formação de um movimento abolicionista no Brasil, acirra-se a disputa não só pela manutenção da escravidão, mas sobretudo pela permanência das relações de 10

Cf. Martins, Roselene de Cássia Coelho, Colonização e política: debates em torno do fim da escravidão em Vassouras (1850-1888), Dissertação de mestrado, orientação Cláudia R. A. dos Santos, 2007, p. 57. 11 José de Alencar critica o projeto de lei do ventre livre e a intervenção do Estado nas relações escravistas, argumentando que o escravo já possuía amplos direitos, apesar de sua condição de mercadoria. Nesse sentido, o Estado não tinha nada a acrescentar e o fim da escravidão aconteceria naturalmente no Brasil em razão da “evolução dos costumes” e da entrada de estrangeiros: “O primeiro direito da pessoa, a propriedade, o escravo brasileiro não só o tem, como o exerce. Permite-lhe o senhor a aquisição do pecúlio,a exploração das pequenas indústrias ao nível de sua capacidade. Com esse produto de seu trabalho e economia rime-se ele do cativeiro: emancipa-se e entra na sociedade. Aí nenhum prejuízo de casta detrai seu impulso: um espírito franco e liberal o acolhe e estimula.” Alencar, José de. Cartas de Erasmo.; organizador, José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro : ABL, 2009, p. 309.

submissão do liberto no pós-abolição. Neste contexto de intensificação dos conflitos, do fim da década de 1870 e da década de 1880, a referência à ociosidade dos libertos torna-se peça fundamental no discurso escravista. Defender a formação da pequena propriedade do liberto como saída para a economia e a sociedade brasileira pressupõe a oposição a esse discurso. Significa recuperar a perspectiva construída pelos próprios escravos durante a vigência da escravidão, qual seja, a da liberdade associada não à ociosidade, mas ao trabalho fora da grande lavoura, na pequena roça voltada para a subsistência familiar e para o pequeno comércio. Além disso, o abolicionismo, na sua oposição às ideias de indolência e de incapacidade econômica do liberto, precisa refutar os pressupostos ditos científicos que sustentam esse tipo de argumentação nessa segunda metade do século XIX. A pretensa ociosidade não é mais o resultado de condições sociais ou culturais, mas de determinações raciais que a tornam inalterável. Nenhuma mudança social ou cultural relacionada ao fim da escravidão ou à valorização sócio-econômica do trabalho será capaz de modificar essa característica essencial do povo brasileiro. Somente a entrada de um novo afluxo importante da raça branca poderá minimizar os efeitos negativos da mistura de raças, o principal deles e o mais funesto para uma nova ordem sócio-econômica baseada no trabalho livre: a ociosidade. Ao contrário das afirmações de uma certa historiografia que associou o abolicionismo ao racialismo, esse importante movimento social da década de 1880, confrontou tanto a tese da ociosidade quanto os argumentos racialistas que a sustentavam. Esse embate é parte essencial da defesa do projeto de “democracia rural”.

É o que se pode perceber através da atuação de Ennes de Souza como membro da diretoria da Sociedade Central de Imigração fundada em 1883. Possuímos poucos elementos sobre a trajetória de Ennes de Souza, a não ser alguns indícios da sua amizade com André Rebouças, da sua atuação na Sociedade Central de Imigração e dos seus vínculos com José do Patrocínio e

João Clapp no Club dos Libertos de Niterói do qual se tornou “sócio benemérito” em 1884. Eduardo Silva, no seu Dom Obá II d’África já havia chamado a atenção para a radicalidade do discurso de Ennes de Souza na reunião pública preparatória da Sociedade Central de Imigração, em outubro de 1883, quando, destacando-se de outros ali presentes, “propõe um ataque mais direto aos barões de café” (SILVA, 1997, p. 101). A sua atuação no âmbito da Sociedade exprime claramente a sua intenção de reformar a estrutura fundiária do país não apenas no interesse dos imigrantes europeus, mas sobretudo para atrelar os livres nacionais e os libertos à propriedade da terra. Nesse sentido, é importante destacar a sua visita à colônia de libertos “Nossa Senhora da Piedade” e o seu relatório divulgado nos Boletins da Sociedade em fevereiro de 1884, no qual procura mostrar os benefícios econômicos e sociais desse tipo de estrutura. Devemos salientar que no projeto abolicionista de democracia rural, as colônias de libertos, assim como os engenhos centrais ocupam um lugar de destaque. Se a colônia de Paraíba do Sul tinha sido o resultado da vontade senhorial – concessão da falecida Condessa do Rio Novo das terras de sua fazenda de Cantagalo - os abolicionistas esperavam consagrar esse modelo através da intervenção do Estado. Ao expor suas impressões sobre a colônia, o relator 12 fornece uma série de detalhes sobre o modo de vida dos ex-escravos nos seus aspectos familiares, sociais e econômicos com o claro objetivo de refutar os prognósticos desfavoráveis sobre o futuro do liberto. Em primeiro lugar, Ennes de Souza procura se opor a um dos argumentos mais importantes do emancipacionismo, o de que o ideal de liberdade do escravo era o não-trabalho. Para isso, ele afirma que a área ocupada pelas plantações teria crescido muito desde a fundação da colônia, assim como o número de produtos cultivados. A área ocupada pelas plantações era de 53.240 hectares, sendo a colônia produtora de café, de cana de açúcar, de milho, de feijão, de amendoim, de arroz, de mandioca, de batata, de inhame e de banana.

12

Além

Relatório apresentado pela comissão da Diretoria enviada à Paraíba do Sul, de autoria do Sr. Ennes de Souza, Boletins da Sociedade, fevereiro de 1884.

disso, Ennes de Souza procura mostrar que esses libertos, assim como todos os outros trabalhadores rurais, ansiavam por meios de escoarem a sua produção “para realizarem seus desejos de melhoramento”, refutando, assim, a ideia de que, no máximo, os libertos trabalhariam para o seu próprio sustento sem gerar excedentes para o mercado e sem se preocuparem com o progresso, ideia tão cara ao século XIX. Enfim, ele indica o número de casas da colônia, num total de cinquenta e oito, enfatizando que "todas tinham sido feitas pelos colonos 13". Em segundo lugar, o relator refuta a idéia de que a escravidão brutalizava o escravo a ponto de retirar-lhe todos os "sentimentos humanos", até mesmo uma qualquer noção de vida familiar. Idéia essa que, apropriada pelos interesses escravistas, funcionava como outro argumento pró-abolição a mais gradual possível, já que a ausência de organização e mesmo de sentimento familiar provocaria, no caso de uma abolição imediata e sem condições, um caos social14. Cumpre lembrar que a referência a um processo de desumanização dos escravos foi central para certas explicações sociológicas do século XX sobre a 13

Idem. Louis Couty, médico francês que se instalou no Brasil como professor da Escola Politécnica a partir de 1879 e que permaneceu no Rio de Janeiro até o ano de sua morte em 1884, foi talvez o autor que melhor sistematizou a argumentação escravista pró-abolição gradual. No seu livro L´esclavage au Brésil, no qual responde às críticas feitas pelo abolicionista francês Victor Schoelcher ao Império brasileiro - "única nação escravista do mundo cristão"- Louis Couty tenta convencer os seus leitores franceses de que o Brasil tinha direito de manter a escravidão ainda por mais algum tempo, em função das "especificidades" do escravismo brasileiro. Estão aí todas as idéias sobre "suavidade" da escravidão brasileira; sobre população livre pobre inativa e indolente, sobre o liberto vadio, sobre a ausência das noções de família e de liberdade entre os negros, etc. Cumpre notar que Louis Couty foi inúmeras vezes utilizado como fonte pelos historiadores e principalmente pelos sociólogos que, como Fernando Henrique Cardoso, no seu Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, no capítulo IV, sobre a economia escravista, se serve quase que exclusivamente dos textos de Louis Couty, sem nunca mencionar o contexto no qual o livro foi produzido. O livro de Louis Couty, publicado em agosto de 1881, foi alvo de duras críticas por parte dos abolicionistas brasileiros que o interpretaram como "propaganda governamental" da abolição gradual e também como difusor de idéias racistas contra os negros. No jornal O abolicionista que circulou apenas durante o ano 1880-1881, os redatores fazem várias referências ao livro de Louis Couty. Veja por exemplo esse artigo de 1 de agosto de 1881: "A tese nova é de que o negro não é igual ao branco (...) O Dr. Louis Couty ocupa-se do negro "cientificamente" (...) para nós, os negros são os cultivadores do nosso solo, um elemento considerável da nossa população e não nos é indiferente nem que eles sejam cada vez mais embrutecidos pelo cativeiro nem que eles sejam tratados como animais intermediários entre o branco e o macaco" . No mesmo artigo Louis Couty é visto como "mandado à Europa para fazer a propaganda do governo" e como encarregado de escrever carta para Victor Schoelcher cheia de "erros" sobre o Brasil, "enganos deploráveis da parte de um professor de uma das nossas academias." Ver também, edição do 01 de setembro e do 1 de dezembro de 1881. 14

marginalização dos negros no pós-abolição. Tendo a escravidão retirado dos negros a possibilidade de constituir famílias e tendo disseminado entre eles a aversão por qualquer trabalho, o pós-abolição resultaria necessariamente na marginalização dos negros em detrimento dos imigrantes que chegariam mais preparados. No fim do século XIX, Ennes de Souza se posicionava contra esse tipo de argumentação, mostrando a importância da vida familiar para a estrutura sócioeconômica da colônia. Inclusive, ele procurava enfatizar o aumento significativo de uniões legais: Antes da fundação da colônia, só existiam 8 casais legítimos, mas no ano de 1884, numa população de 190 adultos e 40 menores, havia 70 casais matrimoniais, vistos como núcleos aglutinadores do restante da população que se ligava às famílias em função de "afeições ou interesses 15". Além disso, Ennes de Souza afirmava que a própria economia da colônia se organizava em torno da vida familiar, através de uma divisão do trabalho que concentrava os homens nas atividades dos campos enquanto as mulheres, em casa, ocupavam-se dos filhos e "da sua economia doméstica"16. Por fim, o relator insiste sobre o fato de que a colônia mantinha relações comerciais e de trabalho com as populações vizinhas. Além do trabalho na lavoura, alguns colonos exerciam suas profissões de carapinas, ferreiros, pedreiros e cozinheiros na vizinhança sem que se soubesse de nenhuma reclamação contra eles, combatendo assim uma outra idéia segundo a qual os "libertos vagabundos" seriam fator de desagregação social: "não há reclamações contra os libertos (...) estamos um pouco longe da realização das profecias apocalípticas

que

sempre

precederam

as

reformas

profundas.

Não há

reclamações contra roubos; não há mendigos 17" Através do relatório de sua visita à Colônia dos Libertos de “Nossa Senhora de Piedade”, Ennes de Souza se opõe abertamente à tese escravista sobre a indolência dos libertos. Esse tipo de argumentação é condição sine qua non para

15

Relatório apresentado pela comissão da Diretoria enviada à Paraíba do Sul, de que foi relator o Sr. Ennes de Souza, Boletins da Sociedade..., fevereiro de 1884. 16 Idem.. 17 Idem.

legitimar a proposta de reestruturação da estrutura fundiária visando à inserção dos ex-escravos enquanto pequenos proprietários. Pois se a liberdade não significa a permanência dos vínculos de submissão junto à grande propriedade, ela não significa, por isso, a ociosidade. A liberdade significa a autonomia sócioeconômico na pequena propriedade. Ou nas palavras de um outro membro da Confederação e da Sociedade Central de Imigração: “Ser livre e ser proprietário de terra, eis o sonho do escravo nessa terra miserável.” 18

18

REBOUÇAS, André. Agricultura nacional, estudos econômicos; propaganda abolicionista e democrática. Rio de Janeiro: Lamoureux, 1883, p. 126.

Referências Bibliográficas: ALENCAR, José de. Cartas de Erasmo; organizador, José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: ABL, 2009. CASTRO, Hebe Maria Mattos de, « O Estranho e o Estrangeiro »,

in SILVA,

Jaime, da (org.), Cativeiro e Liberdade, Rio de Janeiro, UERJ, 1988. CASTRO, Isabela Torres. Liberdade e acesso à terra: Fazenda de Cantagalo, Paraíba do Sul (1882-1932). Dissertação de Mestrado. Vassouras: USS, 2005. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979. IANNI, Octávio. As metamorfoses do Escravo, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962. MARTINS, Roselene de Cássia Coelho. Colonização e política: debates em torno do fim da escravidão em Vassouras (1850-1888). Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Ateliê, 2007. MESQUITA, Maria Luiza de Carvalho. O “Terceiro Reinado”: Isabel de Bragança, a Imperatriz que não foi. Dissertação de Mestrado Vassouras: USS, 2009, 188 p. RUBEM, Iram. Pedro II não morreu. E agora? In Revista do Mestrado em História. Vassouras: Universidade Severino Sombra, 2009, vol. 11, nº 2. SANTOS, Cláudia Andrade dos. “A questão fundiária na “transição” da monarquia para a república” in MOTTA, Márcia (org.) O direito às avessas: por uma história social da propriedade. Niterói: EDUFF, 2011, pp. 319-346. SILVA, Eduardo. Dom Oba II d’ África, o Príncipe do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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