Terra, teto e trabalho para todos

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FLICKR DO ENCONTRO MUNDIAL DOS MOVIMENTOS POPULARES

Religião Francisco

Terra, teto e trabalho

PARA TODOS

“A brecha entre os povos e as nossas formas atuais de democracia se amplia cada vez mais como consequência do enorme poder dos grupos econômicos e midiáticos que parecem dominá-las” Moisés Sbardelotto *

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ma mesma sede de justiça e um mesmo clamor: “Terra, teto e trabalho para todos”. Foi o que o papa Francisco defendeu no 3o Encontro Mundial dos Movimentos Populares, realizado no Vaticano, dos dias 3 a 5 de novembro. Depois das edições de Roma em 2014 e de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, em 2015, o terceiro encontro reuniu mais de 200 membros pertencentes a 134 movimentos populares, provenientes de 67 países, inclusive do Brasil. No último dia do encontro, os participantes – com as presenças

de Vandana Shiva, filósofa e ambientalista indiana e Prêmio Nobel Alternativo de 1993, e de José “Pepe” Mujica, presidente do Uruguai de 2010 a 2015 – foram recebidos pelo Santo Padre em audiência na Sala Paulo VI. Em seu discurso de quase uma hora, Francisco ressaltou a necessidade de uma mudança de estruturas para que a vida seja digna, destacando três tarefas para enfrentar a globalização da indiferença: pôr a economia a serviço dos povos; construir a paz e a justiça; e defender a Mãe Terra. Nesse contexto, enfatizou, os movi-

mentos populares são semeadores de mudança e poetas sociais, pois abraçam um projeto de vida que busca rechaçar o consumismo e recuperar a solidariedade, o amor e o respeito à natureza. “O que vocês demandam é a felicidade de ‘viver bem’, e não esse ideal egoísta que enganosamente inverte as palavras e nos propõe a ‘boa vida’”, afirmou. Movimentos sociais – Para o pontífice, uma das forças dos movimentos populares está justamente na sua ação comunitária, local e, ao mesmo tempo, global. “As soluções dezembro de 2016 57

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reais às problemáticas atuais – explicou – não vão sair de uma, três ou mil conferências: elas têm que ser fruto de um discernimento coletivo que amadureça nos territórios, junto aos irmãos, um discernimento que se converta em ação transformadora ‘segundo os lugares, os tempos e as pessoas’, como diria Santo Inácio.” Contudo, reconheceu Francisco, essa germinação popular é lenta e, muitas vezes, é ameaçada por uma estrutura injusta que envolve todas as exclusões e também um terrorismo de base: o controle global do dinheiro sobre a terra que atenta contra a humanidade inteira. De acordo com o pontífice, é esse terrorismo do dinheiro que alimenta todos os demais terrorismos, como o narcoterrorismo, o terrorismo de Estado e “aquele que erroneamente alguns chamam de terrorismo étnico 58 revista família cristã

ou religioso. Mas nenhum povo, nenhuma religião é terrorista”. Retomando a encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, de 1931, e a carta apostólica Octogesima Adveniens, de Paulo VI, de 1971, Francisco reiterou que “toda a Doutrina Social da Igreja e o magistério dos meus antecessores se rebelam contra o ídolo-dinheiro que reina em vez de servir, tiraniza e aterroriza a humanidade”. E toda tirania, segundo o papa, explora os medos das pessoas. Isso muitas vezes leva à tentação da “falsa segurança dos muros físicos e sociais. Muros – ilustrou Francisco – que encerram uns e desterram outros. Cidadãos amuralhados, aterrorizados, de um lado; excluídos, desterrados, mais aterrorizados ainda, de outro. Essa é a vida que o nosso Pai Deus quer para os seus filhos?”, questionou.

Os três “Ts” – Diante de leis e normas sociais e até mesmo eclesiais marcadas por um pensamento hipócrita e suficiente, Francisco indicou, ao contrário, a inteligência humilde do coração. Os três “Ts” clamados pelos movimentos populares (terra, teto e trabalho) são assumidos pelo papa justamente porque “têm algo dessa inteligência humilde, mas, ao mesmo tempo, forte e curadora. Um projeto-ponte dos povos frente ao projeto-muro do dinheiro. Um projeto que aponta para o desenvolvimento humano integral”. Por fim, o papa ressaltou dois pontos muito relevantes, especialmente para o contexto brasileiro atual. O primeiro foi a importância da boa política. Para Francisco, “a brecha entre os povos e as nossas formas atuais de democracia se amplia

cada vez mais como consequência do enorme poder dos grupos econômicos e midiáticos que parecem dominá-las”. Nesse contexto, os movimentos populares, embora não sejam partidos políticos, expressam uma forma distinta, dinâmica e vital de participação social na vida pública, e essa é a sua riqueza, defendeu o pontífice. Diante de políticas sociais “para” os pobres, mas nunca “com” os pobres e “dos” pobres, Francisco ressaltou o papel dos movimentos sociais como organizações dos excluídos. Para o pontífice, tais movimentos não devem cair na tentação de se deixar reduzir a atores secundários, a meros administradores da miséria existente. Ao contrário, são chamados a revitalizar e a refundar as democracias, que passam por uma verdadeira crise. Nesse sentido, o papa citou como exemplo o dirigente afro-americano Martin Luther King e a sua defesa da força do amor fraterno, que busca derrotar os sistemas malignos que alimentam as correntes do ódio e amar as pessoas aferradas por tal sistema. Por isso, exortou: “Não tenham medo de se meter nas grandes discussões, na Política com maiúscula. (…) A política é uma das formas mais altas da caridade, do amor”. Por outro lado, Francisco abordou o tema da corrupção, que, ressaltou, não é exclusividade da política, mas perpassa todo o âmbito social. Por isso, pediu que as lideranças sociais e populares vivam sob o sinal da austeridade e da humildade. “A qualquer pessoa que tenha apego demais pelas coisas materiais ou pelo espelho, quem gosta do dinheiro, dos banquetes exuberantes, das mansões suntuo-

sas, dos trajes refinados, dos carros de luxo, eu aconselharia que veja o que está acontecendo no seu coração e reze para que Deus o liberte dessas ataduras.” Citando Mujica, Francisco enfatizou: “Quem tem fixação por todas essas coisas, por favor, não se meta na política!”, acrescentando: “E também não se meta no seminário!”. O antídoto indicado por Francisco à corrupção é praticar a austeridade moral e pessoal pregando com o próprio estilo de vida. O exemplo

“tem mais força do que mil palavras, do que mil volantes, do que mil ‘curtidas’, do que mil retuítes, do que mil vídeos do YouTube. O exemplo de uma vida austera a serviço do próximo é a melhor forma de promover o bem comum e o projeto-ponte dos três ‘Ts’”, sintetizou. * Moisés Sbardelotto é jornalista, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e La Sapienza, em Roma. É também autor de E o Verbo se Fez Bit (Editora Santuário). dezembro de 2016 59

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