Terra e Trabalho: Reforma agrária e os mundos do trabalho no estado de São Paulo

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II Seminário Internacional Mundos do Trabalho VI Jornadas de História do Trabalho

Terra e Trabalho: Reforma agrária e os mundos do trabalho no estado de São Paulo Clifford Andrew Welch Departamento de História Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo [email protected]

Resumo Um dos aspectos menos comentados sobre reforma agrária é sua relação com os mundos do trabalho. Terra, trabalho e capital são os fatores básicos de produção. Observamos nas diversas versões das políticas de reforma agrária uma preocupação não só com terra e capital, mas também com o trabalho. Já que o estado de São Paulo tem a história mais comprida de experimentação com reforma agrária, nosso paper vai analisar os argumentos utilizados para defender e justificar as políticas de reforma agrária estabelecidas a partir da Lei de Revisão Agrária de 1960, bem como as experiências dos camponeses assentados no estado e a representação e reconhecimento de sua perspectiva. O objetivo é de contribuir no esclarecimento da relação entre as Histórias da luta pela terra e dos mundos do trabalho, como são conceituadas entre os pesquisadores da História social do trabalho.

Resultado parcial do Projeto 478600/2010-0 da Edital Universal do CNPq. 27 e 30 de novembro de 2012 Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) Rio de Janeiro, Brasil

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Introdução Historicamente, o apoio para a reforma agrária como política pública passou por diversas justificativas. Na América Latina, eventos como a Revolução Mexicana destacaram a terra como riqueza nacional que não poderia ser vendida aos estrangeiros e sim utilizado como base de apoio produtivo para os povos originários. Argumentos similares foram provocados em Guatemala e Bolívia logo depois da Segunda Guerra Mundial quando novas formas de reforma agrária foram experimentadas. A Revolução Cubana de 1959, já no auge da Guerra Fria, estimulou o impulso maior para a implantação de políticas de reforma agrária na região. Daí, a justificativa de reproduzir a experiência cubana foi seu papel na realização do socialismo e a justificativa de legislar políticas mais reformistas foi a utilidade delas em evitar outras revoluções cubanas. Desta reação aos desenvolvimentos históricos, veio a predominar os economistas políticos, os sociólogos rurais, o engenheiros e os planejadores e entre seus argumentos, se encontrava a questão do trabalho. No estado de São Paulo, o projeto da lei da “Revisão Agrária” veio à tona em março de 1960, logo depois da revolução cubana, e foi aprovada como lei pela Assembleia Legislativa no penúltimo dia do ano. Porém, logo foi “inviabilizada” por intervenção do governo federal em abril de 1961. Durante sua curta vida de quatro meses, apenas 176 famílias foram assentadas em dois assentamentos. Com o golpe militar de 1964, contudo, a lei paulista recebeu um olhar renovado pelo regime e seus autores foram chamados para ajudar escrever o Estatuto da Terra, aprovado como decreto federal in novembro de 1964.1 É o estatuto que guiou todas as medidas de reforma agrária implementadas no país até a Constituição de 1988, que modificou o estatuto, mas não o rescindiu, sendo ainda relevante para regular a estrutura fundiária em todo território nacional até hoje. Durante a ditadura, a administração do estatuto passou para o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Nos anos 1970, o estatuto foi acionado em São Paulo na desapropriação de terras. Nos anos 1980, a luta pela terra no estado intensificou e o governo estadual reorganizou, em 1991, seu braço administrativo de assuntos fundiários para criar o ITESP - Instituto de Terras do estado. Através da pressão dos movimentos socioterritoriais, o ITESP e o INCRA estabeleceram dezenas de assentamentos de reforma agrária até os dias atuais. No inicio, a teoria desenvolvimentista orientava as políticas a vincular as questões da terra e trabalho através o processo de industrialização. Como observou a historiadora Ana Maria dos Santos, contudo, nas propostas de reforma agrária da época, “os fins desenvelopmentistas [...] sempre estiveram à frente dos interesses do trabalho de do trabalhador.”2 O campo teria a função de criar demanda para bens industrializadas como agroquímicos e maquinas agrícolas. Crescimento na produção de alimentos funcionaria como subsidio para a indústria por baixar o custo de vida do trabalhador na cidade e assim diminuir a pressão para aumentar salários. Falava muito a época da “fixação do homem do campo” ou “da fixação do homem e sua família ao solo.” 3 Já no final dos anos 1960, a forma de modernização implantado no Brasil, estimulou outros tipos de reforma agrária. A mecanização e uso de químicos fariam um papel importante em “emancipar” mão-de-obra do campo para também ser incorporado na oferta de trabalhadores na cidade. A industrialização da produção agrícola também faria papel de absorver trabalhadores. Outra justificativa para uma outra forma de reforma agraria – a colonização – foi de tentar remediar o que era visto como 1

Tolentino, Célia Aparecida Ferreira. O farmer contra o jeca: o projeto de revisão agrária do governo Carvalho Pinto. Marília: Oficina Universitária, 2011, p. 9-14; 132-133. 2 Santos, Ana Maria dos. “Desenvolvimento, trabalho e reforma agrária no Brasil, 1950-1964,” Tempo (Niterioi). p. 3 3 Carvalho Pinto. “Mensagem no. 52 do Sr Governador do Estado de 30 de mar., 1960.” Revisão agrária. São Paulo: Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, 1960. p. 11.

3 problema da massificação da população em algumas cidades. No oeste de São Paulo, a criação de assentamentos foi uma das respostas para “absorver excesso de trabalhadores” desempregados com a conclusão de mega-projetos, como a construção de usinas hidroelétricas. Reforma agrária na fronteira foi promovida para servir como alternativa para trabalhadores des/sub-empregados e assim reduzir a probabilidade de rebelião na cidade e no campo. Neste quadro, reforma agrária entra nos mundos do trabalho como política para gerar postos de emprego e como tática de controle social. Reforma agrária também mexeu com os mundos do trabalho em ser compreendido como uma política que promova valores positivos do trabalho. Da perspectiva liberal, foi bastante discutido no passado a ideia da reforma agrária como meio de fazer do agricultor brasileiro um “farmer” no sentido que o Thomas Jefferson dos Estados Unidos da América celebrou o “yeoman farmer” como fonte fundamental da democracia sendo ele um cidadão auto-determinado - um “self-governing farmer.” A responsabilidade do lote como proprietário, a demanda da produtividade, sua integração no mercado e seus vínculos com o estado como usuário de seus bens e serviços, foram todos vistos como elementos importantes na construção da cidadania e incorporação do trabalhador agrícola. Do campo socialista, foram produzidos argumentos similares, valorizando “trabalho” como essencial para justificar o direito de controlar terra – falaram que a “terra era para quem nela trabalha.” Depois, foram elaborados argumentos de trabalho como a base da dignidade humana, com trabalho coletivo (tipo mutirão) visto como uma prática social que alimenta socialismo e a transformação do sistema capitalista. Em tempos atuais, reforma agrária adotou pelo menos mais uma qualidade em relação aos mundos do trabalho. Essa remete para a época da senzala e a função da terra na autosustentação e reprodução de mão de obra. Com a rápida expansão de cana-de-açúcar, certos assentados arrendaram suas terras para o plantio da cana e se integraram no mercado de trabalho como cortadores de cana assalariados (boias-frias). Outros, especialmente jovens homens e mulheres, simplesmente entraram no mercado de trabalho e tratam seus lotes como dormitórios. Assim, o assentamento de reforma agrária servi para garantir a reprodução da oferta de trabalho por um dos mais brutais atividades econômicas imagináveis. No grande São Paulo, a implantação de assentamentos criou uma experiência similar com a tendência dos assentados procurar trabalho na área urbana e abandonar o aproveitamento agrícola de suas terras. Assim, parte dos assentamentos fica como se fosse uma moradia para os trabalhadores das cidades vizinhas. Ironicamente, segundo a constituição, um dos razões indicadas para a desapropriação de fazendas para fins de reforma agrária é a violação das lei de trabalho e o uso de trabalho forçado. A precariedade da rede de assentamentos de reforma agrária no estado de São Paulo ajuda reproduzir a safra de trabalhadores de baixa renda para o agronegócio poder funcionar quase sem a necessidade de utilizar trabalhadores escravizados. O presente trabalho, resultado parcial de um projeto de pesquisa apoiado pelo Edital Universal do CNPq de 2010, aborda o tópico em forma reduzida para não ultrapassar os limites estabelecidos pelas comissões do seminário. Optei para examinar só um exemplo histórico de políticas agrárias aplicados na escala do estado de São Paulo. A Lei de Revisão Agrária de 1960, brevemente descrita nesta introdução, serva também para experimentar estudos subalternos. O conceito originou com o teórico comunista Antônio Gramsci, mas foi o grupo de historiadores na Índia que desenvolveu a escola dos estudos subalternos no anos 1980. Nos anos 1990, um conjunto de acadêmicos pósmarxistas de várias áreas das ciências humanas, inicio um movimento de estudos subalternos de América Latina nos Estados Unidos. A ideia comum entre todos é de utilizar o conceito do sublatern invés de classe social para tentar representar e criticar melhor a complexidade das experiências de dominação e

4 hegemonia na história dos países pós-coloniais. 4 “’Subalternity’ seemed a more allencompassing term that ‘class’ in expressing the fullness of the disenfranchised community,” wrote Ileana Rodríguez, um dos lideres do grupo nos EUA (p.5). A questão do trabalho rural na Revisão Agrária O movimento camponês, representado em 1960 pela ULTAB - União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, vigorosamente criticou o projeto da “Lei de Revisão Agrária” do momento que foi apresentado pelo governador Carlos Alberto A. Carvalho Pinto em 30 de março. Nacionalmente, o movimento camponês estava regimentado abaixo do controle do PCB - Partido Comunista do Brasil.5 A frente do Setor do Campo do comitê central foi o Lindolpho Silva, que se representou em público como um oficial da ULTAB e escreveu a coluna “Conheça seus Direitos” regularmente para o jornal da união, Terra Livre. Como sua perspectiva de etapas históricas de modos de produção (feudalismo – capitalismo – socialismo), o PCB integrou o movimento camponês como aliado importante, mas subordinado ao movimento operário. Apoiador de uma reforma agrária radical como estratégia para fragmentar o poder econômico e político dos grandes fazendeiros, usineiros e interesses estrangeiros, especialmente firmas estadunidenses, a questão do trabalho nunca saiu da vista. Criticando o governador por fazer um projeto que dependeria na compra e venda das terras pelos camponeses, “sabendo que [...] não vai permitir aos arrendatários, parceiros, meeiros, terceiros, colonos, camaradas e peões comprar seu pedacinho de chão.” Segundo Silva, “os congressistas operários” tinham apresentado ao governador “emendas [...] facilitando a compra de terras por todos” e era a hora para os camponeses se mobilizem para pressionar o governo aceitar as modificações. Continuou o Silva, “É preciso que os trabalhadores rurais se mexam no sentido de união da luta. Só assim os operários poderão ajudar com bons resultados.”6 Este projeto de reforma agrária pelo mercado passou por um processo de debate e modificação rigorosa na Assembleia Legislativa. Nas atas da assembleia, são centenas de páginas de comentário sobre o projeto durante quase nove meses de sua consideração. A questão que animou a ULTAB foi o núcleo de várias lutas: “quem paga para reforma agrária?” Enquanto a aquisição das fazendas e orçamentos administrativas estariam dependente em um “Imposto Territorial Rural” (que foi elaborado como incentivo a produtividade eficaz da terra), os lotes teriam que ser comprados pelos agricultores, confirmando a impotência do PCB no âmbito da assembleia paulista. Pior, na lei aprovada o agricultores foram chamados “adquirentes,” sublinhando seu papel de comprador. O preço da venda atendia não só o preço da desapropriação, mas também “todas as despesas com as benfeitorias e melhoramentos 4

Rodríguez, Ileana. “Reading Subalterns Across Texts, Disciplines and Theiories: Fom Rrepresentation to Recognition.” In: Rodríguez, Ileana. (org.) The Latin American Subaltern Studies Reader. Durham: Duke University Press, 2001, p. 1-32. 5 Vale a pena anotar, contrário a representação dada pela Tolentino (2011, p.10), que o PCB era a liderança hegemonica entre os trabalhadores rurais na época e a questão da reforma agrária estava bastante presente no movimento em São Paulo. De fato, na escala da nação, o movimento em si era dividido entre a influência da ULTAB, da Igreja Católica e as Ligas Camponesas do Francisco Julião, para no falar de um número crescente de politicos como Leonel Brizola, que teve uma forte influência sobre o MASTER- Movimento dos Agricultores Sem Terra no Rio Grande do Sul. Em geral, as Ligas de Julião não tiveram presença no estado de São Paulo e o movimento da igreja geralmente apoiava o governo Carvalho Pinto, que era do Partido Democrata Cristão. Ver Welch, Clifford Andrew. A semente foi plantada: as raizes paulistas do movimento camponês no Brasil, 1924-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2010. 6 Silva, Lindolpho. “Conheça seus direitos: Unir para vencer” Terra Livre, jun. 1961, página central.

5 realizados pelo estado.” O trabalhador ficou preso um pagamento anual, sendo forçado abandonar seu lote e todos os melhoramentos se fosse incapaz de fazer dois pagamentos em seguidos. Pagamentos atrasados eram sujeitos uma multa de 10% e o agricultor ficou responsável por tomar conto do lotes, aí estabelecendo sua residência dentro de um ano da data do contrato. Toda a conta teria que ser quitada em 15 anos. Longe de privilegiar os meeiros e peões identificados pelo Silva como alvos da lei, a própria lei indicou uma preferencia para “arrendatários parceiros, produtores ou trabalhadores agrícolas em geral, associados a cooperativas agropecuárias,” bem como agrônomos, veterinários, técnicos rurais e, por último, “os que, a qualquer título tenham prática de trabalhos agrícolas.” Em outras palavras, ou pela necessidade de compra ou pelas características preferidas dos “adquirentes,” a lei não contemplou a mesma classe trabalhadora do campo que a ULTAB representou.7 Apesar destas limitações, a “conversa” em promoção da lei enfatizou seu papel como instrumento de transformação social entre os segmentos mais pobres, sua relação, então, com o mundo do trabalhador. Na versão final da lei, toda esta justificativa foi reduzida para uma linha do Artigo 1o, dizendo que “[...] incentivará a exploração racional e econômica do solo e facilitará a aquisição da pequena propriedade rural […].” 8 Era assim uma medida de modernização capitalista do campo paulista, como Caio Prado Júnior bem reconheceu no início da discussão do projeto de lei.9 Em seu discurso apresentando a proposta desta legislação, o governador enfatizou a necessidade de modificar a estrutura agrária de São Paulo para “proporcionar ao homem do cmap condições de vida cada vez mais elevada, [...] fixando-o à terra, objetiva também a distribuição mais equitativa do solo.” Para os que “já se dedicam aos misteres do campo” a lei proposta ofereceria “as maiores facilidades para a aquisição de lotes, proporcionando-lhes, outrossim, condições que, com o decurso do tempo, elevarão cada vez mais o nível das nossas populações rurais.” Para Carvalho Pinto, a lei constituiria um “poderoso instrumento de equilíbrio social e propulsão de nossa economia.” 10 O sentido de estar uma lei para os trabalhadores rurais sem-terra foi reforçado pelos ensaios do secretário da agricultura José Bonifácio Coutinho Nogueira e dos técnicos responsável pela maioria de um boletim de 50 páginas produzido pela Secretaria da Agricultura para explicar o projeto de lei.11 Por exemplo, para Coutinho Nogueira, a revolução cubana não teria acontecido se a classe dominante tivesse mostrado interesse na reforma da estrutura fundiária. Ele também alimentou expectativas populares escrevendo que: Os planos de colonização destinam-se a dar oportunidade, anualmente, a 500 ou 1.000 novos agricultores, facilitando-se, assim, o acesso do homem do campo à propriedade rural e, paralelamente, contribuindo para a criação, em todo o Estado, de verdadeiros núcleos irradiadores da mais moderna técnica agronômica.

Na linha anterior da citada, o secretário identificou o “homem do campo” como um trabalhador rural em descrever a metodologia a ser empregado pela lei: “com os recursos arrecadadas através dos imposto territorial rural, o Govêrno adquirirá terras inaproveitadas e 7

“Lei no. 5.994, de 30 de dezembro de 1960. Estabelece normas de estimulo à exploração racional e econômica da propriedade rural e outras providências.” Departamento de Documentação e Informação, Secretaria Geral Parlamentar, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 8 Lei no. 5.994. 9 Prado Jr., Caio. “A reforma agrarian e o momento nacional,” Revista Brasiliense n. 29 (mai./jun., 1960) in Prado, A questão agrária no Brasil. 4a ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 127141. 10 Carvalho Pinto. “Mensagem no. 52,” p. 10-12. 11 Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo. Revisão agrária. São Paulo, 1960.

6 as revenderá a trabalhadores rurais que as desejam lavrar.” Assim, o apoio para aprovação do projeto da “revisão agrária” estava explicitamente movido por um projeto social de redistribuição terras para os camponeses no contexto da ameaça de rebelião.12 O debate na assembleia certamente forçou mudanças no discurso do governador e seus secretários. Mas tudo indica uma preocupação mínima com os mais necessitados. No meio do debate, o governador interveio em vários conflitos camponeses em apoio ao lado dos fazendeiros, o mais famoso sendo o da “arranca capim” em Santa Fé do Sul, que percorreu entre 1959 e 1961, justamente no período da gestação, composição e aplicação da Lei de Revisão Agrária. 13 Aliás, o próprio Coutinho Nogueira revelou a contradição quando foi entrevistado pelo Tolentino em 1989. Perguntado sobre sua tese que o objetivo da lei foi de implantar a Via farmer no Brasil – a construção de um sistema de agriculturas familiares da classe média igual dos Estados Unidos – o antigo secretário falou: “Mas era isso: de um imposto cobrado progressivo, tentar fazer aquela classe média, que quando se vai aos EUA se tem admiração.” Não podia falar bem do modelo estadunidense assim nesta época nacionalista, ele explicou. 14 Por isso, não nos aparece sensata examinar profundamente o debate em volta da legislação e sim analisar a lei em prática. Na Lei de Revisão Agrária temos uma ilustração do esforço do estado liberal interferir no mercado de terras e trabalho. O imposto territorial seria empregado para estimular a modernização da agricultura e da sociedade rural em sua relação de subordinação de um plano de industrialização e urbanização. A mobilização da terra, um fator básica de produção, teria impacto direito em outro fator básico, o trabalho. No primeiro lugar, crescimento na quantidade de terra sob produção significaria a geração de mais emprego para os trabalhadores rurais. No segundo lugar, a arrecadação do imposto aplicado na comprar de terra seria utilizado para assentar 500 a 1.000 famílias camponesas por ano, criando mais postos de trabalho. No terceiro lugar, o imposto territorial e a necessidade que as famílias comprassem os lotes, estimularia maiores economias e eficiências para intensificar a produção e assim gerar mais produtos, abastecendo a população urbana, e incentivando produção industrial para mecanizar mais a produção. Mais alimentos disponíveis no mercado, melhores preços para comida, mais demanda para a indústria, tudo isso ia ajudar em melhorar as condições de trabalho na cidade e no campo. Finalmente, a intervenção do estado nos mercados de terra e trabalho serviria para melhorar as condições de vida e harmonizar as relações sociais, desestimulando a radicalização da mobilização política camponesa tão presente no período. Como fala o agente provocateur inglês William Walker, a personagem representado por Marlon Brando no filme Queimada (1969), foi um “tidy package”(pacote nítida). A história desta lei não saiu tão “tidy” assim como planejado. Aliás, a história não se conta da perspectiva narrada pelo Estado, nem como ponto de partida, porque a inspiração toda para a ação do governo Carvalho Pinto foi a mobilização global do campesinato e outros grupos sociais subalternos. Na escala internacional, desde o período final da segunda guerra mundial, os centros capitalista e comunista ficaram preocupados com seu capacidade de controlar o campesinato na periferia e política agrárias vieram fazer parte fundamental dos planos de desenvolvimento, como reconheceu o Coutinho Nogueira na sua apresentação do projeto da lei.15 Depois a revolução cubana nos países politicamente subordinados aos EUA na América Latina, a implementação de reforma agrária foi a demanda principal da Aliança 12

A primeira citação de Coutinho Nogueira é de sua “Apresentação do Projeto de Lei no. 154,” na página 18 de Revisão agrária (1960) e as demais do préfacio na página 7 da mesma publicação, sob o título, “Conceitação do projeto de revisão agrária.” 13 Welch, Clifford Andrew. Jofrê Corrêa Netto, capitão camponês. São Paulo: Expressão Popular, 2010. 14 Tolentino, O farmer contra o Jeca, p. 54. 15 Coutinho Nogueira. “Apresentação do Projeto,” Revisão agrária, p. 17-18,

7 para o Progresso endossado pelos diplomatas em Punta del Este em 1961.16 Mas, seguir as diretrizes dos EUA não foi popular na época – a mobilização dos trabalhadores estava tingida a cor vermelha. No mesmo tempo, muitos donos do poder do Brasil continuaram a pensar que desenvolvimento não ia necessitar a redistribuição de bens ou poder. Essa tradição de modernização conservadora complicou qualquer projeto burguês no país. O governo Carvalho Pinto, que não escondeu sua identidade com a classe média em formação, se mostrou muito hábil nas negociações legislativas, mas a oposição de certos políticos, partidos e interesses organizados, como a Sociedade Rural Brasileira (associação principalmente de cafeicultores e pecuaristas), continuou feroz e eventualmente contribuiu para derrubar a lei e acabar com a carreira política do governador e seu sucessor preferido, Coutinho Nogueira.17 Em um ensaio de 1989, o historiador indiano mais identificado com os estudos subalternos, o Ranajit Guha, comentou esta situação como um paradoxo típico da condição pós-colonial: Since the paradoxes characteristic of the political culture of colonialism testify to the failure of the bourgeoisie to acknowledge itself the structural limitations of bourgeois dominance, it is hardly surprising that the liberal historical discourse too should be blind to those paradoxes.18

Vejamos a situação complicado do governo Carvalho Pinto – sua incapacidade de enxergar as “limitações estruturais da dominação da burguesia” – em utilizar os mecanismos do capital (incentivos do mercado e dos impostos) para fazer mudanças liberais através de processos graduais. Sabemos que a falha de tais medidas agitou os movimentos populares e contribuiu para animar o curso de eventos que trouxe o golpe militar com a plena apoio dos EUA, que apoiaram logo depois disso a reforma agrária implantada pela ditadura na forma do Estatuto da Terra, decreto de novembro de 1964.19 O que o Guha aponta também é nossa dificuldade, como intelectuais, de elaborar um discurso suficientemente critica para perceber as fontes reais da história. Cego pela crença na modernidade, no ocidentalismo, no enredo de progresso, o historiador se perca no caminho da procura da verdadeira voz do subalterno. Apesar do abandono do programa da “revisão agrária” pelo estado, para os camponeses a história da lei não acabou em 1961. especialmente não tem relevância esta história para uma porção das 176 famílias assentadas e o movimento camponês, que continua a pleitear “reforma agrária já” até os dias de hoje na sombra criada pela equipe paulista de Coutinho Nogueira na composição do Estatuto da Terra.20 Do movimento camponês, o interlocutor mais expressivo na representação da experiência dos trabalhadores frente a “revisão agrária” foi o PCB. Mas, as reclamações de Silva, já relatados, poderiam deixar o historiador confuso, pensando que um grupo comunista teria de fato tomado uma posição contra a lei. Pelo contrário, seus parlamentares na 16

Welch, LASA paper 2012 Tolentino. O farmer contra o Jeca, p. 97-125. 18 Guha, Ranajit. Dominance without Hegemony and Its Historiography. Subaltern Studies: Writings on South Asian History and Society. New Delhi. n. 6 (1989), p. 216. 19 Welch, Clifford Andrew. “Rivalidade e unificação: mobilizando os trabalhadores rurais em São Paullo na véspera do golpe de 1964,” Projeto História. São Paulo, v. 29, t. 2, Julho/dezembro, 2004, p. 363-390. 20 Tolentino. O farmer contra o Jeca, p. 127-136; Bombardi, Larissa Mies. O Bairro Reforma Agrária e o processo de territorialização camponesa. São Paulo: Annablume, 2004, p. 111-196 e Bruno, Regina. “O Estatuto da Terra: entre a conciliação e o confronto,” Estudos sociedade e agricultura 5 (Nov., 1995), p. 5-31 17

8 Assembleia, tais como Luciano Lepera de Ribeirão Preto, eleito pela chapa do Partido Trabalhista Brasileiro. Ele tentou alterar o projeto de lei, mas sem muito efeito, ele ainda votou a favor da medida, porque o partidão neste período buscou uma aliança com a “burguesia nacionalista” que também buscou construir capitalismo no Brasil. (O partidão apoiou capitalismo como etapa histórica necessária a se passar antes de chegar no socialismo.) Fora desta representação política, é o jornal Terra Livre da ULTAB que resta como a maior fonte da “fala sobre” o campesinato paulista do período.21 Na representação da relação entre os camponeses e a lei no jornal, “os homens do campo sem terra em nada serão beneficiados, pois as condições de pagamento, prazos e métodos de produção lhes impedem qualquer beneficio da lei.”22 Nota se as detalhes da crítica, são sobre as condições de compra e de trabalho. Como Silva reclamou no momento do anuncio do projeto de lei, seria difícil para os sem-terra compra as terras. Mas a proposta, neste momento político, não foi a demanda para dar de graça a terra para o campesinato. Era de incentivar o Estado a comprar as terras identificadas para reforma agrária em valores equivalentes do valor fiscal utilizado para calcular impostos (sempre menor que o valor do mercado), de passar esta poupança na compra para os camponeses na forma de prestações anuais mais baixas e de isentar o pagamento de impostos por eles, especialmente no primeiro ano.23 Sobre as condições de trabalho, a lei indicou um nível de controle sobre as culturas e técnicas de produção que acabou causando muitas famílias a desistir “com medo de não poderem cumprir tantos requisitos e acabar perdendo a terra.”24 A mensagem do partido, então, foi de criar um sistema de maior liberdade para os camponeses produzir do jeito deles. Desafiou as autoridades a participar no congresso camponês planejado para Belo Horizonte em novembro de 1961, “para sentar a mesa conosco e ouvir o que nos entendemos de reforma agrária” e não ver a Revisão Agrária como modelo, sendo promovido na contradição de um governador que “manda prender o homem do campo” na mesma hora que pretendia o dar terras.25 Apesar da narrativa militante a favor do camponês, não podemos tirar nosso olhar dos interesses particulares do PCB e a distância entre sua realidade como partido clandestino e uma convivência material com os camponeses. Temos então histórias escritas pelo governo, pelos ruralistas, pelos partidos, cada uma com sua perspectiva legitima, seus pontos de convergência e divergência, seus momentos de consenso e conflito. Mas esta história não será escrita sem a voz do camponês; tão frequentemente esquecido, em sua experiência encontraremos a narrativa complementar, sempre relevante senão contra-hegemônico. 26 Felizmente, além da Terra Livre, existem histórias orais com alguns assentados das duas experiências iniciadas antes de que o congresso nacional extinguiu o dever dos estados arrecadar impostos territoriais e efetivamente inviabilizou a expansão do projeto da lei paulista.27 Ainda para elaborar.... Conclusão Ainda para elaborar... 21

Spivak, Gayatri Chakravorty. Can the Subaltern Speak? In: Nelson, C. & Gossberg, L. (orgs). Marxism and the Intepretation of Culture. Basingstroke, Ing: Macmillan Education, 1988, p. 271313. 22 “Revisão Agrária de Carvalho Pinto é contra os camponêses,” Terra Livre, An.12, no.95, p. 2 (jan., 1961). 23 “Emendas para a Revisão Agrária” Terra Livre. An.12, no. 87 (mai., 1960), Caderno 2, p. 3. 24 Tolentino, Célia Aparecida Ferreira. “Os fios da história de um assentamento ‘desaparecido’.” Cadernos AEL (Campinas, SP). n.7 (1997), p. 107. 25 “Reforma agrarian não é ‘revisão’” Terra Livre. An.13, no. 103 (set, 1961), p. 2. 26 Rodríguez. (org.) The Latin American Subaltern Studies Reader. 27 Os estudos de caso são, Tolentino. “Os fios da história de um assentamento ‘desaparecido’,” 105-129 e Bombardi. O Bairro Reforma Agrária.

9 Nossa identidade como historiadores pode indicar certa simpatia com uma perspectiva ou outra, mas seria arrogância perigosa julgar nossos irmãos do passado. Pesquisadores, temos o dever de interferir no mundo político como intelectuais, “alguém que engaja numa luta política sua competência e sua autonomia especificas e os valores associados com sua profissão, como os valores de verdade e de desinteresse,” não a confundir como um engajamento desinteressado.28 Quando abordamos a questão agrária, estamos engajando uma luta política no cerne da sociedade brasileira. Nosso compromisso com a história da questão exigi que tomamos com sinceridade a narração a partir dos grupos e pessoas subalternos.

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Bourdieu, Pierre. Contrafogos 2. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001, p. 37.

10 Sobre o autor Cliff Welch nasceu em São Francisco, Califórnia em 1956. Atualmente é professor da História do Brasil Contemporâneo da UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo e pesquisador CNPq. Durante anos, trabalhou como vaqueiro, estivador, marinheiro, carpinteiro e jornalista. Em 1979 ganhou bacharelado na University of Califórnia, Santa Cruz; em 1987, completou Mestrado em História da University de Maryland, College Park e, em 1990, realizou Doutorado (Ph.D.) em História da Duke University. Durante 20 anos ministrou aulas de história e estudos de América Latina nos programas de graduação e pós-graduação da Grand Valley State University em Michigan, onde também era fundador e diretor do Programa de Estudos de América Latina. De 2003 a 2005, foi PVE - Professor Visitante Estrangeiro da CAPES nos programas de pós-graduação de Ciências Sociais e História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e de Geografia da UNESP -Universidade Estadual Paulista em Presidente Prudente e da Universidade de São Paulo. É autor dos livros A semente foi plantada: As raizes paulistas do movimento sindical camponês no Brasil (2010), Jôfre Corrêa Netto, Capitão camponês (2010), co-organizador de Camponeses brasileiros: leituras e interpretações clássicas (2009) e co-autor de Lutas camponesas no interior paulista: a memória de Irineu Luís de Moraes (1992), entre numerosos artigos, resenhas, coletâneas e documentários.

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