Terras indígenas e o Supremo Tribunal Federal: análise da tese do \"marco temporal da ocupação\" sob a perspectiva da colonialidade

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO ACADÊMICO EM DIREITO

DAILOR SARTORI JUNIOR

TERRAS INDÍGENAS E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ANÁLISE DA TESE DO “MARCO TEMPORAL DA OCUPAÇÃO” SOB A PERSPECTIVA DA COLONIALIDADE

PORTO ALEGRE 2017

1 DAILOR SARTORI JUNIOR

TERRAS INDÍGENAS E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ANÁLISE DA TESE DO “MARCO TEMPORAL DA OCUPAÇÃO” SOB A PERSPECTIVA DA COLONIALIDADE

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário

Ritter dos Reis



UniRitter.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Gilberto Cogo Leivas Coorientadora: Profª Drª Fernanda Frizzo Bragato.

PORTO ALEGRE 2017

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S251t

Sartori Júnior, Dailor. Terras indígenas e o Supremo Tribunal Federal: análise da tese do “marco temporal da ocupação” sob a perspectiva da colonialidade / Dailor Sartori Júnior. -- 2017. 160 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Faculdade de Direito, Porto Alegre - RS, 2017. Orientador: Prof. Dr. Paulo Gilberto Cogo Leivas.

1. Direito. 2. Índios: Aspectos Jurídicos. 3. Supremo Tribunal Federal .l. Título. II. Leivas, Paulo Gilberto Cogo.

CDU 342.726(=1-82) Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Dr. Romeu Ritter dos Reis

DAILOR SARTORI JUNIOR

TERRAS INDÍGENAS E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ANÁLISE DA TESE DO “MARCO TEMPORAL DA OCUPAÇÃO” SOB A PERSPECTIVA DA COLONIALIDADE

Dissertação defendida e aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito pela banca examinadora constituída por:

___________________________________ Prof. Dr. Paulo Gilberto Cogo Leivas Centro Universitário Ritter dos Reis

___________________________________ Prof. Dr. Gilberto Schäfer Centro Universitário Ritter dos Reis

___________________________________ Profa. Dra. Fernanda Frizzo Bragato Universidade do Vale do Rio dos Sinos

___________________________________ Prof. Dr. Lucas Machado Fagundes Universidade do Extremo Sul Catarinense

___________________________________ Prof. Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho Pontifícia Universidade Católica do Paraná

PORTO ALEGRE 2017

AGRADECIMENTOS

Antes de mais nada, é importante mencionar que este trabalho é fruto das leituras e discussões do grupo de pesquisa “Direito dos povos e comunidades tradicionais: direitos coletivos ou direitos individuais exercidos coletivamente?”, coordenado pelo Prof. Paulo Leivas, e também da íntima ligação com a minha participação na Clínica de Direitos Humanos da Uniritter, projeto de extensão e de litigância em direitos humanos que me proporcionou conciliar, novamente, pesquisa, extensão e engajamento. Em 2015 e 2016, a Clínica privilegiou a pesquisa e a intervenção no tema dos direitos territoriais indígenas, inclusive sobre a tese do marco temporal, em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos, coordenado pela Profª Fernanda Bragato, a Clínica de Direitos Humanos e Prevenção de Crimes de Atrocidade da Cardozo Law School, de Nova Iorque, a ONG Terra de Direitos e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Agradeço a ajuda, companheirismo, inspiração e indignação de todas e todos que colaboraram nessa rica experiência. Também agradeço ao Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelas condições oferecidas para o cumprimento do Mestrado com tranquilidade e qualidade. Agradeço ao meu orientador, Prof. Paulo Leivas, e à minha coorientadora, Profª Fernanda Bragato, pela parceria, aprendizado, confiança e incentivo na escolha do tema e do referencial, bem como pelo crescimento mútuo. Agradeço aos membros das bancas – qualificação e defesa –, pelas relevantes contribuições e caminhos apontados para o aprimoramento da pesquisa. Por fim, agradeço à minha família e aos amigos e amigas que de alguma forma contribuíram com meus estudos, até mesmo pelas discussões teóricas e pelas indignações ético-políticas que sempre inspiram os caminhos acadêmicos e profissionais. Mas, sobretudo, agradeço a Alice, com muito amor, carinho e admiração.

RESUMO

No julgamento da Petição 3.388 pelo Supremo Tribunal Federal, em 2009, além da confirmação da constitucionalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, criou-se a controversa tese do “marco temporal da ocupação”, a qual afirma que o direito a uma terra indígena só deve ser reconhecido quando a área se encontrava tradicionalmente ocupada na promulgação da Constituição, 05 de outubro de 1988, a menos que se comprove o “renitente esbulho”, ou seja, a reivindicação de retorno em caso de expulsão da área. Desde então, esta tese foi aplicada pelo STF nos processos judiciais que anularam a demarcação das Terras Indígenas Guyraroká e Limão Verde, ambas no Mato Grosso do Sul. Para análise destes casos, adota-se o pensamento descolonial como referencial teórico, o qual entende a colonialidade como a face oculta, mas essencial para a constituição da modernidade, e como matriz de poder inaugurada na conquista da América, cujo processo de classificação social e de divisão racial do trabalho estruturou as sociedades latino-americanas e se manifesta, ainda hoje, na hierarquização racial dos sujeitos, na construção do “outro” como inferior e na validação de conhecimentos eurocêntricos e invalidação dos subalternos. Assim, a partir de uma abordagem “sócio-histórica crítica”, a pesquisa, também de tipo exploratória, busca responder quais são os elementos de colonialidade presentes na fundamentação da tese do marco temporal pelo STF. Para tanto, objetiva-se analisar os conceitos-chave do pensamento descolonial como categorias aptas a interpretar os direitos territoriais indígenas no Brasil e discutir a fundamentação da tese a partir dos acórdãos e laudos antropológicos dos casos já julgados. Como resultados, identificou-se que, além da inconstitucionalidade e anticonvencionalidade, o marco temporal expressa a colonialidade do ser, do saber e do poder, por conta de sua anti-historicidade e desconsideração da situação de violência e tutela do passado, da imposição de formas civilistas e eurocêntricas de relação com o território e com o Estado e da legitimação do contexto político de disparidade de poder em que tais conflitos são instaurados. Por fim, no lugar da limitação temporal de direitos fundamentais para a resolução de conflitos fundiários históricos, propõe-se a territorialidade e os standards normativos internacionais como elementos de concretização dos direitos territoriais indígenas que melhor interagem com a descolonização do poder. Palavras-chave: Colonialidade. Marco temporal. Terras indígenas. Supremo Tribunal Federal.

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ABSTRACT

In the judgement of the Petition 3.388 by the Brazilian Supreme Court in 2009, besides the confirmation of the constitutionality of the demarcation of the Raposa Serra do Sol Indigenous Land, the controversial thesis of the “temporal framework of the occupation” was created, which states that the right to an indigenous land should only be recognized when the area was traditionally occupied on the date the Constitution was promulgated, October 5, 1988, unless the “reluctant trespass” is proven, that is, the claim of return in case of eviction of the area. Since then, this thesis has been applied by the STF in the lawsuits that nullified the demarcation of the Guyraroká and Limão Verde Indigenous Lands, both in Mato Grosso do Sul. For the analysis of these cases, decolonial thinking is adopted as a theoretical reference, which understands the coloniality as the hidden but essential face of the constitution of modernity, and as a matrix of power initiated in the conquest of America, whose process of social classification and racial division of labor has structured Latin American societies and is still manifest in the racial hierarchization of the subjects, in the construction of the "other" as inferior and in the validation of Eurocentric knowledge and invalidation of the subalterns. Therefore, from a "critical socio-historical" approach, the research, also exploratory, aims to answer which are the elements of coloniality present in the justification of the thesis of the “temporal framework of the occupation” of indigenous lands by the Brazilian Supreme Court. For this purpose, the research aims to analyze the key concepts of decolonial thinking as theoretical categories capable of interpreting indigenous territorial rights in Brazil and to discuss the justification of the thesis based on the judgments and the anthropological reports of the cases already judged. As results, it was identified that, in addition to unconstitutionality and unconventionality, the temporal framework expresses the coloniality of being, knowledge and power, due to its anti-historicity and disregard of the situation of violence and tutelage of the past, the imposition of civilist and Eurocentric forms of relation with the territory and with the State and the legitimation of the political context of disparity of power in which such conflicts are established. In conclusion, instead of the temporal limitation of fundamental rights for the resolution of historical land conflicts, the territoriality, the normative standards of the international law are proposed as better elements for the realization of indigenous territorial rights that best interact with the decolonization of power. Keywords: Coloniality. Temporal Framework. Indigenous lands. Brazilian Supreme Court.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADPF

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

AGU

Advocacia-Geral da União

CIDH

Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CIMI

Conselho Indigenista Missionário

CNA

Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil

CNJ

Conselho Nacional de Justiça

CNV

Comissão Nacional da Verdade

Corte IDH

Corte Interamericana de Direitos Humanos

CTI

Centro de Trabalho Indigenista

DADPI

Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas

FPA

Frente Parlamentar da Agropecuária

FUNAI

Fundação Nacional do Índio

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

ISA

Instituto Socioambiental

Min.

Ministro(a)

MPF

Ministério Público Federal

OEA

Organização dos Estados Americanos

OIT

Organização Internacional do Trabalho

ONGs

Organizações não Governamentais

ONU

Organização das Nações Unidas

PEC

Proposta de Emenda Constitucional

PGR

Procuradoria-Geral da República

SIDH

Sistema Interamericano de Direitos Humanos

SPI

Serviço de Proteção ao Índio

STF

Supremo Tribunal Federal

STJ

Superior Tribunal de Justiça

TI

Terra Indígena

TRF

Tribunal Regional Federal

UNI

União das Nações Indígenas

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 1. A COLONIALIDADE COMO PERSPECTIVA DE LEITURA E DE ANÁLISE DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS ............................................................................... 17 1.1 O giro descolonial e a construção do campo do pensamento descolonial na América Latina ....................................................................................................................................... 18 1.1.1 A colonialidade como face oculta da modernidade: origens e constituição do grupo de estudos Modernidade/Colonialidade ........................................................................................ 18 1.1.2 O significado do giro descolonial .................................................................................... 26 1.1.3 Diferenças e aproximações entre colonialismo, pós-colonialismo e pensamento descolonial ................................................................................................................................ 30 1.2 Categorias teóricas críticas das dimensões da colonialidade: poder, conhecimento e subjetividades .......................................................................................................................... 34 1.2.1 Colonialidade do poder, eurocentrismo e classificação social ........................................ 34 1.2.2 Colonialidade do saber e epistemologias outras .............................................................. 40 1.2.3 Colonialidade do ser, discurso colonial e a construção do “outro” como inferior .......... 46

2.

DAS

RELAÇÕES

TRANSFORMAÇÃO

COLONIAIS DO

QUADRO

ÀS

RUPTURAS

NORMATIVO

DESCOLONIAIS: INDIGENISTA

E

A A

EMERGÊNCIA DA TERRITORIALIDADE NO DIREITO À TERRA ......................... 53 2.1 Colonialidade na relação histórica e jurídica entre Estado, sociedade e povos indígenas .................................................................................................................................. 54 2.1.1 O indígena enquanto categoria da situação colonial ....................................................... 55 2.1.2 Colonialismo interno e políticas de aculturação .............................................................. 61 2.1.3 A mudança de paradigma no Brasil e na América Latina: do integracionismo ao reconhecimento das diferenças ................................................................................................. 68 2.2 Direitos territoriais indígenas .......................................................................................... 75 2.2.1 A emergência da territorialidade e os processos de territorialização .............................. 76 2.2.2 Aportes dos Sistemas Universal e Interamericano de Direitos Humanos para a compreensão dos direitos territoriais indígenas........................................................................ 82 2.3 As terras indígenas na Constituição Federal de 1988 ................................................... 90 2.3.1 O conceito sui generis de terra indígena ......................................................................... 90

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2.3.2 As principais características das terras indígenas ............................................................ 94 2.3.2.1 Originariedade e teoria do indigenato .......................................................................... 94 2.3.2.2 Tradicionalidade e cosmovisões indígenas .................................................................. 96

3. ANÁLISE DA COLONIALIDADE NA FUNDAMENTAÇÃO DA TESE DO MARCO TEMPORAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ............................. 100 3.1 O Supremo Tribunal Federal e a limitação temporal dos direitos territoriais indígenas ................................................................................................................................ 103 3.1.1 O julgamento da Petição n° 3.388 da Terra Indígena Raposa Serra do Sol .................. 103 3.1.2 A tese do marco temporal da demarcação de terras indígenas e a exceção do renitente esbulho .................................................................................................................................... 111 3.2 A colonialidade presente na fundamentação jurisprudencial do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal .................................................................................................. 116 3.2.1 Colonialidade do ser, violências e anti-historicidade .................................................... 116 3.2.2 Colonialidade do saber, ocupação e resistência tradicionais ......................................... 126 3.2.3 Colonialidade do poder e o contexto político dos conflitos fundiários envolvendo terras indígenas ................................................................................................................................. 133 CONCLUSÃO....................................................................................................................... 142 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 146

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INTRODUÇÃO

Após viver na terra conhecida por Guyraroká e em outras localidades das margens dos rios Ipuitã e Karaku, no atual Estado do Mato Grosso do Sul, a partir de 1930 uma comunidade de Guarani-Kaiowá, liderada pelo Cacique Tito Vilhalva, começou a sofrer pressão dos novos moradores da região, que se diziam proprietários daquelas terras, e teve que, por vezes, deixar seu território tradicional. Durante décadas, o grupo viu os fazendeiros desmatarem a floresta, enquanto os índios trabalhavam como peões das fazendas e entravam furtivamente nos seus próprios territórios para caçar e para visitar seus locais religiosos1. Com o renascer dos povos indígenas para o direito na década de 70, e pelas condições dadas pela nova Constituição, a parentela de seu Tito resolveu, a partir dos anos 90, intensificar as tentativas de reocupação, em um movimento chamado hoje de “retomada”. Já dizia o líder indígena e escritor Ailton Krenak que, além da “descoberta” em 1500 pelos brancos, houve uma descoberta do Brasil pelos índios, ocorrida nas décadas de 70 e 80, sendo “esta a que vale” (ISA, 2015). Mas foi somente em 2000 que uma pressão maior sobre a FUNAI surtiu efeito, iniciando-se os estudos para a demarcação da Terra Indígena (TI) Guyraroká em junho daquele ano (PEREIRA, 2002, p. 34). A corajosa atitude, que antes já havia motivado uma reação armada e violenta de pistoleiros contratados, ferindo adultos e crianças com balas de borracha2, agora gerava pedido judicial dos autointitulados donos da área de anulação do processo administrativo iniciado. A anulação da demarcação, que se encontrava na penúltima etapa do procedimento – edição de Portaria do Ministério da Justiça –, ocorreu por conta da aplicação da tese do marco temporal pelo STF, em 2014. Como isso aconteceu? O julgamento da Petição 3.388 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no ano de 2009, que questionava a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, pode ser

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Um relato sobre o processo de anulação da TI Guyraroká e dos antecedentes históricos da demarcação, com entrevista do Seu Tito, pode ser encontrada em: A PÚBLICA. Adeus, Guyraroká. 2016. Disponível em Acesso em 15.12.2016. Para uma compreensão ainda maior do histórico da ocupação e dos Guarani-Kaiowá, em especial da comunidade de Guyraroká, é imprescindível a leitura do laudo do antropólogo Levi Marques Pereira (2002), citado no terceiro capítulo deste trabalho. 2 Segundo narra Seu Tito: “Em 1998 retornamos para GUYRAROKÁ com 234 índios, sempre caminhando e carregando nossas galinhas, cachorros e pertences. O fazendeiro JOSÉ TEIXEIRA disse que a fazenda era dele e em seguida colocou todos os índios em caminhões e levou para GUYKUÉ. [...] Noventa dias após retornamos caminhando para GUYRAROKÁ com 233 índios. Entramos na fazenda, mas o fazendeiro trouxe polícia e pistoleiro armados. Deram muito tiro com bala de borracha. Muitos índios foram feridos, inclusive crianças. Tivemos que sair, pegamos nossas galinhas, cachorros e o que foi possível e montamos acampamento na beira da estrada, em APUIQUÍ, próximo da fazenda, em frente a uma igreja. Ficamos dois anos sendo ameaçados pelos fazendeiros que davam tiros à noite. Bebíamos água de pipas e não tinham como plantar. Ficamos doentes e com fome.” (CIMI, 2014).

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considerado o mais recente marco jurídico de reavaliação da política indigenista brasileira desde a Constituição Federal de 1988, pois, ao confirmar a demarcação de uma grande área e afastar argumentos contrários, o STF reconheceu a plurietnicidade e a superação das políticas integracionistas que marcaram o indigenismo recente. Entretanto, sem discussão com a sociedade – especialmente com os povos indígenas – e com as partes do processo, os Ministros criaram 19 condicionantes, também chamadas de “salvaguardas institucionais”, para serem observadas nas futuras demarcações, mesmo que, por conta da natureza jurídica da ação proposta, a decisão não possuísse efeitos para além do caso concreto. Paralelamente às condicionantes, foi estabelecido o “marco temporal da ocupação” e o chamado “renitente esbulho”. A tese do marco temporal afirma que o direito a uma terra indígena só deve ser reconhecido nos casos em que a área se encontrava tradicionalmente ocupada na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, a menos que se comprove que os índios tenham sido impedidos de ocupá-la por renitente esbulho, ou seja, porque tenham sido expulsos à força e em 5 de outubro de 1988 estivessem reivindicando de maneira enfática o seu retorno, preferencialmente por via judicial. Depois do último recurso do caso julgado em 2013, o marco temporal passou a ser aplicado pelo Judiciário em outras ações movidas por proprietários de terras que questionam os processos de demarcação, e vem causando a anulação de atos administrativos que instituem as terras indígenas. O primeiro caso é justamente da Terra Indígena Guyraroká, no Município de Caarapó, Mato Grosso do Sul, território e 11 mil hectares declarado em 2009 para posse de 525 Guaranis Kaiowá, cuja anulação ocorreu em 2014. Após, em 2015, veio a anulação da Terra Indígena Limão Verde, de 1.335 índios Terena, localizada no Município de Aquidauana, também no Mato Grosso do Sul. Um pequeno alento veio em 2016, com a confirmação em Plenário do julgamento monocrático de 2010 que rejeitou anulação da Área Indígena Yvy Katu, dos Guaranis Kaiowá de Japorã (MS), demarcada em 1928 e ampliada em 1991. Sobre a alegação de que os índios não estavam em 5 de outubro de 1988 na área ampliada, o STF entendeu que seria necessária prova complexa, apta a contestar o laudo antropológico que fundamentou o estudo. Assim, não houve anulação. Por fim, também em 2014, outra terra indígena, TI Porquinhos, do povo Kanela Apanyekrá do Maranhão, teve sua anulação decorrente das novidades do caso Raposa Serra do Sol, mas desta vez pela aplicação da condicionante de vedação de ampliação de TI. Muito em breve, seja pela inclusão do marco temporal na PEC nº 215/2000, ou em novo Decreto do Governo Federal que substitua o atual Decreto nº 1.775/1996, o qual estabelece o procedimento administrativo das demarcações, diversos outros pedidos de

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anulações que já tramitam na Justiça Federal poderão ser analisados e confirmados, ou revertidos, no STF. Se considerarmos o atual paradigma da política indigenista brasileira – e também latino-americana – que privilegia o reconhecimento das diferenças e a titularidade de direitos específicos, sendo um giro radical de superação das políticas integracionistas e de tutela que permaneceram até a promulgação da Constituição Federal de 1988 (SILVA, 2015, p. 34), e se considerarmos que, neste contexto, também os direitos territoriais devem ser garantidos em respeito à diversidade cultural deste povos, qual o lugar simbólico que ocupa esta tese jurisprudencial? Argumentos técnico-jurídicos já foram desenvolvidos referentes ao tema: Paulo Thadeu Gomes da Silva3 identifica inúmeros problemas, como o fato de os direitos indígenas da Constituição Federal serem fundamentais, portanto, o limite temporal, ao restringir estes direitos, incorreria na violação do princípio da proporcionalidade no sentido da vedação da proteção insuficiente. Também, conforme parecer jurídico de José Afonso da Silva4, a teoria do indigenato, que afirma que o direito ao território é originário, ou preexistente ao próprio Estado, bastando declará-lo e não constitui-lo, não poderia ser suplantada por uma teoria do fato indígena, ou seja, pela presença ou ausência em uma data aleatória sem previsão expressa. Além disso, a Constituição seria um marco de afirmação de direitos para o futuro, e não um marco limitador, pois desde a Constituição de 1934 existe o direito à posse permanente das terras tradicionalmente ocupadas. Mas também é relevante considerar categorias teóricas que explicam as bases e os processos epistêmicos envolvidos em tais movimentos políticos e jurídicos de retrocessos e revisão de direitos de povos originários, que inclusive podem fundamentar uma dogmática constitucional mais emancipadora. Mesmo após os movimentos de descolonização do século XX, nas formas de relação dos Estados-Nação com as populações internas (grupos nacionais, étnicos, religiosos, etc.) ainda imperam mecanismos de opressão e de superioridade epistêmica. Deste modo, o colonialismo, enquanto momento político, estaria formalmente superado; a colonialidade, enquanto efeito estruturante do primeiro, estaria cada vez mais nítida e atuante. Considerando a ideia de colonialidade como a face oculta, mas essencial para a 3

JOTA. A Constituição de 88 não é o marco temporal caracterizador da posse indígena. Disponível em: Acesso em: 14.12.2016. 4 SILVA, José Afonso da. Parecer. Disponível em: Acesso em: 14.12.2016.

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constituição da modernidade, e como processo de classificação social e de divisão do trabalho no capitalismo, com origens na conquista da América (QUIJANO, 1992; 2000; 2007; DUSSEL, 1993; 2000), pensadoras e pensadores latino-americanos desenvolveram categorias teóricas que criticam a estruturação das sociedades latinas a partir das experiências coloniais. Tal processo reflete-se na hierarquização racial dos sujeitos, na construção do “outro” como inferior – sobretudo o negro e o indígena – e na produção e validação de conhecimentos eurocêntricos e invalidação dos subalternos, cujos efeitos são percebidos inclusive no direito moderno. Como resultado, da narrativa universalizante da modernidade eurocêntrica surgem produtos culturais unificadores, como a nação monocultural, a democracia representativa, o direito estatal e o constitucionalismo liberal, baseado na igualdade formal e distante das especificidades histórico-culturais dos povos originários. Mas, se a colonialidade possui tais características, existem também os projetos de descolonialidade do poder, do saber e do ser, através da desobediência epistêmica, do pluralismo jurídico e da interculturalidade, que denotam o surgimento do pensamento descolonial enquanto movimento teórico interdisciplinar, mas suficientemente coeso. Este é o referencial teórico adotado no trabalho. Tal referencial exige um método que permita olhar para os processos históricos que são estruturantes das relações sociais, como o colonialismo, a modernidade, as políticas tutelares e integracionistas dos povos indígenas e os projetos descoloniais do novo constitucionalismo latino-americano. Além disso, um método que dê protagonismo às subjetividades oprimidas do processo civilizador e possa fundamentar uma compressão diacrônica das lutas históricas dos povos originários por reconhecimento. Assim, para além de um método “sociojurídico crítico”, que confronta os fenômenos sociais com as estruturas jurídico-políticas e normativas vigentes, questionando as contradições e os seus pressupostos de legitimidade e validade (FONSECA, 2009, p. 62-70), é necessário um olhar mais amplo sobre a própria historicidade dessas estruturas jurídicopolíticas: um método “sócio-histórico” ou, ainda, uma metodologia da “práxis sócio-histórica crítica”, no sentido de Médici (2016) e Rosillo Martínez (2014), que apoiam-se nas contribuições da Filosofia da Libertação de Enrique Dussel, Franz Hinkelammert e Ignacio Ellacuría. A práxis, como conceito herdado do marxismo, é o âmbito onde mais se expressa a interação do sujeito com o mundo; não de forma unidirecional, mas criativa. As práxis históricas de libertação são aquelas que atuam como produtoras de estruturas novas mais humanizantes, que podem institucionalizar juridicamente as demandas dos movimentos

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sociais em função de suas mobilizações (ROSILLO MARTÍNEZ, 2014, p. 14). A práxis sócio-histórica crítica contempla “[…] las tramas sociales donde los sujetos concretos corporales y necesitados se conforman desde la intersubjetividad, desde los lazos sociales amenazados, negados por la Totalidad, como comunidades críticas.” (MÉDICI, 2016, p. 45). É crítica porque há um discernimento crítico acerca das instituições, da exclusão do sistema político e da negação das necessidades de vida dos grupos oprimidos, cuja resistência e oposição impulsionam modificações estruturais no Estado liberal e no direito monista. Assim, os movimentos sociais, as organizações populares, os povos originários, os camponeses e a classe trabalhadora organizada “[...] presionan formulando sus necesidades como nuevos derechos o re enunciando desde nuevas subjetividades y situaciones derechos ya existentes, pero no eficientemente garantizados ni concretizados juridicamente” (MÉDICI, 2016, p. 45). Considerando este contexto e a proposta metodológica de abordagem do tema, o presente trabalho busca responder a seguinte questão: quais são os elementos de colonialidade presentes na fundamentação da tese do marco temporal da demarcação de terras indígenas pelo Supremo Tribunal Federal? Para tanto, propõem-se os seguintes objetivos: analisar a fundamentação da tese do “marco temporal da demarcação” sobre os direitos territoriais indígenas, a partir dos casos julgados pelo STF até dezembro de 2016, utilizando categorias teóricas do pensamento descolonial. Dentre os objetivos específicos: a) analisar a afirmação do pensamento descolonial como referencial e seus conceitos-chave como categorias teóricas aptas a interpretar direitos territoriais indígenas no Brasil; b) analisar o conteúdo e a extensão dos direitos territoriais indígenas no ordenamento brasileiro e nos sistemas universal e interamericano de proteção dos direitos humanos; c) analisar as formas de relação dos povos indígenas com o território que ocupam e como se expressa a posse tradicional; d) analisar a tese do marco temporal criada pelo STF no julgamento da TI Raposa Serra do Sol; e e) discutir a fundamentação da tese a partir dos casos já julgados pelo STF, considerando as dimensões da colonialidade (poder, saber e ser). Por mais que estudos sobre os direitos territoriais indígenas sejam hoje recorrentes nos programas de pós-graduação de direito, as teses do marco temporal e do renitente esbulho são criações jurisprudenciais recentes, que, portanto, ainda não impactaram de forma significativa nos julgados que tramitam na Justiça Federal do país. Ademais, não foram suficientemente questionadas por processos de litigância estratégica de entidades da sociedade civil e tampouco foram analisadas com maior profundidade pelo STF em Plenário. Por esta razão, a pesquisa também tem por característica ser de tipo exploratório, considerado o mais adequado

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“[...] quando o tema escolhido é pouco conhecido e torna-se difícil sobre ele formular hipóteses precisas e operacionalizáveis” (GIL, 2008, p. 27). São pesquisas que têm por objetivo proporcionar visão geral de tipo aproximativo, que favoreça a construção de bases para o desenvolvimento de pesquisas posteriores, mais consistentes. Os métodos procedimentais podem ser resumidos pela análise dos conceitos e da trajetória de afirmação do referencial teórico; pela análise de legislação do passado e do presente, que demonstram o quadro normativo atual dos direitos indígenas no Brasil; pela análise de caso paradigmático do STF, que gerou a tese objeto do trabalho; e pela pesquisa de jurisprudência do STF que aplica a tese do marco temporal, bem como de outros documentos referentes aos casos, como os laudos antropológicos que instruem as demarcações. Neste sentido, estrutura-se o trabalho em três capítulos, sendo o primeiro justamente para apresentar o referencial teórico, tanto suas origens históricas, quanto suas influências conceituais e teóricas. Primeiramente, na seção 1.1, é apresentado o significado do giro descolonial do poder e o movimento de pensadoras e pensadores latino-americanos chamado “modernidade/colonialidade”. Após, são discutidas aproximações e divergências entre os estudos pós-coloniais e o pensamento descolonial, bem como a relação entre ambos e as experiências do colonialismo moderno. A partir disto, a seção 1.2 apresenta, mais a fundo, as categorias teóricas críticas da colonialidade, que serão a base para a análise do terceiro capítulo: colonialidade do poder (plano estrutural das sociedades ex-coloniais), colonialidade do saber (plano do conhecimento) e colonialidade do ser (plano das subjetividades). O capítulo segundo apresenta o quadro normativo dos direitos indígenas no Brasil, sobretudo os direitos territoriais, a partir da experiência histórica do país e da América Latina na busca pela superação de políticas de aculturação que marcaram as relações com os povos originários desde a conquista da América. Na seção 2.1, aproxima-se o referencial aos direitos indígenas, demonstrando relações coloniais do passado (e do presente) e propostas de rupturas descoloniais do atual constitucionalismo latino-americano. Na seção 2.2, são analisados o conceito e as características das terras indígenas na Constituição, incluindo aportes normativos e interpretativos do Direito Internacional. A tradicionalidade e a originariedade das terras indígenas são as ideias centrais que dialogam com a tese do marco temporal. No terceiro capítulo, parte-se para a aplicação das categorias do referencial aos casos já analisados pelo STF em que a tese do marco temporal foi alegada para a revisão da demarcação de terras indígenas. Na seção 3.1, apresenta-se o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no qual foram estabelecidas, mas não aplicadas, as teses do marco temporal e do renitente esbulho. Na seção 3.2, são analisados os casos julgados pelo STF e os elementos de

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colonialidade identificados, como a desconsideração das violências territoriais, a imposição de formas eurocentradas de relação com o território e com o Estado e o contexto político de disparidade de poder em que tais conflitos são instaurados. Assim, objetiva-se, com este trabalho, realizar um estudo de fundamentação e aplicabilidade de uma tese jurídica a uma dada realidade sócio-histórica e normativa marcada pela violência, invisibilidade, tutela, integracionismo e esbulho; em última instância, pela colonialidade. Entretanto, por conta desta realidade também ser marcada por lutas por reconhecimento, resistência e retomada de territórios, ou seja, pela desobediência epistêmica e pela descolonialidade, toma-se como referencial o pensamento descolonial e suas categorias teóricas, que desafiam o direito a ir além de uma interpretação liberal da Constituição, sendo possível que o giro descolonial e a territorialidade norteiem os direitos indígenas neste novo paradigma anti-hegemônico e anticolonial.

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1. A COLONIALIDADE COMO PERSPECTIVA DE LEITURA E DE ANÁLISE DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS “Ahora América es, para el mundo, nada más que los Estados Unidos: nosotros habitamos, a lo sumo, una sub-América, una América de segunda clase, de nebulosa identificación. Es América Latina, la región de las venas abiertas”. Eduardo Galeano, Venas Abiertas de América Latina, 1971.

No que consiste a contribuição teórica do pensamento descolonial e no que ela se diferencia de outras investigações sobre a modernidade, a globalização e as ondas do colonialismo moderno? Quais são as categorias teóricas críticas da colonialidade e da proposta emancipadora da descolonialidade? No intuito de abordar de forma crítica e estrutural o problema de pesquisa, e não de apenas fornecer respostas jurídicas aos problemas colocados, estas são as questões que serão enfrentadas neste primeiro capítulo, estabelecendo o referencial teórico. Primeiramente, aborda-se o significado do chamado giro descolonial e a construção do pensamento descolonial enquanto campo de investigação anti-hegemônico da modernidade na América Latina. Por anti-hegemonia se entende a luta das vítimas da modernidade por uma outra racionalidade, e não pela tomada da hegemonia do projeto moderno (DUSSEL, 1998). Assim, para compreender tais propostas, serão apresentadas as origens e as influências do grupo de pensadores e pensadoras do “programa de investigação modernidade/colonialidade” que vêm, desde a década de 90, desenvolvendo conceitos e análises para a investigação das questões próprias da América Latina que envolvem seu passado colonial. Tal abordagem ressalta a persistência da colonialidade enquanto face oculta da modernidade eurocêntrica (MIGNOLO, 2008, p. 9) e enquanto matriz de poder colonial ainda hoje atuante na (re)produção das desigualdades e das hierarquias raciais (QUIJANO, 2007, p. 93). Além disso, serão abordadas algumas diferenças para os estudos pós-coloniais, que, embora difiram no destino geográfico do olhar, no período histórico de elaboração e na abrangência enquanto projeto, possuem similitudes e diálogos que serão aproveitados também neste trabalho. Sendo um campo de estudos emergente e interdisciplinar e não propriamente

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do direito, considera-se importante esta breve genealogia para que, posteriormente, seja possível demonstrar como o referencial teórico pode ser aplicado ao objeto de estudo. Após, adentra-se no estudo de categorias teóricas que serão utilizadas para análise do marco temporal da demarcação de terras indígenas, objeto do segundo, mas principalmente do terceiro

capítulo.

O

programa

de

investigação

modernidade/colonialidade

buscou

redimensionar os termos das discussões sobre o poder até então empreendidas pelo pensamento

crítico

latino-americano,

que

abrangiam

os

temas

desenvolvimento,

nacionalidades, identidades, dependência e imperialismo. A partir dos anos 90, o grupo procurou revisitar este debate e oferecer uma nova interpretação da modernidade à luz da experiência histórica e cultural latino-americana, erigindo-se a categoria central da “colonialidade” como “[...] el nodo epistémico de la propuesta sobre la estructuración del poder en la modernidad” (QUINTERO, 2010, p. 3). Acompanhando Quijano e a colonialidade do poder enquanto padrão global de dominação e de classificação racial (QUIJANO, 2007), outros pensadores e pensadoras latinoamericanos desenvolveram categorias derivadas, sobretudo a colonialidade do saber, de caráter epistêmico, e a colonialidade do ser, de caráter ontológico. Estas categorias constituem a esfera crítica do pensamento descolonial. Por outro lado, há também as categorias da descolonialidade, pois, segundo Mignolo (2008), a opção descolonial pressupõe a desconstrução deste padrão mundial de dominação do conhecimento e das subjetividades, a partir de uma atitude que ele chama de desobediência epistêmica, e tendo como norte epistemológico a interculturalidade (MIGNOLO, 2008).

1.1 O Giro descolonial e a construção do campo do pensamento descolonial na América Latina

Nesta seção, serão apresentadas as origens do programa de investigação modernidade/colonialidade, cujos pesquisadores e pesquisadoras são responsáveis pelas categorias teóricas utilizadas neste trabalho, bem como o significado do giro descolonial para a interpretação da modernidade e da experiência colonial latino-americana. Além disso, são abordadas aproximações e diferenças do pensamento descolonial para os estudos póscoloniais, bem como a relação de ambos com as duas ondas do colonialismo moderno.

1.1.1 Colonialidade como face oculta da modernidade: origens e constituição do grupo de estudos Modernidade/Colonialidade

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Em artigo de 2003 que se tornou referência, Arturo Escobar (2003) apresenta o programa de investigação modernidade/colonialidade, uma breve genealogia do pensamento crítico latino-americano que lhe dá origem, bem como suas limitações e perguntas abertas – muitas delas melhor desenvolvidas hoje –, no intuito de examinar criticamente as propostas de tais pesquisadores na interpretação da modernidade, da globalidade e da diferença. Posteriormente, em outra publicação que se tornou referência, Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel (2007) apresentam no Prólogo do livro de artigos “El giro decolonial: reflexiones para una diversidade epistémica más allá del capitalismo global” uma resenha da trajetória do grupo modernidade/colonialidade, na qual comentam suas categorias-chave que culminaram na ideia de “descolonialidade”, utilizada no sentido de giro descolonial, ou seja, enquanto mudança de perspectiva dos estudos da “descolonização” utilizados pelas ciências sociais no final do século XX (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 9). A coesão investigativa do grupo iniciou com a reunião do sociólogo peruano Aníbal Quijano com o norte-americano Immanuel Wallerstein, quando lecionavam nos Estados Unidos em 1996. Ambos já haviam sido reconhecidos internacionalmente por suas contribuições teóricas durante os anos setenta: o primeiro como importante colaborador do grupo de pesquisadores latino-americanos da “teoria da dependência”5, e o segundo como fundador de um dos conceitos mais importantes da sociologia ocidental da época, a análise do “sistema-mundo”6 (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 9).

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A teoria da dependência surgiu na América Latina nos anos sessenta e setenta, a partir dos estudos de intelectuais como Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotonio dos Santos, dentre outros, que procuravam fazer uma leitura crítica e marxista, mas não dogmática, dos processos de produção e reprodução do subdesenvolvimento na periferia do capitalismo mundial. Os principais postulados são os seguintes: “[…] el subdesarrollo está directamente ligado a la expansión de los países industrializados; desarrollo y subdesarrollo son dos aspectos diferentes del mismo proceso; el subdesarrollo no es ni una etapa en un proceso gradual hacia el desarrollo ni una precondición, sino una condición en sí misma; la dependencia no se limita a relaciones entre países, sino que también crea estructuras internas en las sociedades (Blomström y Ente, 1990)” (SPICKER; LEGUIZAMÓN; GORDON, 2009, p. 279-280). 6 A teoria do sistema-mundo foi desenvolvida por Immanuel Wallerstein nos anos 70 para explicar a expansão do capitalismo, a partir do século XVI, como um sistema baseado em relações econômicas, sociais, políticas e culturais, distinguindo a formação de um centro, periferia e semiperiferia, e enfatizando o papel hegemônico das economias centrais na organização deste sistema e na relação com a pobreza global e a desigualdade (SPICKER; LEGUIZAMÓN; GORDON, 2009, p. 279-280). Nas palavras de Wallerstein: “El mundo en el que vivimos, el sistema-mundo moderno, tuvo sus orígenes en el siglo XVI. Este sistema-mundo estaba entonces localizado en sólo una parte del globo, principalmente en partes de Europa y de América. Con el tiempo, se expandió hasta abarcar todo el mundo. Es y ha sido siempre una economía-mundo. Es y ha sido siempre una economía-mundo capitalista. [...] Lo que queremos significar con economía-mundo (la économie-monde de Brandel) es una gran zona geográfica dentro de la cual existe una división del trabajo y por lo tanto un intercambio significativo de bienes básicos o esenciales así como un flujo de capital y trabajo. Una característica definitoria de una economía-mundo es que no está limitada por una estructura política unitaria. Por el contrario, hay muchas unidades políticas dentro de una economía-mundo, tenuemente vinculadas entre sí en nuestro sistema-mundo moderno dentro de un sistema interestatal. Y una economía-mundo comprende muchas culturas y grupos (que

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Ocorre que a teoria de dependência privilegiava as relações econômicas e políticas nos processos sociais, relegando a cultura e as determinações ideológicas a um papel instrumental dos processos de acumulação capitalista. Esta posição reproduzia um reducionismo econômico típico dos enfoques marxistas ortodoxos, pois subestimava o papel do simbólico na constituição das hierarquias sociais, o que resultava em um empobrecimento analítico da teoria (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 18). Introduzindo categorias tais como gênero e raça no debate do capitalismo, Quijano vinculou o processo de colonização das Américas com a expansão mundial do sistema capitalista, ambos sendo parte do mesmo processo histórico iniciado nos séculos XV e XVI. Deste modo, “[…] desde la formación inicial del sistema-mundo capitalista, la incesante acumulación de capital se mezcló de manera compleja con los discursos racistas, homofóbicos y sexistas del patriarcado europeo” (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 19). Como consequência, um padrão de poder colonial persistia ao fim da dominação política do colonialismo ao estabelecer, de forma duradoura, hierarquias étnico-raciais entre dominantes e dominados. Estava elaborada, então, a noção de colonialidade, que daria gênese aos estudos descoloniais posteriores: La colonialidad, en consecuencia, es aún el modo más general de dominación en el mundo actual, una vez que el colonialismo como orden político explícito fue destruido. Ella no agota, obviamente, las condiciones, ni las formas de explotación y de dominación existentes entre las gentes. Pero no ha cesado de ser, desde hace 500 años, su marco principal. Las relaciones coloniales de períodos anteriores, probablemente no produjeron las mismas secuelas y sobre todo no fueron la piedra angular de ningún poder global. (QUIJANO, 1992, p. 14).

Embora recente, as influências do grupo remontam a várias tradições de pensamento crítico da América Latina e do Sul Global7, em uma tentativa de questionar a discursividade das ciências modernas na produção do conhecimento e buscar construir formas distintas de practican múltiples religiones, hablan múltiples idiomas y son diferentes en sus comportamientos 22 cotidianos). Esto no significa que no hayan desarrollado algunos patrones culturales comunes, lo que llamaremos una geocultura. Significa que ni la homogeneidad política ni la cultural debe ser esperable o encontrada en una economía-mundo. Lo que unifica con más fuerza a la estructura es la división de trabajo constituida dentro de ésta” (WALLERSTEIN, 2005, p. 40). 7 Durante a Guerra Fria, o grupo de países não alinhados às superpotências EUA e URSS e que possuíam similitudes socioeconômicas e político-culturais, como passado colonial, formaram o conhecido bloco do Terceiro Mundo, em alusão ao Primeiro Mundo (potências capitalistas) e Segundo Mundo (bloco socialista). Para discussões sobre o Terceiro Mundo e os processos de descolonização dos anos 60, ver o ponto 1.1.3. Com o fim do mundo bipolar e no contexto da globalização, o termo passou a ser substituído pelo chamado Sul Global, que vai além da concepção geográfica que carrega no nome, mas se contrapõe a um Norte Global formado por países centrais, tanto economicamente como culturalmente, ou produtores de localismos globalizados. Além da concepção política e econômica, o Sul Global também é usado para designar processos de resistência e de lutas por reconhecimento de movimentos sociais e de povos originários, bem como por movimentos de afirmação de direitos culturais. Por conta disso, é um termo bastante utilizado atualmente pela teoria crítica latino-americana. Na seção 1.1.2, há contribuições de Boaventura de Sousa Santos sobre epistemologias do Sul (SANTOS, 2009).

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pensamento e de um “paradigma outro”, cuja força orientadora é uma reflexão sobre a realidade cultural e política latino-americana, sobretudo pelo conhecimento subalternizado dos grupos sociais oprimidos. Assim, integra sua genealogia a filosofia da libertação e a teoria da dependência dos anos setenta; as discussões sobre modernidade e pós-modernidade dos anos 80; a hibridez na antropologia e os estudos culturais dos anos 90; e, nos Estados Unidos, o grupo latino-americano de estudos subalternos. Suas fontes inspiradoras são as teorias críticas da modernidade, a teoria feminista mexicana, a teoria pós-colonial e a filosofia africana, por exemplo (ESCOBAR, 2003, p. 53). A origem desta construção teórica passa, necessariamente, pelo questionamento da visão hegemônica da modernidade. Neste sentido, questiona Escobar: “¿Por qué, podría uno preguntarse, este grupo de latinoamericanos y latinoamericanistas sienten que es necesario un nuevo entendimiento de la modernidad?” (ESCOBAR, 2003, p. 54). Basicamente, porque as tendências dominantes de estudo da modernidade se caracterizavam por serem perspectivas intra-europeias, ou seja, tendiam e ainda tendem a compreender a modernidade como um fenômeno inicialmente europeu, radicalizado e expandido como modelo ao resto do mundo através do processo de globalização emanado de poucos centros hegemônicos e, mesmo após esse movimento, explicado unicamente a partir da própria Europa (ESCOBAR, 2003, p. 55). Assim, historicamente, a modernidade teria origens temporal e espacial na Europa – principalmente França, Inglaterra e Alemanha – e a partir do século XVII, com a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa; sociologicamente, seria caracterizada por instituições específicas, em especial o Estado-Nação; culturalmente, haveria a afirmação da ordem, da razão, do individualismo e do conhecimento especializado, tudo fundamento para a igualdade e a liberdade e, assim, possibilitando a linguagem dos direitos; e, filosoficamente, a modernidade seria a emergência do “Homem” como fundamento do conhecimento, a separação do natural e do divino e o triunfo da metafísica, no sentido de se compreender o mundo composto por coisas e seres cognoscíveis e, portanto, controláveis (ESCOBAR, 2003, p. 55-56). Embora não exista uma justificativa lógica para que esta ordem seja a única possibilidade global de existência, ela foi exportada e reforçada pelas ciências modernas e por teóricos de todos os espectros políticos8. Neste sentido, Mignolo (2008b) alerta que:

Arturo Escobar ironiza ao falar em um “efeito Giddens”, em alusão à influência de Anthony Giddens na visão de que “[...] desde ahora mismo, es la modernidad todo el caminho, en todas partes, hasta el final de los tiempos” (ESCOBAR, 2003, p. 57). Enrique Dussel afirma que a visão provinciana e eurocêntrica da modernidade inclui contribuições desde Max Weber até Jürgen Habermas (DUSSEL, 2000, p. 46). 8

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[...] modernidade não é definida como um período histórico do qual não podemos escapar, mas sim como uma narrativa (por exemplo, a cosmologia) de um período histórico escrito por aqueles que perceberam que eles eram os reais protagonistas. “Modernidade” era o termo no qual eles espalhavam a visão heroica e triunfante da história que eles estavam ajudando a construir. (MIGNOLO, 2008b, p. 316).

A partir desta visão crítica, Enrique Dussel (2007) buscou relativizar a centralidade da Europa, propondo outra forma de ver e conceber a modernidade, tomando-a como um acontecer dialético, no qual a Europa sofre influências de outras culturas e é transformada desde fora (DUSSEL, 2007, p. 198). Assim, propõe que pensemos em um conceito de modernidade que ultrapasse a visão eurocêntrica, provinciana e regional. Com a expansão portuguesa do século XV e a conquista espanhola das Américas em 1492, data considerada por Dussel como o “nascimento” da modernidade (DUSSEL, 1993, p. 8), a Europa torna-se o “centro” da História Mundial e constitui, pela primeira vez, todas as outras culturas como sua “periferia”, estabelecendo relações assimétricas e de dominação. A modernidade, então, seria um fenômeno mundial, no qual a Europa não representaria um sistema independente, mas cumpriria o papel de centro deste “sistema-mundo” (DUSSEL, 2000, p. 46-47). Deslocando no tempo e no espaço o início da Modernidade em relação à narrativa eurocêntrica e aos estudos pós-coloniais, Dussel (2007) a divide nas seguintes etapas:

Llamaré Modernidad temprana el acontecer histórico europeo anterior a la Revolución industrial (1492-1815), todavía bajo la hegemonía china e indostánica, que producen el contenido en mercancías del mercado asiático-afro-mediterráneo. La Modernidad madura ocupará desde la fecha de la indicada revolución hasta la etapa del imperialismo y las dos guerras mundiales, donde se deja ver la centralidad firme de Europa y el derrumbe del Asia. Por Modernidad tardía me referiré a la etapa de postguerra, desde 1945. (DUSSEL, 2007, p. 199).

Na primeira fase da modernidade temprana os processos de acumulação de prata e ouro, que irão irrigar toda a Europa, extraídos pelo trabalho indígena e dos escravos africanos, produzem uma acumulação originária que caracteriza o início de um capitalismo mercantil. A segunda fase é marcada pela influência da Holanda no comércio na região, o que diminui a acumulação bruta de minérios, mas intensificam-se as trocas mercantis, fortalecendo a organização inicial de um “sistema-mundo” capitalista propriamente dito. Por fim, a terceira fase inicia-se com a Revolução burguesa da Inglaterra e França, e com a quebra da hegemonia comercial holandesa (DUSSEL, 2007, p. 201-202). A modernidade madura acontece a partir da Revolução Industrial, cuja data de 1815, da assinatura do Tratado de Paris, que consolida a derrota de Napoleão na Batalha de Waterloo, marca a hegemomia inglesa. Segundo Dussel (2007), “Se trata de dos siglos de

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hegemonía científica, tecnológica y política. Kant y el Idealismo alemán gozarán de un enorme respeto en toda Europa.” (DUSSEL, 2007, p. 203). É nesta fase que inicia o colonialismo na África, a partir da repartição do continente no Congresso de Berlim de 18841985. Dussel (2007) assinala que é somente a partir de 1919, até o final da Segunda Guerra Mundial, que o mundo periférico começará a sua revolução industrial, “[...] hegemonizada por una burguesía nacional (de mentalidad neocolonial), que producirá el fenómeno político que pudiéramos llamar ‘populismo’.” (DUSSEL, 2007, p. 204). Por sua vez, a modernidade tardia compreende o período pós-guerra, quando se faz presente o Império norte-americano. Após as décadas da bipolaridade da Guerra Fria, a derrocada dos regimes socialistas abre caminho para a hegemonia dos EUA na nova etapa da globalização neoliberal, sustentada por seu poderio político e militar (DUSSEL, 2007, p. 204). Os países pós-coloniais sofrem a penetração de empresas transnacionais, o que acelera a sua dependência de forma geométrica: “Los efectos devastadores en los países postcoloniales, que no pueden competir en pie de igualdad, producen una pobreza masiva en la periferia, junto a una destrucción ecológica que toca a toda la humanidad.” (DUSSEL, 2007, p. 205). Portanto, se a modernidade é uma experiência particular tornada hegemônica tanto pelo discurso quanto pela prática colonialista, pois não há dúvidas de que hoje vivemos em um mundo ditado pelos processos econômicos e epistemológicos oriundos da Europa do século XVI em diante, também não há dúvidas sobre a existência de histórias locais, cosmologias e saberes que restaram subalternizados. Como consequência da universalização desta experiência é que não apenas “[...] la alteridad radical es expulsada por siempre del ámbito de posibilidades, sino que todas las culturas y sociedades del mundo son reducidas a ser la manifestación de la história y cultura europea” (ESCOBAR, 2003, p. 57). Por isso, Dussel (2007) propõe o conceito de transmodernidade, não para negar a modernidade, mas para pensá-la desde a perspectiva do “Outro” encoberto; ou seja, o que se rejeita é a atual negação de que existe este lado oculto e as vítimas do colonialismo:

Más allá de la condición postmoderna (propia de las culturas modernas del “centro”), pienso que ante nuestros ojos se desarrolla un fenómeno que deseo llamar trans-moderno. Lo de “trans” quiere indicar que no sólo es posterior a la Modernidad central occidental (que la partícula “post” indica igualmente), sino que nace fuera, más allá, desde una “fuente creadora” (schoepferische Quelle dice Marx con respecto al “trabajo vivo” en referencia al “capital” como totalidad) “desde la nada” de la cultura occidental y aun de su “condición postmoderna” (último momento crítico interno de la misma Modernidad). (DUSSEL, 2007, p. 207).

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Se esta visão da modernidade e do papel desempenhado pela Europa é desvelada, então a América Latina entra na modernidade como a “outra face” dominada, explorada e encoberta pelo mito salvacionista do mundo através da racionalidade. Assim, a modernidade seria, também, a justificação de uma práxis irracional de violência, levada à cabo pela colonização (DUSSEL, 2000, p. 48). O mito da modernidade é descrito pelo filósofo argentino da seguinte maneira:

1) La civilización moderna se autocomprende como más desarrollada, superior (lo que significará sostener sin conciencia una posición ideológicamente eurocéntrica). 2) La superioridad obliga a desarrollar a los más primitivos, rudos, bárbaros, como exigencia moral. 3) El camino de dicho proceso educativo de desarrollo debe ser el seguido por Europa (es, de hecho, un desarrollo unilineal y a la europea, lo que determina, nuevamente sin conciencia alguna, la “falacia desarrollista”). 4) Como el bárbaro se opone al proceso civilizador, la praxis moderna debe ejercer en último caso la violencia si fuera necesario, para destruir los obstáculos de la tal modernización (la guerra justa colonial). 5) Esta dominación produce víctimas (de muy variadas maneras), violencia que es interpretada como un acto inevitable, y con el sentido cuasi-ritual de sacrificio; el héroe civilizador inviste a sus mismas víctimas del carácter de ser holocaustos de un sacrificio salvador (el indio colonizado, el esclavo africano, la mujer, la destrucción ecológica de la tierra, etcétera). 6) Para el moderno, el bárbaro tiene una “culpa” (el oponerse al proceso civilizador) que permite a la “Modernidad” presentarse no sólo como inocente sino como “emancipadora” de esa “culpa” de sus propias víctimas. 7) Por último, y por el carácter “civilizatorio” de la “Modernidad”, se interpretan como inevitables los sufrimientos o sacrificios (los costos) de la “modernización” de los otros pueblos “atrasados” (inmaduros), de las otras razas esclavizables, del otro sexo por débil, etcétera. (DUSSEL, 2000, p. 49).

Ao exercer a dominação e a violência contra essas vítimas inocentes do processo pretensamente civilizador, é possível “des-cobrir”, pela primeira vez, a outra face até então oculta, mas essencial da modernidade: o papel que o mundo periférico colonial, o índio assimilado, o negro escravizado, a mulher oprimida e a cultura popular silenciada desempenham na constituição da própria modernidade, enquanto vítimas de sua face irracional (DUSSEL, 2000, p. 49). Em outras palavras, esta “outra face” se encontra oculta em relação ao sentido dado a ela no estudo dos elementos que constituem a modernidade e o seu sucesso como narrativa mundial. Isto porque o mundo periférico colonial e as violências decorrentes nunca foram escondidas; pelo contrário: a escravidão indígena e a catequese forçada, por exemplo, sempre foram explícitas e visíveis, mas justificadas por retóricas muito bem construídas no pensamento moderno classificatório e civilizador. Deste modo, com a transmodernidade é possível, política e discursivamente, inscrever outro sentido no contexto colonial em relação à modernidade: antes de ser uma consequência maléfica da mesma, torna-se sua outra face, ou seja, seu elemento constitutivo, justamente porque o estatuto do europeu racional moderno só

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passa a existir como produto da classificação dos dominados como atrasados e sub-humanos. Walter Mignolo (2008) evidencia que, a partir do século XVI, a Europa proporcionou tanto uma revolução econômica quanto uma revolução epistemológica: a primeira envolveu os europeus, os africanos escravizados e as populações originárias das Américas, sendo em verdade uma revolução colonial; a segunda teve como epicentro a Europa, mas atingiu todo o planeta e andou de mãos dadas com um racismo ontológico que permitiu, a partir da centralidade da ideia de Homem renascentista, classificar, julgar e valorar os habitantes e regiões do planeta, legitimando a Europa a invadir, expropriar e explorar suas colônias (MIGNOLO, 2008, p. 7). Do sucesso da revolução epistemológica emerge outra categoria central elaborada por Dussel em 1977 e atualizada por Mignolo: a geopolítica do conhecimento (MIGNOLO, 2008, p. 12). Quando Descartes, referência do pensamento moderno, afirma “penso, logo existo”, a geopolítica do conhecimento questiona “[...] ¿dónde piensas, en que configuración sociohistórica se origina el pensamiento que piensa que al pensar existe?” (MIGNOLO, 2008, p. 13). A formidável resposta de Descartes aos problemas filosóficos europeus não era necessariamente a resposta aos problemas das outras sociedades do mundo, o que não as transformava em atrasadas ou inferiores ao momento histórico da Europa. Assim, com a geopolítica do conhecimento se busca analisar as relações epistêmicas de poder que estão entrelaçadas com as relações econômicas entre a Europa e o resto do mundo, no intuito de legitimar outros conhecimentos possíveis. Por este motivo Mignolo descreve-a como ruptura epistêmica espacial – voltar-se a outros saberes de outros mundos, em um deslocamento geográfico do olhar sobre as relações de poder –, em contraposição à ruptura epistêmica temporal – que evidencia uma linha divisória de período histórico entre o antes e o depois das conquistas científicas e de pensamento filosófico na modernidade (MIGNOLO, 2008, p. 13). Neste ponto, retorna-se à categoria central da colonialidade: como conceito maleável, operaria em ao menos três níveis: a) a colonialidade coloca em evidência o lado obscuro da modernidade e seu papel constitutivo, não sendo possível haver modernidade sem os processos coloniais tornados permanentes em seus efeitos; b) a colonialidade é também a abreviação de “padrão colonial de poder” ou “matriz colonial de poder”; c) por fim, designa histórias, subjetividades, formas de vida e saberes colonizados e excluídos, a partir dos quais surge a resistência descolonial (MIGNOLO, 2008, p. 9-10). Portanto, compreender modernidade e colonialidade enquanto faces de um mesmo processo se diferencia da visão hegemônica e eurocêntrica da modernidade. Em verdade, a

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colonialidade não é o resultado ou a forma residual de qualquer tipo de relação colonial; ela emerge do contexto sócio-histórico particular da conquista das Américas, e da conjugação do capitalismo já existente naquela época, entendido como uma relação econômica e social, com formas de dominação e subjugação raciais determinantes para o controle dos sujeitos colonizados nas Américas, o que tornou possível, somente assim, a modernidade enquanto discurso e prática hegemônicos (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131-132). Sendo assim, o enredo teórico tramado pelo grupo modernidade/colonialidade engloba as seguintes questões centrais:

1) un énfasis en localizar los orígenes de la modernidad en la Conquista de América y el control del Atlántico después de 1492, antes que los más comúnmente aceptados mojones como la Ilustración o el final del siglo XVIII; 2) una atención persistente al colonialismo y al desarrollo del sistema mundial capitalista como constitutivos de la modernidad; esto incluye una determinación de no pasar por alto la economía y sus concomitantes formas de explotación; 3) en consecuencia, la adopción de una perspectiva planetaria en la explicación de la modernidad, en lugar de una visión de la modernidad como un fenómeno intra-europeo; 4) la identificación de la dominación de otros afuera del centro europeo como una necesaria dimensión de la modernidad, con la concomitante subalternización del conocimiento y las culturas de esos otros grupos; 5) una concepción del eurocentrismo como la forma de conocimiento de la modernidad/colonialidad – una representación hegemónica y modo de conocimiento que arguye su propia universalidad y que descansa en “una confusión entre una universalidad abstracta y el mundo concreto derivado de la posición europea como centro” (Dussel, 2000: 471; Quijano, 2000: 549) (ESCOBAR, 2003, p. 60).

A partir de tais questões, uma série de consequências e noções alternativas se colocam. Primeiro, a descentralização da modernidade e um descrédito da sequência linear e “necessária” da tradição do conhecimento ocidental, que entrelaça Grécia, Roma, a cristandade e a Europa moderna. Segundo, a emergência de uma nova concepção espacial e temporal da modernidade, ao se dar papel de destaque a Espanha e Portugal na chamada primeira fase da modernidade temprana (DUSSEL, 2007), iniciada com a conquista das Américas, que acabam se tornando o “outro lado” encoberto e periférico da Europa moderna. Ademais, impõe-se uma releitura do mencionado mito da modernidade e o questionamento do potencial emancipatório da razão moderna como modelo de desenvolvimento a ser seguido pelo resto do mundo (ESCOBAR, 2003, p. 60-61).

1.1.2 O significado do giro descolonial Se a colonialidade é a face obscura da modernidade, ou se “[...] es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista” (QUIJANO,

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2007, p. 93), fundada na imposição de um classificação étnico-racial da população do mundo e responsável pela violência, exploração e subalternização de saberes e subjetividades, é também produtora de uma energia de descontentamento, de desconfiança e de desprendimento, geradora de projetos descoloniais que não creem no conto de fadas salvacionista da retórica da modernidade (MIGNOLO, 2007, p. 26-27). O pensamento descolonial, portanto, é o pensamento que “[…] se desprende y se abre [...], encubierto por la racionaliadad moderna, montado y encerrado en las categorías del griego y del latín y de las seis lenguas imperiales europeas modernas” (MIGNOLO, 2007, p. 27). Em breves e precisas palavras, o pensamento descolonial é: [...] um projeto epistemológico fundado no reconhecimento da existência de um conhecimento hegemônico, mas, sobretudo, na possibilidade de contestá-lo a partir de suas próprias inconsistências e na consideração de conhecimentos, histórias e racionalidades tornadas invisíveis pela lógica da colonialidade moderna. (BRAGATO, 2014, p. 205).

O grupo modernidade/colonialidade, assim, incorpora a categoria “descolonialidade”, ou “de-colonialidade”, sem o “S”9, para ampliar o marco e os objetivos do projeto, caracterizando o giro epistêmico descolonial. Em verdade, a reflexão sobre o giro epistêmico descolonial é abordagem recente, pois a prática epistêmica descolonial surgiu como consequência da matriz de poder da colonialidade e, portanto, encontra exemplos desde o período colonial do século XVI, reaparecendo em novas configurações com a expansão imperial britânica e francesa do século XIX. Exemplos como a obra de Waman Poma de Ayala de 1616 e de Otabbah Cugoano de 1787 constituem espécies de tratados políticos 9

Como destaca Pazello (2014), alguns teóricos justificam a grafia de-colonial, o que ele considera um evidente anglicismo, pois autores formuladores da corrente, como Catherine Walsh, Walter Mignolo e Anibal Quijano, residem e/ou pesquisam nos Estados Unidos. Prossegue dizendo que a utilização do “S” não confunde a descolonialidade com a descolonização, pois o contrário do primeiro é a colonialidade, enquanto que o contrário do segundo são os processos históricos de colonialismo. Além disso, “[...] e mais importante, porque o “S” da descolonialidade representa ao mesmo tempo o Sul do mundo, assim como o resgate do imaginário que relaciona os centros deste mundo com suas periferias.” (PAZELLO, 2014, p. 38). Adota-se neste trabalho a grafia des-colonial. Vale destacar como Mignolo (2008c) justifica o de-colonial: “El empleo de de-colonial, en vez de des-colonial (con o sin guión), lo propuso Catherine Walsh como manera de distinguir entre la propuesta de-colonial del proyecto modernidad/colonialidad, por un lado, del concepto de ‘descolonización’ en el uso que se le dio durante la Guerra Fría, y, por otro, de la variedad de usos del concepto de ‘post-colonialidad’. Presupongo que el pensamiento de-colonial es crítico de por sí, pero crítico en un sentido distinto al que le dio Immanuel Kant a la palabra y, en esa tradición, la retomó Max Horkheimer a través del legado marxista. ‘Descolonial’ es el concepto que toma el lugar, en otra genealogía de pensamiento que es uno de los objetivos de este artículo del concepto ‘crítico’ en el pensamiento moderno de disenso en Europa. Esta distinción que motivó precisamente el encuentro en Duke al que aludiré enseguida se verá más claramente en el resto del argumento. El proyecto des-colonial difiere también del proyecto post-colonial, aunque como con el primero mantiene buenas relaciones de vecindario. La teoría post-colonial o los estudios post-coloniales están a caballo entre la teoría crítica en Europa (Foucault, Lacan y Derrida), sobre cuyo pensamiento se construyó la teoría postcolonial y/o estudios postcoloniales, y las experiencias de la elite intelectual en las ex colonias inglesas en Asia y África del Norte.” (MIGNOLO, 2008c, p. 246).

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descoloniais, que, somados a acontecimentos como a Revolução Haitiana de 1791, foram esquecidos e desvalorizados pela colonialidade do saber, mas que deveriam integrar uma necessária genealogia do pensamento político descolonial (MIGNOLO, 2007, p. 28). Portanto, a primeira tarefa do giro descolonial é a descolonização do conhecimento hegemônico que encobre outros saberes e experiências de vida, o que pode ser realizado por uma atitude que Mignolo (2010) chama de desobediência epistêmica. Em sentido semelhante, Boaventura de Sousa Santos (2009) refere que o pensamento moderno seria um pensamento abissal, justamente por impor uma linha divisória entre conhecimentos válidos e inválidos, que acaba por ser reproduzido nos discursos e instituições jurídicas, políticas, científicas e sociais. Para se ir além desse pensamento abissal, propõe uma resistência epistemológica e um novo pensamento: [...] a resistência política deve ter como postulado a resistência epistemológica. Como foi dito inicialmente, não existe justiça social global sem justiça cognitiva global. Isto significa que a tarefa crítica que se avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas. Ela requer, de facto, um pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento, um pensamento pós-abissal (SANTOS, 2009, p. 41).

Porém, a descolonização epistemológica não seria a substituição de uma cosmologia por outra, tampouco a negação da influência e da importância da modernidade, mas o questionamento da sua universalidade como ponto de partida, que acaba por inviabilizar relações interculturais e o que Santos chama de “ecologia de saberes” (SANTOS, 2009). No mesmo sentido, Quijano afirma que: En primer término, la descolonización epistemológica, para dar paso luego a una nueva comunicación intercultural, a un intercambio de experiencias y de significaciones, como la base de otra racionalidad que pueda pretender, con legitimidad, a alguna universalidad. Pues nada menos racional, finalmente, que la pretensión de que la específica cosmovisión de una etnia particular sea impuesta como la racionalidad universal, aunque tal etnia se llama Europa occidental. Porque eso, en verdad, es pretender para un provincianismo el título de universalidad. (QUIJANO, 1992, p. 447).

Justamente por buscar “uma outra racionalidade” que possibilite um intercâmbio de experiências, estes projetos descoloniais não visam à tomada de hegemonia do projeto moderno eurocêntrico, como se fosse a inversão dos polos da dominação. Segundo Dussel (1998), há um elemento de corporeidade que marca as vítimas da modernidade, cuja negação da vida concreta é o que motiva a se unir em projetos de resistência ao sistema capitalista global e ao paradigma da totalidade, que não os comtempla. Desta forma, com a tomada de consciência sobre sua própria condição de vítimas e de

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excluídos do sistema, emergem novos sujeitos sócio-históricos, ou uma comunidade de vítimas que, a partir da ação política organizada e de uma intersubjetividade comunitária, transformam o sistema que os vitima em uma práxis de libertação (DUSSEL, 1998, p. 411). Por este motivo, tais projetos são melhor descritos como “anti-hegemônicos”, e não “contra-hegemômicos”. Também, ao incluir uma ética que dê conta dos dominados e uma prática de libertação na descolonialidade, Dussel (1998) introduz a preocupação com a alteridade: devemos reconhecer o Outro não apenas como um igual em termos de participação na relação comunicativa, como defende Habermas na sua racionalidade discursiva formal; mas reconhecê-lo na sua diferença, como uma vítima, previamente a qualquer discussão (DUSSEL, 1998, p. 419). Retornando à interculturalidade como categoria decorrente da descolonização epistêmica, esta igualmente não visa à hegemonia, tampouco se resume a outras relações de contato ou convivência cultural que estão presentes desde a colonização – a exemplo da contestada e rearticulada categoria da multiculturalidade10: segundo Walsh (2008), a “[…] interculturalidad, en cambio, aún no existe. Es algo por construir. Va mucho más allá del respeto, la tolerancia y el reconocimiento de la diversidad” (WALSH, 2008, p. 140). Desta forma, enquanto conceito e prática, processo e projeto de sociedade, a interculturalidade seria o termo mais adequado para a realidade étnico-cultural da América Latina, porque parte da realidade dos grupos historicamente negados em sua alteridade – evidenciando uma “subalteridade” – e aponta para a mudança radical da ordem. Em vez de simplesmente reconhecer e tolerar a diferença, a interculturalidade visa a “[...] re-conceptualizar y re-fundar estructuras sociales, epistémicas y de existencias, que ponen en escena y en relación equitativa lógicas, prácticas y modos culturales diversos de pensar, actuar y vivir” (WALSH, Enquanto “acomodação cultural” da diversidade étnico-racial, visando a uma cidadania democrática, o multiculturalismo sofreu diversas críticas nas últimas décadas por ser uma teoria liberal que tende a ignorar as relações de poder e as desigualdades. Identificado como um destes teóricos, o próprio filósofo político Will Kymlicka reconheceu este embate e procurou rearticular suas teses (KYMLICKA, 2012). Boaventura de Sousa Santos apresenta críticas ao termo “multiculturalismo” e a algumas de suas interpretações. Primeiramente, afirma que o conceito pode apontar para uma descrição, enquanto a simples multiplicidade de culturas coexistindo em um Estado, e para um projeto (SANTOS; NUNES, 2003, p. 28). O multiculturalismo como descrição materializa-se em projetos culturais e políticos sujeitos a críticas de serem eurocêntricos; de serem a expressão da lógica cultural do capitalismo global; de serem “apolíticos”, olvidando as relações de poder, exploração, desigualdades e exclusões; e de serem unicamente “tolerantes”, e não envolvidos ativamente com a alteridade (SANTOS; NUNES, 2003, p. 31-32). Todavia, o multiculturalismo pode ser o termo usado para descrever projetos políticos e culturais emancipatórios e contra-hegemônicos – ou anti-hegemônicos, segundo Dussel (1998) – de reconhecimento das diferenças. De fato, a cultura tem sido reivindicada historicamente como palco para novas definições de direitos, de identidades, de justiça e de cidadania, principalmente em contextos imperialistas, coloniais e pós-coloniais, bem como da globalização capitalista. Da mesma forma, Joaquín Herrera Flores (2004) apresenta críticas ao multiculturalismo e contribuições para uma prática intercultural que possibilite não uma escolha entre universalidade ou particularidade, mas uma constante tensão entre ambos que evidencie uma racionalidade de resistência (FLORES, 2004, p. 377). 10

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2009, p. 43-44). Logo, pode-se afirmar que a interculturalidade é um possível objetivo epistêmico do pensamento descolonial, enquanto que um objetivo político decorrente daquele poderia ter como exemplo as recentes experiências do Novo Constitucionalismo Transformador na América Latina: pluralismo cultural e jurídico, democracia direta e normas que garantam a livre determinação dos povos indígenas e de outros sujeitos coloniais. Segundo Médici (2016), é necessário estabelecer um pensamento situado na experiência concreta latinoamericana para pensar “[…] la potencialidad de la filosofía latinoamericana de liberación y del llamado giro descolonizador o ‘descolonial’ para fundamentar la teoría constitucional.” (MÉDICI, 2016, p. 2). Portanto, a descolonialidade, levado à cabo pela atitude da desobediência epistêmica e visando à interculturalidade, é o caminho do pensamento descolonial enquanto projeto de desprendimento e abertura da matriz colonial de poder.

1.1.3 Diferenças e aproximações entre colonialismo, pós-colonialismo e pensamento descolonial

Compreendida a trajetória e os principais conceitos introduzidos pelo grupo modernidade/colonialidade, pode-se traçar, de forma breve, algumas diferenças e aproximações entre o colonialismo, o pós-colonialismo e o pensamento descolonial11. Em que pesem algumas obviedades a este ponto de análise do referencial teórico, torna-se importante solidificar a compreensão da colonialidade enquanto matriz de poder e o pensamento descolonial como um projeto de rompimento desta matriz e de proposta de alternativas. Neste sentido, a relação e a diferença entre colonialismo e colonialidade podem ser sintetizadas da seguinte maneira:

[...] el concepto de colonialismo [...] se refiere estrictamente a una estructura de dominación y explotación, donde el control de la autoridad política, de los recursos de producción y del trabajo de una población determinada lo detenta otra de diferente identidad, y cuyas sedes centrales están, además, en otra jurisdicción territorial. Pero no siempre, ni necesariamente, implica relaciones racistas de poder. El colonialismo es, obviamente, más antiguo, en tanto que la colonialidad ha probado ser, en los últimos quinientos años, más profunda y duradera que el colonialismo. Pero sin duda fue engendrada dentro de éste y, más aún, sin él no

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Frisa-se que tanto o colonialismo quanto os estudos pós-coloniais possuem vasta literatura e pesquisadores e pesquisadoras notáveis, de modo que, neste trabalho, que toma o pensamento descolonial como referencial teórico e não outro, serão abordadas diferenças e aproximações breves e circunstanciais somente para melhor compreensão do problema de pesquisa.

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habría podido ser impuesta en la intersubjetividad del mundo, de modo tan enraizado y prolongado. (QUIJANO, 2007, p. 93).

O colonialismo, enquanto momento político, estaria formalmente superado com os processos de descolonização que ocorreram sobretudo ao longo do século XX; a colonialidade, enquanto padrão de poder global derivado do primeiro, estaria até hoje vigente e (re)produzindo desigualdades. Sobre as teorias descoloniais e pós-coloniais, torna-se importante diferenciar os momentos coloniais que geraram as análises de ambas as correntes. Enquanto projeto político e econômico de poder e de dominação, o colonialismo é fenômeno histórico e geograficamente situado: a primeira onda do colonialismo moderno ocorreu com a conquista das Américas por Espanha e Portugal no final do século XV e início do XVI. Este é o momento histórico e o lugar geográfico que o pensamento descolonial toma como ponto de partida para sua análise, evidenciando que a “primeira modernidade”, ou modernidade temprana, inaugurou uma matriz de poder e de classificação étnico-racial de larga duração em escala global (DUSSEL, 2000). A segunda grande onda do colonialismo moderno iniciou no século XIX com a formação de colônias na África e na Ásia por países europeus, principalmente França e Inglaterra, e perdurou até meados do século XX. A decadência da Europa após a Primeira Guerra Mundial, a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, bem como os processos nacionalistas na África e Ásia incentivaram movimentos de descolonização, que ganharam respaldo com o reconhecimento, na Carta da ONU de 1945, da autodeterminação dos povos, extensível inclusive às colônias12. A descolonização do Egito ocorreu em 1936 e a da Índia em 1947, duas grandes colônias inglesas, das quais emergiram intelectuais pós-colonialistas. Porém, o grande movimento de descolonização afro-asiática ocorreu posteriormente, e teve na Conferência de Bandung, em 1955, importante marco da crítica ao colonialismo e da concepção do Terceiro Mundo, formado por países com passado colonial recente não alinhados às superpotências da Guerra Fria (LINHARES, 2005). O pós-colonialismo, então, surgiu como movimento intelectual nos anos 70 a partir das ideias de pensadores anglófonos e diaspóricos do Oriente Médio e do sul asiático, notadamente o palestino Edward Said e os indianos Homi Bhabha, Ranajit Guha e Gayatri Spivak. Teve como foco discussões materiais, socioeconômicas e culturais referentes a estes

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Para discussões sobre a conivência do colonialismo moderno pela ONU, a partir da cláusula de bloqueio de direitos que a Declaração Universal do Direitos Humanos de 1948 impôs aos países sob domínio colonial, vide as contribuições de Bartolomé Clavero (2014) na seção 1.3 deste capítulo.

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mesmos locais e seus contextos coloniais dos séculos XIX e XX, ou seja, da “segunda modernidade”, fruto sobretudo do colonialismo inglês e francês (ESCOBAR, 2003, p. 61). Com isso, conclui-se que as duas etapas de experiências coloniais fundamentam o póscolonialismo e o pensamento descolonial de maneira diferente. Mas não só: tais correntes de estudo também possuem diferenças e aproximações conceituais, para além da questão de origem e de olhar histórico-geográfico. Com a obra seminal “Orientalismo” de 1978, Said (2007) procurou demonstrar como o ocidente fabricou ao longo do tempo uma visão estereotipada do oriente, tanto através de uma disciplina literal de especialistas, o orientalismo acadêmico, como pela construção de imaginários, sonhos e vocabulários essencialistas, o orientalismo imaginário, que fundamentaram um sistema de dominação político, sociológico, militar e ideológico do oriente pelo ocidente (SAID, 2007). O orientalismo, portanto, seria um modo de abordar o oriente que possui como fundamento o lugar especial do oriente na experiência ocidental europeia, o qual coloca as coisas orientais na aula, no tribunal, na prisão ou no manual, para escrutínio, estudo, julgamento, disciplina e finalmente dominação colonial (SAID, 2007, p. 74). Porém, mesmo com os movimentos de descolonização formal do século XX, o orientalismo permaneceu enquanto disciplina de cientificismo “pomposo” e pretensamente racional, bem como pelos imaginários ainda reproduzidos na literatura, no cinema moderno e mesmo nos meios acadêmicos do ocidente, o que o aproxima da colonialidade (SAID, 2007, p. 162-163). Neste sentido, a teoria pós-colonial, segundo Bhabha, não se presta a simplesmente mudar narrativas ou estabelecer trajetórias separatistas e interpretações paralelas àquelas hegemônicas, mas a interromper os discursos ocidentais da modernidade, dando voz às narrativas subalternas e suas perspectivas teórico-críticas, inscrevendo-as nas narrativas eurocêntricas da modernidade. Assim o fazendo, o observador interroga o passado e inicia novos diálogos e histórias, construindo novos presentes e futuros a partir da rearticulação política dos entendimentos sobre a modernidade (BHAMBRA, 2014, p. 116). Porém, ao se questionar o discurso dominante, Spivak (2010) levanta a relação entre a prática discursiva dos intelectuais ocidentais – especialmente do pós-estruturalismo francês, como Deleuze e Foucault – e a possibilidade do subalterno falar em nome próprio sobre sua própria descolonização, evitando não ser apenas objeto de conhecimento de quem fala pelo outro. Sua resposta à questão-título da obra “Pode o subalterno falar?” é negativa, exatamente pelo agenciamento do sujeito subalterno realizado pelo discurso intelectual do ocidente. Agindo desta forma, o intelectual torna-se cúmplice da essencialização do sujeito realizada

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primeiramente pelo colonizador, e então comete o que Spivak chamou de violência epistêmica, ou seja, o “[...] projeto remotamente orquestrado, vasto e heterogêneo de se constituir o sujeito colonial como Outro” (SPIVAK, 2010, p. 47). O pós-colonialismo e o pensamento descolonial, portanto, dialogam entre si, recebendo ambos o rótulo de “connected sociologies”13 (BHAMBRA, 2014, p. 115). Apesar disso, enquanto os estudos pós-coloniais conferem maior relevância ao discurso colonial e à agência cultural dos sujeitos, o pensamento descolonial, por influência da teoria do sistemamundo e da teoria da dependência, estabelece uma relação entre o capitalismo global e a produção das hierarquias raciais na divisão internacional do trabalho, denotando a inscrição de uma herança marxista no seu enfoque. Segundo Castro-Gómez e Grosfoguel (2007): Desde la perspectiva decolonial manejada por el grupo modernidad/colonialidad, la cultura está siempre entrelazada a (y no derivada de) los procesos de la economíapolítica. Al igual que los estudios culturales y poscoloniales, reconocemos la estrecha imbricación entre capitalismo y cultura. El lenguaje, como bien lo han mostrado Arturo Escobar (2000) y Walter Mignolo (1995), ‘sobredetermina’, no sólo la economía sino la realidad social en su conjunto. Sin embargo, los estudios culturales y poscoloniales han pasado por alto que no es posible entender el capitalismo global sin tener en cuenta el modo como los discursos raciales organizan a la población del mundo en una división internacional del trabajo que tiene directas implicaciones económicas: las ‘razas superiores’ ocupan las posiciones mejor remuneradas, mientras que las ‘inferiores’ ejercen los trabajos más coercitivos y peor remunerados. Es decir que, al igual que los estudios culturales y poscoloniales, el grupo modernidad/colonialidad reconoce el papel fundamental de las epistemes, pero les otorga un estatuto económico, tal como lo propone el análisis del sistema-mundo. [...] Debemos entender que el capitalismo no es sólo un sistema económico (paradigma de la economía-política) y tampoco es sólo un sistema cultural (paradigma de los estudios culturales/poscoloniales en su vertiente ‘anglo’), sino que es una red global de poder, integrada por procesos económicos, políticos y culturales, cuya suma mantiene todo el sistema. (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 16-17).

Em resumo, a relação entre colonialismo, pós-colonialismo e pensamento descolonial pode ser explicada da seguinte forma: as duas ondas de colonialismo moderno, a conquista da América no fim do século XV e as colônias da Ásia e da África do século XIX, são os momentos políticos histórica e geograficamente situados que representam os pontos de partida das análises do pensamento descolonial e do pós-colonialismo, respectivamente. Assim, ambas as correntes questionam a produção eurocêntrica do conhecimento e contestam o mundo colonial. Apesar disso, diferem na abrangência da análise: o pós-colonialismo centrase nos efeitos sobre as subjetividades, enquanto que o pensamento descolonial, além disso, estabelece uma relação entre a colonialidade e à expansão do capitalismo global. Por conta disso, o pensamento descolonial confere maior força e abrangência aos efeitos gerados do 13

Sociologias conectadas (BHAMBRA, 2014, p. 115, tradução nossa).

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momento colonial que dá início às suas análises. Ademais, seu projeto de descolonialidade (do poder, do saber e do ser) é também mais abrangente, como visto no ponto anterior.

1.2 Categorias teóricas críticas das dimensões da colonialidade

Nesta seção, retorna-se ao tema da colonialidade e aprofundam-se as categorias teóricas da sua crítica: a colonialidade do poder como conceito central; a colonialidade do saber, que questiona o eurocentrismo como a perspectiva hegemônica de produção do conhecimento; e a colonialidade do ser, categoria ontológica e articulada com a diferença colonial, o discurso colonial do pós-colonialismo e a construção do “outro” como inferior. Conforme demonstrado na seção anterior, o pensamento descolonial não se atém à crítica da modernidade eurocêntrica e da colonialidade, mas propõe rupturas e a possibilidade de “mundos e conhecimentos de outro modo” (ESCOBAR, 2003). Considerando que a tese do marco temporal é apontada como retrocesso dos direitos dos povos indígenas, tomam-se os conceitos da crítica da colonialidade para sua análise, e não os da descolonialidade enquanto rompimento da matriz de poder e de propostas para novas construções. Em que pese este recorte da pesquisa, a descolonialidade pode ser pensada para novas configurações dos direitos indígenas, tanto a partir de um constitucionalismo que sirva para emancipar e garantir direitos, como a partir do descarte de qualquer constitucionalismo como palco possível para tal transformação, se considerado o Estado forma incompatível de organização para os povos indígenas. Importante ressaltar que os conceitos analisados estão articulados com outras contribuições teóricas do pensamento crítico latino-americano e de propostas contra ou ainda anti-hegemônicas do Sul Global, como as de Boaventura de Sousa Santos, e inclusive póscoloniais, como as de Frantz Fanon e Homi Bhabha.

1.2.1 Colonialidade do poder, eurocentrismo e classificação social

Ao se apresentar como a colonialidade surgiu nos estudos críticos latino-americanos, tornando-se a categoria central do pensamento descolonial por influência de Aníbal Quijano ainda nos anos 90, afirmou-se anteriormente, a partir de Mignolo (2008), que ela opera ao menos três níveis, sendo um deles como sinônimo de padrão ou matriz colonial de poder. Portanto, o conceito de colonialidade do poder “[…] fue el término dispuesto por Quijano para caracterizar un patrón de dominación global proprio del sistema-mundo

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moderno/capitalista originado con el colonialismo europeo a principios del siglo XVI” (QUINTERO, 2010, p. 3). Importante, neste ponto, aprofundar algumas compreensões sobre a estruturação e o alcance desta matriz de poder ainda não explicados anteriormente. Segundo Quijano (2007), toda forma de existência social que se reproduz ao longo do tempo

de

forma

duradoura

implica

cinco

âmbitos

básicos:

trabalho,

sexo,

subjetividade/intersubjetividade, autoridade coletiva e natureza. O poder, então, seria uma malha de relações sociais articuladas permanentemente pela interação entre os elementos de exploração, dominação e conflito, que operam em uma disputa contínua pelo controle dos âmbitos da existência social: a) o trabalho e seus produtos; b) em dependência do anterior, a natureza e seus recursos e produtos, ou as relações com as demais formas de vida e com o resto do universo; c) o sexo, seus produtos e a reprodução da espécie; d) a subjetividade e seus produtos materiais e intersubjetivos, inclusive o conhecimento; e e) a autoridade coletiva (ou pública) e seus instrumentos, sobretudo os de coerção, para assegurar tal padrão de relações sociais e para regular sua mudanças (QUIJANO, 2007, p. 96). Por conta de seu olhar eurocêntrico, as teorias sociais tradicionais dos últimos dois séculos, ao menos algumas de suas correntes e interpretações mais difundidas, não perceberam todos os âmbitos da existência social afetados pelas relações de poder. Entre as principais visões, uma seria hegemônica, o liberalismo, cuja característica de localizar os componentes da existência social em uma ordem adequada às necessidades da vida individual cedeu terreno no século XX ao estruturalismo, ao estrutural-funcionalismo e ao funcionalismo; e a outra seria subalterna, o materialismo histórico. As teorias são criticadas porque pressupõem uma estrutura configurada por elementos historicamente invariantes, de relações contínuas e consistentes, lineares e unidirecionais, no tempo e no espaço, que determinam ab initio os padrões de conduta dos indivíduos e dos grupos sociais, tanto pelas “funções” dos elementos das correntes estrutural-funcionalistas como pelas cadeias de determinações do materialismo histórico, que passam ao largo de subjetividades: “La perspectiva eurocéntrica, en cualquiera de sus variantes, implica, pues, un postulado históricamente imposible: que las relaciones entre los elementos de un patrón histórico de poder tienen ya determinadas sus relaciones antes de toda historia.” (QUIJANO, 2007, p. 97). A interpretação de Quijano, então, poderia se assemelhar, em alguma medida, a concepções cunhadas no pós-estruturalismo14, pois tendem a retirar o poder da esfera de 14

Michel Foucault (2010) analisou o poder ao longo da história a partir de seus mecanismos e tecnologias, que evoluíram da disciplina sobre o corpo individual – sua colocação em série, em vigilância e punição – para outra

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atuação de agentes determinados, justamente por conta da sua posição social ou função, e localizá-lo como aspecto múltiplo derivado das relações sociais complexas de cada sociedade. Apesar disso, como já referido, os autores do pensamento descolonial, bem como do póscolonialismo, criticam aspectos das teorias pós-estruturalistas por serem ainda eurocêntricas e por ignorarem a colonialidade enquanto elemento central da estruturação da sociedade moderna. Com isso, o poder no pós-modernismo, desde suas origens pós-estruturalistas, somente seria visto nas micro-relações sociais como disperso e fluido, ignorando algo como estruturas globais de relações sociais e, como consequência, negando qualquer totalidade. Assim, mesmo sendo teorias de resistência, por não proporem o rompimento do paradigma eurocêntrico da totalidade, acabam por fortalecê-lo como o único pensável (QUIJANO, 2007, p. 103). Como explica Quintero (2010), as relações sociais e os padrões de poder que as configuram são necessariamente específicos e históricos, pois se desenvolvem em cronótopos particulares. Assim, o poder para Quijano deve pressupor um complexo estrutural e uma totalidade histórica, mas aberta e heterogênea: La idea de totalidad tal como la expresa Quijano, no representa la teorización de una estructura homogénea, cerrada o sistémica-orgánica de corte estructuralfuncionalista. Muy por el contrario, la noción de totalidad representa aquí una estructura abierta y heterogénea tanto en su comportamiento como en sus determinaciones. A lo que apunta Quijano con la idea de totalidad, es hacia la articulación de historias específicas, heterogéneas y discontinuas (historias locales) en una nueva estructura global de poder social que se constituye con la modernidad/colonialidad. (QUINTERO, 2010, p. 6).

Considerando a historicidade que forma as relações de poder, Quijano afirma que o padrão global de poder produzido a partir da conquista da América possui, como um de seus eixos, um sistema de dominação baseado em relações intersubjetivas de classificação social hierárquica da população mundial (QUINTERO, 2010, p. 7). Esta formulação da ideia de classificação social, porém, difere da classe social enquanto categoria teórica de análise:

[...] es pertinente salir de la teoría eurocéntrica de las clases sociales y avanzar hacia forma de poder, não excludente da primeira, mas sobre processos massificantes próprios da vida do ser humano enquanto espécie, como o nascimento, a morte, a produção e a doença. O controle desses elementos da vida Foucault chamará de biopolítica (FOUCAULT, 2010, p. 203-204). Ao introduzir a colonialidade neste debate, Mignolo (2008) dirá que os corpos também estão geopoliticamente formados por conta da classificação étnicoracial da colonialidade do saber. Assim, como resposta descolonial à biopolítica, a “corpo-política” para ele “[…] significa la producción de conocimientos para descolonizar el saber y el ser; cuerpos que por un lado rechazan el disciplinamiento que el estado quiere imponer a través de la bio-política, y genera conocimientos para construir sociedades desenganchadas del estado moderno y de la economía capitalista que por un lado le sirve de apoyo y, por otro, por y para la cual el estado necesita controlar los cuerpos.” (MIGNOLO, 2008, p. 16).

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una teoría histórica de la clasificación social. El concepto de clasificación social, en esta propuesta, se refiere a los procesos de largo plazo, en los cuales las gentes disputan por el control de los ámbitos básicos de existencia social, y de cuyos resultados se configura un patrón de distribución del poder, centrado en relaciones de explotación/dominación/conflicto entre la población de una sociedad y en una historia determinadas. [...] En ese sentido específico, toda posible teoría de la clasificación social de las gentes requiere, necesariamente, indagar por la historia, las condiciones y las determinaciones de una dada distribución de relaciones de poder en una sociedad específica. (QUIJANO, 2007, p. 114).

Antes do capitalismo mundial, pode-se verificar que, nas relações de poder, os atributos mais antigos que cumpriram o papel principal na classificação social foram o sexo, a idade e a força de trabalho (QUIJANO, 2007, p. 118). Com a conquista das Américas, porém, o sistema de dominação imposto foi sustentado pela configuração e pela naturalização da ideia de “raça” – somando-se ao sexo e ao trabalho (ou à classe) –, sendo a primeira categoria social da modernidade (QUINTERO, 2010, p. 7). A ideia de raça e o complexo ideológico do racismo constituíram uma profunda forma de dominação social, pois a posição subalterna dos povos submetidos a esse padrão de poder foi justificada por uma suposta inferioridade essencial de sua natureza, ou seja, as diferenças fenotípicas de vencedores e vencidos foram usadas como justificativa para a produção da categoria “raça” e, consequentemente, para a hierarquização das novas identidades formadas (QUIJANO, 2007, p. 119). Esta lógica classificatória com base nas “faltas ou excessos” dos grupos sociais, em comparação sempre com a Europa, foi chamada por Mignolo (2010) de “diferença colonial”, e operou na hierarquização tanto ontológica (do ser) quanto epistemológica (do conhecimento) (MIGNOLO, 2010, p. 45). Esta operação mental de superioridade natural fundamentou posteriormente as teorias evolucionistas que caminharam em conjunto com o colonialismo inglês e francês do século XIX, momento em que “[...] los europeos generaron una nueva perspectiva temporal de la historia y re-ubicaron a los pueblos colonizados, y a sus respectivas historias y culturas, en el pasado de una trayectoria histórica cuya culminación era Europa” (QUIJANO, 2000, p. 210). Porém, o papel que estes atributos cumprem na classificação social nada tem a ver com a biologia ou com a natureza. São o resultado da disputa pelo controle dos âmbitos sociais e a naturalização destas categorias como simplesmente nomes de fenômenos “naturais”, um suposto dado biológico, é um produto histórico-social que demonstra como o poder necessita desse mecanismo subjetivo para sua própria reprodução (QUIJANO, 2007, p. 118). O outro eixo do padrão de poder inaugurado com a conquista da América – giro de

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tempo e espaço na interpretação da modernidade – que se originou paralelamente ao eixo de controle das subjetividades que dá origem à classificação social é um novo sistema de controle do trabalho, “[...] que consiste en la articulación de todas las formas conocidas de explotación en una única estructura de producción de mercancías para el mercado mundial, alrededor de la hegemonía del capital” (QUINTERO, 2010, p. 8). Segundo Quijano (2000): En el proceso de constitución histórica de América, todas las formas de control y de explotación del trabajo y de control de la producción-apropiación-distribución de productos, fueron articuladas alrededor de la relación capital-salario (en adelante capital) y del mercado mundial. Quedaron incluidas la esclavitud, la servidumbre, la pequeña producción mercantil, la reciprocidad y el salario. En tal ensamblaje, cada una de dichas formas de control del trabajo no era una mera extensión de sus antecedentes históricos. Todas eran histórica y sociológicamente nuevas. (QUIJANO, 2000, p. 204).

Deste modo, tanto a produção de novas identidades geoculturais (índios, negros, brancos) e seus correspondentes geográficos (América, Europa, Ocidente e Oriente), bem como o sistema de controle do trabalho surgido a partir de novas relações materiais de produção, formam os imbricados eixos da colonialidade como padrão de poder global (QUINTERO, 2010, p. 9). Portanto, a dimensão subjetiva da colonialidade do poder (classificação social) e a dimensão material (formas de controle do trabalho e mercado mundial colonial) estão articuladas até os dias atuais, restando os piores salários e postos de trabalho às ditas “raças inferiores” como padrão mundial de divisão do trabalho no capitalismo (QUIJANO, 2000, p. 208). Ramón Grosfoguel (2009) entende que a colonialidade do poder, enquanto totalidade histórica heterogênea, formada por múltiplas hierarquias globais, pode ser melhor compreendida pelo conceito de “heterarquia”, formulado primeiramente pelo grego Kyriakos Kontopoulos. As formas de dominação e exploração globais compreendem os elementos sexual, político, epistêmico, econômico, espiritual, linguístico e racial, que estão estruturados em hierarquias heterogêneas enredadas entre si, onde “a hierarquia étnico-racial do fosso cavado entre o europeu e o não-europeu reconfigura transversalmente todas as restantes estruturas globais de poder.” (GROSFOGUEL, 2009, p. 391-392). Assim, no intuito de romper com as categorias de sistemas lógicos das ciências sociais liberais do século XIX, tal conceito dá conta de explicar sistemas históricos complexos:

O velho paradigma marxista da infra-estrutura e da superestrutura é substituído por uma estrutura histórico-heterogénea (Quijano, 2000), ou ‘heterarquia’ (Kontopoulos, 1993), ou seja, uma enredada articulação de múltiplas hierarquias, na qual a subjectividade e o imaginário social não decorrem das estruturas do sistema-mundo mas são, isso sim, constituintes desse sistema (Grosfoguel, 2002). Nesta

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conceptualização, raça e racismo não são superestruturais ou instrumentais para uma lógica preponderante de acumulação capitalista; são constitutivos da acumulação capitalista à escala mundial. A ‘matriz de poder colonial’ é um princípio organizador que envolve o exercício da exploração e da dominação em múltiplas dimensões da vida social, desde a económica, sexual ou das relações de género, até às organizações políticas, estruturas de conhecimento, instituições estatais e agregados familiares (Quijano, 2000). (GROSFOGUEL, 2009, p. 393).

Há ainda outro elemento a ser adicionado à colonialidade do poder, que a naturaliza e torna possível a justificação deste padrão de poder: o eurocentrismo. Se a subjetividade pode ser fracionada nos elementos do imaginário social, da memória histórica e das perspectivas de conhecimento, o eurocentrismo é a perspectiva cognitiva, dos europeus e também dos dominados, produzida ao longo do tempo que colocou a Europa e os europeus como momento e nível mais avançado do caminho linear, unidirecional e contínuo da humanidade, cuja consequência foi o bloqueio e o encobrimento da perspectiva histórica e cultural autônoma dos povos dominados (QUINTERO, 2010, p. 11). Mignolo (2008) afirma que a justificativa de tal processo de bloqueio do ser e do saber, nos primeiros séculos de afirmação do mundo moderno/colonial, ocorreu pela teologia e, posteriormente, na modernidade secular a partir de Descartes, pelo que chama de egologia: Teo y ego-política del conocimiento, en Europa, combinaron para clasificar y desclasificar quienes y cómo estaban dotados de capacidades racionales (tanto la racionalidad teológica —los debates entre Sepúlveda y Las Casas, bien conocidos en España— y cumplían con los requisitos de “humanidad”), para determinar qué lenguas estaban dotadas de los elementos necesarios para producir conocimiento idóneo y confiable; que regiones del planeta estaban suficientemente desarrolladas para generar conocimientos científicos, etc. (MIGNOLO, 2008, p. 18).

Assim, o controle da subjetividade se expressa, inclusive, após os processos de independência das repúblicas latino-americanas, pois as relações de poder somente foram reconfiguradas, mas mantiveram o poder nas mãos das elites brancas e letradas da sociedade. Através do controle político, administrativo e militar, estas elites fabricaram os imaginários sociais e as memórias históricas das novas identidades nacionais. Por sua vez, os grupos minoritários, isto é, os povos indígenas, os negros, os mestiços e as populações tradicionais, nunca tiveram acesso aos meios de produção e nunca puderam expressar sua subjetividade cultural, religiosa e artística de forma igualitária. Além disso, ficaram alijados dos processos de deliberação política e de autoridade coletiva pós-independência. Consequentemente, podese afirmar que a colonialidade do poder contribuiu para a estruturação das sociedades da América Latina, que passou ser constituída por Estados independentes formados por sociedade coloniais (QUINTERO, 2010, p. 12).

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Esta é a engrenagem que controla o conhecimento e mantém as rédeas da colonialidade do saber e do ser. A liberação do pensamento descolonial significa a descolonização epistêmica do ser e do saber colonizados, que mantêm a matriz de poder colonial vigente, seja ela alimentada por instituições euro-norteamericanas, chinesas, russas ou brasileiras, isso porque as esferas da matriz não se esgotam na economia – e no domínio das grandes potências –, mas incluem campos cuja disputa do controle é realizada inclusive por países em desenvolvimento e do chamado Sul Global.

1.2.2 Colonialidade do saber e epistemologias outras

Com a colonialidade do poder, tanto os saberes locais restaram encobertos pelo conhecimento eurocêntrico, a partir do papel desempenhado pela epistemologia e pela reprodução de regimes de pensamento coloniais, como a classificação social imposta com base na ideia de raça produziu identidades coloniais hierarquicamente inferiores ao modelo europeu de pessoa. Em relação ao primeiro efeito, é possível aprofundar algumas questões sobre as condições que permitiram a afirmação do pensamento científico moderno sobre outras formas de conhecimento e interpretação do mundo, bem como sobre a influência do eurocentrismo na configuração das ciências sociais – e também daquelas aplicadas, como o direito –, resultando em dificuldades históricas em desenvolver alternativas teóricas e políticas à supremacia do mercado, do neoliberalismo e da sociedade liberal moderna como modelo civilizatório hegemônico. Segundo Lander (2000), em artigo que inaugura obra coletiva sobre a colonialidade do saber, a eficácia do pensamento científico moderno reside em um processo de naturalização das relações sociais, o que significa que as características da chamada sociedade moderna são interpretadas como tendências espontâneas e naturais do desenvolvimento histórico da sociedade, representando não apenas a ordem social desejável, mas a única possível. Porém, o caráter universal, objetivo e natural da sociedade moderna, capitalista e liberal, não é construção recente; pelo contrário, está sustentada em condições histórico-culturais específicas e encontra origens no pensamento social ocidental dos últimos dois séculos (LANDER, 2000, p. 11-12). Neste sentido, Lander busca contribuir na desconstrução deste mundo moderno excludente e desigual, assim como outros teóricos do pensamento de fronteira latinoamericano e do Sul Global. Deste modo, propõe duas dimensões constitutivas imbricadas, mas de origens históricas diferentes, que explicam a eficácia naturalizadora dos saberes

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modernos: as sucessivas separações ou partições do mundo do “real” que ocorrem historicamente na sociedade moderna e a forma como se articulam os conhecimentos com a organização do poder, em especial as relações coloniais de poder (LANDER, 2000, p. 14). Após a separação judaico-cristã entre Deus (o sagrado), o homem (o humano) e a natureza, de caráter religioso, ocorre na Ilustração e com o desenvolvimento das ciências modernas a ruptura ontológica entre mente e corpo e entre a razão e o mundo, conforme as contribuições de Descartes, permitindo a afirmação de um conhecimento objetivo e universal. Esta é a separação que fundamenta a divisão do mundo, a partir do colonialismo e do lugar de enunciação privilegiado do colonizador, entre o europeu como avançado e o resto do mundo como os “outros”. Assim, gera-se uma totalidade do tempo e do espaço, cujo resultado é a organização de todas as culturas, povos e territórios do planeta em uma grande narrativa universal (LANDER, 2000, p. 16). As principais contribuições desta separação no pensamento moderno, segundo Lander (2000), se dão pelas obras de Locke (Segundo Tratado sobre o Governo) e Hegel (Filosofia do Direito), além da construção, por ambos, de um ideal de universalidade excludente. Locke concebe o direito individual e subjetivo de propriedade como o direito ante todo o indivíduo sobre si mesmo, mas extensível às coisas. Ao se constituir como universal, sobrepõe-se ao direito coletivo e social dos povos indígenas aos seus próprios territórios. Uma vez que não exerciam a propriedade da mesma forma que os europeus, então não possuíam direitos sobre elas, e as terras eram consideradas vacantes (terra nullius) e aptas ao domínio e acumulação. Paradoxalmente, a universalização de um direito a todos os seres humanos significava, em verdade, a imposição de uma visão particular e, consequentemente, a negação deste direito a maioria das pessoas no mundo (LANDER, 2000, p 18). Embora sua filosofia contenha a ideia de que o ser humano é livre para pensar e agir de acordo com princípios racionais, superando concepções do feudalismo, Hegel igualmente desenvolve uma noção de universalidade excludente. Para ele, alguns povos seriam portadores históricos da razão universal, enquanto que as nações bárbaras careceriam de soberania e de autonomia por não se constituírem em Estados, o que incluía a América enquanto continente jovem, débil e imaturo, ou mesmo como a representação no presente do estado de natureza de Hobbes (LANDER, 2000, p. 19-20). O pensamento de Hegel e de contratualistas dos séculos XVII e XVIII, como Locke e Hobbes, importa pelo que afirma tanto quanto pelo que silencia: dizem que os indivíduos modernos formam a sociedade civil ao abandonar o estado de natureza e a aceitar o contrato social, mas silenciam sobre a existência concomitante de uma vasta região mundial em estado

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de natureza, que afirma, pelo contraste, a possibilidade de existência da sociedade moderna (SANTOS, 2009, p. 28). Neste sentido, Santos (2009) afirma que o pensamento moderno, enquanto um pensamento abissal, promove esta linha divisória do mundo entre conhecimentos válidos e inválidos, cuja impossibilidade da co-presença dos dois lados relega o universo “do outro lado da linha” ao plano da inexistência, da invisibilidade e da ausência não-dialética. Isso significa que os conhecimentos subalternos não são produzidos como falsos pelos critérios de validade da ciência moderna, como aconteceu com a própria teologia e com a filosofia, pois sequer ingressam neste sistema de validação (SANTOS, 2009, p. 24-25). A linha abissal moderna é marcada pela contraposição de dois paradigmas distintos. O paradigma moderno ocidental seria caracterizado pela tensão entre os pilares da regulação e da emancipação social, cada um sustentado por três princípios: os princípios da regulação seriam o Estado (Hobbes), o mercado (Locke e Adam Smith) e o princípio da comunidade (Rousseau); o pilar da emancipação é constituído pelas três lógicas da racionalidade de Max Weber: a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura, a racionalidade cognitivoinstrumental da ciência e da tecnologia e a racionalidade moral-prática da ética e do direito (SANTOS, 2009, p. 24). O projeto ambicioso da modernidade procurou harmonizar ambos os pilares, mas, diante de tantas contradições internas, houve em verdade uma “hipermercadorização” da regulação e uma “hipercientificização” da emancipação, ou uma absorção da emancipação pela regulação. O resultado para o mundo colonial foi a predominância de outro paradigma da linha abissal, caracterizado pela tensão entre a apropriação dos territórios, das culturas e das riquezas, e a violência contra os povos indígenas e africanos (SANTOS, 2009, p. 24). Nesta configuração, tanto o conhecimento quanto o direito15 seriam pensamentos abissais, construídos no período colonial e produtores de linhas divisórias do verdadeiro e do falso, do legal e do ilegal, operantes em novas configurações até os dias atuais. De um lado, haveria o monopólio concedido à ciência moderna para a distinção universal do verdadeiro e do falso, enquanto os conhecimentos populares, camponeses ou indígenas seriam meras crenças, opiniões, magia e idolatria. De outro lado, o direito oficial do Estado moderno 15

E se o direito moderno pode ser visto como um pensamento abissal, pois impede a pluralidade de experiências jurídicas paralelas ao direito oficial estatal, também podem os direitos humanos. A compreensão dos direitos humanos como lutas por reconhecimento evidencia outras contribuições à sua fundamentação que restaram invisibilizadas pela colonialidade do saber, pelo eurocentrismo e pelo pensamento moderno ocidental. Além dos ideais das revoluções burguesas, do Iluminismo e mesmo da ONU, há muitas contribuições latino-americanas e descoloniais à noção atual dos direitos humanos, que inclusive influenciaram a elaboração da Declaração Universal de 1948. Neste sentido, ver os artigos de Bragato (2014) e de Baldi (2014), que constam nas referências bibliográficas.

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relegaria ao outro lado da linha toda a produção de juridicidade e de regulação autônoma da vida e dos conflitos sociais dos povos indígenas e colonizados, que existem ao lado ou mesmo contra o sistema de justiça oficial do Estado (SANTOS, 2009, p. 25-26). Esta é outra abordagem que explica, na modernidade, a ausência de contradição entre a afirmação da racionalidade do sujeito moderno e a justificação das violências coloniais. Ou, como posteriormente, entre a declaração de direitos humanos universais e a violação naturalizada destes mesmos direitos em grande parte do planeta. Segundo Santos (2009), “Com base nestas concepções abissais de epistemologia e legalidade, a universalidade da tensão entre a regulação e a emancipação, aplicada deste lado da linha, não entra em contradição com a tensão entre apropriação e violência aplicada do outro lado da linha.” (SANTOS, 2009, p. 29). Além da dimensão colonial que submeteu outros povos e territórios ao domínio europeu, a hegemonia das relações de produção capitalista e do modo de vida liberal também se deu pela derrota de projetos de resistência a essa modernização dentro da própria Europa, projetos sobretudo de cunho conservador e pela manutenção de costumes. É, portanto, com a derrota desta resistência e neste contexto histórico-cultural que se constituem as disciplinas das ciências sociais, pois “[…] el modelo liberal de organización de la propiedad, del trabajo y del tiempo dejan de aparecer como una modalidad civilizatoria en pugna con otra(s) que conservan su vigor, y adquiere hegemonía como la única forma de vida posible.” (LANDER, 2000, p. 22). As ciências sociais surgem, então, em um contexto temporal específico e nos países liberais industriais (Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Estados Unidos). Além disso, enquanto que a disciplina da história estudaria o passado, o presente seria estudado por disciplinas dos âmbitos social, político e econômico, cada uma com seus objetos de estudo, métodos e tradições intelectuais, separadas por departamentos universitários: a sociologia, a ciência política e a economia. Assim, por conta da universalização da experiência histórica europeia, as categorias e perspectivas deste conhecimento – como economia, Estado, sociedade, mercado e classes – “[...] se convierten así no solo en categorías universales para el análisis de cualquier realidad, sino igualmente en proposiciones normativas que definen el deber ser para todos los pueblos del paneta” (LANDER, 2000, p. 23). Tais saberes se tornam o padrão para a análise das supostas carências e atrasos das outras sociedades do planeta, consideradas primitivas e tradicionais, não meramente por um sucesso aleatório de universalização da experiência histórico-cultural da Europa, mas como um dispositivo colonial/imperial de organização do ser e do saber da sociedade, conforme a

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colonialidade do poder anteriormente abordada. Deste modo:

Con las ciencias sociales se da el proceso de cientifización de la sociedad liberal, su objetivación y universalización, y por lo tanto, su naturalización. El acceso a la ciencia, y la relación entre ciencia y verdad en todas las disciplinas, establece una diferencia radical entre las sociedades modernas occidentales y el resto del mundo. Se da, como señala Bruno Latour, una diferenciación básica entre una sociedad que posee la verdad – el control de la naturaleza – y otras que no lo tienen. (LANDER, 2000, p. 24).

O desenvolvimento da antropologia, a partir do século XIX, contribuiu para se pensar em rupturas à hegemonia da produção do conhecimento. Ao aplicar ao próprio homem os métodos até então utilizados em outras áreas, como a física e a biologia, que forneciam os conceitos e as metáforas para se pensar o social, a disciplina passou a reivindicar-se como saber científico. Porém, na sua origem, contribuiu no desenvolvimento de um suposto caráter científico da diferença racial entre a sociedade europeia moderna e as sociedades “exóticas” ou “primitivas”, seu primeiro objeto empírico. Mais do que isso: os primórdios da antropologia serviram de justificação para a expansão colonial do século XIX, principalmente da França e da Inglaterra, levando adiante as ideias evolucionistas que expressam o modelo cultural europeu da época (LAPLANTINE, 2003). Entretanto, no seu desenvolvimento, a antropologia promoveu um estranhamento do mundo universal e naturalizado, realizando o exercício do relativismo e da transmissão da voz do nativo, levando-o à sério por meio dos relatos detalhados do método etnográfico. A descoberta da alteridade provoca uma revolução epistemológica de descentramento, ou uma ruptura com a ideia de que existe um “centro do mundo” e de que as culturas diferentes da europeia são estágios inferiores da evolução “natural” das sociedades. Com a relativização, a ideia de que cada sociedade é uma totalidade passa a ser questionada, pois sociedade é uma categoria ocidental criada no próprio discurso e não uma realidade empírica (LAPLANTINE, 2003, p. 13-14). O desenvolvimento de disciplinas que relativizam o social, contudo, não se demonstra suficiente, pois ainda assim pode se falar pelo “outro”16. O “antropólogo” é alguém que discorre sobre o discurso de um “nativo”, formando uma relação social. Todavia, o sujeito (antropólogo) relaciona-se de uma forma com essa relação, enquanto que o objeto (nativo) relaciona-se de maneira diferente. Disto decorre uma relação subjacente, a “relação das relações”, cujo sentido é dominado pelo antropólogo e não pelo nativo, pois o primeiro é o 16

Ver anteriormente, no subtítulo 1.1.3, os questionamentos de Spivak (2010) sobre a prática discursiva dos intelectuais ocidentais e a (im)possibilidade do subalterno falar em nome próprio.

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observador, que explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa o sentido do nativo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 114). No entanto, a antropologia e as demais disciplinas precisam recusar este jogo de “epistemicídio”, no qual o conhecimento do observador pressupõe o desconhecimento do sujeito observado. É necessário não apenas explicar e racionalizar o discurso do “nativo”, mas levá-lo à sério: tomar as ideias indígenas, por exemplo, como conceitos que projetam mundos possíveis com problemas específicos de sua cultura (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 123). Neste sentido, na importante obra “Decolonizing methodologies: research and indigenous peoples”17, Linda Tuhiway Smith afirma que, do ponto de vista do colonizado, que escolhe privilegiar, o termo “pesquisa” tem sido conectado em diversos contextos indígenas aos processos de imperialismo e colonialismo, provocando silêncio e memórias traumáticas quando mencionado (SMITH, 1999, p. 1). Assim, mais do que dar voz aos povos originários, Smith (1999) coloca a própria pesquisa e suas metodologias dentro das relações de poder herdadas do imperialismo e do colonialismo. Em um livro repleto de prescrições aos pesquisadores indígenas, para quem é diretamente escrito, são destacados 25 projetos indígenas de pesquisa que incorporam metodologias e perspectivas próprias. Nas suas palavras, “[…] research has been an encounter between the West and the Other. Much more is known about one side of those encounters than is known about the other side. This book reports to some extent on views that are held and articulated by 'the other sides'”18 (SMITH, 1999, p. 8). Apesar deste esforço, a prática das ciências sociais do mundo ex-colonial e da América Latina ainda tem afirmado o caráter universal dos saberes científicos eurocêntricos e reproduzido seus conceitos e modelos de análise, mais distantes do conhecimento dessas mesmas sociedades a partir de suas especificidades histórico-culturais. Assim, toda experiência ou expressão cultural que não se adequa a esse dever ser resta ocultada ou colocada no passado, negando-se a sua contemporaneidade (LANDER, 2000, p. 26). O pensamento descolonial e, em geral, todo o pensamento de fronteira latinoamericano, busca se desvincular da obrigatoriedade das categorias universais e naturais do conhecimento, sem com isso negar sua grande importância. Maritza Montero, citada por Lander (2000), identifica algumas alternativas ao pensamento eurocêntrico-colonial desenvolvidas por intelectuais na América Latina no início do século XXI: 17

Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas (SMITH, 1999, tradução nossa). Pesquisa tem sido um encontro entre o Ocidente e o Outro. Muito mais é conhecido sobre um dos lados desses encontros do que é conhecido do outro lado. Esse livro relata, em certa medida, visões que são elaboradas e articuladas nos ‘outros lados’. (SMITH, 1999, p. 8, tradução nossa). 18

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• Una concepción de comunidad y de participación así como del saber popular, como formas de constitución y a la vez como producto de un episteme de relación. • La idea de liberación a través de la praxis, que supone la movilización de la conciencia, y un sentido crítico que lleva a la desnaturalización de las formas canónicas de aprehender-construir-ser en el mundo. • La redefinición del rol de investigador social, el reconocimiento del Otro como Sí Mismo y por lo tanto la del sujeto-objeto de la investigación como actor social y constructor de conocimiento. • El carácter histórico, indeterminado, indefinido, no acabado y relativo del conocimiento. La multiplicidad de voces, de mundos de vida, la pluralidad epistémica. • La perspectiva de la dependencia y luego, la de la resistencia. La tensión ente minorías y mayorías y los modos alternativos de hacer-conocer. • La revisión de métodos, los aportes y las transformaciones provocados por ellos. (MONTERO, 1998, apud LANDER, 2000, p. 27-28).

A colonialidade do saber, portanto, manifesta-se na academia, no direito e em qualquer outro espaço que desconsidere o relativismo do pensamento científico moderno, responsável pela invisibilização de outros saberes, conceitos, metodologias e mundos possíveis. Todavia, sua superação não significa elevar a posição da América Latina nesta balança dicotômica do eurocentrismo – a ideia de Europa e o resto –, pois nem América Latina nem “povos indígenas” significam unidades de conhecimentos, de experiências e de reivindicações; muito pelo contrário: lutas políticas e por direitos perante o Estado podem se somar, mas cada etnia indígena, comunidade tradicional, sujeito colonizado têm direito a sua própria existência. Se o conhecimento é colonizado, a descolonização do saber não produzirá um “conhecimento do Sul”, pois o próprio Sul Global é uma ficção de resistência e de cooperação e não uma unidade de essência. Por isso, Santos (2009) fala no plural, em epistemologias do Sul (SANTOS, 2009). 1.2.3 Colonialidade do ser, discurso colonial e a construção do “outro” como inferior

A partir da derivação da colonialidade do saber enquanto manifestação específica da colonialidade do poder, procurou-se, com a colonialidade do ser, responder à pergunta que estava pendente sobre os efeitos da colonialidade na experiência vivida dos sujeitos subalternos e o impacto da linguagem na produção da existência destas identidades coloniais, pois a “modernidad es una máquina generadora de alteridades que, en nombre de la razón y el humanismo, excluye de su imaginario la hibridez, la multiplicidad, la ambigüedad y la contingencia de las formas de vida concretas.” (CASTRO-GÓMEZ, 2000, p. 145). Assim, o conceito dialoga com outras ideias sobre a produção de identidades coloniais

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subalternizadas e o discurso colonial responsável pela representação degenerada do “outro”, ou seja, possui relação inclusive com ideias pós-coloniais de autores já referidos na seção anterior, como Said, Bhabha e Fanon, que serão aqui aproveitados. Dentro do pensamento descolonial, o conceito de colonialidade do ser é desenvolvido por Nelson Maldonado-Torres (2007) e atribuído à Walter Mignolo, mas duas décadas antes as ideias do filósofo judeu-lituano Emmanuel Levinas, que estabeleceu a relação entre ontologia e poder19, já haviam influenciado Enrique Dussel a desenvolver, a partir da filosofia da libertação, a relação entre o Ser e a história das empresas coloniais, aproximando-se da atual ideia sobre a colonialidade do ser (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 129). Outra influência relevante à configuração do conceito é a crítica à ontologia hegeliana que Frantz Fanon20 realiza na sua obra “Pele Negra, Máscaras Brancas”, pois também possui como base as experiências da colonização e da escravidão, bem como a luta pela descolonização dos sujeitos colonizados em um nível epistêmico e ontológico. Neste sentido, se “[…] Dussel aclara la dimensión histórica de la colonialidad del ser, Fanon articula las expresiones existenciales de la colonialidad, en relación con la experiencia racial y, en parte también, con la experiencia de diferencia de género” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 130). O encontro descrito por Fanon do sujeito racializado com o outro imperial é o ponto de partida da sua análise dos traumas e complexos existenciais do sujeito produzido pela colonialidade do ser, o que acaba por conectar, no conceito, os níveis genético, existencial e histórico da questão do outro colonizado (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 130-131).

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Maldonado-Torres (2007) descreve o interesse no tema a partir dos estudos da ontologia fundamental. Martin Heidegger, enquanto um dos mais inovadores filósofos do século XX, continuou o ataque de Nietzsche à filosofia moderna centrada na epistemologia e consistiu na rearticulação da pergunta sobre o ser, influenciando uma geração de intelectuais subsequentes, como Jacques Derrida, Jean-Paul Sartre e Edmund Husserl, da tradição fenomenológica, e Emmanuel Levinas. Este, por sua vez, reformulou questões da filosofia do ser humano, ao dizer que o começo do filosofar não consta no encontro do sujeito com o objeto, mas na ética, entendida como a relação fundamental entre um eu e o outro, ou seja, uma relação cara-a-cara. Ao contrário de Heidegger, que apoiou o regime nazista, Levinas foi um sobrevivente do holocausto judeu e isto marcou seu trabalho, vindo a dizer que a ontologia de Heidegger era uma filosofia do poder e cúmplice da violência. Tanto a experiência do antissemitismo e a ética enquanto lugar central aproximam às ideias da filosofia da libertação, quando esta articula uma filosofia crítica do Ser no contexto da colonização (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 128-129). 20 Frantz Fanon foi um psiquiatra, filósofo e sobretudo um revolucionário nascido em 1925 na ilha de Martinica, território francês no Caribe. Como representante da classe média que enaltecia a sociedade francesa, alistou-se e lutou pelo exército francês contra o regime nazista nos anos 40. Após cursar psiquiatria em Lyon e se desencantar com sua experiência de soldado francês e de intelectual formado na França, escreve o clássico “Pele Negra, Máscaras Brancas”, em 1950, e passa a denunciar as condições precárias dos negros na França, o que desperta seu interesse sobre os efeitos psíquicos da experiência colonial e do racismo sobre colonizadores e colonizados. A fim de aprofundar estas pesquisas, muda-se para a Argélia e passa a combater o colonialismo francês naquele país, inclusive filia-se à Frente de Libertação Nacional na época da Revolução Argelina de 1954 e da repressão francesa. Em 1961, publica “Os Condenados da Terra”, sua maior obra, como resultado da sua residência no hospital Blida-Joinville, na Argélia, onde procurou aliar enfermidade com colonialismo e investigar como o regime colonial desarticula a estrutura psíquica das pessoas (DE OTO, 2003, p. 217-220).

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Mas, em se tratando de colonialidade, deve-se, antes de mais nada, voltar atenção ao processo sócio-histórico específico da conquista da América e a relação vertical estabelecida entre os sujeitos a partir da colonialidade do poder. O estabelecimento desta hierarquia se origina com as discussões sobre se os índios possuíam alma, ou seja, a teologia era a medida de conhecimento e de divisão racial para a dominação exercida pelos portugueses e espanhóis dos séculos XV e XVI. Maldonado-Torres (2007) alerta que a concepção de raça no colonialismo português e espanhol difere da compreensão cientificista e biológica estabelecida no século XIX e XX. No entanto, o estabelecimento de graus de humanidade aproxima ambas as compreensões, sendo a colonialidade um processo mais sútil, que Maldonado-Torres chama de “suspeita permanente” da humanidade dos sujeitos (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 133). Dussel (1993) argumenta que, nesta época, o ego ou a subjetividade europeia eram imaturos e periféricos do mundo muçulmano. Com a conquista do México e o genocídio dos Astecas por Hernan Cortez, o ideal de subjetividade moderna se desenvolveu e se caracterizou pelo que se pode chamar de ego conquiro, que antecede e se constitui como fundamento prático para a articulação do ego cogito cartesiano. A “conquista” difere do “descobrimento” do Novo Mundo e da “invenção” das identidades coloniais, pois é prática militar, dominação de pessoas, dos povos indígenas. Esse sujeito prático, conquistador, é o primeiro homem moderno ativo, que caracteriza a subjetividade moderna da conquista violenta e controle dos corpos (DUSSEL, 1993, p. 43). Assim, são estabelecidas certezas e ceticismos interdependentes: “[…] la certidumbre del sujeto en su tarea de conquistador precedió la certidumbre de Descartes sobre el ‘yo’ como sustancia pensante (res cogitans)” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 133). Por outro lado, o que dá apoio a essa certeza do sujeito moderno e à certeza da empresa colonial é um ceticismo permanente sobre a humanidade do sujeito colonizado e racializado, que já existia na modernidade, e inclusive condiciona o ceticismo cartesiano do ego cogito. Conforme argumenta Maldonado-Torres (2007), esta subjetividade constitutiva do sujeito moderno evidencia uma relação maniqueísta do colonialismo, que promove uma divisão racial dos sujeitos e pode ser denominada como ceticismo maniqueísta misantrópico racista/imperial, ou simplesmente atitude imperial:

El escepticismo misantrópico es como un gusano en el corazón mismo de la modernidad. Los logros del ego cogito y de la racionabilidad instrumental operan dentro de la lógica que el escepticismo misantrópico ayudó a establecer. Esta es la razón por la cual la idea de progreso siempre significó, en la modernidad, progreso sólo para algunos, y por qué los Derechos del Hombre no se aplican igualmente a

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todos, entre otras obvias contradicciones. El escepticismo misantrópico provee la base para una opción preferencial por el ego conquiro, lo cual explica cómo puede concebirse que la protección de algunos se obtiene al costo de las vidas de otros. La actitud imperial promueve una actitud fundamentalmente genocida con respecto a sujetos colonizados y racializados. Ella se encarga de identificar a sujetos coloniales y racializados como dispensables. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 136).

O ceticismo permanente sobre a humanidade dos sujeitos colonizados, ou seja, a pergunta sobre se os povos indígenas das Américas possuíam alma, teve como consequência o conhecido debate entre Sepúlveda e Bartolomé de Las Casas21 sobre uma suposta obrigação dos espanhóis em promover guerras justas contra os indígenas que não adotassem por conta própria a religião cristã. Esta forma como os conquistadores se comportavam em relação aos povos indígenas e negros escravizados assemelhava-se mais ao comportamento dos europeus em situações de guerra do que ao código ético que regulava suas relações com outros europeus cristãos em situações normais de convivência. Portanto, o racismo moderno e a colonialidade podem ser entendidos, no que tange à concepção dos sujeitos, como a radicalização e a naturalização da ética da guerra – ou melhor, de uma não-ética da guerra – no período colonial (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 137-138). O ego conquiro, o ceticismo misantrópico maniqueísta e a não-ética da guerra não foram questionados pela dúvida metódica cartesiana no giro subjetivo do ego cogito. Assim, duas dimensões emergem do “penso, logo sou”: Debajo del “yo pienso” podríamos leer “otros no piensan”, y en el interior de “soy” podemos ubicar la justificación filosófica para la idea de que “otros no son” o están desprovistos de ser. De esta forma descubrimos una complejidad no reconocida de la formulación cartesiana: del “yo pienso, luego soy” somos llevados a la noción más compleja, pero a la vez más precisa, histórica y filosóficamente: “Yo pienso (otros

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Alejandro Rosillo Martínez (2011), ao estudar os direitos humanos e o pensamento latino-americano da libertação em sua tese de doutoramento, destaca as seguintes contribuições de Las Casas na contestação das guerras contra os povos indígenas e, consequentemente, contra o ego conquiro: “La creencia de Bartolomé de Las Casas en la idea de que todos los seres humanos tendrían derechos naturales de libertad era inusual para su época histórica. Pocos estarían entonces de acuerdo de que la población original de las Indias tuviese el derecho para gobernarse a sí mismo y practicar sus propias creencias y costumbres culturales. [...] Sin duda, el reconociendo de que los indígenas tenían derechos naturales, fue un primer paso para defender esos mismos derechos para todos los humanos. En este punto, al defender la capacidad como sujetos de los indios, Las Casas fue crítico a la Modernidad naciente, que los reduciría –e iba a continuar reduciendo– a cosas controlables y moldeables; [...] La característica de la praxis y del discurso de Bartolomé de Las Casas que deseamos resaltar como principio generador de una THDH consiste en la visión que asumió, es decir, el lugar social donde se colocó: la perspectiva de las víctimas. A pesar de ser europeo, cristiano, clérigo y funcionario de la Corona española, tuvo la suficiente sensibilidad para asumir una visión diferente a la dominante; esto lo hizo, ciertamente, sin dejar de ser occidental. Su discurso no utiliza categorías del pensamiento de los pueblos indígenas, sino que se vale de la filosofía europea. [...] Las Casas defendió los derechos de los pueblos indígenas en un contexto concreto y buscó las respuestas que él consideraba más convenientes y congruentes con la fe cristiana y el derecho natural. Varios de sus proyectos políticos de convivencia con los indios tuvieron éxito por un tiempo y otros fracasaron, y por eso se le ha acusado de utópico.” (ROSILLO MARTÍNEZ, 2011, p. 42-50).

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no piensan o no piensan adecuadamente), luego soy (otros no son, están desprovistos de ser, no deben existir o son dispensables)”. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 144).

O paradigma da modernidade privilegia a questão do conhecimento, mas esconde tanto a questão do ser (o “sou”), como a colonialidade do saber (outros não pensam). Além disso, ao privilegiar a epistemologia e negar faculdades cognitivas nos sujeitos racializados, a formulação cartesiana oferece as bases para a própria negação ontológica deste ser. Ou seja: não pensar se converte em não ser na modernidade. Deste modo, a dúvida sobre a humanidade, uma questão colonial dos séculos XV e XVI, não é contestada na modernidade, mas convertida em uma certeza sobre a alegada falta de razão ou de pensamento dos sujeitos colonizados e racializados (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 145). Para Fanon (2008), esta exclusão ontológica e a ausência de racionalidade apontada no negro (e nos indígenas) acarreta na sua falta de resistência ontológica frente aos olhos do branco: mesmo quando o negro tenta estabelecer uma comunicação racional com o branco, a razão se escapa e a irracionalidade se impõe na conversação, tornando a experiência diária verdadeiro inferno. Nessa experiência vivida, o negro precisa a todo tempo confirmar seu ser diante do branco, que o julga e o inferioriza: “A vergonha. A vergonha e o desprezo de si. A náusea. Quando me amam, dizem que o fazem apesar da minha cor. Quando me detestam, acrescentam que não é pela minha cor... Aqui ou ali, sou prisioneiro do círculo infernal.” (FANON, 2008, p. 109). Se Heidegger cunhou a categoria do Dasein para referir-se aos seres humanos como sujeitos que colocam em questão seu próprio ser, traduzindo-se em “ser-aí”, que existe e projeta-se ao futuro, esqueceu-se de que na modernidade o ser tem um lado colonial. Fanon (2008), então, afirma que o negro não seria um ser, mas tampouco simplesmente nada: juntamente com os sujeitos colonizados, seriam os condenados da terra, ou os damnés, em contraposição ao Dasein de Heidegger:

O mundo branco, o único honesto, rejeitava minha participação. De um homem exige-se uma conduta de homem; de mim, uma conduta de homem negro – ou pelo menos uma conduta de preto. Eu acenava para o mundo e o mundo amputava meu entusiasmo. Exigiam que eu me confinasse, que encolhesse. (FANON, 2008, p. 107).

Em paralelo à diferença ontológica de Heidegger entre o ser e os entes (como Deus, por exemplo), surge a diferença sub-ontológica, ou diferença ontológica colonial: a diferença entre o ser e o que está abaixo do ser; a diferenciação entre a subjetividade humana e a

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condição de sujeitos sem resistência ontológica. Neste sentido, Fanon acrescenta o aspecto ontológico na diferença colonial de Mignolo, que já possuía a ideia de diferença epistêmica, pois baseada no conhecimento eurocêntrico: “[...] la diferencia sub-ontológica o diferencia ontológica colonial se refiere a la colonialidad del ser en una forma similar a como la diferencia epistémica colonial se relaciona con la colonialidad del saber.” (MALDONADOTORRES, 2007, p. 147). A colonialidade do ser, portanto, refere-se à normalização de eventos extraordinários que ocorrem geralmente na guerra, ou a naturalização da não-ética da guerra, cujo resultado é a produção da diferença sub-ontológica – legitimada e formalizada pela ideia de raça – e a imposição de verdadeiro inferno diário na experiência vivida dos condenados, que são invisíveis na sua humanidade, nos seus direitos e na sua subjetividade, e ao mesmo tempo visíveis em excesso ao olhar da sociedade. Em outras palavras, a colonialidade do ser “[…] es un concepto que intenta capturar la forma en que la gesta colonial se presenta en el orden del lenguaje y en la experiencia vivida de sujetos.” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 154). De fato, a linguagem produz e reforça tal condição subalterna dos damnés ou das identidades geocoloniais, incluindo os povos indígenas, através de uma representação do outro como inferior e degenerado. Partindo das contribuições de Edward Said e Frantz Fanon sobre a dimensão discursiva do colonialismo, Homi Bhabha (2007) aponta que o discurso colonial é “[…] una forma de discurso crucial a la ligazón de un rango de diferencias y discriminaciones que conforman las prácticas discursivas y políticas de la jerarquización racial y cultural” (BHABHA, 2007, p. 92), cujo objetivo central é “[…] construir al colonizado como una población de tipos degenerados sobre la base del origen racial, de modo de justificar la conquista y establecer sistemas de administración e instrucción.” (BHABHA, 2007, p. 95-96). A principal característica do discurso colonial é oferecer uma estereotipação dos sujeitos colonizados, que nada mais é do que uma falsa representação de uma dada realidade, ou uma simplificação, porque a retrata de forma fixa e imutável. Neste sentido, esta “fixidez” seria um modo paradoxal de representação, visto que exige uma rigidez e imutabilidade cultural/histórica/racial do sujeito – produzindo características irreais e hiperbólicas da identidade –, ao mesmo tempo em que exige uma repetição ansiosa dessa diferença e dessas características do sujeito colonizado, gerando uma ambivalência no discurso. A força da ambivalência – este jogo discursivo de negar o direito à diferença e de ressaltá-la ao mesmo tempo – é o que dá valor ao estereótipo colonial e permite que ele perdure em diferentes

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conjunturas históricas e discursivas (BHABHA, 2007, p. 91). O discurso colonial, para Bhabha (2007), também possui como característica o mimetismo. A mímica expressa o desejo de um “outro” reformado, é uma estratégia complexa de reforma, regulação e disciplina, que aproxima o colonizado do colonizador, impondo-lhe sua língua, suas normas, sua religião e sua administração, mas não a ponto de igualarem-se. Esta aproximação desejada, mas controlada, facilita a dominação (BHABHA, 2007, p. 112). A compreensão da influência do ego conquiro na construção da subjetividade moderna, tanto do colonizador como do colonizado, a não-ética da guerra como comportamento naturalizado frente aos povos indígenas nas Américas, e a estereotipação do sujeito colonizado através do discurso colonial, são as ideias principais que permitem aprofundar a noção de colonialidade do poder na sua dimensão ontológica.

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2.

DAS

RELAÇÕES

TRANSFORMAÇÃO

COLONIAIS DO

QUADRO

ÀS

RUPTURAS

NORMATIVO

DESCOLONIAIS: INDIGENISTA

E

A A

EMERGÊNCIA DA TERRITORIALIDADE NO DIREITO À TERRA “Eu acho que teve uma descoberta do Brasil pelos brancos em 1500, e depois uma descoberta do Brasil pelos índios na década de 1970 e 1980. A que está valendo é a última. Os índios descobriram que apesar de eles serem simbolicamente os donos do Brasil não têm lugar nenhum para viver nesse país. Terão que fazer esse lugar existir dia a dia.” Ailton Krenak – Encontros. Entrevista a Sergio Cohn, dezembro de 2013.

Neste segundo capítulo, é estabelecida a aproximação do referencial teórico ao atual quadro normativo indigenista no Brasil, sobretudo os direitos territoriais constitucionalmente previstos. Além disso, para melhor situar mudança de paradigma inaugurado pela Constituição Federal de 1988, são apresentadas rupturas descoloniais na América Latina que identificam movimentos de um novo constitucionalismo, dentro do qual podem ser interpretados os direitos indígenas. Primeiramente, na seção 2.1, é realizada uma análise do indígena enquanto uma categoria da situação colonial, cujo resultado é a negação da diversidade dos povos originários e a situação atual de violência e de vulnerabilidade que enfrentam. Após, utilizando o conceito de “colonialismo interno”22, busca-se apresentar o quadro normativo indigenista anterior à Constituição Federal de 1988, quando imperavam políticas de

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Tal categoria teórica da sociologia foi elaborada e defendida nos anos 60 como viável para os estudos sobre o desenvolvimento para denunciar a relação de dominação exercida pelos Estados independentes às populações étnico-raciais internas no século XX. Suas referências são os mexicanos Pablo González Casanova (2006; 2009) e Rodolfo Stavenhagen (1981), e obteve recepção e contribuições do antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira (1993) ainda na década de 60, quando ainda não havia sido desenvolvido o conceito de colonialidade do poder. Embora não seja uma categoria do pensamento descolonial, possui extrema vinculação com os termos “colonialidade do saber” e “pensamento descolonial”, mas não foi devidamente considerada pelos teóricos descoloniais na época ou aludida como raiz de seu pensamento hoje (GUILLÉN, 2014, p. 86). Inclusive é um conceito visto por alguns autores como eurocêntrico (QUIJANO, 2007, p. 93), pois toma a instituição moderna do Estado-Nação como parâmetro para investigação de subjetividades, é pertinente para desvelar as contradições da política tutelar e de integração dos povos indígenas que vigoraram até a promulgação da Constituição Federal de 1988, mas que ainda hoje reverberam em políticas públicas, propostas legislativas e decisões judiciais.

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aculturação (assimilação e integração cultural), que expressam a colonialidade. Com tais políticas, o Estado brasileiro, em pleno século XX e, portanto, contemporaneamente ao desenvolvimento internacional dos direitos humanos e dos processos mundiais de descolonização, reproduziu elementos que caracterizaram a dominação exercida pelas metrópoles às suas colônias, mas agora em relação aos grupos étnico-raciais internos. Ainda na seção 2.1, analisa-se o atual quadro normativo indigenista no Brasil e as experiências de rupturas descoloniais latino-americanas. Com a Constituição Federal de 1988, não apenas uma nova situação jurídica foi inaugurada, mas também se concretizou uma mudança na relação do Estado com os povos indígenas: passou-se do integracionismo ao reconhecimento das suas diferenças e de seus direitos decorrentes. Este novo momento é acompanhado por instrumentos internacionais, como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, e a recente Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Organização dos Estado Americanos (OEA), de 2016. Neste sentido, alguns países latino-americanos têm desenvolvido experiências jurídico-políticas mais profundas de esforços de descolonialidade – o chamado novo constitucionalismo latino-americano –, como as Constituições da Bolívia e do Equador, que reconheceram a plurinacionalidade inerente à sua população. Na seção 2.2 do capítulo, adentra-se no estudo dos direitos territoriais indígenas, a partir de reflexões importantes sobre a territorialidade indígena, cosmovisões e processos de territorialização. Como primeiro diálogo em âmbito jurídico, apresentam-se aportes dos Sistemas Universal e Interamericano de Direitos Humanos, principalmente a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que desenvolve as ideias de territorialidade indígena em contraposição ao regime jurídico de propriedade individual do direito privado. Em relação à Constituição, a seção 2.3 analisa o conceito e as características das terras indígenas que constam do art. 231, inserido na mudança de paradigma tratada na seção 2.1, sobretudo a originariedade e a tradicionalidade, pois dialogam e dissentem diretamente de alguns elementos da fundamentação do marco temporal.

2.1 A Colonialidade na relação histórica e jurídica entre Estado, sociedade e povos indígenas

Nesta seção, será abordada a evolução normativa dos direitos indígenas no Brasil e a colonialidade expressa e atuante, inclusive na conformação da categoria homogeneizadora do

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indígena. Além disso, são apresentadas rupturas descoloniais e marcadores jurídicos que identificam os ciclos de constitucionalismo da América Latina. É neste quadro que se inserem os direitos territoriais indígenas abordados nas seções seguintes, sendo a partir destas fontes que devem ser interpretados.

2.1.1 O indígena enquanto categoria da situação colonial

Índio ou indígena, se considerados como sinônimos, é o nome dado na colonização aos habitantes originários das terras conhecidas na atualidade como continente americano, permanecendo tal nomenclatura até os dias atuais. A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989, possui uma definição de povos tribais e indígenas 23, para os quais se aplicam os dispositivos do tratado, enquanto o Estatuto do Índio, a Lei nº 6.001, de 1973, o faz em relação ao plano interno24. Viveiros de Castro (2006) apresenta a sua definição de forma bastante completa, valendo o registro na íntegra: “Índio” é qualquer membro de uma comunidade indígena, reconhecido por ela como tal. “Comunidade indígena” é toda comunidade fundada nas relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas. 1. As relações de parentesco ou vizinhança constitutivas da comunidade incluem as relações de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso, e, mais geralmente, definem-se nos termos da concepção dos vínculos interpessoais fundamentais própria da comunidade em questão. 2. Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas, culturais e sociopolíticas, a saber: (a) A continuidade da presente implantação territorial da comunidade em relação à situação existente no período pré-colombiano. Tal continuidade inclui, em particular, a derivação da situação presente a partir de determinações ou contingências impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações forçadas, descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação e oclusão étnicas; (b) A orientação positiva e ativa do grupo face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante do grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural associados à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não são necessariamente aqueles específicos da área cultural (no sentido histórico-etnológico) onde se acha hoje a comunidade. (c) A decisão, seja ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se A definição vem logo no artigo primeiro: “1. A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.” (OIT, 1989). 24 Conforme o art. 3º, é índio “todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional.” (BRASIL, 1973). 23

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constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recrutamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a sociedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodução simbólica e material. (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 1-2).

A origem pré-colombiana não deve ser entendida como fator genético, visto que a discussão acerca da existência de raças no sentido biológico encontra hoje poucos defensores nas ciências sociais e no direito; talvez mesmo nenhum. Deste modo, o critério deveria ser a consciência de um vínculo histórico transmitido dentro do grupo (CARNEIRO DA CUNHA, 1989, p. 23). Em relação ao critério da cultura, o mais correto seria considerá-la como elemento mutável no tempo e pelas relações sociais e biológicas. Assim, a cultura é antes um reflexo ou produto da organização de cada grupo do que condição primária ou pressuposto de identificação, ou seja, mudando a cultura não perdem os índios a sua identidade ou diferenciação para com a sociedade nacional (CARNEIRO DA CUNHA, 1989, p. 24). Diante desta mutabilidade, a definição mais adequada seria a hoje aceita pela antropologia, a qual diz que “[...] grupos étnicos são formas de organização social em populações cujos membros se identificam e são identificados como tais pelos outros, constituindo uma categoria distinta de outras categorias da mesma ordem” (CARNEIRO DA CUNHA, 1989, p. 25). O único critério correto, portanto, é o da autoidentificação: somente a comunidade indígena pode dizer quem é e quem não é seu membro. As definições antropologicamente adequadas consideram que as comunidades indígenas são aquelas que possuem consciência de sua continuidade histórica com sociedades pré-colombianas e, por isso, consideram-se segmentos distintos da sociedade nacional; índio é quem se considera pertencente a uma dessas comunidades e é por ela reconhecido como membro (CARNEIRO DA CUNHA, 1989, p. 26). Mas por que definir algo que não é uma constatação de um estado de coisas identificáveis ou uma lista de atributos? Segundo Viveiros de Castro, a definição “pseudolegislativa” que ele próprio elabora não responde à questão de “quem é índio”, apenas fornece elementos para a garantia de direitos e a proteção contra discriminações daqueles identificados por terceiros – e pelo Estado – genericamente como índios. Ou seja: a definição responde primeiramente aos mundos jurídico e político, porque “[...] os enunciados de indianidade são enunciados performativos e não enunciados constativos, dependendo portanto de condições de felicidade e não de condições de verdade (no sentido de correspondência com um estado de coisas).” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 13). Disto

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decorre que “[...] não existem índios, apenas comunidades, redes (d)e relações que se podem chamar indígenas. Não há como determinar quem ‘é índio’ independentemente do trabalho de auto-determinação realizado pelas comunidades indígenas.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 14). A necessidade de uma definição técnica, ou normativa, ocorre porque os indivíduos e grupos indígenas passaram a necessitar de direitos específicos por conta das suas especificidades socioculturais e da sua relação diferenciada com o território, mas sobretudo pelas violências históricas sofridas desde a colonização. Como explica Luciano (2006):

Com o surgimento do movimento indígena organizado a partir da década de 1970, os povos indígenas do Brasil chegaram à conclusão de que era importante manter, aceitar e promover a denominação genérica de índio ou indígena, como uma identidade que une, articula, visibiliza e fortalece todos os povos originários do atual território brasileiro e, principalmente, para demarcar a fronteira étnica e identitária entre eles, enquanto habitantes nativos e originários dessas terras, e aqueles com procedência de outros continentes, como os europeus, os africanos e os asiáticos. (LUCIANO, 2006, p. 30).

Este movimento político e jurídico iniciado nos anos 70 procurou ser a resposta ao projeto de desenvolvimento nacional da ditadura civil-militar em relação à questão indígena, cujo objetivo era classificar para emancipá-los e, com isso, retirar a responsabilidade tutelar do Estado sobre os índios que teriam se tornado “não-índios”, conforme a visão estereotipada das elites políticas. Os movimentos indígenas que surgiam e os antropólogos tinham como objetivo demonstrar à sociedade que índio não era uma questão de cocar e arco e flecha, pois não se tratava de aparência, mas de um “estado de espírito”, ou um modo de ser da indianidade: “[...] designava para nós um certo modo de devir, algo essencialmente invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo de “diferença” anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 3). Neste sentido, a questão cultural obviamente importa para a “definição” e garantia de direitos. Mas, diante dos processos de exclusão e de violência contra os povos indígenas, é a dimensão política da categoria que influencia mais a questão sobre ser indígena: antes, no “processo civilizador” e modernizador da nossa República, ser índio era negativo e significava também um apelido pejorativo às populações simples do meio rural; hoje, com o reconhecimento constitucional e o dever de demarcação de terras indígenas, que inclusive tem incentivado processos de recuperação da indianidade e de etnogênese, ser índio, na visão de elites agrárias e do senso comum da sociedade, virou quase que algo banalizado, “bastando” a

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autodeclaração. Considerando que “indígena” significa “natural do lugar em que vive, gerado dentro da terra que lhe é própria” (HOUAISS, 2016), muitos sujeitos subalternos que se sentem mais pertencentes à terra do que proprietários dela podem se considerar indígenas, ou ao menos conectados e solidarizados de alguma forma aos primeiros indígenas do Brasil, os índios. Portanto, o “problema” não é o índio, mas a minoria branca latifundiária, herdeira do colonialismo, motivo pelo qual Viveiros de Castro inverte politicamente a questão: “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 10). A origem da definição do indígena enquanto uma “questão” nacional, do passado e do presente, está justamente nos processos de classificação social do colonialismo. Deste modo, o índio, habitante originário do continente conquistado pelo colonialismo europeu dos séculos XV e XVI, representa, por excelência, o sujeito estereotipado pelo discurso colonial e dominado pela colonialidade do poder. No tempo da conquista, vivia na América uma grande quantidade de sociedades diferentes, cada uma com sua organização social, línguas e cosmologias, não havendo “índios” ou outro conceito que qualificasse de maneira uniforme toda a população do continente; havia, e ainda há, a autodenominação de povos e etnias, como os Guarani, os Yanomami, etc. Em verdade, como alerta Bonfil Batalla (1972), havia algumas denominações genéricas entre as próprias etnias que estabeleciam diferenciações mais de ocupação geográfica, como os “chichimecas” do México, porém, “[...] los nombres que se dan a sí mismos muchos pueblos aborígenes significan conceptos tales como ‘los hombres’, ‘los hombres verdaderos’ y otros semejantes.” (BONFIL BATALLA, 1972, p. 111). A colonização, portanto, aplicou indiscriminadamente a toda população aborígene a categoria de “índios” ou “indígenas”, sabidamente por um erro geográfico da expedição espanhola, no intuito de estabelecer uma identidade genérica por contraste ao europeu e marcar o colonizado como aquele sem religião, bárbaro, inferior, vencido e desumanizado. Deste modo, toda a diversidade desta população entra na história europeia ocupando o mesmo local e identidade: “[...] nace el indio, y su gran madre y comadrona es el dominio colonial.” (BONFIL BATALLA, 1972, p. 112). A diferença colonial, nos termos de Mignolo (2010), não foi um juízo político utilizado para emancipar e impedir discriminações – como ocorre no mandamento constitucional do direito à igualdade na sua concepção material –, e sim um elemento proposital e estruturante da relação de dominação: não importavam as diferenças dos colonizados entre si, importava que fossem diferentes do colonizador. O índio, então, é uma categoria da situação colonial (BONFIL BATALLA, 1972). A diversidade está presente nos primeiros relatos da chegada dos espanhóis e

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portugueses, que demonstram um inicial deslumbramento com os costumes, beleza e mansidão dos habitantes do continente americano. Sua existência não era novidade, embora o que se esperava eram homens e mulheres selvagens e violentos. Pêro Vaz de Caminha, em sua carta a el-rei D. Manuel, de abril de 1500, relata a beleza, a limpeza, a saúde e a bondade dos índios, mas afirma não possuírem, na visão do cronista, organização social, política e líderes espirituais. Colombo também destaca, em suas cartas ao rei de Espanha, a generosidade dos povos da América Central (SOUZA FILHO, 2012, p. 29-30). Como a empresa colonial visava a expansão além-mar das fronteiras produtivas europeias, início do capitalismo mercantil enquanto sistema global, o deslumbramento não tardou a significar menor resistência à imposição da religião, do direito e da dominação aos povos indígenas, através da generalização e estereotipação dos sujeitos colonizados e da violência. Os números do genocídio praticado impressionam, embora a estimativa da população aborígene em 1492 seja controversa: em quadro com estudos demográficos diversos apresentado por Carneiro da Cunha (2012), estima-se que havia de 1 a 11,25 milhões habitantes nas terras baixas da América do Sul, e de 37 a 100 milhões em todo o continente americano na data da conquista. Na mesma época, estima-se que na Europa havia 60 milhões de habitantes, o que demonstra como “[...] um continente teria logrado a triste façanha de, com punhados de colonos, despovoar um continente muito mais habitado.” (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 17). Em relação ao Brasil, há estudos que indicam 6,8 milhões de habitantes naquela época vivendo na Amazônia, Brasil central e costa do Nordeste, com densidade de 14,6 habitantes por km², enquanto que a península ibérica, no mesmo período, apresentava 17 habitantes por km² de densidade demográfica (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 17). Hoje, não obstante o IBGE tenha incluído em seus censos, a partir de 1991, o recorte “indígena” na categoria “cor da pele”, não existe ainda um censo indígena que apresente dados definitivos. Segundo os critérios de autoidentificação do censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), haveria 817.963 indígenas no Brasil, divididos em 305 etnias que falam 274 línguas diferentes, além de 69 referências de índios ainda não contatados (FUNAI, 2016). Deste modo, é nítido perceber a depopulação severa ocorrida no continente desde a sua conquista, cujo motivo é eufemisticamente denominado de “encontro” de sociedades do Antigo e do agora Novo Mundo: no Brasil, uma população que estava na casa dos milhões em 1500 foi reduzida a menos de 900 mil indivíduos, conforme o dado anteriormente apresentado. Embora as epidemias tenham sido um dos principais motivos desta depopulação, “[...] os micro-organismos não incidiram num vácuo social e político, e sim num mundo

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socialmente ordenado.” (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 15). Carneiro da Cunha (2012) apresenta outros motivos da verdadeira catástrofe demográfica da América:

O exacerbamento da guerra indígena, provocado pela sede de escravos, as guerras de conquista e de apresamento em que os índios de aldeia eram alistados contra os índios ditos hostis, as grandes fomes que tradicionalmente acompanhavam as guerras, a desestruturação social, a fuga para novas regiões das quais se desconheciam os recursos ou se tinha de enfrentar os habitantes [...], a exploração do trabalho indígena, tudo isso pesou decisivamente na dizimação dos índios. (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 15).

Muitos antropólogos apostavam, nos anos 70, por conta da diminuição populacional, das políticas homogeinizadoras de perda da indianidade e do genocídio permanente, que os indígenas iriam desaparecer enquanto etnias culturalmente identificáveis. Para o Estado brasileiro, a desindianização e o desaparecimento das etnias era algo inclusive desejável, cujo caminho era a desvinculação de sua relação com a terra, para posteriormente transformar-se em cidadão pobre do projeto de sociedade nacional. Bonfil Batalla (1972) alude a outro desaparecimento, este necessário ao índio: a do índio enquanto categoria colonial, porquanto as etnias indígenas sempre existirão como o “[...] resultado de procesos históricos específicos que dotan al grupo de un pasado común y de una serie de formas de relación y códigos de comunicación que sirven de fundamento para la persistencia de su identidad étnica.” (BONFIL BATALLA, 1972, p. 122). Neste sentido, prossegue o autor:

La categoría indio o indígena es una categoría analítica que nos permite entender la posición que ocupa el sector de la población así designado dentro del sistema social mayor del que forma parte: define al grupo sometido a una relación de dominio colonial y, en consecuencia, es una categoría capaz de dar cuenta de un proceso (el proceso colonial) y no sólo de una situación estática. Al comprender al indio como colonizado, lo aprehendemos como un fenómeno histórico, cuyo origen y persistencia están determinados por la emergencia y continuidad de un orden colonial. En consecuencia, la categoría indio implica necesariamente su opuesta: la de colonizador. El indio se revela como un polo de una relación dialéctica, y sólo visto así resulta comprensible. El indio no existe por sí mismo sino como una parte de una dicotomía contradictoria cuya superación – la liberación del colonizado – significa la desaparición del propio indio. (BONFIL BATALLA, 1972, 122).

Assim, entender o indígena como uma categoria colonial significa compreender o processo histórico de colonialidade do ser e do saber, as relações com a política indigenista e a tentativa de integração à comunhão nacional, enquanto um projeto positivista que permeou nossa história política por muito tempo e ainda hoje ressurge em movimentos legislativos e judiciais. Não significa, obviamente, negar a pluralidade de povos com cosmologias diversas, que não são um objeto do passado vivendo no presente, mas grupos que se reinventam diante

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da sociedade de que fazem parte no presente, inclusive reivindicando a categoria genérica de indígenas para a luta política comum contra retrocessos normativos. Assim, conforme Viveiros de Castro (2006), “[...] ser índio é como aquilo que Lacan dizia sobre o ser louco: não o é quem quer. Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 7).

2.1.2 Colonialismo interno e políticas de aculturação

No Brasil, as leis e regimentos sobre povos indígenas sempre foram parcos e esparsos, e em larga medida subsidiários da política de terras. Fato que corrobora esta omissão é a inexistência de menção aos índios ou aos seus direitos nas Constituições de 1824 e de 1891. De qualquer sorte, assim como o indígena é uma categoria da situação colonial, também a organização normativa e política da sua situação, do período colonial até a Constituição de 1988, reflete a colonialidade do poder, do saber e a do ser. Neste sentido, o caminho percorrido até o atual paradigma do reconhecimento, que irradia deveres de respeito e promoção das diferenças, foi tortuoso na história jurídico-política brasileira: desde a colonização até a promulgação da Constituição Federal de 1988, é possível afirmar que a política oficial destinada aos povos indígenas foi a da aculturação, tanto na dimensão da assimilação cultural, quanto na subsequente ideia de integração à sociedade nacional não-indígena (SILVA, 2015, p. 34). A assimilação, enquanto processo mais violento e explícito da colonialidade, perdurou como paradigma durante todo o período colonial. Esta postura estatal visava a uma verdadeira aniquilação da alteridade, física e simbólica, cuja relação era pautada pela exploração da mão-de-obra através da escravidão, pela catequese agressiva como política oficial e pelas “guerras justas” contra os povos considerados hostis, que não aderissem à fé cristã ou à entrega de seus territórios (KAYSER, 2009, p. 144). Logo após a chegada dos portugueses, as relações com os povos indígenas foram de cooperação e de trocas de utensílios pelo pau-brasil, pois interessava à Coroa ver prosperar sua colônia, mas também garanti-la politicamente: era estratégico manter aliados indígenas nas suas lutas contra os franceses, holandeses e espanhóis, bem como nas fronteiras (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 19). Não havia, portanto, uma política indigenista, mesmo porque neste primeiro período não ocorreu um efetivo povoamento do Brasil. Nos ciclos econômicos seguintes, ou seja, da cana-de-açúcar, do ouro, do diamante, do algodão e do café, houve expansão territorial e a necessidade de maior mão-de-obra, a qual foi suprima

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pela escravidão dos índios, uma vez que as Ordenações Manuelinas (1521) e Filipinas (1603) autorizavam. A escravidão indígena somente foi proibida por lei em 1831 (KAYSER, 2009, p. 100). Outro aspecto da aculturação como política formal era a “civilização e conversão dos gentios à fé cristã”, cujos objetivos eram a tomada de territórios, a utilização como mão-deobra e a legitimação da presença da Coroa portuguesa no Brasil, a partir do mandado outorgado pelo Papa para a tarefa da conversão. A catequese e “civilização” eram impostas mediante coação e violência, e os indígenas aldeados eram legalmente submetidos a trabalhos forçados aos colonos, à Coroa e às ordens religiosas. A separação entre o poder secular e o espiritual sobre os índios somente ocorreu em 1757 (KAYSER, 2009, p. 134). A transição para a segunda dimensão do paradigma da aculturação, o integracionismo, ocorreu nos moldes já narrados da afirmação da modernidade eurocêntrica em nível mundial, com o cientificismo, o Estado-nação, o individualismo e o capitalismo. Além disso, a formação oligárquica do Estado brasileiro muito revela sobre a posição subalterna que as coletividades nativas teriam mesmo após a independência:

Revela-se, assim, em seu processo constitutivo, que o Estado brasileiro, além de incorporar a montagem patrimonialista e centralizadora do sistema de administração lusitana, surge sem uma identidade nacional, completamente desvinculado dos objetivos de sua população de origem e da pluralidade cultural existente no corpo de sua sociedade. [...] A composição entre o poder aristocrático da coroa com as elites agrárias locais permite, historicamente, no período mesmo que sucede a Independência, consolidar o projeto nacional de segmentos sociais possuidores da propriedade, do capital e do monopólio do mercado. (WOLKMER; FAGUNDES, 2013, p. 332).

Neste sentido, tal paradigma caracterizou as relações com os povos indígenas durante o período monarquista, mas sobretudo a partir do final do século XIX, com a República, quando as ideias positivistas e evolucionistas de desenvolvimento linear da humanidade colocavam os povos indígenas como representantes de um estágio anterior e primitivo, sem direito à própria história. Em outras palavras, os índios estariam “[...] em um estágio de transição que desapareceria na medida em que as comunidades indígenas fossem incorporadas de maneira gradual e harmônica à sociedade nacional” (KAYSER, 2009, p. 161). Paradoxalmente, é neste período que a humanidade dos índios é questionada, e não no período das grandes violências coloniais, cuja dúvida sobre a existência de alma não impedia o reconhecimento de se tratarem de homens e mulheres. Segundo Carneiro da Cunha (2012), o cientificismo do século XIX estava preocupado em descobrir e demarcar os limites

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do humano: “Blumenbach, um dos fundadores da antropologia física, por exemplo, analisa um crânio de Botocudo e o classifica a meio caminho entre o orangotango e o homem.” (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 58). O Brasil, agora uma República liderada por elites herdeiras do colonialismo, buscava consolidar um projeto forjado de nação com sua própria identidade, na qual o índio haveria de ocupar outro papel que o do período colonial e imperial: o de bom-selvagem, integrado gradualmente à sociedade nacional. Por conta disto que, juridicamente, o integracionismo fixava os povos indígenas em uma “infância social” e, por isso, o tratamento dispensado foi através da tutela orfanológica, que visava a mudança da condição de escravo para o trabalho assalariado, em uma época onde a participação na produção era requisito para a cidadania. Deste modo, de acordo com o Regimento dos Órfãos de 27 de outubro de 1831, os índios foram entregues à administração do Juiz de Órfãos, juntamente com os “rústicos”, os “ignorantes” e os “vadios”. Todavia, dentre os indígenas, aqueles que fossem artesãos e, portanto, de certo modo independentes financeiramente, estavam excluídos desta proteção (CARNEIRO DA CUNHA, 1989, p. 111). Por conta disso, havia alguma proteção e condições de desenvolvimento, através da atração, vigilância e pacificação exercidas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão tutelar estatal criado em 1910 sob influências positivistas e vinculado ao Ministério da Agricultura, o que ressaltava o seu caráter integracionista e de transformação dos indígenas em cidadãos da engrenagem capitalista do Estado nacional. Além disso, os índios eram classificados de acordo o grau de integração à sociedade, e como nômades ou aldeados, para que as políticas de integração fossem direcionadas (KAYSER, 2009, p. 163). É neste período que pela primeira vez há menção expressa aos índios em uma Constituição, a de 1934: além da previsão das terras indígenas, constava como competência privativa da União legislar sobre “a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” (BRASIL, 1934). Este regramento exíguo – incorporação e posse das terras – é repetido nas Constituições subsequentes, sem qualquer outro direito específico, até a de 1988. Note-se, também, que o termo discriminatório utilizado, “silvícola”, denota o morador da selva, indicando que o índio morador das cidades deixaria de ser índio. Com relação à capacidade civil no paradigma integracionista, a Lei nº 3.071, que instituiu o Código Civil de 1916, considerava os índios como relativamente incapazes a certos atos da vida civil, incluindo-os no art. 6º. Em verdade, Clóvis Bevilacqua, idealizador do projeto, entendia que os índios mereciam legislação especial, pois, diante das suas formas coletivas de relações sociais, não cabia a um código de leis privadas os regular. Somente com

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a emissão do projeto ao Senado que houve a inclusão nesta categoria, por emenda de Muniz Freire (CARNEIRO DA CUNHA, 1989, p. 116-117). Avaliando esta mudança de tutela, Souza Filho (1993) afirma que: [...] é extremamente frágil a solução jurídica, no direito moderno, de oferecer aos índios uma tutela orfanológica, porque, a tutela, desde Roma, passando pelas Ordenações do Reino e chegando ao Código Civil brasileiro, é instrumento de proteção individual, incabível para uma coletividade e, muito menos, para várias coletividades cultural e etnicamente diferenciadas. (SOUZA FILHO, 1993, p. 302).

De fato, o caráter coletivo dos bens e relações indígenas sempre foi ignorado pelas políticas indigenistas. Nota-se pelo contexto do Código Civil de 1916: início do século XX, quando havia pouca intervenção e o Estado era ainda liberal. Por este motivo, as regras de relação entre as pessoas e seus bens eram orientadas por uma normatividade privada. O Código Civil de 2002, Lei nº 10.406, em contrapartida, reconhece a especialidade da capacidade indígena e determina que o assunto deve ser tratado em lei especial. No final da década de 60, o SPI enfrentou severas acusações de irregularidades administrativas, corrupção e gestão fraudulenta do patrimônio indígena, em especial dos recursos naturais das suas terras. Como consequência, o governo prometeu punir os responsáveis e criar outro órgão de proteção aos índios. Em 1967, então, surge a FUNAI, Fundação Nacional do Índio, que até os dias atuais pratica uma política de representação em vez de assistência (ALBUQUERQUE, 2008, p. 201). As críticas direcionadas à política indigenista também forçaram o governo federal a elaborar nova legislação a respeito. Em 1973, então, promulga-se a Lei nº 6.001, o Estatuto do Índio, que até hoje não foi substituído por outra lei mais condizente com o atual momento constitucional. Logo no art. 1º, o diploma define seu objetivo principal: “[...] integrar os índios à sociedade brasileira, assimilando-os de forma harmoniosa e progressiva” (BRASIL, 1973). Embora a tutela exista como forma de assistência, a falta de força política do órgão indigenista, a FUNAI, faz com que interesses conflitantes, especialmente ligados aos territórios tradicionais exploráveis economicamente, sejam postos acima dos interesses e direitos dos povos indígenas; a tutela é usada como coação e substituição da vontade (CARNEIRO DA CUNHA, 1989, p. 29). Entretanto, a tutela poderia cessar por pedido do indígena interessado. O Estatuto enumera, no art. 9º, os requisitos para tanto: idade mínima de 21 anos, conhecimento da língua portuguesa, habilitação para o exercício de atividade útil na comunhão nacional e

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razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional. Esta possibilidade relaciona-se com a questão relativa ao sujeito de proteção, ou quem é considerado “índio” pelo Estatuto. O art. 4º apresenta uma tipologia de acordo com o nível de assimilação à sociedade: Art 4º Os índios são considerados: I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional; II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura. (BRASIL, 1973).

Enquanto regime jurídico que silenciava reivindicações e protagonismo, a tutela foi especialmente eficaz na ditadura civil-militar instaurada. Neste período, o ideal de “progresso” e de expansão das fronteiras agrícolas tornou os indígenas “obstáculos” ao desenvolvimento do país, e as ações violentas e de esbulho possessório foram intensificadas. Neste sentido, os órgãos tutelares aliaram-se aos órgãos repressores da ditadura para monitorar e perseguir as lideranças indígenas que pleiteavam direitos próprios. Considerando que os processos de descolonização da segunda fase do colonialismo moderno ocorreram em meados do século XX – conforme anteriormente descrito na seção que tratou dos estudos pós-coloniais – e que o Brasil já não era mais colônia de Portugal há mais de um século, a persistência de uma política tutelar que objetivava a integração, por meio de violência e tomada de territórios tradicionais, caracterizou o que pesquisadores da década de 60 consideraram como colonialismo interno. A motivação era procurar responder por que razão, apesar de transformações sociais significativas no campo, na cidade, na educação e na estratificação social, resultado de processos de independência política, a estrutura colonial restava intacta nos países da América Latina (GUILLÉN, 2014, p. 90). A estruturação das sociedades latino-americanas, após as independências, mantinha elites criollas reproduzindo a colonialidade e impedindo a inclusão da população negra e indígena escravizada, a não ser pela assimilação. No Brasil, o sentimento de nação e a criação de um imaginário coletivo nacionalista pós-independência ficou restrito às camadas privilegiadas, cujas narrativas sobre a nação, inclusive literárias, podem ser consideradas uma “hermenêutica de elite”, que não consideraram os indígenas, os negros e coletividades nativas locais como sujeitos coletivos que constroem e disputam os significados e os limites da

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nacionalidade (HASHIZUME, 2013, p. 10). Tal processo ocorria também em nível internacional: segundo Clavero (2014), os primeiros tratados de direitos humanos continham cláusulas forçadas pelos países colonialistas para reconhecer formalmente a existência de territórios “sob administração fiduciária” ou “não-autônomos”. Embora houvesse a proibição de discriminação de direitos a às populações destes territórios, o reconhecimento formal do colonialismo colocava em cheque a pretensa universalidade dos direitos humanos e bloqueava a livre determinação dos povos através de uma cláusula de aparente inclusão (CLAVERO, 2014, p. 105). A chamada “cláusula colonial”, cujo exemplo mais marcante é a expressa no parágrafo segundo do artigo segundo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 194825, “[…] respondió a una práctica a menudo innominada en virtud de la cual los tratados que, por las obligaciones que se contraían, pudieran implicar derechos, estos, los derechos, no eran extensibles a las colonias.” (CLAVERO, 2014, p. 101). Em relação aos povos indígenas, tampouco a cláusula de não discriminação a eles se aplicava – somente aos países colonizados –, excluindo-os deliberadamente da proteção internacional. Sobre as discussões paralelas da Convenção para a Prevenção e Sanção do Delito de Genocídio, também de 1948, Clavero identifica que países como o Brasil entendiam que a assimilação dos povos indígenas era normal, e que, portanto, não poderiam ser sujeitos desses direitos universais, o que demonstra um colonialismo interno (CLAVERO, 2014). Assim, a categoria do colonialismo interno continha também um valor político, pois buscava dar evidência aos processos de discriminação e exclusão principalmente dos povos indígenas, além de fornecer elementos às lutas políticas dos movimentos sociais por democracia, reforma agrária, demarcação de terras e reconhecimento cultural. Os enfoques acadêmicos da época estava centrado demais no marxismo e na ideia de classe, por isso partidos comunistas, movimentos guerrilheiros e estudantis não lograram compreender as lutas camponesas e indígenas radicais, ignorando o conceito e seu potencial explicativo (GUILLÉN, 2014, p. 93). Segundo Casanova (2006), o conceito e suas condições podem ser definidos da seguinte maneira:

A definição do colonialismo interno está originalmente ligada a fenômenos de conquista, em que as populações de nativos não são exterminadas e formam parte, 25

Art II, 2 - Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. (ONU, 1948).

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primeiro do Estado colonizador e depois do Estado que adquire uma independência formal, ou que inicia um processo de libertação, de transição para o socialismo, ou de recolonização e regresso ao capitalismo neoliberal. Os povos, minorias ou nações colonizadas pelo Estado-nação sofrem condições semelhantes às que os caracterizam no colonialismo e no neocolonialismo em nível internacional: 1) habitam em um território sem governo próprio; 2) encontram-se em situação de desigualdade frente às elites das etnias dominantes e das classes que as integram; 3) sua administração e responsabilidade jurídico-política concernem às etnias dominantes, às burguesias e oligarquias do governo central ou aos aliados e subordinados do mesmo; 4) seus habitantes não participam dos mais altos cargos políticos e militares do governo central, salvo em condição de “assimilados”; 5) os direitos de seus habitantes, sua situação econômica, política social e cultural são regulados e impostos pelo governo central; 6) em geral os colonizados no interior de um Estado-nação pertencem a uma “raça” distinta da que domina o governo nacional e que é considerada “inferior”, ou ao cabo convertida em um símbolo “libertador” que forma parte da demagogia estatal; 7) a maioria dos colonizados pertence a uma cultura distinta e não fala a língua “nacional”. (CASANOVA, 2006, p. 396).

Stavenhagen (1981), no ensaio “Siete tesis equivocadas sobre América Latina”, elabora críticas ao dualismo do conceito, uma vez que não haveria o encontro de uma sociedade capitalista com outra arcaica, pois ambos os polos seriam o resultado de um único processo histórico. Assim, haveria a relação entre essas duas realidades dentro de uma mesma sociedade e de um mesmo sistema: o capitalismo (STAVENHAGEN, 1981). Casanova incorporou tais críticas em novo artigo e tratou de explicar as reificações que o conceito sofreu desde sua elaboração, redefinindo sua compreensão e garantindo seu potencial analítico e político para explicar fenômenos atuais (CASANOVA, 2006). No Brasil, o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, ainda nos anos 6026, apreendeu o conceito e aplicou-o à realidade da política indigenista e dos conflitos fundiários da época. Assim como seu conceito pioneiro de “fricção interétnica” – que buscou demonstrar o contato entre indígenas e segmentos da sociedade brasileira no seu caráter conflitual, rompendo com as ideias de assimilação da época –, o colonialismo interno também foi destacado como conceito de potencial político:

Nos casos do Brasil e do México, como tentei mostrar, os conceitos de colonialismo interno, de fricção interétnica e de etnodesenvolvimento, cada um de per se, apontam para a dimensão política das relações interétnicas, o que significa dizer que mesmo que os estudos étnicos objetivem a compreensão ou a explicação de tal ou qual povo indígena, é o contexto nacional envolvente que se impõe com muita força ao horizonte da disciplina e, por via de conseqüência, à construção do ponto de vista do pesquisador. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1993, p. 27).

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Embora a referência apresentada neste trabalho seja de artigo de 1993, o próprio antropólogo indica neste artigo a obra em que primeiro escreveu sobre o conceito e sua relação com a realidade política dos povos indígenas no Brasil: o artigo “A noção de ‘colonialismo interno’ na etnologia”, publicado na Revista Tempo Brasileiro, ano 4, nº 8, de 1966, e republicado no seu livro “A sociologia do Brasil indígena”, de 1978.

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Portanto, o colonialismo interno, apesar de não se limitar aos aspectos econômicos e políticos de dominação, pois também inclui o cultural, procura explicar de forma mais objetiva e direta a dominação por vezes formal exercida sobre os povos indígenas, o que é mais claramente observável em um regime jurídico tutelar e de política integracionista. Hoje, a colonialidade do poder tende a englobar o que o colonialismo interno busca denunciar e explicar. Porém, se observados, no atual paradigma, elementos de tutela, impedimentos à autodeterminação, retóricas de integração e práticas violentas contra lideranças e territórios indígenas, o conceito poderá vir à tona paralelamente à colonialidade do poder, demonstrando como poder ser paradoxal e preocupante sua atualidade.

2.1.3 A mudança de paradigma no Brasil e na América Latina: do integracionismo ao reconhecimento das diferenças

Ainda na década de 70, a colonialidade que marcou a relação dos Estados latinoamericanos com os povos indígenas começou a se modificar através de uma tendência constitucional em reconhecer as comunidades indígenas como portadoras de identidades étnicas próprias. Apesar disso, tal constitucionalismo estava moldado no paradigma do bemestar social, cujo objetivo era integrar os povos indígenas ao Estado e ao mercado, sem qualquer ruptura com o modelo de Estado-Nação e com o monismo jurídico. Por isto, pode ser denominado “constitucionalismo social integracionista” (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 139). Da mesma forma que a questão indígena passou a ser uma questão militar, quando das ditaduras civis-militares instauradas nos países latino-americanos nas décadas de 60 e 70, a redemocratização iniciada na década de 80 teve reflexos também na política indigenista. Intensas mobilizações da sociedade civil e de organizações indígenas ajudaram a reescrever as constituições políticas e a garantir direitos coletivos de acordo com as especificidades culturais de cada país. Neste período de transição dos regimes autoritários, de 1982 a 1988, identificam-se reformas constitucionais que introduzem o conceito de diversidade cultural e, consequentemente, direitos indígenas específicos ao território, à língua e às tradições, motivo pelo qual Yrigoyen Fajardo (2011) denomina de ciclo do “constitucionalismo multicultural” (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, 141). O processo não foi diferente no Brasil: ainda no final da década de 70, a partir de movimentos de recuperação de territórios, os povos indígenas passaram a demandar uma relação mais direta e autônoma com o Estado, sem esperar passivamente pela ação do órgão

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tutelar. Apesar de não haver uma representação política nacional, “[...] o primeiro passo nesse sentido veio com a quebra do isolamento em que até então se encontravam, através dos intercâmbios de experiência desenvolvidos durante a fase das assembleias indígenas” (LACERDA, 2014, p. 379). Neste sentido, a União das Nações Indígenas (UNI), organização criada em 1980 que nunca se institucionalizou, promoveu certa unidade política com a mobilização “Povos Indígenas na Constituinte”, que buscava garantir uma política indigenista não mais de cima para baixo. Apesar de nenhum dos oito candidatos indígenas 27 apresentados terem sido eleitos para a Constituinte, e apesar de não haver nenhum deputado ou senador representando diretamente a causa indígena, o apoio de organizações da sociedade civil unidas em torno de um “programa mínimo de direitos indígenas” foi determinante (KAYSER, 2009, p. 189). Portanto, a política integracionista somente foi superada, no Brasil, pela promulgação da Constituição Federal de 1988, que “[...] não repetiu o dispositivo que constou em todas as constituições republicanas (com exceção da Constituição de 1937), que dispunha a incorporação dos indígenas à comunhão nacional.” (LEIVAS; RIOS; SCHÄFER, 2014, p. 377). Mais do que isso: passou a reconhecer no art. 231 o direito à diferença e à titularidade permanente de direitos coletivos e, no art. 232, a superação da tutela, ao reconhecer-lhes a legitimidade processual para, individual ou coletivamente, ingressar em juízo na defesa de seus direitos e interesses, com a intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo. De fato, a partir da Constituição, houve uma implementação progressiva de estruturas para atender às demandas jurídicas das comunidades, para cuja tarefa o Ministério Público Federal designou Procuradores da República em todos os estados (SOUZA FILHO, 2002, p. 49-50). O art. 215, §1º, declara que “[...] as manifestações das culturas indígenas (ao lado de outras manifestações culturais) fazem parte do processo civilizatório nacional, promove a superação de uma concepção de civilização colonialista e de monismo cultural.” (LEIVAS; RIOS; SCHÄFER, 2014, p. 377). Assim, concretiza-se a sociedade “pluralista e sem preconceitos” mencionada no preâmbulo da Constituição, devendo ser respeitados, protegidos e promovidos os costumes, as línguas, as crenças e as tradições de todos os grupos. Além disso, garantidos estes direitos constitucionalmente, a questão passa de simples policy, ou

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Os candidatos eram: Davi Yanomami (conhecido também como Davi Kopenawa), PT de Roraima; Gilberto Pedroso Lima Macuxi, PT de Roraima; Álvaro Tukano, PT do Amazonas; Biraci Brasil Iauanauá, PT do Acre; Nicolau Tsereowe Xavante, PDT do Mato Grosso; Idjahúri Karajá, PMDB de Goiás; Marcos Terena, PDT do Distrito Federal; e Mário Juruna Xavante, PDT do Rio de Janeiro, que havia sido eleito Deputado Federal em 1982, com 31.805 votos pelo PDT do Rio de Janeiro também (KAYSER, 2009, p. 189).

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políticas estatais elaboradas por conveniência, para um problema de law, ou direito, previsto e exigível judicialmente (CLAVERO, 1994, p. 113). Em relação a direitos sociais, foi-lhes assegurado expressamente o direito à educação diferenciada, conforme redação do §2º do art. 210, exigindo que as políticas educacionais indígenas sejam elaboradas com vistas a garantir o direito a uma educação bilíngue, intercultural e de qualidade, o que está enunciado em normas infraconstitucionais posteriormente editadas pelo Ministério da Educação e pelo Conselho Nacional de Educação (LEIVAS; RIOS; SCHÄFER, 2014, p. 381). Mas o destaque maior dado pelo Constituinte aos povos indígenas certamente foi o reconhecimento de sua territorialidade própria, através da garantia do direito originário e imprescritível sobre as terras tradicionalmente ocupadas, a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos nelas existentes e o dever da União em demarcá-las. Estes direitos e características se encontram principalmente nos parágrafos do art. 231, e são objeto de análise posterior. Os direitos coletivos possuem natureza difusa porque sua titularidade não pode ser individualizada. São garantidos a todos os membros do grupo em questão sem se confundirem com os direitos individuais exercidos por todos individualmente. Assim, a garantia de direitos coletivos não inviabiliza o desfrute de direitos humanos individuais; a própria natureza das relações dos povos indígenas permite que os direitos individuais sejam garantidos através dos direitos coletivos e não contra ou em lugar deles. Dentre eles, o fundamental diz respeito ao território, pois é o espaço onde os povos exercem controle político e manifestam sua cultura (GÓMEZ, 2002, p. 267-268). A transição de paradigma também é observada no sistema universal dos direitos humanos, sobretudo pela substituição da Convenção n° 107 da OIT, de 1957. A OIT foi criada em 1919 com o objetivo de melhorar as condições de trabalho no mundo. Ao olhar para os trabalhadores rurais, percebeu que grande parte provinha de povos indígenas e tribais, então passou a dirigir ações específicas a estes grupos. Com a necessidade de contar com uma norma específica, a OIT aprovou a Convenção nº 107, reconhecendo o direito à terra, ao trabalho e à educação destes grupos. Apesar de importante, a Convenção nº 107 estava ligada a uma perspectiva colonialista e marcada por um duplo enfoque: culturalista, ao hierarquizar culturas visando à integração, e estruturalista, considerando o “problema indígena” como solucionável pela via econômica, através de obras de desenvolvimento para a integração à sociedade não indígena (IKAWA, 2008, p. 497). A Convenção nº 107 localizava-se, deste modo, exatamente no paradigma

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integracionista, ou no constitucionalismo social integracionista a que Yrigoyen Fajardo (2011) alude. Em contrapartida, o novo instrumento adotado, a Convenção n° 169 Sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, de 198928, avança significativamente no reconhecimento cultural, no direito à autodeterminação, à consulta prévia, à territorialidade, a novas formas de participação e, inclusive, à autodeclaração como critério fundamental de pertencimento aos grupos por ela protegidos. Os principais pontos estabelecidos pela nova Convenção podem ser sistematizados da seguinte forma:

- A necessidade de adoção do conceito de povos indígenas no âmbito do direito interno. - O princípio da auto-identificação como critério de determinação da condição de índio. - O direito de consulta sobre medidas legislativas e administrativas que possam afetar os direitos dos povos indígenas. - O direito de participação dos povos indígenas, pelo menos na mesma medida assegurada aos demais cidadãos, nas instituições eletivas e nos órgãos administrativas responsáveis por políticas e programas que os afetem. - O direito dos povos indígenas de decidirem suas próprias prioridades de desenvolvimento, bem como o direito de participarem da formulação, da implementação e da avaliação dos planos e dos programas de desenvolvimento nacional e regional que os afetem diretamente. - O direito dos povos indígenas de serem beneficiados pela distribuição de terras adicionais, quando as terras de que disponham sejam insuficientes para garantir-lhes o indispensável a uma existência digna ou para fazer frente a seu possível crescimento numérico. - O direito a terem facilitadas a comunicação e a cooperação entre os povos indígenas através das fronteiras, inclusive por meio de acordos internacionais. (ARAÚJO, 2006, p. 59-60).

Embora a própria Convenção afirme que o termo “povos” não “[...] deverá ser interpretado como tendo qualquer implicação com o que se refira a direitos que lhe possam ser atribuídos no direito internacional” (OIT, 1989), ou seja, sem alcance jurídico, pode-se perceber como uma tentativa de superar denominações que não ressaltam a identidade e a organização social específicas destes grupos étnicos, como minoria étnica. Este termo pressupõe amparo aos indivíduos que pertencem a uma determinada minoria, pois a diferença os descaracteriza e é, portanto, prejudicial. Já povo pressupõe reconhecimento das diferenças e, portanto, de sujeitos de direitos especiais. Minoria implica proteção e integração; povo, distinção e autonomia (CLAVERO, 1994, p. 84). Conquanto se reconheça que a Convenção 169 não refere expressamente o direito de livre determinação, seu conteúdo remete a tal interpretação, mesmo porque sua motivação se

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A Convenção nº 169, originalmente de 1989, foi publicada no Diário do Congresso Nacional em 1993, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 143 em 2002 e, no mesmo ano, ratificada. Somente em 19 de abril de 2004 foi promulgada, através do Decreto de Execução nº 5.051.

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deu em superar o caráter integracionista da Convenção nº 107. Já no preâmbulo demonstra-se a necessidade de os povos controlarem suas instituições próprias dentro do marco do Estado em que vivem. A partir disso, Gómez (2002) propõe alguns aspectos centrais da reivindicação pelo direito à livre determinação e autonomia dentro dos Estados nacionais:

a) ejercer el derecho a desarrollar sus formas específicas de organización social, cultural, política y económica; b) obtener el reconocimiento de sus sistemas normativos internos para la regulación y sanción en tanto no sean contrarios a las garantías individuales y a los derechos humanos, en particular, los de las mujeres; c) acceder de mejor manera a la jurisdicción del Estado; d) acceder de manera colectiva al uso y disfrute de los recursos naturales, salvo aquellos cuyo dominio corresponda a la nación; e) promover el desarrollo de los diversos componentes de su identidad y patrimonio cultural; f) interactuar en los diferentes niveles de representación política, de gobierno y de administración de justicia; g) concertar con otras comunidades, de sus pueblos o de otros, la unión de esfuerzos y coordinación de acciones para optimización de sus recursos, el impulso de sus proyectos de desarrollo regional y, en general, para la promoción y defensa de sus intereses; h) designar libremente a sus representantes, tanto comunitarios como en los órganos de gobierno municipal, de conformidad con las tradiciones propias de cada pueblo; i) promover y desarrollar sus lenguas y culturas, así como sus costumbres y tradiciones tanto políticas como sociales, económicas y culturales. (GÓMEZ, 2002, p. 252-253).

As reivindicações demonstram a possibilidade de exercício de autonomia sem que seja afetada a soberania estatal; não implicam necessariamente em separatismo. Por conta desta influência na incorporação de novos direitos por países latino-americanos, a Convenção nº 169 inclui-se em outro ciclo de reformas constitucionais, o chamado “constitucionalismo pluricultural”, presente de 1989 a 2005. Segundo Yrigoyen Fajardo (2011), neste ciclo as Constituições “[...] introducen fórmulas de pluralismo jurídico que logran romper la identidad Estado-derecho o el monismo jurídico, esto es, la idea de que sólo es ‘derecho’ el sistema de normas producido por los órganos soberanos del Estado”29 (YRIGOYEN 29

O pluralismo jurídico vem sendo estudado e reivindicado há tempos, não apenas no contexto dos povos indígenas, mas por conta do surgimento de novos atores sociais em busca de regulamentação própria para suprir suas necessidades em um contexto de inoperância das funções lógico-formais da ordem jurídica estatal. Esse conjunto de fatores da crise do Estado permite o surgimento de grupos organizados em função de necessidades, ou seja, o começo do pluralismo funda-se na exigência – e ausência – de direitos pelos novos atores: os movimentos sociais. Surge, assim, uma racionalidade caracterizada pela coexistência de diferenças e também a diversidade de sistemas jurídicos cercada pela multiplicidade de fontes normativas informais e difusas. Wolkmer (2001), em obra seminal, apresenta um conceito: “há de se designar o pluralismo jurídico como a multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais.” (WOLKMER, 2001, p. 219). Os povos indígenas não são atores sociais que surgem da crise estatal, pois suas formas de organização já eram praticadas antes mesmo da colonização do Estado. É possível, contudo, estender o pluralismo jurídico progressista e emancipatório aos povos indígenas, reconhecendo sua estrutura normativa

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FAJARDO, 2011, p. 142). O ciclo seguinte de reformas constitucionais no continente pode ser denominado “constitucionalismo plurinacional”, cujos marcos são os processos constituintes da Bolívia (2006-2009) e do Equador (2008), bem como a aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 2007. Neste ciclo, os povos indígenas não são mais vistos timidamente como “culturas diversas” para quem o Estado “reconhece” direitos, mas como nações originárias com autodeterminação que definem o novo modelo de Estado. Estas Constituições “[...] buscan superar la ausencia de poder constituyente indígena en la fundación republicana y pretenden contrarrestar el hecho de que se las haya considerado como menores de edad sujetos a tutela estatal a lo largo de la historia.” (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 149). Dentre as temáticas do ciclo, encontram-se novos direitos sociais baseados nas cosmovisões dos povos indígenas, como o direito à água, ao “bem viver” (Sumak Kawsay) e à segurança alimentar, além de novos sujeitos de direito, como a natureza – Pachamama – na Constituição do Equador. Ao incorporar o pluralismo jurídico, a plurinacionalidade e a interculturalidade, as Constituições e Declarações do século XXI afirmam um projeto de descolonialidade, a partir de grande organização popular de movimentos sociais indígenas que promovem verdadeira desobediência epistêmica. O então chamado “novo constitucionalismo latino-americano” é “[...] um constitucionalismo que vem das bases e é por esta influenciado, um ‘constitucionalismo desde abajo’; no qual o poder constituinte popular se sobrepõe ao poder constituído.” (WOLKMER; FAGUNDES, 2013, p. 339). Por fim, importante mencionar, também, a recente Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em junho de 2016, após anos de tramitação. Embora não contenha as mesmas ideias de refundação do Estado das Constituições boliviana e equatoriana, a partir de processos constituintes populares, inclui-se no ciclo de reformas que garantem a autodeterminação, a autoidentificação, o direito ao desenvolvimento próprio, a organização social e política e o direito à consulta prévia, sendo um marco para a região. Nesta transição de constitucionalismos ou de paradigmas, é possível identificar elementos jurídicos que possibilitam uma análise de políticas, normas e leis por comparação e contraste. Rodríguez Garavito e Baquero Díaz (2015), por exemplo, propõem uma tipologia que dialoga com os ciclos constitucionais de Yrigoyen Fajardo (2011). Em relação ao interna e regras de convivência como normas jurídicas fora do âmbito estatal. É exatamente isto que s normas internacionais e Constituições latino-americanas mais avançadas propõem.

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paradigma do “liberalismo integracionista”, definem sendo aquele em que a demanda central é a liberdade e a igualdade formal, cujo princípio norteador é a assimilação sem discriminação e o paradigma jurídico seria a regulação. Os povos indígenas teriam o status de “objetos de políticas”, as fontes seriam as Constituições nacionais e a Convenção 107 da OIT, e atores centrais das políticas seriam somente os governos (RODRÍGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015, p. 41). O paradigma do “multiculturalismo hegemônico” avançaria para uma demanda central de diversidade, mas ainda sob a perspectiva da igualdade formal. Isto porque o princípio norteador seria da diversidade com participação, o paradigma seria a governança e os indígenas permaneceriam limitados a objetos de políticas ou sujeitos de direitos meramente individuais. As fontes principais avançariam para as Constituições multiculturais e para a Convenção 169 da OIT. Os atores centrais incluiriam, além dos governos, a OIT, organizações

não-governamentais

e

Cortes

de

Direitos

Humanos

(RODRÍGUEZ

GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015, p. 41). Por fim, avançando em relação às demandas centrais dos povos originários, haveria o “multiculturalismo contra-hegemônico”, embora o termo mais adequado às lutas dos sujeitos excluídos que não buscam hegemonia, pois se reconhecem enquanto uma comunidade de vítimas alheias ao sistema opressor, seria a “anti-hegemonia” de Dussel (1998), anteriormente tratada. De qualquer forma, a demanda central permaneceria a diversidade, mas sob perspectiva da igualdade material ou substancial, não apenas a formal. O princípio norteador seria a autodeterminação destes povos com um senso de reparação histórica pelos prejuízos sofridos desde a colonização. O paradigma, portanto, seria o da reparação. Além disso, os povos indígenas deixariam de ser meros objetos de políticas para se transformarem em sujeitos de direitos coletivos: direito à cultura diferenciada, direito ao território tradicionalmente ocupado, direitos sociais (educação e saúde, por exemplo) culturalmente adequados às suas culturas. Dentre as fontes, acrescentam-se a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Declaração dos Direitos Indígenas da ONU de 2007 e as constituições pluriculturais que já incorporaram avanços vindos deste paradigma, como as Constituições da Bolívia e do Equador, que buscam reconhecer a coexistência de diferentes nações indígenas no território nacional e a sua autonomia para gerir diversos aspectos da vida em sociedade, superando a visão monista de um estado nacional dominado pelas elites herdeiras dos colonizadores. Finalizando, somam-se aos atores centrais as próprias organizações indígenas, mas também organismos de relatorias especiais da ONU, por exemplo (RODRÍGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015, p. 41).

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Os elementos, normas e paradigmas até aqui narrados caracterizam o quadro atual de afirmação dos direitos indígenas no Brasil e na América Latina, embora existam diferenças significativas entre países no que concerne a experiências políticas e estágios normativos. Como exemplo, pode-se afirmar que no Brasil, apesar do quadro normativo avançado, não há afirmação de plurinacionalidade como ocorre no constitucionalismo boliviano e equatoriano, pois talvez sequer seja uma demanda dos povos locais. De qualquer forma, tais elementos podem funcionar como marcadores de análise das políticas, projetos de lei e jurisprudência atuais, pois materializam de forma clara a passagem do integracionismo ao reconhecimento, e da colonialidade às primeiras experiências descoloniais, de cuja base não se pode retroceder. Todavia, as garantias normativas não são observadas na sua plenitude na prática dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário: o primeiro, na execução das políticas públicas, interpreta-as como se ainda houvesse política de integração; o segundo, falha ao não promover a revisão do Estatuto do Índio antigo e ao propor retrocessos, como a PEC nº 215 de 2000; e o Judiciário ainda atua sob uma lógica individualista que privilegia a propriedade privada em detrimento do uso coletivo das terras indígenas, inclusive pela criação de teses controversas que podem trazer elementos de colonialidade, com o marco temporal, a ser analisado no terceiro capítulo.

2.2 Direitos territoriais indígenas A superação das políticas integracionistas e as ideias iniciais de projetos descoloniais não se expressam pela garantia de espaços geográficos alheios à ancestralidade e às reais necessidades de reprodução cultural e de vida dos povos indígenas: as reservas indígenas, as demarcações descontínuas e os aldeamentos são modelos dotados de colonialidade, pois ignoram a validade do conhecimento indígena e a historicidade que marca a construção de sua subjetividade, como a tutela, o genocídio e o despejo dos territórios tradicionais. Deste modo, para a compreensão do que está em jogo na fundamentação do marco temporal, torna-se importante analisar as dinâmicas territoriais e os processos de territorialização que marcam essa relação complexa. Portanto, nesta seção 2.2 serão abordados os direitos territoriais indígenas a partir da emergência da ideia de territorialidade, que busca compreender as significações espaciais dos povos indígenas conforme seus saberes, crenças e tradições, ou seja, por sua cosmologia. No ponto 2.2.1, discute-se a territorialidade e aspectos da relação dos povos indígenas com o território. Já no ponto 2.2.2, apresentam-se elementos das normas internacionais de

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direitos humanos que tratam do direito à terra ou ao território, bem como interpretações advindas da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que lançam bases concretas para a articulação entre o direito à terra e a territorialidade indígena, ou seja, entre direito e antropologia.

2.2.1 A emergência da territorialidade e os processos de territorialização

A grande diversidade sociocultural dos povos e comunidades do Brasil, cujas subjetividades e saberes restaram classificados e invisibilizados pela colonialidade, também se reflete em uma extraordinária diversidade fundiária (LITTLE, 2004, p. 251), ou seja, em modos distintos das populações se relacionarem com o espaço que ocupam. Neste sentido, a partir da forma como o espaço geográfico é ocupado e, principalmente, significado, geram-se as concepções plurais de território, que igualmente não deixam de ser classificadas em uma hierarquia entre formas eurocêntricas e hegemônicas consideradas válidas e formas inferiores consideradas inválidas. No contexto do Estado-Nação moderno e do direito monista correspondente, refletido em categorias e conceitos individualistas e liberais de sociedade, o território é compreendido como um dos elementos formadores da ideia de Estado, em cujo espaço físico este mesmo Estado exerce sua soberania. Esta pode ser denominada como a concepção jurídico-política do território (HAESBAERT, 2003, p. 13). Entretanto, há outros sentidos possíveis, uma vez que a conduta territorial é parte integrante de todos os agrupamentos humanos e produto histórico de processos sociais e políticos específicos. Haesbaert (2003) menciona, ainda, a noção cultural(ista), que prioriza a dimensão simbólico-cultural mais subjetiva, e a noção econômica, que enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas materializada no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, sendo muito abordada pela geográfica urbana e por estudos críticos sobre a produção capitalista do espaço (HASBAERT, 2003, p. 13). Importante notar que uma abordagem não exclui a outra, muito pelo contrário: a significação de forma simbólico-cultural não exclui as dinâmicas econômicas pelas quais um mesmo território está exposto, como a proteção das terras indígenas contra investidas do agronegócio. Por isso que a relação dos grupos humanos com o espaço pode ser melhor abordada pela ideia mais geral de territorialidade. Segundo Little (2002), a territorialidade pode ser definida “[...] como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-

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a assim em seu ‘território’” (LITTLE, 2002, p. 253). Para apreender a multiplicidade de expressões socioculturais sobre a territorialidade, que produz um leque amplo de tipos de territórios, Little (2002) menciona a importância de uma etnografia atenta a esta característica, a qual denomina cosmografia:

No intuito de entender a relação particular que um grupo social mantém com seu respectivo território, utilizo o conceito de cosmografia (Little, 2001), definido como os saberes ambientais, ideologias e identidades - coletivamente criados e historicamente situados - que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território. A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele. (LITTLE, 2002, p. 254).

A forma tradicional de ocupação espacial dos povos indígenas e também das comunidades tradicionais, portanto, não pode ser analisada através da noção moderna e capitalista de apropriação do espaço como propriedade privada. Para se compreender como os povos indígenas se apropriam do território e nele se organizam espacialmente, é preciso se desprender de categorias de representação territorial eurocêntricas. Em termos gerais, o território é considerado como condição para a reprodução da vida, mas não no sentido de um bem material ou fator de produção. Território “[...] é o conjunto de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a possibilidade e o sentido da vida individual e coletiva.” (LUCIANO, 2006, p. 101). Por este motivo, alerta Gersem Luciano (2006) que “A territorialidade indígena não tem nada a ver com soberania política, jurídica e militar sobre um espaço territorial, como existe em um Estado soberano. Tem a ver com um espaço socionatural necessário para se viver individual e coletivamente” (LUCIANO, 2006, p.103). A territorialidade indígena difere da forma de pensar da sociedade não-indígena sobre o espaço geográfico, pois caracteriza-se pela gestão comunitária da terra e por uma relação específica com os elementos da natureza envolvente e com os recursos naturais. A identidade dos índios vincula-se não apenas à questão da anterioridade da ocupação territorial, mas também ao modo culturalmente diverso de aproveitamento da terra e dos seus recursos. Assim, possuir, ocupar e usar a terra não é um dado aleatório da vida de um índio enquanto indivíduo, mas um dado inerente à cosmologia de uma determinada etnia. A terra, portanto, é o meio básico de produção e o sustentáculo da identidade étnica (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 17). Porém, a relação dos povos indígenas com o território tradicional que ocupam foi se

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transformando desde a colonização: além de ser um elemento marcante de suas cosmovisões, também a demanda por demarcação de terras com limites específicos se constitui como estratégia política de sobrevivência, construída a partir dos recursos jurídicos e materiais à disposição dos povos indígenas do presente. Assim, é possível abordar a territorialidade tanto pelas relações profundas de ordem cosmológica estabelecidas entre as diversas etnias indígenas com o espaço ocupado, ou seja, pela vinculação sociocultural como elemento de diferenciação étnica e suas diferenças para a mercantilização do território que marca a perspectiva eurocêntrica, como pelos processos estabelecidos pelo Estado moderno de delimitação do espaço, de esbulho e de demarcação, e as estratégias adotadas pelos povos indígenas para incorporar as regras deste jogo e suprir suas demandas por espaço e por vida. Portanto, são duas as abordagens sobre a territorialidade: a perspectiva étnico-cultural e a perspectiva institucional de território (LIPPEL, 2014, p. 99). Neste contexto de multiterritorialidade, como responde o direito às demandas dos povos indígenas e das comunidades tradicionais? Como visto na seção anterior, a superação das políticas integracionistas e a afirmação do paradigma do reconhecimento e da plurietnicidade impõem um desafio ao direito e ao novo constitucionalismo: o de reconhecer a validade de outros saberes e territorialidades, bem como de garantir meios eficazes para a posse nos modos socioculturais específicos das etnias indígenas. Primeiramente, é importante distinguir os conceitos advindos das perspectivas plurais do espaço ocupado, como terra, território e territorialidade. Gallois (2004) identifica que, relativamente os povos indígenas, há tensões entre o conceito jurídico de Terra Indígena e a compreensão antropológica da territorialidade. Segunda a antropóloga, a territorialidade é “[...] uma abordagem que não só permite recuperar e valorizar a história da ocupação de uma terra por um grupo indígena, como também propicia uma melhor compreensão dos elementos cultuais em jogo nas experiências de ocupação e gestão territorial indígenas” (GALLOIS, 2004, p. 37). Se “terra indígena” diz respeito ao processo político-jurídico de delimitação espacial conduzido pelo Estado, ou seja, se é uma unidade territorial definida juridicamente por um procedimento administrativo sob diversos interesses políticos e relações de poder, e se o “território” remete à construção e à vivência, variável culturalmente, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial, conclui-se que são noções muito distintas. Por mais que a noção territorial do Estado-Nação tenha se sobreposto, desde a colonização, às outras formas, a delimitação de espaços físicos não é uma demanda necessária de toda etnia

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indígena. Segundo Gallois (2004):

[...] estudos também mostram que a ideia de um território fechado só surge com as restrições impostas pelo contato, pelos processos de regularização fundiária, contexto que inclusive favorece o surgimento de uma identidade étnica. Teríamos então de analisar, caso a caso, as respostas dos grupos indígenas à conversão de seus territórios em terras, uma vez que, como sugere João Pacheco de Oliveira: “Não é da natureza das sociedades indígenas estabeleceram limites territoriais precisos para o exercício de sua sociabilidade. Tal necessidade advém exclusivamente da situação colonial a que essas sociedades são submetidas” (1996: 9). Na transformação de um território em terra, passa-se das relações de apropriação (que prescindem de dimensão material) à nova concepção, de posse ou propriedade. (GALLOIS, 2004, p. 39).

Tais políticas territoriais conduzidas pelo Estado desde o período colonial são cruciais para a definição das demandas atuais dos povos e movimentos indígenas por território. Como estudado na seção 2.1, séculos de políticas de escravidão, catequização e aculturação significaram na dimensão territorial a expulsão dos índios de seus territórios. Como consequência, diversos grupos étnicos foram forçados a migrar e se dispersar para sobreviver, modificando muitos aspectos de sua vida social. Essa reorganização social forçada é definida por Pacheco de Oliveira (1998) como “processos de territorialização”, pelo qual uma comunidade indígena:

[...] vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso) [...]. As afinidades culturais ou lingüísticas, bem como os vínculos afetivos e históricos porventura existentes entre os membros dessa unidade político-administrativa (arbitrária e circunstancial), serão retrabalhados pelos próprios sujeitos em um contexto histórico determinado e contrastados com características atribuídas aos membros de outras unidades, deflagrando um processo de reorganização sociocultural de amplas proporções (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 56).

Em outras palavras, pode-se dizer que os processos de territorialização implicam reorganização social das comunidades indígenas nos seguintes termos:

1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999, p. 54-55).

A não percepção da dimensão cultural envolvida na territorialidade indígena e da existência de processos de territorialização acaba por compelir a uma visão de senso comum

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sobre o que seriam os usos, costumes e tradições indígenas do texto constitucional. Assim, qualquer outra dinâmica que não atenda à visão romântica de ocupação de matas intocadas, como sua inserção na economia local com a criação de animais, leva à conclusão de que tais índios “perderam” sua tradição, sendo a prova da “aculturação” e da incongruência com seus direitos territoriais (GALLOIS, 2004, p. 37). A chamada “etnologia das perdas”, que tende a deslegitimar os povos indígenas como sujeitos históricos, há muito deixou de possuir um apelo descritivo ou interpretativo na antropologia, sendo substituída pelo debate sobre as emergências étnicas e a reconstrução cultural. Neste sentido, a demanda política por direitos, em especial pela terra, proporciona o "levante de etnias" ou, melhor dizendo, os chamados processos de etnogênese mencionados na seção 2.1, que abrangem tanto a emergência de novas identidades como a reinvenção de etnias já reconhecidas (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 53). O contato e a colonialidade geraram novas significações sobre o mundo e sobre o território, mas nem por isso os povos indígenas reproduzem a territorialidade da sociedade envolvente. No paradigma da aculturação e sob as ideias evolucionistas, os povos indígenas eram – e em grande medida ainda são – classificados como sociedades sem Estado. Ocorre que este julgamento dissimula um juízo de valor, que se ampara em uma necessidade de organização social em forma de Estados, relegando outras sociedades à privação de algo supostamente natural, sendo incompletas ou em um estágio anterior de evolução (CLASTRES, 2013, p. 201). Em verdade, por possuírem sua própria história e visão de mundo, o Estado não é algo que falta à sociedade “primitiva”, é uma opção. Deste modo, ao optarem por outra forma de organização social, tais sociedades são melhor definidas como sendo contra o Estado, como afirma Pierre Clastres (2013)30. Além de negarem a forma de poder absoluta e centralizada nas mãos de uma estrutura política que não seja a própria coletividade étnica como um todo, as comunidades indígenas estão, desde a colonização, em constante processo de diferenciação da sociedade envolvente (VIVEIROS DE CASTRO, 2006) e de resistência às violências físicas, territoriais e epistêmicas da sociedade moderna desde a colonização. Assim, o contato de etnias indígenas com a sociedade envolvente é também o contato Na obra “A sociedade contra o Estado”, Clastres (2013) aborda outros aspectos das ditas sociedades primitivas que distam do paradigma econômico, político e social da sociedade moderna, por diferença e mesmo por escolha, mas nunca por desconhecimento ou “primitivismo”: ao abordar a recusa ao acúmulo e a economia de subsistência como uma forma completa de existência, o antropólogo afirma que “As sociedades primitivas são, como escreve Lizot a propósito dos Yanomami, sociedades de recusa ao trabalho: ‘O desprezo dos Yanomami pelo trabalho e o seu desinteresse por um progresso tecnológico autônomo é certo’. Primeiras sociedades do lazer, primeiras sociedades da abundância, na justa e feliz expressão de Marshall Sahlins.” (CLASTRES, 2013, p. 208-209). 30

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de diferentes lógicas espaciais, que acabam por ser expressadas também em termos territoriais. No contexto dos laudos antropológicos dos processos demarcatórios, as diferenças conceituais entre terra e território vêm à tona: os antropólogos buscam evidenciar as diferentes lógicas espaciais que se articulam entre as dimensões constitucionalmente exigidas para uma terra indígena31. Por outro lado, constantemente se interrogam sobre a existência teórica de conceitos indígenas a respeito de território, de limites e de posse, no intuito de compatibilizar categorias locais e conceitos ocidentais do direito constitucional e, assim, garantir direitos na prática. No entanto, “Nesse tipo de estudos, costuma-se concluir pela inexistência de correspondências semânticas e pelas dificuldades em estabelecer tais correspondências, apesar da equivalência, tão enraizada, entre ‘terra’ e ‘território’.” (GALLOIS, 2004, p. 37-38). Um relato etnográfico que evidencia as diferentes dinâmicas conceituais e as dificuldades de garantia de direitos territoriais é o caso dos Zo’é. Para eles, o conceito que abrange território, -koha, possui uma noção ampla, no sentido de “modo de vida”, “bem viver” ou “qualidade de vida”. Segundo Gallois (2014), [...] mostra-se claramente inadequado, para o caso dos Zo’é, a noção de “habitação permanente”, no sentido de uma vida sedentária ou centrada em aldeias. O grupo entremeia o período de cuidar das roças com deslocamentos para outras aldeias onde mantém roças, e com expedições para fins de caça, pesca e coleta. Inversamente, nos períodos que passam afastadas de suas roças, as famílias fixam-se em acampamentos a partir dos quais fazem suas expedições de caça. A agricultura e a roça demarcam o lugar dos Zo’é no mundo, mas este é um elemento que satisfaz apenas parcialmente suas necessidades. As atividades de caça, pesca e coleta exigem áreas de ocupação mais amplas que o perímetro da roça, e os Zo’é esquadrinham completa e permanentemente seu território, explorando todos os recursos simultaneamente. Por outro lado, a delimitação de áreas físicas fixas, permanentes e descontínuas para cada grupo local, com base em sua região de influência atual, também não seria apropriado, pois a relação dos grupos com as regiões de ocupação do território mudam no tempo em função das alianças engendradas entre eles. [...] Um processo que só pode ser compreendido e descrito a partir das lógicas de organização territorial, ou seja, a partir da abordagem da territorialidade. (GALLOIS, 2004, p. 38).

Outra etnia que apresenta uma definição ampla de território, imbricada de sentidos e sem correspondência direta com o conceito de terra indígena, são os Guarani-Kaiowá, cujo termo tekoha é recorrente nas etnografias e manifestos indígenas de retomadas:

Antes de tudo, é fundamental compreender a definição de tekoha guas. Tekoha, na Conforme art. 231 da Constituição Federal, tais dimensões se encontram no § 1º: “[...] habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.” (BRASIL, 1988). 31

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visão indígena, significa um espaço territorial de domínio específico, muitas vezes, de uma liderança de uma família extensa (tey’i). O termo teko significa o modo de ser e viver guarani e kaiowá; ha é definido como o lugar exclusivo onde a família grande pode realizar seu modo de ser – teko. A expressão guasu significa grande e amplo. Assim, tekoha guasu é um espaço territorial muito mais amplo e de uso de várias famílias extensas e de várias lideranças religiosas e políticas. Tekoha guasu poderia ser entendido então como uma rede de tekoha que inclui diversos espaços compartilhados de caça, de pesca, de coleta, de habitação, de ritual religioso e festivo, constituindo-se como o palco das relações intercomunitárias. (BENITES, 2012, p. 166).

Embora existam diferenças cruciais entre o conceito jurídico de terra indígena e a territorialidade indígena, nas diversas dinâmicas em que cada etnia a expressa, há evidentes intersecções e possibilidades de articulação para garantia de direitos. Assim, torna-se importante observar que “[...] as diversas formas de regulamentar a questão territorial indígena implementadas pelos Estados Nacionais não podem ser vistas apenas do ângulo do reconhecimento do direito à ‘terra’, mas como tentativa de solução desse confronto” (GALLOIS, 2004, p. 41). Consequentemente, a afirmação de direitos territoriais indígenas dentro de um constitucionalismo pluriétnico e emancipador deve buscar a solução dos conflitos fundiários a partir de tais articulações, e não pela imposição de formas eurocentradas de relação com o território, tampouco pela exigência de territorialidades ancestrais caricatas forçadas no presente, ou seja, de visões essencialistas apoiadas em normas supostamente emancipatórias. Os juristas devem pensar o território a partir de uma posição crítica, dentro do novo marco da alteridade e em diálogo com a antropologia, pois não há como se pensar os direitos territoriais indígenas fora do seu contexto social, político e cultural, que inclusive modifica as demandas territoriais em virtude dos processos de territorialização. Por este motivo que é a práxis sócio-histórica crítica (MÉDICI, 2016; ROSILLO MARTÍNEZ, 2014) que deve orientar a pesquisa do território: contextualizar os aspectos da cosmovisão indígena aos processos de territorialização é o que fornece aportes teóricos para uma descolonização das categorias jurídicas sobre direitos territoriais (APARICIO, 2016, p. 19).

2.2.2 Aportes dos Sistemas Universal e Interamericano de Direitos Humanos para a compreensão dos direitos territoriais indígenas

A tentativa de compatibilidade entre conceitos jurídicos e territorialidades indígenas encontra subsídios no direito internacional dos direitos humanos. Como estudado na seção anterior, a partir do ciclo do constitucionalismo pluricultural (YRIGOYEN FAJARDO,

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2011), fundamentado pelas ideias de pluralismo, autodeterminação e direitos específicos dos povos indígenas, também foram aprovadas normas internacionais de proteção dos povos originários do mundo, em especial a Convenção nº 169 da OIT, de 1989, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007 e, no plano regional, a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas da OEA, de 2016. Além destas normas específicas, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos de matéria geral também se aplicam aos povos indígenas e são, igualmente, fontes de convencionalidade. Porém, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) e a avançada jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos é que oferecem os melhores parâmetros interpretativos dos direitos territoriais indígenas e, por isso, constituemse como importantes fontes de afirmação de direitos no plano interno brasileiro. A crescente inserção do país no regime internacional de direitos humanos é uma consequência e uma das conquistas alcançadas pelo Brasil desde a transição democrática dos anos 80. No plano externo, tal política é reflexo da primazia da dignidade humana e da valorização dos princípios éticos de convivência e tolerância entre os povos. Já no plano interno, tais compromissos expressam o princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, estabelecido pelo art. 4º, inciso II, da Constituição de 1988. Trata-se, também, da afirmação de uma soberania estatal desagregada (não mais absoluta) que abarca outros atores do direito internacional. Neste sentido, a assinatura e ratificação de tratados de direitos humanos vincula o direito constitucional a criar mecanismos de incorporação e de efetividade dos compromissos assumidos. Entretanto, a Constituição Federal não possui capítulo exclusivo sobre a relação do direito interno com o direito internacional, restando esparsas no texto constitucional as regras sobre procedimento e hierarquia dos tratados32. 32

Com relação à incorporação de tratados de direitos humanos pelo ordenamento jurídico brasileiro como direitos fundamentais, é amplamente conhecida a disputa hermenêutica acerca do §2° do art. 5° da Constituição, quando diz que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 1988), bem como das teorias construídas a partir da Emenda Constitucional n° 45/2004, que introduziu o §3° ao art. 5° e o respectivo rito especial de incorporação de tratados de direitos humanos com status material e formalmente constitucionais. Antes da EC 45, havia posições doutrinárias bastante progressistas, baseadas unicamente na abertura semântica do §2º, que sustentavam o status de norma constitucional a qualquer tratado de direitos humanos ratificado pelo Brasil. Esta posição foi silenciada por conta da introdução do rito especial, que obrigou a haver uma diferenciação hierárquica. O §3º previu que os tratados internacionais aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, são equiparados às Emendas Constitucionais, formando o bloco de constitucionalidade restrito que serve de fundamento para o controle de constitucionalidade. Sobre os tratados aprovados anteriormente à emenda e os posteriores, mas que não seguiram o seu rito especial, o STF firmou a chamada “teoria do duplo estatuto”, ao julgar o Recurso Extraordinário 466.343-SP, sobre a impossibilidade de prisão do depositário infiel. A decisão foi no sentido de reconhecer que os tratados de direitos humanos aprovados sem o

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Por isso, o significado e a efetividade de tais compromissos ainda representam desafios: há uma resistência da comunidade jurídica nacional em incorporar o Direito Internacional dos Direitos Humanos na sua rotina, seja o cumprimento das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, seja a realização do controle de convencionalidade33 pelas autoridades brasileiras (BERNARDES, 2011, p. 136). De qualquer forma, as bases interpretativas que se afastam da colonialidade e se aproximam de projetos descoloniais, ou ao menos de concepções anti-hegemônicas e pluralistas, podem ser encontradas nestas normas e jurisprudência. Precedendo as normas internacionais acima destacadas, a importância de uma outra relação dos povos originários com o território, que não se resumem a meros bens de valor econômico, mas que sustenta o próprio direito à diferença, foi expressada em documento de reunião do Conselho Mundial dos Povos Indígenas de 1985, citado por Rouland (2004):

A Terra é o fundamento dos povos autóctones. Ela é a base de nossa espiritualidade, o terreno sobre o qual floresce nossas culturas e nossas linguagens. A Terra é nossa história, a memória dos acontecimentos, o abrigo dos ossos de nossos antepassados. A Terra nos dá o alimento, os medicamentos, nos abriga e nutre. Ela é a fonte de nossa independência. Ela é nossa Mãe. Nós não A dominamos: devemos estar em harmonia com Ela. Se querem eliminar os povos autóctones, a melhor maneira de nos matar é separando-nos da nossa parte que pertence à Terra. (ROULAND, 2004, p. 502).

Com base em tal relação, a Convenção nº 169 reserva do artigo 13 ao 19 as normas de proteção territorial dos povos indígenas. Logo no Artigo 13, destaca-se “[...] a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação coma as terras ou territórios, ou com ambos” (OIT, 1989). Além disso, antecipando debates jurídicos sobre a concepção de “território” em detrimento do conceito reducionista de “terras”, assegura que a “[...] utilização do termo ‘terras’ nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o

quórum qualificado do art. 5º, §3º, têm valor supralegal, ou seja, com hierarquia superior às leis infraconstitucionais, mas abaixo da Constituição. Esta é a situação, portanto, da Convenção nº 169 da OIT no direito brasileiro. Apesar disso, ainda existem outras posições doutrinárias, mesmo após a EC 45, que buscam dar maior importância aos tratados mais antigos, como a própria Convenção nº 169: Flávia Piovesan sustenta que, por força do §2°, todos os tratados de direitos humanos teriam status materialmente constitucional, servindo para o controle de convencionalidade, e os do rito especial do §3° teriam status material e formalmente constitucional, virando cláusulas pétreas. Entretanto, como visto, não é esta solução adotada pelo STF. 33 Ao lado do controle de legalidade e do controle de constitucionalidade, o controle de convencionalidade consiste na compatibilização das normas de direito interno com os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país. Deve ser exercido pelo Poder Judiciário, mas também por outros órgãos que integram a estrutura de um Estado (como o Executivo, no cumprimento das sentenças internacionais), visando à efetividade das normas internacionais. No caso brasileiro, há especial atenção aos tratados de direitos humanos, por conta do status normativo que assumem.

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conceito de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma” (OIT, 1989). Neste sentido, o Artigo 14 prevê que sejam assegurados meios para salvaguardar o direito de posse ou propriedade das terras que não estejam exclusivamente ocupadas pelos povos indígenas, mas que sejam utilizadas para atividades tradicionais e de subsistência, em especial de povos nômades (OIT, 1989). Veja-se que esta determinação amplia a compreensão sobre ocupação tradicional, um dos cernes das discussões sobre a fundamentação do marco temporal: ocupação tradicional também pode incluir áreas utilizadas para caça, pesca e coleta, além de ritualizações, e não apenas aquelas onde são reproduzidas compreensões eurocentradas de relação com o território, como a construção de moradia com limites formalmente delimitados e a proteção destes contra terceiros. Por fim, como forma de garantir todos os direitos da Convenção, a mesma adotou um instituto de extrema importância, que considera as formas particulares de organização política e tomada de decisões dos povos destinatários: a consulta prévia, livre e informada. O Artigo 6º34 estipula o dever de os governos realizarem a consulta sempre que medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente estejam em curso. Para tanto, deverão ser criados procedimentos culturalmente apropriados, que levem em consideração as instituições representativas dos povos interessados e assegurem a sua livre participação. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007 e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DADPI) de 2016 possuem dispositivos semelhantes à Convenção nº 169 no que diz respeito aos direitos territoriais. Todavia, destacam-se normas de respeito ao pluralismo jurídico e ao autogoverno territorial indígena, em sintonia com o ciclo do constitucionalismo plurinacional (YRIGOYEN FAJARDO, 2011). A Declaração Americana da OEA, no seu Artigo XXV, assegura que os povos indígenas têm o “[…] derecho al reconocimiento legal de las modalidades y formas diversas y particulares de propiedad, posesión o dominio de sus tierras, territorios y recursos de acuerdo con el ordenamiento jurídico de cada Estado y los instrumentos internacionales “Artigo 6º 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes; c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim. 2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.” (OIT, 1989). 34

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pertinentes.” (OEA, 2016). Por sua vez, a Declaração da ONU inova em relação à Convenção nº 169 ao prever o direito à reparação “[...] pelas terras, territórios e recursos que possuíam tradicionalmente ou de outra forma ocupavam ou utilizavam, e que tenham sido confiscados, tomados, ocupados, utilizados ou danificados sem seu consentimento livre, prévio e informado.” (ONU, 2007). Todavia, é na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que são encontrados parâmetros interpretativos das normas internacionais que avançam em relação aos direitos territoriais indígenas. A Corte Interamericana de Direitos Humanos é órgão jurisdicional vinculado à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, de 1969), cuja jurisdição contenciosa foi reconhecida pelo Brasil em 1998, ou seja, o Brasil aceita que casos de violação de direitos humanos ocorridos no país sejam submetidos tanto por outros Estados latino-americanos como pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A Corte, portanto, julga ações de responsabilidade internacional dos Estados que ratificaram a Convenção e expressamente aceitaram a sua jurisdiçao contenciosa. As sentenças da Corte são de cumprimento obrigatório, definitivas e irrecorríveis. Diferenciam das sentenças estrangeiras, que se caracterizam por serem emanadas por jurisdição nacional de Estados estrangeiros. São, em verdade, sentenças internacionais 35. Embora haja tal comprometimento do Brasil no plano regional de proteção dos direitos humanos, não há uma organização clara no plano interno sobre o cumprimento das sentenças de órgãos jurisdicionais internacionais, tampouco meios eficazes para sua execução. Somamse às dificuldades o fato de que as sentenças da Corte IDH incluem obrigações de dar, fazer e não-fazer, ou seja, a determinação não resulta somente em indenizações pecuniárias às vítimas das violações, mas também obrigações de criar ou rever legislação, atuar mediante instituições públicas ou mesmo reformulá-las, dentre outras medidas36.

As sentenças internacionais podem ser conceituadas da seguinte maneira: “Sentença internacional consiste em ato judicial emanado de órgão judiciário internacional de que o Estado faz parte, seja porque aceitou a sua jurisdição obrigatória, como é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, seja porque, em acordo especial, concordou em submeter a solução de determinada controvérsia a um organismo internacional, como a Corte Internacional de Justiça. O mesmo pode-se dizer da submissão de um litígio a um juízo arbitral internacional, mediante compromisso arbitral, conferindo jurisdição específica para a autoridade nomeada decidir a controvérsia.” (PEREIRA, 2009 apud MAGALHÃES). 36 Uma vez que o Brasil aceita a jurisdição contenciosa da Corte, e de fato foi réu em 5 processos até o momento, existe a possibilidade de que determinados casos sejam analisados concomitantemente pela Corte e pelos tribunais internos. André de Carvalho Ramos (2014) adota a teoria do duplo controle, entendendo não haver contradição no controle concomitante, mesmo no caso de decisões contrárias: “Adoto assim a teoria do duplo controle ou crivo de direitos humanos, que reconhece a atuação em separado do controle de constitucionalidade (STF e juízos nacionais) e do controle de convencionalidade internacional (Corte de San José e outros órgãos de direitos humanos do plano internacional). [...] A partir da teoria do duplo controle, agora deveremos exigir que todo ato interno se conforme não só ao teor da jurisprudência do STF, mas também ao teor da 35

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A aceitação da jurisdição de cortes e tribunais internacionais significa a possibilidade de demandas de grupos vulneráveis não atendidas no plano interno serem atendidas no plano regional ou internacional e, em um movimento de retorno, serem reincluídas na agenda política interna sob novas correlações de poder (COIMBRA, 2013, p. 60). Esta relação reforça, mesmo que pela via da coerção, a proteção dos direitos humanos internamente. Deste modo, os casos paradigmáticos da Corte IDH que tratam dos direitos territoriais de maneira emancipatória, pois reforçam o pluralismo, a autodeterminação e a territorialidade como ideias centrais, podem e devem conformar os atos internos do direito brasileiro. Sem dúvida, o Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua foi um marco na justiça internacional sobre o tratamento daqueles direitos cuja titularidade corresponde coletivamente às comunidades indígenas, em virtude de suas particularidades étnico-culturais. Em junho de 1998, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à Corte denúncia contra o Estado da Nicarágua, que se absteve de demarcar as terras comunais da Comunidade Awas Tingni, não tomou medidas efetivas para assegurar os direitos de propriedade de suas terras ancestrais e recursos naturais, bem como por ter outorgado uma concessão nas terras da Comunidade sem o seu prévio consentimento (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, p. 7). Em sentença de 2001, através de uma interpretação evolutiva dos instrumentos internacionais e da proibição de interpretação restritiva, a Corte considerou que o Artigo 21 da Convenção Americana protege também a propriedade comunal, de acordo com a cosmovisão daquele povo indígena afetado:

149. Dadas as características do presente caso, é necessário fazer algumas precisões a respeito do conceito de propriedade nas comunidades indígenas. Entre os indígenas existe uma tradição comunitária sobre uma forma comunal da propriedade coletiva da terra, no sentido de que o pertencimento desta não se centra em um indivíduo, mas no grupo e sua comunidade. Os indígenas pelo fato de sua própria existência têm direito a viver livremente em seus próprios territórios; a relação próxima que os indígenas mantêm com a terra deve de ser reconhecida e compreendida como a base fundamental de suas culturas, sua vida espiritual, sua integridade e sua sobrevivência econômica. Para as comunidades indígenas a relação com a terra não é meramente uma questão de posse e produção, mas sim um elemento material e espiritual do qual devem gozar plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às futuras gerações. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, p. 59).

Em voto fundamentado concordando com a sentença, os juízes Cançado Trindade, Pacheco Gómez e Abreu Burelli fizeram alegações complementares, destacando aspectos da territorialidade: “[...] assim como a terra que ocupam lhes pertence, por sua vez eles jurisprudência interamericana, cujo conteúdo deve ser estudado já nas Faculdades de Direito.” (RAMOS, 2014, p. 393).

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pertencem à sua terra. [...] Sua forma comunal de propriedade, muito mais ampla que a concepção civilista (jusprivatista), deve, a nosso juízo, ser apreciada a partir deste prisma.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, p. 67). A violação ao direito à propriedade tradicional em decorrência da não demarcação das terras pelo Estado – ou na demora em fazê-lo – pode trazer consequências sérias que comprometem outros direitos básicos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) submeteu à Corte Interamericana, em 17 de março de 2003, uma demanda contra o Estado do Paraguai, acusando-o de ter violado os artigos 4 (Direito à Vida), 8 (Garantias Judiciais), 21 (Direito à Propriedade Privada) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção Americana de Direito Humanos, em prejuízo da comunidade indígena Yakye Axa do Povo Enxet-Lengua. Alegou-se que o Estado não havia garantido o direito de propriedade ancestral da comunidade, cujo pedido de demarcação de terras tramitava desde 1993 sem resultados satisfatórios. Segundo a CIDH, a demora implicava manter a Comunidade em um estado de vulnerabilidade alimentícia, médica e sanitária (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, p. 75). Na sentença de 2005, a Corte reconheceu que a demora na demarcação das terras da comunidade levou a sua situação de vulnerabilidade, cuja ruptura de sua relação simbólica com o território exerceu um efeito prejudicial sobre a saúde e a vida digna dessas populações: “No caso dos povos indígenas, o acesso a suas terras ancestrais e ao uso e desfrute dos recursos naturais que nelas se encontram estão diretamente vinculados com a obtenção de alimento e o acesso à agua limpa” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, p. 133-134). Prosseguindo, no caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai, com sentença de março de 2006, a Corte inclusive abordou sobre a questão temporal da recuperação de territórios tradicionais e a forma culturalmente diferenciada de exercer a posse. Enquanto mantida a base espiritual e material de identidade com o território tradicional, perdura o direito à sua posse e demarcação, o que irá se expressar de acordo com a cosmovisão do grupo específico que reivindica:

ii) limitación temporal del derecho de recuperación. 131. El segundo punto de análisis se refiere a si el derecho de recuperación de tierras tradicionales permanece indefinidamente en el tiempo. Para dilucidar este asunto, la Corte toma en cuenta que la base espiritual y material de la identidad de los pueblos indígenas se sustenta principalmente en su relación única con sus tierras tradicionales. Mientras esa relación exista, el derecho a la reivindicación permanecerá vigente, caso contrario, se extinguirá. Dicha relación puede expresarse de distintas maneras, según el pueblo indígena del que se trate y las circunstancias concretas en que se encuentre, y puede incluir el uso o presencia tradicional, ya sea a través de lazos espirituales o ceremoniales; asentamientos o cultivos esporádicos; caza, pesca o recolección estacional o nómada; uso de recursos naturales ligados a sus costumbres; y cualquier otro elemento característico de su cultura. 132. Debe considerase, además, que la

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relación con la tierra debe ser posible. Por ejemplo, en casos como el presente, que la relación con la tierra se manifiesta inter alia en las actividades tradicionales de caza, pesca y recolección, si los indígenas realizan pocas o ninguna de esas actividades tradicionales dentro de las tierras que han perdido, porque se han visto impedidos de hacerlo por causas ajenas a su voluntad que impliquen un obstáculo real de mantener dicha relación, como violencias o amenazas en su contra, se entenderá que el derecho a la recuperación persiste hasta que tales impedimentos desaparezcan. (CORTE, 2006).

Posteriormente, outro caso julgado pela Corte trouxe importantes contribuições, sobretudo em relação ao pluralismo jurídico e à colonialidade do saber, através de concepções político-ideológicas relativas ao tratamento da diversidade cultural. Em junho de 2006, a CIDH submeteu à Corte violações cometidas pelo Estado do Suriname contra membros do povo Saramaka, em virtude de não garantir meios à proteção do seu território contra empreendimentos madeireiros e de mineração e por não lhes reconhecer estatuto jurídico coletivo de povo tribal, o que impossibilitou que fossem contemplados com títulos comunais de propriedade. Esta alegação violava o Artigo 3 da Convenção Americana, sobre o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, p. 257). O Estado do Suriname alegava a “perda de identidade” enquanto grupo, porque não mais estavam no seu território ancestral – haviam sido desalojados na década de 60 por conta da inundação da barragem Afobaka – e porque muitos indivíduos haviam se incluído voluntariamente na “sociedade moderna”, restando apenas alguns membros Saramakas que poderiam se inscrever nos programas de concessão de moradia individualmente (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, p. 292). Em sentença de 2007, os Saramakas foram reconhecidos como povo tribal descendente de povos africanos levados ao Suriname durante a escravidão da colonização europeia (os marrons), cabendo somente a eles decidirem sobre as regras de pertencimento do grupo. Em decorrência, a Corte consagrou a autonomia político-territorial, a participação social e cidadania diferenciada como conceitos resultantes do tratamento da diversidade. Para além da questão territorial, sua importância para a subsistência e para a reprodução cultural dos povos tradicionais e indígenas, bem como a proteção contra empreendimentos desenvolvimentistas, este caso evidenciou uma questão prévia: a necessidade de o Estado reconhecer e validar juridicamente outras formas de organização política e social que não aquelas impostas pelo direito moderno e pelo Estado eurocêntrico, como a tutela, a integração e a igualdade formal. A personalidade jurídica de povo tribal foi uma das formas encontradas para os Saramakas garantirem direito à propriedade comunal e proteção ao seu território tradicional através do direito interno do Suriname.

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Tanto as normas internacionais citadas como os casos destacados da Corte Interamericana de Direitos Humanos demonstram a centralidade da questão territorial para os povos indígenas e comunidades tradicionais. No mesmo sentido, tais aportes conferem elementos jurídicos de garantia desses direitos em um sentido mais pluralista e antihegemônico que aquele historicamente imposto pelos Estados aos povos indígenas, demonstrando a necessária vinculação do direito e da antropologia, em vistas à superação da colonialidade.

2.3 As terras indígenas na Constituição Federal de 1988

A partir da emergência da territorialidade e das possibilidades jurídicas de articulação apresentadas sobretudo pela jurisprudência da Corte IDH, nesta seção 2.3 são abordados o conceito e as características das terras indígenas presentes na Constituição Federal de 1988. Considerando as diferenças cruciais entre terra e território, o conceito apresentado pela Constituição buscou ser uma resposta – ainda que tímida – ao discurso assimilacionista que bloqueava os direitos territoriais indígenas. Apesar disso, a norma constitucional pode, pela interpretação, concretizar o paradigma do reconhecimento na sua dimensão territorial. Dentre as características das terras indígenas, destacam-se os conceitos de tradicionalidade e de originariedade presentes no art. 231 da Constituição Federal, pois tais ideais permitem discutir as dimensões do tempo (é direito originário, preexistente ao Estado Brasileiro) e do espaço (tradicionalidade é exercício da posse de modo tradicional no espaço ocupado, e não ancestral e perdido no passado). Da mesma forma, tais características interagem com as ideias de cosmovisão e territorialização, sendo respostas ainda frágeis à superação da colonialidade territorial. Assim, no ponto 2.3.1, aborda-se o conceito sui generis de terra indígena no direito brasileiro. No ponto 2.3.2, abordam-se as características das terras indígenas.

2.3.1 O conceito sui generis de terras indígenas

As práticas indigenistas e os conceitos jurídicos ainda estão longe de garantir os direitos dos povos indígenas em uma perspectiva étnico-cultural e emancipatória. De qualquer forma, assim como no plano externo, a própria Constituição, nos termos em que organiza o direito às terras tradicionalmente ocupadas, busca articular as concepções civilistas de posse e propriedade com a territorialidade indígena, através do conceito sui generis de “terra

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indígena”. Segundo Souza Filho (2012), o conceito jurídico de TI “[...] foi construído a partir da realidade, a ocupação da área pelo povo indígena, mas caracterizou-a como um atributo jurídico, a posse.” (SOUZA FILHO, 2012, p. 121). Neste sentido, o conceito de “terra indígena” é um conceito jurídico que deriva dos direitos territoriais indígenas, reconhecidos ao longo da história pelo Estado brasileiro em diversos dispositivos legais. Foi o problema central na configuração dos direitos indígenas na Assembleia Constituinte de 1987/88, totalizando cinco de onze normas constitucionais jurídico-indígenas (KAYSER, 2010, p. 231), justamente porque a disputa destas terras e de seus recursos constitui o núcleo da questão indígena hoje no país. Esta importância é também o reconhecimento do legislador constituinte do valor que o território desempenha na sobrevivência física e cultural dos povos indígenas (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 22). Apesar disso, houve embates entre a afirmação de direitos territoriais como forma de evitar a exploração de recursos naturais em áreas indígenas já existentes – a partir das emendas populares e dos projetos de Constituição do PMDB e do PT –, e representantes de empresas interessadas na exploração das áreas, somadas ao Executivo Federal, ao Conselho de Segurança Nacional e à FUNAI, que recusavam restrições ao desenvolvimento econômico de determinadas áreas do país (KAYSER, 2010, p. 233). Embora não garantissem da mesma forma o direito à terra, consolidando-se o usufruto exclusivo dos recursos e a inalienabilidade somente mais tarde, a previsão normativa da posse sobre terras indígenas já era encontrada em Constituições anteriores a de 1988, mais precisamente desde a Constituição de 1934, e inclusive naquela promulgada durante o período da ditadura civil-militar, em 1967:

Constituição Federal de 1934: Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las (BRASIL, 1934). Constituição Federal de 1937: Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las (BRASIL, 1937). Constituição Federal de 1946: Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem (BRASIL, 1946). Constituição Federal de 1967: Art. 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes (BRASIL, 1967).

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Emenda Constitucional número 1/1969 Art. 198 – As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas e de todas as utilidades nelas existentes (BRASIL, 1969).

Ressalta Araújo (2004) que tais dispositivos eram ineficazes para que o Governo Federal demarcasse áreas suficientes aos índios, imperando as políticas de aldeamento em áreas diminutas e a liberação das áreas excedentes para titulação a terceiros pelos governos estaduais. Datam da década de 1890 os primeiros títulos conferidos de forma indevida sobre os territórios dos índios Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, bem como as primeiras invasões na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima: Há que se notar que a Constituição de 1891 não fazia qualquer menção aos índios ou a seus direitos territoriais. Tudo isso explica por que o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), quando surgiu em 1910, não tinha poderes para reconhecer as terras indígenas. O governo federal só demarcava terras indígenas após entendimentos com os governos estaduais e municipais. Tal situação continuou praticamente inalterada até os anos 1960, em que pesem as constituições de 1934, 1937 e 1946 terem trazido dispositivos reconhecendo a posse dos índios sobre as terras por eles ocupadas. (ARAÚJO, 2004, p. 27).

Não obstante, em consonância com o novo paradigma jurídico inaugurado pela Constituição de 88, o tratamento jurídico-constitucional das terras indígenas também ganhou novos contornos. Primeiro, trata-se de um tipo de propriedade especial coletiva, ou propriedade étnica, juntamente com a propriedade quilombola e a propriedade de reservas extrativistas por populações tradicionais, prevista na Lei nº 9.985/2000 sobre o Sistema Nacional das Unidades de Conservação (PILATI, 2009, p. 107). A sua diferença e especialidade reside no reconhecimento de uma territorialidade antropológica e historicamente construída, a partir de saberes e costumes específicos do grupo étnico em questão. Por isso, possui regime jurídico especial, tanto nos modos de aquisição quanto na tutela da sua proteção e do seu usufruto, o que difere sobremaneira da propriedade do Código Civil e do regime administrativo dos bens públicos. Ademais, pode-se afirmar que possui fundamento na reparação afirmativa às violências e espoliações do passado sofridas pelos povos indígenas e comunidades quilombolas (PILATI, 2009, p. 107-108). Por conta disso é que a Constituição de 1988, assim como já constava na de 1967 e na emenda de 1969, atribuiu a propriedade dos territórios indígenas à União37, criando uma espécie de propriedade vinculada ou propriedade reservada, com o fim de garantir maior 37

“Art. 20. São bens da União: (...) XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.” (BRASIL, 1988).

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proteção aos direitos indígenas sobre elas (SILVA, 2013, p. 865). Aqui, é possível ver a curiosa solução jurídica dada às terras indígenas: se o bem pertence à União, logo é um bem público, tal como consta no art. 98 do Código Civil: “São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem” (BRASIL, 2002). Ainda, conforme a tradicional divisão em bens de uso comum do povo, bens dominicais e bens de uso especial, as terras indígenas certamente se aproximam da ideia destes últimos, embora não seja a União autorizada a usufruir dos recursos, tampouco a exercer a posse ou alienar as terras, pois a Constituição veda expressamente: tratam-se de terras inalienáveis e indisponíveis, cujos direitos sobre elas são imprescritíveis. Portanto, é nítida a divisão entre a posse e a propriedade das terras indígenas, ou seja, entre quem tem o domínio e quem, de fato, utiliza o espaço. Segundo Benatti (2008):

Há uma clara separação de posse e propriedade sobre o mesmo bem. Aos índios, cabe a posse permanente e o poder de usufruírem dela exclusivamente, com privação até do titular da propriedade, que é a União; comunidades indígenas têm todos os poderes sobre suas terras, menos o poder de aliená-las (BENATTI, 2008, p. 92).

Por conta disso, a terra indígena não se enquadra como categoria de terra pública. Ocorre que também não é terra privada ou particular de uma comunidade indígena. Por tudo isso, não se enquadra no conceito dogmático de propriedade: é outra coisa (SOUZA FILHO, 2012, p. 123). Todavia, a terra indígena é passível de apropriação de determinada comunidade indígena, cujas regras de estabelecimento são dadas a partir da sua regulação interna e sensibilidades jurídicas. A partir dessa pluralidade jurídica que se estabelece, pode-se afirmar que a terra indígena trata, em verdade, de território:

Ora, a apropriação individual ou coletiva, de um grupo familiar, ou de um gênero, se fará, então, segundo o direito indígena, que resolverá os eventuais conflitos que ali se estabelecerem. É vedado, portanto, o exercício do direito brasileiro de propriedade dentro das terras indígenas, mas, ao contrário, são cogentes as normas do direito consuetudinário indígena. Dentro deste raciocínio, estamos falando de território, embora sem soberania e com pouca autonomia (SOUZA FILHO, 2012, p. 123).

A saída sui generis do conceito de terra indígena, que dá posse permanente, mas não a propriedade, denota justamente o conflito de garantir direitos territoriais sem avançar na permissão de um autogoverno sobre parcelas de território nacional. Este sempre foi um receio admitido pelos governos e militares ao longo do século XX, e sobretudo na Constituinte, cujo lobby de empresas privadas extrativistas conduziram em grande parte os debates. Trata-se, em

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verdade, de um bloqueio da autodeterminação pela colonialidade do poder, mas que, pela via da interpretação, do diálogo com a antropologia e do controle de convencionalidade, pode conter as bases para a garantia de direitos territoriais mais próximos das cosmovisões indígenas e dos processos políticos que envolvem as suas terras.

2.3.2 Características das terras indígenas

As características do conceito de terras indígenas, que denotam a tentativa de vinculação da posse com a dimensão étnico-cultural da territorialidade, são dadas pelo caput do art. 231, que assegura “[...] os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (BRASIL, 1988), bem como pelo §1º, que as define como aquelas “[...] habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (BRASIL, 1988). Neste sentido, tem-se que as terras indígenas são caracterizadas pela originariedade, tradicionalidade e ocupação permanente, devendo apresentar cumulativamente os seguintes pressupostos: a) que sejam ocupadas de forma permanente pelos índios; 2) que sejam utilizadas para suas atividades produtivas; 3) que sejam necessárias para a manutenção dos recursos indispensáveis ao seu bem-estar; e d) que sejam necessárias à sua reprodução física e cultural (KAYSER, 2010, p. 234).

2.3.2.1 Originariedade e Teoria do Indigenato

Quanto ao estatuto jurídico, a Constituição Federal de 1988 reconheceu direitos territoriais indígenas como “originários”. A originariedade do direito à demarcação das terras tradicionalmente ocupadas significa que tal direito é considerado preexistente ao próprio Estado – uma forma congênita de legitimação do domínio –, não se confundindo com alguma modalidade atual de aquisição de propriedade, nem com a ocupação ou simples posse, pois independe de legitimação. Por ser um direito mais antigo, tem precedência sobre o direito de propriedade privada, e este é um dos fundamentos do §6º38 do art. 231, que determina a nulidade de títulos Conforme §6º do art. 231 da Constituição Federal de 1988, “§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, 38

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de propriedade registrados sobre uma área que vem a ser identificada como de ocupação tradicional indígena. Isso ocorre mesmo com títulos – de qualquer tipo: compra, herança, doação, permuta – adquiridos de forma regular antes da Constituição, o que de fato ocorreu em muitas regiões do país, inclusive pela destinação de terras do poder público a particulares para fins de reforma agrária. Como não é possível alegação de direitos adquiridos contra a Constituição, tais títulos restam anulados. Neste sentido, a doutrina jurídica brasileira defende que originariedade representa a reafirmação constitucional do instituto do indigenato, presente no ordenamento desde o Brasil Colônia. Como abordado na seção 2.1 sobre o tratamento jurídico da situação indígena durante o paradigma assimilacionista, não havia legislação específica sobre direitos territoriais indígenas, embora a política de tomada de territórios e de “guerras justas” contra as nações hostis significava o reconhecimento tanto de um território indígena quanto da soberania indígena sobre eles (CARNEIRO DA CUNHA, 1989, p. 61). Porém, o texto legislativo mais importante sobre as terras ocupadas foi o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, que declarava que as sesmarias concedidas pela Coroa Portuguesa a particulares não poderiam prejudicar direitos de terceiros, muito menos os direitos dos índios sobre suas terras, pois eles seriam considerados os “primários e naturais senhores delas” (SOUZA FILHO, 2012, p. 124). Sob inspiração deste Alvará, atribui-se ao jurista João Mendes Junior, em conferências realizadas na Sociedade de Etnografia e Civilização dos Índios em 1902, e posteriormente publicadas na obra “Os indígenas do Brazil: direitos individuaes e políticos”, de 1912, a reconstrução teórica do instituto do indigenato, consagrado no período republicano nas constituições de 1934 em diante (LIPPEL, 2014, p. 33). Ao afirmar, no começo do século XX, que o Alvará de 1680 estava ainda vigente, Mendes Junior resgatou o instituto da legislação colonial portuguesa por se mostrar um instrumento apto à proteção dos povos indígenas em um momento em que suas terras sofriam um ataque por parte de particulares com a aplicação da Lei de Terras de 1850. Em trecho destacado por Souza Filho (2012), a teria do indigenato é explicada da seguinte forma por Mendes Junior (1912):

[...] em qualquer hipótese, suas terras lhes pertenciam em virtude do direito à ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.” (BRASIL, 1988).

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reserva, fundado no Alvará de 1º de abril de 1680, que não foi revogado. [...] As terras de índios, congenitamente apropriadas não podem ser consideradas nem como res nullius, nem como res derelictae; não se concebe que os índios tivessem adquirido, por simples ocupação, aquilo que lhes é congênito e primário. [...] terras do indigenato, sendo terras congenitamente possuídas, não são devolutas, isto é são originalmente reservadas, na forma do Alvará de 1º de abril de 1680, e por dedução da própria Lei de 1850 e do art. 24, §1º, do Decreto de 1854. (MENDES JUNIOR, 1912, p. 57).

Como critica Aparicio (2016), a posição de Mendes Junior, embora visasse garantir direitos aos povos indígenas em um período marcado pelo assimilacionismo, também fundamentava uma visão jusnaturalista dos direitos, e reforçava a ideia romântica de “miscigenação” e branqueamento da população para forjar uma identidade do povo paulista com origens indígenas. Ainda, afirma que tal posição é “[...] própria de um jurista cristão, que defendia que o serviço de civilização dos indígenas deveria ser feito pela Igreja” (APARICIO, 2016, p. 18). Embora o indigenato tenha sido reafirmado pela Constituição de 1988, e tenha como consequência a solidificação do direito indígena às terras que tradicionalmente ocupam, anulando eventuais títulos conflitantes, é um instituto datado que não dialoga totalmente com os termos do novo paradigma do reconhecimento das diferenças e da plurietnicidade39 (APARICIO, 2016, p. 18-19).

2.3.2.2 Tradicionalidade e cosmovisões indígenas

A manutenção do indigenato na Constituição Federal de 1988 não significou que os direitos territoriais foram garantidos nos mesmos termos do passado: a garantia das terras ocupadas pelos índios acrescenta o componente étnico-cultural da tradicionalidade. A tradicionalidade significa que não é qualquer espaço geográfico que pode ser considerado como terra indígena, somente aquele que possua um sentido étnico-cultural, de reprodução física e cultural, utilizado para as atividades produtivas dos índios e imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar, nos termos do que diz a Constituição. Todavia, estas características devem ser interpretadas respeitando a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições dos povos indígenas, conforme caput do art. 231, de modo que não se vai definir o que é habitação permanente, modo de utilização, 39

De fato, como será visto adiante, o julgamento da PET nº 3388 pelo STF, sobre a Terras Indígena Raposa Serra do Sol, diminuiu a importância do indigenato no direito constitucional brasileiro ao apostar na ideia de uma suposta “teoria do fato indígena”, de cunho civilista, através do marco temporal da demarcação.

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atividade produtiva ou outra característica segundo os parâmetros ocidentais e etnocêntricos, pois as lógicas espaciais de cada cosmovisão variam na compreensão sobre posse, limites e espaço geográfico. Como exemplo, tem-se que as atividades produtivas não precisam necessariamente corresponder ao imaginário essencialista do índio que caça de arco-e-flecha, pesca e coleta, mas a outras atividades que cumpram tal papel dentro da cosmologia e organização políticosocial daquela comunidade. Da mesma forma, as terras imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar “[...] podem compreender, por exemplo, áreas de nascentes de rios que suprem as necessidades de água potável ou as de reprodução de espécies de animais que os índios caçam” (LIPPEL, 2014, p. 82). A apuração de tais pressupostos deverá ser feita através de laudo antropológico específico, tendo em vista que a cultura não é um artefato atemporal que define a essência de um grupo étnico; é antes um produto deste grupo, que se transforma no tempo a partir de práticas e discursos voltados ao futuro. Ou seja, a identidade étnica e a relação com o território é situacional, contextual e contrastante com a sociedade e o mundo envolventes. Se a terra indígena é um direito subjetivo das comunidades indígenas e dever da União demarcá-las, sendo somente a tradução para a burocracia estatal do conceito constitucional aplicado no caso concreto, cabe estabelecer um procedimento administrativo apto a concretizar este direito essencial (ARAÚJO, 2006, p. 48). Atualmente, as etapas do procedimento administrativo da demarcação são dadas pelo Decreto nº 1.775 de 1996, mas também existem regramentos no ainda vigente Estatuto do Índio40. Se observadas as etapas41 do Decreto, nota-se que a maioria delas diz respeito à 40

O art. 19 do Estatuto do Índio indica que as terras indígenas serão administrativamente demarcadas de acordo com procedimento editado em decreto do Poder Executivo, o que ocorre com o Decreto nº 1.775 de 1996. Porém, há diversas outras normas sobre o território, inclusive a previsão de tipos de áreas que não correspondem à tradicionalidade das terras indígenas, chamadas de “áreas indígenas”. O art. 26 apresenta 3 tipos: reserva indígena, parque indígena e colônia agrícola indígena (BRASIL, 1973). Tanto essa tipologia alheia ao sentido étnico-cultural da territorialidade indígena quanto a constante menção aos “silvícolas” denotam o caráter assimilacionista do Estatuto, em grande parte não recepcionado pela Constituição Federal de 1988. 41 As seis etapas previstas no Decreto são explicadas por Araújo (2006) da seguinte forma: “1 Identificação – No primeiro momento do procedimento de demarcação, a FUNAI nomeia um antropólogo para elaborar um estudo antropológico de identificação da Terra Indígena em questão. O estudo do antropólogo fundamenta o trabalho de um grupo técnico especializado, composto preferencialmente por técnicos do próprio órgão indigenista, que fará estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, além do levantamento fundiário para a delimitação dos limites da Terra Indígena (na prática, porém, antropólogo e demais técnicos trabalham concomitantemente). O grupo apresenta relatório circunstanciado com a caracterização da terra a ser demarcada, que há de ser aprovado pelo presidente da FUNAI e, em seguida, publicado na imprensa oficial e afixado na sede da prefeitura local. 2 Contraditório – Esta etapa foi introduzida no procedimento administrativo de demarcação pelo Decreto 1775/96, sendo motivo de intensa polêmica quando da sua edição. Trata-se da oportunidade dada a todo e qualquer interessado, incluindo-se estados e municípios, de se manifestar sobre o procedimento de demarcação de uma dada Terra Indígena e impugná-la pela via administrativa – antes do Decreto a possibilidade de impugnação era apenas judicial. Os interessados,

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FUNAI, demonstrando a competência da União e a vinculação aos aspectos étnico-culturais da territorialidade indígena em detrimento de outros interesses eventuais (opinião pública, interesses econômicos, discricionariedade do Poder Legislativo), pois cabe à equipe técnica do antropólogo o papel central de identificação dos requisitos do art. 231. Ou seja, se o direito é originário, então não é constituído pelo processo administrativo de demarcação, apenas é reconhecido pelo Estado. Importante notar que o conceito constitucional afastou-se da ideia de “ocupação imemorial” para a garantia de direitos territoriais. Logo, a tradicionalidade não exige que a ocupação de território do presente seja uma continuação de ocupação de um passado remoto, desde a colonização. No mesmo sentido, não se trata de configurar como terra indígena ocupação do passado sem mais vínculos com as lutas indígenas do presente: pensamento contrário, além de significar uma visão a-histórica e estanque da cultura, portanto etnocêntrica e assimilacionista, daria munição ao conservador argumento da “Síndrome de Copacabana”, posto que no passado todo território nacional, por óbvio, já foi ocupado exclusivamente por povos indígenas (ANJOS FILHO, 2011, p. 937). Conforme os processos de territorialização forçados por políticas oficiais de esbulho e destinação de territórios tradicionais a particulares mesmo durante o século XX, as reivindicações dos povos indígenas são sobre territórios ressignificados no presente, resultando em demandas políticas e culturais atuais. Referindo-se à tradicionalidade, Araújo (2006) sustenta que o conceito de terras indígenas na Constituição Federal de 1988: [...] rompeu também com o paradigma da “imemorialidade” que até então orientava os procedimentos de demarcação das Terras Indígenas no país. Ou seja, buscava-se, antes de mais nada, remontar o processo de ocupação pretérita dos índios sobre suas terras, num trabalho que muitas vezes tinha muito mais de arqueologia e de história do que de antropologia. Com o uso da expressão “tradicionalmente”, quis a a contar da abertura do procedimento de demarcação até 90 dias após a publicação do relatório do grupo técnico na imprensa oficial, poderão apresentar ao órgão indigenista suas razões, acompanhadas de provas, a fim de pleitearem indenização ou demonstrarem vícios existentes no relatório. A FUNAI tem, a partir daí, 60 dias para opinar sobre as razões dos interessados e encaminhar o procedimento ao Ministro da Justiça. 3 Declaração dos limites – O Ministro da Justiça expedirá, no prazo de 30 dias, portaria declarando os limites da área e determinando a sua demarcação física. Ao invés disso, porém, poderá optar por prescrever diligências a serem cumpridas em mais 90 dias, ou ainda, desaprovar a identificação por meio de decisão fundamentada, a ser também publicada na imprensa oficial. 4 Demarcação física – Declarados os limites da área, a FUNAI fará a sua demarcação física, que implica colocação de marcos no chão, placas de sinalização, picadas quando necessário etc. Ainda nesta etapa, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em caráter prioritário, procederá ao reassentamento de eventuais ocupantes não-índios. 5 Homologação – Todo o procedimento de demarcação será, por fim, submetido ao Presidente da República para ratificação por meio de decreto. 6 Registro – A Terra Indígena demarcada e homologada será registrada, no prazo de 30 dias, no cartório de registro de imóveis da comarca correspondente e no SPU (Secretaria de Patrimônio da União).” (ARAÚJO, 2006, p. 50-51).

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Constituição, segundo José Afonso da Silva, referir-se não a uma “circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao seu modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam” (ARAÚJO, 2006, p. 48).

A tradicionalidade das terras indígenas articula-se com a necessidade de ocupação permanente para sua configuração. Da mesma forma que o modo tradicional da ocupação é definido pela cosmovisão do grupo indígena que de fato ocupa tradicionalmente a terra reivindicada, também a definição de ocupação permanente não será medida por visões e conceitos etnocêntricos. Assim, conforme inúmeras etnografias de grupos indígenas específicos, ocupação permanente pode não significar necessariamente aldeias fixas ao longo do tempo. Tanto os Zo’é, estudados por Gallois (2004), os Guarani-Kaiowá, com a ideia de tekoha, e etnias que possuem como característica o nomadismo, a não fixação de limites geográficos para sua ocupação é marcante. Além disso, com o contato interétnico e os processos de territorialização, muitas comunidades despejadas ocupam o território tradicional de maneira rarefeita, mantendo laços esporádicos para ritualização, caça e coleta, o que não afasta o caráter permanente da ocupação para fins de demarcação da terra indígena. Nesta perspectiva dinâmica da cultura e da territorialidade, bem como dos processos de territorialização, afasta-se a explicação do grupo étnico com base no “isolamento no passado” ou na reprodução de formas pré-definidas de ocupação do espaço, para analisá-lo a partir de “processos identitários”, que possuem uma dimensão política advinda do contato com uma sociedade envolvente. Assim, o conceito de terras indígenas da Constituição Federal de 1988, se dialogar com a antropologia e com os aportes do direito internacional dos direitos humanos, possui as bases jurídicas para se pensar direitos territoriais mais distantes da colonialidade dos saberes eurocêntricos e das subjetividades oprimidas.

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3. ANÁLISE DA COLONIALIDADE NA FUNDAMENTAÇÃO DA TESE DO MARCO TEMPORAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL “Wa Tuminke´ry Tuman Ipei. Amazad Way Nau Aty. Ipei Amazad, Imii, Atamyn, wyn tuman ipei. Un Uribenau aty. Wa STF tan watywa

amazad.

Ipei

aunaa

kaimanau

tuminpei y kabutan tiriez aty. Waynau bii!” (“Nosso Deus fez todas as coisas. Nossas terras, nossas florestas, nossos rios. Fez tudo para nós e para todos os parentes viverem bem. Que o STF reconheça nossos valores indígenas, nossa cultura, nossa terra, nossa vida. Chega de violência!”) Joênia Batista de Carvalho Wapichana42

No primeiro e segundo capítulos, além da apresentação e discussão do marco teórico, incluindo as categorias da crítica da colonialidade a serem consideradas na análise do objeto de estudo, também foi realizada uma aproximação desta matriz aos direitos indígenas historicamente afirmados no Brasil, conectando-os aos paradigmas da política indigenista que identificam as transformações normativas e de relação entre Estado, sociedade e povos indígenas, principalmente no Brasil, mas também na América Latina. Pretendeu-se, com isso, demonstrar que o quadro normativo atual buscou superar erros históricos de políticas integracionistas, de negação do direito à diferença e de fragilização do direito ao território tradicional, nos quais a colonialidade estava indubitavelmente presente. Assim, qualquer projeto de lei, política pública ou jurisprudência atual deve observar os avanços afirmados na Constituição Federal de 1988, nos tratados de direitos humanos e nos standards normativos construídos pela atuação dos Sistemas Universal e Interamericano de Direitos Humanos, que denotam o diálogo entre direito e antropologia, inserindo a territorialidade indígena como ponto central para a garantia de direitos.

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Joênia Wapichana é advogada e atuou no processo da TI Raposa Serra do Sol em defesa das comunidades indígenas. O texto da epígrafe do capítulo é um trecho de sua sustentação oral perante o STF, no primeiro dia de julgamento da TI Raposa Serra do Sol, em 27 de agosto de 2008. A íntegra pode ser encontrada na internet ou lida na seguinte obra: MIRAS, Julia Trujillo [et. al]. Makunaima grita: Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os direitos constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.

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Entretanto, a criação e a fundamentação da tese do marco temporal da demarcação de terras indígenas parecem significar um passo para trás na necessária desconstrução das categorias jurídicas que ainda refletem a colonialidade do saber e das subjetividades dos sujeitos coloniais. Neste sentido, diversos tem sido os argumentos de que a tese do marco temporal não teria espaço no quadro normativo atual dos direitos indígenas43, resultando em potencial prejuízo às suas demandas históricas, principalmente por território. Se de fato isto ocorre, por qual razão ele é criado, defendido e aplicado em casos judiciais, sustentando a anulação de demarcações de terras indígenas? Os imaginários etnocêntricos e essencialistas construídos sobre os povos indígenas e suas cosmologias, que em última instância condicionam os seus direitos, estão internalizados nas instituições que constroem políticas públicas e que interpretam e aplicam a Constituição, pois a colonialidade estruturou as sociedades latino-americanas após os processos de descolonização e independência (QUIJANO, 1993; 2000; 2007; QUINTERO, 2010). Além disso, por mais que exista na América Latina um ciclo constitucional de reconhecimento da plurietnicidade, de experiências de pluralismo jurídico e a até de plurinacionalidade em alguns países, no Brasil ainda imperam conceitos jurídicos e construções jurisprudenciais que bloqueiam a autodeterminação, a territorialidade e os direitos em uma perspectiva étnico-cultural. Neste sentido, a Constituição, onde estão positivados os direitos indígenas, sobretudo no art. 231, embora possua mecanismos de aplicação imediata para garantir eficácia plena de seus direitos fundamentais, é uma construção dirigida ao futuro – a Constituição dirigente – e em permanente disputa de sentidos. Apesar de romper com o passado autoritário e afirmar compromissos sociais para o futuro, o simbolismo democrático precisa ser concretizado cotidianamente, contra a colonialidade que subalterniza sujeitos e saberes presente no próprio direito moderno. Se a Constituição for entendida, segundo Médici (2016), como um “objeto complexo”, que “[…] trasciende un concepto jurídico formal o racional normativo, para resultar un punto de articulación entre los campos de la política, el derecho, las valoraciones morales, las relaciones económicas y ecológicas de una sociedad” (MÉDICI, 2016, p. 5), então é possível o giro descolonial e a experiência concreta dos povos indígenas fundamentar os 43

Uma das principais manifestações, até o momento, é o parecer elaborado em 2015 pelo jurista José Afonso da Silva, mediante consulta feita por Manuela Carneiro da Cunha, Samuel Rodrigues Barbosa, Associação Juízes pela Democracia, Centro de Trabalho Indigenista, Instituto Socioambiental, Organização Índio é Nós e Centro de Estudos Ameríndios da USP (SILVA, 2015).

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direitos territoriais. Todo o capítulo primeiro, mais as seções 2.2 e 2.3, que apresentaram as ideias da territorialidade, dos processos de territorialização, da convencionalidade e do diálogo com a antropologia, possuem elementos para essa tarefa. Seguindo por este caminho, torna-se relevante aplicar categorias teóricas que explicam as bases e os processos epistêmicos envolvidos em tais movimentos políticos e jurídicos de retrocessos e revisões de direitos. Este capítulo, portanto, objetiva realizar um estudo crítico da fundamentação de uma tese a partir do referencial do pensamento descolonial, juntamente com uma postura metodológica da “práxis sócio-histórica crítica”, justamente porque este referencial dá elementos para se compreender a historicidade e o contexto maior que conforma e valora os saberes, o poder e as subjetividades, o que possibilita um pensamento alternativo de alternativas e não meramente alternativas dentro do mesmo pensamento jurídico-dogmático (SANTOS, 2009). Para tanto, na seção 3.1 é apresentado o caso em que a tese do marco temporal foi lançada, ou seja, a Ação Popular nº 3.380, que questionava a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na seção 3.2, a partir das tensões levantadas do segundo capítulo, é possível estabelecer uma análise da colonialidade presente na aplicação do marco temporal e da insuficiência do renitente esbulho como exceção que impede injustiças. Se o marco temporal dispensa a presença em 5 de outubro de 1988 daquelas etnias que foram alijadas de seu território de forma violenta, é preciso entender o que é e como é exercida a territorialidade, que difere sobremaneira da posse civil. Ademais, se a colonialidade denuncia os reflexos estruturais da classificação social dos sujeitos colonizados, deve-se entender os direitos indígenas como fruto, também, de um paradigma reparatório, o que a tese do marco parece não dialogar, pois ignora o contexto de tutela e as (im)possibilidades reais de se reivindicar retorno ao território antes da Constituição Federal de 1988, quando o próprio Estado promoveu medidas de desterritorialização e de esbulho. O estudo será realizado, primeiramente, conforme as ideias desenvolvidas pelos Ministros do STF no caso da TI Raposa Serra do Sol, tendo em vista que foi naquela oportunidade que as teses do marco temporal e do renitente esbulho foram apresentadas, embora não diretamente aplicadas ao caso. Em relação aos demais casos em que o STF aplicou as teses, sobretudo na sua 2ª Turma, são analisados os argumentos lançados nos acórdãos, bem como dos laudos antropológicos que fundamentaram as demarcações e de manifestações eventuais de outros atores processuais envolvidos, como as partes, o MPF e a FUNAI.

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3.1 O Supremo Tribunal Federal e a limitação temporal dos direitos territoriais indígenas

Nesta seção, é apresentado o caso do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da constitucionalidade do processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, iniciado no ano de 2008. Primeiramente, apresenta-se um panorama do julgamento e da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, além das principais avaliações críticas posteriores, como a posição de legislador positivo do STF, ao estabelecer no dispositivo da sentença 19 condicionantes para balizarem os processos de demarcação futuros. No ponto seguinte, trata-se especificamente do estabelecimento do marco temporal da demarcação e do renitente esbulho, teses criadas neste julgamento e defendidas como presentes de forma implícita na Constituição de 1988.

3.1.1 O julgamento da Petição n° 3388 da Terra Indígena Raposa Serra do Sol

Embora relativamente recente, o julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, iniciado em 2008, foi precedido de diversos embates judiciais e de muitas tensões políticas, inclusive conflitos violentos, por conta do processo de demarcação. Por tais motivos, somados à grande dimensão territorial envolvida e dos possíveis impactos econômicos, o caso gerou intensa repercussão na imprensa nacional e no meio político e acadêmico. Por todo este contexto, pode-se dizer que estavam em jogo mais do que argumentos jurídicos sobre a interpretação dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988, sobretudo os territoriais. Os debates, argumentos e discursos proferidos por diversos atores, não apenas os Ministros do STF, demonstraram as visões de desenvolvimento da nação, a opinião sobre o lugar do índio na sociedade brasileira, a validade de outros saberes e modos de vida e o reconhecimento, ou não, da história de genocídio e exclusão dos povos indígenas. Nas palavras de Joênia Wapichana, advogada indígena que proferiu sustentação oral no STF durante o julgamento, “[...] o que está em jogo são os quinhentos anos de colonização!” (MIRAS, 2009, p. 170). A presença indígena no norte do atual Estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela e com a Guiana, onde está localizada a TI, é amplamente atestada pela documentação colonial desde as primeiras incursões portuguesas no século XVIII (FARAGE;

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SANTILLI, 2009, p. 21). O primeiro ato de reserva de terras para índios da região ocorreu em 1917. Já o procedimento administrativo demarcatório da Terra Indígena Raposa Serra do Sol teve início em 1977, mas somente em 1993 que se tomaram medidas efetivas, com a proposta de limite territorial, laudo antropológico e levantamento fundiário da FUNAI, sugerindo ao Ministério da Justiça o reconhecimento de uma área de 1,67 milhão de hectares como de ocupação tradicional. Por conta da edição do Decreto nº 1.775 em 1996, que atualmente disciplina as etapas do procedimento de demarcação e estabelece prazo para o contraditório, foram apresentadas 46 contestações administrativas por particulares e também pelo Estado de Roraima à identificação da terra indígena. O então Ministro da Justiça da época, Nelson Jobim, rejeitou as contestações, mas, em despacho sem fundamentação técnica ou jurídica, devolveu o processo à FUNAI para revisão e diminuição dos limites territoriais, a fim de excluir vilarejos, estradas e fazendas particulares com títulos expedidos pelo INCRA. A partir de pressão de organizações indígenas e de direitos humanos nacionais e internacionais, foi publicada a Portaria nº 820/98, agora do Ministro Renan Calheiros, declarando a TI Raposa Serra do Sol como de ocupação tradicional, cuja demarcação física foi efetuada no ano seguinte. Já em 1999 o Governo de Roraima impetrou Mandado de Segurança visando a anulação da Portaria, assim como houve ações judiciais na Justiça Estadual (ações possessórias), Federal (ações possessórias) e no STF (ação cautelar; ação popular; ação civil originária; ação direta de inconstitucionalidade; mandado de segurança), o que culminou na suspensão da Portaria por duas vezes, em 1999 e em 2004, já sob novo Governo Federal. Tais ações visavam postergar o processo de demarcação para a tomada de partes da área por não índios. Além disso, em julho de 2004, a Justiça Federal ordenou a saída dos índios da TI Raposa Serra do Sol, reintegrando os fazendeiros na posse da terra demarcada. Por pressão da FUNAI e do MPF, todas as ações foram reunidas para competência do STF, que julgou a perda de objeto, pois o então Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, emitiu a Portaria nº 534/2005, em substituição à anterior, e dois dias depois foi editado o Decreto homologatório pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Novamente, uma enxurrada de ações foi reunida para competência do STF e, de maneira geral, não acarretaram na anulação dos atos administrativos, tendo prosseguido a retirada de não-índios da área. Esta fase de desintrusão do procedimento demarcatório gerou conflitos violentos de agricultores e autoridades contra povos indígenas, sendo inclusive suspensa pelo STF nos autos da Ação Cautelar nº 2009, proposta pelo Estado de Roraima.

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Finalmente, em 2008 o STF iniciou a apreciação do mérito da questão no julgamento histórico. Assim, foi em 20 de abril de 2005 que os Senadores Augusto Affonso Botelho Neto (PT) e Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti (PTB), ambos do Estado de Roraima, propuseram ação popular perante o Supremo Tribunal Federal, a Petição 3.388, suscitando a nulidade da Portaria nº 534/2005 do Ministério da Justiça, emitida em 13 de abril de 2005, e do Decreto Presidencial de homologação s/n, que demarcaram a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Segundo dados do Instituto Socioambiental44, atualmente a área possui 1,747 milhão de hectares e uma população de 23.119 pessoas, divididas entre a etnias Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana. Dentre os principais argumentos, estava o questionamento do modelo de demarcação contínua – sem isolar propriedades particulares, equipamentos comunitários ou prédios públicos dos municípios existentes –, da ameaça à segurança nacional por conta da demarcação em faixa de fronteira, da suposta parcialidade do laudo antropológico que serviu de fundamento e de outras alegadas irregularidades do processo administrativo de demarcação conduzido pela FUNAI, sobretudo em relação ao contraditório. Relatado pelo Ministro Carlos Ayres Britto, que se posicionou favorável à demarcação, o processo teve o julgamento iniciado em 27 de agosto de 2008, sendo retomado em dezembro do mesmo ano, após pedido de vista do Ministro Menezes Direito. Apresentando seu voto-vista, que concordava em parte com o do Relator, o Min. Menezes Direito também propôs à Corte a inclusão das 19 condicionantes45, ou “salvaguardas

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O ISA possui banco de dados online sobre a situação atual e características gerais de todas as terras indígenas demarcadas e em estágios iniciados ou avançados de demarcação. As informações da TI Raposa Serra do Sol, bem como daquelas anuladas em função da tese do marco temporal (Guyraroká, Limão Verde, Yvy Katu, Porquinhos), estão disponíveis no seguinte endereço eletrônico: Acesso em: 21.01.2017. 45 As 19 condicionantes propostas pelo Min. Menezes Direito, mas modificadas pelos demais e que constam do acórdão, versam sobre os seguintes conteúdos: “I) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (§ 2º do art. 231 da Constituição Federal)pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º da Constituição, na forma de lei complementar; II) o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e dos potenciais energéticos, que sempre dependerá de autorização do Congresso Nacional; III) o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei; IV) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira; V) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa, ouvido o Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; VI) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; VII) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação;

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institucionais”, no dispositivo da decisão, o que foi acolhido posteriormente pela maioria dos Ministros e Ministras com algumas modificações. Em justificativa, o Ministro sustentou o afastamento das regras processuais que regem a ação popular, argumentando que o reconhecimento do conflito federativo instaurado entre a União e Roraima é que atraiu a competência originária do STF, possibilitando à Corte a flexibilização do rito e dos objetivos previstos na Lei nº 4.717/65, que regula a ação popular. Em suas palavras:

[...] os argumentos deduzidos pelas partes são também extensíveis e aplicáveis a outros conflitos que envolvam terras indígenas. A decisão adotada neste caso certamente vai consolidar o entendimento da Suprema Corte sobre o procedimento demarcatório com repercussão também para o futuro. Daí a necessidade do dispositivo explicitar a natureza do usufruto constitucional e seu alcance. (BRASIL, 2010, p. 257-258).

No seu entender, as salvaguardas representariam a exata definição dos limites impostos pela Constituição e pelas leis, sendo extraídas do próprio texto constitucional como parâmetros de interpretação e aplicação da normativa infraconstitucional para a demarcação das terras indígenas e para o uso das mesmas pelos índios. Funcionariam, portanto, como condicionantes de aplicação da Constituição, a partir da técnica da “interpretação conforme”.

VIII) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; IX) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para tanto contar com a consultoria da FUNAI; X) o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação, nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; XI) devem ser admitidos o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios no restante da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI; XII) o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios, não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; XIII) a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público, tenham sido excluídos expressamente da homologação, ou não; XIV) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º , Constituição Federal , c/c art. 18, caput, Lei nº 6.001/1973): XV) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como atividade agropecuária ou extrativa (art. 231, § 2º Constituição Federal, c/c art. 18, § 1º, Lei n. 6.001/1973); XVI) as terras sob ocupação e posse dos grupos e das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 2331, § 3º, da CR/88, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; XVII) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; XVIII) os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, CR/88); XIX) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento” (BRASIL, 2010, p. 82-84).

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Outros Ministros votaram ainda em 200846, mas novo pedido de vistas levou a conclusão do julgamento da ação principal para abril de 2009. O trânsito em julgado ocorreu somente em 2013, por conta do julgamento de importantes Embargos de Declaração opostos pelo MPF e pela FUNAI, relatado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, no qual foram tecidos argumentos relevantes sobre posições polêmicas do acórdão, como a suposta força vinculante da decisão para outros casos. Para além de questões jurídicas47, o caso demonstrou o alcance e a complexidade das disputas de terras entre povos indígenas e a sociedade envolvente, que ocorrem desde o período colonial. Ao chegar no STF e provocar a interpretação das normas constitucionais sobre direitos indígenas com profundidade inédita, o julgamento pode ser considerado o mais recente marco de reavaliação da política indigenista brasileira, ou um verdadeiro leading case sobre a proteção dos povos indígenas e de seus direitos territoriais (MOTA; GALAFASSI, 2009, p. 76). Entretanto, o papel desempenhado pelo STF no julgamento foi dúbio: como questão positiva, reconheceu a constitucionalidade do processo administrativo de demarcação e garantiu a posse permanente das cinco etnias ocupantes da área. Mais do que isso: o STF não encontrou ofensa à soberania nacional na demarcação em área contínua e em faixa de fronteira; afastou a possibilidade da demarcação de terras indígenas ameaçar o princípio federativo e o desenvolvimento da nação; e reconheceu a proteção dos povos e culturas distintas que compõem a nação brasileira, em sintonia com a superação do integracionismo e com a afirmação da plurietnicidade (YAMADA; VILLARES, 2010, p. 149). Por outro lado, significou, também, o enfraquecimento de direitos para tentar remediar conflitos fundiários históricos, a partir da criação de regras inexistentes no ordenamento, como o marco temporal da demarcação e as “salvaguardas institucionais”: 46

Além dos Ministros citados, o resultado dos votos deu-se da seguinte maneira: os Ministros Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes, mesmo com algumas ressalvas, votaram pela parcial procedência, para adotar as condicionantes do voto do Min. Menezes Direito. O Min. Joaquim Barbosa votou pela improcedência da ação, discordando das condicionantes, por conta da impossibilidade de influenciar novos casos. O Min. Marco Aurélio votou pela procedência da ação popular. 47 São diversos os artigos, dissertações, teses e livros publicados analisando todos os aspectos do caso, desde as questões maiores envolvidas (soberania nacional, demarcação contínua e em faixa de fronteira, conceito de terras indígenas, utilização dos recursos), até análise de discurso nos votos proferidos e de relações entre os atores envolvidos, como partes, amici curiae e os próprios Ministros. Para os fins deste trabalho, busca-se dar um panorama geral dos acontecimentos e das principais questões jurídicas, mas com foco voltado à análise dos significados gerais do julgamento, que propôs condicionantes e teses controversas que vêm impactando negativamente em outros processos judiciais sobre demarcações, denunciando a colonialidade presente em tais construções jurídicas. Para uma leitura completa sobre o caso, vide outras obras já citadas ao longo do trabalho (LIPPEL, 2014; KAYSER, 2009; ANJOS FILHO, 2011; YAMADA, VILLARES, 2010; MIRAS, 2009), além do dossiê elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA), disponível em: Acesso em: 23.01.2017.

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As 19 ressalvas pretensamente procuravam conciliar os interesses indígenas, a defesa nacional e a preservação do meio ambiente. Algumas são interpretações ou repetições do texto constitucional e legal (as de número 1, 2, 3, 4, 14, 15, 16, 18), outras, comandos contrários aos já estabelecidos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (5, 6, 7), e em regulamentação infralegal (8, 9 e 10). Ainda, a criação de enunciados normativos pelas ressalvas 11, 12, 13, 17 e 19. (YAMADA; VILLARES, 2010, p. 147).

Tais condicionantes foram criadas como enunciados de caráter geral visando ao relacionamento futuro do Estado com os povos indígenas, ou seja, sem que houvesse relação direta de todas elas com o caso concreto da TI Raposa Serra do Sol, sem as discussões necessárias com a sociedade e, principalmente, sem consulta prévia aos povos indígenas, como previsto na Convenção nº 169 da OIT. Por conta de tal posição heterodoxa adotada pelo órgão jurisdicional, nitidamente de caráter antidemocrático, Anjos Filho (2013) afirma que foram “[...] simplesmente impostas sem qualquer diálogo intercultural, por um órgão jurisdicional sem poderes constituintes, reformadores ou ao menos legislativos, e mediante violação das leis processuais” (ANJOS FILHO, 2013, p. 39-40). Apesar de propostas como regras gerais a serem aplicadas a futuras demarcações, o relator acolheu as “salvaguardas institucionais” apenas como “[...] diretivas para a execução desta nossa decisão por parte da União” (BRASIL, 2010, p. 370). Mesmo assim, a Advocacia-Geral da União (AGU) foi rápida em editar a Portaria nº 303/2012 que, sob pretexto de regulamentar a atuação dos advogados públicos e procuradores em processos judiciais envolvendo a demarcação e uso de terras indígenas, incorporou todas as condicionantes como se fossem etapas oficiais do procedimento de demarcação. Posteriormente, a possibilidade de vinculação do caso foi minimizada de forma retórica pela decisão tomada em 2013 no julgamento dos Embargos de Declaração opostos pelas comunidades indígenas e pelo Ministério Público Federal, o que inclusive ajudou na suspensão da Portaria da AGU. Nas palavras do Relator, Min. Luís Roberto Barroso:

3. As chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada. Não apenas por decorrerem, em essência, da própria Constituição, mas também pela necessidade de se explicitarem as diretrizes básicas para o exercício do usufruto indígena, de modo a solucionar de forma efetiva as graves controvérsias existentes na região. Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa julgada material. Isso significa que a sua incidência na Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em eventuais novos processos. 4. A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma

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automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em que se cogite da superação de suas razões. (BRASIL, 2014, p. 2).

É próprio das Cortes Constitucionais a utilização das chamadas “sentenças aditivas” como medida para preencher a omissão inconstitucional mediante a criação de novo comando normativo que já se encontra de forma incipiente no texto constitucional. Ocorre que, no julgamento da TI Raposa Serra do Sol, o STF extrapolou as condições aceitáveis para utilização deste tipo de sentença, sobretudo porque sequer era necessária para a resolução do caso concreto. Como explicam Souza Neto e Sousa Filho (2013): [...] não se identifica, porém, no julgamento da ação popular qualquer omissão legislativa inconstitucional que exigisse, em princípio, o exercício da atividade integradora ou corretiva. A referida sentença aditiva foi proferida para inserir no ordenamento complementação normativa que não se apresenta como constitucionalmente obrigatória. (SOUZA NETO; SOUSA FILHO, 2013).

Além das condicionantes e do marco temporal, o julgamento também tratou da conceituação restrita de território, contrariando, em certa medida, a necessidade de consideração da territorialidade e da plurietnicidade na sua dimensão territorial, bem como a previsão de autodeterminação e controle sobre os territórios da Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas de 200748. Embora o relator tenha reconhecido a relação essencial do modo de vida das comunidades indígenas com a natureza, inclusive o direito à demarcação, afirmou que terra indígena não pode ser igualada à território, sob pena de equipará-la a ente federativo, com incidência de ordem jurídica soberana ou autônoma. Para o STF, as terras indígenas possuem exclusiva dimensão sociocultural, não podendo gerar pretensões de autonomia e autogoverno (LIPPEL, 2014, p. 25). Por tudo isso, a decisão da TI Raposa Serra do Sol parece ter cumprido dois objetivos: primeiro, o de “[...] limitar a ação do Poder Executivo em sua responsabilidade constitucional de demarcar as terras indígenas e suplantar a inação do Poder Legislativo” (YAMADA; VILLARES, 2010, p. 154), diante da sua morosidade em aprovar o Estatuto das

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Houve debates sobre o alcance e significado da Declaração, concluindo o STF pela ausência de eficácia vinculativa no plano jurídico interno, possuindo apenas – mas importante – valor hermenêutico. Sobre a suposta ameaça à soberania nacional pela equiparação de terra e território que a Declaração garante como direito dos povos indígenas, alguns Ministros e Ministras afastaram tal possibilidade, concluindo que o próprio texto da Declaração rechaça que os direitos ali garantidos ameacem a autonomia política dos Estados e sua soberania. Mesmo assim, manteve-se a separação conceitual (LIPPEL, 2014, p. 24-25).

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Sociedades Indígenas49; segundo, de se alçar em uma nova dimensão do controle de constitucionalidade, “[...] superando o papel da corte constitucional como legisladora negativa, a indicar a construção de soluções não expressas, criando o direito e a norma abstrata, com seus artigos, alíneas e parágrafos.” (YAMADA; VILLARES, 2010, p. 154). Enquanto Corte Constitucional do país, o papel do STF deveria versar sobre a efetividade do direito fundamental à terra dos povos indígenas, o que de fato ocorreu em votos densos com diversas passagens notáveis sobre a relação existencial dos índios com o território50. Ocorre que sua postura ultrapassou o interesse voltado às questões indígenas, pois tratou inclusive de assunto de interesse do funcionamento do Poder Judiciário, ou seja, a dúvida quanto à legitimidade de juízes criarem o direito. Os conflitos fundiários entre índios e não índios foram resolvidos de diversas formas ao longo da história, desde as “guerras justas” até o reconhecimento de determinados direitos, mas geralmente no intuito de facilitar a destinação de territórios a particulares. Apesar disso, no mais das vezes, o fundamento das normas e de suas interpretações sobre questões indígenas “[...] se dá pela necessidade de remediar situações de conflito entre índios e não índios, e não como forma de reconhecer direitos de maneira equitativa ou prevenir a violação de direitos indígenas” (YAMADA; VILLARES, 2010, p. 148). Esta parece novamente a motivação da extensa argumentação do Tribunal acerca do conteúdo dos direitos territoriais indígenas previstos constitucionalmente: “colocar uma pá de O chamado “Estatuto das Sociedades Indígenas”, PL nº 2.057/1991, de autoria dos Deputados Federais Aloizio Mercadante (PT/SP), Fábio Feldmann (PSDB/SP), Jose Carlos Saboia (PSB/MA) e outros, foi a tentativa de substituir o “Estatuto do Índio” como a lei infraconstitucional que estabelece os direitos dos povos indígenas, a partir da mudança de perspectiva que marcou a promulgação da Constituição Federal de 1988 e relegou o atual Estatuto, a Lei nº 6.001/1973, ao passado integracionista formalmente superado. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) apresentou sua versão de Estatuto dos Povos Indígenas ainda em 1991. A Comissão Especial aprovou em 1994 o substitutivo do Dep. Luciano Pizzato, que incorporou o substitutivo do CIMI e outro do Governo Federal da época. Desde então, por conta da inércia do Executivo, a matéria não mais tramitou. As principais questões em disputa eram a tutela (fim ou continuação) e os níveis de conceituação (índio, comunidade - aldeia - e sociedades ou povos, sendo que o termo povos encontrava resistências). A Comissão Nacional de Política Indigenista apresentou, em 2009, através do então Ministro da Justiça Tarso Genro, outra proposta de estatuto, denominado Estatuto dos Povos Indígenas, que não avançou e obteve críticas inclusive de lideranças indígenas, pois aparentemente a proposta não os consultou à exaustão, conforme exige a Convenção 169 da OIT. Outra proposta legislativa foi feita em 2016 (Projeto de Lei do Senado nº 169, de 2016, Sen. Telmário Mota – PDT, 19 de abril de 2016, cuja situação é envio à CCJ). Em 14 de setembro, foi anexado ofício do Conselho Nacional de Política Indigenista do Ministério da Justiça e Cidadania, pedindo a suspensão da tramitação, por não ter havido consulta prévia aos povos interessados. Entendem que o Conselho deve se manifestar sobre o conteúdo e ajudar a construir a minuta antes da tramitação. Também mencionam a tramitação do PL original de 1991, de mesma matéria, mas que teve um substitutivo elaborado com participação dos indígenas, através da Comissão Nacional de Política Indigenista, substituída pelo atual Conselho. 50 Como exemplo, destaca-se um trecho do voto-vista do Min. Menezes Direito: “Não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. [...] É nela e por meio dela que eles se organizam. É pisando o chão e explorando seus limites que desenvolvem suas crenças e enriquecem sua linguagem, intimamente referenciada à terra. Nada é mais importante para eles. [...] Por isso, de nada adianta reconhecer-lhes os direitos sem assegurar-lhes as terras, identificando-as e demarcando-as.” (BRASIL, 2010, p. 219). 49

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cal nos conflitos” e “encerrar de vez as disputas” são versões aproximadas de expressões que permearam os votos dos Ministros e Ministras. Além disso, é bastante representativo que a terra indígena em disputa tenha sido objeto de preocupação em 1917 e de demarcação ainda nos anos 70, consistindo em palco de conflitos violentos e de ampla resistência indígena ao longo de anos.

3.1.2 A tese do marco temporal da demarcação de terras indígenas e a exceção do renitente esbulho

Diante dos muitos temas abordados na decisão do caso da TI Raposa Serra do Sol, certamente os mais polêmicos dizem respeito às salvaguardas institucionais e ao denominado “conteúdo positivo do ato de demarcação das terras indígenas”, presente no corpo do texto, ao qual se inclui a afirmação de que a data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, seria o marco temporal insubstituível para a verificação da ocupação tradicional indígena e para a efetiva demarcação. O Min. Ricardo Lewandowski afirmou que a data representaria uma espécie de “fotografia” do momento, enquanto que o relator, Min. Carlos Ayres Britto, chamou-a de “chapa radiográfica” da situação de ocupação. Assim, a teoria do indigenato, há décadas seguida pelo STF como paradigma do reconhecimento dos direitos originários indígenas, parecia estar sendo relativizada para a adoção de uma “teoria do fato indígena”. É relevante a transcrição completa dos argumentos do Min. Carlos Ayres Britto acerca da ideia de marco temporal da ocupação, a partir da qual são construídas críticas e geradas consequências em outros casos: I – o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante o recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira é a chapa radiográfica

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da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia aborígine. Exclusivo uso e fruição (usufruto é isso, conforme Pontes de Miranda) quanto às “riquezas do solo, dos rios e dos lagos” existentes na área objeto de precisa demarcação (§ 2º do art. 231), devido a que “os recursos minerais, inclusive os do subsolo”, já fazem parte de uma outra categoria de “bens da União” (inciso IX do art. 20 da CF); (BRASIL, 2010, p. 137-138).

Apesar de tal entendimento, a posição sobre o marco temporal adotada pela maioria do STF foi a menos gravosa: a tradicionalidade não poderia ser afastada pela verificação “cartesiana” da presença indígena, equiparando-se posse tradicional e posse civil. Deste modo, no julgamento, o próprio STF afirmou que injustiças históricas não seriam avalizadas pela tese, porque a ocupação tradicional indígena consubstancia, nos dizeres do Min. Carlos Ayres Britto, um instituto de Direito Constitucional, e não de Direito Civil, e porque a ausência física em 5 de outubro de 1988 poderia ser suprida pela comprovação de expulsão das terras, evitando-se legitimar títulos fraudulentos adquiridos pela violência do esbulho:

A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das “fazendas” situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da “Raposa Serra do Sol” (…) o que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. (BRASIL, 2010, p. 77).

Porém, quais ações podem ser consideradas “renitentes” para descaracterizar o marco temporal em um contexto de tutela, como era antes de 1988? A não presença física em 5 de outubro significa ausência de aldeias – uma visão estereotipada da territorialidade – ou abrange a relação tradicional esporádica e rarefeita com o território, como visitas a locais sagrados e caça e pesca de subsistência? Assim, por mais que exista a exceção do renitente esbulho, dependendo de como é fundamentada a tese do marco temporal – de forma hegemônica ou pluriétnica – os resultados concretos para as comunidades indígenas mudam da posse permanente ao despejo, levando a densidade normativa do art. 231 à nulidade. Embora afirmada no caso da TI Raposa Serra do Sol, tal interpretação constitucional vem sendo construída desde os anos 90, em outras oportunidades em que o STF foi instado a se manifestar sobre o conteúdo dos direitos territoriais indígenas da Constituição. No voto do Min. Marco Aurélio Mello, consta transcrição de trecho da decisão do Mandado de Segurança nº 21.575-5/MS, apreciado pelo Plenário em 3 de fevereiro de 1994, bem como menção à

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decisão do Min. Peçanha Martins, do Superior Tribunal de Justiça, no Mandado de Segurança nº 4.821/DF. Ambos dissertam sobre imemorialidade, tradicionalidade e o “tempo razoável” para a reivindicação de ocupação tradicional. Fato é que tanto a constitucionalidade da tese, quanto a interpretação de seus pressupostos é questionada por juristas, principalmente porque a observação da ausência de força vinculante do acórdão, por conta da natureza jurídica da ação, não foi suficiente para impedir que a 2ª Turma do STF aplicasse a tese do marco temporal e condicionantes para fundamentar anulações de terras indígenas. O primeiro caso é da Terra Indígena Guyraroká, no Município de Caarapó, Mato Grosso do Sul, território e 11 mil hectares declarado em 2009 para posse de 525 Guarani Kaiowá, através da Portaria nº 3.219/2009. A anulação ocorreu em 2014, nos autos do Mandado de Segurança nº 29.087, ao se aplicar a tese do marco temporal. Em 2015, através do Recurso Extraordinário com Agravo n° 803.462, veio a anulação da Terra Indígena Limão Verde, de 1.335 índios Terena, localizada no Município de Aquidauana, também no Mato Grosso do Sul, e demarcada pela Portaria nº 526/1998. Também em 2014, outra terra indígena, TI Porquinhos, do povo Kanela Apanyekrá do Maranhão, teve sua anulação decorrente da aplicação da condicionante de vedação de ampliação de TI. Em 2016 confirmou-se em Plenário do julgamento monocrático de 2010 que rejeitou anulação da Área Indígena Yvy Katu, dos Guaranis Kaiowá de Japorã (MS), demarcada em 1928 e ampliada em 1991. Sobre a alegação de que os índios não estavam em 5 de outubro de 1988 na área ampliada, o STF entendeu que seria necessária prova complexa, apta a contestar o laudo antropológico que fundamentou o estudo. Consequentemente, não houve anulação. A ideia de que o renitente esbulho impediria injustiças não se concretizou, tendo em vista as posteriores interpretações sobre o que é posse tradicional e o que é resistência aceitável no contexto pré-88, marcado pela tutela e pela assimilação. Assim, a primeira crítica levantada é sobre a ausência de previsão explícita ou implícita de que a data de promulgação da Constituição seria o marco para a verificação da ocupação tradicional51. Em observação interessante, Paulo Thadeu Gomes da Silva (2016) 51

Em recente entrevista ao Instituto Socioambiental (ISA), os ex-Deputados constituintes José Carlos Saboia, Fábio Feldmann e Luís Carlos Sigmaringa Seixas afirmaram que não houve intenção de incluir limite temporal para os direitos territoriais indígenas no texto da Constituição, colocando em dúvida a afirmação do STF, no caso Raposa Serra do Sol, de que a Constituição “trabalhou com data certa” e de que a data de 5 de outubro de 1988 seria o “marco objetivo insubstituível”. Destacam-se as seguintes perguntas e respostas: “[...] ISA - O entendimento de que as Terras Indígenas só poderiam ser demarcadas se estivessem ocupadas pelos índios na data da promulgação da Constituição não é um preceito constitucional, então? Feldmann - Não é um preceito constitucional. Até teve a discussão – que envolveu basicamente a questão mais emblemática – dos Yanomami, que foi a questão da peregrinação indígena. Essa questão tem que ser colocada nesse contexto. Essa

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afirma que sempre que a Constituição quer referir-se a si própria, ela o faz expressamente, dirigindo a palavra em primeira pessoa. Essa autorreferência é conhecida como “autológica”, como o exemplo do art. 60, caput, que trata do seu processo de emenda52. Neste sentido, refere que o próprio STF já utilizou deste argumento, ao menos em um voto do Min. Luiz Fux, no RE 655.5265, portanto caberia a analogia argumentativa (SILVA, 2016). Por sua vez, José Afonso da Silva (2015) aponta que a leitura do caput do art. 231 indica que os direitos territoriais são anteriores à Constituição, tanto porque considerados originários quanto porque o verbo utilizado é “reconhecidos”, e não “conferidos”, denotando sua mera declaração. Ainda, argumenta sobre a continuidade de proteção constitucional que vem desde antes do ano de 1988:

A Constituição de 1988 é o último elo do reconhecimento jurídico-constitucional dessa continuidade histórica dos direitos originários dos índios sobre suas terras e, assim, não é o marco temporal desses direitos, como estabeleceu o acórdão da Pet. 3.388. [...] Em sentido temporal, marca limites históricos, ou seja, marca quando se inicia situação nova na evolução de algo. Pois bem, o documento que deu início e marcou o tratamento jurídico dos direitos dos índios sobre suas terras foi a Carta Regia de 30 de julho de 1611, promulgada por Felipe III. (SILVA, 2015, p. 9).

Deste modo, o reconhecimento constitucional dos direitos indígenas pode ser considerado um segundo marco histórico, pois os mesmos adquirem uma nova configuração jurídico-formal, saindo das vias ordinárias para o rol de direitos fundamentais dotados de supremacia constitucional. Isso, como visto no ponto 2.3.1, ocorreu com a Constituição de 1934. A Constituição de 1988 deu seguimento a esse processo, além de incluir novos direitos, conforme o art. 231. Assim, considerá-la como o marco temporal é promover um corte na proteção que vinha sendo construída ao longo do tempo (SILVA, 2015, p. 10-11). O segundo argumento diz respeito à fundamentalidade dos direitos indígenas, principalmente os territoriais, mesmo que localizados fora do catálogo constitucional destes direitos (artigos 5º a 17). José Afonso da Silva (2015) refere que podem ser classificados como direitos fundamentais de solidariedade, tal como o direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado e, por isso, supraestatais e absolutos (SILVA, 2015, p. 5). permanência tem que ser relativizada pelo fato de que – e o caso dos Yanomami é o mais emblemático – você tem um território grande, que é ocupado, mas é ocupado através de fluxos. Mas a Constituição não fixou isso. [...] ISA - Houve intenção dos constituintes em estabelecer um limite temporal à vigência dos direitos territoriais dos índios? Sigmaringa Seixas - Para os que pensavam em termos de integração, inclusão, assimilação, esta ideia era compatível, ou seja, a partir de sua integração não haveria mais necessidade de uma legislação protetora específica. Mas o pensamento majoritário aderiu à ideia de uma espécie de soberania indígena, de integração, sem necessariamente assimilação. Nestes termos, não fazia sentido se pensar em prazos, mas, sim, em princípios.” (ISA, 2017). 52 “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta [...]” (BRASIL, 1988).

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Paulo Thadeu Gomes da Silva (2016), por sua vez, afirma que os direitos indígenas atendem aos requisitos da teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy para a configuração de um direito como fundamental: universalidade, preferencialidade, moralidade, abstração e fundamentalidade53 (SILVA, 2016). Decorre da fundamentalidade material que tais direitos também devem ser objeto de aplicação da máxima da proporcionalidade e, mais especificamente, da proibição da proteção deficiente ou vedação da insuficiência. Esta relaciona-se à dimensão da “necessidade” do princípio e decorre diretamente do dever de proteção e promoção dos direitos fundamentais. Apesar de se referir, geralmente, à ação ou omissão legislativa no cumprimento de um imperativo constitucional, entende-se que mesmo uma decisão judicial, inclusive do STF, pode causar a insuficiência proibida (SILVA, 2016). No mesmo sentido, como alerta Duprat (2015), da condição de direitos humanos e fundamentais que os direitos territoriais indígenas assumem, também decorre a incidência do princípio da proibição do retrocesso, que veda a eliminação das conquistas alcançadas na proteção de um direito, permitindo apenas adições e melhorias. Como consequência, entendese que somente a desocupação voluntária das terras tradicionais poderia fazer cessar a proteção, uma vez que o esbulho, ato contrário ao direito, não poderia neutralizar a proteção constitucional, mesmo com o passar do tempo:

[...] não seria possível, em especial pela via hermenêutica, desconsiderar o ganho de proteção constitucional às terras indígenas desde 1934, legitimar as desterritorializações forçadas, e instaurar, a partir de 1988, um regime que confere validade ao esbulho se os indígenas a ele não se opuseram por décadas a fio. (DUPRAT, 2015, p. 12).

Para além dos argumentos jurídico-constitucionais sobre os problemas da tese do marco temporal, a visão estreita do STF sobre o conceito de ocupação e de resistência indígenas, aliada a uma anti-historicidade imposta às relações entre indígenas e sociedade envolvente – e suas consequências: assimilacionismo, tutela, genocídio, etnocídio, etc. – é o 53

Segundo o autor, em relação à teoria dos direitos fundamentais de Alexy aplicada aos direitos territoriais indígenas, os direitos que pretendem ser fundamentais precisam apresentar a característica da fundamentalidade, a qual se expressa pelos interesses e carências passíveis de positivação pelo direito. Se a violação de um interesse ou a não satisfação de uma carência geram consequências graves ao seu titular, como morte ou sofrimento, que tocam o núcleo essencial da autonomia, então tal direito é passível de ser considerado fundamental: “É de se aplicar, então, o teste da fundamentalidade ao direito à terra. Se ocorrer a violação ou a não satisfação desse direito, o que se produz como consequência é a morte ou um sofrimento grave dos índios, e isso porque, a par das tristes demonstrações estatísticas empíricas nesse sentido, a terra é um elemento imprescindível na autorreprodução das sociedades indígenas” (SILVA, 2015, p. 77). Direitos territoriais indígenas, por serem constitucionais, também são considerados prioritários. Por fim, considerando a abertura semântica destes direitos, garantidos em respeito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições de cada etnia indígena, são marcados, também, pela abstração (SILVA, 2015, p. 78).

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que resulta na anulação de terras indígenas demarcadas ou em processo de demarcação. Esta postura reforça, também, uma posição etnocêntrica que expressa a colonialidade do poder, dos saberes e das subjetividades, objeto da seção derradeira deste trabalho.

3.2 A colonialidade presente na fundamentação jurisprudencial do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal

Apesar da ausência de força vinculante da decisão proferida no caso da TI Raposa Serra do Sol, o que inclusive foi confirmado em sede de embargos declaratórios, já há casos em que as teses do marco temporal e do renitente esbulho fundamentaram a anulação de terras indígenas, colocando em dúvida a abrangência da proteção constitucional que evoluciona desde 1934 até o reconhecimento da plurietnicidade e da fundamentalidade em 1988. Há elementos nestes casos concretos que denotam uma questão de fundo, que se manifesta em posições jurídicas e interpretações normativas insuficientes: a persistência da colonialidade, que se expressa através da desconsideração das subjetividades historicamente construídas dos índios, da primazia do conhecimento eurocêntrico sobre outros saberes e cosmologias, bem como da estruturação das relações de poder e interesses envolvidos nos conflitos fundiários indígenas. Não por coincidência, ambas as terras indígenas anuladas se encontram no Estado do Mato Grosso do Sul, onde os conflitos fundiários entre índios e nãoíndios, bem como o histórico de violência e de espoliação de territórios pelo próprio Estado acrescentam elementos importantes para a análise da colonialidade. Nesta seção, portanto, são apresentados e discutidos tais elementos dos casos concretos que permitem uma aproximação às dimensões da colonialidade analisadas no primeiro capítulo: colonialidade do poder, do saber e do ser. Embora muitos elementos possam ser analisados por todas as três dimensões, propõe-se uma divisão temática que se acredita mais pertinente para a aproximação do referencial teórico ao objeto de estudo.

3.2.1 Colonialidade do ser, violências e anti-historicidade

O desenvolvimento das ideias acerca da dimensão ontológica da colonialidade se deu em função da necessidade de considerar a experiência vivida dos sujeitos coloniais e a produção e reprodução de sua sub-alteridade pelo discurso colonial, ainda presente no constitucionalismo pluriétnico pós-88 e na sociedade atual. Assim, como visto no capítulo que apresenta o referencial teórico, a suspeita permanente sobre a humanidade dos índios (e dos

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negros) transforma-se, na modernidade, no questionamento da sua racionalidade. Deste processo, resulta a construção da diferença sub-ontológica – legitimada e formalizada pela ideia de raça – e a imposição de verdadeiro “inferno diário” na experiência vivida dos sujeitos colonizados, que são invisíveis na sua humanidade, nos seus direitos e na sua subjetividade, e ao mesmo tempo visíveis em excesso ao olhar da sociedade (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 154). Tais ideias são reforçadas pelo discurso colonial que, segundo Bhabha (2007), visa a construir o sujeito colonizado como um tipo degenerado sobre a base de origem racial, de modo a justificar a conquista e os sistemas de administração, seja dos próprios corpos (período colonial), seja de seus territórios (atualidade) (BHABHA, 2007, p. 95-96). Estas ideias são encontradas na forma como a tese do marco temporal vem sendo fundamentada e, sobretudo, aplicada pelo STF nos casos de anulação de terras indígenas (TI Guyraroká e TI Limão Verde), nos seguintes pontos: a) a persistência da tutela, com a não participação das comunidades indígenas nos processos que visam a anulação de suas terras demarcadas; b) o consequente bloqueio da possibilidade de resistência, por conta da inferiorização da tutela; c) a anti-historicidade da tese, ao desconsiderar a história recente de violência, tutela e tomada de territórios tradicionais, sobretudo na ditadura civil-militar, que influencia a subjetividade indígena atual e sua capacidade de resistência; d) o agravamento dos conflitos atuais, das mortes e das condições de vida precárias, com a revisão de direitos e de demarcações em estágio avançado ou mesmo concluídas. Em relação ao retorno de elementos de tutela, o caso da TI Limão Verde, dos índios Terena do Município de Aquidauana/MS, é emblemático neste sentido. A ação ordinária proposta pelo proprietário da Fazenda Santa Bárbara, com benfeitorias já indenizadas no processo de demarcação e desapropriação, foi negada em todas as instâncias, sobretudo no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, cujos Desembargadores concluíram que o laudo antropológico e demais provas dos autos demonstraram o esbulho e a desocupação alheia à vontade dos Terena, suficiente para atender ao marco temporal. Chegando o processo ao STF através de Agravo (Recurso Extraordinário com Agravo nº 803.462), o próprio Relator, Min. Teori Zavascki, concluiu por negar seguimento ao recurso, tendo em vista que a discussão sobre ocupação tradicional e esbulho demandaria reanálise das provas. De qualquer forma, o argumento utilizado foi a incidência da Súmula 279/STF54, que veda o reexame de prova pela via do Recurso Extraordinário.

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Súmula 279/STF: Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.

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Foi somente em sede de Agravo Regimental ao Recurso Extraordinário que o STF afirmou o posicionamento da ausência da comunidade indígena na data do marco temporal e ausência de comprovação de estarem reivindicando enfaticamente o retorno. Em verdade, o próprio Relator mudou seu posicionamento, por influência do voto do Min. Gilmar Mendes na anulação da TI Guyraroká, meses antes (Mandado de Segurança nº 29.087). Assim, mesmo com o laudo antropológico indicando presença na área em 1988 e o processo mencionando diversas manifestações formais das lideranças indígenas dirigidas aos órgãos públicos, a Corte entendeu pela possibilidade de reexaminar e de desconsiderar a prova dos autos. Ato contínuo, a comunidade indígena dos Terena solicitou seu ingresso de forma incidental no processo, na qualidade de litisconsorte passivo necessário, a fim de contestar a versão dos Ministros de que não houvera ocupação e resistência ao esbulho e, assim, requerer a nulidade do julgamento. Em 27 de abril de 2015, o pedido foi indeferido pelo Min. Teori Zavascki, nestes termos: [...] a Comunidade Terena não logrou êxito em demonstrar qualquer prejuízo decorrente de sua não participação no processo, sendo certo que (a) integrou o polo passivo da demanda a FUNAI – órgão a quem cabe ‘a defesa judicial ou extrajudicial dos direitos dos silvícolas e das comunidades indígenas’ (art. 35 da Lei 6.001/73) – e (b) a causa foi acompanhada em todas as instâncias pelo Ministério Público Federal’. É de salientar que ambos os órgãos interpuseram recursos em favor da Comunidade Terena. (BRASIL, 2015c, p. 2).

A anulação da TI Guyraroká, ocupada por 500 Guaranis-Kaiowá no município de Caarapó/MS, também ocorreu por meio de revisão de conjunto probatório por via inadequada e pela negativa de participação no processo da comunidade indígena diretamente afetada, apesar do pedido formal da própria comunidade, que constituiu advogado e identificou suas lideranças. O proprietário de terras sobre a área demarcada impetrou Mandado de Segurança perante o STJ, mas somente no Recurso Ordinário nº 29.087 ao STF que logrou anular a Portaria nº 3.219/2009 do Ministro da Justiça, a qual declarava a terra como de posse tradicional. Mesmo com parecer contrário da Procuradoria-Geral da República e voto do Relator do processo, Min. Ricardo Lewandowski, a anulação ocorreu por maioria, cabendo ao Min. Gilmar Mendes a redação do acórdão. Em sede de Embargos Declaratórios, o Ministro também rejeitou a participação da comunidade indígena no processo:

Em relação à representação da Comunidade indígena Guyraroká, ressalto que a FUNAI é órgão federal do Estado brasileiro responsável pela proteção dos índios e de seus bens, ao qual cabem todos os estudos e levantamentos que precedem a demarcação, nos termos do art. 231 da Constituição Federal, bem como da Lei 5371,

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de 5.12.1967. Em petição, essa própria Fundação reafirma que “o resgate dos direitos legítimos e tradicionais dos Kaiowá de Guyraroka” é sua obrigação jurídica e administrativa, por ser o órgão do governo federal instituído para executar sua política indigenista. (fl. 262). Inclusive, porque, “entre suas atribuições, está o ‘exercício dos poderes de representação ou assistência jurídica inerentes ao regime tutelar do índio’, nos termos do art. 1º, parágrafo único da Lei 5371/67”. Afasto, portanto, o argumento da Comunidade indígena Guyraroká a indicar que sua não participação teria impedido sua defesa, especialmente em relação à demonstração do período de ocupação das terras em questão. (BRASIL, 2015c, p. 11).

O advento do art. 232 da Constituição de 1988, que assegura a participação em nome próprio dos indivíduos e comunidades indígenas nos processos judiciais que lhes dizem respeito, significou a superação do regime tutelar e da incapacidade relativa que perdurou durante o paradigma integracionista. Ainda que o MPF e a FUNAI tenham dentre suas atribuições o acompanhamento dos processos judiciais das comunidades indígenas, por conta da qualidade da parte, não podem falar em substituição aos índios, sobretudo quando os mesmos manifestam formalmente o desejo de participar das ações, como de fato ocorreu por diversas vezes nos processos citados. Veja-se que os Ministros sequer mencionam a Constituição, mas o Estatuto do Índio e a Lei nº 5.371 de 196755, símbolos do período integracionista e tutelar que se referem de forma discriminatória e estereotipada aos índios como silvícolas, ou seja, o habitante da floresta. Ainda, o direito à participação e à voz própria é inclusive previsto em normas internacionais56. Importante observar que, no caso do Mandado de Segurança, a parte que tiver sua esfera jurídica afetada deve ser chamada para discutir a matéria, como prevê a Súmula nº 631 do STF57, e obviamente peticionar em nome próprio. Assim, é possível inferir que o processo seria de fato extinto caso a parte afetada não fosse uma comunidade indígena, pois na visão A Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, autoriza a instituição da “Fundação Nacional do Índio”, em substituição ao contestado SPI. No entanto, quanto ao conteúdo, possui nítido viés integracionista e tutelar, o que não foi recepcionado pela Constituição de 1988: O parágrafo único do art. 1º estabelece que “A Fundação exercerá os podêres de representação ou assistência jurídica inerentes ao regime tutelar do índio, na forma estabelecida na legislação civil comum ou em leis especiais.” Já o inciso V do art. 1º determina como atribuição do órgão “promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na sociedade nacional;” (BRASIL, 1967b). 56 O art. 12 da Convenção 169 da OIT prescreve este direito nos mesmos moldes, a saber: “Os povos interessados deverão ser protegidos contra a violação de seus direitos e deverão poder mover ações legais, individualmente ou por meio de seus órgãos representativos, para garantir a proteção efetiva de tais direitos. Medidas deverão ser tomadas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em processos legais, disponibilizando-se para esse fim, se necessário, intérpretes ou outros meios eficazes.” (OIT, 1989). No mesmo sentido é o teor do art. 40 da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU de 2007: “Os povos indígenas têm direito a procedimentos justos e equitativos para a solução de controvérsias com os Estados ou outras partes e a uma decisão rápida sobre essas controvérsias, assim como a recursos eficazes contra toda violação de seus direitos individuais e coletivos.” (ONU, 2007). 57 Súmula 631 STF: Extingue-se o processo de mandado de segurança se o impetrante não promove, no prazo assinado, a citação do litisconsorte passivo necessário. 55

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dos Ministros é ainda substituída processualmente pelo órgão indigenista. É o posicionamento que faz crer a jurisprudência citada na própria página do STF que apresenta a Súmula58. Se o território possui valor espiritual e de base material para o desenvolvimento da vida dos povos indígenas, sendo elemento central da sua cosmovisão e formação de sua subjetividade, então o prejuízo da decisão aos 1.300 Terena e 500 Guarani-Kaiowá é bastante significativo, e deveria ser considerado pela Corte Constitucional do país, que possui dentre sua competência o dever de efetivação dos direitos fundamentais. Tal postura do STF parece relativizar a superação da tutela e a afirmação do ciclo do constitucionalismo pluriétnico no país. Mais do que isso: tal discurso parece colocar em dúvida a racionalidade da comunidade indígena para falar em nome próprio, relegando-os a uma sub-alteridade, porque alguns sujeitos teriam a possibilidade de existência e outros seriam privados da resistência ontológica, ou seja, da possibilidade de se afirmar no mundo enquanto sujeito dotado de historicidade e subjetividades específicas. Ademais, como alerta Spivak (2010), o discurso do intelectual ocidental – ou do agente estatal que dispensa a fala do sujeito no espaço público – pode produzir o que ela chama de violência epistêmica, relegando o discurso, o conhecimento e a identidade do sujeito colonial a um plano de inferioridade ou mesmo inexistência (SPIVAK, 2010). A própria ideia de perda de direitos pela não ocupação em uma data aleatória leva a crer que ainda há uma hierarquização entre índios aculturados e índios “de verdade”. Ou seja: somente aqueles que não passaram por processos de territorialização (reorganização sociocultural, reelaboração da cultura e da relação com o passado, politização em relação a direitos) ou de etnogênese (a emergência étnica impulsionada pelo momento constitucional), seriam dignos da demarcação de terras, pois ainda manteriam os caracteres essencialistas da indianidade. Já aqueles que mantiveram relações menos estereotipadas com o território, mesmo que por fatores alheios à sua vontade, teriam uma série de dificuldades de comprovar ao STF sua ocupação tradicional, sendo considerados “menos índios” com menos direitos. Assim, a expulsão dos seus próprios territórios e o registro de títulos privados sobre as terras tradicionais, atos considerados contrários ao direito, teriam o poder de neutralizar um direito constitucional e originário, presente no ordenamento, ao menos, desde a Constituição de 1934. A desconsideração da existência da tutela e do paradigma integracionista também 58

Transcreve-se aqui somente a referência do acórdão citado como exemplificativo da aplicação da Súmula 631: MS 28375, Relatora Ministra Rosa Weber, Tribunal Pleno, julgamento 4.12.2013, DJe de 9.5.2014.

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demonstra a carga de anti-historicidade da tese. Ao estabelecer a data aleatória da promulgação da Constituição de 1988, apesar de todo seu o simbolismo, o STF relega uma série de eventos históricos a uma menor importância, quando, de fato, assumem papel central nas disputas territoriais do presente. Antes de 1988, justamente pela tutela, as comunidades indígenas não tinham acesso por si próprias ao sistema de Justiça, e não possuíam mecanismos efetivos de comunicação com o poder público para reivindicar os territórios tomados pelo avanço do agronegócio e pelos processos de colonização. Além disso, são inúmeros os relatos de violência, tomada de territórios e expulsões cometidas pelos próprios órgãos indigenistas, como o SPI e a FUNAI, intensificados no século XX com a ditadura civil-militar de 1964. No

“Relatório

circunstanciado

de

identificação

e

delimitação

da

Terra Indígena Guarani-Kaiowá Guyraroká”, elaborado pelo antropólogo Levi Marques Pereira, conforme Portaria Nº 083/PRES/FUNAI, de 31 de janeiro de 2001, há relatos sobre a perda do território Guyraroká por força da colonização e da ação e omissão de órgãos estatais:

A expulsão dos Kaiowá de Guyraroká combina uma série de fatores que merecem uma reflexão mais detalhada: a) a introdução de doenças até então desconhecidas e para as quais os tratamentos da medicina tradicional se mostravam pouco eficazes; b) a violência física exercida pelos fazendeiros que compraram a terra do Estado e pressionavam os Kaiowá para que saíssem; c) violência simbólica que implicava em não reconhecimento de seus líderes, desrespeito às formas de organização e aos valores que regulam a sociedade kaiowá. Isto abalou profundamente a auto-estima da sociedade. Desmoralizados e expostos as mais diversas formas de exploração e preconceito, ficava quase impossível reivindicar seus direitos, tanto é assim, que definem o tempo atual como “o tempo do direito”, em contraposição as situações vividas no passado quando “o índio não tinha direito”. (PEREIRA, 2002, p. 30).

Comentando sobre a atuação desastrosa destes órgãos, o relatório afirma que o SPI e a FUNAI foram ineficientes, negligentes e dotados de má-fé no cumprimento das suas obrigações constitucionais de proteção dos direitos indígenas, o que levou a completa desestruturação sociopolítica da comunidade durante o século XX: Fica claro que a atuação do SPI e depois FUNAI, foram no sentido de deslocar para o interior das reservas a população guarani dispersa por um território muito mais amplo, ocupado segundo sua forma tradicional de residência. Este procedimento permitia liberar as terras para a ocupação pelas empresas privadas. [...] A atual situação dos Guarani em Mato Grosso do Sul e os inúmeros conflitos pela posse da terra entre índios e fazendeiros, com prejuízo para ambas as partes, é resultado da incapacidade do órgão indigenista oficial em reconhecer e demarcar as terras indígenas, antes da efetiva ocupação da terra pelas atividades agropecuárias. (PEREIRA, 2002, p. 29).

No mesmo sentido, o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado em

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201559, traz fartos relatos que comprovam a relação entre as violações de direitos humanos e os interesses econômicos de não-índios e do próprio Estado brasileiro sobre os territórios indígenas. A espoliação das terras indígenas pelo Estado e a consequente invasão de nãoíndios foi uma prática recorrente a partir dos anos 1930, sobretudo no Estado do Mato Grosso do Sul:

Os interesses econômicos de proprietários se faziam representar nas instâncias de poder local para pressionar o avanço da fronteira agrícola sobre áreas indígenas. Em 1958, deputados da Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovaram o Projeto de Lei n° 1.077, que tornava devolutas as terras dos índios Kadiweu. Em 1961, o Supremo Tribunal Federal decide pela inconstitucionalidade da lei, mas, a essa altura, estava estabelecida a invasão, uma vez que as terras já tinham sido loteadas [...] Além das invasões propriamente ditas, eram comuns arrendamentos de terras que não obedeciam às condições do contrato – quando este havia – ocupando enormes extensões de terras indígenas; constituindo, em alguns casos, situação de acomodação das irregularidades (invasões praticadas e posteriormente legalizadas pelo SPI por meio de contratos de arrendamento). [...] O relatório da Comissão de Investigação do Ministério do Interior de 1967, presidida pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, constata a existência de problemas desse tipo em quase todo o território nacional e, no caso do esbulho ocorrido no sul do antigo estado do Mato Grosso, traz anexa lista de nomes de beneficiados com terras indígenas e suas vinculações com políticos, juízes, militares e funcionários públicos. (BRASIL, 2014c, p. 206).

No Relatório constam, também, inúmeros depoimentos que dão conta de atos de violência física e simbólica cometidas nas desocupações, inclusive pela atuação das próprias instituições estatais de repressão no apoio da expropriação territorial. Conforme relata o 59

A Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei nº 12.528, de 2011, e instituída em 16 de maio de 2012, entregou em dezembro de 2014 seu relatório final à sociedade identificando as violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado no período de 1946 a 1988. No volume II do relatório, foram incluídos os povos indígenas nas discussões oficiais da Justiça de Transição, ao se constatar as diversas violações sofridas por muitas etnias neste período: esbulhos, extermínio, mortes causadas por grandes obras, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos. Pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período. Como texto introdutório, pode-se citar a seguinte passagem: “Os povos indígenas no Brasil sofreram graves violações de seus direitos humanos no período entre 1946 e 1988. O que se apresenta neste capítulo é o resultado de casos documentados, uma pequena parcela do que se perpetrou contra os índios. Por eles, é possível apenas entrever a extensão real desses crimes, avaliar o quanto ainda não se sabe e a necessidade de se continuar as investigações. Não são esporádicas nem acidentais essas violações: elas são sistêmicas, na medida em que resultam diretamente de políticas estruturais de Estado, que respondem por elas, tanto por suas ações diretas quanto pelas suas omissões. Omissão e violência direta do Estado sempre conviveram na política indigenista, mas seus pesos respectivos sofreram variações. Poder-se-ia assim distinguir dois períodos entre 1946 e 1988, o primeiro em que a União estabeleceu condições propícias ao esbulho de terras indígenas e se caracterizou majoritariamente (mas não exclusivamente) pela omissão, acobertando o poder local, interesses privados e deixando de fiscalizar a corrupção em seus quadros; no segundo período, o protagonismo da União nas graves violações de direitos dos índios fica patente, sem que omissões letais, particularmente na área de saúde e no controle da corrupção, deixem de existir. Na esteira do Plano de Integração Nacional, grandes interesses privados são favorecidos diretamente pela União, atropelando direitos dos índios. A transição entre os dois períodos pode ser datada: é aquela que se inicia em dezembro de 1968, com o AI-5. Como resultados dessas políticas de Estado, foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão.” (BRASIL, 2014c, p. 204205).

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Guarani Damásio Martinez:

Até 1959, a gente ficou em Sanga-Funda, perto de Guabiroba, perto do rio Paraná [atual município de Foz do Iguaçu] [...] Foi ali que meu pai foi morto. Quando deram os tiros eu já vi o meu pai deitado no chão [...]. Os Brancos já tinham vindo pedir para meu pai as terras e o meu pai não quis dar. Ele era tipo um cacique [...]. Foram os Brancos que mandaram o jagunço. Depois que o meu pai morreu as pessoas começaram a sair. Uns foram para Mato Grosso, outros para Paraguai, outros para o centro. De manhã eu segui e depois eu fui depor, para contar o que é que aconteceu com meu pai. Quando eu estava perto da Bela Vista eu cruzei com os policiais. [...] E me levaram na delegacia. E falaram para mim que eu é que tinha matado meu pai. [...] E me prenderam. E eu falei que não tinha sido eu, e o policial disse que ouviu falar que tinha sido eu. Eu jamais faria isso com meu pai. Depois de seis meses eu saí. Quando eu voltei todo mundo já tinha ido embora. (BRASIL, 2014c, p. 217).

Outro documento importante sobre o período, recentemente recuperado e tornado público, também apresenta relatos de graves violações de direitos humanos: o Relatório Figueiredo60. Nele, há relatos de que o governo brasileiro fez uso de doação de açúcar com adição de estricnina, bombardeio aéreo com dinamite e emprego de agentes patogênicos, como a contaminação de brinquedos arremessados de avião com o vírus da varíola, da gripe e do sarampo, no intuito de “liberar” áreas de ocupação indígena para o “progresso” e “desenvolvimento” do país (BRASIL, 2014c, p. 238). Toda esta questão territorial do passado afeta as condições de vida e de saúde dos povos indígenas do presente. É somente no seu território tradicional que encontram meios para a sobrevivência e reprodução das condições dignas de vida. Deste modo, o ato de priválos das suas terras ameaça a garantia de diversos outros direitos humanos, como concluiu a jurisprudência da Corte IDH analisada anteriormente61. Embora os indicadores sociais dos povos indígenas do Brasil sejam escassos, estudos apontam para uma situação alarmante: o economista Marcelo Jorge de Paula Paixão, coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sistematizou dados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) étnico-racial do Brasil e concluiu que, enquanto a população autodeclarada branca possui IDH 0,845, considerado alto pela ONU e comparado a países como República Tcheca e Grécia, o IDH dos povos indígenas brasileiros atinge 60

O Relatório Figueiredo foi encomendado pelo Ministério do Interior em 1967 e permaneceu esquecido por décadas, sendo redescoberto em novembro de 2012. Em suas mais de 7.000 páginas e 30 volumes, são descritas “[...] torturas, maus tratos, prisões abusivas, apropriação forçada de trabalho indígena e apropriação indébita das riquezas de territórios indígenas por funcionários de diversos níveis do órgão de proteção aos índios, o SPI, fundado em 1910. Atestou não só a corrupção generalizada, também nos altos escalões dos governos estaduais, como a omissão do sistema judiciário.” (BRASIL, 2014c, p. 207). 61 Ver ponto 2.2.2, especialmente o caso da Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai.

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somente 0,683, considerado de desenvolvimento médio-baixo e comparado a países como Indonésia e Guiné Equatorial (PAIXÃO, 2013). Em missão ao Brasil de 18 a 25 de agosto de 2008, o antigo Relator Especial das Nações Unidas para os Povos Indígenas, James Anaya, produziu o “Report of the Special Rapporteur on the situation of human rights and fundamental freedoms of indigenous people, James Anaya, on the situation of human rights of indigenous peoples in Brazil”62 (UNITED NATIONS, 2009) alertou que “[…] by all indicators, indigenous peoples in Brazil suffer from poor health conditions; malnutrition, dengue, malaria, hepatitis, tuberculosis and parasites are among the frequent ailments and principal causes of death”63 (UNITED NATIONS, 2009, p. 18). Mais atual, o Relatório da Violência Contra os Povos Indígenas64, divulgado pelo CIMI no ano de 2016, também apresenta relatos e dados de dezenove formas de violência direta e indireta contra indígenas, como assassinatos de lideranças, mortalidade na infância, omissão e morosidade na regularização das terras indígenas, desatenção à saúde, racismo e abuso de poder. Como nos anos anteriores, chama atenção a perversa realidade enfrentada pelos indígenas do Mato Grosso do Sul, especialmente os Guarani-Kaiowá, Guarani-Ñandeva e Terena, contra os quais foram registrados 10 de 18 ocorrências de ataques a aldeias, 20 de 54 assassinatos, 3 de 9 casos de violência sexual, 45 de 87 suicídios e taxa de mortalidade infantil duas vezes maior que a média nacional (CIMI, 2016). Esta história recente, que resultou na perda de territórios tradicionais e a intensificação de um projeto colonial de assimilação, ao menos refletiu na organização e politização de movimentos indígenas, cuja resistência pode ser considerada uma desobediência epistêmica visando a projetos de descolonização do poder. Os próprios Guaranis-Kaiowá da TI Guyraroká relatam que o contexto jurídico-político iniciado nos anos 70 os encorajou a retomar o território nos anos 2000, antes ocupado de forma plena:

d) a reconquista das terras tradicionalmente ocupadas inicia-se, ainda segundo os Kaiowá, com o advento do que os Kaiowá identificam como o “tempo do direito”,

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Relatório do Relator Especial sobre a situação dos direitos humanos e liberdades individuais dos povos indígenas, James Anaya, sobre a situação dos direitos humanos dos povos indígenas do Brasil (UNITED NATIONS, 2009, tradução nossa). 63 De acordo com todos os indicadores, os povos indígenas no Brasil sofrem com precárias condições de saúde, subnutrição, dengue, malária, hepatite, tuberculose e parasitoses, que são frequentes doenças e principais causas de morte (UNITED NATIONS, 2009, p. 18, tradução nossa). 64 O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas é uma publicação anual produzida pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organização vinculada à Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), que apresenta dados oficiais e dados coletados pela própria organização sobre diversos tipos de violência contra os povos indígenas. O último relatório, com dados relativos ao ano de 2015, foi lançado no dia 15 de setembro de 2016.

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quando o Estado passa a reconhecer e a assegurar aos índios a legitimidade da posse das terras que tradicionalmente ocupavam. Coincide com a promulgação da atual Constituição Federal e com a demarcação das primeiras terras kaiowá, desde a demarcação das oito reservas para os Guarani/Kaiowá e Guarani/Ñandeva, realizadas pelo SPI entre os anos de 1915 e 1928. É um período marcado por muitos conflitos internos, fome, suicídios e miséria, mas também pela esperança de dias melhores, já que a reconquista da terra é marcada por forte revigoramento do sentimento étnico-religioso e pela tentativa de recompor formas de sociabilidade atualmente quase em desuso no interior das reservas demarcadas, onde segundo dizem, o modo de vida tradicional se tornou inviável, principalmente pela presença das igrejas pentecostais e da escola. (PEREIRA, 2002, p. 24).

Por outro lado, é esta realidade da experiência vivida dos povos indígenas que pode se agravar com as consequências da afirmação da tese do marco temporal e anulação de diversas outras terras demarcadas. Considerando as condições precárias de vida que se agravam com a perda de territórios, é possível dizer que os Guarani-Kaiowá vem sofrendo etapas iniciais de um processo de genocídio65, já denunciado internacionalmente, inclusive com a presença de lideranças indígenas na 33ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (UNHRC), em Genebra, na Suíça66. É por este motivo que o Min. Lewandowski, no julgamento da TI Guyraroká, que decidiu por desconsiderar toda esta realidade em um processo que exige prova constituída e direito líquido e certo, afirmou:

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Autores identificam que o genocídio não é um ato único, mas um longo processo de muitas etapas, que não necessariamente acarreta a destruição física do grupo, mas também aquela de caráter cultural, simbólica ou epistêmica (etnocídio). As etapas identificadas por Gregory H. Stanton, por exemplo, são: classificação, simbolização, discriminação, desumanização, organização, polarização, preparação, persecução, extermínio e negação (STANTON, 2013). Para uma análise dos fatores de risco para crimes de atrocidade, dentre eles o genocídio, e estes mesmos processos de anulações de terras indígenas (Guyraroká e Limão Verde), ver o artigo “Quadro de Análise da ONU: configurada situação de risco de atrocidade”, de Fernanda Frizzo Bragato e Paulo Gilberto Cogo Leivas, publicado no último Relatório da Violência do CIMI (2016), já citado neste trabalho. 66 A ONG Anistia Internacional lidera uma campanha permanente para a proteção dos direitos humanos do povo Guarani-Kaiowá. Em novembro de 2015, a instituição enviou uma carta à Presidenta da República pedindo a conclusão das demarcações das terras dos Guarani-Kaiowá, uma vez que, em razão da privação do acesso aos seus territórios, “as comunidades são ainda mais discriminadas e impedidas de acessar serviços essenciais. Além disso, ataques contra defensores dos direitos humanos e líderes comunitários têm sido documentados com frequência, e todos esses crimes permanecem impunes” (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015). No mesmo sentido, a nota emitida pela atual Relatora Especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, após visita oficial ao Brasil em março de 2016: “Uma questão de preocupação premente é a grande quantidade de ataques documentados e relatados contra povos indígenas. Em 2007, segundo o CIMI, 92 líderes indígenas foram assassinados, ao passo que em 2014 o número havia aumentado para 138. O estado de Mato Grosso do Sul foi o que registrou o maior número de mortes.” (ONU, 2016). Após a visita da Relatora, líderes de 6 etnias, incluindo o Guarani-Kaiowá Elizeu Lopes, participaram da 33ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (UNHRC): “Em resposta às declarações do governo, lideranças indígenas presentes na sessão do Conselho da ONU reforçaram as denúncias realizadas no relatório de Victoria. ‘Não temos água e comida saudáveis, sofremos com pulverização de agrotóxicos como se fôssemos pragas, mas somos seres humanos’, disse Elizeu Lopes, liderança Guarani Kaiowa de Kurusu Amba, representando o Aty Guasu. Elizeu viajou por três dias, desde o acampamento de Kurusu Amba, na fronteira do Brasil com o Paraguai, percorrendo dez mil quilômetros até a Suíça, para participar da apresentação do relatório.” (CIMI, 2016b).

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Nós sabemos que o que está havendo, hoje, em todo o Brasil, lamentavelmente, é um novo genocídio de indígenas, em várias partes do país, em que os fazendeiros, criminosamente, ocupam terras que eram dos índios, e posse dos índios, os expulsam manu militari, e depois os expedientes jurídicos, os mais diversos – depois de esgotados os expedientes, evidentemente, ilegais e até criminosos -, acabam postergando o cumprimento desse importante dispositivo constitucional. (BRASIL, 2014b, p. 30).

É preciso compreender a historicidade das relações estabelecidas entre Estado, sociedade e povos indígenas como constituinte das condições precárias de via que enfrentam os povos indígenas hoje. Como afirma Dussel (1998) em relação ao elemento de corporeidade que marca as vítimas da modernidade, não basta reconhecer o Outro como um igual; devemos antes reconhecê-lo na sua diferença, ou seja, na sua condição de vítima e excluído do sistema (DUSSEL, 1998, p. 411). Portanto, ignorar o contexto de violência e subdesenvolvimento dos povos indígenas e negar-lhes meios eficazes de resistência e de garantir seus direitos humanos, principalmente os territoriais, é atitude que denota a colonialidade do ser.

3.2.2 Colonialidade do saber, ocupação e resistência tradicionais

Com as narrativas intra-europeias da modernidade, universalizou-se uma experiência local como se fosse o modelo natural e homogêneo de sociedade a ser seguido por todos os povos do mundo. Tal fenômeno, o eurocentrismo, relegou essas experiências plurais ao outro lado da linha abissal do conhecimento hegemônico, encobrindo e classificando as cosmologias indígenas como mero “folclore” e “mitologia”. Como consequência para a configuração das ciências modernas e do direito, os conceitos e perspectivas deste conhecimento eurocêntrico, como Estado, sociedade civil e propriedade privada, se converteram não apenas em categorias universais da análise de realidades que são plurais, mas de verdadeiras proposições normativas que definem o dever ser para todos os povos. A colonialidade do saber, portanto, manifesta-se em qualquer espaço que desconsidere o relativismo do pensamento científico moderno, responsável pela invisibilização de outros saberes, conceitos, metodologias e mundos possíveis. Enquanto pensamento abissal, o próprio direito moderno pode manifestar a colonialidade na sua prática, através da desconsideração da pluralidade cultural e jurídica, inclusive dos povos indígenas. Neste sentido, a problemática levantada pela fundamentação do marco temporal e do renitente esbulho pelo STF, em relação à colonialidade do saber, tem como ideia central a desconsideração das cosmologias e territorialidades indígenas que fundamentam o seu ser e estar no mundo, promovendo a

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violação do direito à diferença. Disto decorre uma série de consequências: a) a invalidação das formas tradicionais indígenas de relação com o território e com o Estado, tornando-as sem efeito para o direito, a despeito do art. 231 da Constituição; b) equiparação da posse tradicional à posse civil, principalmente ao se exigir controvérsia possessória judicializada como forma de resistência, além de toda a nomenclatura civilista dos conceitos forjados; c) a não consideração das normas e jurisprudência internacional de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas como fonte primária de decisão no direito interno; e d) a ausência de diálogo concreto com a antropologia, bem como o uso conveniente das informações dos laudos antropológicos, desconsiderando passagens que narram formas de resistência. Considerando a relação peculiar que os indígenas desenvolvem com o território, expressada pelas diversas territorialidades e processos de territorialização estudados no capítulo segundo, a avaliação da ocupação tradicional e de eventual resistência à expulsão não pode ser feita pelos mesmos conceitos do paradigma cultural dominante, mas a partir da sua organização social, costumes e tradições, como preceitua o art. 231 da Constituição. Ocorre que a fundamentação da tese do marco temporal pelo STF incorre nesta espécie de “epistemicídio” (SANTOS, 2009): no caso da TI Guyraroká, o autor da ação alegava ter adquirido uma fazenda, que integrava a área a ser demarcada, no ano de 1988, possuindo o título registrado em cartório. Porém, de acordo com o laudo antropológico que deu suporte à identificação da terra indígena, a comunidade Guarani-Kaiowá está na área a ser demarcada desde os anos 1750-1760. O laudo identifica quatro diferentes períodos de ocupação: a) o período anterior à guerra do Paraguai; b) o período da Cia Matte Laranjeiras; c) A ocupação agropastoril; e d) a reconquista das terras anteriormente ocupadas. É com a instalação da Cia Matte, por volta de 1940, que se iniciam os processos de titulações na área e expulsão de suas terras, o que não impede a resistência e permanência na região, conforme as seguintes passagens do laudo:

Estratégias individuais de aliança com fazendeiros, muitas vezes se oferecendo para executar trabalhos a preços abaixo do mercado, permitiram que algumas famílias se mantivessem na terra até meados da década de 1970, mas viviam como peões, já que essas famílias só participavam da vida comunitária (rituais festivos e religiosos), quando visitavam os parentes que viviam nas reservas. [...] A força de trabalho indígena foi amplamente empregada nos trabalhos dos ervais (Brand, 1997). Praticamente todos os homens Kaiowá de Guyraroká com mais de 60 anos trabalharam na coleta, processamento e transporte da erva-mate, afirmando que “antigamente só existia trabalho na erva”. [...] Os velhos de Guyraroká dizem que demorou um tempo até se entenderem com a Cia, relatam que no início houve muitos conflitos. Isto demonstra que os Kaiowá não aceitaram passivamente a perda de autonomia sobre seu território, antes reagiram recorrendo muitas vezes à

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violência. (PEREIRA, 2002, p. 23-25).

Porém, tais informações não foram apreendidas pelo STF, em nítida interpretação das relações tradicionais a partir dos parâmetros epistêmicos e morais da sociedade não-indígena. A ementa do julgamento registra a conclusão de que, “No caso, laudo da FUNAI indica que, há mais de setenta anos, não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena na área contestada” (BRASIL, 2014b, p. 1). No voto vencedor, o Ministro Gilmar Mendes insiste na ideia da “Síndrome de Copacabana”, um verdadeiro truísmo, e em ser a TI Guyraroká uma espécie de aldeamento extinto ou uma ocupação imemorial perdida no tempo, sem vínculos atuais com a comunidade indígena que reivindica a demarcação. Apesar disso, as relações com Guyraroká estão no presente, inclusive alguns membros mais velhos da comunidade residiram nos anos 1940 no território reivindicado. Neste sentido, Duprat (2015) critica a impropriedade da utilização da Súmula nº 65067 do STF para os casos de territórios tradicionais:

A invocação da súmula 650, que volta e meia se faz na atualidade, é de todo impertinente, porque nada tem a ver com territorialidade, mas com “antigos aldeamentos”, que existiram no passado e lá ficaram. Não alcança, certamente, ocupações que persistiram até o século XX e que só não prosseguiram por conta de esbulho. Validar essa súmula para situações ocorridas há um tempo relativamente curto é manter o direito refém de uma triste história de desapossamentos e de exclusões. (DUPRAT, 2015, p. 42).

Já no caso da TI Limão Verde, afirmou-se que a última ocupação indígena na Fazenda Santa Bárbara havia deixado de existir desde, pelo menos, o ano de 1953, quando os últimos ocupantes indígenas teriam sido expulsos da região. Portanto, é certo para o STF que não havia ocupação indígena em outubro de 1988. Apesar disso, o laudo antropológico68 demonstra outra visão sobre ocupação tradicional, diferenciando-a da mera habitação:

Com relação às terras da fazenda Santa Bárbara, podemos indicar que existiu ocupação indígena (no sentido de uso para habitação) até o ano de 1953, quando em meio ao processo de demarcação houve a expulsão dos índios da área, mas a ocupação (como uso de recursos naturais e ambientais) permanece até os dias de hoje, uma vez que os índios praticam a caça e coleta na serra. (BRASIL, 2015, p. 14).

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Súmula nº 650 do STF: Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. 68 Por conta da data de elaboração, no ano de 1997, não se teve acesso à versão integral do documento. Apesar disso, os trechos destacados são citados nos acórdãos. Um resumo do laudo, sua referência e a identificação do antropólogo responsável, Alceu Cotia Mariz, foram encontrados no seguinte endereço eletrônico: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/servlet/INPDFViewer?jornal=1&pagina=281&data=24/12/1997&captchafield =firistAccess. Acesso em: 07.02.2017.

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Assim, os Terena permaneceram acessando por décadas a Fazenda Santa Bárbara e mantendo uma relação anímica de pertencimento e ancestralidade com o território, caracterizando a posse permanente e descartando a aplicação do marco temporal, uma vez que o esbulho é fato incontroverso, pois é documentado desde o fim do século XIX:

Como indicamos nos itens 2.1 e 2.2, e depois nos itens 4.1 e 4.2 deste laudo, o processo de colonização da região da bacia do Aquidauana se intensifica especialmente depois do término da Guerra do Paraguai. Na região em questão, existiam diversos aldeamentos indígenas, como Ipegue na planície e o Piranhinha nos morros, como são registrados nos documentos já citados, pelo menos desde 1865-66. A partir de 1892 inicia-se um processo de colonização conduzido por um grupo de coronéis (apesar de que antes da aquisição de terras por esse grupo, já existiam posseiros na região, como é o caso de João Dias Cordeiro) por meio da constituição vila de Aquidauana e de propriedades rurais e urbanas. Pelos documentos localizados, a partir de 1895 em diante iniciasse um processo de titulação em terras localizadas entre o Córrego João Dias, o Morro do Amparo e o Aquidauana que se choca com as terras de ocupação indígena em diversos pontos. Isso caracteriza um choque entre o poder local e a economia agropecuária e a sociedade Terena. Esse choque de interesses sobre as terras e os recursos ambientais está registrado nos diversos documentos analisados e citados no laudo, e resultará na titulação das terras para o município em 1928 e depois na criação da Colônia XV de Agosto em 1959, incidentes na área depois identificada como indígena. Assim, consolida-se o processo ocupação nos territórios em questão. (BRASIL, 2015, p. 13).

Quanto à resistência dos Terena à expulsão, a mesma se deu de diversas formas, inclusive com a permanência em beira de estradas e ao redor das fazendas com títulos registrados sobre os territórios tradicionais. Além disso, consta no laudo informações sobre manifestações formais dos Terena a órgãos públicos, demonstrando a vontade de retorno ao território tradicional e a inconformidade com sua situação, desde a expulsão até o período posterior à Constituição de 1998, cuja pressão surtiu o efeito de ter a terra finalmente demarcada. Veja-se as manifestações e documentos enviados pela Comunidade Terena, Terra Indígena Limão Verde, através dos seus Caciques Romão Caetano de Moraes, Josinei Dias Martins e Odir Cardoso Dias, em memoriais ao STF:

Contudo, os atritos, ao contrário do que consta na decisão da 2ª Turma do STF (autos nº ARE 803462), não se configuram apenas por cartas enviadas à FUNAI pelos índios nas décadas de 1970 e 1980. As cartas eram a expressão do conflito que reinava entre índios e não índios. Vejamos a passagem datada de 1976, assinado pelo advogado SALES BARBOSA ANASTACIO: “(...) constatei em depoimento daquela chefia e capitão, que poderá futuramente surgir violento conflito na área litigiosa, reivindicada pelo Sr. Manoel Gaspar Neto, já que o mesmo vem propalando, que irá trabalhar a área, isto é arar, gradear e plantar na área litigiosa, e poderá a qualquer momento surgir um choque entre índios e civilizados. É de

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máximo interesse e prioridade, que o Sr. Presidente da FUNAI, interdite a área pretendida pelos índios, e posteriormente demarcá-la, entre uma comissão mista Funai Prefeitura de Aquidauana, tudo dentro dos limites estabelecidos dentro do Dec. 795 de 6-2-1928”. Essa batalha campal durou até o ano de 1996 com fortes conflitos. Após esse período, os índios consumaram a posse e os conflitos amainaram-se, os possuidores de boa-fé foram indenizados e a terra indígena foi Registrada em nome da União. (COMUNIDADE TERENA, TERRA INDÍGENA LIMÃO VERDE, 2015).

Porém, não foi esta a interpretação sobre resistência que prevaleceu no STF. Logo após o julgamento da PET 3.388 em 2009, e após o trânsito em julgado com os Embargos Declaratórios de 2012, no qual o relator reiterou a ausência de força vinculante, muitas análises preliminares destacaram a ressalva de que a ideia de renitente esbulho impedia a perda da tradicionalidade da ocupação pela aplicação do marco temporal. Entretanto, na anulação da TI Limão Verde, o STF entendeu por restringir em muito a compreensão sobre o que poderia ser considerado resistência para descaracterização do marco temporal. Nas palavras do relator, Min. Teori Zavascki: Também não pode servir como comprovação de “esbulho renitente” a sustentação desenvolvida no voto vista proferido no julgamento do acórdão recorrido, no sentido de que os índios Terena pleitearam junto a órgãos públicos, desde o começo do Século XX, a demarcação das terras do chamado Limão Verde, nas quais se inclui a Fazenda Santa Bárbara. Destacou-se, nesse propósito, (a) a missiva enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o requerimento apresentado em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência da Funai. Essas manifestações formais, esparsas ao longo de várias décadas, podem representar um anseio de uma futura demarcação ou de ocupação da área; não, porém, a existência de uma efetiva situação de esbulho possessório atual. (BRASIL, 2015, p. 15).

Deste modo, consolidou-se a ideia de que a resistência dos indígenas à expulsão comprovada de suas terras somente é válida se representar, de preferência, uma demanda possessória judicializada, nos moldes do conhecimento hegemônico e excludente do Estadonação e do direito monista. De nada vale a ação silenciosa de permanência, o apelo aos órgãos indigenistas tutelares e a resistência física de enfrentamento, sobretudo em um período de políticas oficiais de integracionismo e de atrocidades cometidas pelos agentes de Estado na ditadura civil-militar. Como ficou registrado na ementa do acórdão:

Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada ocorrida no passado. Há de haver, para configuração do esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, na data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada. (BRASIL, 2015, p. 1).

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Esta interpretação do STF sobre o esbulho denuncia a problemática de confundir institutos totalmente diferentes: a ocupação tradicional, baseada na territorialidade indígena e reconhecida como direito originário pela Constituição, e a posse do direito civil, questão de fato recuperada por controvérsia possessória judicializada. José Afonso da Silva (2015), em parecer solicitado sobre o marco temporal, atem-se bastante a esta questão. O jurista destaca o problema de se usar o conceito de esbulho em um contexto que não lhe cabe: “[...] é uma torção semântica calamitosa essa de tratar o indigenato, ou seja, os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam, como se se tratasse de posse do direito civil.” (SILVA, 2015, p. 12). Apesar da inadequação, é pertinente notar que a concepção civilista só é aplicada no que convém à anulação das terras indígenas: não se aplica o conceito de “posse justa” do art. 1200 do Código Civil69, ou ainda o de “posse de boa-fé” do art. 1.20170. Duprat (2006) demonstra que essa impropriedade conceitual vem prejudicando conflitos fundiários entre índios e não-índios desde muito antes da tese do renitente esbulho:

Uma ação vocacionada à tutela de direito de cunho nitidamente civilista neutraliza a disciplina constitucional dos territórios indígenas, porque a luta processual se desenvolve sob controle das normas constitutivas daquele campo e valendo-se apenas das armas nele autorizadas. Assim, elementos tais como posse velha, ocupação física, passam a ser acriticamente definitórios de direitos possessórios. (DUPRAT, 2006, p. 172).

Os direitos dos índios ao território não são constituídos e outorgados, mas declarados e reconhecidos, pois originários. Além disso, não são direitos de natureza individualista, mas uma espécie de propriedade comunal, cuja importância reside em ser a base fundamental de suas culturas, espiritualidade, integridade e sobrevivência econômica. Como consequência, “A visão naturalizada da posse civil, apresentada como evidente, estabelecida de uma vez por todas, fora de discussão, escamoteia o fato de que toda e qualquer definição oficial importa em adoção de um determinado ponto-de-vista e o descarte de visões concorrentes” (DUPRAT, 2006, p. 172-173). Igualando-se as temáticas, as concepções cosmológicas de território das etnias indígenas não são consideradas, somente a definição oficial de posse. Ignora-se que a permanência dos índios nas terras das quais foram desalojados, mesmo como trabalhadores “Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.” (BRASIL, 2002). “Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.” (BRASIL, 2002). 69 70

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rurais, pode ser uma manifestação possível de ocupação tradicional, pois assim mantêm a proximidade com os locais sagrados e a esperança de retorno futuro. Além da relação com o território, manifestada por territorialidades diversas, também há uma concepção hegemônica que encobre as diferentes temporalidades indígenas. O tempo, tal como o concebe a sociedade hegemônica, nada mais é do que uma construção social. Entre os povos indígenas, o tempo está bastante associado aos eventos da natureza, às estações, aos rituais de passagem e aos fatos que marcam a vida comunitária. Assim, não seguem necessariamente a monocultura do tempo linear, ou seja, o sentido e direção únicos da história moderna, formulado como progresso, modernização, desenvolvimento e globalização, a partir dos quais seguem os conhecimentos e as formas de sociabilidade hegemônicas naturalizadas. Os povos indígenas possuem a própria história, não se constituindo em um estágio anterior da história alheia (KAPITANGO-A-SAMBA, 2014, 236). Também vale mencionar que ambos os laudos antropológicos foram publicados antes do acórdão do caso da TI Raposa Serra do Sol, quando sequer existia a ideia de marco temporal e de renitente esbulho. Portanto, não se ativeram suficientemente à questão da forma de ocupação das fazendas como poderiam, até porque não havia quesitos sobre “renitente esbulho”. A mudança drástica na jurisprudência do STF demandaria uma regra de transição para os casos em que o laudo já havia sido elaborado, evitando-se efeitos negativos para as comunidades indígenas com terras já demarcadas. De qualquer modo, o conteúdo dos laudos foi contestado nas ações a posteriori, e não serão mais refeitos (DUPRAT, 2015, p. 40-41). Isto evidencia outra questão relevante, de cunho aparentemente processual, mas que também denota a naturalização dos conhecimentos eurocêntricos como padrão de conduta de todos os povos. No processo da TI Guyraroká, o STF analisou um Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Logo, a discussão deveria se ater ao acórdão do Tribunal de origem, no caso, o Superior Tribunal de Justiça. É sabido que o Mandado de Segurança é uma ação que exige prova pré-constituída e direito líquido e certo, o que de fato não havia na pretensão do proprietário da fazenda que demandava a descaracterização da tradicionalidade atestada em complexo processo administrativo de demarcação. Este foi o fundamento para o relator, Min. Ricardo Lewandowski, negar provimento ao recurso, mas acabou sendo voto vencido, a partir da divergência estabelecida pelo Min. Gilmar Mendes, que redigiu o acórdão. Vale transcrever trechos do debate instaurado após a apresentação do voto divergente:

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Agora,

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Ministro, eu concordo com Vossa Excelência, entendo que esses processos têm pecado por uma série de falhas, sem dúvida nenhuma, mas eu penso até que o processo administrativo pode ser atacado por outro tipo de recurso - por uma anulatória, por exemplo. Mas em sede de mandado de segurança, que tem angustos limites probatórios, eu não vejo como revolver toda essa documentação, essa decisão, e declarar ilegal o ato do Ministro de Estado da Justiça, que passou por todo um procedimento, até então, considerado lícito e hígido pelo Supremo Tribunal Federal. [...] O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Eu concordo, em parte, com Vossa Excelência, data venia, quer dizer, os requisitos da ampla defesa, do devido processo legal, isso nós sempre temos feito, sistematicamente, mas temos exigido a presença de prova pré-constituída. Eu tenho dúvidas, permito-me expressá-las, neste aspecto, se é que nós podemos contraditar, sem prova pré-constituída, o laudo da FUNAI. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - É só para deixar claro, Ministro Lewandowski, o laudo da FUNAI é que tem que seguir a jurisprudência do Tribunal a propósito. O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Ah, sim, mas não a posteriori, depois de já emitido o laudo, não podemos impor a ela que reveja os laudos já editados. (BRASIL, 2014b, p. 14).

A deslegitimação de um documento técnico elaborado pelo órgão indigenista, apesar da inadequação jurídico-processual, também demonstra a superioridade epistêmica do conhecimento eurocêntrico do direito moderno. Mesmo que o laudo não seja a manifestação direta dos saberes tradicionais dos povos indígenas, é fruto de uma área do conhecimento que tem como pilares o estranhamento do mundo naturalizado e a relativização dos conhecimentos hegemônicos. A antropologia não apenas explica e racionaliza o discurso do “nativo”, mas leva-o à sério: toma as ideias indígenas, por exemplo, como conceitos que projetam mundos possíveis com problemas específicos de sua cultura (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). São estes os elementos da fundamentação do marco temporal e do renitente esbulho que manifestam a colonialidade do saber, promovendo hierarquias entre as formas de compreensão do território e a formação de sociabilidades. A consequência para o direito é a interpretação dos direitos territoriais indígenas ainda de forma marcadamente civilista e hegemônica, olvidando que o paradigma pluriétnico da Constituição de 1988 inclui a consideração de outras cosmologias e territorialidades.

3.2.3 Colonialidade do poder e o contexto dos conflitos fundiários envolvendo terras indígenas

A colonialidade do poder pode ser definida como uma matriz de poder global originada na conquista da América a partir da introdução da ideia de raça como fundamental

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para o controle dos âmbitos básicos da existência social. Segundo Grosfoguel (2009), tal matriz pode ser melhor compreendida como sendo uma heterarquia, ou seja, um sistema de hierarquias já existentes – sexual, político, epistêmico, econômico, espiritual, linguístico e racial – agora rearticuladas transversalmente pela hierarquia étnico-racial estabelecida no colonialismo (GROSFOGUEL, 2009). A partir desta dimensão subjetiva da matriz de poder, alia-se uma dimensão material, expressada por um sistema de controle do trabalho surgido a partir de novas relações materiais de produção, que utilizou da mão-de-obra escrava para a acumulação primária em nível mundial, sendo determinante para expansão do capitalismo. A conjugação destas dimensões, de forma inédita, resulta em estruturas globais de hierarquização étnico-racial e de divisão do trabalho, decorrendo, também, na imposição do conhecimento eurocêntrico para legitimação desta engrenagem, encobrindo saberes locais (colonialidade do saber) e (re)produzindo o “Outro” como sujeito degenerado, através do discurso colonial (colonialidade do ser). Esta matriz persistiu com os processos de independência dos países latino-americanos, e contribuiu para a estruturação de sociedades desiguais, hierárquicas e racistas, dentro de Estados formalmente republicanos e independentes. Através do controle político, administrativo e militar, elites brancas, proprietárias e letradas fabricaram os imaginários sociais e as memórias históricas das novas identidades nacionais. Já os povos indígenas, os negros, os mestiços e as populações tradicionais continuaram sem espaços de poder para expressar sua cultura de forma igualitária (QUINTERO, 2010). Considerando tal herança, a ideia do marco temporal pode se articular com a colonialidade do poder a partir de algumas reflexões. Embora nem toda a discussão diga respeito a posições diretamente firmadas pelos Ministros do STF nos casos já analisados, a construção da tese e a sua fundamentação posterior fornecem elementos para outros atores sociais aprofundarem a colonialidade do poder. Em outras palavras, mesmo em um contexto sócio-histórico específico e de normas jurídicas que apontam para outro caminho, o STF lançou o “ovo da serpente”. As reflexões são as seguintes: a) inclusão do marco temporal na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 215/2000, e os atores políticos com interesse na consolidação desta tese; b) a genealogia das relações fundiárias e de poder que resultaram nas titulações de áreas privadas sobre territórios indígenas; e c) o número e a localização das terras indígenas em processos de demarcação que podem ser impactadas. A partir do que já foi discutido, não seria impróprio afirmar que não há consenso

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jurídico e político de que a Constituição de 1988 seja o marco temporal dos direitos territoriais indígenas, menos ainda de que direitos originários devam ter um marco temporal objetivo para a sua garantia, afastando critérios como territorialidade e direito à reparação. De qualquer forma, a brecha aberta para se anular terras demarcadas e para se dificultar a demarcação de novas terras indígenas foi abraçada por setores da sociedade e da classe política do país. Exemplo concreto é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 215, de 2000, iniciativa do Deputado Federal Almir Sá (PPB-RR) que objetiva transferir a competência da demarcação de terras indígenas – mas também territórios quilombolas e unidades de conservação da natureza – do Poder Executivo Federal para o Congresso Nacional71. Assim, um procedimento de caráter eminentemente técnico, que atesta as características das terras indígenas para o reconhecimento do direito originário, passaria à competência do Poder onde perduram avaliações políticas sob influência de interesses pessoais, regionais e da chamada Bancada Ruralista. Em parecer do relator da Comissão Especial instaurada, o Dep. Federal Osmar Serraglio (PMDB-PR) votou pela aprovação da PEC e de outras apensadas, na forma de um substitutivo proposto ao final do ano de 2015. Neste substitutivo, o Deputado propôs a inclusão do marco temporal no art. 231, como característica definidora das terras indígenas e como requisito obrigatório de verificação pelo laudo antropológico72. 71

PEC 215/2000. Ementa: Acrescenta o inciso XVIII ao art. 49; modifica o § 4º e acrescenta o § 8º ambos no art. 231, da Constituição Federal. Explicação da Ementa: Inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas; estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei. 72 Além da inclusão do marco temporal, há a inclusão de algumas salvaguardas institucionais do voto da TI Raposa Serra do Sol: “Art. 231.................................................... § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as que, em 5 de outubro de 1988, atendiam simultaneamente aos seguintes requisitos: I - por eles habitadas, em caráter permanente; II - utilizadas para suas atividades produtivas, III – imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”(NR) § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, podendo explorá-las, direta ou indiretamente, na forma da lei, excetuando-se as seguintes situações: I – ocupações configuradas como de relevante interesse público da União, nos termos estabelecidos por lei complementar; II – instalação e intervenção de forças militares e policiais, independentemente de consulta às comunidades indígenas; III - instalação de redes de comunicação, rodovias, ferrovias e hidrovias e edificações destinadas à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e de educação, vedada a cobrança de tarifas de qualquer natureza; 46 IV - área afetada por unidades de conservação da natureza; V - os perímetros urbanos. VI - ingresso, trânsito e permanência autorizada de não índios, inclusive pesquisadores e religiosos, vedada a cobrança de tarifas de qualquer natureza. (NR) .......................................................................... § 8º É vedada a ampliação de terra indígena já demarcada. (NR) § 9º A delimitação definitiva das terras indígenas far-se-á por lei, competindo ao Poder Executivo propor em projeto de lei de sua iniciativa privativa os limites e confrontações da área indígena, ou, havendo conflito fundiário, a permuta de áreas, assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo relativo às encravadas em seus territórios, o qual se iniciará com audiência pública. (NR) § 10. As comunidades indígenas em estágio avançado de interação com os não-índios podem se autodeclarar, na forma da lei, aptas a praticar atividades florestais e agropecuárias, celebrar contratos, inclusive os de arrendamento e parceria, caso em que, autonomamente, decidirão sobre a

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A versão original da PEC, e mais ainda seu substitutivo, receberam críticas generalizadas, inclusive da FUNAI e do MPF73. Além dos argumentos sobre a sua inconstitucionalidade, ao violar cláusula pétrea que proíbe a abolição de direitos fundamentais74, e da anticonvencionalidade, ao violar normas internacionais de proteção dos direitos indígenas – como o direito à consulta prévia da Convenção 169 da OIT –, é possível estabelecer um debate acerca das correlações de poder e interesses envolvidos. Muitos territórios indígenas foram considerados como terras devolutas e outorgadas pelos Estados a particulares por conta do art. 64 da Constituição de 189175. O próprio órgão indigenista criado em 1910, o SPI, certificou a inexistência de índios em algumas localidades, para que então os Estados incorporassem ao seu patrimônio e emitissem títulos de propriedade a particulares (SOUZA FILHO, 2012, p. 133). Esta foi uma foi uma estratégia comum dos processos de colonização do interior do país, com vistas a expandir as fronteiras agrícolas e promover o desenvolvimento, já que, no imaginário positivista, os índios deveriam ser assimilados como trabalhadores rurais ou urbanos. Outras terras indígenas, já conhecidas, também sofreram pressão estatal para seu abandono e transferência dos índios para aldeias. Observa Souza Filho (2012) que as terras “deixadas” pelos índios foram juridicamente nomeadas como “aldeamentos extintos” e transferidas ao domínio do Estado ou da União (SOUZA FILHO, 2012, p. 135). Tal realidade fundiária ocorreu sobretudo no Mato Grosso do Sul, cujos laudos antropológicos das terras indígenas Guyraroká e Limão Verde descrevem com detalhes os eventos que determinaram a expulsões das comunidades indígenas. No mesmo sentido, como narra Brand (2004) em relação aos Guarani-Kaiowá:

Entre os anos de 1915 e 1928, o Governo Federal demarcou oito pequenas extensões partilha, ou não, entre seus membros. (NR) § 11. A comunidade indígena, na forma da lei, pode permutar, por outra, a área que originariamente lhe cabe, atendido o disposto no inciso III do § 1º.(NR) § 12. A União adotará políticas especiais de educação, saúde e previdência social para os índios, harmonizando-as com a cultura, crenças e tradições, e com a organização social das comunidades indígenas. 47 (NR)” § 13 O laudo antropológico iniciará pela especificação das circunstâncias que evidenciam o atendimento ao marco temporal.(NR)” (BRASIL, 2015b). 73 Vale a leitura da nota técnica elaborada pelo advogado e ex-Procurador da República Daniel Sarmento, a pedido da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Disponível em: Acesso em: 01.02.2017. 74 “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV - os direitos e garantias individuais.” (BRASIL, 1988). 75 “Art. 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. Parágrafo único - Os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados.” (BRASIL, 1891).

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de terra para usufruto dos Kaiowá e Guarani, perfazendo um total de 18.124 ha, com o objetivo de confinar os diversos núcleos populacionais dispersos em amplo território ao sul do atual Estado do Mato Grosso do Sul. Essas reservas, demarcadas sob a orientação do Serviço de Proteção aos Índios, SPI, constituíram importante estratégia governamental de liberação de terras para a colonização e conseqüente submissão da população indígena aos projetos de ocupação e exploração dos recursos naturais por frentes não-indígenas. [...] em 1943, o então Presidente da República, Getúlio Vargas, criou a Colônia Agrícola Nacional de Dourados, CAND, que tinha como objetivo possibilitar o acesso à terra para milhares de famílias de colonos, migrantes de outras regiões do país. A instalação de colonos no território indígena provocou de imediato, problemas diversos e graves, pois questionou a presença indígena e impôs a sua transferência para outros espaços. (BRAND, 2004, p. 138-140).

Portanto, as terras indígenas demarcadas ou retomadas dos anos 90 em diante possuem este passado em comum, assim como a cadeia dominial das propriedades rurais particulares em disputa. Neste sentido, ainda que o art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias tenha assegurado que a União concluiria a demarcação das terras indígenas até 199376, a realidade é que os conflitos somente se agravaram. Em grande medida pelo protagonismo político dos movimentos indígenas que, aproveitando o contexto de redemocratização, fim da tutela e promulgação da Constituição Cidadã, engajaram-se na recuperação de seus territórios. Mas é principalmente por conta do modelo econômico desenvolvimentista adotado pelo Estado brasileiro, baseado na exportação de commodities agrícolas e seus problemas derivados (grilagem, desmatamento, concentração de terras, uso de mão-de-obra análoga à escravidão, lobby pelo enfraquecimento do licenciamento ambiental, etc.) que o avanço sobre terras indígenas ainda ocorre, sobretudo o desmatamento para plantio, pecuária e extração de madeira, além da mineração irregular77. Veja-se que o quadro atual de demarcação de terras no Brasil reserva ao Mato Grosso do Sul uma situação de confinamento territorial das comunidades indígenas em áreas muito

“Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.” (BRASIL, 1988). 77 A proteção das terras indígenas contra empreendimentos irregulares de mineração é garantida pelo controle das licenças. É competência da União autorizá-los, mediante aprovação do Congresso Nacional, e ouvidas as comunidades afetadas, a quem caberá participação nos resultados: “§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.” (BRASIL, 1988). Apesar disso, com a ausência de regulamentação, muitas terras indígenas sofrem com exploração ilegal. Atualmente, 177 Terras Indígenas no Brasil têm incidência de mais de 4 mil processos minerários; no total, são 44 mil processos minerários na Amazônia Brasileira. Há uma proposta de regulamentação que avança no Congresso, o PL 1610/1996, mas que sofre críticas por não realizar o dever de consulta prévia aos povos interessados (ISA, 2016). Sobre o desmatamento, existem evidências tanto de que as terras indígenas sofrem com o avanço agrícola, quanto que nas terras indígenas a preservação dos recursos naturais é eficaz. O desmatamento realizado dentro das Terras Indígenas (TIs) da Amazônia, registrado em outubro de 2016, superou quase três vezes o registrado em todo o ano de 2015. Entre janeiro e outubro, foram desflorestados 188 quilômetros quadrados nessas áreas. Em 2015, esse número foi de 67 quilômetros quadrados (ISA, 2016b). 76

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diminutas, revelando as consequências das relações de colonização do passado. São 54 terras indígenas neste estado, entre os vários estágios jurídicos do processo demarcatório. Avaliando os impactos da PEC 215 e do marco temporal, o ISA produziu um relatório em 2015, no qual há um panorama específico dos Guarani no Estado do Mato Grosso do Sul:

Em Mato Grosso do Sul, existem 37 Terras Indígenas ocupadas pelos Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva, que representam, em área, menos de 0,5% da área total do estado. Boa parte dessas terras está em processo de reconhecimento (16), mas mesmo as homologadas ou reservadas – um total de 21 terras – encontram-se invadidas por fazendeiros ou têm seus processos de demarcação contestados e até anulados na Justiça. É o caso, entre muitas outras, da TI Arroio-Kora (Paranhos/MS), homologada em 2009, mas disputada por fazendeiros e parcialmente suspensa pela Justiça – agravando a situação de violência permanente contra a comunidade. (ISA, 2015b, p. 10).

Em nível nacional, o ISA mantém dados atualizados sobre todas as terras indígenas identificadas e seus estágios de demarcação. Existem 704 terras indígenas identificadas atualmente, ocupando uma extensão total de 117.310.629 hectares (1.173.106 km²), ou seja, 13.8% do território nacional. Dentre elas, 114 estão em fase de identificação, já com restrição de uso a não-índios, 38 estão identificadas, 72 estão declaradas e 480 já estão homologadas, ou seja, totalmente regularizadas78. É interessante notar que a maior parte das terras indígenas foi identificada e demarcada somente após a promulgação da Constituição de 1988, o que denota a importância da mudança normativa, e a maioria concentra-se na Amazônia Legal: são 419 áreas, que representam 98.33% da extensão de todas as terras indígenas do país. Apesar disso, quase metade da população autodeclarada indígena e que vive em terras indígenas no país, 45%, estão fora da Amazônia Legal, ou seja, no 1,67% restante das áreas, justamente nos Estados em que o confinamento é mais grave79. Algumas possíveis razões para tal disparidade incluem a menor incidência de conflitos fundiários e o menor valor de mercado das terras, um menor número de títulos registrados na Amazônia, a grilagem feita de forma mais frágil, menos títulos expedidos pelos governos passados para colonização, menos adensamento populacional e maior extensão das áreas, resultando em áreas maiores que impactam a um primeiro olhar. Assim, justamente onde os conflitos fundiários são maiores é que estão as

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Situação jurídica das terras indígenas, segundo dados do ISA. Disponível em: Acesso em: 02.02.2017. 79 Localização e extensão das terras indígenas, segundo dados do ISA. Disponível em: Acesso em: 02.02.2017.

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comunidades indígenas em piores condições territoriais e socioeconômicas. O avanço da tese do marco temporal e da interpretação restritiva do renitente esbulho, seja pela sua afirmação em projetos de lei, seja pela aplicação pelo Judiciário, resulta em um impacto significativo sobre terras indígenas com demarcação judicializada. Hoje, existe um número elevado de processos judiciais em curso no Judiciário Federal Brasileiro em que a tese do marco temporal pode ser aplicada, resultando anulação e despejo de comunidades vulneráveis80. Especificamente sobre o Mato Grosso do Sul, a partir de informações de relatório da “Comissão sobre a Questão Indígena em Mato Groso do Sul”, formada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há cerca de 140 ações judiciais envolvendo as demarcações de terras indígenas no Estado tramitando em alguma instância do Poder Judiciário, sendo a maioria na 1ª Instância da Justiça Federal: 52 em Ponta Porã, 23 em Naviraí, 7 em Campo Grande, além de 3 no Tribunal Regional Federal com origem em Dourados, 15 com origem em Naviraí e 11 com origem em Ponta Porã. Outras 11 ações tramitam no STF, em Brasília. Desse total, 18 foram movidas pela Federação de Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (Famasul). Além disso, 14 terras entre homologadas, identificadas, declaradas, delimitadas ou registradas estão com os procedimentos demarcatórios ou portarias declaratórias suspensas por efeito de ações judiciais (CNJ, 2013). Mesmo neste contexto, iniciativas como o marco temporal contemplam atores do sistema político brasileiro. O Congresso Nacional possui atuando o que se convencionou chamar de “bancada ruralista”: Deputados Federais e Senadores – mas também membros dos Poderes Executivos Estaduais e Municipais – de diferentes partidos e regiões do país, ligados ao agronegócio e a grandes latifúndios, que atuam em benefícios particulares de sua classe e contra os interesses das populações tradicionais e do meio ambiente, que atrasariam a concretização deste devir desenvolvimentista. O espaço oficial da bancada é representado pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), entidade associativa de Deputados e Senadores registrada no Congresso a cada legislatura. A FPA conta com Estatuto próprio81 e, atualmente, possui 198 Deputados Federais e 21 Senadores como membros82. 80

Como exemplo, tomam-se os casos dos Guarani-Kaiowá da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, entre os municípios de Douradina e Itaporã, no MS, anulada pela 1ª Vara Federal de Dourados (MS), dos Pataxós do Sul da Bahia, habitantes da Aldeia de Aratikum, e dos Gamela da Aldeia Pirái, em Matinha (MA). 81 “Art. 1º A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) é uma entidade associativa defende interesses comuns, constituída por representantes de todas as correntes de opinião política do Congresso Nacional e tem como objetivo estimular a ampliação de políticas públicas para o desenvolvimento do agronegócio nacional”. Documento disponível em: Acesso em: 15.10.2015. 82 Os dados sobre a FPA estão disponíveis no site da Câmara de Deputados:

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De fato, integram a FPA políticos de diversos partidos e não necessariamente proprietários de terras ou com discursos públicos contrários aos direitos das comunidades tradicionais e ao meio ambiente, porquanto as frentes parlamentares são espaços legítimos da política nacional e o desenvolvimento da agricultura e da pecuária são temas de interesse público inconteste. Entretanto, os posicionamentos públicos da FPA são de apoio explícito à PEC 215 e a outras medidas que significam retrocessos aos direitos indígenas83. Existem inúmeras pesquisas publicadas sobre as características e a composição da Bancada Ruralista, não havendo dúvidas quanto à sua atuação enquanto bloco político coeso de representação de oligarquias rurais. Além de dissertações e teses em variados programas de pós-graduação, vale destacar o livro “Partido da Terra: como os políticos conquistam o território brasileiro”, do jornalista Alceu Castilho, de 201284. Com o mesmo intuito, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o Greenpeace e o Instituto Socioambiental (ISA) lançaram em 2013 o site “República Ruralista”, para tornar acessíveis dados públicos sobre os membros da Bancada, como informações sobre a atuação parlamentar, patrimônio fundiário e econômico, financiadores de campanha e ocorrências judiciais de 31 das principais lideranças85. Utilizando inclusive dados do TSE, fornecidos pelos próprios parlamentares, os pesquisadores concluem que a Bancada é formada basicamente por proprietários de terras e que recebem doações de latifundiários ou de grandes empresas e multinacionais do agronegócio. Além disso, refazendo a trajetória política familiar, percebem que há membros da Bancada interligados a históricas oligarquias regionais, muitas vezes flagradas pelo Ministério Público do Trabalho utilizando mão-de-obra em condições análogas à escravidão. Portanto, é nítida a vinculação entre a classe política e o latifúndio brasileiro. Esta correlação de forças desigual faz com que as comunidades indígenas fiquem suscetíveis a perda de território, mas também às violências do campo, à mortalidade infantil e a altas taxas de suicídio, por exemplo. Além disso, o debate sobre o avanço de medidas juridicamente complexas como a PEC 215 resta bloqueado pelo lobby político. Nesse sentido, é bastante revelador que a questão da produtividade condicione e http://www.camara.gov.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=53476. Acesso em: 17.10.2015. 83 Como exemplo, vide notícia de 5 de fevereiro de 2015, do site oficial da FPA: “Índios, FPA não desistirá da PEC 215”. Disponível em: Acesso em: 16.10.2015. 84 CASTILHO, Alceu Luis. Partido da Terra: Como os Políticos Conquistam o Território Brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2012. Em busca realizada pelo termo “bancada ruralista”, encontrou-se 14 referências no Portal de Teses e Dissertações da CAPES e 30 referências no Portal de Periódicos da CAPES. 85 Disponível em: http://www.republicadosruralistas.com.br/. Acesso em: 16.10.2015.

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justifique teses jurídicas que acabam por bloquear direitos fundamentais. Nos debates do RMS 29.087, extrai-se a seguinte fala do Min. Gilmar Mendes:

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - No caso de Mato Grosso do Sul é exatamente essa conflagração que existe, em função de se estar fazendo demarcação de áreas altamente produtivas. Então, por isso que a questão se coloca. [...] Por isso que o Tribunal fixou o critério, inclusive em relação aos aldeamentos extintos que pegariam uma boa parte de São Paulo. Hoje, um dos maiores municípios, e talvez um dos maiores orçamentos e dos maiores PIBs, é o de Guarulhos [...] a União não pode amanhã retirar territórios a seu bel talante, e nós sabemos como isso é feito, esses laudos, laudo da FUNAI. (BRASIL, 2014b, p. 32).

A tese do marco temporal, da forma como é construída e fundamentada, parece contribuir para a manutenção de tal realidade de concentração fundiária por elites agrárias, com origens que remontam ao período colonial, e com relações de poder que se estendem ao Congresso Nacional. Importante notar que a tese tem origem e destino certeiros: prejudica comunidades indígenas específicas, que estão dentre as mais vulneráveis e localizadas nas regiões de expansão agrícola, onde perduram interesses de grandes empresas multinacionais e de grandes proprietários rurais. Deste modo, as incursões pela tomada de territórios indígenas, aliadas às ideias assimilacionistas que confinaram os índios em reservas e os colocaram como mão-de-obra barata do agronegócio em expansão, reproduziram a classificação social baseada na ideia de raça de que fala Quijano (1993) como origem da colonialidade do poder. Além disso, perceber que tais correlações de força persistem atualmente, reforça a análise de que a colonialidade do poder estruturou as sociedades latino-americanas mesmo após os processos de independência e, mais recentemente, os processos de redemocratização.

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CONCLUSÃO

No primeiro capítulo do trabalho, foram apresentadas as origens e os principais conceitos do pensamento descolonial enquanto movimento teórico interdisciplinar que busca, a partir de um projeto epistemológico, reconhecer a existência de um conhecimento hegemônico e contestá-lo em suas próprias deficiências. Neste sentido, a matriz de poder colonial inaugurada com a conquista da América estruturou as sociedades latino-americanas e atuou no bloqueio e invisibilização de outros âmbitos da vida dos sujeitos coloniais, como os saberes plurais, as subjetividades e os modos de vida. Juntamente com este referencial, foi discutido o método da práxis sócio-histórica crítica, que considera o elemento de corporeidade dos sujeitos coloniais na luta antihegemônica por reconhecimento, por direitos e pela descolonização do ser e do saber, além de destacar a importância da historicidade das relações de poder estabelecidas pela colonialidade. A própria relação existencial dos povos indígenas com o território tradicional enfatiza a genealogia das lutas e conflitos, refletindo em temporalidades identificadas como “o tempo dos brancos” e “o tempo do direito” (PEREIRA, 2002, p. 24). Na segunda parte, ao se abordar a evolução do quadro normativo indigenista, que passou de políticas oficiais de assimilação cultural e tomada de territórios tradicionais ao reconhecimento constitucional da plurietnicidade na Constituição Federal de 1988, foi possível estabelecer uma relação com o referencial e com o método. Considerar a historicidade dos direitos indígenas e dos conflitos fundiários atuais é importante para uma análise dos efeitos da colonialidade e para a busca de respostas consistentes. Dentro deste quadro, também foram analisados elementos que contribuem para a garantia dos direitos territoriais em sintonia com a evolução do direito internacional dos direitos humanos e com a afirmação do direito à diferença: a emergência da territorialidade, a consideração dos processos de territorialização e os avançados parâmetros estabelecidos pela jurisprudência da Corte IDH em matéria de propriedade coletiva. Todo este esforço permitiu se analisar a tese do marco temporal e do renitente esbulho pelos possíveis elementos de colonialidade expressados na sua fundamentação e aplicação em casos recentes, enquanto tese consolidada na Segunda Turma do STF. Embora afirmados – assim como as salvaguardas institucionais – como elementos extraídos diretamente da interpretação conforme a Constituição de 1988, fato é que há muitas críticas teóricas e conflitos com posições jurídicas adotadas pelo próprio STF em outros julgados, como a originariedade do direito, a constitucionalidade do processo demarcatório, a relação de direito

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constitucional, a tradicionalidade mantida com os esbulhos, dentre outras. Conclui-se que o estabelecimento de um limitador temporal aos direitos originários dos povos indígenas denota o bloqueio e a invisibilização das cosmologias indígenas e do passado de tutela, esbulho e violência estatal, contribuindo para a perpetuação de conflitos fundiários violentos e da situação de vida precária das populações indígenas. Este quadro, mesmo em um contexto normativo de superação do regime tutelar, pode configurar situação de colonialismo interno praticado pelo Estado brasileiro. Assim, a colonialidade do ser se expressa no bloqueio da resistência dos povos indígenas, na desconsideração da história recente de violência e na perpetuação do discurso colonial que constrói e reproduz o “outro” como hierarquicamente inferior. A colonialidade do saber se manifesta, sobretudo, pela imposição de um discurso civilista que neutraliza um direito constitucional, cujo fundamento está na consideração de outros saberes e cosmologias, bem como territorialidades. Por fim, a colonialidade do poder é reforçada pelas correlações de poder e de submissão dos povos indígenas que o marco temporal contribui para legitimar, em vez de buscar evitar, ou mesmo transformar. Há diferenças determinantes entre a configuração do poder e a ocupação territorial em Estado-Nacionais modernos e as territorialidade e formas de sociabilidades indígenas. Porém, também há reconfigurações destas relações através do contato interétnico, dos processos de territorialização e do próprio renascer dos povos indígenas para o direito, a partir das normas atuais – nacionais e internacionais – que possibilitaram as demarcações e a emergência étnica de grupos antes silenciados pelo próprio Estado. Como caminhos apontados para alguma articulação, é possível se pensar na fundamentação do já consolidado constitucionalismo pluriétnico do Brasil a partir das ideias da descolonialidade, como aponta Médici (2016). Isto pressupõe disputar constantemente os sentidos das normas constitucionais, como é feito em relação à tese do marco temporal. Para a maior garantia, proteção e promoção de direitos territoriais, tal tarefa se mostra eficaz, pois pressupõe mais articulações do que rupturas: articulação entre direito e antropologia, direito civil e constitucional, direito interno e observação dos tratados internacionais, dentre outras. Alguns elementos desta tarefa já existem: como exemplo, as normas internacionais destacadas como fontes importantes já se encontram internalizadas no direito brasileiro, pois o país ratificou a Convenção nº 169 da OIT, a Declaração das Nações Unidas de 2007, e em breve a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas da OEA. A aplicação mais eficaz destas normas pressupõe uma outra interpretação dos parágrafos do art. 5º da Constituição, em relação ao status normativo que os tratados de direitos humanos assumem, o

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que já é feito pela doutrina86, mas sem adesão majoritária no STF. Já as sentenças da Corte IDH carecem de regramentos internos mais específicos para o seu cumprimento, mas o fato é que o Brasil aceitou a jurisdição do órgão contencioso interamericano. Neste sentido, o protagonismo dos povos indígenas, que se expressa na resistência, nos processos de retomada de territórios e na autodemarcação, poderá ganhar um impulso em nível internacional, pois já existe ao menos um caso levado à jurisdição da Corte IDH de uma comunidade indígena contra o Estado Brasileiro87, o povo Xucuru, da cidade de Pesqueira, Pernambuco. A atuação da Corte poderá trazer novas interpretações dos direitos territoriais indígenas especificas do contexto nacional. Se seguida a sua jurisprudência progressista, é possível que a Corte IDH contribua para o Brasil rever posicionamentos sobre direitos indígenas. Ao menos, é possível se abrir um flanco de litigância para a garantia de direitos humanos negados no plano interno. Outro elemento já existente é o conceito de terras indígenas da Constituição: por conta de suas características (originariedade, tradicionalidade, posse permanente, usufruto exclusivo dos recursos, inalienabilidade, imprescritibilidade, etc.), há sólidos elementos jurídicos apontando para a territorialidade como paradigma, resultando na demarcação de áreas contínuas, com extensão que contemple as formas de organização sociocultural de cada etnia, e sobre áreas tradicionais que permitam sua reprodução econômica, social e cultural. Também é possível se pensar em uma mudança de paradigma jurídico do direito à terra, partindo-se da mera governança – que acomoda teses jurídicas que visam “apagar de vez conflitos históricos”, igualando-se injustamente as responsabilidades dos atores, como indígenas e Estado –, para outro de reparação, que considera os erros históricos cometidos pelo Estado em relação a uma determinada população interna88. É desta forma que 86

Sobre esta discussão, ver a nota 32, p. 83-84. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em 16 de março de 2016, o caso 12.728, Povo Indígena Xucuru e seus membros, a respeito do Brasil, porque o Estado Brasileiro não cumpriu com as recomendações contidas no Relatório de Mérito de 28 de julho de 2015. Nele, há a denúncia de violação do direito à propriedade coletiva em consequência da demora de mais de dezesseis anos (1989 e 2005) no processo administrativo de reconhecimento, titulação, demarcação e delimitação de seus territórios ancestrais. O caso foi apresentado em 16 de outubro de 2002, pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos/Regional Nordeste, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares – GAJOP e o Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Os documentos relativos ao caso (Relatório de Mérito da CIDH e Carta de Submissão) podem ser acessados no site da OEA: http://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/demandas.asp. 88 Neste sentido, uma das conclusões da CNV, em seu relatório final, é de que a questão indígena carece da aplicação dos mecanismos de Justiça de Transição e de maiores apurações sobre os fatos. Assim, o documento recomenda ao Estado Brasileiro: “- Pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho das terras indígenas e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando a instauração de um marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos. - Reconhecimento, pelos demais mecanismos e instâncias de justiça transicional do Estado brasileiro, de que a perseguição aos povos indígenas visando a 87

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argumentam Rodríguez Garavito e Baquero Díaz (2015) na sua tipologia de paradigmas jurídicos da relação intercultural na América Latina (RODRÍGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015). Toda esta discussão é suficiente para descartar a tese do marco temporal da ocupação como um caminho a ser seguido pelo STF e pelo Estado brasileiro em relação aos direitos territoriais indígenas. Da mesma forma, tais elementos parecem proporcionar respostas mais adequadas aos conflitos territoriais históricos dos povos indígenas do que o bloqueio de direitos fundamentais por conta de criações e interpretações jurisprudenciais marcadas pela colonialidade, como o marco temporal e o renitente esbulho. Porém, também é possível entender que o eurocentrismo presente em no constitucionalismo bloqueia a emancipação real dos sujeitos coloniais e dos povos indígenas, sendo necessários projetos mais radicais de refundação do Estado e do direito, em vias de um Estado plurinacional e de pluralismo jurídico, como os exemplos concretos da Bolívia e do Equador estão procurando construir. A partir da desobediência epistêmica e visando à interculturalidade, tais projetos devem ser construídos desde abajo, considerando a multiplicidade de visões de mundo, de formas de organização sociopolítica e de pluralidade jurídica (WOLKMER; FAGUNDES, 2013). Ao se tomar este caminho, nota-se que o Brasil está longe de promover o real protagonismo dos povos indígenas na busca por seus próprios meios de organização sociopolítica, controle de territórios e regulação da vida, também no aspecto jurídico. No caso do constitucionalismo emancipador da Bolívia e do Equador, há toda uma fundamentação cosmológica por trás das normas relativas à participação popular direta e aos novos sujeitos de direitos: a ideia de Sumak Kawsay, ou de bem-viver, orienta uma nova forma de desenvolvimento, anticapitalista, que também irradia normas constitucionais específicas, como tornar a Pachamama sujeito de direitos. Com isto se quer dizer que nenhuma norma constitucional, por si só, garante a descolonização do poder, cuja colonialidade está enraizada na constituição das sociedades latino-americanas e na produção e validação dos saberes, inclusive do direito moderno. Se o marco temporal é inconstitucional e anticonvencional, ainda assim se “acomoda” politicamente no constitucionalismo brasileiro, pois há setores da sociedade, atores políticos e entendimentos jurídicos que expressam a colonialidade do poder, do saber e do ser. colonização de suas terras durante o período investigado constituiu-se como crime de motivação política, por incidir sobre o próprio modo de ser indígena. - Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo.” (BRASIL, 2014c, p. 253).

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