Territorialidade e Fronteira. Anais do XXX Encontro Estadual de Geografia. Erechim-RS: Universidade Federal da Fronteira Sul, 2011.

July 27, 2017 | Autor: C. Pereira Carnei... | Categoria: Political Geography, Geografía Política
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XXX Encontro Estadual de Geografia Outras Geografias: entre território e ambiente, região e desenvolvimento

TERRITORIALIDADE E FRONTEIRA Camilo Pereira Carneiro Filho1 [email protected]

Resumo: A territorialidade é um importante componente geográfico para a compreensão da interconexão entre espaço e sociedade. Ocupação, uso e representação são características que compõem a relação de poder que gera o território. No atual processo de globalização, onde países vizinhos se unem na formação de blocos regionais, novos territórios são formados. Nesse contexto, os territórios de fronteira e mais precisamente as cidades-gêmeas irão emergir como áreas centrais, uma vez que nelas se materializarão muitos dos acordos firmados pelos novos blocos de países. Palavras-chave: fronteira; territorialidade; território; nacionalismo.

Abstract: Territoriality is an important geographic component to understand the interrelationship between space and society. Occupation, use and representation are characteristics that build a balance of power that creates the territory. In the current globalization process, where neighbor countries are united in regional blocs, new territories are formed. In this context the border territories emerge as central areas. In twin cities many of the border agreements signed by the new blocks of countries will be materialized. Keywords: Border, territoriality, territory, nationalism.

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Doutorando em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Bolsista CAPES pelo projeto "Ajustes espaciais na Faixa de Fronteira da Amazônia Setentrional brasileira: dos dilemas espaciais à defesa do território", coordenado pelo Prof. Dr. Jadson Porto, da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), com a participação da UFRGS e do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA).

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1. INTRODUÇÃO

De acordo com Sack (1986), a territorialidade é a tentativa por parte de um indivíduo ou grupo de afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relações através da delimitação e afirmação do domínio sobre uma determinada área geográfica. Esta área receberá o nome de território. Nos seres humanos a territorialidade pode ser entendida como uma estratégia espacial, podendo assim ser ativada ou desativada. O território é produzido através de uma relação de poder que ocorre em escalas geográficas diferentes. Essas escalas, por sua vez, variam do âmbito da ação do indivíduo ao âmbito da ação das sociedades políticas (HEIDRICH, 2009). Na construção da territorialidade os limites possuem um papel fundamental e para que sejam produzidos é necessário que eles sejam reconhecidos pelo imaginário coletivo – um instrumento que serve para unificar os semelhantes e separá-los dos que são diferentes. Na percepção dessa alteridade, dessa diferença, a fronteira é um dos símbolos mais importantes (MALDI, 1997). Por exemplo, nos núcleos urbanos que estão dispostos em pares ao longo dos limites internacionais – as cidades-gêmeas – onde há a materialização do contato entre populações de diferentes unidades territoriais, o imaginário coletivo é responsável pelo estabelecimento e pela reafirmação das diferenças entre os cidadãos dos países vizinhos. Ainda no âmbito dos símbolos reconhecidos pelo imaginário coletivo, é importante frisar que Estados nacionais modernos foram fundados com base em símbolos pertencentes a regiões específicas (HAESBAERT, 2004). Grande parte dos Estados nacionais consolidou-se através da conquista e da imposição de uma região hegemônica sobre outras. Ao passo em que controlava novas regiões, a região hegemônica ia impondo sua cultura, seu idioma, seu sistema econômico e sua religião (CASTRO, 1997). Todavia, há que se lembrar que a apropriação e a construção de novos territórios estimulam a criação de identidades e heterogeneidades, o que torna difícil a identificação do elemento considerado “nacional”. Nesse contexto, a definição do limite estatal surge como uma solução. Um dos símbolos mais importantes do território – determinando aquilo que faz parte do mesmo – é o limite, que pode ser compreendido como uma linha divisória abstrata observável através dos marcos de fronteira. O limite teve origem na

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necessidade de se delimitar os Estados. Os limites internacionais designam o perímetro máximo do controle exercido pelos governos centrais, sendo sua legitimidade sustentada pela legislação internacional, bem como pelos integrantes do próprio Estado. Antigamente os Estados nacionais separavam-se por limites entre áreas administradas de acordo com diferentes poderes e leis, já nos tempos atuais podemos perceber muitas modificações nas relações entre os países soberanos. O sentido de “separação” da palavra fronteira, embora sobreviva na atualidade, é observado de forma diferente. No fim do século XX a evolução do comércio internacional caracterizou-se pela tensão entre tendências aparentemente contraditórias: a crescente liberalização do comércio internacional; e uma variedade de projetos governamentais que levaram ao surgimento de blocos de comércio. No caso do Brasil, o MERCOSUL foi criado em 1991 e esteve no centro da política externa do país até o final do governo FHC. Contudo, o governo do presidente Lula ampliou esse foco e incentivou a integração do Brasil com todas as nações sul-americanas, implementando projetos – no âmbito da IIRSA – em que o Estado brasileiro constituiu parcerias com seus vizinhos. O atual cenário de integração sul-americana, que está inserido na nova realidade da economia mundial, deu origem a áreas transnacionais que passaram a ser dirigidas de acordo com novos arranjos. Diversos territórios passaram a sofrer influência de poderes multiescalares cujos centros de decisão estão a milhares de quilômetros. Os territórios fronteiriços, que antigamente eram relegados a uma situação periférica de esquecimento e abandono, passaram a figurar no centro geográfico dos novos blocos de países surgidos no século passado. Nesse contexto, os núcleos urbanos situados ao longo do limite internacional – as cidades-gêmeas – surgem como territórios estratégicos e com grandes potencialidades.

2. TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE

Podemos dizer que o território é a representação coletiva fundamental da sociedade (MALDI, 1997). No entanto, ele não constitui um fato conquistado em definitivo, existem condições para seu surgimento que por vezes não são satisfatórias à sua manutenção, à permanência (HEIDRICH, 2009). O território pode ser compreendido como um espaço definido e delimitado através de relações de poder.

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Assim como a religião, a classe social, o gênero etc., o espaço geográfico é um dos componentes dos processos identitários, sendo o território a parcela do espaço enraizada numa mesma identidade e que reúne indivíduos com o mesmo sentimento (DORFMAN, 2008). Pode-se dizer que o território é um espaço de identidade que tem o sentimento como base. Enquanto o espaço se faz necessário para demarcar a existência do território, este último é a condição para que o espaço se humanize, assim, espaço e território não podem ser dissociados. A conquista e a defesa de um território são motivadas por razões econômicas ou culturais e a identidade a ele associada pode estar vinculada a uma disputa pelo controle de riquezas ou recursos ao longo da história (SOUZA, 2009). O território é um espaço cultural de identificação ou de pertencimento, sua apropriação se dá apenas em um segundo momento. Definir os limites do território é um exercício de dominação, de controle. O domínio entre pessoas e nações passa pelo exercício do controle do solo (MEDEIROS, 2009). Para que um território seja constituído e controlado é necessário ocupar, ter posse, fazer uso e propiciar a ocupação e o uso. Ocupação, uso e representação são características que compõem a relação de poder que gera o território. A relação de poder que produz o território ocorre em diferentes escalas geográficas, que variam do âmbito da ação do indivíduo ao âmbito da ação das sociedades políticas, estando sempre ligada a objetividade de um ator. A essa relação estão vinculados tanto o domínio territorial do Estado como o cercamento e uso de pequenas porções do espaço (HEIDRICH, 2009). Em ambas as situações há que se destacar a importância dos limites – fundamentais para a construção da territorialidade. A territorialidade, por sua vez, é um fenômeno social que envolve indivíduos que fazem parte do mesmo grupo social e de grupos distintos. Nas territorialidades existem continuidades e descontinuidades no tempo e no espaço; as territorialidades estão intimamente ligadas a um lugar específico; conferindo-lhe identidade além de serem influenciadas pelas condições históricas e geográficas desse lugar (SAQUET, 2009). Analisada sob uma ótica geográfica a territorialidade é uma forma de comportamento espacial, é um uso historicamente mutável do espaço, visto que é socialmente construída e depende de quem está controlando quem e por que. Além

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disso, ela é um importante componente geográfico para a compreensão da interconexão entre espaço e sociedade (SACK, 1986). A territorialidade humana engloba três processos que se conectam: • A classificação das coisas por área, no lugar da classificação das coisas por tipos, o que nos leva à identificação de zonas; • A comunicação da territorialidade ao outro, tendo em vista que a territorialidade pode ser comunicada facilmente, já que requer apenas um tipo de símbolo – a fronteira; • O aumento do controle sobre o acesso à área ou ao seu entorno.

Ao se analisar o uso que a humanidade vem fazendo da territorialidade ao longo dos séculos é possível perceber que se por um lado os primitivos usavam a territorialidade para delimitar e defender a terra como abrigo e como fonte de recursos, raramente utilizando-a para definir a si próprios, por outro, o homem moderno encontrase numa verdadeira competição que ocorre tanto sobre o próprio espaço – como no caso da expansão colonial –, como também sobre as coisas e relações efetivadas neste espaço (SACK, 1986). Podemos dizer que o advento do Estado-nação serviu tanto para a promoção de uma territorialidade no sentido de controle do acesso, quanto para a classificação e nomeação das pessoas de acordo com o local de nascimento.

3. O ESTADO-NAÇÃO E O REGIONALISMO

Toda existência legal dos indivíduos irá depender de sua condição territorial nacional. Essa condição vai variar tanto aos olhos dos nacionais quanto à percepção dos estrangeiros (SACK, 1986). Dentro de cada Estado-nação as desigualdades regionais muitas vezes simbolizam uma hierarquia, uma diferença de status entre os indivíduos do país. Essa situação se explica pelo fato dos criadores dos Estados nacionais modernos terem se baseado em determinados símbolos característicos de regiões específicas (HAESBAERT, 2004). A maior parte dos Estados nacionais que conhecemos hoje foi consolidada por meio da conquista e hegemonia de determinada região perante outras.

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Como exemplos, podemos citar as identidades nacionais russa e francesa, que foram cunhadas com base na expansão de territórios hegemônicos centrados em Moscou (num passado ainda mais remoto, em Kiev) e Paris, respectivamente, que constituem os territórios núcleo desses Estados nacionais contemporâneos. É importante lembrar que no momento em que a região hegemônica concretiza seu domínio ela impõe concomitantemente sua cultura, seu idioma, seu sistema produtivo e sua concepção religiosa (CASTRO, 1997). Essa apropriação e construção do território geram identidades e heterogeneidades que, por sua vez, geram outras identidades e heterogeneidades (SAQUET, 2009). As relações de poder espacialmente mediadas também produzem identidade porque controlam, diferenciam, separam e, ao separar, de certa maneira nomeiam e classificam os grupos sociais e os indivíduos. Todos esses processos de identificação social também configuram uma relação política, utilizada como estratégia nas situações de negociação e/ou conflito (HAESBAERT, 2004). Os Estados nacionais modernos foram forjados com base em processos de identificação social que se serviram de símbolos que proporcionassem a “unidade nacional”. A língua, a cultura, a religião e o imaginário coletivo foram usados como instrumentos na criação da unidade do Estadonação. Para que um território articule nação e Estado é necessário que ele efetue o domínio sobre uma extensão, havendo uma fusão entre um espaço delimitado de manifestação do poder, uma identidade nacional e o controle das relações econômicas dentro da mesma área geográfica (ESCOLAR-HEIRICH, 2009). No entanto, para que o sentimento nacional evolua há o enfraquecimento dos regionalismos, que, em diversas ocasiões na história passaram a ser condenados e perseguidos, como na proibição do uso das línguas regionais durante o regime franquista na Espanha, ou no episódio da queima das bandeiras estaduais durante o governo Vargas no Brasil. Podemos afirmar que existe uma tensão de base no Estado territorial moderno, haja vista que dentro dele existem identidades territoriais regionais que ali possuem um abrigo para sua preservação e ao mesmo tempo são ameaçadas através do poder simbólico do nacionalismo, instrumento que tem a função de fazer frente à influência de outros Estados e ao processo homogeneizante da globalização (CASTRO, 1997). Por essa razão o regionalismo é muitas vezes considerado um paradoxo presente no seio do

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Estado-nação moderno. Conflitos entre o regional e o nacional variam em intensidade. Como exemplos, temos de um lado os movimentos autonomistas de Quebec, do Curdistão, da Chechênia, do País Basco e da Catalunha (que beiram a ruptura nacional) e de outro, regionalismos menos radicais, como o do Nordeste brasileiro e o gaúcho, que convivem no seio do Estado nacional sem questionar sua autoridade. Contudo, em qualquer um dos exemplos de regionalismo citados, a existência do Estado-nacional se demonstra necessária. O regionalismo pode ser compreendido como um movimento político de base territorial, além de constituir, ao mesmo tempo, um problema político-geográfico. Esse fenômeno emergiu como resposta ao jacobismo do Estado-nação, no entanto, apesar de seus defensores se basearem no direito à diferença, empunharem a bandeira da identidade e lutarem pela autonomia, eles não podem prescindir da proteção que o mesmo Estado nacional ameaçador garante frente ao risco de uma homogeneização imposta pelo atual processo de globalização (CASTRO, 1997). A coexistência dos regionalismos dentro do Estado-nação pode ser vinculada a concepção multiescalar e não exclusiva de território (territórios múltiplos e multiterritorialidade). Haesbaert (2004) trabalha com a idéia de território como um híbrido, seja entre mundo material e ideal, seja entre natureza e sociedade, em suas múltiplas esferas – econômica, política e cultural. Nesse contexto, a percepção da França, como uma unidade forjada na diversidade é certamente um bom exemplo desta dialógica e de sua identificação no plano simbólico. Recordemos por fim dos apontamentos de Arrighi (1996) para a importância do territorialismo e o triunfo da ideologia nacionalista na totalidade do território. Neste sentido, os regionalismos, ao invés de representarem um desejo real de soberania se limitariam a lutas por disputas de recursos balizadas no poder simbólico da afirmação de uma identidade ou solidariedade a territórios particulares.

4. LIMITE, FRONTEIRA E CIDADES-GÊMEAS

No que tange ao sistema de Estados nacionais, os limites possuem a função de filtrar os fluxos internacionais. Nesse sentido, eles podem ser mais ou menos permeáveis, havendo até mesmo a possibilidade de que eles sejam dissolvidos em razão

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de determinados intercâmbios – em função dos sistemas jurídicos internos que regulam as políticas aduaneiras, migratórias, sanitárias, etc. O limite pode ser entendido como uma linha divisória abstrata passível de ser visualizada somente através de marcos de fronteira. Foi a necessidade de se delimitar os Estados que deu origem ao limite. Tendo em vista os papéis desempenhados no sistema interestatal, do ponto de vista formal, os limites internacionais definem o perímetro máximo do controle exercido pelos governos centrais, constituem um fator de separação entre unidades territoriais e possuem um caráter legal cuja legitimidade é dada por leis internacionais, mas fundamentalmente pelos integrantes do próprio Estado. De acordo com Machado (2005), o limite internacional é um princípio organizador do intercâmbio, seja qual for a sua natureza, não só para os territórios que delimita como para o sistema interestatal em seu conjunto. Segundo Raffestin (1980) o limite internacional é uma convenção ratificada por acordos diplomáticos que circunscreve “uma área no interior da qual prevalece um conjunto de instituições jurídicas e normas que regulamentam as atividades de uma sociedade política”; assim, uma convenção que afirma a coesão interna do território sob o controle de um poder central. A configuração linear dos limites do Estado denota, sobretudo, uma informação, o enquadramento de uma apropriação política do espaço, sendo um dos objetos geopolíticos por excelência. No contexto que presidiu a formação dos Estados nacionais, as zonas e lugares de contato foram encarados como áreas potencialmente dissidentes, daí o esforço dos Estados em fazer coincidir no plano conceitual e material o limite com a fronteira. É interessante lembrar que a noção de fronteira é historicamente anterior à noção de limite. Na concepção clássica da Geografia Política e da Geopolítica, a noção de fronteira está associada às “estruturas espaciais elementares, de forma linear ao invólucro contínuo de um conjunto espacial e mais especificamente de um Estadonação. Não obstante o significado da palavra fronteira como área, sua função de limite, de demarcação de território é de suma importância para a existência do Estado-nação moderno. O estabelecimento da fronteira entre dois países é na prática a territorialização dos Estados nacionais. Além da demarcação do território e do conjunto de leis que irão regê-lo, uma cultura, uma língua e uma identidade nacional recairão sobre a população

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que habita o território fronteiriço. Sendo assim, é possível afirmar que nacionalidade é, idealmente, uma identidade ancorada no território; nacionalidade é também territorialidade (DORFMAN, 2008). De acordo com a política de governo do Estado-nação a fronteira é manipulada como um instrumento para comunicar uma ideologia (RAFFESTIN, 1980). Já para Foucher (1988), as raízes da palavra fronteira têm uma conotação militar, remontando as fortificações situadas nas extremidades de reinos em guerra, no período medieval. Contudo, a fronteira também pode ser classificada como zona de contato entre domínios territoriais distintos. Também nesse caso, o sentido do contato foi historicamente associado às disputas territoriais. Por outro lado, um interessante significado para as zonas de fronteira seria o que iria além do caráter defensivo e da reivindicação territorial. Nessa nova concepção, as fronteiras seriam vistas como lugares de junção, onde se defrontam as áreas culturais. As fronteiras seriam os lugares privilegiados onde se efetuam as confrontações, os empréstimos, as experiências, constituindo “zonas de particular fecundidade” (DUBY-MACHADO, 2006). Esses contatos, experiências e trocas ocorrem de forma mais constante e profunda nas cidades-gêmeas situadas ao longo do limite internacional, locais onde é possível observar a materialização do encontro de sistemas jurídicos diferentes. Como exemplo desse contato podemos citar a fronteira entre Brasil e Uruguai, onde os intercâmbios são tão intensos – situação facilitada porque grande parte do limite internacional é constituída de fronteira seca – ao ponto dos governos dos dois países terem instituído o documento de identidade de cidadão fronteiriço. Apesar de não ser uma regra absoluta, nas cidades-gêmeas localizadas na fronteira internacional o contato entre populações de diferentes Estados faz com que freqüentemente o bilingüismo, o intercâmbio comercial e as famílias mistas sejam parte do cotidiano local, o que acarreta, muitas vezes, a situação de um verdadeiro hibridismo presente no território fronteiriço. Tal hibridismo vem sendo percebido ao longo dos tempos muitas vezes como um mal a ser combatido pelo poder central, visto que ele pode enfraquecer a influência do governo nacional sobre o território em questão. Em virtude disso, os governos nacionais tomam medidas para reafirmar seu domínio como, por exemplo, a obrigatoriedade do ensino do espanhol como língua única nas escolas públicas no norte

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uruguaio (uma forma de combater o DPU – dialeto português do Uruguai), ou as restrições à entrada de determinados produtos do país vizinhos, como no caso entre Brasil e Argentina, onde nas aduanas de cidades-gêmeas de fronteira como São Borja e Itaqui há uma lista com a quantidade (quilos ou litros) de determinados produtos como farinha, cerveja, carne, etc., que poderão ser trazidos por mês pelos cidadãos brasileiros.

5. OS TRANS-TERRITÓRIOS E AS NOVAS FACES DA PALAVRA FRONTEIRA Apesar do antigo sentido de “separação” da palavra fronteira ainda permanecer válido nos dias atuais, essa separação se faz de forma um pouco diferente. Se antes os Estados nacionais eram divididos por limites entre áreas regidas por diferentes poderes e leis, hoje, grandes modificações nas relações entre os países soberanos podem ser percebidas. No decorrer dos séculos os seres humanos passaram da comunhão dos lugares com o Universo para a interdependência universal dos lugares – realidade atual do território. O Estado-nação constituiu um marco nesse caminho, estabelecendo uma noção jurídico-política do território que decorreu do conhecimento e da conquista dos mais longínquos rincões do planeta, em um período de tempo que abrange o início do Estado Moderno e vai até a era em que os recursos naturais são cada vez mais preciosos (SANTOS, 1994). Dentro do atual contexto de globalização, as políticas neoliberais deixam suas marcas. Elas influenciaram nas disputas e resignificações do conceito de território, principalmente porque passaram a utilizar o conceito como forma de dominação, o que provocou reações de resistência (FERNANDES, 2009). Hoje, novos recortes podem ser visualizados além da antiga categoria região; e isso é um resultado da nova construção do espaço e do novo funcionamento do território através das horizontalidades e verticalidades. Enquanto as verticalidades seriam constituídas por pontos distantes uns dos outros, conectados por todas as formas e processos sociais, as horizontalidades seriam os domínios da contigüidade, daqueles lugares vizinhos reunidos em uma continuidade territorial (SANTOS, 1994). Há que se destacar que o destino das nações é diverso – complementar ou antagônico, dominante ou dominado, refletido na divisão centro-periferia. Apesar disso, cada uma delas se configura em um núcleo de irradiação. A nação define um espaço

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geográfico dentro do qual se realizam as aspirações políticas e os projetos pessoais. Sendo assim, o Estado-nação não é apenas uma entidade político-administrativa, mas constitui uma instância de produção de sentido (ORTIZ, 1996). Hoje, o Estado e seus aparelhos (burocráticos e políticos) intervêm sem parar no espaço e se servem do espaço instrumental para intervir em todos os níveis e em todas as instâncias da economia. Dessa forma, a prática social – global – e a prática política tendem a se reunir na prática espacial ganhando assim uma coesão, ou mesmo uma coerência lógica (LEFEBVRE, 1974). Nas décadas de 1980 e 1990, a evolução do comércio internacional foi marcada pela tensão entre duas tendências aparentemente contraditórias: de um lado a crescente liberalização do comércio; de outro, uma variedade de projetos de governo que deram início a blocos de comércio. A mais importante dessas áreas de comércio criadas foi a União Européia, mas a tendência de regionalização da economia mundial estava presente em outras áreas do mundo, como ficou evidenciado pela Área de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), no Conselho Econômico da Ásia-Pacífico (APEC) e pelo Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Tal tendência, juntamente como as persistentes práticas protecionistas que vigoravam através do mundo (principalmente no Sul e no Sudeste da Ásia), levaram um expressivo número de acadêmicos a sugerir a noção de economia global regionalizada (CASTELLS, 1996). Essa nova realidade da economia mundial deu origem a áreas transnacionais que passaram a ser dirigidas de acordo com novos arranjos político-econômicos. Muitos territórios passaram a ficar sob influência de poderes multiescalares, cujos centros de decisão se localizam, por vezes, a muitos quilômetros de distância. Os novos conjuntos de territórios nacionais compreendidos como espaços de governança em diversas escalas recebem o nome de trans-territórios. Neles, além dos espaços de governança existem outros tipos de territórios, como as propriedades privadas comunitárias ou capitalistas que geram conflitos na disputa pelos projetos de desenvolvimento e de sociedade. Tais conflitos, por sua vez, produzem territorialidades de dominação (FERNANDES, 2009). No caso do Brasil, se a política externa do período FHC foi de incentivo ao MERCOSUL, o governo Lula caracterizou-se por possuir como foco a integração do país com todas as nações sul-americanas, fato que pode ser comprovado através dos

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projetos que o Estado brasileiro vem promovendo junto a seus vizinhos. Tais projetos estão inseridos no âmbito da IIRSA – Iniciativa para a Integração Regional SulAmericana. Fruto da Cúpula de Presidentes da América do Sul, que ocorreu em Brasília no ano 2000, a IIRSA constitui um projeto de integração física dos países da América do Sul e pode ser entendida como um processo multissetorial que visa o desenvolvimento e a integração dos setores de transporte, energia e telecomunicações das nações sul-americanas. O encontro ocorrido na capital brasileira teve a finalidade de estimular a organização do espaço sul-americano a partir da contigüidade geográfica, da identidade cultural, e dos valores compartidos entre os países vizinhos (IIRSA, 2009). É importante frisar que a iniciativa do atual governo brasileiro vai de encontro à antiga política de “cautela e precaução” dirigida aos países fronteiriços. Ao longo dos anos, os países sul-americanos implementaram regimes específicos para suas áreas de fronteira, normalmente classificadas como “zonas ou faixas de segurança”. Vigorava no Brasil, até bem pouco tempo, a idéia de que a área de fronteira deveria ser protegida dos inimigos externos2 (SEJAS, 2003). O reconhecimento pelo governo brasileiro da importância da implantação de infra-estrutura nas cidades situadas na Faixa de Fronteira, mais propriamente, nas cidades localizadas no limite internacional, foi um aspecto novo referente às políticas públicas. Nas zonas de fronteira as cidades possuem funções que as diferenciam das que estão situadas nas proximidades dos grandes centros de decisão. Os núcleos urbanos situados ao longo do limite internacional expõem bem essa diferença, principalmente as cidades-gêmeas, onde de fato acontece o contato entre aglomerações urbanas de diferentes países (CARNEIRO FILHO, 2008). As políticas determinadas no novo contexto de integração sul-americana são responsáveis pelo surgimento de novos territórios ao longo dos limites internacionais. Territórios esses que por serem regidos por diferentes legislações necessitam de tratados e acordos internacionais que regulamentem suas gestões. Até o momento, a implementação de projetos energéticos (gasodutos) e obras de infra-estrutura (estradas, 2

Na América do Sul vem surgindo a idéia da zona de fronteira como um espaço de integração entre as nações. Isso se deve ao retorno da democracia após mais de duas décadas de ditaduras militares no continente. Assim, passa-se de uma concepção de fronteira rígida e isolante para uma projeção de abertura e união, em que estratégias de desenvolvimento são criadas por países vizinhos. Percebe-se uma nova conceitualização do espaço integrador.

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pontes, etc.) têm modificado as relações sociais e econômicas nos territórios de fronteira. Os impactos já são sentidos pelas populações das cidades-gêmeas, que possuem pouco poder de intervenção nas decisões tomadas pelos chefes de governo dos Estados nacionais a que pertencem. Um bom exemplo dos impactos causados pelo processo de integração corrente é o caso da construção da ponte internacional São Borja-Santo Tomé, inaugurada em 1998, que alterou a paisagem e o cotidiano dos moradores das cidades-gêmeas em questão. Em São Borja, o bairro do Passo, onde se localizava o porto das balsas entre Brasil e Argentina teve sua paisagem totalmente alterada. Centenas de pessoas que viviam do comércio de importados nas proximidades do cais, bem como os funcionários que trabalhavam no transporte de balsas perderam seus empregos com a construção da ponte. O mercado ao ar livre situado junto ao cais hoje não existe mais. Essa foi uma das conseqüências de decisões tomadas a muitos quilômetros, nos centros nacionais de poder, e que repercutiu nas vidas de muitas famílias daquele pedaço de fronteira que não foram consultadas sobre o assunto pertinente ao seu próprio território.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No atual momento da globalização as decisões tomadas em diferentes centros de poder geram situações de conflito nos locais em que elas se materializam. Tais conflitos são geridos pelos governos de Estados nacionais que muitas vezes se vêem envolvidos em confrontos de interesse multiescalares. O nacional, o regional e o local refletem, por diversas vezes, interesses divergentes. Nesse contexto, os símbolos são usados como ferramentas promotoras da unidade territorial. O imaginário coletivo é manipulado de acordo com os interesses daqueles que estão exercendo o controle social. Na esteira da criação dos novos arranjos de poder decorrentes da formação de blocos regionais de países, novos territórios são criados – como os que englobam as zonas de fronteira de países vizinhos. No presente, a gestão das zonas de fronteira e a resolução dos problemas referentes às populações das cidades-gêmeas emergem como um desafio para os governantes. Perante tal desafio os regionalismos e nacionalismos surgirão perante os governos ora como facilitadores dos processos de integração entre Estados, ora como entraves desses mesmos processos.

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No corrente processo de integração sul-americano, as cidades-gêmeas situadas na fronteira possuem localização estratégica. No entanto, essa posição geográfica, por si só, não garante o desenvolvimento econômico ou a inserção de seus territórios no mercado internacional de forma a gerar efeitos positivos em escala local. Uma política de integração que produza mudanças positivas não deve favorecer a continuidade das práticas contemporâneas que caracterizam a fronteira, tal como o comércio de contrabando, por exemplo, que movimenta grande quantidade de dinheiro e não gera benefícios para a população local, que, na maior parte dos casos, convive com a precariedade dos serviços e a falta de infraestrutura pública. As zonas de fronteiras do Brasil mostram-se carentes de propostas que visem à melhoria de sua vigilância e controle. A situação torna-se ainda mais complexa na medida em que os aspectos paradoxais dos projetos de integração vão sendo desvendados. Ao mesmo tempo em que há uma maior aproximação entre os Estados, há também um aumento nos intercâmbios ilegais de mercadorias contrabandeadas, drogas e armas. As formas de organização e participação da comunidade local são fundamentais para que os processos de integração do subcontinente promovidos desde Brasília, São Paulo ou Buenos Aires gerem algum benefício para as comunidades dos territórios fronteiriços (como, por exemplo, aqueles atravessados pelos eixos da IIRSA). Só assim será possível se vislumbrar um futuro em que as regiões de fronteira sejam pólos de desenvolvimento e articulação dentro dos blocos regionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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