Terras indigenas e unidades de conservação: um mosaico de áreas protegidas no médio Purus

Share Embed


Descrição do Produto

E s t u d o d e c aso 1 0

TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO: UM MOSAICO DE ÁREAS PROTEGIDAS NO MÉDIO PURUS

Marcelo Horta Messias Franco

O indigenista do CIMI1, padre Gunter Kroemer, no seu importante estudo sobre os povos indígenas do médio Purus, estimou uma população indígena de mais de 40 mil pessoas no período da chegada do explorador Antônio Labre na região da chamada terra firme do Maciary. As línguas faladas eram mais de seis e a ocupação territorial não era fixada em aldeamentos, até porque o uso dos abundantes recursos naturais se dava de forma dispersa e de acordo com modos e costumes tradicionais no vasto mundo dos rios que formam a monumental bacia hidrográfica do Purus (Kroemer,1985). Os povos indígenas do médio rio Purus começaram a restringir as suas áreas de uso à medida que os seringais foram se expandindo e tomando o seu espaço. Por influência de agentes missionários pentecostais, e mais tarde por agências governamentais assistencialistas, houve uma tendência à formação de aldeamentos fixos e mesmo os povos de conhecida tradição de mobilidade, como os Paumaris, se fixaram no território. Resistindo a 1

Conselho Indigenista Missionário.

698

.

A Diversidade Cabe na Unidade?

dois intensos ciclos de exploração do látex, esses povos se viam, em fins dos anos 60 do século passado, em condições precárias no tocante a suas formas de organização social, cultural e, principalmente, de população. Dado o difícil acesso a algumas regiões, alguns grupos, entretanto, conseguiram permanecer em situação de semi-isolamento, com pouquíssimo contato com a sociedade envolvente. Os Apurinãs e Paumaris, que hoje formam os grupos majoritários, encontraram formas diferenciadas de adaptação à situação de contato intenso com os migrantes nordestinos. A primeira terra indígena demarcada em Lábrea se localiza bem próxima ao perímetro urbano da cidade. O seu processo de reconhecimento se deu com fortes e sangrentos conflitos com a população local, e a mobilização dos índios Apurinãs, em prol da luta pela garantia daquele território tradicional, foi determinante para a consolidação daquele processo demarcatório. A Terra Indígena Caititu, foi homologada assim no ano de 19912 e, a partir de então, estavam criadas as condições para novas reivindicações indígenas junto ao órgão indigenista oficial do governo. Os índios se organizavam em grandes assembléias interétnicas para discutirem seus direitos constitucionais até formarem, em 1995, pela primeira vez, uma organização representativa de âmbito regional, a OPIMP – Organização dos Povos Indígenas do Médio Purus (Franco, 2010). Dessa forma de 1994 a 1996, a FUNAI mobilizou recursos para os processos de identificação, demarcação e homologação de vinte e sete territórios indígenas no médio Purus, somando mais de 5 milhões de hectares de terras demarcadas, acompanhando uma conjuntura nacional favorável à política de demarcações de terras dos anos 90 na Amazônia Legal. Nas duas décadas seguintes, após as grandes demarcações das terras indígenas no Purus, unidades de conservação federais foram criadas por decreto presidencial, formando assim o grande mosaico de áreas protegidas existente hoje na região do médio Purus. Por meio do protagonismo do Conselho Nacional das Populaçoes Extrativistas, o CNS, com o apoio da 2

Seu processo de identificação se inicia em 1986 (fonte: FUNAL CR Purus)

Áreas Protegidas no Brasil

.

699

CNPT, uma Coordenadoria Nacional das População Tradicionais que existia dentro do IBAMA, ocorreram as primeiras mobilizações nas comunidades ribeirinhas ao longo dos rios Purus e Ituxi. Eram ressaltadas, naquelas reuniões de base, a importância do reconhecimento das áreas de moradia e uso dos recursos naturais dentro da categoria de reservas extrativistas, a exemplo do que tinha acontecido no Acre no início da década de 90. As ideias do movimento extrativista ganharam força junto às comunidades tradicionais de Lábrea, as quais vinham sofrendo intensa exploração dos “herdeiros dos seringais”, os modernos “patrões” que insistiam no regime exploratório do aviamento e arrendamento de lagos e castanhais. Foi assim que duas associações comunitárias, uma no Purus e outra no Ituxi formalizaram, no início da década de 2000, o pedido pelas unidades de conservação de uso sustentável (Aleixo, 2011). O IBAMA, por meio da CNPT, deu segmento aos estudos e às consultas públicas para a criação das duas Resex em Lábrea com a forte resistência do poder político local, composto, justamente, pela nova geração dos “coronéis de barranco”, os quais reivindicavam posse de terras em locais onde residiam mais de mil famílias em dezenas de comunidades rio acima. A assinatura do decreto de criação das Reservas Extrativistas Federais do Médio Purus e do rio Ituxi se deu em 2008, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Aproximadamente, um milhão e 400 mil hectares de terras públicas foram destinadas para a preferencial utilização daquelas famílias que há gerações ali habitavam. Nesse contexto, e com o objetivo de frear o avanço do desmatamento no sul do estado do Amazonas, também foram criadas a Floresta Nacional do Iquiri e o Parque Nacional do Mapinguari. Uma reserva extrativista estadual e duas florestas estaduais também foram criadas no rio Purus nos municípios de Canutama e Tapauá, na área de influência da BR 319 cujo processo de reasfaltamento estava em discussão desde 2006 (Franco, 2011). A consolidação desse grande mosaico de áreas protegidas na região do médio Purus representou, dessa forma, uma conquista do movimento ambientalista, antecipando-se a grandes obras de infraestrutura presentes na região como rodovias, pontes, hidrelétricas, gasodutos e empreendimentos de extração mineral.

700

.

A Diversidade Cabe na Unidade?

Áreas Protegidas no Brasil

.

701

Passados esses anos de intensa mobilização social em torno de garantias territoriais no Purus indígena e extrativista, os desafios que se seguiram não foram poucos. Já no ano de 2008, o ICMBio3, com o apoio do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), trabalhou junto às comunidades extrativistas para a criação dos Conselhos Deliberativos das Resex. Esses espaços públicos vêm funcionando com, em média, três reuniões anuais em cada reserva e foi a partir dessas reuniões que surgiram propostas de encaminhamentos para uma gama de pautas relativas à plena implementação dessas unidades. Logo nas primeiras reuniões de conselho, questões foram surgindo como prioritárias: a questão da sobreposição com as terras indígenas, a regularização fundiária, o uso dos castanhais, o uso dos lagos e os acordos de pesca, entre outras. No tocante as pautas relacionadas ao uso dos recursos, a gestão das unidades buscou priorizar o trabalho dos planos de uso4, finalizados no ano de 2012. Quanto ao tema da sobreposição e o acirramento dos conflitos entre indígenas e extrativistas, estratégias foram pensadas após reuniões e discussões entre os órgãos gestores e a FUNAI, ora com o envolvimento dos parceiros da sociedade civil local e movimentos sociais, e sempre com o envolvimento do movimento indígena regional representado pela FOCIMP5. No ano de 2011, a Federação Indígena realizou, com o apoio da ONG Visão Mundial, a confecção de seu ‘Plano de Vida’, um documento que aponta e pontua os locais de sobreposição dentro do mosaico, e que se constituiu em mais uma ferramenta para ser debatida em seminários e reuniões, sobretudo nas reuniões dos conselhos deliberativos e assembleias indígenas. A partir da maior proximidade e diálogo entre FUNAI e ICMbio, por meio de ações como mapeamento de castanhais, o próprio plano de utilização das resex, pontuais acordos de pesca e reuniões setoriais (a Resex Medio Purus possui 11 setores e 97 comunidades), muitos desses conflitos começaram a ser dirimidos. Importante ressaltar, também, nesse âmbito, a discussão em torno da PNGATI, a Política Nacio-

nal de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas. O IEB, bastante atuante em Lábrea desde 2008, ano do decreto das unidades de conservação federais, lidera um projeto que visa discutir essa política em toda a Amazônia sendo que o Purus é um dos pólos contemplados com cursos e oficinas dentro desse projeto.

3

Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade

4

Ou Planos de Utilização ou ‘Acordos de Gestão’.

Agendas casadas entre extrativistas e indígenas, timidamente, ocorreram no tocante à luta pelo acesso a saúde e educação, e também em iniciativas de escoamento da produção. Mas ainda há que se superar o preconceito histórico em torno dos indígenas do Purus. Interessante é o protagonis-

5 Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus, que substituiu a OPIMP, a partir de 2010.

A pauta da regularização fundiária, apesar de não ter sido priorizada num primeiro momento pelos extrativistas, foi tomando importância, especialmente após a realização do primeiro seminário regional sobre esse tema, organizado pela Comissão Pastoral da Terra com o apoio do ICMBio e IEB em Lábrea em maio de 2012. Duas questões importantíssimas foram colocadas ali: a Resex do Médio Purus, com quase 700 mil hectares de extensão ao longo do rio Purus, entre Lábrea e Pauiní, é constituída, em quase totalidade de seu território, de terras pertencentes ao estado do Amazonas. Essa situação, praticamente, inviabiliza a indenização das propriedades privadas dentro da unidade de conservação federal. A outra questão é a situação das terras de várzea, de responsabilidade de Secretaria de Patrimônio da União – SPU que, em tese, pode agilizar o processo de concessão das terras públicas às associações dos extrativistas. Ficou claro, durante o seminário, que somente com a regularização fundiária definida, outras políticas públicas teriam como ser viabilizadas nas Resex, prioritariamente a concessão dos créditos habitação pelo INCRA, mas, também, a viabilização de crédito aos agricultores familiares e o manejo florestal comunitário. Alheio a continuidade do brutal desmatamento, que continua assolando a porção sul dos municipios de Lábrea e Canutama, como em toda na região de fronteira interrestadual no sul do Amazonas, o ‘Mosaico Purus’ continua firme no seu propósito conservacionista. As prefeituras e a sociedade local, aos poucos, vêm aderindo às agendas de manejo. As universidades e os institutos de educação também se envolveram nessas agendas por meio dos espaços públicos criados como os conselhos e grupos temáticos.

702

.

A Diversidade Cabe na Unidade?

mo do próprio movimento indígena chamando os extrativistas para as suas reuniões e assembléias. Igualmente, associações extrativistas envolvem os indígenas em projetos de escoamento de produção, com destaque para a borracha nativa. O entendimento entre a complexa trama de atores sociais em Lábrea não se daria se não fosse o esforço e a iniciativa de parceiros como o IEB, promovendo os seminários e fóruns de debate e apoiando as reuniões dos conselhos deliberativos como espaços públicos qualificados. A discussão sobre o encaixe do desenvolvimento do mosaico com o desenvolvimento local sustentável está em um estágio inicial, com o modelo baseado na pecuária extensiva e na exploração madeireira e mineral sempre batendo a porta do município de Lábrea. Caberá aos poderes locais constituídos, juntamemente com a Sociedade Civil organizada, decidir os rumos do desenvolvimento da região fazendo com que o mosaico do Purus não seja simplesmente uma colcha de retalhos em um mapa de papel.

Referências Bibliográficas ALEIXO, J. (Org.) (2011) “Memorial da Luta pela Reserva Extrativista do Médio Purus em Lábrea-AM: registro da mobilização social, organização comunitária e conquista de cidadania na Amazônia”. ATAMP – Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Médio Purus / IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil , Brasília. ______.(2011) “Memorial da Luta pela Reserva Extrativista do Ituxi em Lábrea-AM: registro da mobilização social, organização comunitária e conquista de cidadania na Amazônia.”APADRIT – Associação Produtores Agroextrativistas da Assembleia de Deus do Rio Ituxi / IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil , Brasília. ATAMP – ASSOCIAÇÃO DOS TRABALHADORES AGROEXTRATIVISTAS DO MÉDIO PURUS. (2010). “Tomam posse os conselheiros das Resex Médio Purus e rio Ituxi.” In ‘Boletim Informativo Purus em Ação’, ano I primeira edição, Lábrea 10 de novembro de 2010. DAL POZ, N. J. (1985), “Relatório de Reestudo da área Indígena Caititu”, FUNAI/Manuscrito.

Áreas Protegidas no Brasil

.

703

FEDERAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES E COMUNIDADES INDÍGENAS DO MÉDIO PURUS FOCIMP (2011) “Plano de Vida do Movimento Indígena do Médio Purus/AM; Projeto Aldeias, Operação Amazônia Nativa e Visão Mundial, Lábrea-AM. FRANCO, M. H. M. (2010) “Organização Social e Representatividade Pluriétnica na Região do Médio Purus”. Monografia de Especialização em Indigenismo. Cuiabá: MT: OPAN / UNIVERSIDADE POSITIVO. ______, M.H.M. (2011) “Novas Configurações Territoriais no Purus Indígena e Extrativista”. in MENDES, G. „Álbum Purus. pp.153-166. Manaus. KROEMER, G.(1985) “Cuxiuara: O Purus dos Indígenas. Ensaio etno-histórico e etnográfico sobre os índios do médio Purus”. São Paulo : Edições Loyola. SUAREZ M. A. (2011) “Panorama contemporâneo do Purus indígena” in Álbum Purus, Manaus EDUA Gilton Mendes (Org.).

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.