TERRA, FAMÍLIA E AGRICULTURA: UM ESTUDO SOBRE A TRANSIÇÃO AO CAPITALISMO NO JAPÃO (XVII-XIX

June 3, 2017 | Autor: A. Pozzetti de Abreu | Categoria: Japanese History, Japanese economy
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA

ANNA LIGIA POZZETTI DE ABREU

TERRA, FAMÍLIA E AGRICULTURA: UM ESTUDO SOBRE A TRANSIÇÃO AO CAPITALISMO NO JAPÃO (XVII-XIX)

Campinas 2016

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA

ANNA LIGIA POZZETTI DE ABREU

TERRA, FAMÍLIA E AGRICULTURA: UM ESTUDO SOBRE A TRANSIÇÃO AO CAPITALISMO NO JAPÃO (XVII-XIX)

Dissertação

de

Mestrado

apresentada

ao

Programa

de

Pós-Graduação

em

Desenvolvimento Econômico, área de concentração História Econômica da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Desenvolvimento Econômico, área de concentração História Econômica.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA ANNA LÍGIA POZZETTI DE ABREU E ORIENTADA

PELA

PROFA.

DRA.

MILENA

FERNANDES DE OLIVEIRA.

Campinas 2016

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA

ANNA LIGIA POZZETTI DE ABREU

TERRA, FAMÍLIA E AGRICULTURA: UM ESTUDO SOBRE A TRANSIÇÃO AO CAPITALISMO NO JAPÃO (XVII-XIX)

DEFENDIDA EM 25/02/2016 COMISSÃO JULGADORA

Campinas 2016

À minha família

AGRADECIMENTOS À professora e orientadora Milena Fernandes Oliveria, que desde o início me deixou trilhar pelos caminhos que escolhi, sempre me puxando de volta para a realidade nos meus inúmeros devaneios sobre o tema. Agradeço pela disponibilidade em me atender sempre que precisei, lendo e relendo meu trabalho e me ajudando a compreender um pouco mais sobre a complexidade histórica, econômica e social do Japão. Aos professores Ligia Maria Osório Silva, Rogério Forastieri, Eduardo Mariutti e Sedi Hirano, por aceitarem gentilmente os convites para o exame de qualificação e defesa do mestrado. Aos funcionários e professores do Instituto de Economia, pelos ensinamentos e auxílios em todos esses nove anos de UNICAMP. Aos professores de história econômica da Universidade de Waseda, Kawaguchi Hiroshi e Fujii Nobuyuki e ao professor Oshima Mario da Universidade da Cidade de Osaka pelas valiosas conversas e indicações de bibliografia. Aos amigos bibliotecários, por sempre me salvarem e deixarem a biblioteca mais alegre, mesmo naqueles dias mais difíceis: Alexandra Andrade, Clayton Moreira, Kelly Duarte e Mirian Clavico. Meu agradecimento especial à Grace Nakata da Biblioteca da Fundação Japão, pela atenção inestimável, por todas as renovações e pelo apoio na compra de livros. Aos amigos e parceiros de aulas e de risadas, Theo Martins Lubliner e Vinícius Figueiredo que me mostraram que é possível seguir de bem com a vida mesmo nas aulas em que não entendemos nada. Aos amigos de longa data da Unicamp: Estela Carossini, Franco Villalta, Gheisa García, Gian Romano, Jéssica Cornachioni Felisberto, Laís Barros Glaser, Marília Bassetti, Maurício Espósito, Murilo Medeiros, Nicholas Blikstad e Tatiana Ferreira Henriques. Vocês fizeram toda diferença no dia-a-dia corrido e nos momentos de alegria! À minha mãe Valderice e ao meu pai Moacir, sou profundamente grata pelo apoio e afeto, pelas orações nos momentos de desespero e por não terem poupado esforços para me proporcionar uma educação acadêmica sólida e por terem me incentivado a continuar os estudos de japonês. Às minhas irmãs Anna Maria e Anna Laura (minha assídua revisora), pela amizade e companheirismo e por estarem sempre presentes, mesmo estando longe. Ao meu companheiro Rodrigo, obrigada pela paciência, pelo carinho e também pelo inexplicável e constante bom-humor.

E, por fim, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de estudos concedida para a realização do mestrado.

RESUMO A presente dissertação tem como objetivo estudar um dos elementos da transição para o capitalismo no Japão: as transformações da estrutura agrária. Para isso foi adotada uma periodização de longa duração, onde são detalhados o processo de estabelecimento e de transformação na propriedade da terra e na agricultura entre os séculos XVII e XIX, abarcando assim, desde o estabelecimento do Shogunato Tokugawa, até a Restauração Meiji. A transformação da noção da terra como fonte de subsistência para uma que gera lucro e poder é expressa na desapropriação dos camponeses mais pobres que se acelera a partir da segunda metade do período analisado. Essas mudanças não seriam realizadas sem distúrbios agrários e as numerosas revoltas camponesas que marcaram o período expressaram os descontentamentos dos que foram prejudicados. Mesmo no contexto da modernização da Restauração Meiji, a reforma agrária não eliminou as relações de produção do período Tokugawa no campo, reorganizando e fortalecendo as relações entre proprietários e arrendatários, como elementos constitutivos de seu capitalismo e concentrando as propriedades nas mãos de uma classe de camponeses enriquecidos e mercadores poderosos. Além dessa permanência, pretende-se mostrar como ao longo de todo o período fica clara a presença do Estado, que estabelece uma sociedade rigidamente estratificada aproveitando-se do sistema familiar conhecido como sistema ie, cujas noções de honra, lealdade e obediência tornam-se úteis para o controle social e para a organização da produção. Dado o contexto internacional e a escassez de solo agricultável, o imperialismo também se mostrou como uma solução à questão da terra. Palavras-chave: Japão, Período Tokugawa, Era Meiji, Transição ao Capitalismo, Questão Agrária.

ABSTRACT The present dissertation aims to study one of the elements of transition to capitalism in Japan: the transformation of the agrarian structure. To understand this process, it was adopted a long-term periodization, which details the establishment and transformation in land ownership and agriculture between the seventeenth and nineteenth centuries, covering since the establishment of the Tokugawa Shogunate until the Meiji Restoration. The transformation of the land from an idea of source of survival to one that generates profit and power is expressed in the expropriation of poorer peasants that accelerates from the second half of the period. These changes would not be reached without agrarian disturbances and numerous peasant revolts that expressed the discontent of those who were harmed. Even in the context of modernization of the Meiji Restoration, the land reform did not eliminate the production relations of the Tokugawa period in the agriculture, reorganizing and strengthening the relations between owners and tenants, as an element of their capitalism and concentrating the properties in the hands of a class of enriched peasants and powerful merchants. Besides this persistence, it is intended to show how throughout the period, the State presence is clear, establishing a society rigidly stratified and taking advantage of the familiar system known as ie system, whose notions of honor, loyalty and obedience become useful for social control and also for production organization. Given the international context and the scarcity of arable land, imperialism was also a solution to the land question. Keywords: Japan, Tokugawa period, the Meiji Era, Transition to Capitalism, Land Question.

LISTA DE MAPAS Mapa 1: Utilização da terra no Japão..........................................................................................8 Mapa 2: Topografia do Japão......................................................................................................9 Mapa 3: Vulcões no Japão .......................................................................................................10 Mapa 4: Rios do Japão..............................................................................................................11 Mapa 5: Maiores cidades e rotas de transporte no século XVIII..............................................60 Mapa 6: O Império Colonial Japonês (1895-1945)................................................................107

LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Distribuição das Terras no Japão (1992)...................................................................7 Tabela 2: Principais causas dos protestos camponeses em Shindatsu, de 1700 à 1867.........................79 Tabela 3: Principais tipos de revoltas camponesas no Japão de 1601-1867...........................................82

Tabela 4: Expropriações dos camponeses na província de Okayama.......................................93 Tabela 5: Mulheres na Indústria Têxtil.....................................................................................95

LISTA DE FIGURAS Figura 1: O Sistema ie ..............................................................................................................13 Figura 2: Trabalho comunitário na transplantação das mudas de arroz....................................32 Figura 3: Ferramentas agrícolas do período Tokugawa............................................................47 Figura 4: Camponesas debulhando os grãos com a técnica koshi hashi, antes do uso do semba koki............................................................................................................................................48 Figura 5: Camponeses debulhando trigo com semba-koki.......................................................48 Figura 6: Taxação como porcentagem da renda da terra avaliada e a renda avaliada em koku (1)..............................................................................................................................................52 Figura 7: Taxação como porcentagem da renda da terra avaliada e a renda avaliada em koku (2)..............................................................................................................................................53

Sumário INTRODUÇÃO...............................................................................................................................1 1. TERRA E AGRICULTURA NO JAPÃO NA PRIMEIRA METADE DO PERÍODO TOKUGAWA (XVII-XVIII) ..........................................................................................................7 1.1

A geografia..........................................................................................................................7

1.2 O sistema ie ........................................................................................................................ 12 1.2.1 Taiko Kenchi, o sistema Kokudaka e a “caça às espadas” .......................................... 16 1.2.2 A aldeia e a produção do arroz................................................................................... 27 1.3 As revoltas camponesas da primeira metade do Período Tokugawa ............................... 34 2. AS TRANSFORMAÇÕES NA ESTRUTURA AGRÁRIA NA SEGUNDA METADE DO PERÍODO TOKUGAWA ........................................................................................................... 40 2.1 A geração do excedente: a questão técnica e o sistema tributário.................................... 44 2.2 O desenvolvimento dos mercados ..................................................................................... 56 2.3 Diferenciação social e a nova estrutura de classes no campo ........................................... 70 2.3.1 A aceleração das desapropriações: a formação dos arrendatários ........................... 72 2.3.2 As revoltas camponesas: expressão das transformações ........................................... 76 3.

A RESTAURAÇÃO MEIJI E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS TRANSFORMAÇÕES 84 3.1 A Era Meiji e as Transformações no campo ..................................................................... 86 3.2 As revoltas camponesas do final do século XIX............................................................ 100 3.3 A busca de novas terras agrícolas e o imperialismo japonês ........................................ 104

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 112 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 115



INTRODUÇÃO A partir da Restauração Meiji, ocorrida em 1868, quando uma parte da aristocracia samurai se levantou contra o governo e realizou a transição para o sistema imperial, inúmeras reformas no sentido da modernização do país foram estabelecidas a partir de cima e de forma autoritária. Em algumas décadas o Japão deixaria de ser uma sociedade agrária, tornando-se uma sociedade industrial e iniciando sua expansão colonial na Ásia. Dado o contexto internacional de expansão do imperialismo ocidental, a prioridade do governo imperial foi o de transformar o Japão em um estado forte e rico, capaz de renegociar a sua posição internacional e competir em pé de igualdade com os avançados países do Ocidente1. Para isso, era preciso que o país se reorganizasse internamente de forma a se industrializar e também se lançar na corrida imperialista. Como explica Gabriel Cohn (1978, p. 286), o desencadear de um processo de industrialização capitalista, (...) implica num conjunto de exigências econômicas e históricas, internas e externas à sociedade dada, suficientemente complexo para admitir uma ampla gama de formas de realizações, e permite advertir, desde logo, que a industrialização, longe de ser uma fase “natural” do desenvolvimento histórico de todas as nações, é um processo difícil, que só alcança êxito à custa de reorganizações de tensões muito intensas no interior de uma sociedade.

Nesse contexto, o Japão enfrentava diversas dificuldades de um país cujos líderes tinham o objetivo de iniciar sua industrialização e precisavam reorganizar suas tensões internas. E dada a escassez de capitais e a perda constante de recursos desde a assinatura dos “Tratados Infames” pelo Shogun, no contexto da abertura dos portos em 1854, bem como a consciência de que os empréstimos internacionais elevariam ainda mais a vulnerabilidade do país, a consolidação os objetivos governamentais teve uma única fonte inicial de financiamento: a agricultura 2. 1

Como explica Gabriel Cohn (1978, p. 284), “a crise do sistema de base não-industrial oferece o que se poderia chamar de ‘oportunidade’ histórica para a sua mudança. Para que isso resulte um movimento industrializante (isto é, capaz de introduzir uma ‘cunha’ suficientemente profunda no sistema para que a expansão industrial possa ganhar dinâmica própria), é necessária a presença de simultânea de um conjunto de condições históricas”. 2 Entre os fatores históricos essenciais para a criação das condições internas para a industrialização capitalista estão a existência de um forte excedente, exprimível em termos monetários, relativo ao necessário para a simples manutenção do sistema; em seguida, uma parcela significativa desse excedente, ao invés de distribuir-se por todo o conjunto social, deve concentrar-se em poder de um grupo minoritário; depois, esse grupo beneficiado pela concentração da renda derivada do excedente deve ser suficientemente diferenciado para incorporar elementos aptos e assumirem novas formas de comportamento econômico em relação àquelas vigentes no sistema original: a incorporarem e introduzirem inovações na atividade econômica; por último, esses novos agentes econômicos devem contar com um suprimento de mão de obra e de consumidores para novos produtos (o que já impõe limites à concentração da renda), assim como matéria-prima disponível (ou transportável) e fontes de energia.



Assim, o Estado Imperial estabeleceu novos parâmetros para o imposto sobre o uso da terra, modificando a forma como a arrecadação era feita em relação ao Período Tokugawa. No entanto, a estrutura de propriedade da terra e de organização da produção que foi adotada pelo governo advém de transformações que já estavam em movimento desde a segunda metade do século XVIII no Japão, ocorrendo a sua consolidação e legitimação na Era Meiji, de acordo com os interesses do governo e dos grandes proprietários de terras. Ou seja, dentro dos marcos de uma modernização conservadora3. Assim, para poder compreender essa transição do chamado “feudalismo japonês” para o capitalismo, escolheu-se tratar a questão da estrutura agrária. Julga-se que este elemento da transição, sendo uma ponte entre uma sociedade eminentemente rural e o capitalismo, apreende as transformações estruturais na propriedade, bem como das relações sociais, evidenciando os impulsos específicos para o surgimento do capitalismo e rápida industrialização 4. Tendo como ponto de partida, o texto da Ellen Wood (1998), chamado “As Origens Agrárias do Capitalismo”, afirma-se que também para o caso específico do Japão, o capitalismo tem suas origens no campo e não nas cidades. Segundo a autora, é preciso “não uma simples extensão ou expansão do escambo e da troca, mas uma transformação completa nas práticas e relações humanas mais fundamentais, uma ruptura nos antigos padrões de interação com a natureza na produção das necessidades vitais básicas” (WOOD, 1998, p. 13). WOOD (1998) complementa que a diferença essencial entre todas as sociedades précapitalistas e capitalista não está relacionado com o fato da produção ser rural ou urbana, mas sim com a forma como se estabelecem as relações de propriedade entre produtores e apropriadores. E para isso, compreender como se deu o processo de expropriação do 3

O conceito de modernização aqui utilizado é provenitente de Formação econômica do Brasil (1959) de Celso Furtado, em que, a modernização, ao invés de se superar os elementos arcaicos presentes na formação social brasileira, transformava-os em elementos constitutivos do capitalismo nacional, como elementos da acumulação capitalista. Essa noção advém da interpretação de Weber (1983), em que “a modernização é um processo de mobilização dos componentes sócio-economicos numa determinada direção, cujo resultado mais imediato pode ser visto pelo aumento da produtividade do trabalho e a ampliação das redes produtivas” (BRITO, RIBEIRO, 2003). 4 Tomamos aqui o termo industrialização, como um processo. Nas palavras de Gabriel Cohn (1978, p. 283), “é um conjunto de mudanças, dotada de uma certa continuidade e sentido. Seu sentido é dado pela transformação global de um sistema econômico-social de base não-industrial (...). É por operar num sistema que a industrialização implica em um conjunto articulado de mudanças, e é por essa via que ela se distingue da simples criação de indústrias: pode ocorrer, num momento dado, em uma economia de base não-industrial, um “surto industrial” sem continuidade, por resumir-se no surgimento de unidades manufatureiras isoladas do contexto econômico-social global e condendadas (...) a desempenharem um papel marginal, nas franjas do sistema. Já a instauração de um processo industrializante tem raízes mais profundas, que por vezes nem mesmo se traduzem imediatamente na criação de indústrias, mas que configuram um movimento que, uma vez iniciado é irreversível. Desde que articuladas as forças econômicas e sociais conducentes à industrialização, e desencadeado (o próprio termo é ilustrativo) o processo, a alternativa não é mais a volta ao estado anterior, mas a estagnação. Vale dizer: a industrialização só se concebe numa situação de crise do sistema que lhe dá origem, e se define como uma solução possível para essa crise, através da rearticulação do sistema.”



camponês no caso japonês e a estruturação da propriedade moderna é de fundamental importância para a compreensão da transição ao capitalismo no Japão. Com esse objetivo, a dissertação foi estruturada a partir de uma periodização adotada por autores como VLASTOS (1986), FUKUTAKE (1991), BIX (1986), SMITH (1959, 1988) e TAKAHASHI (1955, 1953, 1976), que indicam dois períodos na Era Tokugawa, que evidenciam as transformações no campo e, consequentemente na economia e na sociedade. Seguindo a análise de Dobb (1946), também para o caso japonês, guardadas as suas especificidades, há transformações estruturais mais lentas e quase imperceptíveis ao longo de séculos, em que novos mecanismos alteram a estrutura produtiva e social quase estática, seguido de momentos de transformações mais aceleradas, onde o comércio precipita essas mudanças. E esses dois períodos serão tratados nos dois primeiros capítulos. Optou-se por não utilizar o termo feudalismo para o caso japonês. Apesar de se ter uma periodização similar e com transformações que podem ser comparadas, o termo carrega aspectos ocidentais que pretendemos eliminar. Para isso, será utilizado o termo “Período Tokugawa” ou “Regime senhorial e shogunal” para se referir ao intervalo de tempo que precede a Era Meiji, em que o Estado Imperial, através de um processo político, econômico e social, conduziu o Japão à modernização do Estado e ao processo de industrialização, sendo assim, considerado como sendo o ponto de partida da moderna sociedade japonesa. O primeiro capítulo trata do período das lentas transformações, com a estruturação do sistema de agrimensura e registro de terras do Kenchi que levou décadas para ser finalizada em todos os domínios do Shogunato Tokugawa. Estabeleceu-se, através desse sistema, o pagamento das taxações em arroz pelo uso da terra, com organização social nas aldeias que garantissem o pagamento coletivo desses impostos. Será adotada a periodização que vai do final do século XVI à meados do século XVIII, de acordo com a periodização dos autores listados acima. Durante esse período, definido no texto como a “primeira metade do período Tokugawa”, tem-se a predominância das pequenas unidades produtivas familiares com forte noção de cooperação e dependência dentro das aldeias. É neste período também que se estabelece o sistema ie, a base da sociedade rural japonesa que incutiu noções de respeito filial, lealdade e obediência dentro da família, com forte apelo moral confuciano de obrigação e papeis na sociedade. Sendo o ie, a conjunção da família, dos ancestrais e da terra onde os cultivos eram feitos, a necessidade de uma família se manter como família camponesa e de continuar cultivando esses campos quase sagrados funcionou como meio do Estado de atar o



camponês à terra, cumprindo o seu papel de produtor rural de forma submissa à ordem shogunal. Essa submissão à ordem estabelecida é expressa na forma como a maioria das revoltas camponesas foram realizadas neste período. Apesar de ter sido período de intensa mobilização camponesa, muitos autores consideram esse período pacífico, pela forma como os protestos eram organizados (VLASTOS, 1986; BIX, 1986). As reivindicações eram feitas através de petições, uma forma de expressão de descontentamento que era legitimada pelo Estado, que cobravam do Estado uma atitude benevolente em momentos de dificuldade no pagamento dos tributos em arroz. Reivindicando a noção de papeis, o objetivo dos camponeses era poder continuar como um camponês honrado, sem perder a sua propriedade por inadimplência, enquanto era papel do Estado, garantir que isso acontecesse. Enquanto as petições que reclamavam das elevadas taxações eram proibidas e seus elaboradores severamente punidos, o Estado agiu de forma a aliviar os impostos em momentos de adversidade climática ou quando uma aldeia estava visivelmente sofrendo com as pesadas taxações, com provas concretas da fome e inanição. O segundo capítulo analisa o período que vai de meados do século XVIII à meados de XIX, tendo como ponto final a Restauração Meiji. Este período é marcado pelas transformações mais aceleradas, onde o comércio precipita as transformações que iam acontecendo no campo, juntamente com a expansão das cidades-castelo, bem como dos grandes centros urbanos, como Edo, Osaka e Kyoto. Nesta segunda fase, o campo se reorganiza para conseguir pagar os tributos em arroz e produzir outras culturas ou manufaturas para colocar à venda nos mercados locais ou para entregar aos grandes mercadores. Estes últimos também se inserem na estrutura do campo na figura de financiador de empreendimentos de expansão da produção, bem como de fonte de empréstimo para o camponês em momentos de dificuldade de pagamento dos impostos. Esta mesma posição é ocupada pelas famílias tradicionais e mais ricas das aldeias que vão concentrando cada vez mais terras em um processo de desapropriação do camponês mais pobre que se acelera nesse período, transformando-o em arrendatário. Uma das características da peculiaridade do caso japonês está no fato de que as desapropriações não expulsaram o camponês do campo e nem gerou grandes latifúndios monocultores. Dada a estrutura do ie, a terra, fonte de conexão com os ancestrais, tinha uma grande representatividade para a família camponesa e, dessa forma, abandonar a terra seria a prova concreta do fracasso, o que fez com que os camponeses se mantivessem nos lotes cultivados, agora na condição de arrendatários.



Outro ponto que cabe ser ressaltado nesse capítulo, é que as políticas do próprio governo Tokugawa contribuiram para a desagregação do seu sistema shogunal. Com a obrigatoriedade da saída do samurai do campo e a ordem dada aos daimyo de passarem longos períodos em Edo (sankin kotai), foi necessário o desenvolvimento de uma rede de comunicação, transporte e comércio para abastecer as cidades-castelo e os grandes centros urbanos que se expandiram nesse período. Dada essa situação, a classe mercadora que ficava abaixo dos camponeses na pirâmide social começou a expandir sua riqueza, enquanto a elite política e a classe samurai ia se endividando e deteriorando as contas públicas. Em um primeiro momento, a conexão dessa expansão com a produção agrícola do campo é limitada às regiões próximas das cidades, onde os mercadores autorizados pelo governo faziam o transporte das mercadorias. No entanto, a partir de meados do século XVIII, tornou-se cada vez mais fácil ao camponês colocar qualquer excedente no mercado e a expansão da classe mercadora que foi para o interior auxiliou na produção voltada ao comércio. Apesar desse impulso, o comércio deve ser entendido não como a causa da expansão da produção de um excedente no campo, mas como uma força que precipita transformações que já estavam em movimento nesse período, quais sejam: as melhorias nos métodos e técnicas de cultivo, as atividades paralelas à agricultura e ao cultivo do arroz e a expansão das desapropriações dos pequenos camponeses transformados em arrendatários. Acredita-se que a paz estabelecida pelo Shogunato Tokugawa, bem como a estrutura de pequeníssimas propriedades contribuiu para a expansão da produção no campo e não o comércio. A expressão dessas transformações é evidenciada pela mudança nos objetivos e nas formas das revoltas camponesas. Dada a diferenciação que se expande no campo, com maior distanciamento entre o pequeno produtor e os camponeses mais ricos e com o novo papel do mercador que se torna detentor de direitos de uso e posse da terra e importante credor dos camponeses que não conseguiam pagar todo valor dos impostos e sobreviver. A desintegração das antigas noções de solidariedade e dependência que existiam na aldeia revolta os pequenos camponeses que passam a usar a violência contra a camada superior que está no campo. Dada a impossibilidade do Estado em controlar o processo de desapropriação, as petições enviadas à este perdia o sentido e o embate direto no campo tomou a forma de destruição de casas e propriedades em busca de justiça. Por fim, o terceiro capítulo trata da institucionalização dessas transformações que ocorreram na estrutura da propriedade da terra pelo Governo Meiji. A relação entre o proprietário da terra e os arrendatários, despossuídos de terra e de direitos é coroada pelo



governo imperial que se alia ao grande proprietário para garantir o financiamento dos projetos de modernização. As taxações sobre o campo eram a única fonte segura de financiamento do Governo e a sua reorganização era urgente. Nos primeiros anos do novo governo foi feita a Reforma do Imposto Territorial que definiu novos parâmetros de avaliação da terra e do montante de imposto a ser pago em dinheiro. A terra passa a ser efetivamente uma propriedade e sua alienação torna-se legalizada. No entanto, nenhuma política de redistribuição de terras ou de regulação da relação proprietário-arrendatário foi realizada, mantendo o pequeno camponês em situação de dificuldade, ampliando ainda mais o processo de desapropriação. Em meio à inúmeras mudanças o ie é mantido pelo Governo, como sendo a base da sociedade camponesa e também daquela que vai para cidade. Apesar da introdução das noções individualistas do ocidente no que tange à questão da propriedade, o Estado utilizou-se das noções familiares baseadas no ie para organizar a educação e o discurso nacionalista que seria fundamental às empreitadas imperialistas e às diversas guerras em que o Japão se envolveu. Também neste período as revoltas camponesas conseguiram expressar as transformações que a Reforma do Imposto Territorial trouxe para a vida campesina. No entanto, o autoritarismo do Estado Imperial, e a articulação desse governo com os grandes proprietários de terras rapidamente desarticulou as forças de questionamento dos levantes, sendo um período marcado por um número relativamente inferior de revoltas. Dada essa evolução da estrutura agrária no Japão em direção ao capitalismo, observou-se que a compreensão das relações de propriedade do período Meiji com as grandes ondas de desapropriação só poderiam ser feitas dentro de uma noção de longa duração, em que o que se estabelece no capitalismo teve raízes históricas em um período anterior, onde as forças de transformação já estavam colocadas em movimento. Para isso, julgou-se necessário retornar ao período Tokugawa para que ficasse claro como a propriedade da terra foi se estruturando. Por essa razão estabeleceu-se esse recorte temporal, que abrange 3 séculos de transformações lentas e aceleradas na direção da constituição do capitalismo japonês ao final do século XIX.



1. TERRA E AGRICULTURA NO JAPÃO NA PRIMEIRA METADE DO PERÍODO TOKUGAWA (XVII-XVIII)

1.1

A geografia O estudo da questão da terra e da agricultura japonesa tem como ponto de partida a

compreensão da sua peculiar geografia, pois norteia a questão da disponibilidade de água e terras agricultáveis no país. O Japão é formado por uma cadeia de ilhas, com 4 principais e mais de 6 mil que se espalham entre a Rússia ao norte e Taiwan mais ao sul. Como indicado na Tabela 1 abaixo, de acordo com a Agência Nacional de Terras do país, 66,7% das terras do país são florestas e 13.9% são campos destinados à agricultura. Tabela 1: Distribuição das Terras no Japão (1992) Tipo de uso da terra

Área (1,000km2)

Percentagem

Agricultura

52.6

13.9

Florestas

252.1

66.7

Deserto

2.6

0.7

Águas

13.2

3.5

Estradas

11.7

3.1

Residencial

16.5

4.4

Outros

29.1

7.7

Total

377.8

100.0

Fonte: Agência Nacional de Terras do Japão

No mapa 1 abaixo, a região em vermelho é onde há duplo cultivo, com produção dominante de arroz coexistindo com o cultivo de trigo e cevada, além de outras culturas secas. Na parte em bege do mapa, observa-se apenas o cultivo de arroz. Já nas pequenas áreas em amarelo, tem-se o cultivo do trigo, cevada e aveia. A parte em verde, que é basicamente todo o resto do território, é formada por florestas, as quais dominam o país, como já indicado na tabela acima.



Mapa 1: Utilização da terra no Japão

Fonte: Map Collection of University of Texas Library Disponivel em http://www.lib.utexas.edu/maps/japan.html

O mapa 2 abaixo mostra o relevo japonês, destacando as suas áreas agricultáveis em verde. Como pode-se observar, toda parte central das principais ilhas japonesas é formada por dobramentos modernos com intensa atividade vulcânica.



Mapa 2: Topografia do Japão

Fonte:

Map

Collection

of

University

of

Texas

Library

Disponivel

em

http://www.lib.utexas.edu/maps/japan.html

O Mapa 3 abaixo deixa clara a imensa quantidade de vulcões que existem no país. Atualmente, a Agência Meteorológica Japonesa considera que existem 110 vulcões ativos nas ilhas japonesas. E, por ser vulcânico, o país conta com um solo bastante fértil, mas que é pobre em recursos naturais, minerais e energéticos. Além disso, a quantidade de terremotos no país é muito grande. A Agência Meteorológica Japonesa registrou só em Janeiro de 2015, 153 terremotos com mais de 1 grau na escala Richter.

10

Mapa 3: Vulcões no Japão

Fonte: Japan Meteorological Agency (www.data.jma.go.jp)

Com relação à água, o país possui uma rica bacia hidrográfica, com rios relativamente curtos que correm das montanhas para os vales e, por isso, redes de canais e controle do uso da água foram necessários desde tempos remotos no país. Investimentos em projetos de irrigação e canais que se aceleraram no século XVI e XVII foram de fundamental importância para o aumento da produtividade do cultivo do arroz no Japão.

11

Mapa 4: Rios do Japão

Fonte: Maps of World (http://www.mapsofworld.com/japan/river-map.html)

A partir dessa breve compreensão da limitada quantidade de terra agricultável no Japão e da necessidade dos projetos de canalização e irrigação necessários aos cultivos, dada a característica do solo acidentado, faz-se necessário compreender como essa terra foi organizada e o contexto no qual essa organização foi estabelecida a partir do século XVII. Acredita-se que o ponto de partida seja a compreensão do sistema ie que permeia toda

12

sociedade japonesa desde antes do período Tokugawa e cujo conceito continua existindo até hoje.

1.2 O sistema ie A importância de iniciar o estudo da questão agrária no Japão pela compreensão do sistema ie está relacionado ao fato de que esse sistema, sendo a base da organização da sociedade camponesa, perpassa todo o período analisado, adaptando-se às transformações que foram ocorrendo na economia e na política. E em cada momento o Estado utilizou-se do mesmo para gerar uma relativa coesão social, aproveitando-se das noções de cooperação, solidariedade, dependência e obediência que norteiam as suas relações internas, refletindo essas ideias na relação do camponês com o governo. Ao final do período Sengoku (1467-1603) e início do período Tokugawa (1603-1867), os camponeses passaram a adotar nomes de famílias e a definir com mais precisão os seus lotes de terra e suas casas (SAKATA, 2011). E este processo pode ser considerado como a origem do sistema ie, pois apesar de ser comumente aceito que o ie, nas aldeias camponesas do Japão, seja a definição da família, muitos autores defendem que o ie não pode simplesmente ser entendido como família, incluindo também as propriedades, os ancestrais e os que ainda estão por vir (BITO,1991; SAKATA, 2011; NAKANE, 1991; SHIMIZU, 1987; FUKUTAKE, 1982). O ie era a unidade social e econômica que formava a base da estrutura produtiva japonesa e expressava mais do que simples membros de uma família. Segundo Fukutake esse ie (1982, p. 28), É um conceito que transcende a ideia de “família” como um grupo de indivíduos que atualmente fazem parte dela. O mesmo foi concebido incluindo a casa e a propriedade, os recursos para manter a ocupação familiar e os túmulos dos ancestrais, como uma unidade advinda de um prolongamento de um passado distante para um presente e ocupando uma certa posição no sistemas de status das aldeias ou das cidades. O ie, nesse sentido, era muito mais importante do que os indivíduos que eram, em algum momento, os seus membros vivos, e era visto como natural que as personalidades individuais dos membros das famílias fossem ignorados ou sacrificados pelo bem do todo.

A imagem abaixo expressa a constituição de um ie. Como pode ser observado, o ie, em termos físicos, conta com um lote de terra onde se localiza a casa e os lotes nos quais estão os arrozais e os cultivos de subsistência, bem como os túmulos de seus ancestrais. Ou

13

seja, mais do que uma família, pode-se considerar o ie como um grupo corporativo com ampla variedade de funções, desde econômicas e políticas a domésticas e religiosas dos membros atuais, das quais era necessário fazer parte para ter qualquer tipo de posição ou participação social dentro da aldeia (SHIMIZU, 1987, p. 85). Imagem 1: O Sistema ie Casa, propriedades, recursos da ocupação Ancestrais

Mortos recentemente ---Linha da morte--Yome (Esposa)

Yoshi Aposentados

Entra →

(Esposo) Entra →

Chefe Filhas se

Filhos Sucessor

casam

mais novos

←Saem

Filhos

←Saem

---Linha do nascimento--Descendentes Fonte: elaboração própria a partir de Hendry (1987)

Assim, dado que o ie era a base da organização social e produtiva, para que um membro da aldeia pudesse participar da produção e ter o direito de enterrar seus mortos, era preciso que ele fizesse parte de um determinado ie (SHIMIZU, 1987). The village consists of territorial groupings of ie, and people take part in village politics as representatives of ie. It is impossible even to imagine an individual who does not belong to an ie because of the extreme difficulties that such an individual would have in social like. In brief, the social attributes of an individual are defined by reference to the ie and not vice versa (SHIMIZU, 1987, p. 86).

14

Em qualquer extrato social o ie constituía a unidade base da sociedade japonesa e representava “rather than a natural kinship grouping (…), an artificial functional entity that engaged in a familiar enterprise or was entitled to a familial source of income” (BITO, 1991, p. 373). Essa noção de estrutura corporativa é reforçada por Nakane (1991, p. 217) que explica que um ie não era necessariamente constituído apenas por membros com parentesco direto ao chefe da família. Quando uma família nuclear não tinha filhos para perpetuar o seu ie, ocorriam adoções, principalmente de um casal, e o mesmo poderia ocorrer caso o chefe da família acreditasse que o seus filhos não teriam condições de perpetuar o ie e se engajar em suas atividades de forma adequada 5 . Diante dessa peculiaridade, na visão da autora, “o ie poderia ser melhor classificado como uma companhia em funcionamento do que como família” (NAKANE, 1991, p. 217). E essa noção de continuidade é explicada em Hendry (1987, p. 24), Normalmente havia uma ocupação associada ao ie e os membros deveriam realizar as contribuições conforme podiam, compartilhando os benefícios sem remuneração individual. Era esperado que seus membros que mantivessem o status do ie dentro da comunidade como um todo e o indivíduo que ameaçava trazer vergonha para a família poderia ser cortado como membro. A continuidade da entidade era mais importante do que qualquer membro individual e os membros individuais deveriam encontrar sua razão de ser na manutenção e continuidade do ie.

Os membros individuais de uma casa particular, que não precisam necessariamente morar nela, ocupam o papel dos membros vivos de uma determinada ie. Fazia parte da obrigação dos membros vivos lembrarem-se dos seus ancestrais a qualquer momento e de assegurar que a casa continue após a sua morte6 . Ou seja, a ie mais do que uma relação familiar entre pai, mãe e filhos, representava uma corporação em que a perpetuação do nome da família era mais importante do que a origem e a individualidade de quem realizaria esta tarefa. Mesmo aqueles que não conseguiam constituir o seu próprio ie, dado o limitado tamanho das famílias nucleares ou limitados recursos, tinham formas de se encaixarem no 5

Segundo Nakane (1991), principalmente em famílias de mercadores, quando o filho não tinha aptidão para levar a frente os negócios da família, um trabalhador dedicado e que estava há muito tempo com a família poderia ser escolhido como sucessor. 6 Para Shimizu (1987), o ie tem um significado simbólico na forma de uma entidade transcendental. Cada ie tem a sua origem e história definida e a sua continuidade é a primeira obrigação de seus membros vivos. Caso todos os membros morram e uma ie de um parente continuar com os cultos religiosos a esses mortos, a ie continuaria existindo, mesmo sem ter nenhum membro vivo.

15

sistema familiar como empregados, servos ou até mesmo filhos adotivos de famílias mais ricas. A estrutura da casa e da família permitiu que o camponês tivesse um apoio maior para sua sobrevivência dada a possibilidade de contar com os outros membros de sua ie, fortalecendo os laços cooperativos e garantindo a perpetuação da família. Assim, observa-se que era preciso de fato fazer parte de um ie para ser possível viver na aldeia e até mesmo sobreviver no campo. Esse sistema foi capaz de garantir certa estabilidade à organização social da aldeia e também ao sistema produtivo, incutindo de dentro da família a noção de papéis e de responsabilidade filial definida em termos de líderes e seguidores. A começar de dentro da própria família, as relações eram discriminatórias e estratificadas, com claros níveis de prioridade na sucessão, além de que essa noção de estrato superior e inferior extrapolava para a relação entre as ie 7 . Ao longo de todo o período analisado neste trabalho, apesar das transformações econômicas e sociais, o ie manteve-se inalterado. De fato, notadamente, a partir da segunda metade do período Tokugawa, as relações entre os ie de diferentes estratos são alteradas com a mudança das noções de cooperação impulsionada pela penetração mais significativa do comércio nas aldeias. No entanto, as ideais que norteavam o ie e o seu papel na sociedade não foi alterado, reforçando a importância desse sistema familiar na sobrevivência e na organização da produção. Dadas essas características do sistema ie, o governo Tokugawa conseguiu habilmente utilizar-se desse sistema para garantir a produção e o pagamento dos impostos, perpetuando os valores de lealdade e obediência que seriam muito úteis para o controle social. O mesmo seria feito pelo Governo Meiji, que em meio às diversas mudanças no sentido da modernização, manteve a família como base da sociedade na virada do século XIX. O sistema ie, a despeito das modificações econômicas e sociais que ocorrem ao longo do período Tokugawa, perpetua-se. E, para entender a relação entre as transformações da estrutura da terra e o sistema ie, existem três elementos que se relacionam e que precisam ser levados em consideração: o Taiko Kenchi (agrimensura da terra), o sistema Kokudaka (base do sistema fiscal do Shogunato Tokugawa) e a separação rígida dos estratos sociais (com destaque para a separação do samurai em relação ao camponês). Estes elementos foram estabelecidos pelo Estado com o intuito de solucionar os problemas de financiamento, bem

7

Segundo Shimizu (1987), dentro das aldeias existiam 3 níveis de classificação das ie: dominante, médio e subordinado, com suas específicas noções de prestígio e honra.

16

como de controle político e social8 que se faziam necessários, dado o recente estabelecimento da paz após décadas de guerras entre domínios. Passemos para a explicação de cada um desses elementos. 1.2.1 Taiko Kenchi, o sistema Kokudaka e a “caça às espadas” Durante os séculos XV e XVI, o Japão viveu o período conhecido como Sengokujidai, ou era das guerras, em que levantes sociais (ikki) e guerras entre daimyos por domínios e hegemonia territorial ocorriam por todo o país 9 . A partir do estabelecimento da paz e unificação do país por Oda Nobunaga10, a necessidade de se estabelecer um rígido controle sobre as capacidades produtivas do campo, a base econômica do país, composto por camponeses armados e por samurais que os controlavam diretamente, tornou-se uma meta de extrema urgência 11 (WAKITA, 1991; VLASTOS, 1986). Após a morte de Nobunaga, em 1582, Toyotomi Hideyoshi impôs sua própria hegemonia sobre o país e estabeleceu a agrimensura da terra e seu cadastramento conhecido como Taiko Kenchi12. O Kenchi era um procedimento de medição da extensão e da produção da terra, definindo a sua produtividade (kokudaka) e, consequentemente, a parcela de arroz que deveria ser paga como imposto pelo uso da terra (TAKAHASHI, 1953, p. 63). A base para a medição da produtividade era o koku, definido como a Unidad de medida de capacidad, más o menos equivalente a 180 litros. En particular, servía para medir el arroz. Por ejemplo, bajo los Tokugawa, la mensura de la tierra se expresaba em términos de koku por unidad de superfície cultivada, y todas as consechas de cereales o de otros cultivos eran reducidas a um equivalente teórico em arroz. El valor señorial de um feudo 8

Uma outra forma de controle político e social que era feito, mas que está relacionado aos estratos mais elevados da sociedade foi o Sankin Kotai, que era a obrigatoriedade do daimyo de manter sua família na capital Edo e permanecer por longos períodos nesta cidade. Dessa forma, o governo conseguia controlar as atividades dos daimyos que moravam em longínquos feudos (VLASTOS, 1986) 9 Para mais detalhes sobre o período Sengoku, ver Hall (1990) 10 Oda Nobunaga fora um guerreiro samurai que iniciou a unificação do Japão no final da Era Sengoku, era marcada pelas guerras e constantes conflitos militares. Oda Nobunaga iniciou o processo de avaliação da produtividade da terra na década de 1580, mas seu limitado poder político e econômico fez com que fosse necessário aceitar algumas formas alternativas de avaliação e cadastramento das terras conhecido como sashidashi (Wakita, 1991). 11 A agrimensura da terra realizada por Toyotomi Hideyoshi redefiniu a composição da classe camponesa e estabeleceu o montante de imposto sobre a terra que os cultivadores eram capazes de entregar ao seu senhor. Motivações políticas da agrimensura da terra e da definição dos responsáveis pelos seus cultivos acompanharam os aspectos econômicos, dado que assim poderia salvaguardar a autoridade que havia conquistado, bem como medir com maior precisão o valor dos feudos que estavam sob o seu domínio. Também era preciso um controle sistemático das capacidades produtivas do país dado os elevados gastos que se tinha na unificação do país, organização de estradas e infraestrutura, além do poderio militar (FURUSHIMA, 1991, p. 480; OSAMU,1991 p. 102) 12 A agrimensura da terra (Kenchi) foi iniciado por Toyotomi Hideyoshi e completado por Tokugawa Ieyasu.

17

era el total de todas las consechas em las tierras cultivadas de esse feudo, expresado en la quantidad teórica de arroz. (AKAMATSU, 1977, P. 294).

Através dessa unidade de medida, era possível indicar o tamanho dos domínios controlados pelo bakufu (governo central) e a área de responsabilidade de cada daimyo, bem como os seus estipêndios pagos em arroz. Ou seja, era possível definir, por meio do kokudaka, a posição social e a riqueza dos membros da sociedade (SATO, 1990, p. 39). Finalizada a agrimensura da terra, fazia-se o registro do camponês responsável pelos pagamentos do imposto pelo uso da terra. Cabe destacar que não havia uma noção de propriedade privada da terra pelos camponeses, mas sim de direitos de uso e posse da mesma. Mostrado em Wakita (1991, p.104), um dos registros remanescentes da aldeia Fukita na província Settsu mostra como o registro da terra era preenchido. No documento era incluindo a localização ou o nome do lote, uma avaliação de sua qualidade geral, os fins de seu uso, a área e a quantidade esperada de rendimento, bem como o nome do camponês responsável pelo seu cultivo. Nome do campo/localização: Kaito Qualidade (Superior, média, pobre): Superior Uso (arrozal, campos não irrigados, habitação): arrozal Área: 1 tan (993 m²) Rendimento: 1 koku e 5 to (aproximadamente 7.5 alqueires) Registrado para: Yohei (nome do chefe da família) (WAKITA, 1991, p. 104)

De fato, no momento da realização dos registros, houve uma certa dificuldade em definir quem realmente detinha o direito de uso e posse da terra e, assim, durante os períodos de avaliação do solo e cadastramento, os inspetores costumavam dar o direito de posse aos camponeses que provavam terem pago os impostos nos anos anteriores e aos camponeses que estavam cultivando determinado lote no momento do cadastramento (WAKITA, 1991, p. 109). Aqueles que possuíam o nome registrado ficavam, então, sujeitos a diversas leis e regulamentos, como a proibição da alienação permanente da terra, decretada em 1643, ou a proibição do parcelamento da terra, imposta em 1673. Também havia regulamentações sobre o que poderia ser produzido nos lotes. Posteriormente, esses decretos acabaram sendo relaxados e, enquanto o camponês pagasse devidamente seus impostos e não cometesse nenhum crime, o seu direito de posse estava assegurado, podendo até mesmo comprar e vender lotes de terra, como será explicado no capítulo 2 (WAKITA, 1991, p. 109).

18

A somatória de toda produtividade de cada lote de terra resultava no kokudaka de uma aldeia e era a partir desse valor total que o governo central controlava o pagamento dos impostos, ou seja, a cobrança não era individual sobre cada camponês, mas sobre o somatório fixo que deveria ser pago por uma aldeia. O rendimento estimado da terra era definido através de um teste da colheita (tsubo-kari), que levava em consideração se os rendimentos correntes poderiam ser avaliados como bons ou ruins e se os custos de produção em um determinado local eram altos ou baixos. Também se levava em consideração a distância do percurso para transportar o arroz, o número de animais e a extensão das terras comunais, a dificuldade em se manter os trabalhos de irrigação e se a aldeia tinha fontes de renda diversas da agricultura, bem como se a aldeia era rica ou pobre (SATO, 1990, p. 42). Como já explicado, o arroz tornou-se a base de toda riqueza nacional. The official standard of wealth was rice. The status of daimyo was expressed in terms of the assessed rice crop in his domain. The samurai class as a whole received its income, form shogun or daimyo in bales of rice. And rice at the beginning of the Tokugawa age was the principal means of exchange (STORRY, 1961, p. 73).

A escolha do arroz como sendo a unidade de medida para a definição do valor dos impostos está relacionada com a necessidade de Hideyoshi garantir o controle sobre os recursos e a produção, mantendo o camponês com a obrigação estrita de pagamento dos impostos pelo uso da terra ao qual seu nome foi registrado. E, além do arroz ser produzido praticamente em todos os lugares do país, este produto também poderia ser facilmente estocado e vendido13. Era preciso um padrão universal para definir uma taxa universal do imposto e avaliando as diferentes capacidades produtivas de acordo com os diferentes tipos de solo e clima, a cobrança pode ser feita de forma relativamente mais simples (WAKITA, 1991, p.104-105). Além do controle do camponês, o recolhimento dos impostos foi uma expressão de poder político, pois pela capacidade do Estado de organizar a agrimensura, despachando seus inspetores (bugyo) para medir parcelas de terras longínquas, ou seja, confiando inteiramente neles era possível demonstrar a sua autoridade conquistada (WAKITA, 1991, p. 103). Furushima (1991, p. 481) explica que, antes do cadastramento feito por Hideyoshi, a 13

No entanto, cabe destacar que a necessidade de pagamento da taxa de acordo com o Kokudaka influenciou no desenvolvimento econômico da sociedade levando os camponeses a cultivar o arroz deforma intensiva. Isso limitava a participação do camponês no mercado, mas não de forma absoluta. Em alguns daimyos havia incentivo para o cultivo de produtos comercializáveis e, em regiões como Osaka, a concentração do cultivo de algodão fazia com que primeiro fosse preciso comprar o arroz no mercado para realizar o pagamento dos impostos (Wakita, 1991, p. 110)

19

propriedade da terra era normalmente verificada por meio de um processo chamado sashidashi, em que o camponês tinha que realizar a submissão de alguns documentos os quais deveriam descrever a sua propriedade com evidências que dessem suporte à sua requisição ao uso e posse da terra. Contudo, com Hideyoshi, esse sistema de verificação feito pelo próprio camponês, ou seja, de baixo para cima, passou a não ser mais considerado válido. Hideyoshi detinha um poder militar muito mais significativo do que o de Nobunaga para levar a cabo as medições de terras, conseguindo se posicionar com legitimidade em termos nacionais, justificando suas ações tendo como base o recebimento da seguinte injunção do imperador: “You shall exercise administrative functions over the more than sixty provinces of Japan in accordance with whats is best for land and people” (WAKITA, 1991, p. 103). Assim, em um nível acima dos camponeses, tem se a seguinte estrutura: The early modern form of landed enfeoffment rested on new principles of land possession as defined by this Taiko cadastral survey. At the highest level, all proprietary rights became securely lodged in the hands of the national hegemon. Now all bushi, and even temples and Kyoto-based aristocrats, could hold territory only as grants-held-in-trust (azukarimono) confirmed by the vermilion seal of Hideyoshi. Moreover, certain rights and responsibilities concerning these holdings could be reassigned to lower elements in the power structure. A clause in the famous “Bateren expulsion decree” that Hideyoshi issued in 1587 banning Christianity and ordering the Jesuits to leave Japan within twenty days inadvertently confirmed this practice by stating: “Fiefs granted to vassals belong ultimately to the state, that is, to the provinces and districts, and each vassal holds the land in trust for the present only. Each vassal must obey the laws of the realm (tenka).This use of the concept of land held in trust for the overlord became the basis for the new centralization of power. The rights to collect the grain tax and corvée levies and to exercise judicial judgment (…) were now pulled together and held by a single authority.

Ou seja, o governo central na figura de Hideyoshi era aquele que detinha os direitos de propriedade e esse transferia parcelas de terras na forma de domínios para alguns samurais (daimyo) apenas como concessões, pois a terra era do Estado. Todas as as categorias de senhores daimyo 14 possuíam ampla autonomia, mas sua soberania era limitada apenas às 14

Após derrotar a coalizão de senhores de guerra rivais na batalha de Sekigahara em 1600, Tokugawa Ieyasu determinou que mais de um quarto do país fosse definido como terras do Shogunato Tokugawa, terras estas que incluíam as três maiores cidades do Japão (Edo, Osaka e Kyoto). O resto do país foi dividido em han e atribuídos para mais de 200 senhores chamados daimyos. Os daimyos eram divididos em dois tipos, os fudai, que eram os

20

terras ao qual havia sido designado, podendo ser substituído por outro daimyo a qualquer momento, caso isso se fizesse necessário (VLASTOS, 1986, p. 7). Cada daimyo ficava com a responsabilidade de gerenciar as fontes de rendimentos de cada região a qual era responsável e o Shogun, ao mesmo tempo em que realizava este controle, agia como se fosse um grande daimyo, retirando os rendimentos de seus territórios e pagando as despesas do governo central (Bakufu). Abaixo dos daimyos vinham os camponeses que cultivariam diretamente essa terra. Assim, através do Kenchi e sua política de identificação de um camponês específico com seu respectivo lote de terra, o direito de uso e posse de toda terra arável tornara-se um simples acordo entre os senhores e o camponês, sem uma noção de propriedade privada, nem pelo lado do daimyo, que poderia ser transferido para outro domínio por ordem do governo central, e nem pelo lado do camponês, que tinha apenas o seu nome registrado como responsável pelo cultivo de uma determinada terra devendo pagar os devios impostos em arroz pelo seu uso (SATO, 1990, p. 38). A principal taxa que precisava ser paga pelo camponês era a que recaía sobre a terra, denominada nengu 15 , que baseava-se no kokudaka de cada terra. Essa taxa sobre a terra constituía a taxa de uso dos arrozais, das terras elevadas e dos lotes residenciais (SATO, 1990, p. 42). Como já explicado, a taxação era cobrada pelo senhor sobre toda comunidade campesina de uma determinada aldeia e não especificamente sobre um camponês ou uma família, sendo que apenas os registrados como responsáveis por um lote é que deveriam pagar a taxa (SMITH, 1988, p. 52). Ou seja, no caso de um camponês não conseguir atingir o montante necessário para pagar o seu nengu, a comunidade deveria suprir esse déficit, gerando uma responsabilidade comunal pelo pagamento dos impostos, característica essa bastante específica do Japão Tokugawa16 (SATO, 1990, p. 42). Além do nengu pago em cada

“vassalos hereditários” e os tozama, “senhores externos”. O primeiro grupo havia declarado fidelidade ao Shogun antes da batalha de Sekigahara e aqueles que eram de maior confiança participavam ativamente da administração diária do Bakufu. Já o segundo grupo era formado pelos guerreiros que haviam declarado a sua fidelidade ao Shogun após esta batalha e, sendo menos confiáveis (VLASTOS, 1986, p. 6). 15 Além do nengu, existiam outras taxas chamadas komononari que eram requeridas pelo uso de ativos fixos, tais como barcos, ferramentas e até o uso das terras florestais. Essas taxas não eram uma porcentagem da produção sendo cobradas apenas quando o uso de algum dos itens acima era feito. Havia também uma espécie de corveia imposta a cada camponês registrado e que era calculado como uma porcentagem do kokudaka. 16 Essa responsabilidade comunal vinha desde a necessidade do trabalho comunitário para a preparação do solo para o plantio de arroz, além da construção e manutenção do sistema de irrigação, atividades estas que não poderiam ser realizadas por apenas uma família. Além do plantio de arroz, também a construção de casas e infraestrutura eram feitas em comunidade e, mesmo os lotes sendo de responsabilidade de cultivo de uma só família, o uso de áreas comunais, como as florestas e o sistema de irrigação, envolvia a todos em uma atividade conjunta (SMITH 1959). Ou seja, se um ie não consegue pagar o seu imposto ou participar dessas atividades coletivas, o grupo como um todo teria que suprir esse trabalho. Fukutake (1989) explica que as aldeias camponesas eram normalmente localizadas em regiões isoladas tendo um caráter de autossuficiência, constituindo microcosmos que circunscreviam a produção e o consumo dos

21

propriedade, o governo central também extraia recursos do comércio internacional 17 , do gerenciamento das minas e da cunhagem de moeda e, a partir de século XVIII, passou a ser cobrado também os impostos sobre as atividades comerciais e manufatureiras 18, mas a maior parte dos recursos eram de fato do nengu, o qual era baseado no kokudaka de cada propriedade (SMITH, 1959). E, assim, de acordo com o kokudaka de uma aldeia, o daimyo anunciava todo ano qual seria a taxação sobre a terra em um documento chamado menjo e, com base nesse documento, os líderes da aldeia encarregavam cada camponês do montante que deveria pagar de acordo com a avaliação do solo feita no kenchi.

(SMITH, 1959; FURUSHIMA, 1991). A

administração Toyotomi geralmente estabelecia o montante a ser pago como sendo dois terços dos rendimentos de cada aldeia, deixando os camponeses apenas com um terço de toda a produção. Segundo Wakita (1991, p. 106), no sistema de pagamento dos impostos do período anterior à Toyotomi, as taxações tendiam a ser fixas de forma permanente, sendo que o montante excedente advindo de qualquer aumento da produtividade ficava no próprio campo. Neste novo sistema era permitido aos senhores daimyo requerer dos camponeses qualquer excedente na produção. No entanto, este sistema baseado no kenchi foi aos poucos se tornando bastante arbitrário com a expansão das terras agricultáveis e a diversificação dos cultivos (como algodão), que dificultava a incorporação de sua taxação no sistema kokudaka. Em regiões próximas a grandes centros como Osaka, que diversificaram a produção para atender a cidade em rápido crescimento a partir de meados do século XVII, os daimyo conseguiam coletar aproximadamente 30% dos cultivos, enquanto em regiões menos desenvolvidas, as taxações atingiam marcas de 80% da produção. Outro fator que contribuiu para que as taxações não fossem reajustadas constantemente foram as inúmeras revoltas camponesas que marcaram o século XVII e XVIII e que lutavam contra os aumentos dos impostos pagos em arroz, como será explicado no Capítulo 2 (WAKITA, 1991; VLASTOS, 1986). A definição do sistema tributário e do regime de direitos de uso e posse da terra foi estabelecido no final do século XVI por Toyotomi Hideyoshi e finalizado no início do século XVII por Tokugawa Ieyasu. Através do Kenchi e do sistema Kokudaka tornou-se possível ao

camponeses. Além disso, muitas vezes as aldeias entravam em choque por disputas de água para irrigação, o que fornecia mais um elemento de pertencimento. Em termos espirituais, a natureza unitária da vila era simbolizada pelo ujigami, um templo da divindade que protegia cada aldeia e suas respectivas famílias que vinham se perpetuando por várias gerações. 17 Feito pelo porto de Nagasaki, exclusivamente com a China, Coréia e Holanda. 18 Mas a porcentagem taxada era bem menor como será explicado no capítulo 2.

22

governo central coletar os impostos sobre o uso da terra, mantendo os camponeses, organizados em pequenos lotes de cultivo, atados à terra e com grandes responsabilidades comunais para garantir o pagamento dos impostos. Entendido a forma de tributação, cabe destacar agora como se estruturava a sociedade Tokugawa, com o intuito de explicar quem era o camponês que financiava todo aparato do governo central e dos daimyo. Para entender a relação entre o sistema ie e a estrutura agrária, além do cadastramento Kenchi e o sistema Kokudaka, o terceiro aspecto importante é a separação do camponês e do samurai que fixou o camponês à terra e retirou o samurai do campo. O cadastramento do Kenchi, explicado no item anterior, contribuiu para que essa medida do governo fosse efetivamente cumprida, estabelecendo-se, assim, uma definição clara da divisão social rígida do país. Como explica Akamatsu (1977, p. 19), durante o período anterior ao Tokugawa, marcado pelas guerras, não havia uma clara divisão entre o senhor e o camponês, visto que um camponês que pudesse se armar, poderia tornar-se um senhor samurai. Além disso, muitos guerreiros também eram camponeses que cultivavam o solo em tempos de paz e pegavam em armas na época das guerras (SATO, 1990, p. 38). Essa ambígua definição das classes sociais teve fim com o que ficou conhecido como “caça às espadas” em um decreto anunciado por Hideyoshi em 1588, o qual proibia o camponês de possuir espadas e outros itens de guerra. O edito deixava claro que “os camponeses de várias províncias” estavam “estritamente proibidos de manter espadas, espadas curtas, lanças, armas de fogo e outros tipos de armas militares.” A justificativa para tal decreto é que esses itens desnecessários nas mãos dos camponeses levariam os mesmos a serem tentados a não pagar os impostos ou realizar levantes (chamados de ikki) (ELISONAS, 1991, p. 264) Apesar do decreto de Hideyoshi não deixar claro que o objetivo era realizar a estrita separação de classes, o mesmo teve um grande impacto social na prática ao distinguir aqueles que poderiam portar armas, ou seja, os samurais, dos que deveriam apenas cultivar a terra, ou seja, os camponeses 19 . Ao separar o camponês do samurai, foi possível reforçar uma diferenciação entre aquele que cultiva a terra e o guerreiro, os dois grupos sociais mais importantes do período no Japão20. Neste mesmo processo, ocorreu também a separação entre o camponês e o mercador/artesão, sendo que esses, assim como os samurais, foram obrigados 19

No entanto, como explica Elisonas (1991, p. 264), apesar da proibição do porte de armas, os camponeses poderiam ser chamados para a guerra caso isso fosse necessário. Ou seja, os camponeses não estavam excluídos por completo das obrigações militares. 20Os samurais que ficaram no campo passaram, então, a ter o seu nome registrado como cultivador de uma determinada propriedade de terra, por meio do kenchi, não tendo mais o direito de possuírem armas, tornando-se apenas camponeses.

23

a se mudarem para as cidades-castelo ou para regiões portuárias. Recebendo o direito de monopólio para exercer sua atividade, a qual tinha estrito controle do governo central, e ficando subordinados à autoridade dos samurais, os mercadores e artesãos perderam a antiga liberdade que tinham (FURUSHIMA, 1991, p. 483). Ou seja, foi possível ao governo central criar uma estrutura em que se tinha um controle rígido de todas as camadas sociais e o sistema de status (mibunsei) tornou-se a principal instituição do shogunato Tokugawa. Para Bito (1992), esta alteração na estrutura social, definindo uma clara divisão entre camponês, samurai, comerciante e artesão, ter sido aceita sem grande oposição é algo que precisa ser entendido, pois, para o autor, esta é uma especificidade importante do sistema senhorial japonês. Para explicar essa peculiaridade, Bito (1992) defende a tese de que é preciso considerar a palavra “yaku” (役), que significa papel/função. Para o autor, esta palavra tem um significado especial no idioma japonês, remetendo ao papel que uma pessoa tem dentro de uma sociedade, bem como às responsabilidades que esta determinada função acompanha. De fato, a estratificação social referia-se não só ao pertencimento a um determinado grupo, baseado em sua ocupação, mas também às obrigações que esta posição acompanhava21. E o sistema social baseado nos status serviu como estrutura sobre a qual a ausência de igualdade era reproduzida nas interações sociais diárias. O Samurai tinha a responsabilidade de preparar um número determinado de pessoas e uma quantidade determinada de armas, de acordo com a proporção do seu kokudaka, disponibilizando-os ao seu senhor no momento de guerra. A esta responsabilidade dava-se o nome de Gun-yaku (軍役), que seria a sua função militar. Os camponeses22, de acordo com a proporção de kokudaka do seu lote, tinham a obrigação de efetuar o pagamento dos impostos na forma de arroz (nengu), tendo a sua responsabilidade denominada como Ka-yaku (家役). Além disso, camponeses de classe mais elevada tinha a responsabilidade de mobilizar camponeses como força de trabalho para momentos de construção de castelos, infraestruturas, 21

A estratificação social englobava toda população japonesa e até mesmo a ausência de status tornou-se um tipo de status. Howell (1998) explica o caso dos hinin (“não-humanos”), um dos grupos de pessoas excluído da sociedade, ao lado dos eta (“impuros”), que eram chamados de Burakunin. Os hinin eram mendigos que muitas vezes faziam trabalhos sujos para as autoridades locais. Os eta eram considerados impuros por trabalharem com carne e couro. Estas duas classificações foram abolidas apenas em 1871. Mas cabe destacar que durante o período Tokugawa, a discriminação (sabetsu) foi o princípio por trás de toda organização social. 22 Em 1649, foi decretada a Proclamação Keian, com 32 artigos que definiam as obrigações do camponês. O pagamento das devidas taxas era de sua responsabilidade, sendo necessário trabalhar sempre com diligência, acordando cedo para cortar a grama, cultivar os campos durante o dia e fazer cordas de palha durante a noite. Era preciso plantar bambu no entorno da casa para que servisse de lenha e para os reparos e manutenções das ferramentas que deveriam estar prontos para o seu uso na primavera. A construção de banheiros com local para abastecimento de dejetos humanos era obrigatória para gerar fertilizantes, misturando-se com grama e água. Como explica o autor, até mesmo a alimentação, as relações sociais e métodos de cuidado dos animais, roupas e da saúde eram definidos nesta proclamação (SATO, 1990, p. 41).

24

etc. À essa responsabilidade dava-se o nome de Bu-yaku (夫役). Assim, segundo o autor, em um sentido amplo, a palavra Yaku, significava as obrigações sociais que uma família camponesa ou samurai deveria observar dentro da sociedade. E por conta dessas obrigações, mesmo o pequeno camponês fazia parte da comunidade aldeã, compartilhando o pagamento de impostos e todas as outras responsabilidades que deveriam ser cumpridas dentro da sociedade. Dentro dessas obrigações, o kokudaka representava a base econômica necessária ao samurai para que esse observasse as suas obrigações em termos militares ou políticos, enquanto para o camponês representava a quantidade de arroz necessária para pagar os tributos e também cumprir as obrigações como Bu-yaku. No caso do samurai, os seus estipêndios, que eram pagos pelo shogun ou pelo daimyo, eram em troca da proteção, ou seja, das funções militares do samurai. Por este sentido e pelo fato dessa relação ser hereditária, Bito (1992) compara este sistema com o sistema feudal europeu e sua relação de suserania e vassalagem. No entanto, a especificidade do Japão, segundo o autor, está no fato de que o kokudaka, que era a base do pagamento dos estipêndios, tinha caráter nacional/público e não privado, sendo que as obrigações (yaku) por parte dos samurais também não eram um serviço prestado de forma individual ao seu senhor, mas sim uma obrigação em termos militares e administrativos de um membro que faz parte da instituição, ou seja, de uma relação burocrática. O mesmo acontecia para a função ou obrigação (yaku) do camponês. Apesar de ter a obrigação de fornecer a mão de obra e os produtos cultivados na forma de imposto pelo uso da terra para o seu senhor, assim como no caso do feudalismo europeu, os camponeses não pertenciam ao senhor, e as cobranças de impostos sedavam sobre um determinado grupo (BITO, 1992). No entanto, mais do que um papel advindo de uma responsabilidade dividida pelas camadas sociais, é preciso considerar a noção de obediência. Nesta formação de consciência de papéis dentro de cada classe, a educação 23 teve importante função para moldar a sociedade e manter o status quo da rígida estratificação social. Nas palavras de Kobayashi (1965, p. 288),

23

A educação era secular por completo. Como explica Kobayashi (1965), em primeiro lugar a educação estava sob o controle do governo secular ou de indivíduos privados e, mesmo com a participação de alguns monges budistas na educação dos camponeses, o budismo como religião não tinha nenhuma política educacional específica. O conteúdo da educação do período Tokugawa também nunca fora religioso, sendo que os livros eram do Confucionismo ou seculares. Apesar do Confucionismo poder funcionar como religião, em termos educacionais, tratava-se de instruções seculares na literatura, ética, etc., não havendo conflito entre Estado e religião.

25

O objetivo da educação era encaixar as pessoas dentro da existente ordem social e política. O conservadorismo da educação Tokugawa era manifestado na autoridade inquestionável dos professores sobre os estudantes e no caráter dogmático das instruções. Como doutrina oficial, o bakufu adotou a escola Chu Hsi do Confucionismo que prescrevia a inter-relação ordenada dos cosmos e da sociedade humana. (...) O objetivo da educação era preparar as pessoas para se comportarem e agirem de acordo com seu status hereditários. Por isso, era organizado em termos de classe. A principal distinção era entre a educação do samurai e a educação dos camponeses. A primeira formou a elite com as qualidades necessárias a um líder; a última objetivava moldar as massas como seguidores eficientes e obedientes.

Dore (1965, p. 220) relata sobre uma vasta documentação existente na escola de Okayama, fundada em 1666 para os filhos dos camponeses. Em 1671, foi enviada uma ordem para o oficial no comando da escola que dava instruções de como proceder nas aulas. Eles deveriam ter duas horas de instruções novas e três horas de revisão por dia. Isto era para que eles compreendessem de forma completa que o objetivo do ensino era disciplinar o coração e melhorar o comportamento e três vezes por mês eles eram chamados para refletirem conjuntamente sobre sua conduta e encorajar cada um a se esforçar cada vez mais. Além do ensino doutrinante, é preciso também considerar a estrutura administrativa no nível da aldeia para se compreender como a subordinação e a obediência do camponês eram reforçadas de dentro do próprio campo. O chefe da aldeia24 era a figura mais importante tanto em termos de poder delegado como pelas responsabilidades designadas pelo governo (BEFU, 1968, p. 34). Além de reportar constantemente os dados detalhados sobre a população e taxação por família, tinha a obrigação de recolher os impostos de uma só vez, manter a infraestrutura pública funcionando, além de resolver disputas internas, reportar violações e levantes. Tinha também a importante responsabilidade sobre a conduta dos camponeses, punindo-os por eventuais crimes cometidos (BEFU, 1968, p. 34-35). Além do chefe da aldeia outra forma de manter o camponês dentro das normas estabelecidas pelo governo central era o sistema gonin-gumi, que significa “grupo de cinco pessoas”. Apesar do nome, na realidade eram grupos de cinco ie, e não de indivíduos, que constituíam o grupo. Assim, todos os camponeses registrados no kenchi deveriam fazer parte de um grupo de cinco pessoas, sendo que os camponeses sem terra eram incluídos no grupo 24

O respeito pelos chefes de aldeia vinha tanto do governo como de sua tradição familiar. O governo garantia aos chefes de aldeia o poder de realizar todos seus deveres, incluindo o de punição de crimes, mas, ao mesmo tempo, o nome de sua família, por ser antigo e tradicional, tinha o respeito dos aldeãos e, assim, era possível realizar as suas atividades de forma mais fácil (BEFU, 1968, 35).

26

daquele que tinha o direito de uso da terra que cultivava. Assim, o sistema gonin-gumi criava uma noção de cooperação e dependencia dentro de um grupo em que cada membro passava a ser responsável pelas ações dos outros membros (BEFU, 1968, p. 35-36). “Um crime cometido por um membro era um crime de todos os outros membros e o acobertamento de um crime cometido pelo membro também era um crime de todos os membros” (BEFU, 1968, p. 36). Assim, toda aldeia tinha um interesse ativo no comportamento de cada ie, espiando e corrigindo a conduta uns dos outros, resolvendo as disputas na medida do possível por meio de conciliação (MOORE, 1966). No entanto, segundo o mesmo autor, aquele que denunciasse um crime cometido pelo membro de seu grupo poderia ter a sua punição abrandada, podendo até mesmo ser recompensado. Cabe destacar que este sistema não era útil apenas na criação de responsabilidades conjuntas de observância das leis, mas também tinha a função de mútua assistência entre as famílias25 (HALL, 1991, p. 172). Mas a difamação, ostracismo e outras sanções mais graves, tais como a reunião à porta de uma determinada família batendo em panelas ou mesmo o banimento (fazendo com que o camponês acabasse morrendo de fome sem auxílio e sem terra para cultivar), ajudavam a criar um conformismo significativo dentro da aldeia26 (MOORE, 1966, p. 261). Assim, pode-se observar como o Estado, instituindo a agrimensura da terra, o sistema de impostos e a separação do samurai em relação ao camponês, pôde se aproveitar do sistema ie, com todos seus valores e sua hierarquia para moldar uma sociedade que cumpria seu papel designado e agia com temor e obediência nas atividades diárias. Dada essa estrutura, é preciso entender como a aldeia e o cultivo de arroz, a base do imposto, foram estabelecidos no período Tokugawa para que fique mais claro como se davam as relações econômicas e sociais dentro da aldeia.

25

Moore (1966, p. 260) destaca que além do sistema gonin-gumi, existiam também as proclamações públicas e avisos afixados nas aldeias que tinham como objetivo estimular os camponeses a terem bom comportamento, contendo forte tom confucionista de obediência e submissão à moral e ética estabelecida. 26 A partir da segunda metade do período Tokugawa a educação aflorou uma certa consciência de classe entre os camponeses que mudaram a atitude em relação à camada governante expressas nas diversas revoltas camponesas que se tornaram cada vez mais violentas. Entretanto, cabe destacar que este antagonismo entre as classes era minimizado por uma limitada possibilidade de ascensão social. Segundo Kobayashi (1965, p. 294), através da educação e das habilidades individuais, era possível passar para a classe samurai e assim, jovens ambiciosos da classe camponesa que poderiam se tornar um elemento de descontentamento na sociedade poderia ser elevado ao status de samurai ou equivalente, perdendo seu antagonismo de classe. Para o mesmo autor, o moralismo do Confucionismo também não gerava nenhum espaço para a crítica do sistema de classes e a própria estrutura do ensino, que era voltada para vocações e prática, não criava um ambiente de discussão para desenvolver mentes críticas. Assim, era possível se ter um controle relativamente rígido dos camponeses que muitas vezes se levantaram contra os pesados impostos, mas nunca contra a ordem senhorial estabelecida (VLASTOS, 1986).

27

1.2.2 A aldeia e a produção do arroz Um dos objetivos de Hideyoshi, com a agrimensura da terra, era estabelecer um sistema de agricultura baseado em pequenos agricultores independentes. Segundo Furushima (1991, p. 482-483), Discretas unidades sociais consistindo em membros de uma família imediata tornar-se-iam a principal fonte de rendas anuais da terra e o ato de cultivar era agora considerado o mais importante critério para determinar quem possuía a terra e quem pagaria a taxa anual27.

No entanto, a análise dos registros do Kenchi revela um padrão significativamente uniforme da estrutura dos lotes cultivados pelos camponeses, existindo, na realidade, alguns poucos lotes maiores e um grande número de pequenos lotes28 (SMITH,1959). A extensão da terra cultivada pelos camponeses que possuíam pequenos lotes variava de 1 a 4 hectares, o que geralmente correspondia a uma colheita de 10 koku. Além desses lotes de cultivo, os registros kenchi indicavam que as unidades de produção maiores atingiam até 200 ou 300 koku de arroz (FURUSHIMA, 1991, p. 486). Essa composição da aldeia, com algumas propriedades maiores e um grande número de menores, acabou se formando apesar da política de Hideyoshi de incentivo à estruturação do campo em pequenas unidades produtivas, as quais seriam cultivadas por famílias. Não é possível afirmar, de fato, que o objetivo de Hideyoshi era formar uma camada camponesa não diferenciada, pois mantiveram-se na mesma aldeia aqueles que tinham maiores direitos sobre a terra, enquanto havia camponeses que não receberam nenhum direito para cultivar a terra. 27

Além disso, ficava proibido aos camponeses de estrato superior que empregassem arrendatários para trabalharem nas suas terras, estipulando que aquele que realmente cultivava a terra tinha que pagar os devidos impostos diretamente ao proprietário, evitando, assim, que houvesse uma maior exploração do agricultor, bem como a prevenção do processo de concentração da terra (FURUSHIMA, p. 483) - Discrete social units consisting of Member of the immediate Family were to become the principal the principal source of the annual land revenues, and the act of cultivation was now deemed as the most important criterion for determining who possessed the land and who paid the annual rent. 28 Cabe destacar a especificidade da Região de Kinai, considerada a mais desenvolvida no Japão neste período. As propriedades em Kinai tendiam a ser substancialmente menores do que em outros lugares. Segundo a análise de dados feita por Miyagawa,Mitsuri (1953, p. 15-16), nesta região, as propriedades com o tamanho de 3 tan ou menos representavam entre 70 e 80% das propriedades enquanto em outras localidades, esse tamanho não representava mais de 50% das propriedades (SMITH, 1953, p. 3-4). Segundo este autor, esta peculiaridade indica o nível de desenvolvimento econômico e não tem a ver com uma questão geográfica ou climatológica. O padrão de cultivo e de propriedades que existia de forma ampla no Japão teria prevalecido anteriormente nesta região enquanto o presente padrão de Kinai estava se tornando mais comum em outras áreas conforme o tempo passava. Esta região, como explica Smith (1953), era particularmente urbana e com manufaturas, além de ser a região que abrigava a corte imperial. A vida urbana se desenvolveu primeiro em Kinai. Kyoto, Fushimi, Osaka e Sakai eram as 4 cidades que já existiam no final de 1590 e totalizavam uma população de aproximadamente 40 mil pessoas. Em outras partes do país, as regiões que se localizavam próximas de cidades castelo vivenciavam, neste período, um desenvolvimento econômico mais próximo do que ocorria em Kinai, com agricultura comercial, propriedades pequenas e de trabalho intensivo, sendo que a produção agrícola era combinada com outras atividades.

28

Essa diferenciação ocorreu pela permissão de retenção de direitos de posse e de cultivo sobre terras hereditárias, ou seja, as propriedades maiores pertenciam às famílias tradicionais de determinada aldeia. Assim, a política de Toyotoni Hideyoshi foi a de respeitar os direitos sobre a terra enquanto designava direitos mais seguros de uso e posse ao camponês (WAKITA, 1991, p. 108). A extensão de terra maior pertencia ao núcleo familiar direto que tinha suas terras hereditárias registradas no kenchi, constituído pelo casal e os filhos solteiros. Esta família distinguia-se do restante do grupo não apenas por possuir uma unidade produtiva maior, mas também por terem posição superior em cerimônias religiosas de invocação de proteção na aldeia, bem como cargos de oficiais da aldeia por serem de famílias tradicionais. Segundo Furushima (1991, p. 486), muitos samurais, notadamente na região Kinai, Kanto e Tosan, puderam permanecer com os direitos de cultivo e posse sobre as terras hereditárias, tornandose camponeses29. Dada essa posição superior, as próprias vestimentas, moradias e até mesmo os templos que estas famílias frequentavam eram diferentes, o que criava uma distinção dentro da camada camponesa (SMITH, 1959; FURUSHIMA, 1991). Com a ocasional ajuda dos vizinhos e parentes, os camponeses eram capazes de trabalhar em uma propriedade média, mesmo nos períodos mais intensos de trabalho. Mas a dificuldade aumentava, de fato, nas propriedades maiores. Essas, diferentemente das pequenas unidades que eram cultivadas apenas pelo trabalho familiar30, não podiam ser cultivadas nesse mesmo sistema, precisando contar com membros que pertenciam à extensão da família. Logo, chamavam-se parentes que não eram diretamente descendentes da família nuclear, além de pessoas que eram ligadas ao proprietário, não por sangue ou casamento, mas que foram

29

Mas em aldeias próximas à Kyoto, essas famílias camponesas continuavam sendo consideradas com status samurai (Furushima, 1991, p. 487). 30 Exceto na região de Kinai, onde havia a mão de obra formada por arrendatários (kosaku).

29

incorporadas à família por laços servis hereditários31 ou apenas para o cultivo da terra32. Este modo de organização do trabalho era chamado de tezukuri33 (SMITH, 1959). Esses servos eram originários de famílias que não possuíam uma unidade produtiva grande o suficiente para sustentar todos os seus membros ou camponeses que não tiveram seus nomes registrados no kenchi.

Mas como a família constituía o único meio de

organização da produção na maior parte do Japão do século XVII, Smith (1959) explica que neste modelo de organização do trabalho das propriedades maiores, os servos (gennin) eram de certa forma incorporados à família. Não era possível pensar na lavoura dissociada da estrutura familiar que contava com a força dos jovens e a sabedoria dos mais velhos. E isso é de fundamental importância, pois é através deste processo que aqueles que não possuíam o direito de uso das terras eram incorporados à sociedade camponesa Tokugawa, já que o mercado e as cidades não haviam se desenvolvido o suficiente para absorvê-los. Além disso, segundo o mesmo autor, essa possibilidade de envio de membros da família (que eram vendidos ou dados de presente) para trabalharem nas propriedades maiores eliminando, assim, algumas bocas para serem sustentadas, fez com que as propriedades camponesas em sua maioria se mantivessem com escala reduzida ao longo de todo período Tokugawa e tornou-se uma alternativa ao infanticídio, muito comum neste período (SMITH, 1959, p. 16). A criança que passava a viver com a família com posse da terra recebia basicamente o mesmo tratamento de um filho; frequentava as mesmas escolas e recebiam os ensinamentos da moral e conduta de respeito aos mais velhos. Esta criança, ao se casar, iniciaria um novo núcleo familiar com o apoio da família que o recebera quando criança (SMITH, 1959, p. 17). O inchaço que ia ocorrendo na família nuclear era evidente e o número crescente de membros, tornava a estrutura produtiva ineficiente. Todavia, a moral familiar e a opinião pública não permitiam que os detentores de terras maiores simplesmente eliminassem seus servos, como um dia sua família o fez. Dessa 31

Os servos hereditários eram chamados de fudai, moravam com os seus senhores, sendo os senhores os responsáveis pela alimentação e vestimenta, bem como pela conduta dos seus servos na aldeia (SMITH, 1959). Segundo o autor, essa categoria de servos representava aproximadamente 10% da população camponesa no século XVII. Em algumas propriedades maiores, observavam-se entre 5 e 10 servos fudai, havendo registros de famílias com mais de 20. 32 Os nago tinham diversos níveis de status, mas em sua maioria eram camponeses que ficam responsáveis por cultivar um pequeno lote de terra do proprietário, prestando serviços, sendo que não moravam na mesma casa que o dono da terra como os fudai. O nago não tinha a responsabilidade de pagar as taxas da aldeia ou, mesmo que pagasse em nome do proprietário, não era considerado membro da aldeia em diversos aspectos. Não tinha direito ao uso das terras comuns e nem direito sobre a água e nem direito a opinar nas discussões da aldeia (SMITH, 1959). 33

A forma de organização do trabalho e cultivo da terra passaria de tezukuri para kosaku diante da expansão dos mercados. Segundo Smith (1959), essa transformação inicia-se sob um estímulo do cultivo comercial, que não pode ser datado como um poderoso movimento em todo o país até o século XVIII.

30

forma, a solução dada era a partição das unidades produtivas aos grupos conjugais que se formavam nos ciclos externos, ou seja, formavam-se novos ie (SMITH, 1959, p 17). No entanto, o autor destaca que essa partição da terra representava um lote extremamente pequeno, de baixa produtividade e/ou com localização não privilegiada e que gerava muito mais benefício ao grande proprietário, que se livrara da ineficiência com perdas desprezíveis, do que para o novo ie o qual, por sua vez, mal conseguia se sustentar. De fato, o objetivo não era deixar a família subsidiária na melhor situação possível mantendo-os presos às obrigações que essas relações geravam (SMITH, 1959, p. 40). Apenas liberar essa mão de obra excedente com um pequeno lote de terra não era o suficiente para garantir a sobrevivência dessa nova família e, assim, como explica Smith (1959, p. 20), a família nuclear continuava dando suporte com animais, alimentos, vestimentas, ferramentas e moradia até que fosse possível à nova família se estabelecer de forma mais firme. Mesmo tendo o seu lote de terra, os servos mantinham-se com forte relação de dependência em relação à família nuclear, devendo retribuir a ajuda com sua obediência e fornecimento de mão de obra quando solicitados na lavoura ou em construções e reparos, dado que a mão de obra insuficiente era o gargalo dos proprietários de terras maiores. Ocorriam, assim, trocas de capital por trabalho em uma relação de dependência e noção de obrigação para com a família. Através dessas relações, o grupo como um todo foi capaz de atingir certa autossuficiência que seria impossível de se atingir sozinho, dado o isolamento físico e pelo estado rudimentar do mercado no início do século XVII34 (SMITH, 1959, p. 50) Apesar da partilha da terra, cabe destacar que o direito sobre o uso da água e das terras comunais 35 eram mantidos sob o poder das famílias nucleares. Além disso, a divisão da terra, muitas vezes, não era acompanhada de fornecimento de moradia variando também o tamanho da propriedade de acordo com a proximidade do núcleo familiar, agindo como uma importante força de manutenção e reforço da hierarquia que existia na sociedade camponesa, separando os ie de acordo com sua posição dentro da aldeia 36 (SMITH, 1959, p. 42). 34

Smith (1959, p. 52) argumenta que essa noção de solidariedade dentro da comunidade variava de acordo com o desenvolvimento econômico da região, dado que em algumas áreas mais avançadas, havia uma tendência do mercado transformar esse padrão, fazendo com que, muitas vezes, as famílias subsidiárias superassem as famílias nucleares em termos econômicos. 35 As terras comunais eram formadas por florestas de onde os camponeses tiravam a madeira necessária para a construção de casas, canais de irrigação, lenha, etc., além de alimentos como frutas e cogumelos. Em momentos de quebra de colheita e fome, brotos, raízes e gramíneas serviam para a alimentação do camponês e, por conta desse papel importante que as terra comunais tinham, os camponeses tinham grande preocupação pela sua supervisão e uso. Havia um acordo dentro de cada aldeia pelo seu uso e qualquer infração deste acordo era rigidamente punida (FURUSHIMA, 1991, p 504). 36 Segundo Smith (1959, p. 42), entre 40 e 80% daqueles que possuíam terras aráveis não possuíam moradia própria.

31

Essa relação cooperativa e de subordinação dos pequenos agricultores para com a família nuclear era de fundamental importância para o cultivo do arroz e, mesmo com as distinções de linhagem e de status dentro da sociedade aldeã, todos trabalhavam juntos, pois, sozinhos, não seria possível levar a cabo todas as atividades que envolviam o plantio de arroz. Isso acabou criando um senso de comunidade e de cooperação característico das aldeias japonesas de cultivo de arroz. E esta estrutura familiar organizada em aldeias com forte senso comunitário foi a base da organização da produção durante todo o período Tokugawa, mas com mais intensidade na primeira metade do período. Era uma relação que, apesar de evidencias a hierarquia e noções de obediência e dependência, gerava vantagens mútuas que iam desde a preparação do solo para o plantio até a sua colheita e pagamento dos impostos e, por isso, o cultivo do arroz deve ser analisado com detalhe, como será feito a seguir. Segundo Smith (1959, p. 50-51), durante o plantio das mudas de arroz na primavera, a cooperação do grupo mostrava sua importância máxima, mas o trabalho coletivo se iniciava muito antes, com a construção do sistema de canais de irrigação 37. Além dos esforços de sua construção, a sua manutenção também era complexa e demandava trabalhos constantes para a retirada de lama e mudas que se acumulavam das colheitas anteriores (SATO, 1990, p.67). Furushima (1991, p. 516) também destaca que, além dessa estrutura propriamente do plantio, era preciso construir um sistema de controle de enchentes para os períodos de chuvas foirtes e tufão, o que fazia os rios transbordarem e, para isso, era preciso utilizar madeira, pedras, areia e bambu retirados das áreas comunais com o mútuo consentimento dos que tinham direito de usá-las. O autor destaca também que aldeias vizinhas que compartilhavam o mesmo sistema de irrigação também precisavam ter um espírito coletivo, a fim de controlar a abertura e fechamento dos canais de água de acordo com o momento em que cada aldeia poderia utilizar a água. Ou seja, o cultivo do arroz e o uso da água envolvia a cooperação até mesmo de camponeses que viviam em aldeias distintas, pois dessa relação dependia sua sobrevivência. No que tange ao plantio de arroz, primeiro era preciso preparar o solo. Dada a enorme quantidade de água que era necessária para deixar o solo em uma consistência pastosa e, dado que poucos campos poderiam ter a quantidade de água necessária de forma simultânea, era necessário inundar e plantar campos de forma rotativa, um após o outro (Smith, 1959, p. 51). E, para que a atividade fosse possível de ser feita de forma mais rápida, mobilizavam-se todos

37

Esses sistemas foram fundamentais para expandir as áreas de cultivo de arroz, sendo fortemente incentivadas pelo daimyo que via nesses projetos a possibilidade de expandir seus rendimentos em arroz. No início do período Edo, os daimyo normalmente tomavam a iniciativa no financiamento, bem como no aliciamento de mão de obra, através de seu poder político (FURUSHIMA, 1991, p. 499)

32

os adultos para a passagem da água de campo a campo, independentemente da sua propriedade, criando uma sociabilidade nesse exaustivo trabalho (SMITH, 1959). O plantio de arroz no período Tokugawa era basicamente feito através de mudas que eram plantadas em camas especiais e depois transplantadas para o campo do arrozal já preparado para realizar o plantio. No entanto, esse processo era extremamente delicado e precisava ser feito em um intervalo de tempo muito curto para que as mudas não fossem danificadas ou tivesse o seu crescimento interrompido durante o manuseio e isso só seria atingido com o trabalho cooperativo (Smith, 1959, p. 52).

Figura 2: Trabalho comunitário na transplantação das mudas de arroz

Fonte: Nogyozue, 1983, p. 79

A imagem 2 acima evidencia essa noção de trabalho coletivo dentro de uma aldeia. Como explicado anteriormente, as unidades produtivas eram pequenas e uma família sozinha conseguiria realizar a transplantação de arroz utilizando apenas a mão de obra familiar, mas seria impossível para uma família sozinha conseguir encher o seu arrozal, que dependia do trabalho braçal e da construção e manutenção coletiva dos canais de irrigação. Além disso, a necessidade de rápida transplantação das mudas fazia com que o trabalho conjunto fosse de

33

grande valia. A imagem acima mostra que, em um lote, há 7 pessoas, o que poderia indicar a participação de vizinhso ou parentes neste período de intenso trabalho. A noção de solidariedade incutida no plantio no arroz também existia por conta do pagamento dos censos senhoriais, como explicado anteriormente, que eram cobrados, de modo geral, sobre uma aldeia, dado que a divisão do que cada camponês deveria pagar, de acordo com a produtividade da sua terra, era feita pelos agentes do senhor ou camponeses de categoria superior. A cooperação também existia em áreas que se engajavam nos cultivos comerciais, pois era preciso drenar os lotes onde o arroz havia sido plantado para se cultivar produtos como algodão, tabaco, etc. depois de finalizada a colheita do arroz (FURUSHIMA, 1991, p. 516). Pode-se notar que não apenas a água que precisava ser usada coletivamente, mas o próprio plantio de arroz não só criava uma solidariedade e uma vigilância na atitude de cada um dentro da aldeia e que colaboraram para manter a cooperação nos campos japoneses, mas também agia como mecanismo de controle dos indivíduos. As famílias com lotes maiores conseguiam manter um fluxo adequado de mão de obra para os períodos mais críticos, enquanto conseguia manter seu poder administrativo sustentando suas propriedades sem ter problemas de eficiência. Por outro lado, os camponeses com minúsculas unidades produtivas, ao mesmo tempo em que forneciam a mão de obra nos momentos em que o plantio de arroz nos campos maiores demandava, eram beneficiados pelo uso de ferramentas e animais isponibilizados pelos camponeses do estrato superior. Essa relação que o plantio de arroz criou foi de fundamental importância para a manutenção da ordem no campo, até a aceleração das transformações e a entrada do comércio nas relações pessoais, como será tratado no capítulo 2. Assim, através da análise anterior observa-se que a estrutura criada pelo Estado para a organização da produção em pequenos lotes cultivados por diversos ie e as pesadas taxações cobradas pelo uso da terra criava diversos níveis de solidariedade e cooperação dentro de uma aldeia. A dura vigilância e obediência extrita aos papeis definidos, bem como a autoridade do Estado mantinham os camponeses presos à seus ie, honrando o nome da família pela observância das leis. No entanto, as dificuldades encontradas pelos camponeses para pagarem todo o montante dos impostos diante de inúmeras adversidades, fez com que surgisse uma necessidade de mobilização para lutar contra as pesadas taxações. O próximo item tratará dessas mobilizações camponesas para que fique claro quais as dificuldades encontradas pelo camponês e como as relações entre os ie eram estabelecidas no momento das revoltas.

34

1.3 As revoltas camponesas da primeira metade do Período Tokugawa O movimento dos camponeses, no sentido de resistir à autoridade da classe guerreira na vida diária do campo, é uma forma eficaz de revelar a estrutura e o caráter da relação de classe no período analisado. Por meio da análise do conteúdo e da forma do conflito rural, torna-se possível identificar as transformações que foram ocorrendo nos três períodos analisados como uma síntese da situação em que o camponês se encontrava em determinado momento. Durante todo o período analisado, os movimentos camponeses figuram como aspecto contínuo nas relações sociais do Japão Tokugawa. No entanto, segundo Vlastos (1986), o motivo de muitos autores considerarem o período Tokugawa, notadamente a sua primeira metade, como sendo um período pacífico e sem grandes questionamentos por parte dos camponeses, é pela forma como esses questionamentos se davam. Este autor explica que, na realidade, o descontentamento do camponês nesse período específico era expresso de forma não violenta, sem destruição de casas e visível desordem, o que faz com que seja de fundamental importância entender quais eram os descontentamentos, ou seja, seus objetivos e também a forma como esses se manifestavam, sem se ater aos eventos pontuais que foram o estopim dos protestos. Segundo o Hyakusho ikki no sogo nenpyo de Aoki Koji (1971), ocorreram 3 mil revoltas contra a autoridade senhorial e outros 3 mil conflitos entre aldeias durante todo período Tokugawa, sendo que 842 revoltas foram registradas até 1750. Mas cabe destacar que, neste período analisado, observa-se como caraterística das revoltas, uma ausência de questionamento da ordem, ou seja, o camponês, querendo se manter nesta condição e não aspirando uma posição acima, pedia para que as taxações fossem diminuídas ou aliviadas em períodos de más colheitas. Assim, como explica Vlastos (1986), na primeira metade do período Tokugawa, o camponês contava com a “benevolência” do senhor em algumas situações extremas em que as dificuldades de se pagar a taxação gerava uma dificuldade muito grande em se manter como um camponês que tinha o uso e posse da terra registrados no Kenchi. E, nestas ocasiões, levantes violentos não se mostraram efetivos, visto que as ações coletivas na forma de petição e negociações com o daimyo e até mesmo com o governo central estavam dentro da lei e poderiam ser ouvidas 38. Em primeiro lugar, é preciso retomar, conforme já explicado ao longo do capítulo, a capacidade dos camponeses de se organizarem de forma coletiva. Considerando o recorte 38

No entanto, as movimentações coletivas dos camponeses passaram a ser significativamente mais violentas a partir da segunda metade do período Tokugawa e também nos primeiros anos da Era Meiji. Mas a forma se altera, porque o conteúdo do descontentamento também se altera, o que exigiu novas formas de movimentação, mas estas transformações serão tratadas nos capítulos 2 e 3.

35

temporal analisado e que vai até a segunda metade do século XVIII, o campo era estruturado basicamente em pequenas unidades produtivas familiares em que se tinha o uso e posse da terra definido pelo registro do nome do camponês no kenchi. Apesar da existência também de algumas poucas propriedades maiores, havia uma solidariedade dentro da classe camponesa imposta pela especificidade do cultivo do arroz e das atividades comunais, bem como por uma similaridade muito grande nos costumes e na organização de cada família (SMITH, 1959; FURUSHIMA, 1991). Assim, havia uma classe camponesa que se identificava como tal, dada a divisão social feita pelo Shogunato Tokugawa, que definiu claramente as obrigações e deveres, bem como o papel de cada classe social (BITO, 1991). Ou seja, apesar de existir essa diferenciação interna, as famílias das propriedades maiores e menores não tinham grande diferenciação em termos de papéis econômicos neste primeiro período (VLASTOS, 1986). Além disso, para Vlastos (1986), a relação que existia entre o senhor e o camponês também facilitava a formação de uma consciência dos interesses de classe na camada camponesa. Desde a implantação do sistema de arrecadação dos impostos pelo uso da terra, que era medido em arroz, o volume da exploração do camponês ficava claro, visto que sobrava para o camponês, na melhor das hipóteses, apenas aquilo que era necessário para sua sobrevivência. Nas palavras de Vlastos (1986, p. 12), “the issue of conflict was clear: what the lord took, the peasant lost”. Na primeira metade do período Tokugawa, os movimentos camponeses tinham objetivos específicos que representavam esforços conscientes para melhorar sua situação (VLASTOS 1986). Os motivos do descontentamento variavam entre as quebras na colheita e as condições endêmicas, ou seja, a impossibilidade de muitos camponeses produzirem o montante de arroz necessário para pagar os devidos impostos e sobreviver a cada ano (BIX, 1986; Vlastos, 1986). Tanto no caso de problemas climáticos, quanto no de impossibilidade constante de pagar os impostos, durante o século XVII, a forma mais comum de manifestar o descontentamento campesino era por meio de petições ao senhor do domínio, onde era pedida a sua “benevolência” para que os camponeses em dificuldade pudessem “continuar como camponeses honrados”39, que era como os camponeses registrados no kenchi (honbyakusho) se definiam (VLASTOS, 1986). No entanto, Vlastos (1986) observa essa “benevolência”, que era a palavra utilizada pelos camponeses em suas petições de forma bastante crítica, argumentando que não se tratava de uma postura moral baseada no confucionismo, como já tratado anteriormente. Para 39

Os que participavam das petições eram apenas os camponeses registrados no kenchi, não incluindo a camada que não possuía nenhuma terra registrada em seu nome (VLASTOS, 1986).

36

o autor, a relação do pequeno camponês com o senhor era envolta em inúmeras contradições que, no curto prazo, só poderiam ser resolvidas com “procedimentos administrativos regulares para prover ajuda emergencial e extração moderada da taxação” (VLASTOS, 1986, p. 16). Também a justificativa de poderem “continuar como camponeses honrados” não estava diretamente relacionada à questão de sobrevivência e fome, mas acima de tudo à sua solvência. Continuar como camponeses tinha um significado social bastante preciso dentro da estrutura estratificada estabelecida pelo bakufu, pois aqueles que não conseguiam honrar os seus compromissos no momento do pagamento do nengu perdiam o seu título legal da terra, sendo obrigados a migrarem ou a se tornarem servos de outra família, o que seria o equivalente a desonrar o seu ie (VLASTOS, 1986, p. 17). Além disso, mesmo os camponeses de estratos mais elevados participavam ativamente das demonstrações de descontentamento, dado que a insolvência de alguns camponeses impactava diretamente no montante pago de arroz pela aldeia como um todo, isto é, o montante de arroz que deixava de ser pago deveria ser suprido pelos outros, o que não era benéfico para a comunidade. Ou seja, não se pode afirmar que não havia uma solidariedade dos camponeses de estratos mais elevados mas, de fato, havia um interesse dos camponeses com lotes maiores em manter esses camponeses mais pobres cultivando sua parcela do nengu pela saúde de suas próprias finanças. Cabe também destacar que não havia um questionamento da ordem pelos camponeses. Estes apenas queriam continuar sendo camponeses, requerendo melhorias limitadas em sua vida, dentro da ordem estabelecida. Essas melhorias limitadas, então, estavam fortemente relacionadas com as taxações sobre o campo, pois, nos dois motivos ressaltados acima, o que se pedia era uma redução da taxação, não de forma permanente, mas como forma de negociação em períodos de dificuldade, confiando na “benevolência” do senhor. Vlastos (1986, p. 31) detalha o caso de Fukushima, onde inúmeras reavaliações do solo com aumento das taxações ocorreram ao longo do século XVII e que tinham como objetivo prevenir que os camponeses acumulassem de forma excessiva. E ao longo deste período, inúmeras petições foram emitidas ao governo central, detalhando a situação de dificuldade que os camponeses encontravam, argumentando que, sem uma diminuição da taxação ou ajuda para a aquisição de sementes, muitos camponeses se tornariam insolventes, não podendo mais cultivar a terra. Em uma das petições, o pedido é “restore the condition of landholding peasants that they may continue as farmers” (KICHINOSUKE, 1969, p. 478-

37

479). Ou seja, não se tinha um questionamento da ordem, mas sim um desejo de se manter como camponês efetivo, ou seja, sem perder sua unidade produtiva. Em outra petição, em 1712, na aldeia de Nakahata, a reclamação era devida às 4 elevações da taxação que haviam ocorrido nas últimas décadas e que deixaram inúmeros camponeses mais pobres e com terras menos férteis sem condições de pagarem as taxações. Segundo esta petição, 30 anos antes dos sucessivos aumentos, a aldeia contava com 900 residentes e, naquele momento, a população havia encolhido para 712 residentes, sendo que 87 eram camponeses sem terra que, em vez de deixar a aldeia, foram forçados a servir camponeses mais ricos em aldeias vizinhas (VLASTOS, 1986p. 33-34). Apesar da queda na população, a vila mantinha-se responsável pelo mesmo valor do nengu, o que aumentava a taxação sobre os camponeses remanescentes, criando um ciclo vicioso.

Também nesta

petição, pedia-se “benevolent consideration so that we can continue forever as peasants of the domain” (KICHINOSUKE, 1969, p. 542). Assim, os camponeses, apesar de concluirem as petições clamando pela benevolência do seu senhor e afirmando o desejo de continuar sendo camponeses, todo argumento ao longo da petição era racional e com apelo econômico. Justificava-se, habilmente, que o grande abandono de campos de arroz impactaria nas finanças do governo, que sofreria com a situação de dificuldades no campo (VLASTOS, 1986, p. 35). E, diante de problemas climáticos fora de controle do camponês, era preciso que a “benevolência” do senhor funcionasse, pelo bem do camponês e, principalmente, de sua própria finança. Na verdade, como indicou Vlastos (1986, p. 44), “the constraints on benevolence, therefore, were institutional and operated regardless of the good intentions and sincerity of the lord of the domain”. Ou seja, como já destacado, mais do que uma moral advinda do confucionismo, a benevolência era uma forma de ajustar a extorsão dos camponeses. O uso das petições era generalizado, pois qualquer tipo de mobilização coletiva com distribuição de circulares e aglomerações eram estritamente punidas para servir de exemplo (VLASTOS, 1986, p. 42). Assim, havia um processo definido para demonstrar descontentamento e que funcionou durante o século XVII ao XVIII. As petições escritas eram permitidas pelo governo central, pois essas eram um canal efetivo de comunicação com a aldeia, sendo uma forma de compreender o que estava ocorrendo na aldeia, como problemas na lavoura ou reclamações de coletores de taxas que alertavam o governo central sobre problemas de corrupção (VLASTOS, 1986, p. 42).

38

Contudo, nem todas as petições eram aceitas, sendo ilegais as reclamações que alegavam que as taxações eram abusivas e que requeriam reduções permanentes, podendo sofrer penalizações duras para servir como exemplo. Para Vlastos (1986), a razão para não se aceitar este tipo de petição era a impossibilidade de mensurar exatamente a necessidade de redução. De fato, era muito mais fácil para o governo identificar a necessidade de redução da taxação com um problema no cultivo devido a alterações climáticas. Fora estes casos, reduções só seriam autorizadas quando os danos já estivessem sido concretizados, isto é, quando já estivessem ocorrendo abandonos dos lotes com inúmeros camponeses falidos. E, assim, não havia de fato uma noção de justiça na qual o camponês esperava receber uma parcela justa da sua produção. Mas eles demandavam os meios para “continuarem sendo camponeses” (FUKUYA, p. 66). E, apesar do elevado custo, grande parte dos apelos diretos ao governo obtiveram sucesso no cancelamento ou reduções das taxações. Enquanto ambos os lados executavam seus papeis, estas ações coletivas resolveram inúmeros conflitos relativos à taxação da terra.40 A partir desta análise do uso das petições e não da força no campo, Najita e Scheiner (1968, p. 56) argumentam que Peasants believed and acted as if they lived in a world of justice where they were ensured a hearing of their demands by a lord who owed them his benevolence because of his commitment to a higher justice (gi) and to the Shogun; and peasants believed they were owed such a justice.

Ao final do século XVII, as revoltas camponesas, apesar de manterem o mesmo teor das reivindicações alteraram a forma de ação. Apesar de manterem as limitadas reivindicações, os atores que tomavam a liderança do processo foram alterados e a radicalização aumentou, com maior uso da força. A radicalização foi liderada pelos pequenos camponeses41 que tinham muito pouco a perder, enquanto os chefes das aldeias e as famílias mais abastadas que assumiam cargos administrativos na aldeia eram severamente punidos pela participação e a denúncia era bastante recompensada (FUKAYA, 1973, p. 66). As transformações que ocorrem na forma de executar as demonstrações de insatisfação e protesto fazem parte de mudanças sociais e econômicas maiores, que levaram a uma diferenciação mais acentuada dentro da camada camponesa, diante da aceleração da penetração do comércio nas aldeias autossuficientes. Dado esse novo cenário que surgia, medias extraordinárias com uso da violência e apelos emocionais foram necessários para angariar apoio daqueles que 40

Nem todos os protestos camponeses foram pacíficos no início do período Tokugawa, mas esses só ocorriam após o governo não aceitar as petições enviadas. 41 Os pequenos camponeses, tendo menos acesso ao ensino nas escolas, sofriam menos influência da moral confucionista (VLASTOS, 1986).

39

temiam as represálias do governo. Essas transformações que se aceleram na segunda metade do período Tokugawa, mas que dão seus sinais iniciais no final do século XVII, serão detalhadas no capítulo seguinte. Ou seja, diante das pesadas taxações que vigoraram durante todo o período Tokugawa, cabe destacar que, na primeira metade do período, o uso de petições funcionou de forma eficiente para demonstrar descontentamento, dentro dos limites que poderiam ser observados e mensurados pelo governo. A partir do momento em que era possível comprovar que a situação era grave, o governo agia realizando os ajustes necessários nos campos, corrigindo as discrepâncias existentes demonstrando sua “benevolência”, enquanto os camponeses tinham a visão de que era preciso que o governo cumprisse seu papel para que a estrutura social se mantivesse perpetuada. A primeira metade do período Tokugawa é marcada pelo estabelecimento de uma rígida ordem social, em que os camponeses, se organizando como famílias em pequenas unidades produtivas, produziam o arroz tanto para alimentação, quanto para o pagamento de impostos, com trocas internas nas aldeias que tinham caráter autossuficiente. As gravosas taxações sobre os camponeses que costumavam pegar mais de dois terços de toda produção campesina colaboraram para a deterioração de uma camada mais pobre, ou seja, da base do estrato social de dentro da classe. Entretanto, ao longo desse século e meio foram sendo engendradas forças que permitiram que uma camada específica se beneficiasse do sistema de impostos, de sua posição social e das relações entre sua família nuclear e as famílias subsidiárias, bem como das inovações técnicas que aumentaram a produtividade no campo, que foi deixando um excedente comercializável nas mãos do camponês. Dadas essas transformações, juntamente com o desenvolvimento das cidades, possibilitou a dinamização comercial que se acelera na segunda metade da Era Tokugawa. Essas transformações levariam a uma alteração na estrutura econômica e social do Shogunato Tokugawa, impactando na base de sua estruturação política fundada na estrita divisão de classes, com ausência de mobilidade e rígido controle social. Em meados do século XVIII, essas transformações tornam-se mais visíveis e sua expressão, nas revoltas camponesas do período, são alteradas tanto nos objetivos como nas ações que se tornam bem mais violentas, evidenciando as contradições existentes no sistema shogunal.

40

2. AS TRANSFORMAÇÕES NA ESTRUTURA AGRÁRIA NA SEGUNDA METADE DO PERÍODO TOKUGAWA A partir da segunda metade do período Tokugawa, a economia agrária japonesa começou a passar por algumas transformações mais rápidas que tiveram grande importância na desarticulação da ordem shogunal. Em um processo longo de mudanças, a organização do campo, fundamentada pelo sistema de agrimensura e registro de camponeses do Kenchi e pela rígida estratificação social e cooperação entre os ie, foi sendo derrubada e a terra, apenas como meio de sobrevivência, começou a dar lugar para uma terra que também era fonte de lucro e poder. Como explica Smith (1959, p. 157), Enquanto a terra era pensada primariamente como sendo um meio de subsistência e não uma fonte de lucro, a ânsia por adquiri-la era relativamente fraca, ou ao menos não havia um motivo para adquirir mais do que era necessário para a subsistência, dado que a terra não produzia excedentes significativos e que qualquer excedente era bastante difícil de ser vendido. Além disso, sendo a terra trabalhada com a mão de obra familiar, de uma forma ou de outra, qualquer aumento no tamanho da propriedade significava um aumento proporcional no tamanho e na complexidade da família e na sua imediata extensão e a família não poderia se expandir indefinidamente: então existia também uma ressalva no crescimento da propriedade individual.

O que precisa ser apreendido inicialmente nesse processo de transformação é que a paz estabelecida a partir do século XVII e que possibilitou a alocação dos recursos não para a guerra, mas para a produção agrícola e para as possibilidades de melhoria de vida do ie teve papel fundamental na dinamização do campo e no longo processo de desagregação da ordem feudal (SMITH, 1959; MOORE, 1978). Além da paz, o estabelecimento de pequenas unidades produtivas como a base da estrutura produtiva japonesa fez com que fosse preciso melhorias nos métodos de cultivo e de expansão de atividades paralelas à agricultura para o sustento de todo o ie (SMITH, 1959). A paz e a fixação do camponês à terra, em um contexto de expansão de terras agricultáveis contou com uma aceleração do desenvolvimento técnico no campo, que aumentou e diversificou a produção e gerou algumas melhorias na vida dos ie que teve como expressão o crescimento populacional que marcou o século XVII (MOORE, 1978; SMITH, 1959). Em 1600, a população japonesa era estimada entre 12 milhões e 18 milhões, e no censo

41

de 1720, registrou-se 31 milhões de habitantes (HANLEY; YAMAMURA, 1977). Nas palavras de Moore (1967, p. 267), Embora haja provas de um elevado grau de autossuficiência por parte dos camponeses, que se manteve até durante o período Meiji, é evidente que o Japão, diferentemente da China, começava já no século XVIII a dar passos muito grandes, e por si próprios, para se tornar uma nação moderna. E uma grande parte da diferença pode ser atribuída à Pax Tokugawa que contrastou com a desordem na China durante a Dinastia Manchu, já em declínio na época.

Como já enunciado, além dessa expansão da produtividade dos campos de arroz, durante os períodos fora do cultivo do arroz, desenvolveram-se algumas atividades paralelas na agricultura e nas manufaturas rurais que encontravam espaço nos mercados locais ou nos grandes centros urbanos, através da classe mercadora. Em regiões onde o arroz não era facilmente cultivado, tendo uma baixa produtividade, essas atividades paralelas tinham ainda mais destaque, pois a aquisição do arroz poderia se dar pelo mercado ou pelas trocas entre aldeias. Assim, o avanço na produtividade dos campos permitiu que um excedente maior ficasse nas mãos de uma parcela da classe camponesa que conseguiu expandir os cultivos. Além dessa difusão das técnicas, outro fator que colaborou para a desagregação do sistema shogunal fora o próprio sistema de tributação do campo. Como será explicado em maiores detalhes a seguir, a taxação sobre a terra, mantendo-se constante, permitiu que, aqueles que conseguissem aumentar a produção não fossem taxados a mais por isso (SMITH, 1955; FURUSHIMA, 1991). Diante dessa situação, a terra teve o seu papel transformado de meio de subsistência para fonte de lucro e aqueles que não conseguiam gerar o suficiente para sobreviver e pagar as taxações tinham suas terras desapropriadas através de dividas e hipotecas emitidas pelos camponeses mais ricos e mercadores enriquecidos. Burlando as regulações que proibiam a venda e partições de terras, uma concentração dos direitos de posse e uso da terra se acelerou nesse período, desestruturando a antiga ordem estabelecida de pequenos agricultores com direitos sobre a terra. Na segunda metade do período Tokugawa, cresceu o número de arrendatários, que era uma classe de camponeses sem direitos sobre a terra, mas que continuavam cultivando o mesmo lote que fazia parte do seu ie (TAKAHASHI, 1955). Outro fator fundamental para compreender a crise do shogunato Tokugawa fora a a política de manutenção dos samurais e da família do Daimyo nas cidades-castelo e em Edo, que tiveram um significativo papel na dinamização dos mercados, demandando uma nova

42

organização da produção no campo e um novo papel do mercador. Isso aconteceu tanto pela separação do camponês em relação ao samurai, obrigando-o a morar nas cidades-castelo ou em Edo e pelo Sankin Kotai, que o Daimyo e sua família eram obrigados a passarem mais da metade de seu tempo e a gastarem grandes montantes de seus rendimentos em Edo e nas longas viagens entre seus domínios e a capital. A política do Shogun, que visava supervisionar de perto as ações dos daimyo, teve o efeito de tornar Edo o centro do consumo senhorial, acelerando o crescimento da economia monetária e dos mercados nacionais, que contribuíram para minar a ordem shogunal. De fato, para terem uma vida de luxo na capital, os senhores daimyo precisavam vender uma grande quantidade de arroz coletados na forma de impostos para os mercadores de Osaka, que se tornaram os maiores distribuidores de mercadorias do Japão. Consequentemente, surgiu neste período uma camada de mercadores enriquecidos, enquanto a população guerreira das cidades se endividava com esses próprios mercadores, visto que o montante coletado de impostos não era suficiente para o pagamento de suas despesas (VLASTOS, 1987; SMITH, 1959). Nesse processo de transoformação do caráter da terra e da produção agrícola, o comércio e as cidades tiveram um papel importante na dinamização do campo. Sendo o responsável pela transformação do arroz em mercadoria nos grandes centros e pela movimentação dos produtos entre o campo e as cidades, o mercador passou a ter papel de destaque na estrutura social, realizando empréstimos e financiando expansão de terras aráveis em articulação com os daimyo e grandes proprietários rurais. Enquanto isso, sem conseguir extrair mais do camponês, a vida luxuosa nas cidades e seus gastos constantes com viagens e com manutenção de duas casas, uma em Edo e outra no seu domínio deteriorou as finanças dos daimyo e do samurai (SMITH, 1959, ROZAM,1991). Ou seja, como pode-se observar, as próprias contradições internas do shogunato Tokugawa foi desestruturando a ordem feudal, tendo sido as próprias políticas do governo que dinamizaram o campo, o comércio e as cidades. No entanto, nem esse comércio e nem as cidades eram ainda expressões do capitalismo, funcionando dentro desse modo de produção anterior. Ademais, os citadinos não faziam parte de uma classe revolucionária, sendo todos regulados de perto pelo governo shogunal. Enquanto as cidades expandiam e, consequentemente, o comércio se dinamizava, no campo, os camponeses da maior parte do Japão mantiveram-se cultivando seus arrozais e seus cultivos de inverno, contando com boas colheitas e pagando os impostos pelo uso da terra. No entanto, essa política de Hideyoshi, estabelecida no início do século XVII, engendrou

43

mudanças lentas e que se aceleraram no século XVIII pela dinamização das cidades e consequente entrada do mercador no campo. E, mesmo nessas aldeias em que o foco era a sobrevivência e o pagamento dos impostos, a produção agrícola e o comércio adicionaram uma nova dimensão à vida no campo (VLASTOS, 1987). Por meio da difusão das técnicas e das atividades paralelas à agricultura, que são engendradas pelo caráter da estrutura dos lotes produtivos de pequeníssimos tamanhos, uma camada camponesa que tinha recursos suficientes para investir no aumento da produtividade para além do arroz foi capaz de reter um excedente cada vez maior. Esse aumento do poder dos mercadores e dos ricos camponeses gerou uma maior diferenciação e exacerbação das tensões sociais dentro da própria aldeia, em uma tendência que pode ser vista em diversos pontos do país, conforme pode ser comprovado pelos dados de Smith (1988) e ressaltado em Moore (1978), Takahashi (1959) e Vlastos (1986), entre outros autores 42. De fato, há uma mudança da mentalidade do camponês que busca novas formas de sobreviver 43 . E esse distanciamento ainda maior do camponês da base com o camponês rico quebrou a antiga noção de cooperação e dependência que havia na aldeia. Apesar de não ter ocorrido uma ruptura do sistema ie, que é reforçado diante da necessidade de perpetuar a família e organizar a produção, a relação entre os ie é alterada e novas razões para as revoltas camponesas foram estabelecidas. Assim, para se compreender essas transformações ocorridas no campo e aceleradas pela dinamização das cidades e consequentemente do comércio, serão tratados neste capítulo a formação do excedente e a forma de sua retenção no campo, levando em consideração a estrutura tributária (MOORE, 1967; SMITH, 1988). Também será destacado como o camponês se insere na produção de commodities e nas atividades não agrícolas como fonte de lucro para alguns e alternativa de sobrevivência para outros. Por fim, caberá destacar como a diferenciação social, dentro das aldeias, foi exacerbada, gerando novas tensões sociais em um contexto de desarticulação da noção de cooperação, ajuda mútua e obediência que existia entre os ie maiores e menores. Os novos interesses na aldeia romperam a antiga relação entre as famílias tradicionais e os pequenos camponeses na permuta entre capital e trabalho, 42

Levando-se em consideração que havia uma diferenciação inicial na camada camponesa estabelecida desde o início do Kenchi, ou seja, que nem todos os camponeses conseguiam de fato manter um excedente em mãos, ainda lutando por sua sobrevivência, é preciso ressaltar que essa diferenciação tornou-se ainda maior. 43 De fato, cabe lembrar que as transformações não tiveram a mesma velocidade em todas as partes do país, havendo regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos que demoraram mais para modificarem a lógica da produção. No entanto, é preciso destacar que essa tendência foi se espalhando pelo país e que, nas áreas mais desenvolvidas no entorno de Edo, Osaka e Kyoto, as mudanças rápidas foram visíveis. Por exemplo, já ao final do século XVI, camponeses de todas as classes cultivavam produtos voltados para o mercado na Região Kinai (FURUSHIMA, 1991, p. 510).

44

diminuindo a noção de subordinação que a iminência da fome e inanição poderia gerar. Novas possibilidades se abriam nas aldeias, mas nem todos puderam se beneficiar igualmente dessas transformações.

2.1 A geração do excedente: a questão técnica e o sistema tributário Um primeiro aspecto da geração do excedente foram os avanços que ocorreram nas técnicas agrícolas e que se difundiram ao longo do período Tokugawa. Durante todo o período, algumas importantes mudanças e avanços ocorreram na agricultura. Além do avanço nas técnicas de cultivo dos campos irrigados, ocorreu também uma ampla expansão nas terras aráveis, acompanhadas por melhorias na irrigação. Ocorreram avanços no cultivo, nas técnicas, no uso de fertilizantes e nas variedades de cultivos, que se expandiram. Também ocorreu uma significativa expansão da produção voltada para o mercado, o que produziu um processo de especialização regional de acordo com as condições favoráveis de plantio. Durante todo o período, as melhorias nas técnicas e de cultivo foram registradas em diversos manuais 44, que contribuíram para a difusão das melhorias por todo o país (SMITH, 1959, SATO, 1991). Antes de entrarmos no detalhamento dessas técnicas, é preciso compreender que um dos incentivos para tal tendência está relacionado ao já citado tamanho reduzido dos lotes de terra que demandavam um aumento de produtividade para ser possível realizar o pagamento dos tributos e garantir a sobrevivência. Além disso, cabe ressaltar que, durante o período Tokugawa, a população do Japão quase dobrou, passando de uma estimativa de 18 milhões para 35 milhões de habitantes. Edo (atual Tokyo), a capital administrativa do Japão era apenas uma vila no início do século XVII, mas nos séculos XVIII e XIX, esta era provavelmente a maior cidade do mundo contando com uma população entre 500 mil e 1 milhão de habitantes. A população da área urbana ao redor do centro comercial de Osaka era próxima dessa dimensão. Essas duas cidades não constituíam fenômenos isolados; grandes centros administrativos e mercados 44

Neste período, diversos tratados agrícolas foram lançados. Um dos primeiros tratados foi o Nogyo Sensho, de Miyazaki Antei, completado em 1697, que dedicava um capítulo para cada variedade de grama, vegetais, grãos, árvores e ervas além de capítulos para o solo, fertilização, irrigação e gestão das áreas florestais. Na introdução do tratado, o autor explica que passou 40 anos de sua vida cultivando o solo e outros 40 anos ampliando seus conhecimentos e coletando dados por meio de viagens feitas pelo país, testando as suas experiências e as experiências de outros. O autor, conforme terminava cada parte do trabalho, ainda enviava o seu livro para passar por outros especialistas, que fizeram a checagem de seu conteúdo. (Smith, 1959). Além desse trabalho, que fora o mais significativo do período, outras publicações especializadas foram lançadas e no século XIX, praticamente todos os cultivos tinham seus respectivos tratados especializados (SMITH, 1959, p. 89-90).

45

cresciam ao redor de cidades castelo em cada domínio japonês (HANLEY, 1968, p. 622).

Para Hanley (1968), apesar da amplamente aceita teoria de que a primeira metade do período Tokugawa presenciou uma expansão populacional, com relativa estagnação do segundo período, é preciso observar que, em diversas regiões, a expansão do comércio e dos cultivos com melhores técnicas esteve intimamente relacionada com o crescimento populacional em todo o período. Por outro lado, segundo SMITH (1988), inúmeros controles populacionais foram colocados em prática notadamente na segunda metade do período Tokugawa, após períodos de fomes intensas. Em muitas aldeias reconheciam que os pais podiam, em inúmeras circunstâncias, praticar o infanticídio de recém-nascidos. Também existiam outras formas de controle populacional como os casamentos tardios e abortos. Dessa forma, pode-se considerar que o crescimento populacional que marcou a primeira metade do período Tokugawa e que foi observado também no período posterior, em regiões mais ligadas ao comércio e aos cultivos de commodities, teve impacto importante no aumento da produtividade do campo com adoção de técnicas mais avançadas de cultivo. Além da questão que envolve os pequenos lotes de terra e a expansão populacional, é preciso levar em consideração que as aldeias camponesas das proximidades dos grandes centros urbanos tiveram importante impulso advindo das cidades para melhorar técnicas e produzir para o comércio. Dada à necessidade de produtos na Edo, Osaka e Kyoto em expansão, ocorreu uma prematura tendência de produção para o mercado nessas localidades (NOBUHIKO, 1991). Apesar da aceleração da difusão de novas técnicas e de especializações nos cultivos notadamente a partir da segunda metade do período Tokugawa, a primeira metade da Era Tokugawa não fora um período de estagnação. Furushima (1991, p. 506) explica que, mesmo nos “cultivos autossuficientes”, nos quais o camponês mantinha a mentalidade tradicional arraigada nos costumes da aldeia, realizando os cultivos comerciais e as trocas apenas na medida do que era necessário para sobreviver e sustentar a vida no campo, o desenvolvimento técnico contribuiu para que fosse possível sobreviver dentro de pequeníssimos lotes de terra45. Como ressaltado no capítulo anterior, as aldeias camponesas tinham a possibilidade de utilizarem a água e as florestas (importante fonte de fertilizantes) de forma comunitária e sob a regulação dos chefes das aldeias e das famílias mais tradicionais. E desde antes do período

45

A aquisição de sal e de metais para ferramentas e itens cotidianos era basicamente feita pelo mercado, inicialmente por trocas e posteriormente por meio do dinheiro, notadamente a partir do século XVIII (FURUSHIMA, 1991, p. 506).

46

Tokugawa, o uso de diversas ferramentas era difundido e amplamente utilizado, sendo melhorado ao longo do tempo. Contudo, a partir da segunda metade do período Tokugawa, a agricultura de subsistência deu lugar, em diversas localidades, para formas de cultivo mais voltadas ao mercado. No que tange ao desenvolvimento técnico, em primeiro lugar, cabe destacar as ferramentas utilizadas pelo camponês japonês. Como explica Sato (1990, p. 67), os instrumentos mais essenciais eram a enxada e a foice, que eram fáceis de serem manuseadas e facilmente adquiridas por meio do mercado. Segundo o autor, o uso desses instrumentos de ferro contribuiu amplamente para o aumento da capacidade produtiva do período. Além disso, o uso de animais 46 era restrito a aproximadamente 10% das famílias camponesas mais abastadas, sendo o trabalho manual mais importante pelo país. A figura 3, abaixo, mostra alguns dos instrumentos mais utilizados pelos camponeses japoneses. O Bitchu hoe (enxada Bitchu) era uma das enxadas especializadas desenvolvidas para cada tipo de solo. Sato (1990) explica que esta enxada era de fundamental importância no período inicial do preparo do solo para o plantio do arroz e era utilizado para revolver a terra de forma mais profunda. A enxada regular era utilizada para solos mais rasos e para a limpeza do terreno. Para a retirada de ervas daninhas, o instrumento mais utilizado era o rastelo (earth scratcher) e, no período da colheita, a foice (sickles), sendo ambos modificados de acordo com o uso. Sato (1990) também indica que havia joeiras (winnow) para deixar os grãos ao vento e retirar a poeira e o joio, assim como peneiras (sieve) para selecionar o tamanho dos grãos de arroz. Além disso, utilizavam uma espécie de ventilador, que criava uma brisa para separação do joio e poeira dos grãos (winnowing fan).

46

O uso de animais pelos camponeses mais pobres poderia ser feito por meio das trocas entre esses capitais e mão de obra que ocorriam nas aldeias tradicionais japonesas. Para mais detalhes, ver item 1.2.3.

47

Figura 3: Ferramentas agrícolas do período Tokugawa

Fonte: Sato (1990, p. 68)

Inovações também foram feitas para o processo de debulho do arroz e de outros cereais. Sato (1990) explica que, no início, era utilizado um debulhador no formato de dois bambus cruzados, chamado koshi hashi (Figura 4), que ia retirando as cascas do arroz. Mas, diante da dificuldade do seu manuseio, esta ferramenta foi substituída pelo semba koki (Figura 5): uma debulhadora com mil dentes que conseguia trabalhar uma área dez vezes maior do que a debulhadora koshi hashi. Sua difusão reduziu drasticamente a quantidade de mão de obra requerida para o processo de debulhagem. Entretanto, apesar do uso difundido da semba koki (figura 5), Smith (1959, p. 102) indica que essa maior disponibilidade de mão de obra não liberava os membros da família do trabalho. Na realidade, os momentos de debulhagem da colheita eram um período em que se demandava muita mão de obra em dias exaustivos de trabalho e a liberação de mão de obra era essencial.

48

Figura 4: camponesas debulhando os grãos com a técnica koshi hashi, antes do uso do semba koki.

Fonte: Smith (1959, p. 138)

Figura 5: Camponeses debulhando trigo com semba-koki

Fonte: Smith (1959, p. 101)

Além das ferramentas utilizadas no cultivo de arroz e outros grãos, as culturas comerciais, bem como a adoção de duplas culturas (tendo o arroz como cultura principal e outra durante o inverno) intensificaram o uso da terra, demandando cada vez mais melhorias no uso de fertilizantes. Sato (1990, p. 71) indica que o camponês utilizava diversos tipos de gramas, ervas e resíduos do cultivo do arroz, além de dejetos humanos para melhorar o solo. Mas não se limitava apenas aos fertilizantes feitos pelos próprios camponeses. Ao longo do

49

período Tokugawa, desenvolveu-se um mercado de fertilizantes comerciais, com destaque para o que utilizava sardinhas secas e que melhoraram muito a produtividade da terra desgastada pelo seu uso intensivo (FURUSHIMA, 1991, p. 512). Como já ressaltado anteriormente, o arroz envolvia a questão da gestão da água e a possibilidade de transformar campos secos em arrozal trouxe amplo benefício para a produtividade. Como explica Smith (1959, p. 95, 97), A maior parte do trabalho consistia em construir milhares de pequenas rodas, lagoas, canais e dispositivos para levantar pequenas quantidades de água, mas em larga escala – com inúmeros canais carregando água por mais de milhas, drenagem e criação de barragens que tornou arável, pela primeira vez, o rico solo aluvial pelo curso de grandes rios, etc.

Por fim, cabe destacar os efeitos sociais dessas inovações na aldeia camponesa. Em primeiro lugar, é preciso relembrar uma especificidade da relação comunal da sociedade japonesa. Nas palavras de Smith (1959, p. 92), A fonte dos incentivos [para o uso de técnicas mais avançadas] era o enriquecimento da família e não o ganho individual – muito menos o bem estar social ou do Estado. Nenhuma inovação que falhou em atender ao interesse da família poderia ser aceita e, no longo prazo, aquelas que agradavam eram aceitas. Não é por acidente, então, que as transformações tecnológicas desse período tenderam a fortalecer a solidariedade da família nuclear e seu papel na agricultura.

Ou seja, a adoção de técnicas e inovações no campo, durante o período Tokugawa, contribuiu para a expansão da produtividade, mas manteve o ie como unidade produtiva, conservando a sua cooperação e noção de obediência dentro dos pequenos lotes de cultivo. Dentro da família (e não da aldeia), a inovação tecnológica não teve efeito de desmembrar os laços cooperativos, não funcionando como uma forma de liberar mão de obra47. “A maioria das inovações aumentavam não apenas os rendimentos por hectare, mas também os requerimentos de mão de obra por hectare” (SMITH, 1959, p. 101). Nas palavras de Smith (1959, p. 105), Longe de simplificar e tornar mais uniforme as diversas atividades que confrontavam com a força de trabalho (como o resultado trazido pelas 47

Além desse fator relativo à melhor organização dos cultivos em uma unidade produtiva menor, o crescente custo da mão de obra também teve influência. Como explica Smith (1959, p. 105), o elevado preço que era preciso pagar para realizar contratação de membros de fora da família agiu como força contrária à expansão do tamanho dos cultivos. Essa elevação do preço da mão de obra será explicada mais adiante, qualificando as transformações nas relações de trabalho que ocorreram juntamente com a expansão da agricultura comercial.

50

inovações mecânicas), as inovações na realidade aumentaram a demanda por trabalho

em

cada

unidade.

Elas

demandavam

dele

[camponês],

conhecimentos e habilidades mais especializados, mais atenção aos detalhes, o exercício de mais iniciativa e julgamento. A retirada de ervas daninhas, a seleção de sementes, o plantio em linha, o uso abundante de fertilizantes caros, o nivelamento dos campos, o uso de água contra a geada – essas e outras operações dependiam, para sua efetivação, da vigilância, esforço e habilidades dos trabalhadores individuais. Falando metaforicamente, mais do que impelir o cultivo para o estágio manufatureiro da produção, essas operações serviram para fortalecer o seu caráter manual. O aumento da ênfase no cultivo dentro desse tipo de operação colocou o uso de ampla força de trabalho em desvantagem ainda maior para competir com as menores. Uma ampla mão de obra com seus servos hereditários e nago, trabalhadores temporários e níveis de pertencimento à família formava um grupo social relativamente heterogêneo e frouxamente organizado. Em contraste, a pequena força de trabalho, que na maioria dos casos coincidia precisamente com a família nuclear, era estreita, disciplinada e socialmente homogênea. Consequentemente, era possível não apenas supervisionar os seus membros de forma mais efetiva, mas também contar com eles para um esforço espontâneo em um nível maior, dado que isso dava a eles incentivos mais fortes e imediatos. Sob essas circunstâncias, as inovações técnicas trouxeram o oposto das economias de escala que tendemos a associar erradamente com todos os avanços tecnológicos; ou seja, além de certo tamanho pequeno, quanto maior a unidade produtiva, mais ineficiente a mesma tendia a ser.

Assim, no Japão, “a tendência para a diminuição das propriedades tornou a mecanização virtualmente impossível” (SMITH, 1959, p. 107). Era, de fato, mais produtivo organizar as pequenas unidades de cultivo com laços familiares baseados em cada ie e com todas as suas responsabilidades familiares arraigadas, do que manter grandes lotes de cultivo com pouca ligação familiar.

O que ocorreu, na realidade, foi um fortalecimento da

importância da família no campo mantendo o nível populacional estável no setor agrário. No entanto, como será mostrado adiante, apesar do fortalecimento da família, a cooperação da aldeia tendeu a diminuir nas regiões onde o mercado teve maior penetração (FURUSHIMA, 1991, p. 517). Ou seja, apesar do fortalecimento do ie, a diferenciação dentro da aldeia, pela transformação do caráter da terra, desintegrou os antigos laços de cooperação e dependência que se estabeleceu a partir do século XVII. Assim, não seria certo avaliar essa diferença entre

51

o desenvolvimento agrário japonês e os outros modelos ocidentais como sendo regressiva, pois houve um aumento de produtividade importante que permitiu organização da produção comercial no período Tokugawa e que financiou grande parte da modernização japonesa no período Meiji. Cabe agora compreender como esse excedente gerado permaneceu nas mãos dos camponeses, dando incentivo para que aqueles que tinham condições pudessem investir em melhorias técnicas, na diversificação da produção e no financiamento de projetos de expansão das terras cultiváveis. A resposta, segundo Smith (1988, 1959), Moore (1978) e Sato (1990) está no peculiar sistema de tributação sobre a terra, que não teve seus valores devidamente revisados durante décadas. A não revisão da taxação pelo uso da terra (nengu) foi comprovada por um estudo de Smith (1988, p. 53-55) que coletou dados de 11 aldeias espalhadas pelo Japão entre 1700 e 185048. Os gráficos abaixo, elaborados a partir desses dados, foram organizados de forma a mostrar as linhas superiores representando o nível do kokudaka, ou seja, a produtividade avaliada de forma oficial pelo governo. Já na linha inferior, tem-se a porcentagem do kokudaka que era cobrado como taxação da terra. Nas palavras do autor, A primeira característica desses gráficos que chamam nossa atenção é a surpreendente estabilidade das linhas superiores. Lembre-se que essas linhas representavam o kokudaka, a avaliação oficial da produtividade em que as taxações foram baseadas. O leitor confidencialmente espera que essa linha se movimente para cima, refletindo o aumento de produtividade da terra – ou ao menos que mostre movimentos frequentes de algum tipo, refletindo as sucessivas reavaliações da produtividade. Mas de fato, não há nenhum movimento para longos períodos. Isso evidencia que nessas vilas, a partir de 1700, a terra parou de ser periodicamente avaliada; na metade do século XIX, portanto, as taxações eram baseadas em avaliações de um século ou de um século e meio atrás (SMITH, 1988, p. 53).

48

A quantidade de dados disponíveis para esse período é bastante escassa e Smith (1988) destaca que não se deve generalizar essa tendência para todo o país, mas pelo fato de que as aldeias cujos dados estavam disponíveis não eram próximas, pode-se pensar que essa tendência existia em outras aldeias também.

52

Figura 6: Taxação como porcentagem da renda da terra avaliada e a renda avaliada em koku (1).

Fonte: Smith (1959, p.205-206)

53

Figura 7: Taxação como porcentagem da renda da terra avaliada e a renda avaliada em koku (2).

Fonte: Smith (1959, p 207-208 )

Ou seja, durante todo esse período, apesar do aumento de produtividade e de maior uso de técnicas agrícolas de melhoria da produção49, não ocorreu uma reavaliação, feita pelo governo, da produtividade do solo. Isso significa que se manteve uma taxação sobre um lote de terra que tinha sido registrado no kenchi há um século e meio atrás, com uma determinada produtividade que não tinha mais relação com a produtividade corrente, que era mais elevada. E por meio desse distanciamento entre os níveis de produtividade registrados e efetivos, um excedente maior ficava nas mãos daqueles camponeses que conseguiram aumentar a sua produtividade na terra (SMITH, 1988). Smith (1988, P. 5) vê esse processo de forma positiva, dado que, para o autor, as transformações que ocorreram mais incentivaram do que restringiram as possibilidades de 49

Na opinião de Smith (1988), a não reavaliação da taxação se dava pela dificuldade em mobilizar todos os recursos necessários para esta tarefa. Além disso, a ideia de simplesmente aumentar o imposto de forma arbitrária sem se fazer uma reavaliação da produtividade de cada aldeia seria uma fonte de distúrbio para a ordem estabelecida, podendo causar revoltas camponesas.

54

desenvolvimento econômico e social do campo japonês. O autor não nega que o nengu, que era pago de acordo com o kokudaka de cada lote de terra registrado no kenchi, era excessivamente elevado, mas levanta a tese de que a mesma não era tão opressiva como muitos historiadores defendem e que, em algumas regiões, as taxações sobre o uso da terra se tornaram até mesmo menores, como mostram os seus dados50 (SMITH, 1988, p. 52). Sato (1990, p. 43) complementa que na primeira metade do Shogunato Tokugawa, a taxação sobre o camponês de fato era severa, chegando até a 60% da produção de arroz dificultando, assim, a sobrevivência no campo. Mas ao final do século XVII, essa taxação caiu para aproximadamente 33% diante do aumento de produtividade enquanto não se fez a revisão dos impostos pelo governo central. No entanto, é preciso lançar um olhar crítico sobre os dados de Smith (1959), tendo-se a visão de que, mesmo com a possibilidade de uma camada ter conseguido permanecer com o excedente, o imposto sobre a terra era gravoso e continuava colocando em cheque a sobrevivência de muitos camponeses. Average tribute rates declined over the course of the Tokugawa period, but within fiefs, some villages always had rates higher or lower than the average; and even when average rates were in decline, they were usually at a level high enough to cause distress to the poorest in village (BIX, 1986, p. 13).

Além do fato de que os impostos continuavam dificultando a sobrevivência do camponês que tinha apenas um pequeno lote de terra a ser cultivado, a classe camponesa no Japão nunca fora uma classe homogênea, dada a existência de terras hereditárias que permitiram à algumas poucas famílias terem propriedades maiores dentro de uma aldeia, e isso também influenciou no pagamento do impostos51. Somada a essa diferenciação, neste novo contexto de desenvolvimento da economia rural, aqueles que conseguiram acumular mais excedentes preservaram suas propriedades registradas no kenchi, enquanto, no extremo oposto, surgia uma massa de camponeses pobres, denominados mizunomi (bebedores de água) que, por conta de dívidas ou em busca de mera sobrevivência, abriam mão de suas terras na forma de hipotecas não pagas. Este processo será detalhado no item 2.4.1, mas cabe destacar, neste momento, que não se pode ver os dados como se todos os camponeses tivessem tido a oportunidade de manter um excedente para si, melhorando os cultivos e vivendo de uma

50

Como explicado anteriormente, haviam outras taxações, mas, de fato, a taxação paga em arroz pelo uso da terra era a mais significativa de todas (Smith, 1988; Sato, 1991). 51 Na análise de Smith, “O estrato superior dos camponeses era, em vários aspectos, não apenas no padrão de vida, muito mais próximo da classe média samurai do que da maioria dos camponeses” (SMITH, 1988, p. 70). Para maiores detalhes sobre os dados utilizados pelo Smith, ver Smith (1988, p. 64-68)

55

forma estável. Pois é exatamente desse processo que vai se criando a classe de camponeses com inúmeros lotes de terra (jinushi), enquanto se expande uma massa de camponeses empobrecida que continua cultivando a mesma terra de sua família, agora não mais na categoria de camponês registrado com direito de uso e posse da terra, mas na categoria de arrendatário, devendo pagar, além do nengu, uma taxa pelo uso do solo àquele que agora possuía os papeis de sua antiga unidade produtiva (TAKAHASHI, 1976). A visão de Furushima (1991, p. 505) contribui paras se ter um olhar mais crítico com relação a este processo, indicando mais um fator que contribuiu para a consolidação do poder administrativo e econômico da camada camponesa capaz de reter um maior excedente em mãos. De fato, o pagamento dos tributos dentro de uma aldeia era feito de forma coletiva, como explicado anteriormente. Porém, as diferentes camadas de camponeses conseguiram acumular diferentes excedentes que resultaram em diferentes investimentos em tecnologia agrícola, não apenas pela não revisão da produtividade da terra. Furushima (1991, p. 497-498) explica esse processo de forma clara. O fator chave nesse processo foi que as classes rurais mais elevadas acumularam grandes excedentes que foram usados para desenvolver e introduzir novas tecnologias. Esse excedente foi a consequência de certas características do sistema de coleta de impostos quando este foi implementado. Durante o levantamento do kenchi, todas as aldeias de uma região específica foram classificadas em três categorias de acordo com seus rendimentos totais e todas as terras agrícolas, dentro de uma aldeia, foram ranqueadas de acordo com as qualidades em superior, média, pobre ou até “especialmente pobre”. (...) Apesar da multiplicidade da gradação, no entanto, os registros documentais de regiões específicas revelam que as gradações na escala da taxação aplicada nas terras de qualidades bastante diferentes eram na verdade bem pequenas.

O autor continua o seu raciocínio explicando sobre o efeito dessas pequenas diferenças nas taxações entre terras de qualidades diferentes. No início do período Tokugawa, as taxações sobre a terra eram tipicamente avaliadas como uma porcentagem do kokudaka total da aldeia e isso se traduziu em uma baixa porcentagem da taxa para as terras mais produtivas e uma taxação relativamente alta nas terras menos produtivas, dado que os agricultores mais ricos eram os que tinham mais influência na assembleia da aldeia que definia a divisão da responsabilidade pelas taxas. Assim, o encargo do pagamento anual das taxas recaiu de forma desigual sobre os

56

pequenos agricultores. Aqueles que não conseguiam pagar suas dívidas eram forçados a vender parte ou a totalidade de suas terras, tornando-se um servo contratado. Enquanto os pequenos agricultores lutavam para sobreviver, as classes superiores de agricultores, pagando uma proporção menor das taxas sobre suas rendas, acumularam um excedente que proveu os fundos para o desenvolvimento e introdução de novas tecnologias. (FURUSHIMA, 1991, p. 498).

Ou seja, desde a primeira metade da Era Tokugawa, uma camada camponesa mais poderosa conseguiu de fato interferir na taxação sobre a terra reforçando a diferenciação dentro da própria classe, participando de forma ativa no processo de desapropriação do camponês mais pobre52. E assim, apesar da política de Hideyoshi de manter as propriedades pequenas, o período Tokugawa presenciou a queda de um tipo de propriedade de terra e o surgimento de outro. Como já explicado, no início do período, estabeleceu-se um sistema pouco monetizado em que alguns camponeses mais poderosos e com território maior formavam um centro que demandava a mão de obra de membros da família e da comunidade em tempos de colheita ou para alguma atividade específica que não poderia ser feita apenas com os membros da família nuclear. Em áreas mais afastadas e/ou montanhosas, essa relação do início do período Tokugawa se manteve basicamente inalterada até o século XIX. Mas, a partir da segunda metade do período Tokugawa, o que se observou foi tendência acelerada de desestruturação das relações de obrigações mútuas para um sistema baseado em contratos de arrendamento e de contratação de trabalhadores temporários por salários em uma economia crescentemente comercial (SMITH, 1959, ROZAM, 1988). Entendida a formação do excedente na economia camponesa, é preciso entender o desenvolvimento dos mercados e das cidades, bem como a penetração nas aldeias da figura do mercador, que impulsionou os cultivos voltados para o comércio, reforçando o papel da terra não só como meio de subsistência, mas também como forma de obtenção de lucro, acelerando o processo de desapropriação dos pequenos camponeses.

2.2 O desenvolvimento dos mercados Além dessas diferenciações que ocorreram no campo, distanciando os ricos camponeses dos pequenos camponeses pobres, a antiga distinção social definida no kenchi também passou por uma desarticulação no que tange à separação entre o camponês e o 52

Bix (1986, p.15), tratando das revoltas camponesas, também relata que, em momentos de aumento de taxação, os chefes de aldeia ajustavam as alíquotas de modo que os seus aliados não fossem penalizados com esses aumentos.

57

mercador, bem como no que tange ao papel do mercador na sua relação com a elite política samurai. Na rígida estrutura social, o governo Tokugawa “postulou uma economia fundamentalmente agrária com o mínimo desenvolvimento do comércio – uma sociedade onde o samurai governa, os camponeses produzem e os mercadores tomam conta da distribuição” (HALL, 1970, p. 204). Rozman (1989, p. 506) complementa que as três classes sociais rigidamente definidas no início do período Tokugawa e que dividia os samurais, camponeses e mercadores separava cada classe por estilo de vida e distinção ocupacional, congelando o status social e evitando a contaminação das outras classes principalmente pela atividade comercial. No entanto, Rozman (1989, p. 507) explica que, Durante o período Tokugawa, os controles se tornaram menos impessoais e arbitrários. As rígidas barreiras de classe estabeleciam um limite claro sobre o que era permitido sem minar as oportunidades para a mobilidade e a competição sobre regulações relativamente imparciais. Um grande número de chonin (mercadores) e nomin (camponeses) agarraram oportunidades dentro da ordem social Tokugawa para avançar em suas posições. No processo, eles criaram uma força de mudança social que gradualmente colocou em cheque as premissas em que era baseado o “controle por status”.

Na opinião de Hall (1970, p. 203), “no nível das aldeias, foi a transformação da propriedade da terra e as atividades comerciais que levaram à desagregação da economia das aldeias tradicionais e os diversos deslocamentos sociais que geraram problemas para as autoridades”. Ou seja, dado o desenvolvimento comercial que se expande a partir das maiores necessidades das cidades por produtos do campo, o aumento da agricultura comercial minou não apenas os mecanismos de controle do comércio feito pelo Estado, mas também todo o sistema baseado em uma fixa divisão do trabalho entre os diversos estratos do sistema ie e da noção de papeis dentro da sociedade. Novas relações baseadas no mercado passaram a minar o antigo papel das obrigações e relações familiares dentro das comunidades aldeãs e o sistema baseado em pequenos lotes cultivados por famílias registradas no kenchi começou a se desintegrar (Rozam, 1988, p, 518). Cabe destacar, como já fora ressaltado anteriormente, que o sistema ie não é desagregado pelas transformações econômicas e sociais que ocorreram neste período. No entanto, a relação entre os ie são alteradas pela mudança nas relações cooperativas que existiam entre os camponeses com terras maiores e aqueles que possuíam apenas pequenos lotes.

58

Além da desagregação das relações sociais estabelecidas dentro das aldeias, outra fonte de desestabilização da rígida estratificação social fora o sucesso de inúmeros mercadores que passaram a burlar os controles do governo. O lugar dos mercadores na estrutura social Tokugawa era abaixo dos camponeses e acima daqueles considerados como intocáveis (eta) ou não-humanos (hinin). Ou seja, socialmente falando, os mercadores estavam em uma posição de pouco respeito dentro da sociedade, dado seu papel de transportar mercadorias e alimentos dentro do país. No entanto, em algumas ocasiões, os mercadores tinham sucesso e acabavam acumulando uma grande fortuna, considerada incompatível com sua posição social (NOBUHIKO, 1991). Para entendermos como o comércio vai inserindo novas relações sociais e econômicas, bem como novas mentalidades no campo, parte-se da análise das cidades que tiveram amplo crescimento notadamente a partir do século XVIII. Cabe destacar que as cidades sempre existiram no país e que, com o Sankin Kotai, ou seja, a política de estabelecimento temporário do daimyo em Edo, seu crescimento tornou-se cada vez mais vigoroso. Mesmo nos tempos anteriores ao estabelecimento da paz pelo shogunato Tokugawa, o Japão possuía ilhas espalhadas de agricultura comercial, mas até 1600, os camponeses ainda produziam basicamente para se alimentarem e para se vestirem, para pagarem taxas em espécie e para estocar qualquer coisa que sobrasse das colheitas boas para uma necessidade nas possíveis colheitas ruins. No entanto, a vida rural em tempos de paz e a retirada da classe samurai, artesã e mercadora do campo para as cidades-castelo alterou gradualmente a lógica do cultivo de subsistência para um que atendesse ao mercado e às taxações na forma de arroz. Nem todos conseguiam mais cultivar a terra e garantir sua subsistência e, para atender a esses centros, as ilhas de agricultura comercial se expandiram e começaram a preencher o entorno das economias autossuficientes. Assim, para a questão referente às transformações na direção da comercialização da produção, é preciso compreender as transformações econômicas e sociais que impulsionaram a dinamização do comércio a partir da Pax Tokugawa e da separação dos estratos sociais, que dividiu os moradores do campo e os moradores das cidades (NOBUHIKO, 1991). Entre 1550 e 1700, o Japão tornou-se uma das sociedades mais urbanizadas do mundo. Como explica Nobuhiko (1991, p. 519), No início dessa era, a antiga capital Kyoto era a única cidade com mais de 100 mil residentes, e apenas algumas outras contavam com mais de 10 mil pessoas. Mas, no ano de 1700, quatro novas comunidades já haviam

59

superado a marca de 100 mil habitantes e aproximadamente 5 a 7% de todos os japoneses viviam nessas grandes cidades. Isso comparado com a imagem dos 2% na Europa, onde apenas quatorze cidades tinham atingido o nível de 100 mil, sendo que apenas os Países Baixos e a Inglaterra-Wales poderia gabar-se de uma concentração urbana maior que do Japão. Edo tornou-se a maior cidade do mundo ao final do século XVII e a população de Osaka e Kyoto aproximava-se da de Londres e Paris, as duas maiores cidades do Ocidente.

Como explicado no início do capítulo, diante da separação da classe guerreira em relação à classe camponesa por meio da proibição da posse de espadas pelo camponês e da separação do camponês e do comerciante, pela transferência destes últimos para as cidades castelo, uma nova ordem social foi estabelecida. Como explica Nobuhiko (1991), uma das consequências dessas políticas sociais foi a expansão dessas cidades-castelo. Se a população das cidades castelo rudimentares da Era Sengoku tendiam a alguns poucos milhares, agora as cidades com treze, quatorze e até cem mil pessoas se tornou comum. (...) No total, a classe samurai (bushi) representava aproximadamente 5 à 8 % do total da população do Japão. Como eles se estabeleceram em áreas nos entornos de aproximadamente 250 cidades-castelos espalhadas pelo interior do Japão, eles se tornaram um núcleo estável no entorno de onde a população urbana se formou (NOBUHIKO, 1991, p. 526).

Juntamente com essa ida dos samurais para as cidades-castelo, ocorreu também a atração de camponeses que aspiravam serem mercadores, artesãos ou trabalhadores, principalmente na construção das moradias dos samurais e como seus serviçais domésticos. Proibidos de realizarem qualquer tipo de cultivo ou trabalho braçal, os samurais tinham que depender de artesãos para a aquisição de espadas e dos camponeses e mercadores para a aquisição de bens de consumo diários (NOBUHIKO, 1991). Na imagem abaixo, pode-se observar a grande quantidade de cidades que já existiam no século XVIII.

60

Mapa 5: maiores cidades e rotas de transporte no século XVIII

Fonte: Nobuhiko, 1991, p. 543

Para se entender esse processo de expansão urbana, cabe voltar para a origem das cidades-castelo (jokamachi) na Era Sengoku, ou seja, na metade do século XVI. Essas cidades, que eram um aglomerado de pessoas ao redor de castelos espalhados pelo país, não passavam de alguns milhares de pessoas. Nobuhiko (1991, p. 520) destaca que os samurais (bushi) moravam nas aldeias agrícolas controlando os seus próprios domínios, mas, aos poucos, começaram a formar castelos fortificados em posições estratégicas para melhor proteção, pois o Japão desse período era marcado por diversas guerras. Nessas localidades, os samurais mantinham artesões para a manufatura de espadas, bem como mercadores para transportarem produtos e trabalhadores para projetos de construção.

61

Também existiam, nesse período, as cidades que se formavam no entorno de famosos templos budistas, as quais atraíam fieis de todo o país, mas que foram aniquiladas, em sua maioria, por representarem áreas com poderes autônomos que ameaãva o poder do Daimyo. Além disso, existiam entrepostos comerciais em cidades portuárias e algumas no interior que também possuíam autonomia, mas que, por estarem situadas em pontos estratégicos e servirem aos interesses dos Daimyos, foram mantidas mesmo no período Tokugawa (NOBUHIKO, 1991). O ponto que é preciso deixar claro é que as cidades e o comércio sempre existiram. Como explica Furushima (1991), a aldeia camponesa durante o período Tokugawa era organizada em um sistema “autossuficiente”. Mas esse sistema, (...) não deve ser entendido como se os agricultores individuais ou até mesmo aldeias inteiras se baseassem completamente em produtos e cultivos que eles mesmos produziam. Em vez disso, os aldeões que se engajavam nessa

prática

autossuficiente

tinham

uma

mentalidade

camponesa

tradicional. Ou seja, eles não se dedicavam à agricultura comercial para acumular riquezas que poderiam ser usadas para criar novos e diferentes modos de vida. Na realidade, o objetivo deles era mais modesto e estava ligado aos costumes antigos da aldeia. Assim, eles cultivavam produtos comerciais e se envolviam no comércio apenas no nível necessário para adquirir commodities que permitiriam o sustento de sua vida em um nível tradicional. (...) Tipicamente, o procedimento para tais vendas seriam usados para comprar produtos que não poderiam ser produzidos em sua propriedade (FURUSHIMA, 1991, p. 505).

Essas aquisições no mercado envolviam desde sal, metais para fabricação de ferramentas, itens domésticos, algodão, etc., sendo que algumas transações se davam pela troca e outras por dinheiro. Mas o uso das áreas de florestas comunais, a fabricação própria de fertilizantes 53 e a capacidade de mobilização de água suficiente para o cultivo de arroz e outras culturas mantiveram as aldeias japonesas nessa estrutura autossuficiente por todo período Edo (FURUSHIMA, 1991).

53

Em áreas próximas às cidades, trocavam-se dejetos humanos por vegetais e arroz, desenvolvendo um ativo comércio de dejetos humanos em Osaka e Edo, bem como nas proximidades de cidades castelo (FURUSHIMA, 1991, p. 508). Como explica Sato (1991, p. 74), nas vilas que circundavam as cidades a produção era voltada em grande parte para os vegetais, que encontravam uma crescente demanda na crescente população urbana. Barcos transportavam os vegetais através dos rios e voltavam com os lixos e dejetos humanos para as aldeias para serem usados como fertilizantes. Essa estrutura solucionou o problema dos lixos urbanos e mantinha a fertilidade do solo no campo.

62

No entanto, de forma generalizada a partir do XVIII, o plantio de subsistência ao lado do cultivo de arroz foi dando lugar para uma agricultura mais voltada para o comércio, dadas as especializações regionais e o aumento das cidades. E esse processo ocorreu, principalmente, por ter se tornado possível aos camponeses reterem um excedente após o pagamento das taxas, como explicado anteriormente e, em vez de simplesmente produzirem o suficiente para pagar as taxações e garantirem a sobrevivência da família, uma camada específica gradualmente passou a produzir produtos para serem vendidos no mercado. Segundo Furushima (1991, p. 509), “a chave para essa transformação foi a crescente interação com o mercado”. Cabe uma ressalva do fato de que essas transformações para uma agricultura mais comercial não ocorreram de forma simultânea em todas as regiões e nem de forma homogênea entre as diferentes camadas da classe camponesa 54. A mudança para a agricultura comercial foi primeiramente vista entre a classe mais elevada dos agricultores na região de Osaka por volta da metade do século XVII. Em 1770, produtos comerciais eram cultivados por todas as classes de camponeses na região de Kinai. Até a metade do século seguinte, eles

eram

também

amplamente

adotados

na

região

de

Kanto.

(FURUSHIMA, 1991, p. 510)

Ou seja, esse aumento de produtividade, bem como de introdução de novos cultivos não se generalizou rapidamente para todas as camadas, mas gerou uma classe capaz de investir na expansão dos cultivos para o comércio, considerando que esse processo tem como ponto de início as regiões mais próximas das cidades para onde era possível enviar a produção excedente. Pelo lado dos mercadores, a sua importância estava no fato de a economia japonesa estar baseada no arroz, mas a economia dos soberanos não poderia funcionar por completo a não ser que os senhores transformassem o arroz, que haviam extraído dos camponeses, em dinheiro nos mercados centrais para viverem nas cidades. Nesse sentido, de fato, o arroz era o item mais importante da era Tokugawa, pois além de ser a base da alimentação, seu papel era fundamentalmente ligado ao sistema de impostos e remuneração dos samurais. Por isso, os camponeses produziam produtos comerciais, principalmente nos planaltos, onde não havia taxação das terras e, assim, o cultivo em terra seca se desenvolveu por todo o país de acordo 54

Como destaca Furushima (1991, p. 508), em regiões mais afastadas, o uso de enxada e de foice demorou mais para se difundir, mas “na maioria das regiões, as mudanças vieram mais rápidas e foi o produto não apenas do desejo do agricultor de produzir mais, mas também pelo desejo do seu senhor para que fizesse isso”.

63

com o que era mais adequado a cada região, iniciando um processo de especialização regional (FURUSHIMA, 1991). Os cultivos especializados eram definidos como 3 árvores e 3 plantas. As três árvores eram o chá, a amora (produzia papel e também importante na sericultura) e laca (produzia verniz), enquanto as três plantas eram cânhamo, cártamo e anil. Além disso, nessa agricultura “autossuficiente”, outro fator importante era a capacidade do agricultor em produzir outros produtos durante o inverno e de utilizar as técnicas agrícolas difundidas, como explicado anteriormente (SATO, 1990, p. 73). Nas pequenas propriedades, o arroz tomava conta de todo o lote durante a primavera e o verão, sobrando apenas uma outra estação para se realizar o cultivo (FURUSHIMA, 1991). Havia casos em que era possível plantar alguns vegetais e grãos como soja, tabaco e algodão, mas apenas para consumo da família. Smith (1988, p. 9798) retrata o caso do condado Wakae que tinha condições de solo e clima desfavoráveis ao cultivo do arroz, mas, no início do período Tokugawa, o mesmo era cultivado amplamente para a alimentação e o pagamento de taxas. No entanto, no início do século XVII, o algodão, que era propício às condições da região, passou a ser cultivado e facilmente vendido em Osaka. Além dessa melhoria na agricultura, Smith (1988) faz também uma pioneira análise de dados para avaliar o desenvolvimento da indústria rural e atividades paralelas à agricultura que surgiram neste mesmo período 55 . O desenvolvimento comercial que tomou forma no período Tokugawa, notadamente pelo já tratado desenvolvimento das técnicas produtivas e consequente geração do excedente e pela expansão das cidades, teve impacto importante na produção agrícola, além de forte influência nas atividades não agrícolas que se espalharam pelo país. De fato, como já destacado anteriormente, não se pode falar de um desenvolvimento econômico homogêneo dentro do país, mas cabe destacar a tendência que existia em diversas localidades, sejam elas nas proximidades das cidades centrais do Japão ou de rotas comerciais, sejam pelos aspectos climáticos que limitavam o cultivo agrícola do arroz, mas que abriram oportunidades para atividades paralelas à agricultura. The growth of by-employments and manufacturing in rural japan during the last century of Tokugawa rule profoundly affected village social structure. The most remarkable change was the appearance of great numbers of peasants who owned little or no land and could not subsist by farming alone (SMITH, 1988, p. 99). 55

Takahashi (1953, P. 81) explica que nem sempre o aparecimento de indústrias rurais ocorreu de forma espontânea. Muitas vezes, a própria política senhorial incentivava o desenvolvimento de atividades paralelas para que, assim, pudesse garantir o fornecimento adequado dos censos senhoriais.

64

Assim, em regiões onde o desenvolvimento de atividades paralelas à agricultura tradicional fora significativo, havia uma grande parcela de camponeses com lotes de terras que não garantiam a sua sobrevivência, mas que conseguiam manter o status de camponês graças às atividades paralelas ao cultivo do arroz. A agricultura não era mais a única fonte de renda e isso alterou a lógica da organização das aldeias e a cooperação que era necessária no cultivo dos grãos, com destaque para o arroz, base da tributação. Para tratarmos dessas atividades não agrícolas dentro das aldeias, tomaremos dois exemplos de duas regiões, Kaminoseki e Shindatsu. De fato, a limitada quantidade de dados disponíveis deste período restringe a análise a exemplos específicos, mas, sem dúvida, é possível observar uma tendência ao desenvolvimento destas atividades paralelas na complementação da renda do camponês. Este ponto é importante para ser ressaltado, pois o camponês, em um primeiro momento, não substituiu o cultivo do arroz, para se dedicar exclusivamente às atividades não agrícolas. Os impostos precisavam ser pagos nesta cultura que, sendo também a base da alimentação, não poderia ser simplesmente abandonada para ser adquirida exclusivamente no mercado. No entanto, com as transformações mais aceleradas a partir da segunda metade do século XVIII e início do XIX, a possibilidade de comutação do pagamento dos impostos e o maior desenvolvimento do comércio dinamizaram cada vez mais as regiões produtoras de itens não agrícolas que passaram a servir as grandes cidades em expansão no Japão (SMITH, 1988; ROZAN, 1991). Como já destacado no item anterior, a dinamização do comércio está intimamente ligada ao crescimento das cidades, mas também à capacidade do campo de ter um excedente disponível para ser comercializado. De fato, era preciso um certo nível de especialização e de aquisição de habilidades específicas para se ter a possibilidade de extrair algum excedente das atividades comerciais que cada vez mais avançavam para além das trocas dentro da aldeia (SMITH, 1988). E essas transformações nos tipos de cultivo evidenciam as mudanças no posicionamento dos camponeses, que vão se articulando com o comércio em busca de complementar a renda, superando as dificuldades de sobrevivência com as pesadas taxações. Assim, primeiro será tratado o exemplo da região de Kaminoseki, discutido em Smith (1988), que utilizou uma vasta documentação para a extração dos dados da produção de sal e algodão. Posteriormente será tratado o caso de Shindatsu, destacando a sericultura nas aldeias da região, tratado em Vlastos (1986).

65

Os dados coletados a partir do Bocho Fudo Chushin’na56 (Reportes da alfândega e da economia das províncias de Suo e Nagato) da regiçao de Kaminoseki mostram que a grande maioria da população, um total de 82%, era classificada como agricultores e o restante da população (18%) era classificada em dezenove categorias ocupacionais. No entanto, ao analisar os detalhes da forma como os rendimentos de uma família eram adquiridos, tem-se uma realidade bastante diferente. Income came about equally from farming on the one hand, and industry, transport, fishing, wage remittances, and central government expenditures. Nonagricultural pursuits supplied 55 percent of the income of the county, and the proportion was over 70 percent in four districts. Thus Kaminoseki’s population was predominantly agricultural but earned rather more than half its income from nonfarm work.

O que o autor pretende demonstrar através dos dados é que as famílias camponesas não se dedicavam exclusivamente no cultivo dos campos, sendo que praticamente todos os membros da família trabalhavam ao mesmo tempo em outras ocupações. As famílias camponesas tinham como fonte de rendimento uma grande parcela oriunda de atividades não agrícolas, sendo que há localidades em que os rendimentos não agrícolas atingem mais de 70% dos rendimentos e, mesmo nas localidades com menor participação destas receitas não agrícolas, as porcentagens ficam entre 15 e 30%. Smith (1988) destaca que estas informações são explicadas no próprio relatório que descreve que praticamente todos os adultos e muitas crianças se dedicavam às atividades não agrícolas sempre que não houvesse trabalhos relacionados aos cultivos nos campos. Como detalhado no próprio relatório e citado em Smith (1988, p. 83), Every able-bodied person works at salt making and other employments insofar as farming permits. The average amount of arable land per farm family is only 2.1 tan of paddy and 0.6 tan of upland, and cultivation is relatively easy since the terrain is level. In time free from farming, men make rope and rush mats and other articles by hand; and women work in the salt fields from the third to the eight month and during the rest of the year devote themselves exclusively to weaving cotton cloth not even taking out

56

Esta pesquisa foi enviada em 1840 para diversas aldeias e consistia em um questionário que tinha o objetivo de juntar informações para propósitos administrativos. Os dados enviados de Kaminoseki foram os mais detalhados e datam de 1843. Os dados enviados são referentes à geografia (solo e clima), agricultura (tipo de cultivo, instalações de irrigação, calendário agrícola, etc.), demografia (população por sexo, número de famílias por ocupação e status, etc.), rendimentos (em termos agrícolas e industriais) e despesas (taxações, fertilizantes, matéria prima, reposição de ferramentas e materiais, etc.) (SMITH, 1988, p. 75-76)

66

time to cut firewood and gather grass for compost [traditional female farm work].57

Cabe destacar que, mesmo nesta estrutura que associava o cultivo agrícola e as atividades complementares fora da agricultura, a responsabilidade familiar do ie não perdeu sua força, pois se deu continuidade à organização produtiva em termos familiares, que agiu como forma de reforçar a cooperação dentro da família nuclear. Muitas vezes, as atividades não agrícolas eram feitas em locais separados da unidade produtiva familiar 58 , mas os membros que saíam para realizar estas atividades tinham a consciência de que os rendimentos pertenciam ao grupo da sua família, e o seu zelo pelo bem estar da mesma era essencial para manter esse fluxo de mão de obra sem desintegrar a cooperação interna (SMITH, 1988, p. 8485). Em todas as regiões do país, há relatos de chefes de aldeias e de especialistas em agricultura que reclamavam da escassez de mão de obra para contratar em momentos de necessidade, diante da existência de atividade paralelas à agricultura que estavam disponíveis aos pequenos camponeses e aos arrendatários. E os documentos disponíveis para esta constatação abarcam também leis que surgiram já no século XVII que definiam uma maior regulação do comércio e das indústrias nas aldeias, assim como de manifestos de mercadores das cidades-castelo, que pediam proteção contra os pequenos mercadores das aldeias que cresceram em número neste período 59(SMITH, 1988, p. 92). Ou seja, as atividades paralelas ao cultivo do arroz e à agricultura de subsistência deram uma alternativa de sobrevivência ao camponês que, se articulando com os mercadores, tinham a possibilidade de adquirir fundos que complementavam a sua renda. Outro exemplo é o que ocorreu na região de Shindatsu, caso que será retomado no item 2.3.2 sobre as revoltas camponesas 60. A título de esclarecimento, será feita uma breve discrição da produção do bicho-da-seda nesta região.

57

Tradução de Smith (1988). Por exemplo, em Kaminoseki, as mulheres passavam a temporada da fabricação do sal na região costeira trabalhando nesta atividade. Há relatos também em Kyushu que afirmava que nos períodos fora da fabricação do açúcar e da cera, muitos habitantes trabalhavam como diaristas por mais de um mês nas províncias vizinhas. Em Shinshu e Mikawa, de 10 a 20% da população das aldeias estavam fora da aldeia, trabalhando em atividades paralelas (SMITH, 1988, p. 93). 59 Nem todas as atividades de indústrias rurais ou comerciais eram limitadas a pequenas unidades produtivas. Havia, já no século XVIII, mercadores rurais que rivalizavam diretamente com os grandes mercadores de Edo e Osaka. Além disso, há relatos de atividades como a fabricação de vinho, molho de soja, cerâmicas e ferro que empregavam mais de setecentos trabalhadores. 60 Ao final do período Tokugawa, foi registrada uma das maiores movimentações campesinas na região, com dezenas de milhares de participantes e o motivo do levante está intimamente relacionado com o desenvolvimento da sericultura na região. 58

67

Para a sericultura, é preciso que seja uma região com grande quantidade de amoreiras e a região de Shindatsu era geograficamente favorável mais para a sericultura do que para o cultivo do arroz. Já no início do século XVII, o daimyo incentivava essa indústria com o intuito de enriquecer os seus domínios. Com a proibição da importação de seda chinesa ao final do século XVII, a produção nacional cresceu rapidamente e casas comerciais de Kyoto estabeleceram filiais em Shindatsu para ter contato direto com os mercadores da região (VLASTOS, 1986, p. 94). No início do período Tokugawa, a maioria dos produtores de seda eram ricos camponeses que se dedicavam ao melhoramento das técnicas de cultivo e à qualidade dos produtos. No entanto, na segunda metade do século XVIII, a descoberta da influência do calor no desenvolvimento do bicho-da-seda ajudou as pequenas famílias camponesas a integrarem a sericultura com as atividades tradicionais

da agricultura,

pois,

acelerando

esse

desenvolvimento, era possível evitar que os picos de trabalho das duas atividades coincidissem. Além dessa vantagem, a sericultura era uma atividade intensiva em mão de obra, pois a produção não poderia ser mecanizada e uma família camponesa poderia ser tão produtiva quanto um grande sericultor (VLASTOS, 1986, p. 99-100) Ademais, o trabalho familiar era mais vantajoso por diversas razões. Segundo Vlastos (1986, p. 100), “the health of silkworms and the quality of the silk ultimately depended on meticulous execution of a great number of tasks. Carelessness, inattention, or bad judgement at any point (…) could jeopardize the entire enterprise”. E, por isso, o uso da mão de obra familiar, de fato, era o mais indicado, pois a correta atenção e dedicação geraria uma recompensa a todos e tinha-se um incentivo para melhorar constantemente as técnicas e as habilidades na produção. Inclusive, a mão de obra familiar não era paga e, dado que as mulheres eram as mais indicadas para o trabalho, não influenciava no trabalho masculino. Por outro lado, os empreendimentos maiores demandavam a contratação de trabalhadores por curtos períodos e que precisavam de constante acompanhamento e orientação para executarem as atividades de forma correta. Recebendo os pagamentos por dia, não se tinha nenhuma participação nos lucros do empreendimento e, assim, os custos de supervisão dessas atividades nos produtores maiores impactavam no rendimento dos negócios (VLASTOS, 1986, p. 100). Dadas essas características da produção, Vlastos (1986) conclui que, Thus, there was little to prevent poor peasants from becoming producers if they had suficiente Manpower. Even if they borrowed to finance operating expenses, the entire production process took less than two months, which allowed a quick return on investment.

68

Outro fator que atraía o pequeno camponês era que a taxação dos campos com amoreiras era significativamente inferiores aos arrozais e qualquer espaço disponível era utilizado para esse fim. Dessa forma, a sericultura não competia diretamente com o cultivo tradicional, contribuindo para a complementação da renda do pequeno camponês, por meio da venda do bicho-da-seda nas feiras locais ou a mercadores itinerantes. Vlastos (1986) reforça que a sericultura não era a única fonte de renda complementar, mas dados e textos evidenciam que a sericultura salvou milhares de camponeses que teriam sido expulsos do campo ou que teriam se transformado em arrendatários, perdendo assim o status de camponês. Nakamura (1985, p. 28) ressalta também que, ao final do período Edo, aproximadamente 20-25% dos agricultores trabalhavam em outras atividades além do cultivo da terra como artesãos e carpinteiros e as mulheres, na fiação e tecelagem, enquanto outros fundaram lojas, bares e restaurantes. No inverno, ocorria uma migração do campo para a cidade e muitos passavam a realizar atividades comerciais. Com a impossibilidade de se viver apenas da agricultura, a consequente dinamização da economia fez com que a quantidade de dinheiro em circulação aumentasse e o Shogun chegou até a estimular a economia nacional com políticas expansionistas de emissão de moeda. Assim, com esse avanço na urbanização e com a interpenetração do comércio no campo e do desenvolvimento das indústrias rurais como atividade complementar ao cultivo agrícola, o sistema tradicional da propriedade tezukuri, onde as famílias se organizavam em torno das grandes propriedades com as quais estavam de alguma maneira interligada, como explicado anteriormente, ia se alterando. A tendência que se instaurou foi que, A família continuou sendo a unidade de cultivo, mas o mercado tendeu a separar a mão de obra do pertencimento ao grupo e das obrigações sociais; o trabalho perdeu muito de sua significância e passou a ser tratado como uma entidade econômica (SMITH, 1959, p. 108).

Conforme já explicado, as duas principais formas de organização da produção no entorno das grandes propriedades eram os servos hereditários (fudai) e os nago, além das ajudas dos vizinhos e membros da família subsidiária. Primeiro, no que tange aos servos hereditários, o seu fornecimento por famílias pobres ainda quando criança apenas poderia ser mantido caso não houvesse nenhuma outra forma de sobrevivência fora da estrutura agrária da aldeia. No entanto, à medida que o comércio passou a entrar nas aldeias, novas formas de trabalho mais livres surgiram nos negócios de transporte, comércio, indústria artesã e até mesmo na agricultura (SMITH, 1959, p. 109). Por outro lado, a liberação dessa mão de obra também era vantajosa para os grandes proprietários, que tinham inúmeras responsabilidades

69

para com aqueles inseridos na família, dado que se podia contratar mão de obra apenas quando necessários sem precisar arcar com essas obrigações quase familiares. A forma dominante de mão de obra passaria a ser os “hokonin”, que eram contratados para trabalharem por períodos e salários fixos. Contudo, dentro dessa categoria, existia uma importante diferenciação que é feita por Smith (1959, p. 109): aqueles que eram atados ao trabalho por dívida (adiantamento do pagamento), sendo trabalhos de longo período, e aqueles contratados por períodos curtos e por salário. O autor classifica o primeiro grupo como sendo “hokonin” e o segundo grupo como “wage labor”. Essas transformações geraram uma escassez de mão de obra. Como explica Smith (1959, p. 111), A oferta de mão de obra estava baixa após 1700, porque o capital no comércio e na indústria estava crescendo mais rápido do que a população. Apesar de todas as tentativas artificiais, o trabalho era drenado da agricultura para setores da economia que estavam se expandindo rapidamente. Este dreno era parcialmente refletido pelos movimentos da população das aldeias para as cidades – mas apenas parcialmente, pois o comércio e a indústria não eram fenômenos exclusivamente urbanos. Mesmo assim, os registros populacionais indicam a perda de mão de obra das aldeias e o crescimento da população urbana durante os últimos três quartos do século XVIII, quando a população do país estava estática como um todo.

Conforme os agricultores se engajavam cada vez mais em atividades paralelas à agricultura (by-employment), mercadores começaram a se mudar para áreas rurais com o objetivo de ajudar os agricultores a reunirem matérias-primas e processarem produtos finais e, então, transportarem os produtos para os mercados de varejo das cidades. Nesse momento, a porcentagem de agricultores engajados no comércio cresceu e muitas aldeias perderam sua identidade agrícola. A evolução das aldeias em cidades locais é comumente considerada como sendo um fenômeno do século XIX, mas o processo começou bem antes (SMITH, 1959). Ao final do século XVIII, os laços que haviam moldado as classes sociais em uma estrutura coerente começaram a se desintegrar de forma mais acelerada com o desenvolvimento comercial. No século XVII, a sociedade era organizada e mantida estável através das obrigações mútuas e no papel (yaku) que cada uma tinha que desempenhar. Como explica Nobuhiko (1991, p. 593), O Daimyo contava com os mercadores e artesãos no fornecimento de produtos e serviços e os senhores retribuíam fornecendo um ambiente dentro das cidades-castelo e domínios que respondiam às necessidades e desejos

70

dos mercadores. Os Samurais e os mercadores também eram organicamente ligados. O Samurai cumpria as responsabilidades militares e tinham o cargo de tomadas de decisão mais importantes do governo dominial. Os mercadores forneciam aos samurais as necessidades diárias de bens comerciais e também faziam parte dos baixos estratos da administração urbana.

No entanto, durante o final do século XVIII e início do XIX, as pressões do crescimento comercial e dos problemas associados à urbanização erodiram os antigos laços de interdependência. Entre comerciantes e samurais, surgiu uma relação conflituosa e os daimyos não davam mais o antigo voto de confiança aos mercadores, mas os condenavam por não preservarem seus status, adquirindo roupas e itens de decoração que não condiziam com o seu status. O Shogun e os Daimyos mantiveram o discurso de separação de classe, agrarismo e poder político por status que foi visto cada vez mais como uma forma arrogante de preservar artificialmente sua posição dominante na política e na sociedade. No contexto da abertura dos portos, os questionamentos e dúvidas com relação ao Shogunato Tokugawa se exacerbaram quando a crise política se juntou com os levantes internos durante os anos 1850 e 1860.

2.3 Diferenciação social e a nova estrutura de classes no campo Entendidas essas transformações que ocorriam na economia aldeã e na sua articulação com os mercadores e as cidades, é preciso reforçar novamente que os benefícios ficaram restritos a uma camada específica de camponeses que conseguiram expandir a produção, gerar um excedente e aumentar os seus domínios, por meio da desapropriação dos camponeses mais pobres. E é de fundamental importância entender a formação de uma camada abastada, constituída por camponeses e mercadores ricos, de um lado, enquanto se tem do outro uma grande maioria de camponeses empobrecidos que mal conseguiam sobreviver e que sempre buscavam alternativas para seguir com seu lote de terra e se manter na posição de camponês. E uma forma de analisar esse processo é através da tendência de desapropriação 61 do pequeno camponês que se acelera a partir da segunda metade do período Tokugawa. O que ocorre é o seguinte processo: dado o pequeno lote de terra e a incapacidade de adotar técnicas mais avançadas, em um contexto no qual a subsistência já não poderia ser garantida, os camponeses passaram a ignorar cada vez mais as leis que regulamentavam a 61

Neste contexto, o uso do termo desapropriação refere-se à perda do direito de uso da terra como camponês cujo nome está devidamente registrado no kenchi.

71

posse, a alienação e divisão das terras, hipotecando os pequenos lotes com o intuito de conseguir dinheiro emprestado, sendo que muitas vezes a transferência da terra tornava-se inevitável diante da impossibilidade de cumprir com o pagamento das dívidas. Esse processo gerou uma concentração dos direitos de posse da terra, ao mesmo tempo em que criou as bases da agricultura moderna japonesa com sua relação peculiar entre o proprietário da terra não agricultor (Jinushi) e o pequeno camponês arrendatário dependente (Kosaku). A peculiaridade está no fato de que a propriedade se concentrava, enquanto os camponeses que perdiam suas terras continuavam cultivando esse mesmo lote, agora na categoria de arrendatário (TAKAHASHI, 1953). Aqui, cabe destacar que essa noção de arrendatário (tenant) é diferente do arrendatário inglês, que é impelido pelo mercado e pela pressão dos senhores a aumentar a sua produtividade e vender sua produção em um mercado com elevada concorrência, tendo o risco de perderem seus contratos de aluguel, caso não dessem conta de gerar todo montante de lucro necessário. Assim, os arrendatários ingleses, juntamente com os proprietários, estavam constantemente preocupados com os improvement, ou seja, os melhoramentos na terra para irem ao mercado garantir seus lucros (WOOD, 1998, p. 19). Já para o caso japonês, o arrendatário é formado por meio de dois processos como já mostrado anteriormente. Um deles é pela perda das terras pela hipoteca. Nesse caso, o camponês não abandona a sua terra, mas se sujeita a trabalhar sobre pesadas taxações para um novo “proprietário da terra”, pois a sua terra faz parte do seu ie, como fora explicado no capítulo 1. O pequeno lote de terra que pertencera a seus ancestrais tinha um valor muito além do econômico e permanecer na aldeia significava permanecer seus ancestrais também haviam sido enterrados, constituindo mais uma forma de laço com a terra. Assim, abandonar a terra é uma decisão que envolve desagregar um ie, e essa decisão não era amplamente adotada pelos camponeses (FURUSHIMA). Era preferível permanecer na terra e tentar sobreviver, do que abandoná-la e seguir em busca de oportunidades nas cidades. Essa relação, que criou o futuro grande proprietário de terras e aliado do governo Meiji, seria mantida e reforçada pelo imperador, sendo apenas eliminada na reforma agrária após a Segunda Guerra Mundial62 (Norman, 1910 P. 136; Takahashi, 1953, P. 75-76). Este processo também ajuda a clarificar como a já heterogênea camada campesina pode ter as diferenciações ainda mais alargadas e também a esclarecer como o mercador vai entrando na 62

O governo de ocupação norte-americano no Japão, conhecido como SCAP, introduziu uma reforma da propriedade da terra, beneficiando a grande maioria de arrendatários de terra, com o intuito de reduzir o poder dos ricos proprietários de terra que deram apoio ao expansionismo japonês nos anos 1930 (NAKAMURA, 1986).

72

lógica shogunal, não apenas como aquele que transporta produtos e transforma arroz e dinheiro, mas como detentor de direitos de uso da terra, movimentando grandes quantidades de dinheiro no campo e nas cidades. Enquanto o Daimyo e os samurais encontram dificuldades para manterem o luxo nas cidades, esta figura com grande poder econômico começa a desestruturar a base da rígida estrutura social japonesa do período Tokugawa.

2.3.1 A aceleração das desapropriações: a formação dos arrendatários Neste item, será tratado o processo de desapropriação dos camponeses e a formação dos arrendatários que se aceleram a partir da segunda metade do período Tokugawa e que foi coroado pelo governo Meiji ao final do século XIX. Takahashi (1953, P. 74) descreve com clareza o que ocorre neste período: Ya a mediados del siglo XVII y debido a la elevada tasa del censo en espécie, la situación económica de los campesinos se había agravado hasta tal punto que se vieron obligados a vender sus tierras, hecho corroborado por las múltiples prohibiciones de venda dictadas a los campesinos por los grandes señores (daimyo). Para obtener dinero prestado, los campesinos, a quienes les estaba prohibida la venta, recurrieron a hipotecar su tierra o a la instituición de renras (Rentenkauf) como durante la Edad Media em Europa occidental.

Apesar de intimamente relacionada com o desenvolvimento da agricultura comercial, cabe uma ressalva para o processo de desapropriação, pois a perda de terra por pequenos camponeses variava em grau, dependendo do tipo da cultura ou da atividade predominante em determinada região. Segundo Vlastos (1986, p. 109), as áreas especializadas no cultivo de arroz e algodão foram onde mais se viu o processo de desapropriação campesina. In the Kinai cotton districts, tenancy reached 70 to 80%, and in riceexporting districts, such as the Shonai plain north of Fukushima, a few landlords owned whole villages.

In contrast, silk-producing villages

contained comparatively small numbers of tenant farmers, even though commercial farming had substantially supplanted subsistence farming.

Há três razões para que as áreas produtoras de algodão e arroz fossem mais propensas ao processo de desapropriação do camponês do que regiões mais voltadas para atividades complementares ou comerciais, como era ocaso da Região de Shindatsu com a produção de seda, como já explicado no item 2.2. Em primeiro lugar, as terras das regiões produtoras de arroz e algodão tendiam a ser mais produtivas, o que fazia com que a aquisição dos direitos de

73

uso e posse da terra fosse vantajosa para os camponeses e mercadores ricos. Em oposição a este valor da terra, nas regiões produtoras de seda ou sal, não era preciso ter uma propriedade maior para se ter a geração de um excedente maior, enquanto os arrozais e campos de algodão demandavam grandes quantidades de terra para se ter maior produção. Por fim, em locais concentrados no cultivo de arroz, não havia uma alternativa à sobrevivência senão as atividades tradicionais e algum cultivo de inverno que poderia complementar a renda e garantir a subsistência do camponês e sua família. Já em regiões concentradas na sericultura, por exemplo, esta atividade se tornava uma fonte de sustento e, mesmo com minúsculos lotes de terra que não garantiam o sustento da família, tinha-se uma renda que passava pelo mercado, evitando que os camponeses perdessem suas terras, tornando-se arrendatários (VLASTOS, 1986, p. 109). Assim, apesar do processo de desapropriação não ter ocorrido em todas as partes do Japão, acredita-se que seja de fundamental importância ressaltar esse processo, pois esta é uma forte tendência que foi coroada no contexto da Restauração Meiji, quando a terra passou a ser efetivamente uma propriedade privada e o governo legitimou a relação entre o novo proprietário de terra e seus arrendatários, que continuam pagando taxas em espécie em pleno processo de modernização capitalista japonesa. Além disso, essa tendência que se exacerba a partir da segunda metade do período Tokugawa e que ganha impulso no século XIX deve ser entendida como uma das facetas da desarticulação da antiga noção de cooperação que existia dentro da aldeia camponesa, dadas as possibilidades de acumulação pelo uso extensivo da terra, concentrada nas mãos de alguns ricos camponeses e mercadores.

Essa tendência

também tornaria a ser uma das razões para as inúmeras revoltas camponesas que ocorreram no período. Como já destacado, as expropriações dos camponeses mais pobres eram feitas pelos camponeses ricos, ou seja, famílias tradicionais da aldeia, e pelos mercadores enriquecidos, mesmo com a proibição de transferência de terra determinada pelo governo central. E a expropriação e a exploração dos camponeses por essa camada abastada poderia se dar de duas maneiras. A primeira forma era por dívidas. Dadas as inúmeras dificuldades enfrentadas pelos camponeses que não conseguiam sustentar todos os membros de sua família apenas com o seu pequeno lote de terra, sujeito a todas as vicissitudes climáticas, muitos pediam empréstimo a essas famílias tradicionais ou aos mercadores, dando como garantia os seus papeis de registro no kenchi. Em documentos de registro de petições deste período, há relatos, por exemplo, de aldeias de Tsuyama, que alegavam 5 a 10 mortes por inanição por ano entre os camponeses,

74

enquanto o mesmo número de camponeses falidos tinham seus lotes confiscados diante da impossibilidade de pagamento de todo montante devido de imposto (BIX, 1986, p. 11). Assim, na impossibilidade de realizar todos os devidos pagamentos, o camponês se endividava e hipotecando a terra, acabava muitas vezes perdendo-a. Entretando, em vez de deixarem a terra, essa mesma família camponesa que perdera a terra continuava cultivando o mesmo lote que antes havia sido registrado em nome de sua família pelo kenchi, mas agora na categoria de arrendatário e não mais de honbyakusho. Ou seja, não tinha mais o status de um legítimo camponês, devendo agora realizar os pagamentos em espécie do montante referente às taxações sobre o uso da terra e também compartilhar a colheita com aquele que passou a possuir os papeis de registro da terra (TAKAHASHI, 1953, p. 76-77). A segunda forma de aquisição de terras era através do processo de expansão dos terrenos aráveis, incentivados pelos próprios senhores daimyo. Com o intuito de aumentarem seus rendimentos por meio da expansão dos cultivos, os próprios daimyo buscaram terras não registradas no kenchi onde seria preparada uma nova infraestrutura de irrigação e a preparação do solo. No entanto, como era preciso um montante considerável de recursos a serem investidos para, por exemplo, captar água para os arrozais e arar esses terrenos que eram menos produtivos, contou-se com o apoio financeiro de mercadores e camponeses ricos, bem como com uma abundante mão de obra camponesa. No momento em que essas terras se encontravam prontas para serem cultivadas, os financiadores eram autorizados a ficarem com todo o lote arado, pois o que importava ao daimyo era o devido pagamento dos impostos. Assim, era dado o direito de uso e posse ao mercador ou ao camponês que arrendava os lotes para camponeses pobres, muitos deles que já haviam trabalhado na preparação do solo. Os arrendatários pagavam, assim, uma taxa pelo uso do solo ao detentor dos direitos de uso e posse e também pagavam ao daimyo pelo uso do solo. Como essas novas terras preparadas para o cultivo sofriam uma taxação menor dos censos senhoriais, essa categoria de proprietário não camponês aumentou no decorrer do período do Shogunato Tokugawa (TAKAHASHI, 1953, p.78). E essa especificidade é de extrema importância, pois o próprio mercador entra para a estrutura de classes do sistema senhorial japonês de forma sui generis, intervindo no campo, financiando projetos de expansão de terras aráveis e de irrigação em aliança com o daimyo e os grandes proprietários de terras. O mercado, que na rígida estrutura social estabelecida pelo shogunato de Toyotomi Hideyoshi estava posicionado abaixo dos camponeses, com mera função de deslocamento de produtos, passa a ascender economicamente, tendo importante

75

papel no financiamento tanto da produção campesina, como do governo, cada vez mais endividado e sem recursos para financiar sua pesada estrutura burocrática apenas com os impostos recolhidos dos camponeses. Outro ponto que deve ser destacado é que não havia nenhuma regulação, por parte do governo, da relação entre o arrendatário e aquele que tinha o direito de uso da terra. Dessa forma, os já gravosos impostos cobrados pelo governo eram acrescidos de uma taxação sobre a qual o governo não tinha nenhum controle. E isso dificultou ainda mais a vida do pequeno camponês que não podia contar com a “benevolência” do governo em momentos de dificuldade e nem com a cooperação do “dono” da terra onde trabalhava, pois perdendo sua terra e seu título de camponês, manter o seu ie, ou seja, as terras onde seus ancestrais trabalharam e sua família atual, era a prioridade (VLASTOS, 1986). No entanto, cabe ressaltar que apesar dessas transformações no campo e do surgimento do capital mercantil, nesse período não havia uma estrutura de propriedade da terra de caráter capitalista. Na realidade, esta nova estrutura e o capital mercantil que vai se desenvolvendo vem apenas reforçar uma “servidão feudal”, não polarizando capital e o trabalho assalariado, mas criando uma diferenciação dentro da camada camponesa que contribuiu para atar o camponês desapropriado à terra.

Ou seja, não se pode falar em

capitalismo, pois o modo de produção e não as transformações que ocorrem na terra ou nos produtos agrícolas, nem mesmo um possível “espírito capitalista” que determina uma produção capitalista. É preciso não apenas a transformação dos produtos agrícolas em mercadoria, mas também os trabalhadores, que devem ser assalariados livres e não camponeses presos à terra (TAKAHASHI, 1953, p. 79-80). No entanto, é possível, seguindo a interpretação de Ellen Wood (1998), identificar como a origem do capitalismo japonês estava no campo. Apesar da diferença do caráter do arrendatário inglês e do japonês, existiu no Japão uma camada camponesa que juntamente com os mercadores, foram capazes de expandir as terras aráveis, elevar a produtividade agrícola e se engajar em atividades paralelas ao cultivo do arroz e à agricultura de subsistência, com expansão dos cultivos comerciais e desenvolvimento da indústria doméstica. Essas diferenciações gerou uma camada que conseguiu investir na produção e contar com a mão de obra de camponeses empobrecidos que pagavam pelo uso da terra tanto para o governo, como para o novo “proprietário da terra”. E esse ator econômico deve ser ressaltado, pois o seu caráter é pouco alterado após a Restauração Meiji, servindo aos

76

interesses do governo imperial, sem abrir mão dos laços feudais estabelecidos entre proprietário e arrendatário. Assim, após essa breve análise das transformações no campo, é possível compreender que havia uma crise estrutural do sistema senhorial e shogunal do Japão. As diferenciações dentro da aldeia e a ascensão da classe mercadora, poderosa em termos econômicos, se expressava de um lado pelo enriquecimento de uma camada que acumulava direitos de propriedade, enquanto o pequeno camponês não tinha condições de sobreviver com o que sobrava após o pagamento dos impostos.

Dada essa situação, o crédito e as hipotecas

passaram a ter importante papel na vida camponesa, que acabava se endividando excessivamente, sem poder se proteger das condições impostas pelos seus credores e sem poder contar com a proteção do governo ou dos chefes de aldeia, que também se beneficiavam da nova situação. Isso gerou uma deterioração na atmosfera social que acompanhava a sociedade camponesa e suas relações internas, bem como a inicial relação do camponês com o mercador, que tinha caráter colaborativo e que era importante para a sobrevivência da família no campo. Conflitos dentro da classe e entre as classes se exacerbaram neste período, e revoltas camponesas com novas demandas e novas formas passaram a ocorrer com mais frequência na segunda metade do período Tokugawa.

2.3.2 As revoltas camponesas: expressão das transformações Como tratado nos itens anteriores, transformações econômicas e sociais ocorreram de forma mais acelerada a partir da segunda metade do período Tokugawa, ou seja, a partir de meados do século XVIII. No item 1.3, foi mostrado que as revoltas camponesas do final do século XVII começaram a sofrer alterações, com mudança nos motivos e nas ações tomadas. Isso será mais detalhado neste item, para que se possa compreender como as transformações econômicas tiveram impacto na sociedade, gerando novas demandas por parte dos camponeses. Essas transformações econômicas já foram tratadas nos itens 2.1. e 2.2.. Para este capítulo, é importante ressaltar a penetração do comércio nas aldeias e as transformações nas relações sociais estabelecidas no início do período Tokugawa. A produção de commodities se iniciou na última parte do século XVII, na região Kinai que incluía Kyoto e Osaka, em resposta às demandas de consumo da população urbana em rápido crescimento. Osaka era chamada de “Armazém do Japão” e os mercadores buscavam matéria prima do interior e despachavam alimentos e produtos manufaturados em Osaka para Edo. Em uma primeira fase, os

77

camponeses com bom acesso ao mercado de Osaka buscavam aumentar a sua produtividade, utilizando novas técnicas e novos tipos de fertilizantes, vendendo o montante produzido que excedia as taxações e sua sobrevivência (VLASTOS, 1986, p. 73-74). A partir dessas novas possibilidades, um novo processo foi engendrado em algumas regiões que eram mais propícias ao cultivo de determinados itens comerciais como, algodão, tabaco, açúcar, etc. Essas novas possibilidades também se abriram pelo lado das pequenas manufaturas rurais, desenvolvendo a sericultura, a fiação do algodão, a fabricação de ceras e papéis, etc. como já mostrado no item 2.2. O desenvolvimento comercial teve dois impactos na vida aldeã. Em primeiro lugar, as relações de cooperação e também de obediência dentro das aldeias foram rompidas. Por um lado, os pequenos camponeses tinham a possibilidade de se estabelecerem de forma mais independente, sem a necessidade de depender da relação de troca entre capital e mão de obra para sobreviver 63 (VLASTOS, 1986, p. 74-75). Por outro lado, a nova função da terra, não apenas como meio de sobrevivência, mas também como fonte de lucro e poder, engendrou o processo de desapropriação dos camponeses, também já tratado anteriormente. Já em regiões em que a terra tinha um menor peso como fonte de rendimentos, as atividades paralelas ganharam destaque como meio de sobrevivência para o pequeno camponês e como meio de acumulação para os ricos camponeses e mercadores. Esses dois movimentos geraram duas novas razões para a manifestação camponesa: os descontentamentos por conta da diferenciação dentro da aldeia com maior exploração dos pequenos camponeses e as tentativas de pagamento dos impostos ao governo não em arroz, mas em dinheiro. Esses dois grandes motivos expressam como o mercado contribuiu para a desagregação da cooperação interna e transformação da lógica da produção que passa do autoconsumo para interações mais profundas com o mercado. Além dessas insatisfações com relação aos chefes de aldeia, havia também as revoltas contra as famílias tradicionais (das quais o chefe da aldeia também pertencia) e os novos mercadores, que emprestavam dinheiro aos camponeses com a terra em garantia, processo esse já explicado em detalhe, e que muitas vezes abusavam de seu poder para conseguirem expropriar um camponês. Vlastos (1986, p. 82-86) utiliza uma petição de meados dos anos 1800, na região de Shindatsu, enviada pelo assistente do chefe da aldeia ao governo central, e que continha o registro do processo de desapropriação de um camponês que pedira dinheiro 63

Mas este movimento ocorreu com velocidades diferentes em cada região do Japão, sendo a região Kinai a pioneira neste processo de transformação. No entanto, durante a última fase do período Tokugawa esta já era uma tendência que ficava clara, ou seja, cada vez mais o camponês entrava na dinâmica do mercado.

78

emprestado para um rico comerciante de seda da região. Com a petição, o assistente pedia ao governo para que intervisse na situação a fim de que se chegasse a um acordo. Esta petição será relatada de forma resumida a seguir e, apesar de ser bastante descritivo, acredita-se que é ilustrativo para compreender uma das importantes razões para os camponeses se organizarem e realizarem grandes revoltas. Neste caso o camponês Kichiroji fora expropriado por um rico camponês e comerciante de seda, Yoshino Shutaro, com o apoio do chefe de sua família nuclear, Shozaemon. O incidente se iniciou em 1863, quando Kichijiro pediu dinheiro emprestado para Shutaro. Kichijiro deveria pagar todo o valor emprestado com juros, até o final do ano, ou perderia a sua terra que havia sido dada como garantia. No entanto, antes do prazo final, Shutaro deu os papeis da dívida de Kichijiro para o chefe da família nuclear, Shozaemon, assumindo que Kichijiro não daria conta de devolver o dinheiro até o prazo final, dando o direito sobre a terra para Shozaemon. Superando todas as expectativas, Kichijiro voltou para devolver o dinheiro a Shutaro antes do prazo e, nesta ocasião, Shutaro explicou a ele que agora era Shozaemon quem possuía seus papéis. No entanto, ao falar com Shozaemon, este explicou que os papéis, na realidade, ainda estavam com Shutaro. Voltando a falar com o mesmo, Kichijiro tentou por várias semanas pagar o dinheiro devido, sem sucesso. Após a virada do ano, ao tentar novamente devolver o dinheiro, Kichijiro foi informado de que o prazo para o pagamento havia expirado e que não teria sua terra de volta. Indo reclamar com o chefe da aldeia, este recomendou a Kichijiro que não levasse o caso adiante, dado que seria inútil tentar qualquer medida contra pessoas de tanto poder. Consultando outros oficiais da aldeia, estes recomendaram que ele fizesse um acordo informal com Shozaemon para que pudesse continuar trabalhando em sua terra como arrendatário. O chefe de aldeia recomendou que aceitasse essa situação, pois, caso recusasse, não poderia mais contar com nenhuma ajuda. Sem ter o que fazer, Kichijiro aceitou trabalhar nas terras que agora pertenciam a Shozaemon, pagando um aluguel anual de sete hyo (sacas) de arroz. No ano seguinte, mesmo com problemas na colheita, Shozaemon aumentou o pagamento anual de arroz em mais dois hyo (sacas). Kichijiro tentou negociar, mas Shozaemon o ameaçou de despejo. Assim, Kichijiro novamente aceitou a situação, devendo pagar o montante maior de aluguel no ano. Dada a situação precária em que se encontrava e diante da quebra da colheita, Kichijiro acabou utilizando toda a sua produção de arroz para alimentar a sua família, não sobrando nada para pagar Shozaemon. Quando Shozaemon soube do ocorrido, avisou a Kichijiro que

79

iria substituí-lo por outro arrendatário caso não pagasse todo o valor devido. Kichijiro, pedindo ajuda a vizinhos e parentes, conseguiu o montante de um hyo que não foi aceito por Shozaemon. Neste contexto, a carta de petição foi enviada pelo assistente do chefe da aldeia, pedindo ao governo que desse uma ordem a Shozaemon, para que aceitasse o um hyo de arroz como uma parcela do pagamento. Não se sabe qual o fim da história, mas, três anos depois, na grande revolta de Shindatsu, casas de Shozaemon e de seus parentes, bem como sua fábrica de sakê foram atacadas e destruídas por camponeses locais. Vlastos (1986) especula quantos camponeses teriam sido vingados por este ato coletivo. Este caso mostra como as desapropriações poderiam ocorrer de forma arbitrária, mesmo sendo a transferência de direitos de uso da terra proibida pelo governo. Fica claro, também, como os ricos camponeses e mercadores, contando com o auxílio dos chefes de aldeia, conseguiam extorquir os camponeses, de uma forma a não restar alternativa, a não ser se tornarem arrendatários. A antiga relação de cooperação que existia entre os estratos camponeses deixava de agir como força de união da heterogênea camada camponesa. A segunda causa refere-se ao novo caráter da produção camponesa que passava também a visar o mercado. Vlastos (1986) demonstra que os camponeses de regiões com mais ligação com os grandes centros ou que eram propícias à produção de produtos voltados ao mercado, não queriam mais pagar as taxações em arroz pelo uso da terra, solicitando a comutação do pagamento em dinheiro, pois dada essa produção voltada para o mercado, era difícil até mesmo produzir o próprio arroz para alimentação (VLASTOS, p. 80). Como mostrado na Tabela 2 a seguir, na região de Shindatsu 64, grande produtora de seda, as revoltas que tinham como causa o pagamento das taxas em produto foram predominante a partir de 1800. Tabela 2: Principais causas dos protestos camponeses em Shindatsu, de 1700 à 1867 Causa

1700-1799

1800-1867

Aumento das taxações e pesquisas cadastrais

5 (28%)

-

Pagamento das taxas em produtos

1(6%)

10 (36%)

Ajuda e isenções

7 (38%)

7 (25%)

Malfeitoria do chefe da aldeia

2 (11%)

6 (21%)

Outros

3 (17%)

5 (18%)

Total

18 (100%)

28 (100%)

Fonte: Aoki Koji (1966), p. 38 64

Apenas 30% das terras da região eram próprias para o cultivo do arroz e, muitas vezes, essa produção não era suficiente nem ao menos para a sobrevivência dos seus membros, devendo ocorrer a compra do produto através do mercado (VLASTOS, 1986, p. 81)

80

Ou seja, a penetração do mercado nas aldeias, notadamente naquelas com especialização da produção, fez com que fosse mais vantajoso ao camponês pagar os seus impostos não em espécie, mas em dinheiro. Na região de Shindatsu, há registros de envio de pedidos ao governo para autorizarem o pagamento dos impostos em dinheiro, alegando que toda sobrevivência da aldeia dependia basicamente da venda da seda para outras províncias e que era assim que pagariam pelos devidos impostos (VLASTOS, 1986). Assim, nessas regiões onde se tinha uma alternativa de sobrevivência pelas atividades paralelas, as razões de suas revoltas não estavam ligadas à questão da terra, mas sim às questões relativas ao mercado e as oportunidades de comercialização de seus produtos. Cabe destacar, por fim, um exemplo de revolta que evidencia o colapso do sistema de cooperação que existia entre os ie mais tradicionais e mais pobres, dadas as novas relações comerciais que penetraram de forma mais significativa na aldeia. Retomemos ao caso de Shindatsu, tratado no item 2.2. Esta região, com clima e solo adequado para as amoreiras, tornou-se uma grande produtora de bicho-da-seda. Pelas características da produção do fio, mesmo os pequenos camponeses puderam complementar a sua renda e muitas vezes garantir a sobrevivência através dessa atividade econômica. Por conta disso, mesmo os camponeses com pequeníssimos lotes de terra, que eram claramente insuficientes para sustentar sua família, conseguiam continuar sendo camponeses. E nesta região ocorreu uma das maiores revoltas camponesas em 1866. E o motivo dessa revolta fora o aumento das taxações sobre as caixas de casulos do bicho-da seda. No entanto, o aumento das taxações fora um plano elaborado pelos ricos camponeses que eram produtores de bicho-da-seda em larga escala e que se viram ameaçados pela expansão dos pequenos camponeses organizados em trabalhos familiares, com eficiência tão grande quanto a das suas grandes instalações. Vlastos (1986, p. 114-118) explica que os ricos camponeses enviaram um pedido ao governo central para que fosse feita uma inspeção rigorosa da produção do bicho-da-seda na região de Shindatsu, pois muitos camponeses não seguiam um aceitável padrão de qualidade, comprometendo a reputação dos produtores locais e bagunçando o mercado. Abrindo os olhos do governo para um negócio pouco taxado, os próprios camponeses que enviaram a petição foram nomeados fiscais do governo e passaram a verificar a produção dos pequenos camponeses, aplicando as taxações mais elevadas de acordo com as instruções do governo. E essa taxação mais elevada, colocou os pequenos camponeses em uma situação de grande dificuldade. Diferentemente dos camponeses ricos, os camponeses mais pobres

81

vendiam sua produção pouco a pouco, nos mercados locais ou para alguns mercadores itinerantes, não tendo um montante significativo de recursos em mãos ao longo do ano, utilizando a renda para sobreviver juntamente com a família. Os camponeses ricos, mesmo tendo que pagar mais impostos, não viam isso como um problema, já que a concorrência passaria a diminuir conforme os pequenos produtores fossem falindo (VLASTOS, 1986, p. 121). Pedindo ajuda do chefe da aldeia para levar seu pedido de diminuição das taxas para o governo, os pequenos camponeses não obtiveram sucesso, dado que o chefe da aldeia também era um grande produtor de seda. E, não tendo recursos suficientes para levaram as demandas para o governo central, a solução encontrada fora a revolta. Rapidamente os informativos sobre o levante circularam entre as aldeias e, apesar de avisos e tentativas de se chegar a um acordo, as dificuldades climáticas da colheita de arroz na região deixaram os camponeses famintos e dezenas de milhares de camponeses se mobilizaram por uma semana de junho de 1866, realizando ataques contra as propriedades dos camponeses ricos e chefes de aldeia da região (VLASTOS, 1986, p. 126). No total foram 184 casas e negócios destruídos em 63 aldeias. E mesmo com fome, Vlastos (1986, p. 137-139), baseando-se nos documentos do período, afirma que os camponeses destruíram imensas quantidades de comida, roupas, seda e até mesmo dinheiro. Esses relatos das áreas mais inseridas na economia comercial, bem como as revoltas camponesas diante das desapropriações e abuso de poder dos chefes de aldeia, indicam a repulsa dos pequenos camponeses por aqueles que se tornaram obcecados pelo interesse individual, deixando de lado as noções de cooperação que outrora existira na aldeia. De fato, os pequenos camponeses também se engajaram nas trocas comerciais, mas o seu objetivo era o sustento de sua família e a melhoria na condição de vida que era bastante precária. Como mostrado no capítulo anterior, as antigas relações de cooperação e dependência foram sendo desestruturadas ao longo do período, acelerando-se na segunda metade do período Tokugawa. Esta aceleração pode ser comprovada pela maior quantidade de revoltas que ocorreram na segunda metade do período. Como evidenciado na Tabela 3 abaixo quase duas mil revoltas ocorreram durante a segunda metade do período Tokugawa, enquanto, na primeira metade, aproximadamente oitocentos e cinquenta revoltas foram registradas. E as formas das revoltas, que são diferentes entre os dois períodos, também ajudam a comprovar essa quebra na relação estável da aldeia, como será explicado a seguir.

82

Tabela 3: Principais tipos de revoltas camponesas no Japão de 1601-1867 Protestos com uso

Ano

Apelações

da força

diretas

física

Petição

Fuga

Destruição

coletiva

de casas

Outros

16011650

209 33 (4%)

10 (4%)

50 (24%) 50 (24%) 33 (16%)

33(16%)

16511700

75 (36%)

27 (13%) 40 (19%) 35 (17%)

10 (4%)

24 (11%)

98 (23%)

99 (23%) 61 (15%) 35 (8%)

49 (12%)

80 (19%)

101 (15%)

184 (27%) 44 (7%)

36 (5%)

153 (23%) 152 (23%)

(100%) 814

117 (15%)

164 (20%) 68 (8%)

42 (5%)

187 (23%) 236 (29%)

18511867

(100%) 670

18011850

(100%) 422

17511800

(100%) 211

17011750

Total

(100%) 373

41 (11%)

71 (19%) 42 (11%)

8 (2%)

95 (26%)

116 (31%)

(100%)

Fonte: Aoki Koji (1966), p. 36-37

Como mostrado na tabela XXX acima, as apelações diretas, petições e fugas coletivas tiveram maior peso nas demonstrações de insatisfação dos camponeses na primeira metade do período Tokugawa. A partir da segunda metade do período, o que se observa é um aumento dos protestos mais violentos, com uso de força física e destruição de casa. Esse aumento da violência camponesa deve ser entendido também dentro de um contexto maior das transformações no campo. Passou-se, neste período de uma luta coletiva da classe como um todo contra a exploração campesina (em busca de redução da taxação) para a luta da base do estrato contra o topo da própria camada camponesa e dos ricos mercadores donos de terras. E para essas demandas, não era possível contar com a “benevolência” dos senhores de terra, pois o alcance deles dentro de uma economia envolta nas relações comerciais era menor. Nas palavras de Vlastos (1986, p. 160) In terms of juridical status, all were peasants; but by the late Tokugawa period, those at the top of the market economy were deeply involved in trade, moneylending and renting land – competitive economic relations with other peasants. On the other hand, those at the bottom engaged in a type of subsistence to the extent that income from cash crops and by-employments was used directly towards the purchase of subsistence goods. Unlike

83

subsistence farmers of the early Tokugawa period, however, for their survival they depended on the exchange value of the commodities they produced rather than seigneurial benevolence. In fact, there was little that even the most benevolent daimyo could do to protect them, as he could not regulate the economic behavior of thousands of individual participants in the market. The interest rate moneylenders charged, how much rice village merchants sold and at what prices, and the rents demanded by landlords were beyond the regulatory powers of the feudal ruling class.

Assim, a entrada das relações comerciais na aldeia e as transformações que esta acarretou na noção de uso da terra alterou as antigas relações que, de uma certa forma, criavam uma dependência e uma necessidade de subordinação e obediência dos camponeses com menores lotes de terra em relação às famílias tradicionais e aos chefes de aldeia. E dada essa nova situação, não podendo mais contar com a “benevolência” dos daimyo e do governo central, os camponeses passam a se organizar de forma mais ativa, buscando alternativas para serem escutados nos momentos de crise. Na primeira metade do período Tokugawa, quando as relações comerciais ainda não haviam entrado de forma significativa na economia camponesa, era possível pedir a intervenção do governo, nos momentos de crise, através do uso das petições. Havia um interesse comum e uma movimentação coletiva de todos os estratos que lutavam contra os pesados impostos e a corrupção dos fiscais do governo. Todavia, com o desenvolvimento dos mercados, a interdependência que existia na aldeia foi abandonada. E, da mesma forma que o pequeno camponês buscou sobreviver por meio de atividades complementares aos cultivos tradicionais, o rico camponês e o chefe da aldeia também começaram a utilizar a terra e a sua posição econômica e social em benefício próprio. A função (yaku) do chefe de aldeia, que era a de organizá-la e de defender os interesses dos camponeses foi abandonada. E, aos pequenos camponeses, sobrou a mobilização social e o uso da violência para serem ouvidos de alguma maneira65.

65

Cabe destacar que havia diferenças regionais no país, sendo que inúmeras aldeias afastadas dos grandes centros se mantiveram com pouquíssima transformação até a Era Meiji, ou mantendo um ritmo mais lento de mudanças. Mas o que se objetiva mostrar, como já ressaltado anteriormente, é que havia uma tendência clara de que “na segunda metade do período Tokugawa, a elevada produtividade, o cultivo comercial, as atividades paralelas à agricultura e a manufatura aumentaram significativamente a participação do camponês no mercado” (VLASTOS, 1986, p. 75). E isso, de fato, alterou a forma como o camponês manifestava suas insatisfações.

84

3. A RESTAURAÇÃO MEIJI E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS TRANSFORMAÇÕES A Restauração Meiji, que se inicia a partir de 1866, com o taisei no kan (que significa a transferência do poder estatal shogunal ao imperador), constituiu um processo político, econômico e social que conduziu à modernização de todo o aparado do Estado e gradualmente das forças produtivas, dissolvendo o chamado regime feudal japonês 66 . Considera-se que este é o marco histórico do início da moderna sociedade japonesa. Neste processo de modernização, o Estado voltou-se mais ativamente para a construção de uma infraestrutura que preparou as bases para a moderna indústria, comércio e finanças que foram indispensáveis para o rápido desenvolvimento do país (CRAWCOUR, 1988, p. 385). Em um contexto de expansão dos conflitos imperialistas na Ásia, o Estado japonês teve como imediata preocupação a defesa nacional contra o poder estrangeiro e a proteção militar contra os dissidentes do novo regime (YOSHINO, 1968, p 20; HOBSBAWM, 1977, p. 234). Sob o lema “enrich the country and strenghthening the armed forces”, a saída para a superação do seu atraso tecnológico foi a absorção da tecnologia ocidental com rápida adaptação às realidades japonesa. Assim, desde o início da Era Meiji, a necessidade de instalação de um parque industrial que atendesse aos interesses bélicos do país e substituísse a importação de produtos, que levava deixava a balança comercial deficitária, foi vista como algo intrinsecamente relacionado com o objetivo de se tornar uma nação dominante. Além disso, diante da sua condição de país pobre em recursos naturais e do seu território pequeno e relevo bastante acidentado, o Japão permanecia em posição subserviente em relação às nações ocidentais. Os 66

A crise política da década de 1860 foi o resultado de um processo de desarticulação das forças que sustentavam o shogunato tanto em termos internos quanto externos. Não é possível afirmar qual força foi maior e qual foi menos importante, mas é possível enfatizar que dada a crise interna, a pressão internacional que se dá a partir da abertura dos portos na década de 1950 acelerou o processo de mudança do regime. Como já visto no capítulo 2, o final do século XVIII e início do XIX já evidenciava alguns elementos da crise do Shogunato Tokugawa. Notadamente nas décadas de 1830 e 1840, chamado de período Tempo, o Japão foi devastado por problemas na agricultura e diante dessa crise, o governo não conseguiu mediar de forma eficiente a situação, abrindo brecha para as diversas revoltas camponesas que abalaram o período. Muitos historiadores consideram esse período, bem como as reformas que foram realizadas (Reformas Tempo) como sendo a evidenciação da crise do Shogunato, pois houve uma tomada de consciência por parte do governo de que era preciso tomar algumas medidas para sustentar a situação. Ou seja, como já mostrado, essa desarticulação do governo Tokugawa fora um processo longo que se acelerou em meados do século XIX 66 (BEASLEY, 1989). Pelo lado externo, a tomada de consciência da inferioridade do Japão em relação aos países imperialistas ocidentais também já havia ocorrido há algumas décadas. A derrota chinesa na Guerra do Ópio (1838-1842) deixou claro que a supremacia chinesa poderia ser facilmente abalada pelo poderio bélico ocidental. E nesse contexto, cabe destacar que a preparação da repulsa nacional pelo estrangeiro imperialista já vinha sendo estruturada através do ensino nacional (kokugaku) (JANSEN, 1989).

85

homens de Estado japoneses tinham consciência de que o Japão, ainda exportando seda e chá, só poderia sobreviver no mercado mundial dominado pelas potências ocidentais caso se tornasse um exportador de produtos manufaturados (HOBSBAWM, 1977). E o imperialismo não tardaria a mostrar-se como fundamental à continuidade da expansão, expressando-se em um primeiro lugar como busca de terras agricultáveis e posteriormente como fonte de matérias primas e manufaturados. Os obstáculos à industrialização eram evidentes, dado que se tratava de um país que tinha se deparado com o expressivo avanço tecnológico ocidental após anos de isolamento (HALL, 1970). Além disso, a Revolução Industrial já adentrara em sua segunda etapa, demandando ainda mais tecnologia e recursos com produções em elevadíssimas escalas. E nesse contexto específico, a participação do Estado foi decisiva na centralização dos capitais e para a implantação da infraestrutura moderna foi crucial (ALONSO, 1985: 247-251). Os gastos do governo advinham da modernização, mas também da manutenção de uma estrutura senhorial do período Tokugawa, dado o pagamento de pensões aos daimyo e Samurais que abriram mão de suas terras e seu status social 67. Segundo Vlastos (1989), no início de 1870, esses estipêndios e as dívidas dos senhores que foram assumidas pelo novo governo consumia a maior parte dos recursos do governo. Esse acordo entre o novo governo e a antiga elite foi uma das formas que o governo encontrou para evitar grandes conflitos armados entre o novo governo e os daimyo e inserir a antiga classe dominante, da qual essa nova elite política também fazia parte, dentro do sistema burocrático de Meiji, permitindo que conseguissem se sustentar e viver sem grandes adversidades. Para sustentar toda essa nova estrutura de governo e seguir com os planos de modernização, a única forma viável de financiamento fora o reforço das taxações no campo. Não era considerado uma opção ao governo imperial se endividar com recursos externos, o que poderia colocar em cheque a sua soberania, aumentando ainda mais a sua vulnerabilidade. E além do financiamento, o campo também foi responsável pela geração de mão de obra 67

Diferentemente do caso das Revoluções Ocidentais onde os direitos feudais foram abolidos, no Japão o Estado realizou a compra das “propriedades” (han) dos senhores (daimyo) e criou novas unidades administrativas denominadas ken, unificando assim, o território nacional sob o comando de um Estado moderno (TAKAHASHI, 1985, p. 92). Ou seja, os daimyo não saíram prejudicados no processo. Como explica Takahashi (1953, P. 92), em troca das suas propriedades, eram pagas prestações em arroz (karoku). Além disso, entre 1872 e 1873, o novo governo cancelou o papel moeda irregular que foi colocado em circulação por estes mesmos daimyo ao final do período Tokugawa e cancelou seus imensos empréstimos. Aos mercadores usurários foram fornecidos títulos de empréstimos reembolsáveis pelo governo. Em 1875, as prestações que eram pagas em arroz passaram a serem pagas em dinheiro (kinroku), graças à Reforma do imposto territorial, sendo que no ano seguinte, foram reconvertidas em rendas pagas pelo Estado e que poderiam ser livremente negociáveis. Para Takahashi, assim foi o processo de desaparecimento do regime político senhorial existente no Shogunato Tokugawa.

86

assalariada para o mercado de trabalho, muitas delas com amplo conhecimento técnico por conta das indústrias rurais que se desenvolveram pelo país no período Tokugawa. Assim, neste capítulo serão tratadas as transformações no campo que ocorreram a partir da Restauração, para que a fonte de recursos do governo fosse garantida. No entanto, essas mudanças aceleradas não seriam sentidas sem distúrbios no campo. E dessa forma, será tratado também as revoltas camponesas que marcaram o período. O objetivo desse capítulo não é o detalhamento do processo político que culminou na restauração, dado que há uma vasta literatura sobre o tema. A proposta é detalhar o que de fato ocorreu no campo para sustentar os projetos de rápida modernização japonesa.

3.1 A Era Meiji e as Transformações no campo O campo teve um papel fundamental para o financiamento da modernização japonesa. E foi através da manutenção de pesadas taxações sobre o camponês, dados os escassos recursos de capital industrial e da recusa de tomada de empréstimo internacional que o Estado pode organizar o salto para o capitalismo japonês. Como explica Vlastos (1989, p. 373), Havia poucas fontes adicionais de receitas que o governo estava disposto ou que tinha a possibilidade de utilizar. Rejeitaram-se os empréstimos internacionais por conta dos óbvios perigos à segurança nacional no caso de uma subsequente inadimplência e foi determinado que as taxações sobre o comércio e indústria seria mais leve possível para acelerar a formação de capital. Além disso, os tratados comerciais que foram impostos ao Japão pelo Ocidente limitavam os recursos advindos do comércio internacional.

E a possibilidade de contar com esses recursos tiveram como base a manutenção e o reforço da já explicada tendência de concentração da terra via desapropriação dos camponeses mais pobres e o aumento da diferenciação ente os estratos camponeses que vinha ocorrendo desde meados do período Tokugawa. Essas transformações foram de fundamental importância para a extração dos recursos necessários ao financiamento dos avanços econômicos do país (NORMAN, 1940; TAKAHASHI, 1959). Assim, o governo restaurado adaptou os tributos que eram recolhidos em espécie pelo Shogunato Tokugawa transformando-os em dinheiro, através do que foi chamado de chisokaisei (literalmente seria a Reforma do Imposto Territorial, mas significou a Reforma Agrária da Restauração Meiji) 68. O ponto fundamental dessa reforma era a finalidade de não serem 68

A reforma estava praticamente concluída entre 1876 e 1877, no que se refere às terras para a produção agrícola, como arrozais e campos de cultivo. Foi feita a distribuição das notas de propriedade, bem como a medição das

87

rebaixados os antigos ingressos de recursos anuais do governo. Ou seja, os impostos cobrados no campo seriam no mínimo equivalentes ao que era cobrado no período Tokugawa. Assim, os primeiros passos rumo à estruturação desses novos recolhimentos se deu já no ano em que foi realizada a Restauração, quando o governo declarou que as terras das aldeias pertenciam em sua totalidade aos camponeses. Já no ano de 1871, promulgou-se a liberdade de cultivo de campos e arrozais, eliminando as antigas restrições de uso da terra e em 1872, legalizou-se a venda das terras que pertenciam aos camponeses, com proibição da expropriação dos camponeses que já tinham suas terras registradas no Kechi (TAKAHASHI, 1953, P. 89). Em 1872 foi requerida uma nova pesquisa para a avaliação das terras e novos certificados foram emitidos. Esses certificados, que eram “notas de terras”, denominadas chiken possibilitavam a compra e a venda das terras através da fixação do direito de posse e da determinação de seu preço (TAKAHASHI, 1953). Ou seja, aqueles que possuíam o documento de comprovação do registro da terra em nome de sua família pode se tornar proprietário efetivo da terra. É apenas com o estabelecimento do chiken que se tem a propriedade da terra garantida dentro de uma noção moderna e ocidental. Era preciso, assim, que cada pedaço de terra estivesse devidamente registrado no nome do seu proprietário para que fosse possível identificar legalmente o responsável pelo pagamento do devido imposto. Finalmente, em Julho de 1873 promulgou-se o Chiso Kaisei Jorei (Normativa da Reforma do Imposto Territorial) que foi a reestruturação do sistema de impostos territorial (NORMAN, 1940, p. 142) O chiken, ou seja, o certificado de propriedade da terra era muito mais detalhado do que o registro de direito de uso e posse das terras registradas no Kenchi. Continha o nome e o endereço do proprietário, a sua localização, a categoria e a área da parcela e também o seu valor monetário. O documento continha o selo e a assinatura do governador da prefeitura onde o lote de terra estava localizado e uma cópia do documento permanecia no gabinete da prefeitura. Assim, com o novo registro, no momento de realizar a venda era preciso não apenas realizar a transferência dos papéis, mas também fazer as devidas atualizações nos registros que permaneciam na prefeitura (SATO, 2011, p. 14). Nesta nova estrutura de registro da terra, é preciso destacar uma das caraterísticas cruciais do campo Tokugawa que fora alterada. A partir do estabelecimento do chiken, a aldeia perdera o seu antigo papel de influência no pagamento dos impostos e na noção de solidariedade e obrigação de pagamento conjunto por aldeia, não tendo também o poder de terras e suas corretas demarcações sendo que entre 1881 e 1882 completou-se a reforma no que tange a estradas e bosques. Foi feita também uma diferenciação das terras que era propriedade privada das terras do Estado.

88

interferir nas transações de terras que ocorriam dentro de sua jurisdição. O pagamento dos impostos era uma responsabilidade individual, devendo o seu proprietário se desfazer da terra quando não tivesse mais a possibilidade de realizar os devidos pagamentos. O ponto mais importante da reforma, para os seus formuladores, era garantir uma receita estável para o governo, ou seja, que esta não flutuasse de acordo com a produção, como era no período Tokugawa, estruturando um sistema de taxação unificado que fosse de fácil arrecadação e de difícil evasão. Como já explicado na seção anterior, a taxação no período Tokugawa era baseada no kokudaka de cada lote que formavam uma aldeia, devendo ser pago em arroz, de acordo com o nengu definido. Enquanto isso, na Reforma, um procedimento uniforme de avaliação das taxações baseado nos valores de mercado das terras foi elaborado, e uma taxa fixa de 3% sobre o valor da terra deveria ser paga em dinheiro, diretamente ao Estado por cada proprietário de terra, não mais em espécie e nem baseando-se na produtividade do lote (kokudaka) (VLASTOS, 1989, p. 374). Segundo Takahashi (1953, p. 97), com a cobrança dos 3%, os novos impostos territoriais representavam, economicamente falando, um equivalente dos antigos censos senhoriais. Ou seja, essa Reforma Agrária apesar de propor mudanças que reestruturavam de forma fundamental o antigo sistema de propriedade e de pagamento de impostos, conseguiu habilmente manter os mesmos níveis da taxação do período Tokugawa. Determinava-se também que a taxa arrecadada não seria alterada de acordo com o sucesso ou o insucesso de uma colheita (VLASTOS, 1989, p. 374; NORMAN, 1940 p. 142). Ou seja, ao mesmo tempo que se tinha a libertação do pequeno proprietários camponês das amarras do feudalismo, com o novo governo, perdia-se um certo “paternalismo” do senhor que tinha a preocupação de checar se o camponês tinha o mínimo para sobreviver 69. Além disso, os camponeses pobres foram prejudicados também por conta da delimitação das terras que eram propriedade privada e das terras que eram estatais. Muitas áreas comunais, estradas e bosques que eram utilizados coletivamente pelos camponeses para conseguirem lenha,

69

Nas palavras de Norman (19.., p. 143), “that they neither died or lived.” Mas como destaca o autor, Kanda Kohei, um dos principais arquitetos da reestruturação da taxação sobre a terra, criticou em 1871 aqueles que se opunham à liberação da venda e divisão das terras ao argumentarem que isso prejudicaria o pequeno camponês aumentando ainda mais a distância entre o rico e o pobre. Kohei respondeu a críticas com o argumento de que os sábios e diligentes se tornam ricos e que os tolos e desocupados empobrecem. Alegava-se que ao proibir a alienação da terra, tentando-se não criar ampla diferenciação do rico e do pobre, isso prejudicaria os sábios e diligentes, encorajando os ociosos e ineficazes. Para Kohei, o paternalismo feudal e a noção de responsabilidade comunal tinha que ser suprimida pelo direito individual da propriedade da terra. Segundo Vlastos (1989, p. 379), na Era Meiji, reduções nas taxações apenas eram permitidas quando as perdas na colheita representavam mais de 50% do que havia sido cultivado.

89

fertilizantes, material para construção das casas, etc. foram abolidas e passaram a ser de propriedade do Estado70 (NORMAN, 1940). Se produziu durante a Restauração, uma espécie de emancipação do campesinato, como ocorreram em outras sociedades modernas. Mas essa emancipação camponesa não teve o mesmo caráter do que ocorreu na Revolução Francesa. Na realidade, o que se observou foi uma emancipação da classe detentora de terra, com maior benefício para aqueles que detinham maior número de lotes agricultáveis. A diferenciação dentro do campesinato já vinha avançando desde a segunda metade do período Tokugawa. O que ocorreu de fato é que, ao mesmo tempo em que o governo não poderia deixar de taxar o campo, estabeleceu-se uma aliança entre o governo e os grandes proprietários de terra que não poderia ser abalada por pesados impostos. Assim, a elaboração da Reforma, envolvia a necessidade de se manter a taxação sobre a terra sem gerar problemas para o novo governo. Como explica Vlastos (1989, p. 373), Apesar dos líderes não verem nenhuma alternativa à manutenção das elevadas taxas na agricultura, eles não poderiam arcar com a perda da aliança dos agricultores com o Estado. Havia pouca razão para temer uma revolução rural. Mas até uma resistência passiva na forma de suspensão das taxas poderiam restringir o tesouro e pequenos e não violentos protestos sempre tinham a possibilidade de se intensificar. (...) O dilema enfrentado pelo governo Meiji era como assegurar a cooperação dos agricultores com o novo sistema de taxação sem reduzir substancialmente os recursos da taxação sobre a terra. Parte da solução envolveu a eliminação das restrições feudais na propriedade da terra e na legalização das relações capitalistas de produção, mudanças bem recebidas e que beneficiaram particularmente os grandes proprietários.

Como introduzido anteriormente, os responsáveis pelos pagamentos dos impostos eram os proprietários que tinham suas terras devidamente registradas como suas pelo novo levantamento cadastral do governo, nada sendo feito para regular a relação entre o proprietário de terra e seu arrendatário. E como ressalta Vlastos (1989, p. 375), “os proprietários eram responsáveis pelo pagamento da taxa anual, sendo que eram livres para taxar qualquer aluguel (de arrendamento) que o mercado pudesse suportar”. Ou seja, nenhuma cláusula e nenhuma proteção foi direcionada aos arrendatários, cujo número de já havia se 70

Takahashi (1965, P. 128-129) indica que os confiscos de terras feitos pelo império ocuparam mais da metade das terras do país. O autor mostra que eu 1881, as terras imperiais e estatais representavam 5.276.702 cho (1cho=aproximadamente 1ha) enquanto as terras particulares constituíam 11.388.479 cho. Já em 1890, as terras imperiais e estatais representava, 21.323.261 cho enquanto as terras privadas representavam 12.138.383.

90

expandido significativamente, contribuindo para a manutenção dos interesses dos grandes proprietários de terra. Como explicado na seção anterior, a estrutura agrária japonesa sofreu uma alteração no sentido do avanço na relação proprietário-arrendatário com manutenção da pequenas áreas de cultivo e técnicas pouco desenvolvidas a partir da segunda metade do Período Tokugawa. Segundo os dados do governo, entre 1883 e 1890, quase 370 mil camponeses perderam as suas terras por não pagamento de impostos, representando aproximadamente 11% dos camponeses (SMITH, 1955, p. 82). No entanto, Smith (1955) explica que esse dado mostra apenas parcialmente o processo de desapropriação, pois até o limite antes de abrirem mão de suas terras. Ou seja, o processo de deterioração da condição do camponês era muito mais severo do que o número indica. Utilizando ainda os dados do governo japonês, Smith (1955, p. 83-85) afirma que a proporção de terras aráveis cultivadas por arrendatários aumentou de 34% em 1883 para 39% em 1887 em 18 prefeituras. E durante o mesmo período, em outras 16 prefeituras, o número subiu de 39% para 42%. Ademais, o objetivo do autor é provar que essas perdas de propriedade e aumento de cultivos feitos por arrendatários estava concentrada nas pequenas propriedades. Para isso, o autor usou dados relativos ao número de pessoas que poderiam votar ou se candidatar a membro das assembleias de determinada prefeitura. Segundo o autor, aqueles que poderiam votar precisavam ter uma propriedade avaliada em mais de 200 yen, e aqueles que poderiam se candidatar às assembleias tinham que contar com uma propriedade que valesse mais de 400 yen. De 1884 a 1886, o número de pessoas que poderiam votar caiu 14% enquanto o número de pessoas que poderiam se candidatar caiu 7% no mesmo período. Ou seja, as desapropriações ocorreram mais depressa entre os pequenos camponeses. Assim, a mesma estrutura de Tokugawa foi mantida. Reforçou-se a concentração da terra nas mãos de uma nova classe de proprietários (jinushi) que mantinha as mesmas famílias cultivando as terras de seus antepassados. E com a legalização da alienação da terra, o processo de concentração que já havia se iniciado de forma ilegal no período Tokugawa foi acelerado. Como explica Norman (1940, p. 136), Após a sua emancipação do feudalismo, os camponeses tornaram-se nominalmente proprietários livres, mas esse processo na verdade abriu caminho para a desapropriação dos camponeses, dado que a remoção da proibição das vendas e da divisão das terras legalizou vários mecanismos de aquisição ilimitada da terra por venda forçada, dívidas, etc. Então, podemos

91

dizer que a Restauração trouxe uma genuína emancipação do camponês proprietário, mas não necessariamente como cultivador.

Também para Takahashi (1953), a manutenção dessa estrutura de arrendatários após a Restauração deu continuidade a uma estrutura “feudal” da terra, não se fazendo uma Reforma Agrária que beneficiasse os camponeses. E para Smith (1955), as taxações sobre a terra no período Meiji se mostraram mais gravosas do que no período Tokugawa dada a imensa dificuldade dos camponeses em pagarem os impostos, como mostraram os dados acima e a necessidade do governo em pegar o máximo que poderia da única fonte viável de financiamento da modernização. Consagrando a estrutura de propriedade da terra que vinha se formando desde a segunda metade de Tokugawa, A diferencia de la revolución burguesa occidental del tipo clásico que destruyó la estrutura del Estado absoluto y permitió la instauracion de la sociedade democrática moderna, en el Japón, como consecuencia del predomínio de la propriedade territorial jinushiniana y de los grandes capitalistas privilegiados de carácter monopolista y fiscal, la restauración y la apertura del país bajo la presión de circuntancias externas se vieron orientadas necessariamente havia la formación de um Estado absoluto y oligárquico. En resumen, lejos de suprimirlas, la Revolución Meiji introdujo, consagrando las jurídicamente, las relaciones esenciales de la propriedade feudal em la nueva sociedade capitalista nipona, convirtiéndose en elementos constitutivos de lamisma (TAKAHASHI, 1953, p. 86)

Estabeleceu-se a partir da Reforma do Imposto Territorial, um processo contraditório, em que se tem renda em espécie, como no período Tokugawa e também renda monetária a uma taxa fixa dentro de um sistema capitalista. Isso significou que a transformação de produtos agrícolas em mercadoria e em dinheiro era efetuada exclusivamente pelo proprietário (TAKAHASHI, 1953, P. 105). Assim, para garantir o pagamento em dinheiro dos impostos após Reforma do Imposto Territorial, os proprietários, foram protegidos, enquanto a relação entre este proprietário da terra e seus arrendatários foi reafirmada e garantida pelo governo. Analisemos os impactos na camada camponesa de pequenos proprietários e de arrendatários. Os pequenos proprietários camponeses que tentavam permanecer cultivando sua terra sob o novo modelo de taxação enfrentaram numerosas dificuldades em termos de cultivo e colheita, bem como da transformação do produto em mercadoria para que fosse possível pagar ao governo, a taxação anual em dinheiro. Como explica Norman (1940, p. 143), era

92

preciso converter de 25 a 30% da sua produção em dinheiro para poder pagar os 3% do imposto territorial e também transformar boa parte da sua produção em dinheiro, vendendo seu arroz no mercado para poder comprar o que era necessário para sobreviver. A situação era ainda mais agravada, dado que esse camponês não tinha como estocar a sua colheita, tendo que vender rapidamente o seu cultivo independentemente da flutuação de preços, principalmente no período em que todos estavam vendendo arroz no verão. Enquanto os grandes proprietários tinham a capacidade de estocar a colheita e esperar pelo aumento dos preços, passado o período de maior oferta nacional de arroz. Ou seja, como o agricultor não recebia um salário, mas sim uma parcela do produto em espécie, mesmo em anos de colheitas boas, a queda no preço pela elevada oferta não favoreciam os seus rendimentos. A liberdade a ele dada muitas vezes não garantia a sua sobrevivência como proprietário de um pequeno lote de terra, sendo necessário contrair dívidas para se sustentar, ou até mesmo vender a sua terra, tentando a vida como arrendatário ou indo para a cidade (NORMAN, p. 144). A situação se manteve precária também para o camponês arrendatário.

Esse

arrendatário, como mostrado já anteriormente, não é o arrendatário capitalista que vivia do lucro como no caso britânico 71 e nem um trabalhador assalariado de um proprietário de terra que assumia os riscos e também os lucros do empreendimento. Este arrendatário japonês era um camponês que cultiva um pequeno pedaço de terra tendo que pagar ao proprietário um elevado imposto em espécie. Como explica Norman (1940, p. 156), esse arrendatário assumia o risco do cultivo sozinho, pois era preciso pagar ao proprietário pelo uso da terra, enquanto o proprietário ficava com grande parcela do seu cultivo, devendo pagar ao governo em dinheiro os 3% do valor da terra. Os dados referentes à divisão do produto da terra entre o camponês que a cultivou (arrendatário) e o proprietário e o Estado deixam essa situação clara. Segundo Takahashi (1953, P. 102), a partir da Reforma do Imposto Territorial, estabeleceu-se que o produto do trabalho do camponês arrendatário era dividido em 34% para imposto territorial em dinheiro e 34% como pagamento anual em espécie. Sobrava assim, 32% para o próprio camponês. Os gastos necessários à produção consumiam aproximadamente 15% da parcela destinada ao camponês, sobrando assim apenas 17% para sua subsistência. A partir dos dados o autor evidencia que o montante correspondente ao camponês produtor diminui quantitativamente em relação ao período final de Tokugawa, quando aproximadamente 40% da produção ficava nas mãos dos pequenos camponeses. Na realidade, como indica Takahashi (1953, P. 105), esta situação afetou não apenas os camponeses arrendatários (kosaku) como 71

Ellen Meiksins WOOD, As origens agrárias do capitalismo. Trad. Lígia Osório Silva. Revista. “Crítica Marxista”, São Paulo, n. 10, 2000

93

também os pequenos proprietários camponeses (jisaku) que não conseguiam sobreviver apenas com o cultivo de sua terra, tendo que arrendar mais lotes de terras dos proprietários (jinushi) para complementarem sua subsistência. Para entendermos a gravidade da situação do camponês, Norman (p. 194-1946) traz um conjunto de dados indicando a magnitude da expropriação, como mostra a Tabela 3. Nas palavras do autor, “de 1883 a 1890, 367.744 produtores agrícolas sofreram vendas forçadas por conta de dívidas não pagas relativas ao imposto sobre a terra. Desse total 77% falhou em pagar o imposto sobre a terra por conta da pobreza” (NORMAN, p. 144). Os dados da tabela abaixo indicam a velocidade da expropriação que ocorria no Japão após a revisão dos impostos e a força do capital usurário neste período, com crescente venda compulsória e falências de 1879 à 1883. Tabela 4: Expropriações dos camponeses na província de Okayama Ano 1879 1880 1881 1882 1883

Dívidas nas casas e terras Vendas compulsórias Iene Pessoas Iene Pessoas 2,881,300 63,577 105 9 4,123,940 78,023 259 24 5,322,164 86,470 1,798 40 6,097,271 107,574 7,481 106 7,072,120 137,008 21,414 520

Falências Iene Pessoas 5699 52 2916 54 5,132 84 22,342 199 58,811 493

Fonte: Norman, 1940, p. 145

Norman (1940, p. 149) faz uma comparação do caso britânico com o caso japonês para evidenciar a especificidade do processo de desapropriação camponesa no Japão. Para o autor, no Japão esse processo foi complexo não levando a uma saída em massa de camponeses do campo em direção às cidades, mantendo-se estável o número de famílias camponesas no campo. E essa peculiaridade, segundo o autor, não pode ser explicada apenas pelo fato de que nos primeiros anos da Era Meiji não se tinha um setor industrial desenvolvido o suficiente para atrair os camponeses para as cidades, pois o autor lembra que mesmo após o arranque a industrialização na virada do século XIX para o XX, o número de famílias no campo se alterou muito pouco. Para Norman, (1940), a resposta para essa diferença do caso japonês era a relação entre o proprietário de terra e o arrendatário, dentro de uma estrutura de pequenos lotes de terra de onde se extraíam elevados alugueis. Nas palavras do autor, A característica da propriedade da terra com elevado aluguel fez com que os grandes proprietários de terra que não cultivavam a mesma estivessem interessados apenas em coletar o aluguel, o que o impediu de utilizar seu

94

capital para iniciar um empreendimento agrícola como um capitalista. Na Inglaterra, o desenvolvimento capitalista na agricultura deixou a terra concentrada nas mãos de alguns poucos indivíduos que após expulsar o camponês da terra, através de atos parlamentares dos cercamentos forçados, expandiram a unidade de cultivo e trabalharam a terra por lucro como um empreendimento capitalista. No Japão, no entanto, por contada atratividade dos elevados aluguéis, o proprietário da terra ou usurário não se sentiram incentivados a retirar os arrendatários ou os camponeses proprietários para organizarem o empreendimento por eles mesmos; eles preferiram deixar as famílias camponesas trabalhando em seus pequenos lotes em troca de um exorbitante aluguel (NORMAN, p. 150-151).

Para este mesmo autor, dada essa estrutura atomizada da terra com elevados alugueis, não se teve um incentivo ao grande proprietário de assumir os riscos de um empreendimento capitalista em busca de lucro. A situação de pauperismo do camponês e o aumento populacional, dada a eliminação do controle de natalidade, fazia com que houvesse uma maior competição pelo arrendamento das terras, já que apenas um pequeno lote não era suficiente para a sobrevivência do camponês, aumentando assim, o valor dos alugueis. Até mesmo pequenos proprietários de terra buscavam arrendar terras para complementar a renda familiar. Essa situação fez com que a organização agrária se mantivesse de forma inalterada com os pequenos lotes com arrendatários. O mesmo autor também destaca que o camponês era atado à terra por conta de a mesma ter forte relação com os seus antepassados, ou seja, com seu ie. Como explica Norman, (p. 154-155) Em sua luta para permanecer na terra como proprietário ou parcialmente proprietário, o camponês vendia alguns pedaços da terra para cobrir as dívidas relativas aos impostos, para pagar suas dívidas com o usurário da aldeia ou para se manter em anos ruins por conta de quebras na colheita, perda de animais ou calamidades naturais. Ele abria mão de cada metro quadrado de sua terra contra a sua vontade, como uma ação de defesa de um exército lutando sem esperanças, mas de forma determinada, tendo como resultado a diminuição ainda maior de sua escala de operação da terra que possuía.

Assim, ao invés de ocorrer uma revolução no campo com aumento da mecanização em larga escala e uso de técnicas avançadas, a estrutura manteve-se inalterada e segundo Taira (1988, p. 608), o número de famílias camponesas manteve-se praticamente constante de 1870 à 1930. Apesar do número de famílias ter se mantido o mesmo, formou-se a partir da

95

população camponesa empobrecida, a massa de mão de obra assalariada que atenderia à indústria nascente nas cidades. A explicação para essa especificidade japonesa foi a manutenção da tradição da primogenitura, tendo como prioridade a conservação do filho mais velho ou de um genro capaz de dar continuidade ao legado dos antepassados, enquanto os filhos mais novos precisavam buscar outras atividades para ajudar na sobrevivência da família (NORMAN, 1940; TAIRA, 1988). Formou-se assim uma reserva de mão de obra no campo que se expandiu diante da abolição do controle de natalidade e a ruína da fabricas rurais domésticas. De fato, diante dos pequenos lotes de terra, a sobrevivência não estava garantida. Como explica Norman (1940), os homens buscavam trabalhos temporários na construção de estradas, etc., enquanto isso, nas cidades, o desenvolvimento da indústria têxtil passou a demandar cada vez mais o uso da mão de obra, sendo a mão de obra feminina a mais adotada. A tabela 4 abaixo indica essa tendência. Os dados são referentes à indústrias com mais de 10 funcionários, excluindo empresas governamentais, mas indica o uso expressivo dessa mão de obra durante todo o período. Tabela 5: Mulheres na Indústria Têxtil Ano 1882 1895-1899* 1900-1904 1905-1909 1910-1914

Total de Mulheres na Mulheres trabalhadores indústria (%) 51,189 425,602 472,955 637,043 828,942

35,535 252,651 291,237 391,003 592,320

69% 59% 62% 61% 71%

Fonte: Norman, p. 152 (*Média de 5 anos)

Além do envio das filhas para o trabalho nas fábricas, outra peculiaridade no Japão era o envio temporário dos filhos e filhas mais novos para as cidades. Como explica Norman (1940), ao buscarem empregos nas cidades e não terem sucesso, esses filhos tinham para onde voltar, não se tornando mendigos ou fontes de distúrbios nas cidades. Além disso, por conta de casamento ou para ajudar a família no período da colheita, os filhos buscavam trabalhos temporários nas cidades, voltando para o campo quando fosse necessário. Para o autor, essa possibilidade de retorno solucionou o problema do desemprego, dado que o governo e os industriais não tinham que fazer basicamente nada em relação a esse problema social, enquanto o grande proprietário tinha a possibilidade de manter um grande número de camponeses no campo à elevados alugueis.

96

A situação nas cidades também não era favorável ao camponês, dadas as mazelas da industrialização rápida praticada pelo governo, que demandava uma mão de obra barata e abundante. Apesar do seu rápido desenvolvimento, como explica Norman (p, 159) não era possível absorver todos na indústria. Assim, enquanto a situação do arrendatário e do pequeno camponês deteriorava, com envio de membros da família para as cidades em busca de complementação da renda, a revisão das taxações sobre a terra beneficiaram os grandes proprietários. Segundo Vlastos (1989, p. 379), a necessidade de se pagar os impostos em dinheiro e não mais em espécie possibilitou o contato muito mais amplo do proprietário de terra com o mercado. Além disso, a taxa constante cobrada pelo governo possibilitou ao grande proprietário gerar mais rendimentos pelo maior investimento e por mais inovação tecnológica. Por fim, o autor também destaca que com a propriedade da terra garantida, não havia mais a necessidade de se manter os arrendatários que perderam suas terras por dívidas, através dos antigos contratos de arrendamento permanente, como ocorria no período Tokugawa. Os proprietários podiam agora vender a terra livremente, bem como renegociar a taxa que deveria ser paga pelos arrendatários, podendo inclusive trocá-los, sem nenhuma regulação que protegesse os camponeses. Além disso, como explica Takahashi (1953) e Nakamura (1966), a posição econômica do grande proprietário de terra foi reafirmada com a redução dos impostos territoriais em 1877 de 3% para 2,5%. Enquanto foi permitido aos proprietários de terra reduzirem o montante pago ao governo, não houve nenhuma regulação sobre os arrendatários que continuaram pagando o mesmo montante aos proprietários de terra. Na opinião de Vlastos (1989, p. 378), a reforma na taxação sobre a terra representou para o governo um sucesso em termos econômico e político. Dada a magnitude das mudanças e dos interesses envolvidos, o conflito era inevitável. Era natural que os proprietários buscassem avaliações menores [do valor de seus terrenos] embora o governo não pudesse arcar com substancial redução das receitas. Dado esses fatos, o número de protestos foi pequeno: noventa e nove incidentes entre 1874 e 1881, dos quais 37 foram conflitos entre proprietários de terra e arrendatários, não envolvendo diretamente o Estado. Maioria das disputas relativas às avaliações eram eventualmente resolvidas através de negociações e compromissos, sem recorrer à prisões e à força armada.

Crawcour (1989) também conclui que apesar do objetivo da reforma fosse assegurar esses recursos indispensáveis ao governo japonês, seus efeitos foram muito além disso. Dada

97

a transformação da terra em capital, com a possibilidade de ser legalmente vendido e com impostos fixos cobrados de acordo com a avaliação da terra e em termos monetários, o benefício ficou concentrado nas mãos dos proprietários de terras. E apesar do governo defender a ideia de que a Reforma do Imposto Territorial tinha como meta a “felicidade e prosperidade ao povo”, como atestava Shigenobu Okuma, Ministro da Fazenda japonês, a realidade estabelecida foi bastante diferente (TAKAHASHI, 1953, p. 103). Nas palavras de Crawcour, esses proprietários puderam se beneficiar de (...) melhorias agrícolas, especialização, queda nos custos de transporte e aumento dos preços [dos produtos agrícolas] (...) Por conta desses benefícios terem ido para a mão dos proprietários de terra e não para os arrendatários, quanto mais terra o proprietário tivesse nessas circunstancias, mais ele se beneficiaria e o resultado foi uma significativa concentração da propriedade da terra e aumento da mão de obra arrendatária durante todo o período (CRAWCOUR, 1989, p. 608).

Assim, pode-se concluir que o Chiso Kaisei acabou com o sistema senhorial e shogunal que estabeleceu a organização do campo a partir do Taiko Kenchi no início do século XVII. A propriedade privada da terra e sua livre compra e venda foi garantida pelo Estado que conseguiu garantir os recursos para o financiamento da modernização. No entanto, essas reformas mantiveram na sociedade moderna, as relações feudais de produção como elementos constitutivos do capitalismo. Não se alterou a relação do arrendatário com o proprietário, que seguiu pagando os impostos em espécie em meio à economia de mercado. Não foi dado ao pequeno camponês e nem ao arrendatário, nenhuma oportunidade de adquirir terras. Além disso, a imposição do pagamento dos impostos em dinheiro gerou inúmeras dificuldades à grande massa de camponeses que não estavam preparados para colocar a sua produção no mercado. Assim, ao invés da sua emancipação, essa nova estrutura da propriedade da terra e de pagamentos dos impostos contribuiu amplamente para seu empobrecimento, comprovado pelas significativas expropriações que ocorreram nesse período. Além disso, com o avanço da industrialização, nem as atividades das indústrias rurais poderiam mais garantir a sobrevivência do camponês no campo. Por fim, cabe destacar mais uma continuidade que teve espaço em meio às inúmeras transformações no campo a partir da Restauração Meiji: a manutenção do ie no campo e sua transferência também para as cidades. Como fonte de coesão social e também de legitimação, o governo Meiji manteve as noções de obediência e submissão familiar dentro da sociedade moderna (ROZAM, 1989).

98

Um novo sistema de registro de famílias foi introduzido em 1872 e o código civil japonês, que entrou em vigor em 1898, deu intensa ênfase na autoridade do chefe de família no cotidiano. Durante o processo de elaboração do código civil numerosas alterações foram feitas através de anos de discussões 72, mas a família fora preservada por conta de seus valores (de obediência, submissão e responsabilidade no grupo) úteis ao novo governo. Assim, de acordo com o código civil de 1898, Os membros da família ou da casa (ie), estavam sujeitos à autoridade do chefe. Noras e filhos adotivos entravam no ie e, eventualmente seriam registrados como tal apenas com o consentimento de seu chefe. O chefe poderia até mesmo determinar o local de residência de um de seus membros se essa ação fosse considerada necessária para a família. A supremacia do chefe da família foi firmemente estabelecida no código civil de 1989, embora (...), é importante perceber que em áreas fora da lei familiar, especialmente nas leis relativas à propriedade, muitos dos princípios individualistas que constavam no esboço foram mantidos (SAITO; SATO,

2011 p. 13).

Ou seja, algumas apropriações do modelo ocidental do Código Civil foram importantes, como no que se refere à propriedade individual. Foram incorporados os princípios de igualdade legal entre os sexos, princípio de escolha individual, propriedade privada, etc. tudo baseado no individualismo. No entanto, parte relacionada às relações sociais as tradições japonesas foram enfatizadas, tendo pouco espaço para o individualismo ocidental. Assim, os indivíduos ficavam restritos dentro de um status hierárquico nas relações familiares e nas palavras de Sukehiko (1989, p. 476), “Uma sociedade moderna é presumidamente feita de indivíduos, mas os japoneses eram continuamente forçados a se ajustarem a um sistema inserido no ‘sistema familiar’ em que cada indivíduo tinha suas raízes reforçadas”. Assim, o governo manteve a base da sociedade organizada em famílias, mantendo as antigas tradições e valores que nortearam o sistema ie estabelecido no período Tokugawa. No entanto, há uma alteração importante a partir de Meiji. Como explica Sato e Saito (2011), os registros de família eram baseados no ie, mas os registros das terras não mais. “A ideia da propriedade pertencente à uma casa (ie) e o chefe da família como sendo apenas um gesto é agora obsoleto pelo menos do ponto de vista legal, mas é preciso ressaltar que muitos chefes

72

O esboço de 1890 era baseado no modelo do individualismo francês e foi fortemente criticado por intelectuais conservadores e pelos próprios políticos (SAITO; SATO, 2011 p. 12-13)

99

de família tradicionais e conscientes ainda seguiam esta ideia” (BEKER, 1921, p. 673). Ou seja, mesmo com as mudanças em termos legais da noção de propriedade, o sistema ie se manteve como forma de organização familiar e de propriedade, mas neste último caso, de maneira informal, perdendo a terra um pouco do seu caráter de parte constituinte do ie. E tanto em Tokugawa como em Meiji, a percepção e a expectativa das pessoas em relação à família permaneceu inalterada. Assim, a noção de solidariedade de grupo e de obediência que existia dada a estrutura do ie e das aldeias, ofereceu uma forma de controle tanto de comportamento como de convencimento para a busca de novos objetivos fundamentados pelo Estado Imperial. A educação também fora moldada utilizando-se desse sistema de solidariedade e obediência dentro da família. O Documento Oficial sobre a Educação no Japão de 1890 evidencia este caráter mantido na sociedade moderna em benefício dos objetivos imperiais e de modernização do país. Nossos Antepassados Imperiais fundaram Nosso Império sobre uma base ampla e duradoura e implantaram a virtude com firmeza e profundidade; Nossos súditos, sempre unidos em lealdade e respeito filia, ilustraram, gerações após gerações, a beleza que daí deriva. É a gloria do caráter fundamental de Nosso Império, de onde também reside a fonte de nossa Educação. Sejais súditos Nossos, filiais com vossos pais, afetuosos com vossos irmãos e irmãs; como maridos e esposas, conservai a harmonia e como amigos, sejais verdadeiros; conduzi-vos com modéstia e moderação; estendei a vossa benevolência à todos; prossegui a vossa aprendizagem e o cultivo das artes e, a partir destes, desenvolvei as faculdades intelectuais e aperfeiçoai as capacidades morai; sobretudo, promovei o bem público e favorecei o interesse comum; Respeitai sempre a Constituição e observai as leis; se alguma emergência se apresentar, oferecei-vos valentemente e conservai e mantende assim a prosperidade do Nosso Trono Imperial, coetâneo dos céus e da terra. De tal sorte que, não só sereis Nossos bons e fiéis súditos, como também rendereis homenagens às melhores tradições de seus antecessores. O caminho que aqui se indica é no fundo os ensinamentos que nos legaram Nossos Antepassados Imperiais para que fossem observadas tanto por Seus Descendentes como por seus súditos, infalíveis para todas as idades e verdadeiros em qualquer lugar. Nosso Desejo é levar este legado no coração com toda a reverência, em comum convosco, súditos Nossos, que juntos poderemos alcançar a mesma virtude (SMITH, 1986, p. 20-21).

100

Como fica evidenciado neste documento, evoca-se a família e as relações familiares tradicionais como sendo a base das relações sociais e como fundamento do comportamento individual em relação ao governo, expresso na lealdade e no patriotismo. Segundo (SUKEHIRO, 1989, p. 497), as emergências seriam as possíveis guerras em que o país se envolveria e estar pronto e ser leal ao governo seria mais do que a obrigação do povo japonês. Não se tem um rompimento com as tradições japonesas do período Tokugawa, tão enraizadas na sociedade, ou seja, não se entrava em conflito com as crenças nem com a moral que norteava a vida camponesa. E o Ministério da Educação uniformizou a educação de todo o país de uma tal forma que “era esperado que as crianças de todo o país estivessem tendo as mesmas aulas, através dos mesmos livros, no mesmo momento” (JANSEN, 1989, p. 4). Assim, compreendendo a importância da absorção rápida das tecnologias ocidentais e de noções individualistas para alguns aspectos da vida social, a família tradicional japonesa e seus valores foram estabelecidos como instituição legal no código civil de 1898. O uso desses valores foi de grande valia ao governo e seu projeto de rápido progresso nacional. Com forte apelo patriótico, as noções de submissão e senso coletivo foram importantes para o estabelecimento do Império japonês.

3.2 As revoltas camponesas do final do século XIX Diante das inúmeras transformações que marcaram os primeiros anos da Restauração, com os ajustes governamentais rumo à modernização, a deterioração das condições de vida do pequeno camponês, notadamente com a Reforma do Imposto Territorial foram expressas nas numerosas revoltas campesinas (TAKAHASHI, 1953, P. 94). De fato, apesar de a Restauração marcar o momento de guinada rumo à sociedade moderna, essa revolução política não foi feita pelos camponeses e nem pelas classes urbanas empobrecidas. Todo o processo foi levado a cabo por uma ala da classe feudal representada por samurais e ricos mercadores. Neste contexto, os camponeses não obtiveram nenhum benefício direto 73 (NORMAN, 1940, p. 71). Como explicado na seção anterior, inúmeras revoltas camponesas do período Tokugawa estavam ligadas às pesadas taxações em arroz que eram cobradas de seus senhores e que deixavam muito pouco para a sobrevivência do camponês e sua família. Dado esse histórico, o governo Meiji emitiu um edito com a promessa de redução da taxação para mais 73

No entanto, o número de revoltas foi bem menor pois, como explica Takahashi (1976), existiu em um primeiro momento, uma esperança de que o retorno do imperador traria mudanças drásticas que favoreceriam a toda camada camponesa.

101

de 50% nos territórios pertencentes aos shogun, com palavras como “aliviar o sofrimento do povo” ao eliminar as práticas do período Tokugawa (VLASTOS,1989). Afirmava-se também que todas as terras do país seriam divididas entre os camponeses (NORMAN, 1940, p. 71). Diante dessa expectativa de que o novo governo levaria a cabo drásticas mudanças, as revoltas camponesas que vinham acontecendo em grande quantidade nas últimas décadas do período Tokugawa deram lugar para um relativa paz (TAKAHASHI, 1976, p. 147) No entanto, como explica Vlastos (1989), essa promessa de redução das taxações foi apenas uma estratégia para fomentar levantes nas províncias do Shogun que ainda não tinham aceitado a volta do imperador, para que essas revoltas enfraquecessem e evitassem que fosse concentrados esforços contra o novo governo. Nas palavras do autor, Depois da família Tokugawa e da maioria de seus vassalos Daimyo se renderem na primavera de 1868 sem lutar uma única batalha, nada mais foi dito sobre esse tema e com a vitória garantida, a necessidade mais urgente do novo governo passou a ser o pagamento de suas contas (VLASTOS, 1989, p. 369)

Como já explicado anteriormente, manter o a base das finanças como sendo a taxação sobre o camponês foi, a princípio, a única alternativa viável. E perder o apoio dos grandes proprietários e dos camponeses enriquecidos não era uma opção aceitável, pois qualquer tipo de revolta, por menor que fosse, poderia se generalizar e causar grandes danos à ordem estabelecida. Por isso, o governo fez algumas concessões aos grandes proprietários, como explicado no item 3.1. No entanto, quando a Reforma do Imposto Territorial definiu uma taxação basicamente idêntica ao que era cobrado pelo Shogun, essa situação “fez renascer uma solidariedade entre todo o campesinato” (TAKAHASHI, 1976, p. 147). Sob liderança do campesinato rico, o objetivo das revoltas era a redução da taxação sobre o solo. No entanto, Vlastos (1989, p. 381) tem um olhar mais crítico que de Takahashi (1976) indicando que na realidade, aqueles que mais se prejudicaram com a elevada taxação, ou seja, os pequenos proprietários camponeses que foram à falência e os arrendatários sem direitos sobre a terra, tinham muito pouco poder e normalmente não eram mobilizados por serem a classe “mais volátil e potencialmente mais militantes” (VLASTOS, 1989, p. 381). Ou seja, mais do que uma reorganização de todas as camadas camponesas, a clivagem que existia entre os ricos e pobres foi de fato mantida e reforçada. Na realidade, os grandes proprietários e camponeses ricos participaram do processo de implementação da revisão das taxações sobre a terra juntamente com o governo em um

102

trabalho exaustivo de coleta de dados e de identificação de cada parcela de terra que deveria ser registrada e, ao receberem como resultado a pesada taxação de 3% sobre o valor da terra se sentiram injustiçados e se organizaram para protestar (VLASTOS, 1989). E o relativo baixo número de revoltas nesse período se deu basicamente por conta da forma como os líderes estabeleceram as negociações que eram feitas através de petições e processos legais, ou seja, eram demonstrações de descontentamento realizadas dentro da lei. Como explica Vlastos (1989), Se o número de protestos e levantes nas aldeias é um indicador do grau de agitação social, o Japão rural era pacífico no contexto da concretização da Restauração Meiji. De acordo com os dados de Aoki Koji, existiram 343 incidentes entre 1868 e 1872. Os protestos de camponeses, que haviam aumentando constantemente ao fiinal de Tokugawa atingiu um pico histórico em 1869. A partir de 1870, no entanto, o número de incidentes declinou rapidamente e em 1872 apenas 30 incidentes foram registados. (VLASTOS 1989, p. 368)

Inicialmente os protestos eram contra a forma como a reavaliação das terras eram feitas pela comissão do governo. Na definição do valor da terra, para que se fosse cobrado 3% de imposto sobre esse valor, muitos camponeses se sentiam injustiçados, pois muitas vezes era atribuída às terras, um valor irreal e que penalizaria o camponês. Em um dos maiores protestos, registrado em 1876 na província de Wakayama, os prefeitos enviaram petições dentro da lei, pedindo por reavaliação do solo, pois os preços atribuídos eram excessivamente elevados. Após uma redução de 5% do valor, quase metade do que havia sido pedido, muitos prefeitos voltaram a pedir reduções. A ação do governo foi a de realizar punições e até mesmo a prisão de alguns líderes do movimento. E mesmo diante de protestos e demonstrações contra essa atitude, o governo agiu com autoridade, prendendo mais de 1000 pessoas e condenando 688 por encorajar distúrbios públicos (VLASTOS, 1989, p. 375). Vlastos (1989) explica que em outras revoltas o governo também agiu de forma dura, com punições e prisões, sem dar espaço para amplas mobilizações sociais. O pico de levantes camponeses foi em 1876, dado que em 1875 foi estabelecida uma comissão de avaliação dos lotes que, seguindo o imperativo de garantir os recursos necessários para financiar a modernização, foi bem menos generosa nas avaliações, com inspeções in-loco para evitar qualquer tipo de queixa por parte dos camponeses. Após a redução do imposto de 3% para 2,5%, em 1877, que beneficiou principalmente a camada mais rica, seus membros buscaram estruturar um pacto com o governo, diminuindo

103

sua participação aberta nos levantes populares. No final desse mesmo ano, mais uma concessão foi feita, permitindo a redução do pagamento dos impostos em caso de perda de mais de mais de 50% da plantação, por desastres naturais e adversidades climáticas. Além disso, para distritos localizados em regiões distantes de mercados, foi permitido o pagamento dos impostos em espécie (VLASTOS, 1989, p. 376) Por isso, as revoltas relativa à Reforma do Imposto Territorial não foram quantitativamente elevadas e perdeu força ao longo do tempo. Segundo Vlastos (1989, p. 378), entre 1874 e 1881, as revoltas estavam basicamente relacionadas à taxação sobre o campo e o número registrado foi de 99 incidentes. Desse total, 37 conflitos foram entre proprietários e arrendatários, não envolvendo diretamente o Estado. De uma certa forma, a reavaliação do solo foi bom para os ricos camponeses que não eram mais taxados de forma arbitraria, como era feito pelo governo Tokugawa. Existia uma norma no cálculo dos valores e em muitos casos, os próprios proprietários participavam do processo de avaliação do solo. Além disso, a taxação fixa beneficiou os camponeses com mais recursos, pois através de investimentos e inovações tecnológicas, foi possível a obtenção de mais lucros com a taxação fixa. E com a redução da taxação e meio por cento, a camada camponesa mais rica definitivamente abandonou os protestos. Por outro lado, a classe de pequenos camponeses e arrendatários não tiveram os mesmos benefícios. Essa classe marginalizada que não se ajustava aos interesses do governo teve suas necessidades sociais sacrificadas em benefício da rápida acumulação de capital. E no nível da classe camponesa, a privatização das propriedades e a eliminação da aldeia como unidade fiscal fez com que a falência de alguns camponeses que não conseguiam pagar os impostos monetários deixasse de ser um problema coletivo e passasse a ser individual, ou seja, de cada família camponesa. Sem a mínima proteção comunitária que a aldeia do Período Tokugawa fornecia, o pequeno camponês tornou-se livre das amarras feudais, mas se empobreceu ainda mais. E como já evidenciado, aumentou o número de arrendatários e daqueles que buscavam alternativas para sobreviver nas atividades fora da agricultura 74 (VLASTOS, 1989). O pagamento em dinheiro das taxações também dificultava a vida do camponês que precisava ir ao mercado para transformar aproximadamente 30% da sua produção em moeda, independentemente das condições de mercado e do nível de preço do arroz. A classe arrendatária também mantendo-se na terra e pagando imposto em espécie para

74

A partir dos anos 1880 e ao longo das primeiras décadas do século XX, os embates seriam notadamente entre os kosaku e os jinushi, ou seja, entre o camponês arrendatário e o grande proprietário em um contexto de maior agitação social do país com a criação dos sindicados proletários que se expandiam nos centros industriais (TAKAHASHI, 1976).

104

o dono do lote não tinha nenhuma proteção do governo e nenhum tipo de regulação sobre a exploração feita pelo proprietário. De 1877 a 1881, 29 dos 49 incidentes registrados foram conflitos entre arrendatários e proprietários (VLASTOS, 1989, p. 380). E os motivos estavam ligados aos pesados alugueis, que se mantiveram elevados mesmo após a diminuição em meio por cento no imposto sobre a terra. Mas nenhuma se mostrou efetiva, ou atingiu grandes proporções. Através da análise feita acima, é possível concluir que apesar de ter colocado o fim no sistema senhorial e shogunal dos Tokugawa, o governo levou a cabo uma a reforma agraria (chiso-kaisei) de 1875-1882, que alterou o estatuto jurídico dos camponeses, mas não se tomou nenhuma medida para que os mesmos efetivamente se tornassem livres. O novo governo se limitou a transformar os impostos pagos em espécie aos senhores em impostos territoriais (chiso) pagáveis em dinheiro ao novo governo, com carga praticamente idêntica ao cobrado sobre os camponeses do período Tokugawa. Legitimando a estrutura da propriedade que vinha se formando desde o período anterior, o governo aumentou ainda mais a desigualdade que existia no campo, levando pequenos camponeses proprietários à falência e mantendo os camponeses pobres como arrendatários de parcelas minúsculas de terras. Ao não abolir as relações no campo existentes no final do período Tokugawa, o governo Meiji introduziu-as e reforçou-as como sendo elementos constitutivos do novo capitalismo japonês, ampliando ainda mais a diferenciação entre a classe camponesa, em busca de uma rápida acumulação de capital para fazer frente às necessidades da industrialização e modernização para enfrentar rapidamente o imperialismo ocidental. A situação do campo apenas seria transformada com a reforma agrária do pós Segunda Guerra Mundial, feita pela força de ocupação denominada Comando Supremo das Forças Aliadas (SCAP) e que tinha como objetivo eliminar as forças “feudais” que se mantiveram no campo japonês. Para isso, a propriedade dos jinushi foram eliminadas, pulverizando as grandes propriedades concentradas em pequenas propriedades cultivadas por camponeses (TAKAHASHI, 1965).

3.3 A busca de novas terras agrícolas e o imperialismo japonês Uma das facetas do imperialismo japonês na virada do século XIX tem a ver com a questão da terra e da agricultura. Esta foi identificada pelo governo imperial, como sendo uma questão estratégica, influenciando diretamente as políticas governamentais do período. Assim,

105

a compreensão da expansão colonial nipônica deve levar em consideração o contexto internacional, a partir de meados do século XIX, bem como as especificidades geográficas do país, tanto em relação ao seu pequeno território com relevo acidentado como a sua posição estratégica no Oceano Pacífico. O Japão tinha interesses econômicos na Ásia, dadas as oportunidades de acesso a matérias primas e alimentos, diante da incapacidade da sua agricultura nacional em acompanhar o crescimento da população na virada do século XX. Importar alimentos geraria uma grande evasão de divisas e a solução seria o cultivo dos produtos mais demandados nas colônias, como ocorreu em Taiwan e na Coréia, que se transformaram nos maiores fornecedores de alimento para o Japão.

Ademais, os territórios coloniais japoneses se

expandiram até a Segunda Guerra Mundial, mas neste item serão tratados apenas os territórios conquistados no período Meiji, ou seja, Taiwan (1985) e Coréia (1905, quando se torna um protetorado e 1910, quando se torna efetivamente uma colônia japonesa). Como mostrado no capítulo 1, o Japão é um país pobre em recursos naturais, com um território pequeno e bastante acidentado e onde consequentemente, a produção agrícola não poderia se expandir acompanhando o ritmo do aumento populacional. Essa situação, no contexto da expansão imperialista ocidental deixava o Japão em posição subserviente às nações ocidentais para conseguir os recursos naturais necessários para continuar crescendo. Neste contexto, desde os primeiros anos do Governo Meiji, os dirigentes japoneses tinham consciência de que o Japão, ainda exportando seda e chá, só poderia sobreviver no mercado mundial dominado pelas potências ocidentais caso se tronasse um exportador de produtos manufaturados (DUUS, 1988; PEATTIE 1989). E essa mudança demandava o controle de fontes de matérias primas para sustentar o setor manufatureiro e bélico que se expandia no país, bem como para garantir a alimentação da população nacional. E assim, para superar esses entraves naturais, o Japão precisou fazer os seus ajustes de modernização, sendo que a sobrevivência como economia industrial passava a depender fortemente do seu posicionamento no exterior que garantiria uma autonomia ao seu desenvolvimento. Peattie (1983; 1989) destaca que a expansão imperial japonesa iniciou-se antes de seu crescimento industrial e que o país era marcado não por um excesso, mas por uma falta de capitais ainda nos anos 1890 75 . O que demanda ênfase, segundo o autor, é que tanto o 75

Os primeiros territórios fora do país adquiridos pelo Japão foram as ilhas Bonin, Ryukyu e Kurile, além de fortalecer a sua presença e garantir a posse de Hokkaido, com amplo programa de colonização. No entanto, mais do que uma expansão imperialista, essas conquistas territoriais estavam mais ligadas à uma reafirmação da autoridade japonesa em uma região que tradicionalmente fazia parte da esfera de influência japonesa (PEATTIE, 1988, p. 224).

106

momento histórico como a grande preocupação do governo com a segurança nacional e vulnerabilidade econômica foram os elementos básicos para a direção inicial da expansão japonesa, não sendo a busca por mercados consumidores de sua produção manufatureira. Ou seja, os territórios são extremamente estratégicos para continuar o crescimento e se proteger. Apenas em um segundo momento é que essas áreas se tornariam interessantes como um mercado para seus produtos manufaturados, com vantagens para o investimento nacional 76 (PEATTIE, 1988). Outro fator que cabe ser destacado é que os limitados recursos políticos, econômicos e militares fizeram com que o seu império fosse restrito a territórios relativamente próximos, como pode ser observado no Mapa 5. Havia também uma preocupação com a segurança da ilha em termos de localização, pois caso outros países imperialistas subjugassem os países vizinhos, o Japão ficaria em situação delicada para garantir sua defesa. Assim, os territórios coloniais japoneses foram obtidos por decisão deliberada de autoridades do governo central que usaram a força para assegurar os espaços que contribuiriam para os interesses estratégicos imediatos do Japão, quais sejam a industrialização e a manutenção de sua soberania em relação aos países imperialistas Ocidentais.

76

Nesta nova fase do capitalismo, o Estado assume o papel de garantir a acumulação dos grandes capitais tanto dentro do país, quanto fora, através das conquistas territoriais, dada a necessidade de novos territórios para expandir e manter o processo de acumulação.

107

Mapa 6: O Império Colonial Japonês (1895-1945)

Fonte: Peattie (1989, p. 219)

Para esses empreendimentos, o governo elaborou um discurso que afirmava a necessidade do Japão auxiliar os países vizinhos, dado que o país tinha a missão de disseminar a organização política do país aos países menos afortunados. Afirmava-se que os mais avançados deveriam governar os menos avançados (GUNNAR, 2004). Além dessa noção de “papel a cumprir”, foram rapidamente aceitas no país também as noções de prestígio e proeza que relacionava os impérios coloniais, governo constitucional, industrialização, burocracia nacional, exército e marinha modernos com o sucesso de uma nação soberana e desenvolvida (PEATTIE, 1988). Cabe destacar que uma outra forma utilizada pelo governo imperial para justificar suas ações expansionistas fora a noção de “assimilação” que fora

108

criada pelo governo (PEATTI, 1988, p. 240). Uma das justificativas era o uso da noção de “família imperial” que ligava todos os japoneses à família imperial, pela sua origem única, como sendo todos filhos de Amaterasu 77 . Esse princípio poderia ser expandido para as populações que passariam a fazer parte do império japonês, mas obviamente a relação respeitosa entre membros da mesma família nunca veio a se concretizar. Para tratar da relação econômica que foi estabelecida entre o Japão e suas duas principais colônias, Coréia e Taiwan, é preciso compreender que o país foi capaz de investir em uma ampla infraestrutura nas colônias que expandiu significativamente as suas produções agrícolas e industriais. As autoridades coloniais do período exaltavam com grande satisfação os seus feitos, chamando a atenção das nações ocidentais. No entanto, o imperialismo, mesmo japonês, não deixaria de ser autoritário e fortemente explorador, deixando marcas na sociedade local. Os jornalistas japoneses nessas décadas (1900-1920), falavam com orgulho das conquistas atingidas como um novo poder colonial e os japoneses nas colônias construíram um estilo de vida e um ambiente estruturado sob o privilégio, dinheiro e a autoridade, não sendo diferente dos Europeus nas colônias tropicais. Por essa razão e por conta do sucesso de seus esforços, dada a eficiência japonesa, os comentários ocidentais sobre o colonialismo japonês este estágio era majoritariamente favorável. Visitantes britânicos e americanos em Taiwan e Coréia, falavam do ‘incrível progresso’ de Taiwan sob a administração japonesa e da ‘coragem, devoção e visão’ dos administradores japoneses na Coréia após séculos de ‘decadência racial e política’. Poucos observadores estrangeiros amenizaram esses elogios notando que o colonialismo japonês era severamente autoritário e bastante explorador, tanto que os taiwaneses tinham pouca afeição pelos governantes coloniais e as atitudes dos coreanos para com os governantes era de ultraje e desespero. Sem dúvida, essa visão benigna do exterior era em grande parte moldada pelo fato de que, pelo menos por fora, o colonialismo japonês e seu estágio eram bastante semelhantes ao das nações europeias (PEATTIE, 1988, p. 233).

De fato, o governo japonês realizou inúmeros investimentos nesses dois países, desenvolvimento de infraestruturas básicas em diversas frentes, como transporte, comunicação e educação, bem como de melhorias agrícolas. Segundo Peattie (1988), o 77

Amaterasu, a Deusa do sol ou da luz é considerada na mitologia japonesa como sendo a primeira ancestral da dinastia imperial japonesa.

109

governo japonês estendeu ao Japão as suas experiências de sucesso em busca de desenvolvimento econômico rumo à modernização do país. No entanto, em última instância, os investimentos eram feitos para satisfazer as necessidades estratégicas do Japão, que com um discurso de superioridade racial e missão de desenvolvimento asiático transformou as colônias em áreas com vantagens para sua exploração, criando desajustes internos nas colônias, com grande diferenciação com relação ao Japão. Ou seja, mesmo com a justificativa de que os passos iniciais do imperialismo japonês tinham mais um impulso estratégico, o país rapidamente tirou vantagens econômicas de suas colônias em uma relação de exploração e benefício próprio. Passemos então para a análise da exploração econômica de Taiwan e Coréia em termos agrícolas. A primeira colônia importante do Japão foi Taiwan, que passou para o domínio japonês em 1895 Neste país, o governo colonial japonês estruturou uma indústria açucareira de sucesso entre 1900 e 1910. Como explica Peattie (1988, p. 254-255), Como o governo Meiji, o Governo Geral de Taiwan determinou que o setor agrícola deveria sustentar os custos da modernização. Para permitir isso, o Governo Geral exerceu sua massiva autoridade para direcionar o desenvolvimento agrário, alocando os gastos necessários, usando taxações especiais sobre a renda para influenciar o comportamento dos produtores agrícolas, disseminando a moderna tecnologia agrícola e estabelecendo monopólios em certas industrias baseadas na agricultura de onde esperavam ter rendimentos substanciais. Mais importante, o governo colonial devotou as mais intensivas pesquisas e planejamento para desenvolver essas commodities que ofereciam as maiores expectativas de rápido retorno do investimento e que, ao mesmo tempo, fosse ao encontro das necessidades domésticas do Japão. (...) Depois do açúcar, o Governo Geral voltou-se para a expansão e modernização da produção do arroz em Taiwan, aplicando tecnologias e técnicas modernas e na década de 1920, este se tornou a segunda maior exportação para o Japão.

Assim, todo o investimento em infraestrutura e na modernização de Taiwan foram direcionados a atender às demandas de sua metrópole, o Japão. Peattie (1988, p. 256) avalia que a introdução de técnicas e tecnologias modernas em Taiwan foi benéfico, de uma forma geral, para os cultivos nacionais, sendo que as exportações de arroz para o Japão não chegaram a impactar negativamente na alimentação dos agricultores locais, até a década de 1930, quando os esforços de guerra alteraram essa situação. Segundo o mesmo autor, o registro de terras que foi feito em Taiwan pelo governo japonês entre 1898 e 1903 não mudou

110

o tradicional sistema de propriedade da terra do país, sendo apenas uma forma de se ter uma fiscalização melhor dos cultivos e dos impostos a serem coletados. Entretanto, é preciso observar essas informações de forma crítica, pois o governo realizou políticas que direcionaram os cultivos de acordo com os interesses do Japão, influenciando diretamente na vida do agricultor. Passemos para o caso Coreano. Explicando o caso da Coréia, Kimura (1995) utiliza dados que evidenciam como a Coréia, de fato, não foi um importante mercado consumidor para os produtos manufaturados japoneses, pois no início do século XX, o mercado nacional japonês já absorvia aproximadamente 80% do total da produção, sendo que as exportações para a Coréia representavam apenas de 1 à 3% do total da produção manufatureira do país, com destaque para os tecidos em algodão 78 . Ou seja, a Coréia não tinha o papel de absorvedor dos manufaturados japoneses. Na realidade, o papel da Coréia estava relacionado à exportação de produtos primários e notadamente do arroz, a base da alimentação japonesa, que representava a maior parte dos envios ao Japão, em termos de valor (KIMURA, 1995). E o papel da Coréia como fornecedor de alimento fora fundamental, pois como já fora ressaltado, na virada do século, o Japão enfrentou graves problemas de insuficiência de produção do arroz nacional. Neste contexto o governo tinha três alternativas para lidar com esse problema. Segundo Kimura (1995, p. 558) estas opções seriam: “(a) aumentar a produtividade doméstica da agricultura, (b) importar arroz estrangeiro (gaimai) do sudeste asiático e (c) importar arroz da colônia”. O autor explica que a primeira opção seria a mais custosa, demandando investimentos significativos sem a garantia de um retorno, enquanto a segunda opção geraria uma grande saída de recursos do país e uma dependência da alimentação do país em outros países, o que aumentaria a vulnerabilidade japonesa. Assim, os investimentos na Coréia para a produção do arroz pareciam representar a alternativa mais vantajosa ao governo. Assim, nas duas primeiras décadas do século XX, o governo japonês investiu e deu apoio institucional ao cultivo de arroz na Coréia, expandindo terras agricultáveis com grandes projetos de irrigação e introdução de novas técnicas para a expansão da produtividade do cultivo do arroz. E assim, a Coréia se tornou principal fornecedor de arroz para o Japão neste período (PEATTIE, 1988, p. 256).

78

Segundo os dados analisados por Kimura (1995), antes da Segunda Guerra Mundial, os tecidos de algodão era o carro chefe das manufaturas japonesas e uma grande parte era exportada. No entanto, o principal destino das exportações eram a China e a Índia, bem como o sudeste asiático, não incluindo a Coréia.

111

Diferentemente de Taiwan, os impactos das políticas do governo na expansão da produção de arroz no país contribuíram mais significativamente para piorar a vida do produtor rural. Em primeiro lugar, a maciça entrada de imigrantes japoneses em busca de terra, bem como o projeto de cadastramento das terras na Coréia (1906-1917) retirou inúmeros camponeses pobres da terra que acabaram perdendo os seus títulos. Ademais, os camponeses que continuaram cultivando a terra sofriam com as pesadas taxações e os arrendatários eram fortemente penalizados pelos proprietários das terras, cuja participação de japoneses aumentou durante o período. Por fim, além da maior exploração do camponês, todo o excedente de arroz produzido na Coréia era despachado para o Japão e a partir dos anos 1920, o camponês coreano fora obrigado a diminuir o seu consumo de arroz para que fosse possível despachar o montante necessário para o Japão (PEATTIE, 1988, p. 257). A situação pioraria no contexto da preparação para a Segunda Guerra Mundial. Assim, em busca de terras agricultáveis e de fontes de matérias primas, o Japão reorganizou a produção agrária da Coréia e Taiwan, estruturando as economias no sentido que atendesse aos interesses da Metrópole, ignorando as tradições e os cultivos locais. Já na Segunda Guerra Mundial, a exploração das colônias já atingira o nível do imperialismo ocidental, funcionando como mercado consumidor de seus produtos manufaturados, bem como de fonte de rendimento para os investimentos japoneses no esforço de guerra.

112

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na tentativa de compreender uma transição ao capitalismo que é específica, observouse as transformações na agricultura e na sua relação com o mercado, bem como na propriedade da terra ao longo de três séculos no Japão. Cabe destacar que durante o período Tokugawa, o Estado esteve sempre presente, estruturando políticas de controle social e de organização da produção. Também na transição, não é uma classe burguesa ou camponeses revoltosos que participaram ativamente do processo. Realizando a instituição de um novo Regime Imperial, a partir de cima, o Estado se fez presente novamente, definindo os rumos do desenvolvimento econômico do país, rumo à industrialização, com seu financiamento feito com as pesadas taxações sobre o campo. A estrutura social específica e que perpassa todo o período analisado é o sistema familiar japonês, chamado sistema ie. E como pode ser observado ao longo do trabalho, este sistema vai sendo colocado em confronto com o mercado e posteriormente como individualismo ocidental que ganha espaço nas noções de propriedade. Esse é um conflito essencial na compreensão da transição ao capitalismo no Japão, pois enquanto a noção de solidariedade e dependência que existia no início do período Tokugawa se desarticulou, muitos valores tradicionais do ie, como a responsabilidade com os membros da família, obediência e lealdade foram utilizados pelo governo para a legitimação do novo Estado e para justificar numerosas ações no sentido da modernização, industrialização e expansão imperial. Utilizando-se de um discurso da mesma origem de todos os japoneses, argumentava-se que “a família é um pequeno Estado e o Estado é uma grande família” (PYLE, 1989, p. 701). No Código Civil japonês, adotou-se o sistema ie e a figura paterna como sendo o articulador de todas as relações sociais internas e externas à família, mantendo-se a noção de dever para com os seus superiores. Utilizando-se da educação para difundir essas ideias, como fica claro no Documento Oficial sobre a Educação no Japão, tem-se as instruções não apenas ao professor e ao estudante, mas a toda nação que deve se organizar como uma grande família, em uma lealdade filial ao governo. Dando um caráter nacionalista aos valores tradicionais, justificavase que havia uma ética nacional que não poderia ser desvinculada do povo japonês e que a manutenção da moral e dos costumes era psicologicamente necessário à população, em meio à tantas transformações e ameaças internacionais (PYLE, 1989).

113

A manutenção e reforço do papel da família e de seus valores tradicionais, em contraposição com a introdução de elementos ocidentais nas leis e nas tecnologias da Segunda Revolução Industrial, deixa claro o caráter conservador do governo Meiji que, apesar de trazer inúmeras mudanças com o objetivo de fortalecer e modernizar o país no capitalismo, manteve no poder alguns membros da classe samurai, que alinhados com os interesses dos grandes proprietários de terras, perpetuou os valores e as estruturas produtivas no campo. No período analisado, ocorreu a consolidação de uma nova estrutura agrária que veio se conformando de forma mais acelerada a partir da segunda metade do Período Tokugawa. Dada a Pax Tokugawa e os pequenos lotes de cultivo, o camponês pode concentrar esforços no aumento da produtividade e também nas atividades paralelas ao plantio do arroz, desenvolvendo uma indústria rural e cultivos comerciais que ajudavam a garantir a sobrevivência, dada a pesada taxação e as eventuais dificuldades climáticas. Com a penetração dos mercados, todo esse processo é acelerado e as novas relações com os mercadores desarticulam as antigas noções de solidariedade que existia entre os ie, reforçando o papel da família internamente em busca da perpetuação do seu próprio ie. Os resultados dessas transformações são institucionalizados na Era Meiji, cujo governo imperial se articula com os grandes proprietários de terras para garantir o financiamento da sua modernização. Todas as restrições que existiam relativas à aquisição, transferência e divisão das terras foram eliminadas e consagrou-se a relação proprietárioarrendatário como forma de exploração do camponês. Não mexendo na estrutura da terra e sem fazer uma reforma agrária, o governo não interferiu na gravosa exploração do arrendatário que seguiu pagando pelo uso da terra em espécie, mantendo as mesmas relações de subordinação e dependência do período Tokugawa, com o agravante de que não havia mais nenhuma razão para manter um arrendatário improdutivo na terra, substituindo-o por outra família quando fosse necessário. Ou seja, não havia mais a preocupação do dono da terra em garantir a sobrevivência do produtor direto e nenhuma “benevolência” do governo. O camponês estava livre das amarras do sistema shogunal e, independentemente de sua posição social ou de seu ie, era considerado igual perante a lei. Mas as condições de sobrevivência do pequeno camponês e do arrendatário foram deterioradas, com grandes ondas de expropriação e êxodo rural enquanto o Estado se articulava com os grandes proprietários para garantir a sua fonte de rendimento. Dadas as transformações que ocorreram, as revoltas camponesas expressaram em cada momento, as contradições que existiam na sociedade. Ao longo do período analisado, a

114

camada camponesa se uniu internamente para defender interesses comuns, mas também se posicionou de lados opostos quando os interesses dos pequenos camponeses eram opostos aos interesses dos camponeses e mercadores enriquecidos. Mas cabe destacar que as revoltas ocorridas no Japão são marcadas por uma ausência de questionamento da ordem, ou seja, o camponês, querendo se manter nesta condição e não aspirando uma posição acima, pediam para que as taxações fossem amenizadas ou para que o processo de expropriação fosse interrompido. Ao longo de séculos de luta, algumas concessões foram feitas, mas o pequeno camponês viu suas condições de vida deterioradas em contrapartida ao enriquecimento de alguns. No período Meiji, o Estado se aliou aos proprietários de terra para garantir o financiamento de modernização. Enquanto o Estado fazia concessões à essa camada mais poderosa, os pequenos camponeses e arrendatários, que não se encaixavam nos planos de modernização do governo, tiveram suas possibilidades de sobrevivência no campo limitadas, com massiva exploração para o benefício da modernização. Outra expressão da questão da terra no contexto da modernização foi o imperialismo japonês, que estruturando a produção de arroz e açúcar na Coréia e em Taiwan, desarticulou a produção interna desses países em benefício próprio. Mesmo em contexto de escassez de capitais, o Japão inicia sua expansão colonial com o objetivo estratégico de se proteger das ameaças imperialistas ocidentais e garantir o seu crescimento rumo à uma economia industrializada e moderna. Assim, explorando internamente os pequenos camponeses e arrendatários que saindo do campo vão ser duramente explorados nas grandes fábricas capitalistas como assalariados, o Japão tambémse lança na expansão colonial para reorganizar a produção agrícola de outros países visando o seu próprio benefício. E essa estrutura concentrada de terras e que manteve o mesmo caráter “semi-shogunal” só serial alterada com aredistribuição de terras após a Segunda Guerra Mundial.

115

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AKAMATSU, Paul. Meiji - 1868: revolucion y contrarrevolucion en Japon. Madrid: Siglo Veintiuno, 1977. ALLEN, G. C. A short economic history of modern Japan. 4. ed. Basingstoke: Macmillan, 1987. ALONSO, Oliveira. “Processo de Industrialização: do Capitalismo Originário ao Atrasado”. Campina: IE/Unicamp, 1985. AOKI, Koji. “Hyakusho ikki no nenjiteki kenkyu [estudo cronológico dos movimentos camponeses]. Tokyo: Shinseisha, 1966). AOKI, Koji. “Hyakusho ikki sogo nenpyo” [cronologia geral dos movimentos camponeses]. Tokyo: San’ichi Shobo, 1971. BEASLEY, W. G. "Meiji political institutions", The Cambridge History of Japan vol 5. Ed. Marius B. Jansen. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. pp. 618-673. BEFU, Harumi. “Village autonomy and the state” in: Jon Livingston, Joe Moore, Felicia Oldfather (ed.) – The Japan Reader. Imperial Japan, 1800-1945. New York: Pantheon, 1973, p. 34-42. BITO, Masahide. “Thought and Religion, 1550-1700”. in: John Whitney Hall, ed., The Cambridge History of Japan, vol. 4, Early Modern Japan, 1991:373-424 BIX, Herbert “Pesant Protest in Japan, 1590-1884”, Yale University: 1986 BLOCH, Marc “A sociedade feudal” . 2.ed. trad. rev. Lisboa: Edições 70, 1987. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, 3 vols. 2ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2009. BRITO, Daniel; RIBEIRO, Tânia. “A modernização na era das incertezas: crise e desafios da teoria social. CALMAN, D. Nature and origins of Japanese imperialism, The: Reinterpretation of the great crisis of 1873, A. London: Routledge, 1992. CHESNEAUX, Jean. A Asia oriental nos seculos XIX e XX. São Paulo, SP: Pioneira, 1976, c1966. COGGIOLA, O. Guerra Russo-Japonesa: O nascimento de uma potência. História Viva: Japão: 500 anos de história, 100 anos de imigração, São Paulo - SP, n. 2, p.26-30, 2008.

116

COHN, Gabriel. “Problemas da industrialização no século XX” in Carlos Guilherme Mota (org.) Brasil em perspectiva. Sâo Paulo: Difel, 1978: 283-316 CRAWCOUR, E. Sydney. “Economic Change in the Nineteenth Century” In The Cambridge History of Japan vol. 5, ed. Marius B. Jansen. Cambridge: Cambridge University Press, 1989: 569-614 CRAWCOUR, E. Sydney. “Industrialization and Technological Change, 1885-1920”. In The Cambridge History of Japan, vol. 6, Ed. Peter Duus. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. DE BECKER, J.E., “The principles and practice of the civil code of Japan”, London: Butterworth & Co., 1921. DOBB, Maurice. “Studies in the Development of Capitalism” London: Routledge and Kegan Paul ltd. 1967 (Edição original: 1946). DORE, R. P. “Education in Tokugawa Japan”, Berkeley and Los Angeles: University of California Press; [London: Routledge and Kegan Paul], 1965 DUUS, P. The abacus and the sword: the Japanese penetration of Korea, 1895-1910. Berkeley: Univ. of California, c1998 DUUS, P. The Takeoff Point of Japanese Imperialism, In: Japan examined: perspectives on modern Japanese history. Coautoria de Harry Wray, Hilary Conroy. Honolulu: University of Hawaii Press, c1983. ELISONAS, Jurgis. “The inspearable Trinity: Japan’s relation with China and Korea” in: John Whitney Hall, ed., The Cambridge History of Japan, vol. 4, Early Modern Japan, 1991: 235-300. FUKUTAKE, Tadashi. “Landlords and Village Society” in: in: Jon Livingston, Joe Moore, Felicia Oldfather (ed.) – The Japan Reader. Imperial Japan, 1800-1945. New York: Pantheon, 1973, p. 240-245 FURTADO, Celso M. Formação Econômica do Brasil. 34ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. FURUSHIMA, Toshio. “The village and agriculture during the Edo period”. In n John Whitney Hall, ed., The Cambridge History of Japan, vol. 4, Early Modern Japan, 1991:478-517 HALL, J. W. Japan, from prehistory to modern times. New York, Delacorte Press, 1970. HALL, J. W. The Muromachi bakufu. In: Kozo Yamamura (ed.) The Cambridge History of Japan. pp. 175-230, 1990

117

HALL, John Whitney. El imperio japones. 6. ed. Madrid: Siglo Veintiuno de España, 1984. HALL, John Whitney.”Introduction”. In n John Whitney Hall, ed., The Cambridge History of Japan, vol. 4, Early Modern Japan, 1991: 1–39. HANLEY, Susan B. “Tokugawa society: material culture, standard of living, and life-styles” in: John Whitney Hall, ed., The Cambridge History of Japan, vol. 4, Early Modern Japan, 1991: 660-705 HANLEY, Susan; YAMAMURA, Kozo. ”Economic and Demographic Change in Preindustrial Japan, 1600-1868”. Princeton University Press, 1977. HAYAMI, Akira; MIYAMOTO, Matao, Keizai shakai no seiritsu, 17–18 seiki, [The formation of an economic society, 17th to 18th centuries], vol. 1 of Nihon keizai shi, [Economic history of Japan], Tokyo: Iwanami Shoten, 1988. HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital: 1848-1875. São Paulo : Paz e Terra, 1997. HOBSBAWM, Eric. Sobre História-ensaios. Trad. Port. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. IRIYE, Akira. "Japan's drive to great-power status", The Cambridge History of Japanvol 5. Ed. Marius B. Jansen. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. pp. 721782. JANSEN, Marius B. "Japan in the early nineteenth century", The Cambridge History of Japan vol 5. Ed. Marius B. Jansen. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. pp. 50-115. JANSEN, Marius B. "The Meiji Restoration", in: The Cambridge History of Japan vol 5. Ed. Marius B. Jansen. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. pp. 308-366. JANSEN, Marius B.. "The Meiji Restoration", The Cambridge History of Japan. Ed. Marius B. Jansen. 1st ed. Vol. 5. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. pp. 308366. KAZUO, S. The Early History of the Zaibatsu, Developing Economies 4.4, 535-566, 1966. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão.Campinas (SP), Ed. Unicamp, 1990. LENIN. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1987. MARSHALL, Byron. “Capitalism and Nationalism in Prewar Japan: The Ideology of the Business Elite, 1868–1941”. Stanford Calif.: Stanford University Press, 1967.

118

MARX, Karl. “A Assim Chamada Acumulação Primitiva” (pp. 339 – 382). XXIV In O Capital: crítica da economia política. Livro I, Volume II. São Paulo: Nova Cultural, 1996 MOORE , Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. Lisboa: Cosmos/Martins Fontes, 1975. 632 p. (Coordenadas. Colecção de ciencias humanas). Bibliografia: p. 599-616. MYERS, R. H.; PEATTIE, M. (Ed.). Japanese colonial empire, 1895-1945, The. New Jersey: Princeton University Press, 1983. NAJITA, Tetsuo. “History and nature in eighteenth-century Tokugawa thought” in: John Whitney Hall, ed., The Cambridge History of Japan, vol. 4, Early Modern Japan, 1991: 596-659 NAKAMURA, James, “Agricultural production and the economic development of Japan: 1873-1922”. Princeton: Princeton Univ. Press, 1966. NAKAMURA, Takafusa, “Meiji Taishô Ki no Keizai” [The Economy of the Meiji and Taishô Periods], Tokyo: Tokyo Daigaku Shuppankai, 1985 NAKAMURA, Takafusa. “The postwar Japanese economy: its development and structure”. Tokyo: Univ. of Tokyo, 1986. NAKAMURA, Takafusa. Economic Growth in Prewar Japan. New Haven, Conn.: Yale University Press, 1983. NAKANE, Chie “Introduction” in, Chie Nakane – Shinzaburo Oishi (ed.) Tokugawa Japan. TheSocial and Economic antecedents of Modern Japan. Translated by Susan Murata. Tokyo: University of Tokyo Press, 1991, p. 3-9 NAKANE, Chie “Tokugawa Society” in, Chie Nakane – Shinzaburo Oishi (ed.) Tokugawa Japan. TheSocial and Economic antecedents of Modern Japan. Translated by Susan Murata. Tokyo: University of Tokyo Press, 1991, p. 213-231 NAKANO, M. “Kyoho no sanchu ikki (A revolta de Sanchu no período Kyoho)”, Okayama City: Okayama Sanyo Printing Co. 1980. NOBUHIKO, Nakai. “Commercial change and urban growth in early modern Japan”. In n John Whitney Hall, ed., The Cambridge History of Japan, vol. 4, Early Modern Japan, 1991:519-596 NORMAN, Herbert. “Early Industrialization” in: Jon Livingston, Joe Moore, Felicia Oldfather (ed.) – The Japan Reader. Imperial Japan, 1800-1945. New York: Pantheon, 1973, p. 116-122.

119

NORMAN, Herbert. “Japan's Emergence as a Modern State: Political and Economic Problems of the Meiji Period. International Secretariat, Institute of Pacific Relations, 1940 PEATTIE, Mark R.. "The Japanese colonial empire, 1895–1945", The Cambridge History of Japan vol. 6. Ed. Peter Duus. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. pp. 215-270 PYLE, Kenneth B. "Meiji conservatism", in: The Cambridge History of Japan vol. 5. Ed. Marius B. Jansen. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. pp. 674-720. ROZAMN, G. “Social Change”, in: The Cambridge History of Japan vol. 5, Ed. Marius B. Jansen. Cambridge: Cambridge University Press, 1989: 501-562 SAKATA, S. “The Formation of Family and Village Society” [Ie to Mura Shakai no Seiritsu], Koshi Shoin, 2011 SMITH, Thomas. C. “Agrarian Distress and Taxation” in: Jon Livingston, Joe Moore, Felicia Oldfather (ed.) – The Japan Reader. Imperial Japan, 1800-1945. New York: Pantheon, 1973, p.129-132. SMITH, Thomas. C. “Japan’s Aristocratic revolution” in: Jon Livingston, Joe Moore, Felicia Oldfather (ed.) – The Japan Reader. Imperial Japan, 1800-1945. New York: Pantheon, 1973, p.91-101 SMITH, Thomas. C. “Native sources of Japanese industrialization: 1750-1920”. Berkeley: Univ. of California, c1988. SMITH, Thomas. C. “The agrarian origins of modern Japan”. Stanford: Stanford University, c1959 SMITH, Thomas. C. “The Japanese Village in Seventeen Century” in: Jon Livingston, Joe Moore, Felicia Oldfather (ed.) – The Japan Reader. Imperial Japan, 1800-1945. New York: Pantheon, 1973, p.42-49 TAIRA, Koji. “Economic development, labor markets, and industrial relations in Japan, 19051955”. In Peter Duus, ed., The Cambridge History of Japan, vol. 6, The Twentieth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. TAKAHASHI, Kohachiro, H. “Distribuición Social de la propriedad territorial a partir de siglo XVI”, Apresentado na III°Conferencia Internacional de História Econômica: Munich, 1965. TAKAHASHI, Kohachiro, H. “la Revolución Meiji dentro de la Historia Gararia del Japón” In: Revue Historique, t. CCX. 1953.

120

TAKAHASHI, Kohachiro, H. “Movimentos campesinos y problemas agrarios en el Japón desde finales del siglo XVIII hasta nuestros días” In: Cashiers Internationaux d’Historie économique et sociale, Nápoles, no. 8, 1976. VLASTOS, S. “Opposition Movements in Early Meiji, 1868-1885.” In The Cambridge History of Japan vol. 5, ed. Marius B. Jansen. Cambridge: Cambridge University Press, 1989: 367-431. VLASTOS, S. “Peasant Protests and Uprisings in Tokugawa Japan”, Berkley and Los Angeles: University of California Press, 1986. WAKITA, O. "The Social and Economic Consequences of Unification." In n John Whitney Hall, ed., The Cambridge History of Japan, vol. 4, Early Modern Japan, 1991: WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 3. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1983. WOOD, E. M; FOSTER, J. B. (orgs.). Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro, J. Zahar, 1999. WOOD, Ellen M. “As origens agrárias do capitalismo”. Trad. Lígia Osório Silva. in: Revista. Crítica Marxista, São Paulo, n. 10, 2000 YOSHINO, M. Y. Japan's Managerial System: tradition and innovation. Cambridge, MA: MIT, c1968.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.