TERRITÓRIOS ACÚSTICOS AUDIOVISUAIS

May 27, 2017 | Autor: Frederico Pessoa | Categoria: Sound and Image, Film Music And Sound, Sound studies, Cinema Studies
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TERRITÓRIOS ACÚSTICOS AUDIOVISUAIS

Frederico Augusto Vianna de Assis Pessoa1

Resumo: Este artigo discute o conceito de território acústico, fio condutor da pesquisa de doutorado desenvolvida pelo autor no programa de pós-graduação da Escola de Belas Artes/UFMG. Será abordado o referencial teórico do conceito, suas implicações para a pesquisa sobre poéticas sonoras no cinema, bem como sua atuação como campo possível de microprocessos revolucionários no cinema. Será discutido como tais processos solicitam e constituem novas formas de sensibilidade, e provocam dissensão em relação ao pensamento hegemônico quanto às relações entre som e imagem construído pela indústria cinematográfica.

Palavras-chave: Som, Cinema, territórios acústicos.

Jean-Luc Nancy, em seu texto sobre a escuta diz: “Escutar é estender a orelha [...] é uma intensificação e uma preocupação, uma curiosidade e uma inquietude” (NANCY, 2013, p. 162). Se estar à escuta é inquietar-se, comecemos por nos colocarmos em situação de inquietude, de escuta. Em uma cultura que compreende seu mundo a partir, principalmente, da visão e constitui discursos repletos de metáforas visuais, a escuta parece retrair-se, canhestra, deslocada. Não se trata de pensar a capacidade de escutar, mas o que está implicado em escutar o mundo e o que nos implica quando escutamos. As artes lidam continuamente com a constituição de novos territórios, de planos de composição estéticos: “A arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.25). No caso das artes do som, ou que o utilizam, podemos dizer que constituem o que denominaremos aqui territórios acústicos, onde a escuta é fator central. Os territórios acústicos podem ser pensados como espaços de encontro entre as diversas forças que compõem a escuta em acontecimentos - momentos no tempo em que a escuta 1

Doutorando em Artes/Poéticas Tecnológicas. Orientador: Jalver Machado Bethônico. Pesquisador FAPEMIG. [email protected]

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se dá. Podem ser fugidios, móveis, e podem ser estáveis, fixos, embora mantenham sempre linhas de fuga que apontam para sua abertura e transformação. Os territórios acústicos se organizam a partir de conjuntos de eventos e processos de decifração que buscam compreendê-los, sendo tanto individuais quanto compartilhados. São territórios no sentido de espaços que ocupamos e constituímos quando estabelecemos relações com o mundo através da escuta. Tais espaços não são necessariamente físicos, embora possam envolver o espaço físico. São espaços que se desenham através da rede que se constitui na percepção e interpretação dos fenômenos acústicos. Estão conectados ao momento, mas também a toda uma história pessoal e cultural de constituição da sensibilidade e de sua conexão com o pensamento. O termo Acoustic Territories aparece inicialmente na obra de Brandon Labelle (2010): Acoustic Territories – sound culture and everyday life, livro sem tradução para a língua portuguesa até o momento. No livro, o autor discute as relações identitárias e de poder que se estabelecem em apropriações de espaços urbanos por grupos específicos. Estes grupos se constituem através de conexões sonoras que expressam ora gosto, ora formas de elocução, ora redes de práticas e formas de emissão sonora que os definem e os diferenciam de outros grupos. Labelle parte da concepção de território como a constituição de um espaço geográfico delimitado em que relações de poder se estabelecem: quem pode ou não entrar e sair; quem faz parte e quem não faz; quais são os códigos que definem as relações entre os habitantes; etc. Embora não defina expressamente o que denomina acoustic territory, os exemplos de Labelle apontam para esta interpretação: A topografia auditiva do meio social urbano é escutada como a mistura de diferentes fluxos e ritmos que variam em gradações de liberdade e retenção [...] Seguindo estas intensidades, e o movimento entre os scripts formais e a reescrita informal feita pelo pedestre, a calçada provê uma linha para os fluxos e contra-fluxos, para os sinais e as pulsações, a qual expressa suas reivindicações em relação ao sistema urbano. (Ibid., p. 93, tradução nossa).

Em nossa hipótese, o território acústico não é necessariamente um espaço de luta e de definição de identidades, mas um espaço que transita tanto neste modo, quanto no estabelecimento de relações simbólicas múltiplas entre a escuta e o objeto percebido. Bonnemaison e Cambrèzy afirmam a importância de EBA - UFMG

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compreender o território em sua dimensão simbólica, como valor, antes de considerá-lo espaço de conflito, espaço político: “O poder do laço territorial revela que o espaço está investido de valores não apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. É assim que o território cultural precede o território político” (BONNEMAISON e CAMBRÈZI apud HAESBAERT, p. 50).

A própria

presença do homem em um espaço o transforma, uma vez que a presença e a exploração do espaço sob as formas da sensibilidade o traduzem em símbolos e cartografias de relevo, objetos, formas que o habitam, a partir daquele que nele se lança: A presença física do homem em um espaço não mapeado – e o variar das percepções que daí ele recebe ao atravessá-lo – é uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço e, conseqüentemente, o 2 espaço em si, transformando-o em lugar (CARERI, 2013, p. 51).

Claude Raffestin fala do território como um desenho subjetivo do espaço, uma representação que se constrói a partir de uma perspectiva de “objetivos intencionais”: “Não se trata, pois do ‘espaço’, mas de um espaço construído pelo ator, que comunica suas intenções [à] realidade material por intermédio de um sistema sêmico” (RAFFESTIN, 1993, p. 147). Esta decisão subjetiva é central em nossa concepção de território acústico, onde a manifestação intencional de costura de uma articulação entre os diversos elementos que o compõe e definem um habitar (criar um território próprio) inclui a interpretação, e se condiciona, ao menos parcialmente, pela própria história coletiva. Há um atravessamento do sujeito pela sua cultura e sua história (pela alteridade) que se manifesta na sua expressão individual e na sua relação com o espaço na constituição de territórios. Guattari fala da constituição da subjetividade a partir do social e de sua apropriação pelo sujeito, descrevendo um processo que se relaciona com a possibilidade transformadora dos territórios acústicos: A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se 2

Careri utiliza aqui os termos espaço e lugar como formas complementares que traduzem um movimento em direção à apropriação pelo humano. O espaço está disponível para ser constituído em lugar pela ação humana. Utilizamos em nossa pesquisa a ideia de espaço e território com acepções semelhantes.

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reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização. (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 33).

Para o autor, os processos de singularização são formas de ruptura de um modo hegemônico

de

constituição

de

subjetividades,

através

de

apropriações

transformadoras que podem se dar nas relações sociais e na própria relação com o mundo: “trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc.” (Ibid., p. 45). Pensamos os territórios acústicos como redes que se articulam a partir de múltiplas origens: o sensório e nosso saber sobre ele; as relações simbólicas estabelecidas por um indivíduo a partir deste sensório; os diversos campos de conhecimento e as diferentes interpretações culturais sobre o mundo e sua variação histórica. Penha sublinha a necessidade de compreendermos a territorialidade humana sob este aspecto: “é importante considerar a territorialidade humana como primordialmente condicionada por normas culturais e valores, as quais variam estrutural e funcionalmente, de sociedade a sociedade, de período a período, e de acordo com as escalas de atividade social” (PENHA, 2005, p. 15). Os lugares que nos propomos a analisar não são necessariamente lugares delimitados geograficamente no mundo físico, mas lugares que podem ser simbólicos ou virtuais. O território acústico é uma apropriação subjetiva (com toda a carga cultural e histórica que ela traz) do espaço sonoro produzido pela relação entre homem e seres, sejam eles artificiais ou naturais, em eventos que se dão no tempo e em lugares diversos, tecendo conexões reticulares entre os elementos envolvidos e as construções simbólicas que a eles são ligadas. Saquet afirma o caráter múltiplo e heterogêneo do território e da territorialidade humana, observando a natureza reticular de nossas relações com nosso meio e com nossos pares: “A territorialidade significa cotidianidade, (i) materialidade, no(s) tempo(s), na(s) temporalidade(s) e no(s) território(s), no movimento relacionalprocessual [...] a vida cotidiana significa heterogeneidade. É (i) material, social e natural, a um só tempo e significa desejos, necessidades, linguagens, edificações, signos, miséria, riqueza, repetições, mudanças, frustrações, técnicas, família, trabalhos, redes, desencontros, encontros e conflitos, desigualdades e diferenças, unidade; vida e morte” (SAQUET, 2013, p. 164).

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Os

territórios

acústicos

são

espaços

que

podem

ser

dados

contingencialmente na experiência ou serem propostos através da estruturação de situações de escuta que solicitam processos específicos de decifração, como em obras artísticas sonoras ou que utilizem o som em sua elaboração – como as obras cinematográficas. São desenvolvidos a partir da experiência, do contato com situações e obras que provocam os sentidos, o pensamento, e solicitam o aprofundamento da escuta. Mary Ann Doane em seu texto A voz no cinema: a articulação de corpo e espaço (2003), afirma que a heterogeneidade característica do cinema se manifesta nas costuras múltiplas de relações entre som e imagem (costuras que mantém ambas separadas, embora unidas). Refletir acerca desta heterogeneidade é central para o pensamento sobre esta arte. Para isto, Doane propõe uma reflexão sobre o espaço cinematográfico, categoria que abarca os dois elementos e os coloca em situação. Ela identifica três aspectos centrais: 1) o espaço da diegese: “um espaço virtual construído pelo filme que é delineado como possuindo peculiaridades audíveis e visíveis” (DOANE, 2003, p. 464); 2) "O espaço da tela como receptáculo da imagem: é mensurável e ‘contém’ os significantes visíveis do filme” (Ibid., loc. cit.); 3) O espaço acústico do teatro: “o som não está ‘emoldurado’ da mesma maneira que a imagem [...] em certo sentido, ele envolve o espectador” (Ibid., loc. cit.). Em nossa dissertação de mestrado, fizemos um primeiro movimento de reflexão sobre os espaços do cinema a partir do que denominamos “Topografias Sonoras”. As topografias sonoras incluiriam a voz, elemento chave para Doane, mas abarcariam os demais aspectos sonoros cinematográficos: ruídos, música e suas respectivas ausências expressivas, seus silêncios. A dissertação abordou o cinema documentário e, ali, identificamos uma “topografia” particular a partir do entrelaçamento de Espaços de ação na realidade; espaços políticos de reivindicação de direitos e expressão de desejos; espaços simbólicos e imaginários que se entrelaçam e se influenciam mutuamente de forma dinâmica, tecendo relações entre pessoas, ideias e valores. Essas relações, ideias e valores são representados ou constituídos no cinema na própria utilização dos elementos principais de sua linguagem, o som e a imagem [...] Optamos por usar o termo topografia por acreditarmos que sintetiza essas variações do ‘relevo’, da forma de constituição e expressão desses diferentes espaços. (PESSOA, 2011, p. 25).

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Desta forma, os territórios acústicos têm sua origem tanto nos conceitos espaciais de Doane, nos Acoustic Territories de Labelle, nas perspectivas sobre o território

da

geografia,

bem

como

na

hipótese

da

“Topografia

Sonora”

cinematográfica. O conceito de territórios acústicos que desejamos explorar abarca, como dissemos, aspectos identitários, afetivos, simbólicos, campos de saberes diversos, bem como a própria sensorialidade. Propõem uma aproximação entre os fenômenos acústicos cotidianos (extremamente multifacetados e complexos) e sua manifestação em obras cinematográficas. Michel Chion em seu principal livro sobre o som no cinema, Audio-Vision (1990), afirma: “sentenças, ruídos, temas musicais, ‘células’ sonoras – manifestam-se [no cinema] como os mesmos tipos que escutamos em nossa experiência cotidiana” (CHION, 1990, p. 45, tradução nossa). Desta forma, em vez de nos esquecermos do cotidiano e buscarmos experiências únicas que o som no cinema poderia nos trazer, é mister compreendermos os inúmeros caminhos e redes que o som percorre e tece em nossas diversas experiências. Desde o início, os registros cinematográficos tiveram sua fruição acompanhada, na maioria das situações de projeção, por alguma manifestação sonora: música ao vivo, sonoplastia, narradores e intérpretes in loco (KALINAK, 2010). As articulações que se constituíam entre ambos os fenômenos (ou linguagens) durante os espetáculos, expressavam modos de sensorialidade particulares que solicitavam novas formas de construção de sentido, embora transportassem para este novo espaço formas de sensibilidade e redes interpretativas oriundas das diversas experiências da escuta. Os territórios acústicos desenhados a partir da relação específica entre som e imagem em movimento solicitavam e constituíam novas escutas, ao mesmo tempo em que constituíam geografias próprias – espaços virtualizados e reais mesclados na projeção sobre a tela e no local de fruição, na memória, na experiência vivida e na imaginação; na proximidade do objeto de escuta/olhar e em seu distanciamento; no desligamento do mundo compartilhado e na imersão na experiência narrativa da tela – que, de certa forma, os lançavam de volta à realidade (material ou simbólica). Em nossa dissertação de mestrado, como dissemos acima, discutimos o que denominamos Topografias Sonoras, relações constitutivas entre diversos EBA - UFMG

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espaços cinematográficos com ênfase no sonoro. Propusemos naquela pesquisa que “assistir a um filme é penetrar nesses espaços, participar deles, ou mesmo constituir novos espaços a partir de nossa interpretação, de nossa leitura que também se origina em um espaço imaginário, simbólico e histórico que ocupamos” (Ibid. loc. cit.). A sala de cinema constitui uma heterotopia, um espaço que se manifesta como contraposição aos diversos posicionamentos reais que ocupamos, mas ao mesmo tempo os representa. O conceito de heterotopia foi cunhado pelo filósofo Michel Foucault, em seu texto Outros Espaços (2006). Foucault o define como lugar real, criado pela própria sociedade que se manifesta como uma espécie de utopia realizada onde “os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos” (FOUCAULT, 2006, p. 415). O cinema seria um dentre os vários lugares heterotópicos que podemos encontrar na cultura. Lugar fora do lugar, onde vários espaços se sobrepõem, “sala retangular muito curiosa, no fundo da qual, sobre uma tela em duas decisões, vê-se projetar um espaço em três dimensões (Ibid., p. 418). Espaço da imobilidade, mas onde os sentidos são atiçados pelas múltiplas perspectivas visuais e sonoras que lhe são propostas pelo tridimensional que se reproduz a partir da tela iluminada bidimensional. Lugar que se desenha na reconstrução do tempo, através do corte e da montagem, da junção pluri-temporal (uma heterocronia, como nos diz o filósofo) e pluri-espacial que as narrativas projetadas na tela constituem. Lugar de imbricação de uma rede de relações que abarca tanto a história do cinema e de outras artes que a ele se conectam, quanto às teceduras sensoriais e interpretativas individuais e culturais que extraem e constituem sentido a partir das obras. O cinema é espaço aberto, mas onde só se pode entrar “com uma certa permissão e depois que se cumpriu um certo número de gestos” (Ibid., p. 420) que vão desde o ato voluntário do pagamento do ingresso até a entrega corporal às limitações que definem o lugar do espectador cinematográfico: “dupla limitação da imobilidade do corpo, bloqueado em uma poltrona [e sua respectiva] contenção do campo visual” (COMOLLI, 2008, p. 139). Acrescentaríamos a contenção do campo auditivo que caracteriza o isolamento acústico (embora relativo) da sala de cinema.

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No espaço (ou espaços) cinematográfico, o som pode desenhar topografias multifacetadas – que mesclam o sensorial e a interpretação que dele fazemos. Os diferentes espaços que são propostos nas obras audiovisuais suscitam a apropriação/criação pelo espectador de territórios sensoriais e interpretativos que tecem uma rede de sentido a partir do som e suas relações com as imagens cinematográficas – os territórios acústicos audiovisuais. O conceito de territórios acústicos nos permite compreender a efemeridade e a complexidade das relações entre imagem e som no audiovisual. O engessamento que decorre da repetição constante de fórmulas não retrata a relação originária entre ambos os elementos (a disparidade natural e a possibilidade infindável de síncrese3 – para citar Michel Chion em um de seus conceitos mais frutíferos), mas um percurso dentre os inúmeros possíveis. Ao nos atermos às categorias tradicionais, podemos compreender uma série de aspectos de uso do som no cinema, mas deixamos de lado aquilo que delas escapa. Um pensamento de conjunto, em que se compreende o papel de cada elemento dentro de um todo, de uma proposta que mescla conceito e sensibilidade – um território acústico – pode abrir novas possibilidades de entendimento deste campo. Um território acústico articula modos de escuta; gramáticas que a partir dela se estruturam; universos semânticos que dela são extraídos; práticas e saberes sobre o mundo e sobre os seres que acessamos pela sensibilidade auditiva; e mesmo espaços e territórios físicos e políticos que demarcamos e constituímos através do som e da escuta. Desta forma, o conceito de território acústico aponta para um escutar o cinema à espera, em uma abertura para o desconhecido (as propostas de articulação entre os elementos heterogêneos da imagem e do som que se constituem naquele filme específico e naquela experiência particular), em vez de em antecipação, na expectativa de confirmar o já conhecido (propostas repetitivas de uso do som inserido em contextos pré-estabelecidos de significação dentro da linguagem cinematográfica). Algumas das pesquisas sobre o som no cinema analisam justamente o engessamento, a partir de fórmulas e soluções repetidas, que

3

Conceito essencial em Chion - aglutinação entre as palavras sincronia e síntese. Esse conceito define uma interação entre som e imagem postos em sincronia na qual se realiza uma síntese entre ambos, “forjando uma relação imediata e necessária entre algo que se vê e algo que se ouve” (CHION, 1990, p.5, nossa tradução).

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se tornou comum na prática cinematográfica de muitos realizadores. Este é o caso do livro Unheard Melodies (1987) de Claudia Gorbman. Neste livro, Gorbman faz uma crítica profunda sobre o uso da música no cinema e a institucionalização da criação musical em Hollywood, tendo como centro de suas análises a produção dos estúdios na década de 1930 e 1940. O fato de têlos localizado temporalmente na Hollywood daquele momento, não limitam tais práticas àquele período. A grande maioria das obras audiovisuais contemporâneas (nas mais diversas localidades) utiliza a metodologia clássica de conexão entre som e imagem identificada por Gorbman: o centro de referência tonal; a resolução de dissonâncias em consonâncias nas cadências; a construção de melodias reconhecíveis e cantáveis; a utilização de estruturas que se repetem ao longo da composição – o leitmotiv; as articulações de tensão e relaxamento como movimento musical

atreladas

aos

movimentos

emotivos

na

tela,

etc.. Todos

esses

procedimentos são considerados como “facilmente compreendidos pelo ouvinte” (Ibid., p. 41, nossa tradução), estabelecendo uma praxe de uso da música que se reafirma a cada filme em que aparece. A voz, assim como os ruídos, não faz parte das análises da autora, mas é elemento sonoro central nas obras audiovisuais tradicionais. A questão central (na maioria dos casos) não é a fidelidade ou a expressividade da voz, mas a inteligibilidade do discurso. Os ruídos são vistos como complementos sonoros à verossimilhança do recorte feito pela imagem e os sons do mundo são reproduzidos em acordo com os eventos que a narrativa apresenta. A construção clássica da relação entre imagem e som no audiovisual tornou-se um sistema codificado e hierarquizado, apontando para a fixação dos territórios acústicos que este cinema produz. Desta forma, podemos compreender a música, bem como as práticas de uso da voz, dos ruídos e do silêncio tornadas padrão pela indústria cinematográfica hollywoodiana, e espalhadas por todo o globo, como um sistema hegemônico de proposição de territórios acústicos neste campo artístico. Procedimentos repetidos de articulação entre imagem e som solicitam redes interpretativas já estabelecidas pelas práticas recorrentes do próprio sistema de produção das obras, criando uma circularidade na criação/interpretação dos filmes que está sempre submetida às regras definidas pelo próprio sistema. A indústria cultural é espelho da economia de mercado estruturada em redes de informação que difunde pelo globo um “processo racionalizador e um EBA - UFMG

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conteúdo ideológico de origem distante e que chegam a cada lugar com os objetos e as normas estabelecidos para servi-los” (SANTOS, 2008, p. 142). A hegemonia estética hollywoodiana, dominando a constituição de territórios acústicos distantes de seu centro, expressa a hegemonia político/estética de um centro ordenador das formas de vida no globo - uma difusão de práticas e formas de pensar e criar que se originam em um determinado tempo e lugar, e são absorvidas em outros espaços. Por outro lado, os deslocamentos, as ações “antropofágicas”, os questionamentos e as rupturas se manifestam em diversas obras audiovisuais que trazem formas diferentes de construção da articulação entre som e imagem, e com isso propõem novos territórios acústicos. Consideramos que, no campo do cinema, podemos encontrar obras que buscam estabelecer coordenadas de territórios acústicos fora do pensamento hegemônico hollywoodiano criticado por Gorbman. Tais obras propõem novas formas sensíveis, solicitam novas sensibilidades e novas interpretações/experiências/construções de sentido através de suas poéticas. Além disso, trazem procedimentos de dissensão em relação a estruturas de composição som/imagem padronizadas, as quais se manifestam em códigos que delimitam o material a ser utilizado e sua organização em formas com sentido, bem como sua inserção no universo da cultura e do ouvinte. De acordo com o filósofo Jacques Rancière, as obras de arte atuam na redefinição do próprio sensível, operando a “interrupção das coordenadas normais da experiência sensorial” (RANCIÈRE, 2005, p. 15, tradução nossa). Para Rancière, a força da arte aparece na exploração de possibilidades novas, que deslocam a arte de seu lugar já estabelecido para lugares que lhe são distantes, de forma a extrair dela possibilidades de “desenvolver a competência que surge do questionamento dos esquemas perceptivos aderidos às identidades específicas” (Ibid., p. 71, tradução nossa). Ou seja, através do deslocamento da obra, provocar o espectador a sair de seu lugar comum, habitual, de sua rede de sentidos já prontos e préestabelecidos (que o atravessam) e fazê-lo produzir novas experiências sensoriais, novas relações e sentidos a partir das obras. Guattari fala de microprocessos revolucionários, que transformam nossas formas de estar e atuar no mundo, podendo tanto ter sua origem nas relações sociais quanto em outros campos: “Os microprocessos revolucionários podem não ser da natureza das relações sociais. Por exemplo, a relação de um indivíduo com a EBA - UFMG

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música ou com a pintura pode acarretar um processo de percepção e de sensibilidade inteiramente novo” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 47). A hipótese que desenvolvemos em nossa pesquisa é que os territórios acústicos

propostos

por

certas

obras

cinematográficas

são

campo

de

microprocessos revolucionários no cinema e provocam dissensão em relação à hegemonia definida pelo cinema clássico hollywoodiano (hegemonia ampliada e refinada pelas produções da indústria cinematográfica ao longo da história – tanto na própria

indústria

norte-americana,

como

na

indústria

de

entretenimento

cinematográfico de outros países). Ao procurar formas de conexão entre imagem e som que permitissem a renovação das poéticas cinematográficas, diversas obras audiovisuais (cinema e seus campos próximos – vídeo, videoarte, cinema experimental, etc.) se articulam às mudanças no pensamento sobre o som e a música que se originaram nos movimentos de ruptura musical do século XX. Não queremos dizer com isto que estas propostas de territórios acústicos no audiovisual façam uso direto de propostas originadas nos pensamentos musicais de ruptura em questão, mas que expressam apropriações de certos procedimentos e formas de pensar o som que estes movimentos de ruptura trouxeram para seu campo artístico. Escolhemos quatro momentos de ruptura em relação às práticas tradicionais da música que se constituíram durante o século XX e que se mostraram origem de percursos de abertura e experimentação, tanto na organização sonora quanto com os próprios sons: o pensamento conceitual que se origina com o serialismo dodecafônico; o registro e manipulação de sons do mundo, presentes na música concreta; a escuta estetizada do próprio mundo presente nas propostas de John Cage; e a criação sonora e modelagem do som presentes na música eletrônica. Essas práticas e os percursos delas decorrentes trouxeram uma infinidade de propostas e pesquisas em relação à música e ao som que se imiscuíram em outros campos artísticos e permitiram, inclusive, o aparecimento de formas novas, como a arte sonora, por exemplo. Embora não tenhamos aqui espaço suficiente para realizarmos análises detalhadas sobre filmes em que essas propostas se manifestam (como fazemos em nossa tese), gostaríamos de trazer um exemplo simples para ilustrar nossa EBA - UFMG

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perspectiva. A animação Ceci est un Message Enregistré (Esta é uma mensagem gravada) de Jean-Thomas Bédard (1973), se compõe de colagens feitas a partir de recortes de inúmeros anúncios publicitários e imagens diversas impressos em revistas. O curta metragem de animação aborda a história da humanidade a partir do nascimento e crescimento do homem e da mulher (uma infinidade de imagens compõe cada gênero – ao mesmo tempo em que somos remetidos à ideia originária de adão e eva), seu encontro, a construção de uma relação, de valores e modos de vida centrados na propriedade de objetos, até o desembocar nos conflitos humanos e o extermínio da espécie ilustrado em imagens de campos de concentração. A banda sonora do filme ficou a cargo de Alain Clavier, compositor integrante (na época) do Atelier de Concepção Sonora do National Film Board canadense. A proposta do atelier, naquele momento (nos anos 1970), apontava para uma nova forma de pensar o som no cinema, partindo das concepções musicais da música concreta de Pierre Schaeffer. Um dos principais expoentes do NFB, Normam McLaren, já produzira experimentos imagético-sonoros em animações que realizara nos anos 1950 e 1960. Neste caso, há uma relação direta entre o pensamento musical e sua aplicação na construção do território acústico do filme. A banda sonora de Ceci est un Message Enregistré é uma composição complexa que mescla os mais diversos sons e múltiplos tipos de tratamento para sua transformação em novos elementos: ruídos diversos, tons eletrônicos, vozes, etc.; acrescidos de filtros de frequência, reverberação, aceleramentos, etc. Percebemos, inicialmente, o desenho de uma relação entre materiais utilizados nas imagens e na banda sonora: Clavier seleciona diversas gravações que parecem originar-se em comerciais radiofônicos ou televisivos, as quais modifica radicalmente através de filtros. Esta escolha de material se alinha à escolha das imagens, partindo de uma mesma fonte, ponto de forte crítica do filme ao que construímos como imagem visual e sonora de nossa cultura. O próprio processo de colagem das múltiplas vozes de diferentes origens expressa uma relação conceitual com a montagem utilizada nas imagens do filme. Desta forma, a proposta inicial é de diálogo material e formal, independente da conexão ponto a ponto. Portanto, não seria proveitoso pensarmos em categorias específicas que dizem respeito à atuação da música de uma maneira fixa: emotiva, retórica, localizadora, etc. Tais funções são

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definidas por autores como Wingstedt (2005), mas não são capazes de refletir formas mais abstratas, localizadas e móveis de articulação entre um e outro campo. Clavier altera as vozes em alguns momentos de modo a dar-lhes um ritmo que se conecta ao ritmo da edição imagética, mas estabelece outros fluxos através da variação dinâmica ou da construção de glissandos mesclados a alterações concomitantes de suas características timbrísticas. As pulsações nos remetem ao fluxo das imagens, mas ao mesmo tempo constroem outros movimentos rítmicos, distantes dos movimentos imagéticos, que expandem o que vemos e o que ouvimos. Estes fluxos nos conduzem a novas sensibilidades na articulação entre som e imagem, tirando-nos da perspectiva rígida da sincronia ou da pontuação para fluxos paralelos entre os dois elementos/linguagens que ora se aproximam e ora se afastam. Há uma composição entre ruídos e vozes que se alternam como condutores do andamento sonoro e constituem momentos de velocidade e de lentidão que dialogam com o que vemos, mas não se subordinam ao que está posto nas imagens. A banda sonora constitui todo um campo de experiência estética que se compõem com as imagens, mas se distancia das formas tradicionais de estabelecimento deste diálogo: não há música emotiva, nem tampouco um estilo de composição já experimentado inúmeras vezes pelo cinema, com a condução melódica, os encadeamentos de acordes, os leitmotivs, etc. O que não exclui adensamentos, tensões, relaxamentos e movimento. Os ruídos não são realistas, mas expressivos, articulando-se ao todo da banda sonora ora como pontuações tradicionais da imagem (não há motivo para não incluir a tradição, mas motivo para não ser tomado por ela), ora como elementos que se relacionam a outros, musicalmente. As vozes não são o centro de nossa atenção e tampouco estão ali para servirem à compreensão do discurso, mas se tornam um elemento sonoro como os demais: “em uma abordagem eletro-acústica da banda sonora, todos os sons – tanto as palavras quanto os ruídos realistas – são considerados como material passível de exploração musical” (DAOUST apud LA ROCHELLE, 1992, p. 30, tradução nossa). Desta forma, o território acústico desenhado pelo filme solicita uma escuta que possa tanto perceber as relações metalinguísticas, se assim podemos dizer, entre forma e matéria de um e outro elemento/linguagem do filme (sons e imagens), EBA - UFMG

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mas também que possa apreciar esteticamente a composição de sons que se desenvolve ao longo da película: o movimento próprio dos sons e suas articulações temporais, morfológicas, e timbrísticas, tanto criando momentos específicos de síncrese, quanto continuidade e ruptura na própria condução da banda sonora. Esta escuta se expressa na constituição de um território acústico específico, que mescla sensorialidade, sensibilidade, tecedura de redes interpretativas, história da cultura, do cinema e da música.

Referências Bibliográficas CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G. Gilli, 2013. CHION, Michel. Audio-Vision: sound on screen. New York: Columbia University Press, 1990. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Que é a Filosofia? 2ª Reimpr. São Paulo: Editora 34, 1996. DOANE, Mary Ann. A Voz do Cinema: articulação de corpo e espaço. In XAVIER, Ismail. (Org.) A Experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 2003, pp 457-475.

FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Michel Foucault Estética: Literatura e pintura, música e cinema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2006, pp 411-422.

GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies. Bloomington: Indiana University Press, 1987

GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 1996

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