Território e Cosmologia: Notas sobre os Awá- Guajá (Amazônia Oriental – MA). Eixo 09 - Povos Indígenas. Seminário Internacional Carajás 30 anos. São Luís, 2014

May 20, 2017 | Autor: Maycon Melo | Categoria: Anthropology, South American Indians
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Território e cosmologia: notas sobre os Awá-Guajá (Amazônia Oriental\MA). Autor: Maycon Melo1 GT: 12 – Povos Indígenas. Agência Financiadora : Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão (FAPEMA)

Resumo: Este artigo faz uma síntese teórica de temas que percorrem a cosmologia Awá-Guajá e a noção de território. Toda área Awá-Guajá está localizada desde 1982 na macro-região do Projeto Grande Carajás e, a partir de um contato desastroso, foram submetidos a um processo de semi-sedentarização e implementação da agricultura como forma de subsistência instruída pela Funai. Se por um lado às pesquisas no Maranhão indicaram transformações no modus vivendi dos índios, por outro sabemos muito pouco sobre a forma com que eles próprios definem a natureza e os valores associados a estas mudanças nas últimas décadas. Sabemos que a noção de território para os Awá-Guajá envolve tanto um domínio territorial quanto um conjunto de relações estabelecidas com outros seres; humanos e não-humanos. Temas da etnologia amazonista, como caça e xamanismo, oferecem modelos de alteridade com os quais podemos lançar esforços para compreender relações e concepções em torno da noção de território para os Awá-Guajá. As transações estabelecidas com diferentes seres na caça e no xamanismo nos aproximam da maneira como os Awá-Guajá pensam a noção de território e a natureza das transformações de sua sociedade. Em uma terra onde toda atenção se volta a invasores, madeireiros e grileiros, os Awá-Guajá parecem não esquecer que outros seres também habitam a floresta.

Palavras chave: Território, caça e xamanismo.

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Mestre em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Doutorando em Ciências Sociais, Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Introdução Os Awá, ou Awá-Guajá como são conhecidos, são um povo caçador-coletor habitante da macro-região da Amazônia Oriental, especificamente do noroeste do Maranhão, entre as bacias do Rio Pindaré e Gurupi. Os Awá são classificados nos estudos etnolinguísticos como falantes de uma língua da família Tupi-Guarani. Até meados do século XX mantinham características nômades, sem aldeias permanentes, percorrendo longos territórios em pequenos grupos de uma ou duas famílias nucleares, não praticavam agricultura e sobreviviam principalmente da caça e coleta. O processo de contato com agências do Estado Brasileiro iniciou em 1976, o segundo grupo foi contatado em 1980 e o terceiro grupo em 1989. Toda área Awá-Guajá está localizada na macro-região onde foi implantado em 1982 o Projeto Grande Carajás (PGC), projeto de exploração mineral, agrícola e energética iniciado pelo Governo Brasileiro através da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Nas últimas três décadas os Awá foram submetidos a um processo de perda populacional e territorial decorrentes do contato gradativo com a sociedade nacional, convergindo num processo de semi-sedentarização e implementação da agricultura como forma de subsistência instruída pela FUNAI. (Gomes, 1982, Forline, 1997, Cormier, 2003, O‟Dwyer, 2005, Coelho, 2009, Garcia, 2010, Ferreira, 2011). A população hoje com cerca de 350 pessoas está distribuída em quatro aldeias localizadas em três Terras Indígenas (TI). Ao norte TI Alto Turiaçu (530.500ha) a qual dividem com os Ka´ápor, que ocupam dois terços da TI, e alguns Tembé, nela são assistidos pelo PIN Guajá. Ao sul TI Carú (172.600ha) que ocupam em conjunto com os Tentehar\Guajajara que são maioria, são assistidos pelo PIN Awá e Tiracambu. Entre as duas a TI Awá (118.000ha), a única demarcada para uso exclusivo dos Awá, onde são assistidos pelo PIN Juriti. O processo de contato com agências do Estado Brasileiro iniciou em 1976, quando foi contatado um grupo que se encontrava no alto curso do Rio Turiaçu. O grupo foi instalado onde hoje é a aldeia do PIN Guajá, na Terra Indígena Alto Turiaçu (Gomes, 1996, Coelho, 2009, Cormier, 2003). A TI Caru e Alto Turiaçu eram parte de uma única reserva, a Reserva Florestal do Gurupi (845.000ha) criada por decreto presidencial em 1961. Foi em 1976 que a FUNAI permitiu a divisão da área em duas, permanecendo cerca de 160.00ha de Terra Indígena fora da nova demarcação. Este território só foi recuperado em 2005 com a demarcação da TI Awá.

Toda área Awá-Guajá nas 3 TIs está localizada na macro-região onde foi implantado em 1982 o Projeto Grande Carajás (PGC), projeto de exploração mineral, agrícola e energética iniciado pelo Governo Brasileiro através da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). A ferrovia Carajás-Itaqui, que liga o Porto do Itaqui em São Luís a Serra dos Carajás, inaugurada em 1985, corta o limite sul da TI Caru, passa a cerca de dois km das aldeias Awá e Tiracambu (Gomes, 1985, O‟Dwyer, 2005, Coelho, 2009, Garcia, 2010). Há três décadas os Awá vem sendo instruídos a praticar a agricultura pela FUNAI, em 1999 em conjunto com Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a CVRD teve início uma experiência escolar com objetivo de preparar as lideranças indígenas para o convívio com a sociedade nacional. Dentro destas novas situações as pesquisas já nos indicam um cenário de grandes transformações no modus vivendi dos Awá-Guajá (Coelho, 2009, Ferreira, 2010, Garcia, 2010). A TI Caru, campo empírico desta investigação, contém hoje o maior contingente populacional e a maior aldeia Awá no Brasil (Coelho, 2009). Está situada no município de Bom Jardim, sendo que seus limites orientais e ocidentais fazem divisa com os municípios de Santa Luzia e Carutapera. A convivência com os Tenetehar\Guajajará criou condições para se formarem alianças políticas principalmente frente a FUNAI e a CVRD. Em 1993 os Awá se reuniram com os Tenetehar\Guajajará, Ka´apor e outras etnias para exigir da CVRD um compromisso maior conforme o convênio original de implementação da Ferrovia Carajás inaugurada em 1985 (idem). Em 2006 um número maior fechou a ferrovia exigindo melhoria no atendimento à saúde administrada pela Funasa e, em 2012, novamente, bloquearam a ferrovia numa aliança com os Tenetehar, que tomou repercussão nacional. Acrescente a esta grande repercussão que criou visibilidade aos Awá na cena indigenista a campanha que a ONG Survival Internacional lançou, levantando 50.000 assinaturas pela internet a serem enviadas ao Ministro da Justiça pedindo a retirada dos invasores de suas terras. Em 2014 a operação Hiléia Pátria, uma parceria entre o Ministério do Meio Ambiente e da Defesa, anunciava ter recolhido madeira ilegal, fechado serralherias, recolhido equipamentos, aplicado multas e retirado os invasores das terras Awá. Dentro deste contexto histórico e com base na produção de etnografias com os AwáGuajá podemos perceber que, por um lado conhecemos mais sobre o processo de territorialização (Oliveira, 1998) envolvendo-os, por outro sabemos muito pouco sobre a forma com que os Awá entendem e se relacionam com tal processo de acordo com sua visão de mundo. Este texto faz uma pequena síntese teórica de temas na cosmologia ameríndia na

tentativa de nos aproximar da forma como que os Awá-Guajá entendem e se relacionam com o território. Território e cosmologia Awá-Guajá. A noção de “território indígena”, presente na Constituição de 1988, foi formulada na década de 1950 durante os debates relativos à criação do Parque Indígena do Xingu. Nela é preciso distinguir a noção de terra da de território, que remete a relações e agentes diferentes, levando em consideração a forma como estas categorias são apropriadas pelos discursos indigenistas. Segundo Gallois (2004) a noção de terra se refere ao processo político-jurídico conduzido pelo Estado, enquanto a de território nos remete a construção e vivência da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial. Em pesquisas sobre a organização espacial de diferentes povos amazônicos (Rival, 1999), que assim com os Awá enxergam na caça uma atividade estruturante, uma das referências é a do território como um espaço marcado por narrativas de caça, guerras, relações de parentesco, onde o conhecimento produzido na interação com a floresta seria a todo o momento colocado a prova e reinventado. Essa forma de se apropriar do espaço se aproxima do que afirma Fausto (2001) ao analisar vários topônimos utilizados pelos Parakanã (PA) para definir suas relações com o território. Os nomes atribuídos aos lugares, encontrados na tradução destes topônimos, são antes resultado de um longo processo de ocupação do que um ato simbólico de posse. Ou seja, o território para estes povos não se trata de uma superfície abstrata “onde um sujeito coletivo exerce sua soberania, mais de uma faixa de floresta conhecida na atividade cotidiana e reconhecida pela inscrição desses atos através do tempo” (idem:105). A forma social dos Awá em se apropriar do espaço se observa através do termo harakwá “minha área”, que abrange tanto o domínio territorial quanto as relações envolvidas com outros seres neste território. O local é reconhecido enquanto tal por um grupo familiar por se tratar do espaço por onde circulam e tiram seu sustento, sendo de uso exclusivo de um grupo conhecido e reconhecido. È importante considerar que outros povos indígenas, o branco e seres não-humanos possuem seu próprio harakwá na floresta (Cormier, 2003; Garcia, 2010). Isso porque como para outros povos Tupi-Guarani, para os Awá o cosmos seria resultado da separação de um mundo anterior, onde céu, terra e subterra estavam próximos, quase se fundiam permitindo que diferentes seres vivessem juntos. A alteração ocorreu quando o

demiurgo Maíra promoveu uma histórica separação do cosmos em patamares, cujo resultado principal foi a “especiação sociológica da terra” (Viveiros de Castro, 1986). Os Awá tem no eixo céu-terra elementos importantes para se compreender como se movimentam na floresta enquanto espaço e universo habitado por outros seres dotados de agência. Iwá, há-ripá e ka´á “céu, aldeia e floresta”, são talvez os principais centros por onde gira a vida dos Awá, formando pares como “céu-terra”; “terra-mata”; “mata-céu” (Garcia, 2010:35). Neste contexto, o conjunto de ambientes compostos pelas terras firmes em que viviam no passado e as zonas de várzea ou cursos de rio que habitam hoje compõe um conjunto de áreas de caça identificadas por topônimos (idem). Por exemplo, a árvore de tatajuba onde se mata guaribas, os buracos de paca ou o brejo onde se pesca poraquês são espaços vivos da mata nomeados e utilizados a partir da interação dos Awá e seus harakwá. O harakwá é território reconhecido e compartilhado, suas fronteiras são estabelecidas por outros harakwá, sendo que as regras de circulação e trocas de pessoas obedecem à distância social e genealógica entre seus ocupantes a partir de grupos cognáticos. Filhos e filhas tem direito a áreas de caça dos seus pais biológicos, mas está claro que o acesso a estas áreas não é uma questão de escolha, mas de laços consanguíneos (Cormier, 2003:73). Entre estes grupos cognáticos tornam-se fundamentais a noção de harapihiara “parentes próximos”, e harapihianã “parentes distantes”, sendo os primeiros reconhecidos como consanguíneos e os segundos desde afins casáveis a inimigos potenciais com quem se relacionam. Nas relações de parentesco ameríndio destaca-se a subordinação do parentesco e do local aos valores associados à exterioridade. O termo harapihiara “parentes próximos”, e harapihianã “parentes distantes”, sugere um jogo hierárquico entre consanguinidade e afinidade, marcadores na Amazônia de alteridades e identidades. No nível do grupo local a afinidade reinaria sobre a consanguinidade, no nível supralocal esta hierarquia é invertida, e, no plano global, é a afinidade mesmo que se vê subdeterminada pela relação com o exterior. Esse exterior, que envolve categorias como “pessoas distantes” e “inimigos”, contem os recursos simbólicos necessários para a reprodução social de pessoas na Amazônia. (Viveiros de Castro, 2002). O interessante sobre o termo harakwa é que ele não denota apenas o domínio e uso

espacial na floresta pelos índios, mas um conjunto de relações estabelecidas com outros seres na floresta; sejam animais ou seres não humanos. Para os Awá-Guajá todos os seres possuem seus harakwá na floresta, nele estabelecem constantes relações de socialização. Temas clássicos da etnologia amazonistas, como a caça e o xamanismo, inspiram a pensar em algo como uma tradução (Carneiro da Cunha, 1998) da relação dos Awá com estes outros seres.

Somos levados para mais perto da visão de mundo dos Awá-Guajá e assim do modo como pensam as transformações envolvendo seu território. Caça e xamanismo. Até a década de 1980 os trabalhos de Nimuendaju (1948), Baleé (1994) e Ribeiro (1996) foram referência em relação aos Awá-Guajá. Em todos eles se reforça a dimensão da ocupação espacial de povos amazônicos que encontram na caça e nos constantes deslocamentos, mesmo quando apresentam horticultura, as atividades centrais do seu modos vivendi. São nas atividades de caça ou deslocamentos que os saberes e conhecimento destes povos são produzidos nas interações com a floresta, estabelecendo uma dinâmica onde estão a todo tempo sendo colocados à prova e reinventados (Rival, 1999). No trabalho de Forline (1997) conseguimos observar a relevância da caça para os Awá-Guajá, o autor descreve as principais atividades de subsistência desse povo (caça, coleta, agricultura e pesca), sistematizando a alocação do tempo empreendido nestas atividades cotidianas nas quatro aldeias das três TI´s. Mesmo com uma serie de mudanças, a caça continua sendo a atividade mais importante, “tanto no que se refere ao tempo em que permanecem caçando, quanto às atividades relacionadas a caça, como confecção dos instrumentos e sua manutenção. As mulheres também ocupam grande parte do seu tempo com a caça, realizando as tarefas que são de sua competência” (Ferreira, 2010). A relevância da caça também se observa no vasto conhecimento etnobotanico Awá, tributário, principalmente, da caça de macacos. Das 84% das plantas que conhecem todas são conhecidas por serem alimentos dos macacos e 16% por serem alimentos de seres humanos (Cormier, 2003). O trabalho de Garcia (2011,2012a, 2012b), focalizando a caça, nos da uma visão mais ampla sobre a caça e a cosmologia Awá-Guajá. Os Awá-Guajá usam o verbo watá para se referir as caminhadas pela mata em busca de alimentos, é o verbo pelo qual são referidas os deslocamentos pelo território, o harakwá. “Traduzido literalmente por „andar‟, „caminhar‟ e „caçar‟, watá não pode ser compreendido apenas como um movimento pelas trilhas de uma área [...] é sinônimo de muitas ações que se desenrolam no decorrer de uma jornada (andar, caçar e coletar)”. (Garcia, 2012a: 184). O importante aqui com essa definição é destacar que o objetivo dessas caminhas é predar algum animal, conhecer novos espaços onde caçar e outros onde coletar frutas e mel. Na interação que estabelecem com os animais na floresta, os Awá vão andar por onde eles andam, vão ver o que eles vem, saber o que sabem e apossar-se gradativamente desses saberes e poderes.

Através da caça se estabelece um tipo de economia simbólica com estes seres vinculada a reprodução da própria sociedade Awá-Guajá. No processo de interação com estes seres também há riscos aos caçadores, como nas trocas de substâncias entre caçador e presa. A breve escatologia Awá-Guajá nos diz que eles são feitos de: couro (ipiréa) carne (haitekéra) e raiva (h´aera). Quando morto o couro fica na terra para apodrecer, a carne “sobe pro céu”, vai pro iwá, e a raiva segue para a floresta. Na floresta a raiva se transforma em seres necrófagos (ajy) que agem diretamente sobre os princípios vitais (Garcia, 2012b:35). È preciso dizer que todos os seres possuem h´aera, aumentando e diversificando a ação dos ajy. Para os Awá, como ocorre com outros povos ameríndios, “o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos”, relacionados aos seus corpos (Viveiros de Castro, 1996, p. 115). É por isso que os princípios organizativos de sua sociedade contemplam uma multiplicidade de relações entre o ser humano, animais e seres não humanos em constante relação. Nesse embate de perspectivas no momento da caça, por exemplo, os guaribas a perceberão como uma guerra da qual precisam se defender atacando também os Awá. Por isso o risco aos caçadores (Garcia, 2012b). A pertinência e generalização do modelo da predação para a Amazônia como um todo pode ajudar a pensar os modos de relação estabelecidos entre os Awá e estes outros seres. Gow (1991) afirma que na Amazônia os grupos se constituem relacionalmente, sendo a forma global de tal ordem social uma economia da predação, onde as relações de predador-presa são o modelo cosmológico de todas as relações sociais. A predação aqui, portanto, aparece como o modelo da relação de alteridade e diferença a partir do que as identidades podem se constituir. Para Viveiros de Castro em sua análise sobre a “inconstância da alma selvagem”, o complexo canibal guerreiro Tupinambá aponta para uma incompletude ontológica essencial, o canibalismo dos inimigos sugere um modelo de predação incorporante, que projeta um sócius que tem o “outro” como destino e não um espelho. O essencial do sistema da guerracanibalismo-vingança era de tal ordem que “o interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença, onde o devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância” (Viveiros de Castro, 2002: 220). Fausto (2001) propôs pensar a guerra em grupos com as características da predação, ou seja, como “consumo produtivo”. Esta ideia conjuga três proposições: 1 – prioridade na produção de pessoas e grupos, e não de objetos; 2 – a relação com o exterior sendo necessária

como condição da reprodução interior do grupo; 3 – a articulação com o exterior se dá primariamente pela predação. Neste sentido, articulando consumo e produção, Fausto propõe um conceito que coloca em primeiro plano a dinâmica de união da predação no exterior com a produção no interior, transformando, portanto, a destruição do inimigo em produção de parentes, pessoas e corpos. Essa capacidade de transformar corpos e formar pessoas também é muito explorada na vasta bibliografia envolvendo o xamanismo na Amazônia. Os xamãs são como viajantes no tempo e no espaço, “são tradutores e profetas (p. ex., Kensinger 1995) [...] Cabe-lhes, sem dúvida, interpretar o inusitado, conferir ao inédito um lugar inteligível, uma inserção na ordem das coisas” (Carneiro da Cunha, 1998: 12) No caso dos Awá-Guajá, como para os Parakanãs (Fausto, 2001) e os Matis (Arise, 2011), não há uma figura que concentraria os poderes xamânicos, todos os homens tem essa capacidade, uns mais, outros menos. A ideia de explorar alguns aspectos do xamanismo, como afirmou Carneiro da Cunha, é pensa-lo enquanto um sistema de tradução estabelecido entre seres e mundos diferentes. O ritual coletivo de maior expressão entre os Awá-Guajá é o takajá. Homens adornados por suas mulheres com penas de tucano e urubu cantam e dançam dentro dos tapiris, estrutura de palha ao redor de uma árvore, até “subirem ao iwá”. No “céu”, percorrendo camadas e patamares que cada vez mais os distanciam da terra. Uma vez alcançado estes patamares, os Awá encontram os karawára, seres celestiais com quem estabelecem trocas de tecnologias, substâncias e de conhecimentos sobre o mundo(Garcia, 2010, Ferreira, 2011). De acordo com etnografias com povos Tupi, cognatos para karawara se referem a seres celestiais que presentificam a imagem do Homem, do humano verdadeiro (Laraia, 1986). Segundo Fausto (2001) os cognatos Parakanã para karawara indicam potencias, espíritos com características canibais que precisam ser controlados pelos xamãs. Para os Awá, karawára é tanto espírito, materialidade física, quanto potencia carregada de ação e efetividade sobre a vida dos humanos. Os karawára formam um grupo de seres que atuam na terra de diferentes maneiras: são grandes caçadores, cantores e curadores (Garcia, 2010). Os karawára podem ser descritos a partir de duas imagens. A primeira do awá parahy, a do humano verdadeiro, humanos belos e também do awá katy, os humanos bons, de boa conduta social. Já a segunda imagem é a do jará, um ser celeste que tem no nimá um duplo de si na versão terrestre. Entre os povos amazônicos jará é pensado como duplo, onde se

estabelece entre o ser celeste e o correspondente terrestre uma relação de associação. Os jará são seres pequenos que nas versões celestes tornam-se especialistas num tipo de caça, canto ou outra ação entre os mundos. É justamente através do canto, manifestação essencial dos karawára, realizado tanto no ritual do takajá, quanto nas incursões de caça, que os Awá se dirigem a esses seres revelando seus segredos, criando um tipo de associação onde se procura saberes e curas (idem). É também através do canto que divulgam aos ouvintes e participantes do ritual aquilo que escutaram. Assim, como afirma Fausto (2001:349) para o canto dos Parakanã, o canto parece ser para os Awá o inverso simétrico da caça, “substituindo os mortos-corpos pelos cantos-nomes e a predação pela familiarização”. É no iwá, no “céu” junto com os karawára, que os Awá encontram explicações e conhecimentos sobre o mundo mítico e esse que compartilham com os “brancos”. Considerações Pensar nas formas e figuras que configuram as noções de territorialidade Awá-Guajá nos permite pensar na maneira com que os próprios Awá definem a natureza e os valores associados as mudanças nas últimas décadas. Uma etnografia dessas transações com diferentes seres em torno da questão da territorialidade (caça, xamanismo, brancos e outros índios) no possibilitaria pensar em aspectos da reprodução social dos Awá a partir de suas referencias cosmológicas. Se retornarmos ao inicio desse texto e olharmos novamente para o impacto da ação colonial sobre os Awá-Guajá e as alterações no seu modus vivendi, também podemos pensar em transformações nessas próprias referencias cosmológicas que brevemente apontei através da caça e do xamanismo. Se por um lado temos referencias cosmológicas para pensar a territorialidade Awá através da categoria harakwá, o conhecimento sobre território produzido na interação com a floresta, de outro temos madeireiros comprando madeira ilegal em aldeias e índios nas cidades em busca de trabalho. A questão tem certa urgência histórica. Autores como Sahlins (1990,1997) e Albert (2002) já nos indicaram que o cruzamento dos dados históricos do contato (história e etnohistoria), sobre seus efeitos na forma de reprodução social dos índios, pode sugerir elementos de seleção e associação destes eventos que nos aproxima da forma como que eles próprios pensam e definem a natureza e os valores das transformações que vivem. A partir da forma como os modelos de subjetivação AwáGuajá assimilam estes eventos temos uma maneira de percorrer etnograficamente os procedimentos de seleção e associação destes eventos envolvendo as dimensões cosmológicas

e políticas dos Awá em relação ao território. Um bom caminho a se percorrer por um terreno desconhecido e cheio de riscos dentro da floresta. Referências ALBERT, Bruce. O Ouro canibal e a queda do céu. Uma crítica xamânica da economia política da natureza (Yanomami). IN: Bruce Albert & Alcida Rita Ramos (org). Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: UNESP/IRD. 2002. BALÉE, W. Footprints of the Forest. Ka’apor Ethnobotany – the Historical Ecology of Plant Utilization by an Amazonian People. Columbia University Press, New York. 1994 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Pontos de vista sobre a floresta Amazônica: xamanismo e tradução. Mana 4(1):7-22, 1998 Elizabeth. POLITIS, Gustavo. HERNANDO, Almudena. e RUIBAL, Alfredo. Os Awá-Guajá e o Processo de Sedentarização. In: FERRETI, Sérgio Figueiredo. e RAMALHO, José Ricardo. Amazônia: desenvolvimento, meio ambiente e diversidade. São Luís: Edufma, 2009. CORMIER, L. Kinship with Monkeys: The Guajá foragers of Eastern Amazônia. New York: Columbia University Press, 2003. FAUSTO, Carlos. Inimigos Fiéis: História, Guerra e Xamanismo na Amazônia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. FERREIRA, Bruno. A (RE) PRODUÇÃO DO MODO DE SER AWÁ: dinâmicas de socialização na aldeia Juriti. UFMA, 2011. FORLINE, L. C. The persistence and cultural transformation of the Guajá indians: foragers of Maranhão State, Brazil. Dissertação, University of Florida, 1997. GARCIA, U.L. Karawara: a caça e o mundo dos Awá-Guajá. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, 2010. ____________. Ka‟á Watá, “andar na floresta”: caça e território em um grupo Tupi da Amazônia. Revista Mediações, Londrina, v. 17 n.1, p. 172-190, 2012a ____________. O funeral do caçador. Anuário Antropológico, 2011-II, 33-56, 2012b.

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